Você está na página 1de 7

Mestrado em Ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico e de História e

Geografia de Portugal do 2º Ciclo do Ensino Básico

Património, Memória e Identidade

2022/2023

O que é Património Cultural – António Rosa Mendes

Docente: Pedro Ferré

Discente: Ana Laura Romeira, 65696


MPHGP
2022/2023

No âmbito da unidade curricular Património, Memória e Identidade, foi sugerido


às alunas do Mestrado em Ensino do 1º CEB e de História e Geografia de Portugal do 2º
CEB, assim como aos alunos do Mestrado de História e Património, a realização de um
trabalho que envolvesse a leitura do livro O que é Património Cultural de António Rosa
Mendes, a sua análise e, consequentemente, uma reflexão.

Este livro foi escrito na sequência da necessidade de clarificar o conceito de


património cultural, pois existe uma grande dificuldade de responder à questão “o que é
património cultural?”. António Rosa Mendes menciona que conhecer o património
cultural tem consequências decisivas para questões como “Quem somos? De onde
vimos? Para onde vamos? Em que mundo queremos viver?”. O interesse pelo
património cultural justifica-se pela necessidade de nos entendermos melhor e ao nosso
tempo.

Acho bastante interessante a ligação que o autor faz entre património cultural e a
gramática, pois é a temática que vou trabalhar na tese e é dos temas que mais gosto.
Nunca tinha pensado em património cultural desta forma. Ora, a locução património
cultural junta dois elementos linguísticos numa unidade semântica indivisível, um
substantivo (património) e um adjetivo (cultural). A junção de ambos não lhes confere
um sentido preciso ou explícito, pelo contrário, segundo António Rosa Mendes, dá um
sentido um pouco difuso. Por esse motivo, é necessário examinar este nome e este
adjetivo em separado, para que depois sim, se alcance “a significação unitária do
sintagma património cultural” (Mendes, 2012, p. 11).

Segundo o autor, o patrimonium, originariamente, era aquilo que se herdava, ou


seja, implica a ideia de herança. Herança essa que resulta para a apreensão do que possa
ser património cultural. Na língua inglesa, a expressão que equivale a património
cultural é cultural heritage, que literalmente traduzida, significa herança cultural. Esta
tradução alerta para a realidade de que o ser humano é, antes de tudo, um herdeiro.

Como António Mendes refere, os animais possuem natura, mas não possuem
cultura, pois possuem apenas uma herança genética e não cultural. Por esse motivo,
cada um, ao nascer, é como se começasse do zero absoluto, isto é, como se não tivessem
existido outros antes dele. Nós, enquanto humanos, compartilhamos com os animais a
herança genética, contudo, a cultural é exclusividade nossa. Deste modo e combinando
MPHGP
2022/2023

as expressões portuguesa e inglesa, é possível afirmar que todos somos herdeiros e que
o património cultural é a nossa herança cultural.

Ser consciente da nossa indiscutível condição de herdeiros é, efetivamente, ter


consciência histórica. E concordo com o autor quando este afirma que “ter consciência
histórica significa, desde logo, reconhecer que aquilo que somos o devemos ao nosso
passado e que, se deveras nos queremos conhecer, precisamos previamente integrar em
nós esse passado do qual dependemos” (2012, p. 15).

É certo que o passado já passou, mas não só não deixou de existir, como
continua sendo, uma vez que está presente na herança que as gerações anteriores nos
transmitiram, a qual se traduz simplesmente no mundo em que vivemos atualmente. O
imperativo humano da consciência histórica é coletivo e individual.

Cada pessoa possui uma capacidade que lhe permite continuar a ser a mesma
através das sucessivas fases que a alteram e transformam, capacidade essa que é a
memória, fundamento da identidade. Na sociedade, as funções da memória na pessoa
são desempenhadas pelo património cultural, pois, segundo o autor, este fomenta uma
solidariedade orgânica que se traduz no sentimento de pertença a uma mesma
comunidade. Gosto bastante da forma objetiva como o autor resume o património
cultural e a memória na frase “o património cultural é, para a sociedade, o que a
memória pessoal é para o indivíduo” (2012, p. 17). Na ausência de património cultural
na sociedade e na de memória para o indivíduo, ambos os casos carecem de identidade.

