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Departamento de Comunicação Social – Habilitação em Cinema

O sequestro do cinema:
Táticas de aprisionamento hollywoodianas e possíveis fugas através da arte
contemporânea

Crystal Sandres Duarte


Matrícula: 1620482

Rio de Janeiro
2021
2

Crystal Sandres Duarte

O sequestro do cinema:
Táticas de aprisionamento hollywoodianas e possíveis fugas através da arte
contemporânea

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de


graduação em Comunicação Social, habilitação em Cinema,
da PUC-Rio, como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Comunicação Social/Cinema.
Orientadora: Profª. Marcia Antabi

Rio de Janeiro, 2021


3

Aos meus avós paternos, Milma e Moacyr.


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Sumário

Introdução ............................................................... 5
1. O poder da imagem-movimento......................... 11
2. O cinema norte-americano e
suas práticas colonizadoras.................................... 17
2.1 Linguagem
2.2 Políticas............................................................... 21
3. Rupturas: A alforria da arte cinema.................. 25
3.1 A imagem-tempo................................................ 26
3.2 O vídeo................................................................ 30
Considerações finais.................................................33
Referências Bibliográficas.......................................34
Referências Audiovisuais.........................................35
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Introdução
O cinema democrático, bastante minoritário, é realizado contra
e não graças a Hollywood.1

O trabalho em questão tem como objetivo manter fértil o campo da reflexão sobre a
sétima arte. É também através do pensamento acadêmico que se consagra, destrincha e se
registra a arte. Assim, é importante que o campo teórico seja tão cheio de questionamentos e
possibilidades quanto a própria arte. É necessário que ao longo dos anos perguntemos várias
vezes o que Bazin (1991) nos perguntou: “o que é cinema?”, ou “onde está o cinema?”, porque
assim como tantas outras coisas, o cinema também está fadado a se transformar. Essas são
perguntas importantes a serem respondidas, por isso, esta monografia tem o intuito de refletir
sobre o campo do cinema e sua utilização através de uma discussão de propósitos e alternativas.
A reflexão aqui presente tem a intenção de se colocar sobre a nomenclatura designada
ao cinema fora do clássico, aquele dito experimental. Esta é uma entre muitas discussões
geradas pelo paralelo indústria-arte. Nosso objetivo é germinar uma semente de questionamento
que ponha em dúvida o cinema como entretenimento e o aproxime de outras possibilidades
desligadas da satisfação do público e das bilheterias. Também faz parte da proposta do trabalho
em questão, fazer denúncia de um tipo de invasão e colonização de uma das formas de
linguagem do cinema (a decupagem clássica concebida por Griffith, explicada em mais detalhes
no segundo capítulo) sobre as outras. A consequência dessa reflexão é desvencilhar de forma
radical a potência do cinema-arte (experimental) das intenções não explícitas do cinema
clássico. Tomamos como base a afirmação de Kátia Maciel em seu livro Transcinemas (2009):
“O cinema sempre foi experimental, o que quer dizer que sempre foi um campo de pesquisa”
(p. 13). Isso significaria então que o cinema teria sido desde sempre e como um todo
experimental. Afinal, não foram através de experimentos que se desenvolveram as façanhas
tecnológicas que tornaram o cinema sequer possível?
O cinema se proliferou fortemente como indústria e também se desenvolveu como uma
vertente extremamente fértil do campo da arte. Walter Benjamin (1892-1940) alertava que o
cinema, por se basear em uma tecnologia de reprodutibilidade técnica, inaugura uma nova
função da arte. De acordo com o filósofo alemão, a capacidade de ser reproduzida inúmeras
vezes para muitas pessoas acaba se transformando no propósito da relação entre a obra e o

1
HENNEBELLE, Guy. Os Cinemas Nacionais Contra Hollywood p. 41 1. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1978.
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espectador. Dessa forma, a arte substitui a partir do cinema o “ritual” por uma outra forma de
praxis, a política (BENJAMIN, 1975, p. 17).
A vertente do cinema como indústria ganhou, no período entre as duas guerras mundiais,
seu braço mais potente no império cinematográfico de uma das maiores potências econômicas
mundiais, os Estados Unidos. Como ocorreu durante o regime nazista, que se utilizou
fortemente do cinema como ferramenta de propagação e inserção de seus valores na sociedade
alemã, os Estados Unidos se apropriam do cinema como ferramenta para cumprir com itens de
uma agenda imperialista propagando e inserindo seus valores em escala mundial
(HENNEBELLE, 1978, p. 28-30).
A imagem-movimento − termo introduzido pelo filósofo francês Gilles Deleuze (1925-
1995) e que se refere a um “bloco de espaço-tempo” diante de um todo, o que dentro do universo
do filme corresponde ao plano − carrega um fascínio como forma de representação e atinge
uma camada mais profunda no quesito imitação da realidade. Podemos tomar como exemplo a
primeira exibição do filme produzido pelos irmãos Lumière, Chegada de um trem à estação 2
(1896), que fez com que parte dos espectadores dentro da sala de cinema corressem para as
portas de saída assustados com a possibilidade de que o trem fosse invadir a sala de exibição.
O movimento é em grande parte advindo da nossa percepção. Para Dubois o movimento
é a única forma de definir nossa relação efêmera com o mundo que, é essencialmente “o que
nos funda como seres vivos e mortais”. O autor afirma que “a instabilidade e a mudança são a
regra, e tudo seria apenas uma imensa e infinita correlação de movimentos sempre se fazendo,
se desfazendo e se refazendo” (2003, p. 9). Sendo assim, a possibilidade de representar um
elemento tão essencial de mediação da nossa existência em conjunto com a imagem (outro meio
essencial de composição da presença do ser), o movimento concede à imagem cinematográfica
forte semelhança com a própria vida.
A estética de montagem do cinema norte-americano sistematizada por Griffith (1875-
1948), faz o maior proveito da profunda identificação causada no espectador pela imagem-
movimento. Dotado de uma estética naturalista e com claro objetivo de fingir uma continuidade
das imagens diante da realidade descontínua da imagem cinematográfica, a hipótese realista do
cinema hollywoodiano implica na admissão de que há um modo “normal” ou “natural” de se
combinar as imagens, justamente aquele apto a não destruir essa falsa impressão de realidade
que ilude o espectador nas semelhanças entre o universo do filme e a vida fora dele (XAVIER,

2 Título original do filme: L'arrivée d'un train à La Ciotat.


7

2005, p. 33). Assim, o fenômeno de identificação compõe a estética da decupagem clássica


tanto quanto o modelo narrativo.
Desde o começo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o cinema sofreu forte
assédio norte-americano com a “guerra das patentes”. Nesse incidente histórico, o inventor
norte-americano Thomas Edison (1847-1931) tentou privatizar o cinematógrafo
desqualificando os Lumière e seus outros concorrentes, executando contra os mesmos, de
acordo com o historiador Guy Hennebelle (1941-2003), por volta de 500 processos em um
período de dez anos (1978, p. 30). Desde então, os norte-americanos se utilizaram do cinema
como foi previsto por Walter Benjamin: primeiramente, o instrumentalizando para difundir seu
modelo político que sustentava e impulsionava todos os valores do cinema como indústria e,
que estava em concorrência direta com o modelo político proposto pela União Soviética; em
um segundo momento, as políticas da nação norte-americana garantiram que a sétima arte
ficasse para sempre marcada com a linguagem norte-americana, que, baseada na identificação
como estética e no apagamento do próprio dispositivo, simula um mundo orgânico e contínuo
onde são projetados os maiores desejos e ilusões do espectador. Dessa forma, o cinema
narrativo clássico se torna a linguagem perfeita para carregar esse novo tipo de colonização que
acontece através do imaginário e que, impulsionada por uma enorme “turbina financeira”, chega
ao mundo todo de forma massiva.
Assim, ao redor do mundo, exibidores enchem suas salas de exibição com o “cinema
normal” (XAVIER, 2005, p. 44-45) que garante inclusive o dinheiro necessário para a
sobrevivência no próprio sistema norte-americano. Milhões de pessoas assistem aos filmes e
vão para casa com mensagens (nada) subliminares, disfarçadas de entretenimento, que
garantem uma soberania de padrões norte-americanos.3 Hollywood produz os filmes de puro
entretenimento e também os filmes intelectuais, ou, como explica Hennebelle, filmes que
“geralmente se prestam a uma leitura dupla: popular e intelectual” (1978, p. 39), que serão
premiados por eles próprios na premiação considerada por eles mesmos a “mais importante
premiação de cinema do mundo”, o Oscar.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o mundo presenciou a ascensão do
intolerável, de um horror insuportável que deixou, principalmente na Europa, cicatrizes de um
período de perseguição, morte e devastação. No cinema, o neorrealismo surge como movimento
justamente em meio a esse período de crise. De acordo com Deleuze, o neorrealismo “registra

3
Em 2020, por exemplo, aqui no Brasil, de acordo com os dados divulgados pela ANCINE em Janeiro de 2021,
quatro dos cinco filmes mais assistidos e, portanto, com maior bilheteria, foram norte-americanos. Juntos, mesmo
em ano de pandemia, esses filmes foram assistidos no total por 16 milhões 25 mil e 436 espectadores.
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a falência dos esquemas sensório-motores: os personagens não sabem mais reagir às situações
que os ultrapassam, porque é horrível demais, ou belo demais, ou insolúvel...” (2008, p. 77-78).
Para o filósofo, “toda percepção é antes de tudo sensório-motora” (1983, p. 86), isso porque a
percepção intermedia as relações sensoriais e as motoras, a recepção do estímulo e a resposta.
O sistema sensório-motor, portanto, é aquele que se funda na reação, aquele em que para cada
estímulo corresponde uma possível ação. Assim, os esquemas sensório-motores, em um período
que não comporta nenhuma reação possível, deixam de fazer sentido e, com eles o cinema
narrativo e a decupagem clássica, cujo o desenvolvimento das histórias, como elucida Deleuze
(2008, p. 77), depende de tais esquemas.
Em oposição ao sistema sensório-motor, e em conjunto com o neorrealismo italiano,
nasce um segundo sistema que opera através de “situações óticas e sonoras puras” (DELEUZE,
2005, p. 11). Assim, o mundo perdeu a capacidade de reação e, a Itália, devastada pela guerra,
perdeu a sua capacidade de produzir cinema no modelo clássico, dependente de grandes
estúdios, do dinheiro e baseado na racionalidade. O modelo narrativo cinematográfico e suas
fantasias sensório-motoras, já não bastavam para digerir as reflexões em questão, o cinema teria
agora que operar em um nível sensível, além do racional.
Nesse novo “sistema” o tempo se liberta do movimento, assumindo o papel principal. A
montagem característica essencial no cinema clássico e, até então, debate principal da
linguagem cinematográfica, agora é coadjuvante da imagem. A imagem ótica e sonora pura
liga-se diretamente a um novo tipo de imagem, a imagem-tempo que “sub-ordenou o
movimento”. Essa reversão faz com que o tempo deixe de ser “medida do movimento”. O
movimento se transforma então na “perspectiva do tempo”, o que constituiu um “cinema do
tempo, com uma nova concepção e novas formas de montagem” (DELEUZE, 2005, p. 33).
Sobre a imagem-movimento e a imagem-tempo, Deleuze elucida:

O cinema é primeiramente imagem-


movimento: nem sequer há alguma “relação”
entre a imagem e o movimento, o cinema cria
o automovimento da imagem. Depois quando o
cinema faz sua revolução “kantiana”, quer
dizer, quando ele deixa de subordinar o tempo
ao movimento, quando faz o movimento
depender do tempo [...], então a imagem
cinematográfica torna-se uma imagem-tempo,
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uma autotemporalização da imagem


(DELEUZE, 2008, p. 84).

