Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O sequestro do cinema:
Táticas de aprisionamento hollywoodianas e possíveis fugas através da arte
contemporânea
Rio de Janeiro
2021
2
O sequestro do cinema:
Táticas de aprisionamento hollywoodianas e possíveis fugas através da arte
contemporânea
Sumário
Introdução ............................................................... 5
1. O poder da imagem-movimento......................... 11
2. O cinema norte-americano e
suas práticas colonizadoras.................................... 17
2.1 Linguagem
2.2 Políticas............................................................... 21
3. Rupturas: A alforria da arte cinema.................. 25
3.1 A imagem-tempo................................................ 26
3.2 O vídeo................................................................ 30
Considerações finais.................................................33
Referências Bibliográficas.......................................34
Referências Audiovisuais.........................................35
5
Introdução
O cinema democrático, bastante minoritário, é realizado contra
e não graças a Hollywood.1
O trabalho em questão tem como objetivo manter fértil o campo da reflexão sobre a
sétima arte. É também através do pensamento acadêmico que se consagra, destrincha e se
registra a arte. Assim, é importante que o campo teórico seja tão cheio de questionamentos e
possibilidades quanto a própria arte. É necessário que ao longo dos anos perguntemos várias
vezes o que Bazin (1991) nos perguntou: “o que é cinema?”, ou “onde está o cinema?”, porque
assim como tantas outras coisas, o cinema também está fadado a se transformar. Essas são
perguntas importantes a serem respondidas, por isso, esta monografia tem o intuito de refletir
sobre o campo do cinema e sua utilização através de uma discussão de propósitos e alternativas.
A reflexão aqui presente tem a intenção de se colocar sobre a nomenclatura designada
ao cinema fora do clássico, aquele dito experimental. Esta é uma entre muitas discussões
geradas pelo paralelo indústria-arte. Nosso objetivo é germinar uma semente de questionamento
que ponha em dúvida o cinema como entretenimento e o aproxime de outras possibilidades
desligadas da satisfação do público e das bilheterias. Também faz parte da proposta do trabalho
em questão, fazer denúncia de um tipo de invasão e colonização de uma das formas de
linguagem do cinema (a decupagem clássica concebida por Griffith, explicada em mais detalhes
no segundo capítulo) sobre as outras. A consequência dessa reflexão é desvencilhar de forma
radical a potência do cinema-arte (experimental) das intenções não explícitas do cinema
clássico. Tomamos como base a afirmação de Kátia Maciel em seu livro Transcinemas (2009):
“O cinema sempre foi experimental, o que quer dizer que sempre foi um campo de pesquisa”
(p. 13). Isso significaria então que o cinema teria sido desde sempre e como um todo
experimental. Afinal, não foram através de experimentos que se desenvolveram as façanhas
tecnológicas que tornaram o cinema sequer possível?
O cinema se proliferou fortemente como indústria e também se desenvolveu como uma
vertente extremamente fértil do campo da arte. Walter Benjamin (1892-1940) alertava que o
cinema, por se basear em uma tecnologia de reprodutibilidade técnica, inaugura uma nova
função da arte. De acordo com o filósofo alemão, a capacidade de ser reproduzida inúmeras
vezes para muitas pessoas acaba se transformando no propósito da relação entre a obra e o
1
HENNEBELLE, Guy. Os Cinemas Nacionais Contra Hollywood p. 41 1. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1978.
6
espectador. Dessa forma, a arte substitui a partir do cinema o “ritual” por uma outra forma de
praxis, a política (BENJAMIN, 1975, p. 17).
A vertente do cinema como indústria ganhou, no período entre as duas guerras mundiais,
seu braço mais potente no império cinematográfico de uma das maiores potências econômicas
mundiais, os Estados Unidos. Como ocorreu durante o regime nazista, que se utilizou
fortemente do cinema como ferramenta de propagação e inserção de seus valores na sociedade
alemã, os Estados Unidos se apropriam do cinema como ferramenta para cumprir com itens de
uma agenda imperialista propagando e inserindo seus valores em escala mundial
(HENNEBELLE, 1978, p. 28-30).
A imagem-movimento − termo introduzido pelo filósofo francês Gilles Deleuze (1925-
1995) e que se refere a um “bloco de espaço-tempo” diante de um todo, o que dentro do universo
do filme corresponde ao plano − carrega um fascínio como forma de representação e atinge
uma camada mais profunda no quesito imitação da realidade. Podemos tomar como exemplo a
primeira exibição do filme produzido pelos irmãos Lumière, Chegada de um trem à estação 2
(1896), que fez com que parte dos espectadores dentro da sala de cinema corressem para as
portas de saída assustados com a possibilidade de que o trem fosse invadir a sala de exibição.
O movimento é em grande parte advindo da nossa percepção. Para Dubois o movimento
é a única forma de definir nossa relação efêmera com o mundo que, é essencialmente “o que
nos funda como seres vivos e mortais”. O autor afirma que “a instabilidade e a mudança são a
regra, e tudo seria apenas uma imensa e infinita correlação de movimentos sempre se fazendo,
se desfazendo e se refazendo” (2003, p. 9). Sendo assim, a possibilidade de representar um
elemento tão essencial de mediação da nossa existência em conjunto com a imagem (outro meio
essencial de composição da presença do ser), o movimento concede à imagem cinematográfica
forte semelhança com a própria vida.
A estética de montagem do cinema norte-americano sistematizada por Griffith (1875-
1948), faz o maior proveito da profunda identificação causada no espectador pela imagem-
movimento. Dotado de uma estética naturalista e com claro objetivo de fingir uma continuidade
das imagens diante da realidade descontínua da imagem cinematográfica, a hipótese realista do
cinema hollywoodiano implica na admissão de que há um modo “normal” ou “natural” de se
combinar as imagens, justamente aquele apto a não destruir essa falsa impressão de realidade
que ilude o espectador nas semelhanças entre o universo do filme e a vida fora dele (XAVIER,
3
Em 2020, por exemplo, aqui no Brasil, de acordo com os dados divulgados pela ANCINE em Janeiro de 2021,
quatro dos cinco filmes mais assistidos e, portanto, com maior bilheteria, foram norte-americanos. Juntos, mesmo
em ano de pandemia, esses filmes foram assistidos no total por 16 milhões 25 mil e 436 espectadores.