O autor faz referência a uma composição de António Gedeão intitulada


“Homem” e interpreta-a. Na sua visão, o reportório de instrumentos espirituais que
Gedeão utiliza representa a cultura que está traduzida nas palavras, “cinzéis, acordes,
pincéis” que representam, a literatura, a música e as artes. Considero que esta é uma
ótima interpretação e mostra a importância da atenção que deve ser dada a toda a
cultura.

Na mudança do século XV para o século XVI, os humanistas tomaram de


Cícero, a cultura do espírito e adotaram-na a fim de “dar curso ao ideal pedagógico de
refinamento do intelecto” (Mendes, 2012, p. 21). Foi desta forma que se inventou o
conceito humanístico de cultura. No século XVII, nasceram as ciências físico-naturais,
as quais não tardaram a ser incorporadas no património intelectual europeu.
MPHGP
2022/2023

O conceito nuclear de cultura fixou-se, não por acaso, na época do


Renascimento, a qual é precisamente a época em que “o património cultural se revelou a
força decisiva para sair da estagnação a que se chegara e impulsionar o futuro”
(Mendes, 2012, p. 23).

No século XV, sentiu-se uma grande urgência de uma cultura nova que
respondesse às mudanças da sociedade desse tempo. Neste sentido, os intelectuais do
Renascimento foram buscar à cultura greco-romana os elementos inspiradores da
renovação cultural que ambicionavam.

De modo a romper com os esquemas repetitivos da arte medieval, o arquiteto


Brunelleschi examinou cuidadosamente os templos e palácios romanos para recuperar
as suas formas e as adaptar na construção original de outros tipos de beleza e harmonia.
Os artistas da moderna escola fundaram-se no património artístico antigo e fundaram o
património artístico moderno.

Em simultâneo, Lorenzo Valla rompeu também com a linguagem e o estilo de


pensar medievais, conhecidos por um latim grosseiro e desvirtuado, para lhes contrapor
o regresso às fontes claras e puras dos textos clássicos escritos num latim oposto ao do
medieval, ou seja, um latim elegante. À restauração do latim seguiu-se o surto das
línguas vulgares, que conheceram as suas primeiras gramáticas na viragem do século
XV para o XVI. Resumindo muito rapidamente os dois últimos parágrafos, “o
património cultural antigo fundou o património cultural moderno” (Mendes, 2012, p.
25).

Muitos defendem que o conceito humanístico de cultura é “elitista”, no entanto,


tal como o autor, considero que esta possa ser uma acusação precipitada e injusta e que
a sociedade que o gerou é que possa ser elitista, isto é, hierárquica e estratificada, pois
só uma minoria de privilegiados tinha acesso aos bens de cultura nessa sociedade. Um
produto é excelente pela sua qualidade e “não porque apenas pode ser desfrutado por
uns poucos que têm recursos para o obter. O que importa é criar condições que
possibilitem a todos a ele aceder: nisso consiste a democratização da cultura” (Mendes,
2012, p. 27).

Na Europa dos séculos XIX e XX, ao demolirem o antigo regime que


privilegiava a nobreza e o clero e que excluía a plebe, o liberalismo e a democracia,
MPHGP
2022/2023

incrementaram a cidadania e a igualdade de direitos. E é na dignidade da pessoa


humana que se baseia hoje, os termos do 1.º artigo da nossa Constituição.

A cultura humanística e o património produzido pela mesma, não só desafiaram,


como transcenderam o seu tempo presente e chegaram até nós, mantendo toda a sua
vitalidade e atualidade, pois as emoções que experimentamos quando escutamos Bach
ou Mozart ou assistimos ao teatro de Shakespeare, por exemplo, são vitais e atuais.
Estas obras de arte continuam a comunicar connosco através e ao longo dos séculos e
são, por consequência, um dos fundamentos da cidadania ativa, segundo o autor.

Cidadão “é quem desenvolve uma personalidade autónoma e esclarecida, capaz


de determinar livremente a sua vida pessoal e de intervir plenamente na vida social”
(Mendes, 2012, p. 28). O processo da construção de cidadania ativa é eminentemente
cultural, por esse motivo, é sempre inacabado. Além do mais, enfrenta a resistência
cruel dos que beneficiam do imobilismo; uma das suas resistências consiste em espalhar
a opinião de que património e cultura não são uma necessidade imprescindível à vida
humana digna, mas constituem-se como ornamentos supérfluos, logo dispensáveis.