Nos anos 1960 mais uma vez o cinema clássico norte-americano mostra-se insuficiente,
com uma queda nas bilheterias hollywoodianas e uma ascensão das vanguardas que
representavam uma completa desconstrução do modelo clássico, tanto de linguagem quanto de
temática. As temáticas do cinema clássico eram conservadoras e não representativas, além de
não computarem as experiências traumáticas pelas quais o mundo havia passado, continuando
a representar um universo publicitário fantasioso (HENNEBELLE, 1978, p. 52-54).
A decupagem clássica, não pode ir além da narrativa e se despreender de uma noção
linear na qual a todos os estímulos correspondem uma reação que leva ao evento seguinte até
culminar em um final perfeito. Esse modelo se difere completamente da vida, e por isso dela
não dá conta. Como aponta Deleuze em Cinema 1: A Imagem-movimento (1983, p. 47), a
decupagem clássica não está “submetida à narração”, mas sim à própria “narratividade que
decorre desta concepção da montagem”. Nesse sentido, fazem parte da estética do cinema
narrativo e da decupagem clássica, os recursos de identificação e essa noção preconcebida de
sistema, onde sempre existe uma resposta, uma reação, uma linearidade que caminha em
direção a um final. A própria lógica da decupagem clássica está acoplada a essa concepção de
contar uma história.
Assim, observamos o cinema se dividir em dois eixos, um relacionado à indústria e outro
à arte. Além dos Estados Unidos, o modelo indústria domina ou invade vários países,
imprimindo sua marca como o cinema normal. O cinema relacionado à arte recebe a
classificação informal de experimental, simplesmente por se diferir do cinema clássico, quando
na verdade é o cinema clássico que deveria ter uma nomenclatura diferenciada provavelmente
associada à propaganda, por compartilhar semelhanças inegáveis com a área.
Autores como Arlindo Machado (1997) e Kátia Maciel (2009), fazem referência
respectivamente, a termos como pós-cinema e transcinema, em geral, para designar os
crescentes pontos de contato entre o cinema e a arte contemporânea. Uma renomeação indica
uma transformação, ou uma segunda coisa, diferente da primeira. O que leva a crer que a
definição da primeira coisa (no caso, o cinema) estaria fechada, sem a possibilidade de
alterações. Assim, é pertinente nos questionarmos hoje: o formato cinema é inalterável? Ou
chegou ao seu fim? E se for, de fato imutável, por que? Outras artes, inclusive com mais tempo
de tradição, foram capazes de quebrar com a camisa de força dos seus formatos iniciais: o teatro,
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por exemplo com a estrutura clássica do palco italiano, já quebrada diversas vezes, inclusive
pelo Teatro Oficina no Brasil.
O cinema, se minimamente desobedece a qualquer elemento dessa fórmula
extremamente rigorosa (decupagem clássica, longa-metragem, para ser assistido sentado dentro
da sala escura e em imagem HD), recebe o nome, muitas vezes pejorativo, de experimental e
estará destinado a um circuito específico de circulação, enquanto os filmes norte-americanos,
hollywoodianos continuam a rodar o mundo com seu formato normal, caro de produzir, caro
de veicular e garantido por eles próprios como o modelo dominante.
Nos anos 1970 o cinema foi introduzido à arte contemporânea tendo como intercessor
o vídeo, o “cinema experimental” caminhava cada vez mais para longe da sua forma clássica e
mais para perto da arte contemporânea. Desde a invenção do vídeo, o cinema é apresentado nas
galerias, onde rompeu com a forma clássica e se expandiu para além do espaço delimitador da
sala escura (DUBOIS, 2003, p. 6-7). As possibilidades da sétima arte são inesgotáveis e todas
coexistem formando uma definição mais abrangente de “cinema” fundida ao universo da arte
contemporânea. O cinema é o filme, mas também é a videoinstalação, a videoperformance, a
videoarte, o happening e tantas outras formas que incluem e exploram a reflexão e capacidade
sensitiva através da imagem-movimento.
É na arte, no experimental, que o cinema se faz onipresente e pode finalmente se ver
livre de um modelo que normalmente apresentou uma visão particular como se fosse a definição
da própria arte cinematográfica. Muitos dos cineastas que pensavam esse cinema do sistema
óptico e sonoro puro, como classificaria Deleuze, também produziram obras para exposição em
galerias, algumas até repensando seus filmes como Agnès Varda na obra originalmente
nomeada de Cabane de l’échec (A cabana do fracasso, 2006), onde a artista belga utiliza os
negativos de seu filme Les Créatures (As Criaturas, 1966), fracasso de bilheteria, para a
composição de uma instalação. O cinema passou por uma transformação, ou, expansão se
integrando profundamente à arte contemporânea desde o surgimento do vídeo nos anos 1970 e,
cada vez mais, nas fronteiras que separam o cinema clássico do cinema experimental surgem
abismos, que os afastam tornando cada vez mais difícil enxergar os dois como partes de um
mesmo todo.
Privilegiar o cinema dito experimental em relação ao cinema clássico significa abrir
mão do endeusamento de um sistema de controle. Aproximar o cinema clássico, comercial da
propaganda visa evidenciar uma agenda de manipulação que opera através do cinema-indústria,
frisando seus vínculos e semelhanças com os objetivos do universo publicitário. Libertar o
cinema de sua obrigação realista, caráter comercial, isolamento em shoppings é deixar com que
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ele renasça ao lado das outras artes. Para que assim, esteja livre também como uma ferramenta
de reflexão ao invés de um instrumento de desligar ideias como é em seu lugar de
entretenimento.
O cinema-indústria provoca dormência. Faz do contato entre espectador e imagem em
movimento um encontro de uma via, onde o olhar é passivo, mero instrumento de absorção.
Desse modo, é possível fazer prevalecer o cinema-arte sobre o cinema-indústria, por ter
propósito mais significativo e transformador, além de alternativas mais fartas e inesgotáveis.
Gilles Deleuze constata que o cinema só vale pelos “circuitos cerebrais que instaura”. Cerebral
não no sentido de “intelectual”, mas referindo-se a um “cérebro emotivo, passional”. Nesse
sentido, Deleuze se refere à “riqueza” e à “complexidade”, “ao teor desses agenciamentos,
dessas conexões, disjunções, circuitos e curto-circuitos” que o filósofo julga estar em falta no
formato hegemônico que assumiu o cinema (2008, p. 78-79). O cinema é muito mais que um
mercado, que um veículo colonizador de ideias, um exemplo ou, um anúncio de produto. O
cinema é invenção, é a ideia em si, é um vislumbre para uma outra coisa; é um além, sem regras,
sem controle que infelizmente tem sido mantido amordaçado.
O argumento em questão é construído a partir de pesquisa e articulação de material
teórico composto por livros e artigos acadêmicos. Também são citadas e analisadas obras
cinematográficas no espaço da arte contemporânea, que comprovem a existência dessa
interseção entre as salas de projeção e galerias (PAIK, 1974; VARDA, 2009; GORDON, 1993).
Não nos interessa citar nessa pesquisa obras hollywoodianas que se utilizam da forma narrativa
e da decupagem clássica pois entende-se que nosso imaginário já é intoxicado com exemplos
em excesso dessa estrutura tornando a exemplificação desnecessária. Essa pesquisa se baseia
fortemente nos autores Gilles Deleuze e suas obras Cinema 1: A Imagem-movimento (1983) e
Cinema 2: A Imagem-tempo (2005), Ismail Xavier, e seu livro O Discurso Cinematográfico: a
opacidade e a transparência (2005), Guy Hennebelle em Os cinemas nacionais contra
Hollywood (1978) e Philippe Dubois, Movimentos improváveis (2003).
Portanto, o primeiro capítulo se aprofunda no poder da representação da imagem
cinematográfica. Onde são úteis as considerações do filósofo francês Henri Bergson (1859-
1941) sobre a relação entre matéria e memória, quando afirma que para nós, o senso comum, a
matéria é um conjunto de imagens. Também são parte da elaboração os conceitos de Deleuze
(1925-1995) em torno da imagem-movimento e suas variações, derivadas do pensamento de
Bergson na obra Matéria e memória, originalmente publicada em 1896. O propósito é
evidenciar a semelhança capciosa entre o cinema e a vida.
12

O segundo capítulo se propõe a explicar mais sobre o uso do cinema como um


instrumento da neocolonização norte-americana. Para nos ajudar a dissecar e entender melhor
a linguagem utilizada pelo cinema hollywoodiano, mais uma vez se fazem necessárias as ideias
de Deleuze e sua compreensão sobre o método de Griffith. Assim como as ideias do pesquisador
brasileiro, Ismail Xavier (1947-) e o historiador de cinema, Guy Hennebelle (1941-2003) que
nos ajudam a identificar no cinema norte-americano os traços do imperialismo que opera
através da sétima arte.
O capítulo final aborda outras formas de linguagem que existem em resistência ao
modelo colonizador imposto pelos norte-americanos e, marcam afinidades entre o cinema e a
arte contemporânea que constantemente desloca a sétima arte de suas definições clássicas. Para
o desdobramento deste capítulo serão utilizadas as ideias presentes em Cinema 2: Imagem-
tempo (2005) de Deleuze, onde o filósofo fala sobre o surgimento de um novo tipo de imagem,
diferente da imagem-movimento. Essa novidade representa um rompimento radical com o
sistema sensório-motor, onde opera a imagem-movimento e, como consequência com os
métodos clássicos hegemônicos do cinema. Também serão importantes as colocações do autor
belga, Philippe Dubois, sobre a interação cinema-arte contemporânea e o papel do vídeo na
fusão desses dois universos.

I – O poder da imagem-movimento

A existência no mundo material permeia dois aspectos: a aparência e a própria


existência. Essa constatação indica que nós, e todos os objetos presentes no mundo material,
vivemos parcialmente como imagens (BERGSON, 1999, p. 2). Através da imagem,
percebemos os objetos e, esses objetos serão absorvidos também como imagens para compor a
memória, nosso primeiro contato com a representação. Para o filósofo francês Henri Bergson
(1859-1941), a lembrança, como uma “sobrevivência das imagens passadas” (Ibid, p. 69), se
comporta como representação porque consiste em uma imagem de um objeto não presente.
Assim como a fotografia e o cinema.
Dessa forma, os instrumentos de representação, principalmente aqueles que se
aproximam em detalhe da realidade, são análogos ao próprio mecanismo mental da percepção
e da memória. O sociólogo e filósofo francês, Edgar Morin (1921), conduziu um estudo para o
seu livro O cinema ou o homem imaginário (1958) que tinha como objetivo rastrear o efeito do
cinema na psiquê do espectador para entender precisamente a metamorfose do cinematógrafo
em cinema. Em sua pesquisa, Morin fala sobre uma convergência entre as características da
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imagem cinematográfica e os processos mentais, responsável pela constituição de um mundo