8
a falência dos esquemas sensório-motores: os personagens não sabem mais reagir às situações
que os ultrapassam, porque é horrível demais, ou belo demais, ou insolúvel...” (2008, p. 77-78).
Para o filósofo, “toda percepção é antes de tudo sensório-motora” (1983, p. 86), isso porque a
percepção intermedia as relações sensoriais e as motoras, a recepção do estímulo e a resposta.
O sistema sensório-motor, portanto, é aquele que se funda na reação, aquele em que para cada
estímulo corresponde uma possível ação. Assim, os esquemas sensório-motores, em um período
que não comporta nenhuma reação possível, deixam de fazer sentido e, com eles o cinema
narrativo e a decupagem clássica, cujo o desenvolvimento das histórias, como elucida Deleuze
(2008, p. 77), depende de tais esquemas.
Em oposição ao sistema sensório-motor, e em conjunto com o neorrealismo italiano,
nasce um segundo sistema que opera através de “situações óticas e sonoras puras” (DELEUZE,
2005, p. 11). Assim, o mundo perdeu a capacidade de reação e, a Itália, devastada pela guerra,
perdeu a sua capacidade de produzir cinema no modelo clássico, dependente de grandes
estúdios, do dinheiro e baseado na racionalidade. O modelo narrativo cinematográfico e suas
fantasias sensório-motoras, já não bastavam para digerir as reflexões em questão, o cinema teria
agora que operar em um nível sensível, além do racional.
Nesse novo “sistema” o tempo se liberta do movimento, assumindo o papel principal. A
montagem característica essencial no cinema clássico e, até então, debate principal da
linguagem cinematográfica, agora é coadjuvante da imagem. A imagem ótica e sonora pura
liga-se diretamente a um novo tipo de imagem, a imagem-tempo que “sub-ordenou o
movimento”. Essa reversão faz com que o tempo deixe de ser “medida do movimento”. O
movimento se transforma então na “perspectiva do tempo”, o que constituiu um “cinema do
tempo, com uma nova concepção e novas formas de montagem” (DELEUZE, 2005, p. 33).
Sobre a imagem-movimento e a imagem-tempo, Deleuze elucida:
Nos anos 1960 mais uma vez o cinema clássico norte-americano mostra-se insuficiente,
com uma queda nas bilheterias hollywoodianas e uma ascensão das vanguardas que
representavam uma completa desconstrução do modelo clássico, tanto de linguagem quanto de
temática. As temáticas do cinema clássico eram conservadoras e não representativas, além de
não computarem as experiências traumáticas pelas quais o mundo havia passado, continuando
a representar um universo publicitário fantasioso (HENNEBELLE, 1978, p. 52-54).
A decupagem clássica, não pode ir além da narrativa e se despreender de uma noção
linear na qual a todos os estímulos correspondem uma reação que leva ao evento seguinte até
culminar em um final perfeito. Esse modelo se difere completamente da vida, e por isso dela
não dá conta. Como aponta Deleuze em Cinema 1: A Imagem-movimento (1983, p. 47), a
decupagem clássica não está “submetida à narração”, mas sim à própria “narratividade que
decorre desta concepção da montagem”. Nesse sentido, fazem parte da estética do cinema
narrativo e da decupagem clássica, os recursos de identificação e essa noção preconcebida de
sistema, onde sempre existe uma resposta, uma reação, uma linearidade que caminha em
direção a um final. A própria lógica da decupagem clássica está acoplada a essa concepção de
contar uma história.
Assim, observamos o cinema se dividir em dois eixos, um relacionado à indústria e outro
à arte. Além dos Estados Unidos, o modelo indústria domina ou invade vários países,
imprimindo sua marca como o cinema normal. O cinema relacionado à arte recebe a
classificação informal de experimental, simplesmente por se diferir do cinema clássico, quando
na verdade é o cinema clássico que deveria ter uma nomenclatura diferenciada provavelmente
associada à propaganda, por compartilhar semelhanças inegáveis com a área.
Autores como Arlindo Machado (1997) e Kátia Maciel (2009), fazem referência
respectivamente, a termos como pós-cinema e transcinema, em geral, para designar os
crescentes pontos de contato entre o cinema e a arte contemporânea. Uma renomeação indica
uma transformação, ou uma segunda coisa, diferente da primeira. O que leva a crer que a
definição da primeira coisa (no caso, o cinema) estaria fechada, sem a possibilidade de
alterações. Assim, é pertinente nos questionarmos hoje: o formato cinema é inalterável? Ou
chegou ao seu fim? E se for, de fato imutável, por que? Outras artes, inclusive com mais tempo
de tradição, foram capazes de quebrar com a camisa de força dos seus formatos iniciais: o teatro,
10
por exemplo com a estrutura clássica do palco italiano, já quebrada diversas vezes, inclusive
pelo Teatro Oficina no Brasil.
O cinema, se minimamente desobedece a qualquer elemento dessa fórmula
extremamente rigorosa (decupagem clássica, longa-metragem, para ser assistido sentado dentro
da sala escura e em imagem HD), recebe o nome, muitas vezes pejorativo, de experimental e
estará destinado a um circuito específico de circulação, enquanto os filmes norte-americanos,
hollywoodianos continuam a rodar o mundo com seu formato normal, caro de produzir, caro
de veicular e garantido por eles próprios como o modelo dominante.
Nos anos 1970 o cinema foi introduzido à arte contemporânea tendo como intercessor
o vídeo, o “cinema experimental” caminhava cada vez mais para longe da sua forma clássica e
mais para perto da arte contemporânea. Desde a invenção do vídeo, o cinema é apresentado nas
galerias, onde rompeu com a forma clássica e se expandiu para além do espaço delimitador da
sala escura (DUBOIS, 2003, p. 6-7). As possibilidades da sétima arte são inesgotáveis e todas
coexistem formando uma definição mais abrangente de “cinema” fundida ao universo da arte
contemporânea. O cinema é o filme, mas também é a videoinstalação, a videoperformance, a
videoarte, o happening e tantas outras formas que incluem e exploram a reflexão e capacidade
sensitiva através da imagem-movimento.