Há cem anos, o poeta Afonso Lopes Vieira respondeu a esta asneira com os
versos “Desgraçado do país que julgar poder viver sem arte, considerando-a como
mania de alguns doidos, ou como luxo de alguns ociosos”. No mesmo sentido, muito
antes, foi Camões que se pronunciou num único verso presente em “Os Lusíadas” –
“Porque quem não sabe arte, não na estima”. Deste modo, com o pretexto de uma
ilusória prosperidade, rompem-se os vínculos das pessoas com o seu meio, decepam-se
as suas raízes e estes indivíduos privados da sua história, memória e identidade tornam-
se presas fáceis para todas as manipulações.

As primeiras Constituições escritas remontam ainda ao final do século XVIII e


ambas surgiram de revoluções. A Constituição não é apenas uma lei, não é só a lei das
leis ou a lei fundamental. É tudo isso, mas é muito mais, é também um fenómeno
cultural e consequentemente histórico. A Constituição representa um dos padrões mais
altos do nosso património cultural.

No ano de 1976, foi aprovada a Constituição da República Portuguesa, a qual


vigora atualmente. Nas anteriores, nunca constou qualquer disposição sobre património
cultural, pois esta é a primeira democrática. Na Constituição atual, consta logo a frase
“proteger e valorizar o património cultural do povo português” como uma das “tarefas
MPHGP
2022/2023

fundamentais do Estado” presentes no artigo 9.º. Com esta Constituição, podemos


observar “o reconhecimento expresso de que o património cultural é o núcleo da
identidade portuguesa e condição da sua sobrevivência” (Mendes, 2012, p. 34).

Relativamente ao capítulo “Bens materiais”, pode-se afirmar que bens são meios
capazes de satisfazer as necessidades da pessoa humana. Neste sentido, coloca-se a
questão, um bem cultural material ou um bem cultural imaterial? De acordo com o
autor, esta questão só é relevante porque esta dicotomia serve de base a outra, a qual
coloca em oposição património cultural material e património cultural imaterial.

A Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro dispõe no seu artigo 2.º “que o património
cultural é integrado por bens materiais e por bens imateriais de interesse cultural
relevante” (Mendes, 2012, p. 35). Contudo, os bens imateriais ocupam apenas um único
artigo. Todos os bens culturais são materiais e imateriais. Ou seja, são materiais
enquanto se materializar neles o espiritual que os concebeu e são imateriais enquanto,
para além deles, estiver o espiritual que os gerou.

“O património cultural está ainda muito longe de ver reconhecido o papel que
indeclinavelmente lhe cabe em qualquer estratégia de desenvolvimento económico
sustentado” (Mendes, 2012, p. 39). Esquece-se frequentemente que o património
cultural aumenta as capacidades críticas e as opções dos indivíduos, proporcionando-
lhes autonomia e confiança no futuro.

Na perspetiva dos decisores das “políticas de modernização e desenvolvimento”,


estas mobilizam somente fatores materiais, económicos em sentido estrito. É importante
combater essa visão redutora dos processos desenvolvimentistas, pois a cultura é uma
componente essencial ao modo de estar no mundo das pessoas singulares e das
coletivas; ela dá sentido à existência humana, assim como à economia.

Os romanos tinham uma divindade, Janus Bifrons, que tinha um rosto só, mas
duas faces – a que se voltava para trás (encarando o passado feito) e a que se virava para
diante (encarando o futuro a fazer-se). “A visão do passado não é um fim em si, é
sempre um meio que se exerce em função do futuro; a visão do passado fornece, no
presente, a inspiração e o estímulo para novas experiências vitais no futuro – o
património cultural.

Gostava de concluir este trabalho com a afirmação do autor (2012, p. 18):


MPHGP
2022/2023

“Sentir o tempo é estar vivo. Talvez uma certeira definição para a morte
seja a ausência de memória. Para uma pessoa física, não ter memória é estar
morta enquanto pessoa, ainda que as restantes funções vitais se mantenham; para
uma pessoa colectiva, não ter património cultural é morta estar, ainda que na
aparência subsista. Em ambos os casos, carecem de identidade”.

Referência:

 Mendes, A., R. (2012). O que é Património Cultural. (1ª ed.). Gente Singular.
http://hdl.handle.net/10400.1/2506

Você também pode gostar