fictício que se transforma em um local de “manifestação” de “desejos, sonhos e mitos” da
humanidade (XAVIER, 2005, p. 23). É no conjunto de semelhanças entre a imagem
cinematográfica e nossos processos mentais onde encontraremos a chave para compreender o
poder da imagem-movimento e sua influência sobre o imaginário.
Na obra, Cinema 1 – A Imagem-Movimento (1983), Deleuze classificou a imagem-
movimento em três variedades: imagem-ação, imagem-percepção e imagem-afecção. De
acordo com o filósofo francês, a imagem-movimento se divide nessas categorias quando
reportada ao espectador (p. 88), ou seja, a própria variação da forma da imagem-movimento se
dá pela existência e portanto, dentro do espectador como um processo mental. A imagem-
percepção está presente no plano aberto ou conjunto (p. 94), onde domina na imagem a relação
entre o sensório e o motor, já que a percepção é espacial mas também sensível e por isso se
relaciona diretamente à ideia de “distância”. De acordo com Bergson, é a distância entre nosso
corpo e um objeto que mede a iminência de uma potencial ameaça, assim, é a distância que
diferencia uma ação virtual, uma possibilidade, de uma ação real, ou seja, uma interação (1999,
p. 58). Sendo a distância, ou seja, a maior abertura do plano, que diferencia a imagem percepção
da ação.
Bergson afirma que a percepção se encontra fora do nosso corpo, acontece no exterior,
onde se encontram os objetos (BERGSON, 1999, p. 59). No entanto, eliminando o sujeito a
percepção não pode acontecer. Deleuze explica sobre a imagem-percepção algo que se
assemelha a esse caráter duplo que é ao mesmo tempo exterior ao sujeito e dele próprio, ou,
como o filósofo se refere, uma “dupla referência”. Para Deleuze a imagem-percepção pode ser
tanto “objetiva” como “subjetiva”, sendo subjetiva quando a câmera representa a visão de um
personagem inserido no conjunto e, objetiva quando representa a visão de alguém que se
mantém exterior ao conjunto (Ibid., p. 95). A imagem em questão frequentemente tem também
o papel de transitar entre o objetivo e subjetivo, muitas vezes realizando a mudança de um para
o outro, por isso é considerada por Deleuze uma imagem “semi-subjetiva”. Por exemplo, o
olhar objetivo do “olho-câmera” pode se transformar em um olhar subjetivo de um personagem
que ainda não foi introduzido no conjunto (Ibid., p. 96-97).
No filme Blow Up (1966) dirigido por Antonioni (1912-2007), por exemplo, na
sequência em que o fotógrafo avista o casal no parque e decide fotografá-los discretamente, é
essencial a distância e a relação espacial entre os dois pólos de ação na cena. Vemos o casal em
um plano bem aberto, o que evidencia a possível sensação do casal de estarem a sós ali. Neste
plano, importa, ou, percebe-se uma relação entre a ação em questão e o entorno, o diálogo entre
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espaço e ação constroem a dinâmica desta cena, onde o mote é justamente ser percebido por
um alguém que observa. Ao mesmo tempo, o olhar da câmera, bem distante, se confunde com
o olhar do fotógrafo que os espiona. É assim, por exemplo, que o olhar até então objetivo da
câmera se confunde com o olhar subjetivo do personagem.
Sobre os processos da mente, Bergson elucida sobre a representação do mundo material,
algo semelhante ao que Deleuze coloca sobre a divisão da imagem-movimento em
subcategorias. A representação do mundo material e suas possibilidades, para Bergson, estaria
também dividida em percepção, afecção e ação. A percepção, de acordo com Bergson, “mede
nossa ação possível sobre as coisas e inversamente, a ação possível das coisas sobre nós” (1999,
p. 55). A “consciência” da presença de um objeto é equivalente a uma “ação possível”, essa
tomada de consciência sobre a existência de determinado objeto em um campo espacial traz
uma possibilidade de interação e é a chamada percepção (Ibid., p. 58). É desse processo mental
que deriva a nomenclatura de Deleuze para a subcategoria imagem-percepção. Afinal, a
imagem-percepção é no cinema um plano (aberto ou conjunto) onde se evidencia uma relação
espacial entre os personagens, ou, personagem e objeto, entre o motor e o sensível e é esse
exatamente o mecanismo pelo qual a percepção é responsável.
A partir do momento em que percebe-se alguma coisa é possível prolongar a percepção
a atualizando como ação. Essa atualização que abandona o campo virtual, se trata da interação
entre o corpo e os objetos do mundo material. É concretizando a percepção em ação que nos
tornamos parte do sistema de ação e reação que desencadeia o próprio rumo da vida, através de
interações, ações reais. Ou seja, é a ação, uma vez que acontece no plano real e não no virtual,
que abre as portas da interação entre o corpo e os objetos. (BERGSON, 1999, p. 58-60)
Mais uma vez, é possível compreender através dos conceitos de Bergson uma das
nomenclaturas de Deleuze, a imagem-ação. Identificada por Deleuze dentro da sintaxe do
cinema como o plano-médio (p. 94) , a imagem-ação é responsável por desencadear um circuito
de interações dentro do universo cinematográfico. Este tipo de imagem inspira, segundo
Deleuze, um “cinema de comportamento, pois o comportamento é uma ação que passa de uma
situação a outra”, compondo um sistema de ação e reação onde o filme se desenvolve (1983, p.
194).
É o plano-médio que acomoda grande parte das ações necessárias para o desdobramento
narrativo do filme. Diferente do plano aberto (imagem-percepção), o plano médio aproxima os
personagens do entorno, enquadra justamente os momentos de contato, de interação, de ação.
O plano-médio, por ser ainda capaz de acomodar em um só quadro as interações tanto entre
personagens como de personagens com objetos, serve como palco das ações dentro do filme. É
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através da interação com o objeto que o ator deve externalizar a emoção a transformando em
ação, e esse “par”, composto por “objeto e emoção”, integra o “signo genético” desse tipo de
imagem, uma vez que nele está a receita para a produção de ação (DELEUZE, 1983, p. 198-
199).
No filme Blow Up (1966), na sequência seguinte à citada anteriormente, onde o
fotógrafo espionava um casal em um momento íntimo, em plano médio, a mulher a quem
espionávamos intercepta o fotógrafo para pedir a ele que lhe dê as fotos. Os dois discutem, a
mulher tenta tomar dele a câmera. É através dessa interação com objeto câmera que a mulher
transforma em ação seu sentimento de desespero ou nervosismo diante do que ela sente ser,
possivelmente, uma invasão de privacidade e que deixa a sensação no fotógrafo de que ela tinha
algo a esconder. Assim, no plano médio se forma o palco das ações, onde as emoções deixam
o campo virtual e se transformam em interação. A imagem-ação também é constantemente
utilizada na chamada montagem paralela (na qual nos aprofundaremos no capítulo dois), onde
duas ou mais ações convergem através da alternância de imagens.
Quanto à afecção, Bergson a explica da seguinte maneira:

[...] é preciso levar em conta que nosso


corpo não é um ponto matemático no espaço,
que suas ações virtuais se complicam e se
impregnam de ações reais, ou, em outras
palavras, que não há percepção sem afecção. A
afecção é portanto o que misturamos, do
interior de nosso corpo, à imagem dos corpos
exteriores; é aquilo que devemos extrair
inicialmente da percepção para reencontrar a
pureza da imagem (BERGSON, 1999, p. 60).

De acordo com a definição de Deleuze, a afecção está relacionada com os afetos do


sujeito que absorve a imagem, “uma coincidência entre o sujeito e o objeto, ou a maneira pela
qual o sujeito se percebe a si próprio, ou melhor, se experimenta e se sente de dentro” (1983,
p. 87) As afirmações de Bergson e Deleuze nos levam a crer que nossos afetos funcionam como
um tipo de lente para a percepção. A afecção atua como intermediária da relação percepção-
ação, já que o próprio ato de perceber, como explica Bergson, passa pela afecção e, uma vez
que percebemos alguma coisa temos a possibilidade de interagir, também de acordo com
afecções. Portanto, pode-se dizer que a afecção ocupa um intervalo entre a percepção e a ação.
16

Da mesma forma, a imagem-afecção (primeiro plano) funciona como um intervalo na


sintaxe cinematográfica entre a imagem-percepção (plano aberto) e a imagem-ação (plano
médio). É utilizado para traduzir puramente emoção, seja através de um rosto choroso que
ocupa toda tela, ou uma arma escondida que revela uma tensão em potencial e opera através de
uma mudança absoluta da dimensão imagética do conjunto. Deleuze apresenta uma indicação
do diretor soviético Eisenstein (1898-1948) que nos esclarece: “cada uma dessas imagens é um
ponto de vista sobre o todo do filme, uma maneira de captar esse todo que se torna afetivo no
primeiro plano, ativo no plano médio, perceptivo no plano conjunto” (1983, p. 94). Assim, a
imagem-afecção representa uma interrupção do movimento de “translação” dos conjuntos em
volta do todo (filme), do qual participam as outras duas categorias de imagem. O movimento,
como colocado por Deleuze, se transforma de “translação” para “expressão, isto é, qualidade,
simples tendência que agita um elemento imóvel” (o rosto) (1983, p. 88).
Como explicado por Bergson, “a distância que separa nosso corpo de um objeto
percebido mede portanto efetivamente a maior ou menor iminência de perigo” (1999, p. 61). A
percepção pode ser então exemplificada como um indivíduo que aguarda a agulha que lhe
aplicará uma injeção: “Praticamente não há percepção que não possa, por um crescimento da
ação de seu objeto sobre nosso corpo, tornar-se afecção e, mais particularmente, dor. Assim, há
uma passagem insensível do contato da agulha à picada” (Ibid., p. 54). Conforme a agulha se
aproxima e finalmente entra em contato com a pele, se transforma em uma ação real que se
prolonga em forma de afecção, no caso a dor da picada (Ibid., p. 61-62).
Esse exemplo é interessante para pensarmos a mudança de dimensão que caracteriza a
imagem-afecção no cinema. O primeiro plano consiste justamente de uma aproximação, cujo
objetivo é gerar uma afecção, ou seja, fazer com que a imagem seja notada, ou, absorvida pelo
sujeito sentado em frente à tela. Essa imagem ganha um destaque em relação às outras não só
pelo que, na prática, representa a “ampliação de um detalhe”, mas justamente por gerar e
expressar sensação mostrando “como os personagens vivem a cena da qual fazem parte” e,
assim conferindo subjetividade ao conjunto (DELEUZE, 1983, p. 45-46). Deleuze descreve o
primeiro plano, não como um desmembrado do todo, e sim como um elemento separado do
espaço-tempo, que basta por si só para ser compreendido, assim como a dor provocada pelo
contato com a agulha no exemplo Bergsoniano.

[...] o primeiro plano não arranca de


modo nenhum seu objeto de um conjunto do
qual faria parte, do qual seria uma parte, mas
17

sim, o que é completamente diferente, o abstrai


de todas as coordenadas espaço-temporais, isto
é, eleva-o ao estado de Entidade (DELEUZE,
1983, p. 124).

É esse “estado de Entidade”, livre de coordenadas, que rompe com o movimento de


translação das imagens em torno do todo e o transforma em expressão pura.
O filme Portrait de la jeune fille en feu (Retrato de uma jovem em chamas, 2020),
dirigido por Céline Sciamma (1978), termina em primeiro plano ou imagem-afecção. Na cena,
duas mulheres impedidas de estarem juntas vão ao mesmo concerto, do qual haviam comentado
a respeito no percurso de sua relação. Uma delas, Marianne, observa a outra de longe sem ser
percebida. A outra, Héloise, assiste ao concerto de olhos vidrados. A câmera se aproxima de
Héloise em um movimento lento e finalmente estaciona quando a enquadra na altura dos
ombros para cima. Assistindo ao concerto a personagem chora copiosamente, seu rosto traduz
a emoção que é a única informação ou intenção presente na imagem. A cena final expressa a
tristeza que nos comunica de forma subjetiva, a partir do sentimento da personagem, o destino
jamais realizado do casal.
O cinema então, trabalha a imagem-movimento como a mente trabalha as imagens do
mundo material. Com uma diferença: o aparelho cinema seleciona e separa os tipos de imagem
presentes no mundo e as entrega visualmente no formato ideal para absorção, se inspirando mas
também substituindo a tarefa dos processos mentais da percepção. Uma diferença essencial
entre as imagens cinematográficas e as imagens que compõem o mundo material, seria a
descontinuidade da imagem-movimento. No entanto, as sensações se dão em partes separadas
do corpo, onde são recebidos os estímulos referentes a cada sentido. Mesmo assim conseguimos
harmonizá-los e até mesmo associá-los. Mesmo em um único sentido como visão, temos dois
olhos, ou seja, dois aparelhos receptores que devem se unir na composição de uma imagem
única correspondente a um “ponto no espaço” (BERGSON, 1999, p. 64-66). Assim, a impressão
de continuidade parece também vir de processos mentais, que reúnem informações e estímulos
distintos na composição de uma imagem interna de um objeto externo, evidenciando mais uma
convergência entre os processos da imagem-movimento e os processos da mente.

[...] nossos sentidos têm necessidade


de educação. Nem a visão nem o tato chegam
imediatamente a localizar suas impressões.
18

Uma série de aproximações e induções é


necessária, através das quais coordenamos
pouco a pouco nossas impressões umas às
outras (BERGSON, 1999, p. 48).