É na arte, no experimental, que o cinema se faz onipresente e pode finalmente se ver
livre de um modelo que normalmente apresentou uma visão particular como se fosse a definição
da própria arte cinematográfica. Muitos dos cineastas que pensavam esse cinema do sistema
óptico e sonoro puro, como classificaria Deleuze, também produziram obras para exposição em
galerias, algumas até repensando seus filmes como Agnès Varda na obra originalmente
nomeada de Cabane de l’échec (A cabana do fracasso, 2006), onde a artista belga utiliza os
negativos de seu filme Les Créatures (As Criaturas, 1966), fracasso de bilheteria, para a
composição de uma instalação. O cinema passou por uma transformação, ou, expansão se
integrando profundamente à arte contemporânea desde o surgimento do vídeo nos anos 1970 e,
cada vez mais, nas fronteiras que separam o cinema clássico do cinema experimental surgem
abismos, que os afastam tornando cada vez mais difícil enxergar os dois como partes de um
mesmo todo.
Privilegiar o cinema dito experimental em relação ao cinema clássico significa abrir
mão do endeusamento de um sistema de controle. Aproximar o cinema clássico, comercial da
propaganda visa evidenciar uma agenda de manipulação que opera através do cinema-indústria,
frisando seus vínculos e semelhanças com os objetivos do universo publicitário. Libertar o
cinema de sua obrigação realista, caráter comercial, isolamento em shoppings é deixar com que
11
ele renasça ao lado das outras artes. Para que assim, esteja livre também como uma ferramenta
de reflexão ao invés de um instrumento de desligar ideias como é em seu lugar de
entretenimento.
O cinema-indústria provoca dormência. Faz do contato entre espectador e imagem em
movimento um encontro de uma via, onde o olhar é passivo, mero instrumento de absorção.
Desse modo, é possível fazer prevalecer o cinema-arte sobre o cinema-indústria, por ter
propósito mais significativo e transformador, além de alternativas mais fartas e inesgotáveis.
Gilles Deleuze constata que o cinema só vale pelos “circuitos cerebrais que instaura”. Cerebral
não no sentido de “intelectual”, mas referindo-se a um “cérebro emotivo, passional”. Nesse
sentido, Deleuze se refere à “riqueza” e à “complexidade”, “ao teor desses agenciamentos,
dessas conexões, disjunções, circuitos e curto-circuitos” que o filósofo julga estar em falta no
formato hegemônico que assumiu o cinema (2008, p. 78-79). O cinema é muito mais que um
mercado, que um veículo colonizador de ideias, um exemplo ou, um anúncio de produto. O
cinema é invenção, é a ideia em si, é um vislumbre para uma outra coisa; é um além, sem regras,
sem controle que infelizmente tem sido mantido amordaçado.
O argumento em questão é construído a partir de pesquisa e articulação de material
teórico composto por livros e artigos acadêmicos. Também são citadas e analisadas obras
cinematográficas no espaço da arte contemporânea, que comprovem a existência dessa
interseção entre as salas de projeção e galerias (PAIK, 1974; VARDA, 2009; GORDON, 1993).
Não nos interessa citar nessa pesquisa obras hollywoodianas que se utilizam da forma narrativa
e da decupagem clássica pois entende-se que nosso imaginário já é intoxicado com exemplos
em excesso dessa estrutura tornando a exemplificação desnecessária. Essa pesquisa se baseia
fortemente nos autores Gilles Deleuze e suas obras Cinema 1: A Imagem-movimento (1983) e
Cinema 2: A Imagem-tempo (2005), Ismail Xavier, e seu livro O Discurso Cinematográfico: a
opacidade e a transparência (2005), Guy Hennebelle em Os cinemas nacionais contra
Hollywood (1978) e Philippe Dubois, Movimentos improváveis (2003).
Portanto, o primeiro capítulo se aprofunda no poder da representação da imagem
cinematográfica. Onde são úteis as considerações do filósofo francês Henri Bergson (1859-
1941) sobre a relação entre matéria e memória, quando afirma que para nós, o senso comum, a
matéria é um conjunto de imagens. Também são parte da elaboração os conceitos de Deleuze
(1925-1995) em torno da imagem-movimento e suas variações, derivadas do pensamento de
Bergson na obra Matéria e memória, originalmente publicada em 1896. O propósito é
evidenciar a semelhança capciosa entre o cinema e a vida.
12
I – O poder da imagem-movimento
espaço e ação constroem a dinâmica desta cena, onde o mote é justamente ser percebido por
um alguém que observa. Ao mesmo tempo, o olhar da câmera, bem distante, se confunde com
o olhar do fotógrafo que os espiona. É assim, por exemplo, que o olhar até então objetivo da
câmera se confunde com o olhar subjetivo do personagem.
Sobre os processos da mente, Bergson elucida sobre a representação do mundo material,
algo semelhante ao que Deleuze coloca sobre a divisão da imagem-movimento em
subcategorias. A representação do mundo material e suas possibilidades, para Bergson, estaria
também dividida em percepção, afecção e ação. A percepção, de acordo com Bergson, “mede
nossa ação possível sobre as coisas e inversamente, a ação possível das coisas sobre nós” (1999,
p. 55). A “consciência” da presença de um objeto é equivalente a uma “ação possível”, essa
tomada de consciência sobre a existência de determinado objeto em um campo espacial traz
uma possibilidade de interação e é a chamada percepção (Ibid., p. 58). É desse processo mental
que deriva a nomenclatura de Deleuze para a subcategoria imagem-percepção. Afinal, a
imagem-percepção é no cinema um plano (aberto ou conjunto) onde se evidencia uma relação
espacial entre os personagens, ou, personagem e objeto, entre o motor e o sensível e é esse
exatamente o mecanismo pelo qual a percepção é responsável.
