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PATRIMÔNIO HISTÓRICO

No início do século XXI, um dos campos de trabalho para os historiadores que mais crescem no
Brasil é o de patrimônio histórico. No entanto, a maioria dos cursos de graduação em História não
possui ainda em seu currículo disciplinas suficientes para contemplar tal crescimento. Em geral têm
sido os cursos de especialização, assim como as graduações e os cursos técnicos de turismo, que
respondem à demanda por profissionais que trabalhem com o patrimônio histórico e cultural
brasileiro.
A noção de patrimônio histórico tradicionalmente se refere à herança composta por um
complexo de bens históricos. Mas, apesar de ainda pouco conhecido mesmo pelos egressos dos
cursos de História do Brasil, o fato é que os especialistas vêm continuamente substituindo o
conceito de patrimônio histórico pela expressão patrimônio cultural. Essa noção, por sua vez, é
mais ampla, abarcando não só a herança histórica, mas também a ecológica de uma região. Assim,
em última instância, podemos definir patrimônio cultural (incluindo nessa ideia a de patrimônio
histórico) como o complexo de monumentos, conjuntos arquitetônicos, sítios históricos e parques
nacionais de determinado país ou região que possui valor histórico e artístico e compõem um
determinado entorno ambiental de valor patrimonial. Em sua origem, todavia, o patrimônio tem
sentido jurídico bastante restrito, sendo entendido como um conjunto de bens suscetíveis de
apreciação econômica.
A definição atual de patrimônio cultural se originou no documento elaborado pela Convenção
sobre Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, realizada em 1972 e promovida pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Tal documento
detalhou o patrimônio cultural como monumentos, ou seja, as obras arquitetônicas, de esculturas ou
de pinturas monumentais, assim como os elementos estruturais de caráter arqueológico que tenham
valor universal do ponto de vista da História, da Arte e das ciências. Durante a Convenção de
Patrimônio Cultural, a Unesco elaborou uma lista dos Patrimônios da Humanidade, cujo objetivo
era chamar a atenção mundial para identificar as propriedades de valor cultural e natural universais.
Os países que assinaram a Convenção têm obrigação de proteger os locais designados como
patrimônio da humanidade e, apesar dessa obrigação ser financeiramente custosa para eles, muitos
dos quais não possuem recursos para implementar as demandas da Convenção, das 192 nações do
mundo, 174 já ratificaram o acordo. O motivo desse interesse político é o fato de que o
reconhecimento da Unesco acerca da preservação do patrimônio cultural traz para cada país não
apenas prestígio internacional, mas desenvolvimento turístico. A Unesco reconhece sítios culturais,
sítios naturais e sítios mistos, espalhados pelos cinco continentes.
Essa política mundial de preservação despertou o interesse crescente no patrimônio cultural na
maioria dos países. Interesse que se reflete no Brasil, que tem dezesseis sítios de patrimônios da
humanidade reconhecidos pela Unesco: das cidades históricas de Ouro Preto, Olinda e Salvador aos
parques nacionais de Iguaçu e Pantanal.
É interessante observarmos que o conceito de patrimônio cultural não se restringe à produção
material humana, mas abrange também a produção emocional e intelectual. Ou seja, tudo o que
permite ao homem conhecer a si mesmo e ao mundo que o rodeia pode ser chamado de bem
cultural. Nesse sentido, recentemente a Unesco reconheceu a arte gráfica e oral do povo wajãpis,
tribo indígena do Amapá, como obra-prima do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade,
fugindo assim ao padrão de que apenas o monumental vale a pena ser rememorado pela História.
Existem, na verdade, quatro categorias de bens patrimoniais: os bens naturais, os bens materiais, os
bens intelectuais (que são o conjunto do conhecimento humano) e os bens emocionais, em que são
inseridas as manifestações folclóricas, religiosas e artísticas de cada povo.
A crescente importância do patrimônio cultural tem levado à produção de ampla literatura sobre
o tema, inclusive no Brasil. Diversos estudos vêm sendo elaborados sobre os fundamentos e os
significados do patrimônio cultural em diferentes sociedades. Além disso, no caso específico do
Brasil, a Revista do Patrimônio (publicação periódica do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - SPHAN, hoje IPHAN), tem contribuído significativamente para o
desenvolvimento dos estudos na área. Apesar de ser um periódico fundado em 1937, tal revista vem
se renovando e incorporando novos temas e outras perspectivas de pesquisa sobre patrimônio, não
apenas a estética e a histórica, mas também abordagens sociológicas e políticas.
A própria criação do SPHAN em 1937 demonstrou que já naquele momento havia preocupação
do Estado brasileiro em evitar a perda dos fragmentos materiais do passado que chamamos de
monumentos. Nesse período, a preocupação do Estado com essa preservação derivava de uma
preocupação maior, a de criar uma identidade nacional, ou de recriá-la, visto que esse é um
momento de mudança política, com o governo de Getúlio Vargas e o Estado Novo que se inquieta
em construir novas formas de identidade nacional, mais modernas. Essa é a razão pela qual
intelectuais modernistas como Mário de Andrade estavam conectados ao projeto. Surgiu daí o
processo de tombamento, ou seja, de delimitação de determinados espaços como monumentos
históricos, logo protegidos pela lei.
A participação de intelectuais e artista, como Mário de Andrade e Lúcio Costa, permitiu ao novo
órgão entrar em sintonia com a interpretação modernista da cultura brasileira e incorporar uma
noção mais abrangente de patrimônio, que abarcava obras de arte, fotografias, artefatos indígenas,