Em 1916, o psicólogo alemão, Hugo Münstenberg (1863-1916), trazia a questão da


profundidade como um outro aspecto limitante da reprodução da vida pela imagem
cinematográfica. Sendo a profundidade teoricamente impossível diante de uma projeção plana
de duas dimensões e, um dos aspectos principais da percepção no mundo material. Talvez o
cinema não seja capaz de proporcionar profundidade mas é capaz de proporcionar a ilusão de
ótica que dá a impressão de profundidade. Como exemplo, Munstenberg apontava que se muitas
pessoas se movem em um cômodo, no filme, temos a sensação de que um se move atrás do
outro. Também percebemos a parede ou outros objetos mais distante de nós no plano do que os
personagens em primeiro plano. O psicólogo polonês, explica que a profundidade, como parte
da nossa percepção visual, acontece porque vemos as coisas pelo olho direito e pelo esquerdo
de pontos de vista diferentes. No entanto, se fechássemos um dos olhos, o efeito plástico não
desapareceria. Os processos psicológicos que ocorrem para esta percepção de profundidade
com apenas um olho são diferentes do aparente tamanho, da perspectiva das relações e ações
desempenhadas no espaço, mas todos os fatores que nos ajudariam a enxergar objetos sólidos
na nossa frente não são menores que aqueles projetados na tela.
Münsterberg4 também observava outra ilusão comum de profundidade, onde vemos um
objeto ou personagem em primeiro plano parado e ao fundo uma paisagem com um elemento
móvel. Quando a paisagem distante é o único plano de fundo, a impressão é a mesma no filme
e na vida porque a paisagem a muitos metros de distância dos olhos dão a ambos os olhos a
mesma impressão. Já que nesse caso a pequena distância entre os globos oculares não possui
qualquer influência se comparada à distância do objeto para o rosto (MÜNSTERBERG, 1916).
Assim, mais uma vez a imagem-movimento se espelha em processos mentais e, nesse caso da
profundidade da imagem, os ilude e, ao mesmo tempo, conta com esses mesmos processos
mentais para reproduzir mais uma camada da realidade.

4
O terceiro capítulo do livro The Photoplay: a psychological study (utilizado para elaboração dessa monografia),
publicado originalmente em 1916 pela Appleton Company, pode ser encontrado online e traduzido na revista sísifo
ISSN: 2359-3121 Disponível em: http://www.revistasisifo.com/2015/05/hugo-munsterberg-profundidade-e.html
> Acesso em: 17 nov. 2021
19

Como mais um elemento de nossa análise, ao compararmos a imagem-movimento à


própria vida, propomos dissecar, a seguir, o movimento. Estamos familiarizados com a ilusão
em que acreditamos ter visto algo que na verdade foi fruto da nossa imaginação. Em um dos
exemplos trazidos por Münsterberg, se uma palavra estranha nos é mostrada rapidamente, a
substituímos por uma palavra conhecida com letras semelhantes. Também é habitual que
façamos associações de imagem de um movimento quando apenas o ponto inicial e o final
foram dados. Por exemplo, é possível fingir que foi arremessado um objeto, fazendo o
movimento de arremesso em determinada direção. A partir da sugestão, o espectador da ação
enxergará o arremesso do objeto. A diferença então, de ver uma ação real e assistir pela tela de
cinema, é que na ação real o movimento de fato acontece e os olhos acompanham uma ação
contínua. O espectador recebe tudo de fora e todo movimento que vê está se dando no espaço
sem interrupções. No cinema, o movimento que o espectador vê aparece como movimento
verdadeiro mas é na verdade criado por sua própria mente (MÜNSTERBERG, 1916).
O cinema nasce então como poderoso artifício de representação que mistura uma parte
essencial da existência material, a imagem, com outro aspecto determinante da nossa relação
com o mundo material, o movimento. O cinema foi o introdutor da imagem-movimento e
manteve durante muito tempo a exclusividade da nossa relação com essa técnica de
representação (DUBOIS, 2003, p. 6). Com o aprisionamento da imagem-movimento no “lugar
cinema”, o dispositivo foi vítima de apropriação política, sendo em vários momentos da história
utilizado como propaganda. Provavelmente por sua capacidade de impacto no imaginário. Até
então, foram levadas em consideração semelhanças entre a imagem cinematográfica e os
processos de percepção visual. Para entender mais profundamente o porquê da utilização do
cinema na tentativa de acessar o imaginário do espectador, devemos também entender como
funcionam os processos mentais relacionados à memória.
Qualquer indivíduo se utiliza continuamente do recurso da memória mesmo sem
perceber. A percepção tem o papel de resgatar a memória para saber como agir diante de
determinada situação ou objeto. Sendo assim, é a lembrança que “desloca a intuição” para ser
atualizada no presente pela percepção (BERGSON, 1999, p. 69). A memória funciona como
um grande arquivo de referências às quais recorremos a todo momento para saber como agir
diante de determinada situação ou objeto. Essas referências estão arquivadas em parte como
imagem. Na memória, junto com as imagens absorvidas do mundo material, ficam inclusive as
imagens produzidas pelo cinema, que também passam a compor nosso sistema interno de
referências.
20

Bergson ressalta a diferença entre imaginar e lembrar-se (Ibid., p. 158) mas e se a


imaginação fosse materializada em imagem diante dos seus olhos e assim se transformasse em
lembrança? O processo da lembrança consiste em se materializar, e a lembrança “pura”, como
é chamada por Bergson, consiste na “representação de um objeto ausente” (BERGSON, 1999,
p. 80). Então o cinema imita a lembrança pura e se transforma em memória para ser
materializada. A materialização por sua vez, ocorrerá através das percepções e ações do sujeito
diante da tela.
No mundo contemporâneo, a imagem tornou-se um “conteúdo híbrido”. É difícil dizer
se o que está sendo contemplado é imagem-movimento, fotografia, publicidade, 3D, entre
outras possibilidades. Por isso, já não se pode “contemplar uma imagem inocentemente”
(DUBOIS, 2003, p. 4). Ou talvez já não se possa contemplar a imagem inocentemente faz muito
tempo, se é que isso já foi possível. No cinema, por exemplo, o pretexto do entretenimento
disfarça as segundas intenções de determinados discursos cinematográficos e faz com que a
presença do cinema em shoppings esteja associada a uma justificativa de lazer e não a uma
realidade publicitária da atração. Dessa forma, seus espectadores mantêm certa inocência em
relação aos processos e intenções da imagem cinematográfica como discurso.
Existe uma vertente específica do cinema que cresceu junto com uma das potências
econômicas do cenário mundial. Essa vertente contribuiu fortemente para o crescimento do
cinema como indústria e sua conceituação como entretenimento. Sua linguagem procura se
aproveitar ao máximo das semelhanças entre o cinema e os processos da mente. A adesão a este
modelo de cinema foi mundial e suas práticas de decupagem infectaram fortemente o circuito
cinematográfico, tornando-se comumente conhecidas como a forma “normal” ou “natural” de
se “combinar imagens” (XAVIER, 2005, p. 33). O cinema foi e continua sendo utilizado como
artifício de dominação. A sétima arte foi sequestrada de suas possibilidades e encarcerada por
um projeto que ultrapassa todas as fronteiras. O monopólio da imagem-movimento pode
significar, como visto neste capítulo, uma invasão do imaginário.

II – O cinema norte-americano e suas práticas colonizadoras


2.1 Linguagem

Para melhor entender a dominação que se instaura através do cinema pelos Estados
Unidos é importante destrinchar os aspectos infecciosos desse tipo de produção. O pesquisador
brasileiro Ismail Xavier (1947) aponta como fator de alta relevância o efeito naturalista do
cinema norte-americano e, expande seu raciocínio evidenciando três elementos que compõem
21

um tripé de ferramentas naturalistas responsável por tal efeito (2005, p. 41). O primeiro dos
elementos desse tripé é a decupagem clássica, cuja principal característica é uma preocupação
extrema em transmitir continuidade. Por natureza, a imagem cinematográfica é descontínua,
portanto, na decupagem clássica deve-se fingir continuidade justificando a descontinuidade
através de convenções racionais sobre o momento do corte (XAVIER, 2005, 29-30).
O corte, nos moldes da decupagem clássica, deve acontecer pela mudança de espaço e
pela imposição narrativa que acompanha duas ações paralelas. Também são permitidos cortes
que mostram uma mesma situação de ângulos diferentes, estes dão a impressão de fluidez dos
acontecimentos (XAVIER, 2005, p. 29-30).

As imagens estão definitivamente separadas e,


na passagem, temos o salto; mas a combinação é feita
de tal modo que os fatos representados parecem evoluir
por si mesmos, consistentemente. Isso constitui uma
garantia para que o conjunto seja percebido como um
universo contínuo em movimento, em relação ao qual
nos são fornecidos alguns momentos decisivos.
Determinadas relações lógicas, presas ao
desenvolvimento dos fatos, e uma continuidade de
interesse no nível psicológico conferem coesão ao
conjunto, estabelecendo a unidade necessária
(XAVIER, 2005, p. 30).

Os cortes, ou a descontinuidade, seriam uma das quebras que diferenciam a


representação que é o cinema, da vida e, tornam perceptível a distância entre o espaço ficcional
da sétima arte e a realidade (Ibid., p. 24). A partir da tentativa de apagar a descontinuidade do
cinema, tenta-se também apagar essa distância existente entre o ficcional e o real. Sobre essa
aproximação entre o universo do cinema e o mundo fora da tela, o crítico de cinema húngaro,
Béla Balázs (1884-1949) evidenciou:

Hollywood inventou uma arte


que não observa o princípio da
composição contida em si mesma e
que, não apenas elimina a distância
entre o espectador e a obra de arte, mas
deliberadamente cria a ilusão, no
22

espectador, de que ele está no interior


da ação reproduzida no espaço
ficcional do filme (BALÁZS, 1930, p.
50).

Assim, o primeiro e mais marcante elemento da decupagem clássica, é tornar a imagem-


movimento ainda mais real através da sensação de continuidade que se propõe a transmitir.
Outro elemento essencial da composição desse tipo de decupagem é uma das
justificativas utilizadas para explicar o corte em meio ao supostamente contínuo, a chamada
montagem paralela. Este método tem raízes profundas na técnica de decupagem clássica e ajuda
a compor todo seu entendimento. O idealizador da decupagem clássica, o cineasta norte-
americano D.W. Griffith (1875-1948) concebeu a composição da imagem-movimento como
organismos, “uma grande unidade orgânica” (DELEUZE, 1983, p. 45). Deleuze explica o
conceito de organismo como “uma unidade do diverso, isto é, um conjunto de partes
diferenciadas: há os homens e as mulheres, os ricos e os pobres, a cidade e o campo.” De acordo
com o filósofo, na decupagem clássica essas partes são tomadas em “relações binárias que
constituem uma montagem alternada paralela, a imagem de uma parte sucedendo a imagem da
outra parte segundo um ritmo” (Ibid.).
Para o andamento da trama é necessário que “as partes que compõem a unidade ajam e
reajam uma sobre as outras para mostrar simultaneamente como entram em conflito ameaçando
a unidade do conjunto orgânico e, como superam o conflito ou restauram a unidade” (Ibid, p.
46). Através dessas ações e reações desenvolve-se uma forma de “duelo”, que pode acompanhar
tanto situações que se opõem, como o bem e o mal, quanto situações convergentes. Assim, o
cinema norte-americano extrai da montagem paralela o que Deleuze classifica como “sua
fórmula mais sólida”: a transformação do conjunto por intermédio de um duelo de convergência
de ações (Ibid., p. 47).
Sobre a existência do duelo, expressado através da montagem paralela na composição
do filme como organismo, o diretor soviético Sergei Eisenstein (1898-1948) concordava com
Griffith, mas acreditava que o norte-americano havia chegado em tais impasses por acaso e,
que a justaposição das imagens não era suficiente para revelar o porquê desses impasses (Ibid,
p. 48-50).

Griffith ignora que os ricos e os pobres


não são dados como fenômenos independentes,
mas dependem de uma mesma causa geral, que
23

é a exploração social... Tais objeções, que


denunciam a concepção “burguesa” de
Griffith, não dizem respeito à maneira de
contar uma história, ou de compreender uma
história. Elas concernem diretamente à
montagem paralela (...) (DELEUZE, 1983, p.
48).