A partir do momento em que percebe-se alguma coisa é possível prolongar a percepção
a atualizando como ação. Essa atualização que abandona o campo virtual, se trata da interação
entre o corpo e os objetos do mundo material. É concretizando a percepção em ação que nos
tornamos parte do sistema de ação e reação que desencadeia o próprio rumo da vida, através de
interações, ações reais. Ou seja, é a ação, uma vez que acontece no plano real e não no virtual,
que abre as portas da interação entre o corpo e os objetos. (BERGSON, 1999, p. 58-60)
Mais uma vez, é possível compreender através dos conceitos de Bergson uma das
nomenclaturas de Deleuze, a imagem-ação. Identificada por Deleuze dentro da sintaxe do
cinema como o plano-médio (p. 94) , a imagem-ação é responsável por desencadear um circuito
de interações dentro do universo cinematográfico. Este tipo de imagem inspira, segundo
Deleuze, um “cinema de comportamento, pois o comportamento é uma ação que passa de uma
situação a outra”, compondo um sistema de ação e reação onde o filme se desenvolve (1983, p.
194).
É o plano-médio que acomoda grande parte das ações necessárias para o desdobramento
narrativo do filme. Diferente do plano aberto (imagem-percepção), o plano médio aproxima os
personagens do entorno, enquadra justamente os momentos de contato, de interação, de ação.
O plano-médio, por ser ainda capaz de acomodar em um só quadro as interações tanto entre
personagens como de personagens com objetos, serve como palco das ações dentro do filme. É
15
através da interação com o objeto que o ator deve externalizar a emoção a transformando em
ação, e esse “par”, composto por “objeto e emoção”, integra o “signo genético” desse tipo de
imagem, uma vez que nele está a receita para a produção de ação (DELEUZE, 1983, p. 198-
199).
No filme Blow Up (1966), na sequência seguinte à citada anteriormente, onde o
fotógrafo espionava um casal em um momento íntimo, em plano médio, a mulher a quem
espionávamos intercepta o fotógrafo para pedir a ele que lhe dê as fotos. Os dois discutem, a
mulher tenta tomar dele a câmera. É através dessa interação com objeto câmera que a mulher
transforma em ação seu sentimento de desespero ou nervosismo diante do que ela sente ser,
possivelmente, uma invasão de privacidade e que deixa a sensação no fotógrafo de que ela tinha
algo a esconder. Assim, no plano médio se forma o palco das ações, onde as emoções deixam
o campo virtual e se transformam em interação. A imagem-ação também é constantemente
utilizada na chamada montagem paralela (na qual nos aprofundaremos no capítulo dois), onde
duas ou mais ações convergem através da alternância de imagens.
Quanto à afecção, Bergson a explica da seguinte maneira:
4
O terceiro capítulo do livro The Photoplay: a psychological study (utilizado para elaboração dessa monografia),
publicado originalmente em 1916 pela Appleton Company, pode ser encontrado online e traduzido na revista sísifo
ISSN: 2359-3121 Disponível em: http://www.revistasisifo.com/2015/05/hugo-munsterberg-profundidade-e.html
> Acesso em: 17 nov. 2021
19
Para melhor entender a dominação que se instaura através do cinema pelos Estados
Unidos é importante destrinchar os aspectos infecciosos desse tipo de produção. O pesquisador
brasileiro Ismail Xavier (1947) aponta como fator de alta relevância o efeito naturalista do
cinema norte-americano e, expande seu raciocínio evidenciando três elementos que compõem
21
um tripé de ferramentas naturalistas responsável por tal efeito (2005, p. 41). O primeiro dos
elementos desse tripé é a decupagem clássica, cuja principal característica é uma preocupação
extrema em transmitir continuidade. Por natureza, a imagem cinematográfica é descontínua,
portanto, na decupagem clássica deve-se fingir continuidade justificando a descontinuidade
através de convenções racionais sobre o momento do corte (XAVIER, 2005, 29-30).
O corte, nos moldes da decupagem clássica, deve acontecer pela mudança de espaço e
pela imposição narrativa que acompanha duas ações paralelas. Também são permitidos cortes
que mostram uma mesma situação de ângulos diferentes, estes dão a impressão de fluidez dos
acontecimentos (XAVIER, 2005, p. 29-30).
As correlações entre o
desenvolvimento dramático e o ritmo da
montagem [...] são dois instrumentos à
disposição de qualquer cineasta. O que é
característico da decupagem clássica é a
utilização destes fenômenos para a criação do
nível sensorial, de suportes para o efeito de
continuidade desejado e para manipulação
exata das emoções (XAVIER, 2005, p. 34).
A terceira e última perna do tripé responsável pelo efeito naturalista é, de acordo com
Xavier, “a escolha de estórias pertencentes a gêneros narrativos estratificados em suas
convenções de leitura fácil e de popularidade comprovada” (2005, p. 41). Hennebelle relata que
os gêneros fazem parte da “função ideológica” do cinema hollywoodiano e acontecem em um
“sistema bastante coerente” em que são a “peça de um mecanismo de estruturação do
imaginário, destinado a assegurar um bom funcionamento das consciências norte-americanas”
ao longo da história. A comédia musical, por exemplo, de acordo com Hennebelle “privilegia
o mascaramento da realidade e a idealização favorável ao sonho” e, não coincidentemente, teve
seu apogeu no período da Grande Depressão dos anos 1930 (1978, p. 49).
2.2 Políticas
5
O Plano Marshall esteve em vigor entre 1947 e 1951. Idealizado pelo general George Catlett Marshall, e efetivado
pelo então presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, tinha como objetivo reconstruir economicamente os
países Europeus, devastados na Segunda Guerra Mundial e, também, garantir com que esses mesmos países não
aderissem às políticas comunistas soviéticas. Os Estados Unidos realizaram grandes aportes financeiros nos países
Europeus, utilizados para reconstrução de indústrias e edificações, importação de mercadorias e alimentos e no
financiamento da agricultura. Enquanto isso, os Estados Unidos persuadiam esses mesmos países, a quem
28
Outro fator de relevância citado por Hennebelle é a criação, no próprio ano de 1946, da
M.P.E.A.A, organização responsável pela segunda onda de infestação dos filmes norte-
americanos. A M.P.E.A.A é como um “tipo particular de sindicato que reúne quase todas as
companhias americanas de distribuição”. O historiador ressalta a relevância de três
características curiosas sobre a organização: o fato de ser dependente direta da Casa Branca
“por meio de seus dirigentes”, ser beneficiada pelo Sherman Anti-Trust Act (1890), que isenta
dos controles da “descartelização” as atividades econômicas estrangeiras dos trusts e, a
M.P.E.A.A como “o único setor da economia dos Estados Unidos habilitado a tratar diretamente
com governos estrangeiros” (Ibid., p. 32).