distanciando-se da perspectiva monumentalista e sacralizadora do patrimônio. Procuravam, assim,
democratizar o patrimônio nacional, oficializando como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
a produção cultural dos contextos populares e das etnias afro-brasileira e indígena. No entanto,
apesar de o Estado ter leis de proteção desde 1937, a sociedade brasileira pouco se interessou por
elas ao longo do século XX. Só recentemente esse interesse começou a ser desperto, motivado
principalmente pelo turismo cultural.
Na Constituição Brasileira de 1988, os termos de regulamentação do serviço do patrimônio
cultural, atualmente centralizados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), determinam que tal serviço objetiva a promoção do tombamento e da conservação do
patrimônio histórico e artístico nacional. O que nos leva a constatar que a ideia de patrimônio
histórico ainda está muito associada à de monumento, pois é o conjunto de sítios históricos e
monumentos o que normalmente corresponde à descrição de patrimônio histórico, sendo os alvos
principais dos tombamentos previstos por lei. Só com a atual definição de patrimônio cultural foi
que tal noção passou também a abranger heranças abstratas, e não apenas vestígios materiais.
Lembremos, entretanto, que a própria delimitação do que é monumento, do que é ou não
patrimônio é seletiva, escolhe somente os pontos do passado que queremos lembrar e rejeita os
outros. Assim, visto que a noção de monumento é seletiva e é a partir dela que se constitui o
conceito de patrimônio, a própria ideia de patrimônio cultural não pode ser a mesma para todo o
mundo, já que depende de diferentes contextos nacionais. Cada cultura tem sua noção de
patrimônio, que molda seu tipo de ação estatal. E um dos grandes desafios da Unesco, nesse
sentido, é conciliar as diversas interpretações do patrimônio e propor ações internacionais que
reforcem os esforços de preservação.
Nessa perspectiva, para entendermos o significado de patrimônio histórico precisamos primeiro
compreender o que é monumento. Para Jacques Le Goff, monumento é tudo o que pode evocar o
passado e recordar, até mesmo o escrito. Para ele, a diferença entre monumento e documento não
está no fato de o primeiro ser vestígio material e o outro, vestígio escrito, mas no fato de que o
monumento é voluntariamente selecionado pela sociedade para lembrar o passado que ela escolheu
lembrar. O documento, por sua vez, foi visto durante muito tempo pelos historiadores como registro
do passado como um todo, ou pelo menos, não apenas daquele passado escolhido pela sociedade
como o passado ideal. Le Goff foi mais além afirmando que todo documento tem sua dose de
monumento, ou seja, não é imparcial. A crítica ao documento, assim, não é novidade, mas
precisamos também fazer a crítica do monumento.
Atualmente, com a retomada da preocupação com o patrimônio cultural no Brasil, vemos um
incremento do turismo cultural que valoriza igualmente manifestações folclóricas, sítios históricos e
arqueológicos e reservas ambientais. Do ponto de vista do patrimônio histórico, no entanto, talvez
pela pequena atuação de historiadores nesse campo de trabalho emergente, a crítica histórica tem
sido pobre. Ou seja, a busca da sociedade por se interessar por seu passado ainda é baseada quase
sempre em monumentos, em sobras de um passado que ela escolheu lembrar. Os turistas procuram,
dessa forma, principalmente as “idades de ouro” do Brasil, os momentos gloriosos do passado, ou o
que queremos considerar como tal: o Recife holandês, os franceses de São Luís, o bandeirantismo
paulista, as cidades de ouro de Minas Gerais. No entanto, tal olhar muitas vezes é acrítico, pois
busca apenas o pitoresco e não se preocupa com os problemas estruturais, com a história que
moldou cada período, com a razão de ser daqueles monumentos. Cabe a nós, historiadores, mudar
esse olhar e aproveitar o interesse pelo patrimônio cultural para desenvolver verdadeiras
divulgações históricas em torno de cada um desses sítios. Cabe a nós ultrapassar a própria
monumentalidade e começar a transformar aqueles recortes do passado em pontes para o
conhecimento crítico da História. Além disso, precisamos nos perguntar constantemente se a
comunidade tem, de fato, alguma identificação com aquele passado, “glorioso” ou não, que está
sendo evocado pelo patrimônio, sempre nos preocupando também em estabelecer formas de
trabalhar a relação cidadania e educação patrimonial, pois não há como valorizar o passado sem a
tomada de consciência social, assim como não há conscientização cidadã sem o conhecimento da
História.

Ver também
Antiguidade; Arte; Arqueologia; Barroco; Cultura; Folclore; Fonte Histórica; Iconografia;
Indústria Cultural; Interdisciplinaridade; Memória; Mito; Tradição.

Sugestões de leitura
ATAÍDES, J. M. de; MACHADO. L. A.; Souza, M. A. T. de. Cuidando do patrimônio cultural.
Goiânia: Ed. UCG, 1997.
BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
BO, J. B. L. Proteção do patrimônio na Unesco: ações e significados. Brasília: Unesco, 2003.
FONSECA, M. C. L. O patrimônio em processo: trajetória da política de preservação no Brasil. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.
FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2001.
______. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.
KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo:
Contexto, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994. PINSKY, Jaime. As
primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2001.
PINSKY, Jaime (org.). O ensino de História e a criação do fato. 11. ed. São Paulo: Contexto,
2004.
______; FUNARI, Pedro Paulo (Orgs.). Turismo e patrimônio cultural. 4. ed. São Paulo: Contexto,
2005.

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