Em análise sobre essa mesma insuficiência na abordagem crítica dos conflitos, o


historiador e jornalista francês Guy Hennebelle (1941-2003) elabora:

Considerem atentamente os filmes


americanos mais políticos por assim dizer, os
mais “subversivos”, e constatarão que quase
todos eles atingem os limites da ambiguidade.
(...) Suas críticas são quase sempre mal
formuladas e desarticuladas, em virtude do que
se pode chamar “o mecanismo da condenação
dupla” cuja a função é eliminar
sistematicamente qualquer perspectiva de luta
consequente (HENNEBELLE, 1978, p. 44-45).

Assim, a decupagem clássica constitui-se como linguagem e se estende impactando


nações fora da tela.
Deleuze discorda do senso comum quando diz que este tipo de decupagem teria cedido
à narrativa. O filósofo pontua que é a própria narratividade que “decorre” desse método de
montagem (1983, p. 47). A imagem-ação (plano-médio) está fortemente ligada à construção do
duelo, relacionada diretamente com o sistema de ação e reação, que move os eventos narrativos
do filme. Dessa forma, na decupagem clássica a imagem que predomina é a imagem-ação,
podendo ser chamada também de montagem ação (DELEUZE, 1983, p. 94).
A imagem-afecção (primeiro plano) também tem um papel de destaque na decupagem
clássica. Deleuze explica que é preciso que a parte e o conjunto interajam entre eles próprios,
que “permutem suas dimensões relativas”. Por isso, a inserção do primeiro plano na sintaxe da
decupagem clássica não significa apenas a “ampliação de um detalhe” mas também a
24

“miniaturização do conjunto, uma redução da cena”. Mostrando de perto como o personagem


vive a cena (conjunto) em que está inserido, o primeiro plano confere ao conjunto objetivo
subjetividade (DELEUZE, 1983, p. 45-46).
Em maior profundidade, pode-se dizer que o efeito de continuidade gerado por esse
estilo de montagem é a consequência de uma “manipulação precisa da atenção do espectador,
onde as substituições de imagem obedecem a uma cadeia de motivações psicológicas”
(XAVIER, 2005, p. 33). Nesse sentido, a inserção do primeiro plano pode ser também explicada
por uma necessidade narrativa, uma forma de chamar atenção, ou forçar a atenção, para um
detalhe pequeno demais para ser percebido em plano-aberto (imagem-percepção) ou plano-
médio (imagem-ação), mas essencial para o desenrolar do filme.

O que caracteriza a decupagem


clássica é seu caráter de sistema
cuidadosamente elaborado, de repertório
lentamente sedimentado na evolução histórica,
de modo a resultar num aparato de
procedimentos adotados para extrair o máximo
rendimento dos efeitos da montagem e ao
mesmo tempo torná-la invisível. [...] Há,
presidindo toda a elaboração, uma primeira
delimitação: o conjunto de planos se insere
dentro de um filme cujos objetivos estão
ancorados à narração de uma estória [...]
(XAVIER, 2005, p. 32).

A sintaxe da decupagem clássica consiste na separação dos três tipos de imagem-


movimento e na inserção de cada um deles de forma a compor uma trama mastigada, ligada às
tais motivações psicológicas. Portanto, o espectador assistirá e adquirirá todas as informações
essenciais para compreensão da trama em planos que dirigem seu olhar e pré-selecionam as
imagens como informações para serem absorvidas da forma mais eficiente. Assim, o espectador
não é dono dos próprios afetos, ou seja, não é livre para reparar de fato naquilo que chamaria a
sua atenção na imagem e, a partir disso, então fabular possíveis desfechos ou outras
possibilidades para o filme. Ismail Xavier contribui com elucidações sobre o assunto:
25

As correlações entre o
desenvolvimento dramático e o ritmo da
montagem [...] são dois instrumentos à
disposição de qualquer cineasta. O que é
característico da decupagem clássica é a
utilização destes fenômenos para a criação do
nível sensorial, de suportes para o efeito de
continuidade desejado e para manipulação
exata das emoções (XAVIER, 2005, p. 34).

Nesse sistema “voltado para o ilusionismo e a identificação”, o advento sonoro constitui


um passo importante no refinamento da representação. A “manipulação” do som ambiente,
assim como a presença da própria palavra, conferem mais “corporeidade” à imagem,
“aumentando seu poder de ilusão”. Além disso, a trilha sonora participa como poderosa aliada
na “mobilização emocional do espectador” (XAVIER, 2005, p. 35-36).
A segunda perna do tripé naturalista apresentado por Ismail Xavier, é o método de
interpretação dentro dos princípios naturalistas e cenários de estúdio também concebidos a
partir de noções naturalistas (2005, p. 41). Para Deleuze, a imagem-ação inspira um “cinema
de comportamento (behaviorismo)”, já que o comportamento se expressa em ações que no filme
são responsáveis pela transição de uma situação para outra. De acordo com o filósofo, essa
técnica sensório-motora encontrou sua sistematização no Actors Studio (1947), cujas regras
“não valem apenas para interpretação do ator, mas também para concepção e desenrolar do
filme, seus enquadramentos, suas decupagens, sua montagem” (DELEUZE, 1983, p. 194).
Todos esses elementos em sintonia, de certa forma também compõem um aspecto de
continuidade, não só dentro do próprio filme mas entre o universo dentro da tela e o mundo
exterior em que vivemos.
Apesar das ações dos personagens nos filmes revelarem alto grau de elaboração
emocional, psicológica (o que se assemelha muitas vezes à tridimensionalidade das emoções e
situações da vida), e dos cenários retratarem em detalhes as ambientações presentes no
cotidiano, o universo construído de Hollywood é inteiramente ficcional. O historiador francês
Guy Hennebelle aponta como um dos principais métodos de fascinação da fábrica dos sonhos
26

um envernizamento da realidade que essencialmente atesta o quão distante da vida estão os


filmes:
No cinema Hollywoodiano, tudo é
irreal. Os personagens nunca têm as reações ou
reflexos quotidianos do homem comum. São,
ao contrário, e por definição, “extra-ordiários”,
nimbados com uma aura mágica que os isola
do comum dos mortais. Popularizados por um
sistema de códigos deformadores, com o
objetivo de torná-los objetos de identificação
por parte dos espectadores que gostariam de
possuir todas as qualidades e que, segundo um
processo muitas vezes analisado tem a
possibilidade de viver “por procuração”,
durante algumas horas suas aventuras. Além
disso, geralmente são provenientes de
ambientes privilegiados e evoluem em
agradáveis cenários (HENNEBELLE, 1978, p.
43).

A terceira e última perna do tripé responsável pelo efeito naturalista é, de acordo com
Xavier, “a escolha de estórias pertencentes a gêneros narrativos estratificados em suas
convenções de leitura fácil e de popularidade comprovada” (2005, p. 41). Hennebelle relata que
os gêneros fazem parte da “função ideológica” do cinema hollywoodiano e acontecem em um
“sistema bastante coerente” em que são a “peça de um mecanismo de estruturação do
imaginário, destinado a assegurar um bom funcionamento das consciências norte-americanas”
ao longo da história. A comédia musical, por exemplo, de acordo com Hennebelle “privilegia
o mascaramento da realidade e a idealização favorável ao sonho” e, não coincidentemente, teve
seu apogeu no período da Grande Depressão dos anos 1930 (1978, p. 49).

2.2 Políticas

Até então manteve-se o foco no cinema como método de representação ambicioso da


realidade e, na linguagem cinematográfica norte-americana e todas as formas como se aproveita
das semelhanças entre a imagem-movimento e os processos mentais através dos quais
27

percebemos o mundo. No entanto, a prática colonizadora acontece também e, principalmente,


fora da tela, na política. Foram necessárias ações que visaram a inundação do circuito mundial
de cinema com o produto norte-americano. Mais uma vez, faz-se necessário recorrer a
Hennebelle, que aponta a criação da M.P.A.A. (Motion Picture Association of America), em
1925, como fator responsável pela penetração dos filmes norte-americanos no estrangeiro
(HENNEBELLE, 1978, p. 31).
A Associação coordenou e “cartelizou” as atividades das companhias cinematográficas.
O aparecimento dessa organização ocorreu simultaneamente à inserção do cinema norte-
americano nos mercados estrangeiros. De acordo com Hennebelle, em 1925 os filmes norte-
americanos ocupavam 95% do tempo de projeção na Inglaterra, 70% na França e 68% na Itália.
Na época o imperialismo estava em sua forma colonial explícita, ou seja, os filmes “made in
U.S.A” também eram amplamente reproduzidos nas colônias dos países que o consumiam
(1978, p. 31).
Hennebelle constata que a difusão do cinema falado (1928-1930) também beneficiou o
crescimento do cinema norte-americano no mercado mundial. Outros países, principalmente
países europeus, não conseguiam produzir nas mesmas proporções que os Estados Unidos
devido aos malefícios econômicos gerados pela guerra. Assim, o cinema norte-americano
invade o mercado. Movimentos como neorrealismo italiano (1945-1950) e, os cinemas novos
que surgem depois de 1960, evidenciam em parte que a tentativa norte-americana de
“uniformização” do cinema não foi totalmente bem sucedida. No entanto, Hennebelle, ainda
assim, acredita que é na “onipresença” dos filmes norte-americanos nas telas que se deve buscar
“a razão da contaminação cultural” (Ibid.).
O historiador também aponta que a presença do cinema norte-americano nas telas ao
redor do mundo cresce ainda mais depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando
muitos dos filmes produzidos por Hollywood nesse meio tempo não haviam sido exibidos na
Europa. No início de 1946, esses filmes foram exportados massivamente para os países
europeus. Existia o medo de que a Europa Ocidental se tornasse comunista, por isso fazia parte
da perspectiva do Plano Marshall5 “exaltar os méritos do american way of life”
(HENNEBELLE, 1978, p. 31-32).

5
O Plano Marshall esteve em vigor entre 1947 e 1951. Idealizado pelo general George Catlett Marshall, e efetivado
pelo então presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, tinha como objetivo reconstruir economicamente os
países Europeus, devastados na Segunda Guerra Mundial e, também, garantir com que esses mesmos países não
aderissem às políticas comunistas soviéticas. Os Estados Unidos realizaram grandes aportes financeiros nos países
Europeus, utilizados para reconstrução de indústrias e edificações, importação de mercadorias e alimentos e no
financiamento da agricultura. Enquanto isso, os Estados Unidos persuadiam esses mesmos países, a quem
28