O historiador aponta que nenhum outro setor da economia dos Estados Unidos depende
tanto do exterior quanto o do cinema. “Enquanto os americanos impõem o consumo maciço de
seus filmes, recusam-se a facilitar a difusão dos nossos cinemas em seu país” (HENNEBELLE,
1978, p. 33). Hennebelle exemplifica com um dado de 1956, referente ao seu país de origem, a
França, onde os filmes norte-americanos arrecadavam mais de 15 milhões de dólares no
mercado francês. Enquanto, os franceses retiravam, na mesma época, apenas cerca de dois
milhões de dólares pela distribuição de seus filmes nos Estados Unidos (Ibid.).
Esse padrão de ocupação norte-americana nas salas de cinema ao redor do mundo ainda
hoje persiste. De acordo com o anuário de 2018, feito pelo Observatório Brasileiro do Cinema
e do Audiovisual, o filme exibido em mais salas em uma semana foi Vingadores: Guerra
Infinita (2018) dirigido por Anthony Russo e Joe Russo. O filme, parte da franquia norte-
americana Vingadores, ocupou simultaneamente 2.354 salas, o que representa a maior
quantidade de salas ocupadas por um mesmo filme desde 2009 até o ano da pesquisa. No ano
anterior o filme a ocupar o mesmo lugar foi Thor: Ragnarok (2017) dirigido por Taika Waititi,
exibido em 2.073 salas e também de origem norte-americana. O filme brasileiro a ocupar mais
salas em 2018 tem o título de Nada a perder (2018), dirigido por Alexandre Avancini, e ocupou
1.127 salas, consideravelmente menos que os dois filmes norte-americanos.
Quanto às marcas dessa invasão cinematográfica norte-americana nos imaginários, o
filme Salve o cinema6 (1995), realizado pelo diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf (1957) em
homenagem ao centenário do cinema, contempla bons exemplos de como essa dominação
afetou concepções sobre o cinema e também sobre a vida. No filme, que mistura os gêneros de
documentário e ficção, o diretor realiza em uma cidade no Irã testes abertos para o casting de
ajudavam a seguir suas ideologias políticas, difamando as políticas soviéticas enquanto implantavam as suas
próprias.
6
Título original: Salaam Cinema
29
seu próximo filme. No entanto, os testes são o próprio filme. A resposta aos testes abertos é
avassaladora e nos primeiros minutos de filme torna-se óbvio um tipo de fascinação em torno
de um suposto universo do cinema.
Nos testes, Mohsen Makhmalbaf interpreta o papel de diretor, dotado de todos os
estereótipos de autoridade em torno dessa figura provenientes do universo hollywoodiano; os
participantes devem responder à deixas emocionais sob o comando do diretor e interpretar
façanhas típicas de filmes de gênero norte-americanos, como por exemplo fingir que foram
projetados para longe após uma explosão. Toda a estrutura do documentário depende e chama
atenção para um imaginário coletivo colonizado de convicções sobre o cinema. Sob o pretexto
de processo seletivo, o filme extrai de seus participantes declarações reveladoras que indicam
uma possível crise de representação gerada no espectador pela colonização do imaginário.
Um dos homens no filme, por exemplo, se apresenta ao diretor e, pede para interpretar
o papel de vilão, o diretor, curioso, pergunta a ele o porquê desse desejo específico. O homem
então responde que acredita combinar com o papel por se parecer com um vilão. A cena descrita
evidencia uma intoxicação do imaginário deste indivíduo enquanto espectador com um padrão
de aparência hegemônico disseminado nos filmes que desloca propositalmente a beleza não
ocidentalizada e principalmente não-branca para o local do vilão. No fim, o filme subverte todas
as concepções até então apresentadas sobre cinema, explicando aos participantes que eles não
estão sob análise para participar do filme e, na verdade, já foram incluídos na obra que consistia
o tempo todo no processo no qual eles próprios contribuíram como personagens. O filme então
não só evidencia práticas coloniais dentro do cinema e seus efeitos como também busca
apresentar aos seus participantes e espectadores outras perspectivas decoloniais do que é
cinema.
No entanto, como foi evidenciado no exemplo retirado do filme, muitas vezes as
verdades dentro da tela buscam uma sobrevida fora da tela. Ismail Xavier explica que a
“competência” do cinema norte-americano “para copiar” o mundo real e recriá-lo em diferentes
eras o garante certo prestígio artístico, e que a “seriedade” da reprodução traz ao filme um
caráter verdadeiro, o que muitas vezes se estende, aos olhos do espectador, em uma opinião
sobre o filme como um todo (XEVIER, 2005, p. 42). Sobre esse aspecto, Hennebelle alerta
sobre uma “falsificação histórica” promovida por Hollywood: “a supressão das coordenadas
econômicas, sociais e políticas reais da representação das situações causa evacuação (bastante
cômoda) da luta de classes que é substituída por antagonismos secundários e de ordem pessoal
(...)” (1978, p. 45).
30
Xavier também ressalta a existência de uma corroboração da crítica, adepta aos moldes norte-
americanos de cinema, e disposta a analisar a eficiência do sistema como parte da obra (2005,
p. 44-45).
O artista visual brasileiro e pesquisador de novas mídias, André Parente (1957) nos
lembra: “Ao contrário do cinema dominante, muitas obras cinematográficas reinventaram o
dispositivo cinematográfico, seja multiplicando as telas e explorando outras durações e
intensidades, seja transformando a arquitetura da sala de projeção e entretendo outras relações
com os espectadores” (2009, p. 23). Portanto, de acordo com Parente, não devemos permitir
que a “forma cinema se imponha como um dado natural ou realidade incontornável”. Parente
aponta que a própria “forma cinema” se trata de uma “idealização” e que, em outras palavras,
“o cinema sempre foi múltiplo, mas essa multiplicidade (...) está encoberta e/ou recalcada por
sua forma dominante” (2009, p. 25). Nos dois subcapítulos a seguir, são abordados dois dos
desvios da forma cinema: a imagem-tempo e o vídeo. Estes, são responsáveis por uma severa
ruptura com a forma clássica e com o sistema sensório-motor, onde se constitui.
3.1 A imagem-tempo
personagens, assim como as pessoas da época, não sabem mais reagir às situações que os
“ultrapassam” por serem horríveis demais, belas demais, ou, simplesmente porque se esgotaram
as soluções. Como resultado dessa falência do esquema dependente de estímulos e reações,
Deleuze aponta: “(...) nasce uma nova raça de personagens. Mas, sobretudo, nasce a
possibilidade de temporalizar a imagem cinematográfica: é o tempo puro, (...) mais que
movimento” (Ibid., p. 78).
De acordo com Deleuze, “se o movimento recebe sua regra de um esquema sensório-
motor, isto é, apresenta um personagem que reage a determinada situação, então haverá uma
história”. Mas, se o esquema sensório-motor “desmorona” e passa a operar através de
“movimentos não orientados, desconexos”, surgirão então outras formas, classificadas pelo
filósofo como “devires mais que histórias” (Ibid., p. 77). Deleuze explica que no neorrealismo
o real não era mais objeto de reprodução ou representação, era algo a ser “visado”. Ou seja, ao
invés de “representar um real já decifrado”, o neorrealismo inventava um novo tipo de imagem
que traduzia uma realidade “ambígua”, ainda a ser decifrada (DELEUZE, 2005, p. 9).
Sob regime do sistema sensório-motor, as personagens reagiam às situações “mesmo
quando uma delas se encontrava reduzida à impotência”. Assim, o que o espectador
contemplava era “uma imagem sensório-motora da qual participava mais ou menos, por
identificação com as personagem” (Ibid, p. 11). Deleuze aponta que Hitchcock foi pioneiro ao
inverter esse ponto de vista, incluindo o espectador no filme. No entanto, é no neorrealismo que
essa identificação “se reverte efetivamente” e a personagem torna-se um espectador dentro do
filme: “Por mais que se mexa, corra, agite a situação em que está, extravasa, de todos os lados,
suas capacidades motoras, e lhe faz ver e ouvir o que não é mais passível (...) de uma resposta
ou ação” (DELEUZE, 2005, p. 11 ). O personagem então, posto diante daquilo que não é mais
passível de resposta, “registra mais do que reage” (Ibid.).
A crise da imagem-ação é definida por Deleuze pelos seguintes “caracteres”: “a forma
da balada/perambulação, difusão de clichês, acontecimentos que mal concernem àqueles a
quem acontecem, em suma, um afrouxamento dos vínculos sensório-motores”. Tais caracteres
foram “condições preliminares” que tornaram possível o surgimento de um novo tipo de
imagem, mas, o que constitui de fato a nova imagem são as situações puramente ópticas e
sonoras que “substituem” as situações sensório-motoras, já em decadência (DELEUZE, 2005,
p. 11-12). Deleuze explica as situações ópticas e sonoras puras da seguinte forma:
7
As expressões “opsignos” e “sonsignos” se referem aos signos óticos e sonoros puros, elementos característicos
das situações óticas e sonoras, que se antepõem às situações sensório-motoras.
35
forma de “perambulação”, em, por exemplo, uma viagem de táxi ou trem, mas que o objetivo
é sempre “a banalidade cotidiana apreendida como a vida de família na residência japonesa”.
Os movimentos de câmera se tornam um evento raro, “os travellings são blocos de movimentos
lentos e baixos, a câmera sempre baixa é, na maioria das vezes, fixa, frontal ou num ângulo
constante”. As “fusões” são “abandonadas” em benefício de uma redução dos cortes. O que
pode ser confundido com um retorno a um “cinema primitivo”, para Deleuze, é na verdade o
desenvolvimento de “um estilo moderno espantosamente sóbrio: a montagem-cut, que
dominará o cinema moderno, é uma passagem ou uma pontuação puramente ótica entre as
imagens, operando diretamente, sacrificando todos os efeitos sintéticos” (DELEUZE, 2005, p.
23).
A “fixidez”, como colocado por Deleuze, não é a única alternativa ao movimento.
Deleuze ressalta que mesmo quando móvel, a câmera não “se contenta”, por exemplo, em
simplesmente seguir os personagens e constantemente “subordina a descrição de um espaço a
funções do pensamento”. Dificultando o discernimento entre “subjetivo” e “objetivo”, ou,
“real” e “imaginário”, a câmera passa a ser dotada de um “novo e rico conjunto de funções”
que se expressam em uma “nova concepção” dos quadros. Assim, nasce uma “consciência
câmera” que “não se define mais pelos movimentos que é capaz de seguir ou realizar, mas pelas
relações mentais nas quais é capaz de entrar” (DELEUZE, 2005, p. 34).
Essa transformação, vista primeiro no cinema de Ozu e que também pode ser encontrada
mais tarde no cinema de Orson Welles (1915-1985) e nos filmes neorrealistas no geral, altera a
lógica pela qual funcionava o cinema clássico onde a montagem ocupava um lugar privilegiado
e central. Segundo Deleuze, antes, a imagem-movimento e seus signos sensório-motores se
relacionavam apenas indiretamente, através da montagem, com uma imagem do tempo. Já a
imagem ótica e sonora pura e seus opsignos e sonsignos “ligam-se diretamente a uma imagem-
tempo que sub-ordenou o movimento”. O tempo deixa então de ser “a medida do movimento”
e, o movimento passa a ser “a perspectiva do tempo” (Ibid., p. 33).
Deleuze explica: “o cinema é primeiramente imagem-movimento: nem sequer há
alguma “relação” entre imagem e movimento, é o cinema que cria o automovimento da
imagem”. Depois, quando o cinema deixa de “subordinar o tempo ao movimento”, quando faz
com que o movimento seja adjunto do tempo, observamos como resultado uma
“autotemporalização da imagem”, assim, “a imagem cinematográfica torna-se uma imagem-
tempo” (DELEUZE, 2008, p. 84). De acordo com Deleuze, a situação puramente ótica e sonora,
constituinte da imagem-tempo, faz surgir uma “função de vidência” que, para o filósofo, é ao
mesmo tempo “fantasma e constatação, crítica e compaixão”. Já as situações sensório-motoras,
36
apesar de serem capaz de representar extrema violência, sempre remetem a uma “função visual
pragmática” simplesmente por existirem em um sistema de ação e reação onde entende-se que
o personagem “tolera” ou “suporta” porque reage (Ibid., 2005, p. 30).