Outro fator de relevância citado por Hennebelle é a criação, no próprio ano de 1946, da
M.P.E.A.A, organização responsável pela segunda onda de infestação dos filmes norte-
americanos. A M.P.E.A.A é como um “tipo particular de sindicato que reúne quase todas as
companhias americanas de distribuição”. O historiador ressalta a relevância de três
características curiosas sobre a organização: o fato de ser dependente direta da Casa Branca
“por meio de seus dirigentes”, ser beneficiada pelo Sherman Anti-Trust Act (1890), que isenta
dos controles da “descartelização” as atividades econômicas estrangeiras dos trusts e, a
M.P.E.A.A como “o único setor da economia dos Estados Unidos habilitado a tratar diretamente
com governos estrangeiros” (Ibid., p. 32).
O historiador aponta que nenhum outro setor da economia dos Estados Unidos depende
tanto do exterior quanto o do cinema. “Enquanto os americanos impõem o consumo maciço de
seus filmes, recusam-se a facilitar a difusão dos nossos cinemas em seu país” (HENNEBELLE,
1978, p. 33). Hennebelle exemplifica com um dado de 1956, referente ao seu país de origem, a
França, onde os filmes norte-americanos arrecadavam mais de 15 milhões de dólares no
mercado francês. Enquanto, os franceses retiravam, na mesma época, apenas cerca de dois
milhões de dólares pela distribuição de seus filmes nos Estados Unidos (Ibid.).
Esse padrão de ocupação norte-americana nas salas de cinema ao redor do mundo ainda
hoje persiste. De acordo com o anuário de 2018, feito pelo Observatório Brasileiro do Cinema
e do Audiovisual, o filme exibido em mais salas em uma semana foi Vingadores: Guerra
Infinita (2018) dirigido por Anthony Russo e Joe Russo. O filme, parte da franquia norte-
americana Vingadores, ocupou simultaneamente 2.354 salas, o que representa a maior
quantidade de salas ocupadas por um mesmo filme desde 2009 até o ano da pesquisa. No ano
anterior o filme a ocupar o mesmo lugar foi Thor: Ragnarok (2017) dirigido por Taika Waititi,
exibido em 2.073 salas e também de origem norte-americana. O filme brasileiro a ocupar mais
salas em 2018 tem o título de Nada a perder (2018), dirigido por Alexandre Avancini, e ocupou
1.127 salas, consideravelmente menos que os dois filmes norte-americanos.
Quanto às marcas dessa invasão cinematográfica norte-americana nos imaginários, o
filme Salve o cinema6 (1995), realizado pelo diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf (1957) em
homenagem ao centenário do cinema, contempla bons exemplos de como essa dominação
afetou concepções sobre o cinema e também sobre a vida. No filme, que mistura os gêneros de
documentário e ficção, o diretor realiza em uma cidade no Irã testes abertos para o casting de

ajudavam a seguir suas ideologias políticas, difamando as políticas soviéticas enquanto implantavam as suas
próprias.
6
Título original: Salaam Cinema
29

seu próximo filme. No entanto, os testes são o próprio filme. A resposta aos testes abertos é
avassaladora e nos primeiros minutos de filme torna-se óbvio um tipo de fascinação em torno
de um suposto universo do cinema.
Nos testes, Mohsen Makhmalbaf interpreta o papel de diretor, dotado de todos os
estereótipos de autoridade em torno dessa figura provenientes do universo hollywoodiano; os
participantes devem responder à deixas emocionais sob o comando do diretor e interpretar
façanhas típicas de filmes de gênero norte-americanos, como por exemplo fingir que foram
projetados para longe após uma explosão. Toda a estrutura do documentário depende e chama
atenção para um imaginário coletivo colonizado de convicções sobre o cinema. Sob o pretexto
de processo seletivo, o filme extrai de seus participantes declarações reveladoras que indicam
uma possível crise de representação gerada no espectador pela colonização do imaginário.
Um dos homens no filme, por exemplo, se apresenta ao diretor e, pede para interpretar
o papel de vilão, o diretor, curioso, pergunta a ele o porquê desse desejo específico. O homem
então responde que acredita combinar com o papel por se parecer com um vilão. A cena descrita
evidencia uma intoxicação do imaginário deste indivíduo enquanto espectador com um padrão
de aparência hegemônico disseminado nos filmes que desloca propositalmente a beleza não
ocidentalizada e principalmente não-branca para o local do vilão. No fim, o filme subverte todas
as concepções até então apresentadas sobre cinema, explicando aos participantes que eles não
estão sob análise para participar do filme e, na verdade, já foram incluídos na obra que consistia
o tempo todo no processo no qual eles próprios contribuíram como personagens. O filme então
não só evidencia práticas coloniais dentro do cinema e seus efeitos como também busca
apresentar aos seus participantes e espectadores outras perspectivas decoloniais do que é
cinema.
No entanto, como foi evidenciado no exemplo retirado do filme, muitas vezes as
verdades dentro da tela buscam uma sobrevida fora da tela. Ismail Xavier explica que a
“competência” do cinema norte-americano “para copiar” o mundo real e recriá-lo em diferentes
eras o garante certo prestígio artístico, e que a “seriedade” da reprodução traz ao filme um
caráter verdadeiro, o que muitas vezes se estende, aos olhos do espectador, em uma opinião
sobre o filme como um todo (XEVIER, 2005, p. 42). Sobre esse aspecto, Hennebelle alerta
sobre uma “falsificação histórica” promovida por Hollywood: “a supressão das coordenadas
econômicas, sociais e políticas reais da representação das situações causa evacuação (bastante
cômoda) da luta de classes que é substituída por antagonismos secundários e de ordem pessoal
(...)” (1978, p. 45).
30

Hennebelle aponta um outro cúmplice das políticas de disseminação das produções


norte-americanas, e que tem um papel decisivo na popularidade comprovadas dessas obras, a
crítica.

A monstruosa excrescência da sétima


arte, que tem por nome “cinema
hollywoodiano”, é evidentemente, nesse
domínio da cultura, o fruto da hegemonia das
classes dominantes americanas. Verdade
dificilmente admitida! Muitos críticos e
cinéfilos “de esquerda” raciocinam como se
existisse um corte radical entre o capitalismo
norte-americano e uma produção, que
entretanto, sabe ser subvencionada e dominada
por aquele (HENNEBELLE, 1978, p. 40).

Xavier, aponta os filmes hollywoodianos e a decupagem clássica como parte de uma


linguagem necessariamente burguesa e, concordando com Hennebelle, que responde aos
interesses de uma classe dominante. O pesquisador brasileiro explica que “sob um domínio de
uma estética de expressão individual a indústria do cinema é acusada de antiartística devido à
padronização e impessoalidade de suas produções”. Esta “atitude crítica” teve como resultado
uma “política de valorização de cineastas particulares ou filmes particulares” apontados pela
crítica como “algo a mais do que manifestações de tendência de um sistema” (XAVIER, 2005,
p. 43). Ismail cita especificamente a revista sobre cinema editada na França, Cahiers du Cinéma
(1951), como responsável por buscar e indicar dentro do cinema norte-americano “marcas de
um estilo pessoal” (Ibid., p. 44).
Ismail Xavier aponta que críticos e acadêmicos buscam por justificativas e evidências
de filmes norte-americanos que de alguma forma quebrem com o padrão estético e burguês da
decupagem clássica: “Não surpreende que encontremos dezenas de críticos e acadêmicos à
procura do filme holllywoodiano fiel ao método clássico mas não burguês; ou, num projeto
bastante atrativo para críticos americanos, à procura do filme hollywoodiano não fiel ao método
clássico” (2005, p. 44). De acordo com o pesquisador, o cinema se trata não só do filme, mas
de toda a produção industrial cinematográfica como um “sistema” que envolve todo um
“aparato discursivo” que inclui propaganda, crítica e literatura e, que o sustentam. Além disso,
31

Xavier também ressalta a existência de uma corroboração da crítica, adepta aos moldes norte-
americanos de cinema, e disposta a analisar a eficiência do sistema como parte da obra (2005,
p. 44-45).

A meu ver, o problema básico em torno da produção de


Hollywood não está no fato de existir uma fabricação; mas está
no método desta fabricação e na articulação deste método com
os interesses dos donos da indústria (ou com os imperativos da
ideologia burguesa). Uma questão básica da crítica atual é a da
necessidade ou não desta articulação, ou seja, se é válido ou não
dizer que o complexo representação naturalista/decupagem
clássica/ mecanismo de identificação define necessariamente
um método burguês, definidor de um cinema necessariamente
burguês. Os analistas do sistema hollywoodiano, na defesa de
um ou outro ponto de vista, atacam esta questão em duas
frentes: num nível mais conceitual (...) e num nível mais
empírico, na base de análise de filmes que possam servir de
prova da validade da posição assumida. Esta análise de filmes
tem sido cada vez mais praticada, principalmente pelos que se
opõem a ver a relação em questão como necessária. (...)
Taticamente, tal atitude tem como objetivo a demonstração da
neutralidade do sistema de representação e a possibilidade de
sua utilização dentro de diferentes perspectivas ideológicas.
Estrategicamente, ela tem o objetivo de demonstrar a
inviabilidade de qualquer consideração em bloco frente ao
sistema hollywoodiano dentro de um projeto mais amplo de
negação da existência de “relações necessárias” (ou
determinações) no campo da produção artística, tomado como
lugar da manifestação irredutível da individualidade (XAVIER,
2005, p. 43).

A convergência de fatores de linguagem, política e das próprias características da


imagem-movimento, fizeram do cinema um veículo de neocolonização. A dominação acontece
não mais geograficamente e sim, primeiramente, no imaginário, implantando imagens que irão
compor o arsenal de memórias que constroem a percepção. Dessa forma, o cinema
32

hollywoodiano infecta o mundo, espalhando e tornando comum suas técnicas de linguagem,


valores, imposições e, principalmente, sua narrativa de escolha.
Por infestação do circuito mundial, Hollywood também sequestra, junto com as salas
de cinema, o próprio significado da palavra cinema que, inscrita nos imaginários ao redor do
mundo nos moldes norte-americanos, é frequentemente associada apenas ao produto dos
estúdios californianos. Como consequência, provavelmente intencional, o cinema é visto como
um elemento à parte do circuito artístico, com seu espaço separado e delimitado longe das
galerias e em espaços comerciais (DUBOIS, 2003, p. 6).
No entanto, o fenômeno da imagem-movimento ganha uma nova forma na arte
contemporânea e surge nas galerias através do vídeo na década de 1970 (DUBOIS, 2003, p. 6-
7). Esse, e outros momentos se provaram essenciais para o vislumbre de um futuro menos
sombrio para a sétima arte. Efetuando quebras profundas com as práticas tradicionais do
cinema, nasce uma nova imagem e com ela, um novo sistema de signos, que questiona o sistema
tradicional (sensório-motor), assim como elementos considerados antes primordiais e que
ocupavam, no cinema, um lugar central e definitivo até então, como a montagem.

III – Rupturas: a alforria da arte cinema

O artista visual brasileiro e pesquisador de novas mídias, André Parente (1957) nos
lembra: “Ao contrário do cinema dominante, muitas obras cinematográficas reinventaram o
dispositivo cinematográfico, seja multiplicando as telas e explorando outras durações e
intensidades, seja transformando a arquitetura da sala de projeção e entretendo outras relações
com os espectadores” (2009, p. 23). Portanto, de acordo com Parente, não devemos permitir
que a “forma cinema se imponha como um dado natural ou realidade incontornável”. Parente
aponta que a própria “forma cinema” se trata de uma “idealização” e que, em outras palavras,
“o cinema sempre foi múltiplo, mas essa multiplicidade (...) está encoberta e/ou recalcada por
sua forma dominante” (2009, p. 25). Nos dois subcapítulos a seguir, são abordados dois dos
desvios da forma cinema: a imagem-tempo e o vídeo. Estes, são responsáveis por uma severa
ruptura com a forma clássica e com o sistema sensório-motor, onde se constitui.

3.1 A imagem-tempo

Segundo Deleuze, a grande “ruptura” acontece depois da Segunda Guerra Mundial


(1939-1945) com o neorrealismo. Isso porque o neorrealismo foi capaz de registrar “a falência
dos esquemas sensório-motores” (DELEUZE, 2008, p. 77-78). No neorrealismo, os
33

personagens, assim como as pessoas da época, não sabem mais reagir às situações que os
“ultrapassam” por serem horríveis demais, belas demais, ou, simplesmente porque se esgotaram
as soluções. Como resultado dessa falência do esquema dependente de estímulos e reações,
Deleuze aponta: “(...) nasce uma nova raça de personagens. Mas, sobretudo, nasce a
possibilidade de temporalizar a imagem cinematográfica: é o tempo puro, (...) mais que
movimento” (Ibid., p. 78).
De acordo com Deleuze, “se o movimento recebe sua regra de um esquema sensório-
motor, isto é, apresenta um personagem que reage a determinada situação, então haverá uma
história”. Mas, se o esquema sensório-motor “desmorona” e passa a operar através de
“movimentos não orientados, desconexos”, surgirão então outras formas, classificadas pelo
filósofo como “devires mais que histórias” (Ibid., p. 77). Deleuze explica que no neorrealismo
o real não era mais objeto de reprodução ou representação, era algo a ser “visado”. Ou seja, ao
invés de “representar um real já decifrado”, o neorrealismo inventava um novo tipo de imagem
que traduzia uma realidade “ambígua”, ainda a ser decifrada (DELEUZE, 2005, p. 9).
Sob regime do sistema sensório-motor, as personagens reagiam às situações “mesmo
quando uma delas se encontrava reduzida à impotência”. Assim, o que o espectador
contemplava era “uma imagem sensório-motora da qual participava mais ou menos, por
identificação com as personagem” (Ibid, p. 11). Deleuze aponta que Hitchcock foi pioneiro ao
inverter esse ponto de vista, incluindo o espectador no filme. No entanto, é no neorrealismo que
essa identificação “se reverte efetivamente” e a personagem torna-se um espectador dentro do
filme: “Por mais que se mexa, corra, agite a situação em que está, extravasa, de todos os lados,
suas capacidades motoras, e lhe faz ver e ouvir o que não é mais passível (...) de uma resposta
ou ação” (DELEUZE, 2005, p. 11 ). O personagem então, posto diante daquilo que não é mais
passível de resposta, “registra mais do que reage” (Ibid.).
A crise da imagem-ação é definida por Deleuze pelos seguintes “caracteres”: “a forma
da balada/perambulação, difusão de clichês, acontecimentos que mal concernem àqueles a
quem acontecem, em suma, um afrouxamento dos vínculos sensório-motores”. Tais caracteres
foram “condições preliminares” que tornaram possível o surgimento de um novo tipo de
imagem, mas, o que constitui de fato a nova imagem são as situações puramente ópticas e
sonoras que “substituem” as situações sensório-motoras, já em decadência (DELEUZE, 2005,
p. 11-12). Deleuze explica as situações ópticas e sonoras puras da seguinte forma:

As situações óticas e sonoras do neo-


realismo se opõem às situações sensório-
34

motoras fortes do realismo tradicional. A


situação sensório-motora tem por espaço um
meio qualificado, e supõe uma ação que a
desvele, ou suscita uma reação que se adapte a
ela ou a modifique. Mas uma situação
puramente ótica ou sonora se estabelece no que
chamávamos de “espaço qualquer”, seja
desconectado, seja esvaziado (…). No neo-
realismo, as ligações sensório-motoras só vão
valer pelas perturbações que as afetam, soltam,
desequilibram ou distraem: crise da imagem-
ação. Não sendo mais induzida por uma ação,
como também não se prolonga em ação (…)
estes novos signos remetem a imagens bem
diversas. Ora é a banalidade cotidiana, ora são
circunstâncias excepcionais ou limites. Mas,
acima de tudo, ora são imagens subjetivas,
lembranças de infância, sonhos ou fantasmas
auditivos e visuais, onde a personagem não age
sem se ver agir, espectadora complacente do
papel que ela própria representa (…) ora como
em Antonioni, são imagens objetivas à maneira
de uma constatação, ainda que a mera
constatação de um acidente, definida por um
enquadramento geométrico que, entre seus
elementos, pessoas e objetos, só deixa subsistir
relações de medida e de distância,
transformando desta vez a ação em
deslocamento de figuras no espaço (…)
(DELEUZE, 2005, p. 14-15).

A invenção dos opsignos e sonsignos7 ocorre, na verdade, antes do neorrealismo e, nos


filmes do cineasta japonês Ozu (1903-1963). Deleuze analisa que as obras de Ozu tomam a

7
As expressões “opsignos” e “sonsignos” se referem aos signos óticos e sonoros puros, elementos característicos
das situações óticas e sonoras, que se antepõem às situações sensório-motoras.
35

forma de “perambulação”, em, por exemplo, uma viagem de táxi ou trem, mas que o objetivo
é sempre “a banalidade cotidiana apreendida como a vida de família na residência japonesa”.
Os movimentos de câmera se tornam um evento raro, “os travellings são blocos de movimentos
lentos e baixos, a câmera sempre baixa é, na maioria das vezes, fixa, frontal ou num ângulo
constante”. As “fusões” são “abandonadas” em benefício de uma redução dos cortes. O que
pode ser confundido com um retorno a um “cinema primitivo”, para Deleuze, é na verdade o
desenvolvimento de “um estilo moderno espantosamente sóbrio: a montagem-cut, que
dominará o cinema moderno, é uma passagem ou uma pontuação puramente ótica entre as
imagens, operando diretamente, sacrificando todos os efeitos sintéticos” (DELEUZE, 2005, p.
23).
A “fixidez”, como colocado por Deleuze, não é a única alternativa ao movimento.
Deleuze ressalta que mesmo quando móvel, a câmera não “se contenta”, por exemplo, em
simplesmente seguir os personagens e constantemente “subordina a descrição de um espaço a
funções do pensamento”. Dificultando o discernimento entre “subjetivo” e “objetivo”, ou,
“real” e “imaginário”, a câmera passa a ser dotada de um “novo e rico conjunto de funções”
que se expressam em uma “nova concepção” dos quadros. Assim, nasce uma “consciência
câmera” que “não se define mais pelos movimentos que é capaz de seguir ou realizar, mas pelas
relações mentais nas quais é capaz de entrar” (DELEUZE, 2005, p. 34).
Essa transformação, vista primeiro no cinema de Ozu e que também pode ser encontrada
mais tarde no cinema de Orson Welles (1915-1985) e nos filmes neorrealistas no geral, altera a
lógica pela qual funcionava o cinema clássico onde a montagem ocupava um lugar privilegiado
e central. Segundo Deleuze, antes, a imagem-movimento e seus signos sensório-motores se
relacionavam apenas indiretamente, através da montagem, com uma imagem do tempo. Já a
imagem ótica e sonora pura e seus opsignos e sonsignos “ligam-se diretamente a uma imagem-
tempo que sub-ordenou o movimento”. O tempo deixa então de ser “a medida do movimento”
e, o movimento passa a ser “a perspectiva do tempo” (Ibid., p. 33).
Deleuze explica: “o cinema é primeiramente imagem-movimento: nem sequer há
alguma “relação” entre imagem e movimento, é o cinema que cria o automovimento da
imagem”. Depois, quando o cinema deixa de “subordinar o tempo ao movimento”, quando faz
com que o movimento seja adjunto do tempo, observamos como resultado uma
“autotemporalização da imagem”, assim, “a imagem cinematográfica torna-se uma imagem-
tempo” (DELEUZE, 2008, p. 84). De acordo com Deleuze, a situação puramente ótica e sonora,
constituinte da imagem-tempo, faz surgir uma “função de vidência” que, para o filósofo, é ao
mesmo tempo “fantasma e constatação, crítica e compaixão”. Já as situações sensório-motoras,
36

apesar de serem capaz de representar extrema violência, sempre remetem a uma “função visual
pragmática” simplesmente por existirem em um sistema de ação e reação onde entende-se que
o personagem “tolera” ou “suporta” porque reage (Ibid., 2005, p. 30).

Temos esquemas para nos esquivarmos quando


é desagradável demais, para nos inspirar resignação
quando é horrível, nos fazer assimilar quando é belo
demais. Notemos a este respeito que mesmo as
metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos
inspiram algo a dizer quando já não se sabe o que fazer:
são esquemas particulares, de natureza afetiva. Ora, é
isso um clichê. Um clichê é uma imagem sensório-
motora da coisa. (…) comumente, percebemos apenas
clichês. Mas, se nossos esquemas sensório-motores se
bloqueiam ou quebram, então pode aparecer outro tipo
de imagem: uma imagem ótico sonora pura, a imagem
inteira e sem a metáfora, que faz surgir a coisa em si
mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou
beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela
não tem mais de ser “justificada”, como bem ou como
mal… (DELEUZE, 2005, p. 31).

André Parente elabora sobre as duas mais radicais tendências do cinema experimental.
A primeira é “o cinema da imobilidade completa”, que o pesquisador exemplifica com o cinema
de Andy Warhol (1928-1987) e Michael Snow (1928) e seus planos sequência sem fim. De
acordo com Parente, essa tendência do cinema experimental faria parte de um “processo de
radicalização dos tempos mortos do cinema moderno” (2009, p. 37). Essa otimização dos
tempos mortos, identificada pelo artista visual como uma forte tendência do cinema
experimental, parece ter sido herdada, ou no mínimo feita antes, por Ozu, Welles e os cineastas
neorrealistas. Assim, o surgimento da imagem-tempo e suas repercussões renovadoras nas
técnicas e na linguagem cinematográfica, marcam o início de uma série de disposições
disruptivas na sétima arte.
37

A segunda tendência do cinema experimental apontada por Parente, é representada por


uma outra corrente que visa o oposto da primeira, “obter o máximo de mobilidade possível”.
Aqui, o espectador tem dificuldade de enxergar ou entender o que está sendo representado na
imagem. Essa corrente pode ser exemplificada muito bem pelo cinema de Stan Brakhage (1933-
2003). O cinema experimental não se preocupa em transmitir uma “impressão da realidade”,
objetivo principal do “cinema de representação”, a importância está então relacionada a
“intensidade” e a “duração” das imagens (PARENTE, 2009, p. 37-38). Novamente, como se dá
no neorrealismo, emerge uma nova forma de se representar a realidade que ultrapassa
exigências sensório-motoras.
Parente aponta que tais filmes não foram feitos para serem expostos em uma sala de
cinema. Para o pesquisador, esse tipo de experiência ganhou espaço nas galerias e museus, o
intitulado “cinema de museu”. Um exemplo de uma dessas obras, citado também por Parente,
é o filme do artista Douglas Gordon (1966) com o nome de 24h psycho (1993). O filme se trata
de uma versão com tempo dilatado do filme de Alfred Hitchcock, Psicose (1960), e a versão de
Douglas Gordon tem duração de 24 horas (Ibid., p. 38). Dessa forma, o cinema experimental
aproxima o cinema e a arte contemporânea, trazendo os primeiros vislumbres de uma possível
fuga ou fusão que o vídeo vai tornar concreta.

3.2 O vídeo

O autor belga Philippe Dubois afirma que em termos históricos foi o vídeo que
introduziu o cinema no universo dos museus de arte contemporânea (DUBOIS, 2009, p. 85).
Dubois explica que desde a década de 1950, o cinema experimental e os desenvolvimentos da
arte contemporânea (pop art, minimalismo, performance art, etc.) possibilitaram que se
estabelecesse o que o autor define como: “arte da experiência mais do que da contemplação, do
fenômeno mais do que da essência, da presença mais do que da representação”. Assim,
desenvolveu-se a “questão da instalação” que vinha acompanhada de uma série de
“parâmetros”. Dentro da temática desta pesquisa, interessa principalmente: “o gesto mais do
que a imagem”, “o tempo real”, “a duração ou instante mais do que a obra destacada do tempo
e o efêmero mais do que o eterno” (Ibid., p. 87).
Para o autor, o vídeo, que pode ser compreendido como circuito fechado nos anos 1980,
e mais tarde, nos anos 1990, como projeção de tela grande, foi e ainda é o “passador” entre dois
mundos (cinema e arte contemporânea), que, como esclarece Dubois, “até então só haviam
dialogado por intermitências ocasionais” (Ibid.). Parente afirma que o vídeo, ainda na década
de 1960, foi o responsável por intensificar o processo iniciado pelo cinema experimental de
38