André Parente elabora sobre as duas mais radicais tendências do cinema experimental.
A primeira é “o cinema da imobilidade completa”, que o pesquisador exemplifica com o cinema
de Andy Warhol (1928-1987) e Michael Snow (1928) e seus planos sequência sem fim. De
acordo com Parente, essa tendência do cinema experimental faria parte de um “processo de
radicalização dos tempos mortos do cinema moderno” (2009, p. 37). Essa otimização dos
tempos mortos, identificada pelo artista visual como uma forte tendência do cinema
experimental, parece ter sido herdada, ou no mínimo feita antes, por Ozu, Welles e os cineastas
neorrealistas. Assim, o surgimento da imagem-tempo e suas repercussões renovadoras nas
técnicas e na linguagem cinematográfica, marcam o início de uma série de disposições
disruptivas na sétima arte.
37
3.2 O vídeo
O autor belga Philippe Dubois afirma que em termos históricos foi o vídeo que
introduziu o cinema no universo dos museus de arte contemporânea (DUBOIS, 2009, p. 85).
Dubois explica que desde a década de 1950, o cinema experimental e os desenvolvimentos da
arte contemporânea (pop art, minimalismo, performance art, etc.) possibilitaram que se
estabelecesse o que o autor define como: “arte da experiência mais do que da contemplação, do
fenômeno mais do que da essência, da presença mais do que da representação”. Assim,
desenvolveu-se a “questão da instalação” que vinha acompanhada de uma série de
“parâmetros”. Dentro da temática desta pesquisa, interessa principalmente: “o gesto mais do
que a imagem”, “o tempo real”, “a duração ou instante mais do que a obra destacada do tempo
e o efêmero mais do que o eterno” (Ibid., p. 87).
Para o autor, o vídeo, que pode ser compreendido como circuito fechado nos anos 1980,
e mais tarde, nos anos 1990, como projeção de tela grande, foi e ainda é o “passador” entre dois
mundos (cinema e arte contemporânea), que, como esclarece Dubois, “até então só haviam
dialogado por intermitências ocasionais” (Ibid.). Parente afirma que o vídeo, ainda na década
de 1960, foi o responsável por intensificar o processo iniciado pelo cinema experimental de
38
exemplo, são atitudes do corpo que incorporam o passado e o futuro e, por conterem os dois de
uma só vez, propõem ao pensamento o “incomunicável” ou “impensável”, a vida (DELEUZE,
2005, p. 227-228).
Nesse sentido, “dar um corpo” ou “montar uma câmera no corpo” apreende um novo
significado: “não é mais seguir ou acuar o corpo cotidiano, mas fazê-lo passar por uma
cerimônia, (...) impor-lhe um carnaval, um disfarce que o transforme em corpo grotesto mas
também extraia dele um corpo gracioso, a fim de atingir (...) desaparecimento do corpo visível”
(Ibid., p. 128). A partir do pensamento de Deleuze, entende-se a imagem-corpo ligada a um
“conceito ou atitude crítica” que pretende (através do gesto) “forçar o pensamento a pensar”
aquilo que é “intolerável” (PARENTE, 2008, p. 40).
Do material produzido nessa segunda tendência da videoarte, Parente cita o grupo de
pioneiros da videoarte no Brasil (Ana Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado,
Sônia Andrade, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi),
que entre 1974 e 1982 produziram mais de 40 vídeos. Tais vídeos tinham como característica
uma “precariedade técnica”, muitas vezes fazendo com que as obras fossem confundidas com
“simples registros de performance”. Nesses vídeos, gestos cotidianos eram “repetidos de forma
ritualística” ou “encenados ironicamente”, como sugerido por Deleuze, para obrigar o
pensamento a raciocinar o intolerável (2009, p. 40). Nesse caso, também é possível identificar
semelhanças com a perspectiva neorrealista, que trouxe ao cinema a característica do
intolerável, acompanhando um processo que tem início no cinema e continuidade na arte
contemporânea, evidenciando as duas práticas como parte de um mesmo conjunto.
Na década de 1980 o vídeo serviu como instrumento de retomada da imagem. Por conta
da fita magnética a reprodutibilidade aumentou e, de acordo com Dubois, “copiava-se tudo,
especialmente, é claro, os filmes de cinema”. Dubois explica que isso contribuiu para inserção
de imagens cinematográficas “emprestadas” no “corpus das artes”. Assim, o autor conclui que,
de todas as formas, o vídeo inseriu o cinema na arte contemporânea e desde então pode-se falar
de um “efeito cinema” na arte contemporânea (2003, p. 7). Para Dubois o cinema invadiu as
galerias, não só em um nível institucional, tendo cinematecas adicionadas aos espaços de
museu, e o linguajar do cinema incorporado nos espaços de galeria para falar de expografia,
mas também com cineastas que transitam pela arte contemporânea e experimentam a fuga das
regras impostas pelo espaço cinema. Por outro lado, artistas plásticos também passam a se
utilizar do cinema como artifício em suas obras, fazendo da fusão entre os dois mundos oficiais
(DUBOIS, 2003, p. 7-8).
40
Agnès Varda, uma das diretoras mais reconhecidas da nouvelle vague8, se aventurou
amplamente pelos supostos territórios da arte contemporânea. Em uma de suas obras, a artista
recria em uma videoinstalação o túmulo de seu amado gato. Sobre um monte de terra ela
reconstrói, a partir da projeção, um túmulo enfeitado de conchas, uma vez construído para velar
seu gato de estimação. A obra tem o nome de Le tombeau de Zgougou e foi exposta em 2006
no jardim da Fundação Cartier em Paris, na França. Na reconstrução do túmulo que acontece
em looping é possível identificar a tentativa de se fazer compreender, ou pensar o impensável,
o incompreensível, como na imagem-corpo, através da encenação e repetição de um ritual
cotidiano.
Dubois aponta que as imagens se reproduzem desde sempre, mas na contemporaneidade
o fenômeno da reprodução está fora de controle. Para o autor, a arte contemporânea trabalha
justamente em cima dessa “reprodutibilidade” e da ideia de “migração” da imagem (DUBOIS,
2003, p. 5) Enquanto isso, o cinema se esforça para ser mantido avesso tanto à reprodução
quanto à migração, querendo fazer de sua imagem um produto irreproduzível e imigrável que
é mantido sob controle e apenas exposto em troca de dinheiro por vias oficiais. Voltando-se
ainda mais à raiz da questão, Dubois questiona sobre o que é a imagem? Para identificar uma
imagem o autor elabora cinco perguntas: de onde vem a imagem? (o que está relacionado à sua
origem); qual o destino e a finalidade da imagem? (para onde vai?); qual é o lugar da imagem?
Ou, como ela ocupa o espaço-tempo?; do que são feitas as imagens?; que “poder” e que
“potência” tem essa imagem? (Ibid.). Com a passagem do tempo, as inovações técnicas e as
novas práticas artísticas, torna-se cada vez mais difícil responder a este questionário elaborado
por Dubois.
A arte contemporânea trabalha a partir de um princípio de “desterritorialização” da
imagem onde a sua criação e a maneira de expor se apresentam de formas cada vez mais
misturadas e por conjuntos mais complexos. Dessa forma, as imagens tornam-se mais difíceis
de serem categorizadas e as características que acreditávamos ter estabelecidas sobre a imagem
sofrem “interferências”. Assim, Dubois acredita que “a incerteza do visível se tornou o novo
estado das coisas” (Ibid., p. 5-6). No entanto, o cinema em seu modelo hegemônico persiste em
uma categorização dita pura da imagem cinematográfica, apesar de como visto nesta
monografia, a junção entre cinema e arte contemporânea, ou, até mesmo entre cinema e política
8
A nouvelle vague é um movimento artístico dentro do cinema francês que teve início no final da década de 1950,
e se estendeu até o final da década de 1960. Os cineastas do movimento exploravam formas não tradicionais de se
fazer cinema ao utilizarem novos recursos de edição (como Godard e o jump cut), narrativa e estética visual. Além
disso, o movimento realizava a integração dos filmes com temáticas políticas da época (como por exemplo o papel
da mulher na sociedade) e questões existenciais.
41
ou propaganda, como abordado no capítulo dois, já ser uma realidade ao longo da história do
dispositivo.
O termo Transcinema, é utilizado, por exemplo, pela pesquisadora brasileira Kátia
Maciel para definir uma imagem que gera “uma nova construção do espaço-tempo em que a
presença do participador ativa a trama”, “formas híbridas” de experiência entre a arte visual e
o cinema. A pesquisadora afirma que os artistas que hoje realizam instalação e exploram
relações entre projeção, som, interatividade, conectividade e narrativa, estariam “reinventando
o cinema” (MACIEL, 2009, p. 17). No entanto, o cinema permite-se reinventar? E a criação de
outras nomenclaturas como transcinemas, ou, até mesmo o cinema de exposições, não
contribuiriam ainda mais para uma cisão entre o cinema e essas outras práticas que também se
integram à imagem-movimento?
Devemos então, em uma estratégia de retomada do cinema, entendê-lo como explicou
Agnès Varda, ao apresentar em 2006 sua obra intitulada de La Cabane de l'Echec (A Cabana
do Fracasso). A obra, que consistia em uma cabana feita de vidro e negativos de seu filme
fracasso de bilheteria Les Creatures (As Criaturas, 1966), estreou acompanhada da seguinte
definição dada pela artista: “É cinema já que a luz é retida por imagens.” Se compreendido
dessa forma, o cinema tem a possibilidade de fuga, ao invés de ser forçado a encarar uma
eternidade de aprisionamento político, estético, econômico, moral e de linguagem.
Considerações finais
O termo cinema, como visto no segundo capítulo, foi sequestrado pela sua prática
hegemônica de porte industrial que, ao mesmo tempo em que faz do cinema um produto,
também o utiliza como instrumento de dominação. As denominadas salas de cinema encontram-
se infestadas por um único tipo, ou vertente, de cinema que carrega em seu material genético a
linguagem e o imaginário de uma classe dominante importada dos Estados Unidos. Ao nos
submetermos primeiramente aos seus códigos de linguagem, adotando como natural a
montagem-ação ou decupagem clássica enfraquecemos nossa própria dialética e reflexão, já
que nos utilizamos de ferramentas de construção de sentido que, mesmo que sutilmente, nos
foram e, ainda nos são, impostas.
O vídeo e suas tendências (inegavelmente parte do circuito artístico contemporâneo)
têm raízes nas práticas do cinema experimental e o cinema experimental, por sua vez (como
visto no terceiro capítulo desta monografia), tem raízes na ruptura iniciada durante o
42
Referências bibliográficas
BALÁZS, Bela. Theory of the film (character and growth of a new art). London: Dennis
Dobson LTD, 1930.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São Paulo:
Abril S.A, 1975.
HENNEBELLE, Guy. Cinemas nacionais contra Hollywood 1. Ed. São Paulo: Paz e Terra,
1978.
Capítulo 3 The Photoplay: a psychological study traduzido na Revista Sífio ISSN: 2359-3121
<http://www.revistasisifo.com/2015/05/hugo-munsterberg-profundidade-e.html>. Acesso em
17 nov. 2021
PINTO, Tales dos Santos. O que é Plano Marshall? Brasil Escola. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-plano-marshall.htm>. Acesso em 17
nov. 2021.
VANCHERI, Luc A arquitetura ou o mais simples aparelho do cinema. Revista das artes e
ensaios número 25. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2013.
Referências audiovisuais:
Portrait de la jeune fille em feu (Retrato de uma jovem em chamas). Céline Sciamma. França,
2020, 121 min, Colorido.
Salaam Cinema (Salve o cinema). Mohsen Makhmalbaf. Irã, 1995, 75 min, Colorido.
Les Créatures (As Criaturas). Agnés Varda. Produção de Mag Bodard. França, 1966, 90
min, Preto e Branco.