“deslocamento da imagem-movimento para os territórios da arte”. O pesquisador destaca os


seguintes fenômenos como os principais inseridos e/ou potencializados pela videoarte: a
multiplicação das telas, o dispositivo do circuito fechado (tempo real), instalações e a interação
com a imagem (PARENTE, 2009, p. 38). Através do desenvolvimento de tecnologias, como a
fita de vídeo e o projetor que substitui o monitor, e das experimentações feitas por artistas, a
imagem-movimento se integrou ao circuito artístico: “Desde então, o cinema, na condição de
imagem, de estética, mas sobretudo de dispostivo (o movimento, a luz, a projeção, a
imaterialidade, o tempo etc.), faz parte da arte” (Ibid.).
Entre as principais tendências da videoarte, Parente destaca duas: a primeira, está
relacionada diretamente à questão do dispositivo, é o uso do circuito fechado. Esse dispositivo
trata-se de um recurso de vigilância onde a câmera transmite para o monitor a imagem em
tempo real. O pesquisador explica que no cinema existe uma “separação espacial entre o filme
e a imagem projetada” e, uma “separação temporal” entre a realização do filme e o filme
finalizado e pronto para exibição, estando o espectador situado nesses espaços. Já na imagem
do vídeo, e especialmente na imagem do circuito fechado, por exibir uma imagem filmada em
tempo real, é gerada uma “simultaneidade espaçotemporal”. Assim, o espectador torna-se ao
mesmo tempo “testemunha e personagem”, “alguém que se vê vendo” (Ibid., p. 38-39). Nesse
aspecto, é possível observar resquícios de tendências ou questões iniciadas pelos filmes
neorrealistas, que fazendo de seus personagens reféns do intolerável, o transformavam em
personagens-espectadores, sem reação.
Como exemplo de uso do recurso do circuito fechado pode ser citada a obra do artista
Nam June Paik (1932-2006) TV Buddha (1974). Em uma mistura de escultura e videoinstalação
o artista posiciona em frente à câmera, esta, acoplada a uma televisão, uma estátua da figura
sagrada de Buddha. A obra se aproveita ironicamente do dispositivo de vigilância ao propor
que se vigie uma estátua e também a imagem de um ancião espiritualmente elevado. A estátua
também, de certa forma, ressalta uma materialidade do objetivo que compõe a imagem (sem a
estátua não há imagem), assim como aspectos que falam do tempo real (presente) e do efêmero,
já que a obra só tem a duração da presença da estátua.
Parente cita como a segunda tendência da videoarte a imagem-corpo (Ibid., p. 40). Para
Deleuze o corpo não é mais aquilo que se deve superar para atingir o pensamento, mas, aquilo
em que deve-se mergulhar para alcançar o “impensado”, ou seja, a vida. O pensamento deve
comparecer às categorias da vida, ou seja, as “atitudes” e “posturas” do corpo, e não mais o
oposto. Segundo o filósofo, é pelo corpo que o cinema se une ao espírito e ao pensamento, pois
o corpo nunca está no presente e contém nele o “antes e o depois”. A espera e o cansaço, por
39

exemplo, são atitudes do corpo que incorporam o passado e o futuro e, por conterem os dois de
uma só vez, propõem ao pensamento o “incomunicável” ou “impensável”, a vida (DELEUZE,
2005, p. 227-228).
Nesse sentido, “dar um corpo” ou “montar uma câmera no corpo” apreende um novo
significado: “não é mais seguir ou acuar o corpo cotidiano, mas fazê-lo passar por uma
cerimônia, (...) impor-lhe um carnaval, um disfarce que o transforme em corpo grotesto mas
também extraia dele um corpo gracioso, a fim de atingir (...) desaparecimento do corpo visível”
(Ibid., p. 128). A partir do pensamento de Deleuze, entende-se a imagem-corpo ligada a um
“conceito ou atitude crítica” que pretende (através do gesto) “forçar o pensamento a pensar”
aquilo que é “intolerável” (PARENTE, 2008, p. 40).
Do material produzido nessa segunda tendência da videoarte, Parente cita o grupo de
pioneiros da videoarte no Brasil (Ana Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado,
Sônia Andrade, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi),
que entre 1974 e 1982 produziram mais de 40 vídeos. Tais vídeos tinham como característica
uma “precariedade técnica”, muitas vezes fazendo com que as obras fossem confundidas com
“simples registros de performance”. Nesses vídeos, gestos cotidianos eram “repetidos de forma
ritualística” ou “encenados ironicamente”, como sugerido por Deleuze, para obrigar o
pensamento a raciocinar o intolerável (2009, p. 40). Nesse caso, também é possível identificar
semelhanças com a perspectiva neorrealista, que trouxe ao cinema a característica do
intolerável, acompanhando um processo que tem início no cinema e continuidade na arte
contemporânea, evidenciando as duas práticas como parte de um mesmo conjunto.
Na década de 1980 o vídeo serviu como instrumento de retomada da imagem. Por conta
da fita magnética a reprodutibilidade aumentou e, de acordo com Dubois, “copiava-se tudo,
especialmente, é claro, os filmes de cinema”. Dubois explica que isso contribuiu para inserção
de imagens cinematográficas “emprestadas” no “corpus das artes”. Assim, o autor conclui que,
de todas as formas, o vídeo inseriu o cinema na arte contemporânea e desde então pode-se falar
de um “efeito cinema” na arte contemporânea (2003, p. 7). Para Dubois o cinema invadiu as
galerias, não só em um nível institucional, tendo cinematecas adicionadas aos espaços de
museu, e o linguajar do cinema incorporado nos espaços de galeria para falar de expografia,
mas também com cineastas que transitam pela arte contemporânea e experimentam a fuga das
regras impostas pelo espaço cinema. Por outro lado, artistas plásticos também passam a se
utilizar do cinema como artifício em suas obras, fazendo da fusão entre os dois mundos oficiais
(DUBOIS, 2003, p. 7-8).
40

Agnès Varda, uma das diretoras mais reconhecidas da nouvelle vague8, se aventurou
amplamente pelos supostos territórios da arte contemporânea. Em uma de suas obras, a artista
recria em uma videoinstalação o túmulo de seu amado gato. Sobre um monte de terra ela
reconstrói, a partir da projeção, um túmulo enfeitado de conchas, uma vez construído para velar
seu gato de estimação. A obra tem o nome de Le tombeau de Zgougou e foi exposta em 2006
no jardim da Fundação Cartier em Paris, na França. Na reconstrução do túmulo que acontece
em looping é possível identificar a tentativa de se fazer compreender, ou pensar o impensável,
o incompreensível, como na imagem-corpo, através da encenação e repetição de um ritual
cotidiano.
Dubois aponta que as imagens se reproduzem desde sempre, mas na contemporaneidade
o fenômeno da reprodução está fora de controle. Para o autor, a arte contemporânea trabalha
justamente em cima dessa “reprodutibilidade” e da ideia de “migração” da imagem (DUBOIS,
2003, p. 5) Enquanto isso, o cinema se esforça para ser mantido avesso tanto à reprodução
quanto à migração, querendo fazer de sua imagem um produto irreproduzível e imigrável que
é mantido sob controle e apenas exposto em troca de dinheiro por vias oficiais. Voltando-se
ainda mais à raiz da questão, Dubois questiona sobre o que é a imagem? Para identificar uma
imagem o autor elabora cinco perguntas: de onde vem a imagem? (o que está relacionado à sua
origem); qual o destino e a finalidade da imagem? (para onde vai?); qual é o lugar da imagem?
Ou, como ela ocupa o espaço-tempo?; do que são feitas as imagens?; que “poder” e que
“potência” tem essa imagem? (Ibid.). Com a passagem do tempo, as inovações técnicas e as
novas práticas artísticas, torna-se cada vez mais difícil responder a este questionário elaborado
por Dubois.
A arte contemporânea trabalha a partir de um princípio de “desterritorialização” da
imagem onde a sua criação e a maneira de expor se apresentam de formas cada vez mais
misturadas e por conjuntos mais complexos. Dessa forma, as imagens tornam-se mais difíceis
de serem categorizadas e as características que acreditávamos ter estabelecidas sobre a imagem
sofrem “interferências”. Assim, Dubois acredita que “a incerteza do visível se tornou o novo
estado das coisas” (Ibid., p. 5-6). No entanto, o cinema em seu modelo hegemônico persiste em
uma categorização dita pura da imagem cinematográfica, apesar de como visto nesta
monografia, a junção entre cinema e arte contemporânea, ou, até mesmo entre cinema e política

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A nouvelle vague é um movimento artístico dentro do cinema francês que teve início no final da década de 1950,
e se estendeu até o final da década de 1960. Os cineastas do movimento exploravam formas não tradicionais de se
fazer cinema ao utilizarem novos recursos de edição (como Godard e o jump cut), narrativa e estética visual. Além
disso, o movimento realizava a integração dos filmes com temáticas políticas da época (como por exemplo o papel
da mulher na sociedade) e questões existenciais.
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ou propaganda, como abordado no capítulo dois, já ser uma realidade ao longo da história do
dispositivo.
O termo Transcinema, é utilizado, por exemplo, pela pesquisadora brasileira Kátia
Maciel para definir uma imagem que gera “uma nova construção do espaço-tempo em que a
presença do participador ativa a trama”, “formas híbridas” de experiência entre a arte visual e
o cinema. A pesquisadora afirma que os artistas que hoje realizam instalação e exploram
relações entre projeção, som, interatividade, conectividade e narrativa, estariam “reinventando
o cinema” (MACIEL, 2009, p. 17). No entanto, o cinema permite-se reinventar? E a criação de
outras nomenclaturas como transcinemas, ou, até mesmo o cinema de exposições, não
contribuiriam ainda mais para uma cisão entre o cinema e essas outras práticas que também se
integram à imagem-movimento?
Devemos então, em uma estratégia de retomada do cinema, entendê-lo como explicou
Agnès Varda, ao apresentar em 2006 sua obra intitulada de La Cabane de l'Echec (A Cabana
do Fracasso). A obra, que consistia em uma cabana feita de vidro e negativos de seu filme
fracasso de bilheteria Les Creatures (As Criaturas, 1966), estreou acompanhada da seguinte
definição dada pela artista: “É cinema já que a luz é retida por imagens.” Se compreendido
dessa forma, o cinema tem a possibilidade de fuga, ao invés de ser forçado a encarar uma
eternidade de aprisionamento político, estético, econômico, moral e de linguagem.

Considerações finais

O termo cinema, como visto no segundo capítulo, foi sequestrado pela sua prática
hegemônica de porte industrial que, ao mesmo tempo em que faz do cinema um produto,
também o utiliza como instrumento de dominação. As denominadas salas de cinema encontram-
se infestadas por um único tipo, ou vertente, de cinema que carrega em seu material genético a
linguagem e o imaginário de uma classe dominante importada dos Estados Unidos. Ao nos
submetermos primeiramente aos seus códigos de linguagem, adotando como natural a
montagem-ação ou decupagem clássica enfraquecemos nossa própria dialética e reflexão, já
que nos utilizamos de ferramentas de construção de sentido que, mesmo que sutilmente, nos
foram e, ainda nos são, impostas.
O vídeo e suas tendências (inegavelmente parte do circuito artístico contemporâneo)
têm raízes nas práticas do cinema experimental e o cinema experimental, por sua vez (como
visto no terceiro capítulo desta monografia), tem raízes na ruptura iniciada durante o
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neorrealismo e a falência do sistema sensório-motor. Ao separarmos as sementes da imagem-


movimento da arte contemporânea, criando novos títulos para essa imagem em território
híbrido, entregamos ao cinema indústria (conivente com uma tática de colonização, explicada
no segundo capítulo) o termo cinema. Dito sem o adjetivo experimental ou nenhuma outra
referência o termo por si só já se refere, dentro do senso comum, ao cinema norte-americano e
suas práticas de linguagem e estética. Esta monografia, portanto, reforça a definição abrangente
de Varda, quando declara que sua obra, à primeira vista instalativa, seria também cinema, “já
que a luz é retida por imagens”. É permitindo que o cinema assuma outras formas que o mesmo
poderá se libertar da missão infeliz de colonizador.

Referências bibliográficas

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_______.Sobre o “efeito cinema” nas instalações contemporâneas de fotografia e vídeo.


TRANSCINEMAS: 1 Ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.

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MUNSTERBERG, Hugo. The Photoplay: a psychological study. D. Appleton Company,


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Capítulo 3 The Photoplay: a psychological study traduzido na Revista Sífio ISSN: 2359-3121
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PINTO, Tales dos Santos. O que é Plano Marshall? Brasil Escola. Disponível em:
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Portrait de la jeune fille em feu (Retrato de uma jovem em chamas). Céline Sciamma. França,
2020, 121 min, Colorido.

Salaam Cinema (Salve o cinema). Mohsen Makhmalbaf. Irã, 1995, 75 min, Colorido.

24h psycho (Psicopata 24h). Douglas Gordon, 1993, 24 horas.


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Le Tombeuau de Zgougou (A tumba de Zgougou). Agnès Varda, 2006, videoinstalação em


looping.

La Cabane de l'Echec devenue la Cabane de Cinéma (A cabana do Fracasso que tornou-


se a cabana do Cinema). Agnès Varda, 2006.

Les Créatures (As Criaturas). Agnés Varda. Produção de Mag Bodard. França, 1966, 90
min, Preto e Branco.

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