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KARL JASPERS

INICIAÇÃO
FILOSÓFICA
TRADUÇÃO
D E

MANUELA PINTO DOS SANTOS

GUIMARÃES EDITORES
PREFÁCIO
blemas específicos da filosofia contemporânea no seu
É com particular
aspecto satisfação
académico. que
Não vejo aparecer de somenos
os considero
em versão portuguesa, graças ao interesse dessa edi- importância, mas} por enquanto, ainda é cedo para
torial, a minha «Iniciação Filosófica». É ela consti- comprovar o efeito que poderão produzir na cons-
tuída por uma série de prelecções radiofónicas profe- ciência humana. Não constituem o tema deste pe-
ridas no intuito de transmitir a mais vastos círculos queno livro.
o conhecimento do pensamento filosófico, com a serie-
dade incompatível com uma divulgação banal, e sem Basileia, Janeiro de 1960.
prescindir da exigência de um esforço espiritual sem-
pre inerente ao acto de filosofar. Que este meu desíg- KARL JASPERS
nio se cumpriu até certo ponto prova-o a tiragem
de mais de 50.000 exemplares das edições alemãs.
Peço ao leitor que não espere encontrar neste
livro um compêndio de filosofia sob forma de disci-
plina científica. Trata-se sobretudo de uma rememo-
ração das origens do interesse filosófico. Esforcei-me
por atingir esse fito e por expor certos pensamentos
fundamentais e essenciais para a vida com a máxima
simplicidade. Também não abordo nenhum dos pro-
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vos irrecusáveis, é para todos válido tornou-se conhe-


cimento científico, deixou de ser filosofia para se
referir ao domínio particular do que é susceptível
de conhecimento.
Por outro lado, o pensamento filosófico não tem,
como as ciências, o carácter de um processo progres-
I. QUE É A FILOSOFIA? sivo. Estamos, decerto, mais adiantados do que Hipó-
crates, o médico grego. Mas já não podemos dizer
que estejamos mais adiantados do que Platão, excep-
Muito se tem discutido o que seja a filosofia tuando apenas o conjunto material de conhecimentos
e qual o seu valor. Uns esperam dela extraordinárias científicos que teve ao seu dispor. No filosofar prò-
revelações, outros rejeitam-na como pensamento sem
priamente dito, talvez nem sequer chegássemos ainda
até onde ele chegou.
objecto. Uns respeitam-na enquanto valioso esforço
de pessoas invulgares, outros desprezam-na consi- Deve pertencer à índole própria da filosofia esta
derando-a supérflua lucubração de sonhadores. Uns carência de reconhecimento unânime de qualquer das
opinam que é algo que a todos interessa e, portanto, suas formas, pela qual diverge das ciências. O modo
deverá no fundo ser simples e compreensível, outros da certeza que nela se pode alcançai não é cientí-
julgam-na tão difícil que não vale a pena abordá-la. fico, ou seja idêntico para todos os entendimentos;
De facto, o que corre sob o nome de filosofia oferece- é o de uma «certificação» que só é bem sucedida
-nos exemplos que permitem juízos destarte contra- se o homem na sua totalidade nela cooperar. Ao
ditórios. passo que os conhecimentos científicos se referem
a objectos particulares que não estão necessaria-
Para quem acredita na ciência, o que a filosofia
mente ao alcance do conhecimento de todos, a filo-
tem de pior é mão atingir conclusões geralmente váli-
sofia refere-se à totalidade do ser, que importa a
das, que se possam aprender e portanto possuir.
todo o homem enquanto homem, procura uma ver-
Enquanto as ciências alcançaram nos seus domínios
dade que, onde quer que fulgure, comove mais pro-
resultados necessariamente certos e geralmente reco-
fundamente do que qualquer conhecimento cien-
nhecidos como tal, a filosofia não logrou a mesma
tífico.
evidência após milenários esforços. Não se pode negar
que na filosofia não há unanimidade relativamente O estudo da filosofia está, aliás, ligado ao das
a conhecimentos definitivos. Aquilo que, por moti- ciências. Pressupõe o estado avançado que estas atin-
giram na era actual, mas a filosofia tem outra ori-
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gem e sentido. Surge, antes de qualquer ciência, sempre eu». Este rapaz atingiu uma das origens da
quando os homens despertam. certeza, a consciência do ser na autoconsciência ;
pasma perante o enigma do eu, incompreensível a
partir de qualquer outra coisa. Detém-se em interro-
Esta filosofia sem ciência surge-nos, por exem- gação perante este limite.
plo, em alguns fenómenos curiosos: Outra criança ouviu contar a história da criação
Primeiro : em assuntos filosóficos quase todos se do mundo: no princípio criou Deus os Céus e a Terra...
consideram competentes. Enquanto se reconhece que e logo perguntou: «o que havia então antes do prin-
para a compreensão das ciências é necessária uma cípio?» Esta criança apreendeu a ilimitada possi-
aprendizagem, uma disciplina e um método, em rela- bilidade de interrogação, a impossibilidade de sus-
ção à filosofia todos se arrogam o direito de levan- pensão do entendimento para o qual não há uma
tar a voz sem mais e dar a sua opinião. Julga-se resposta concludente.
condição suficiente a própria condição humana, o Passeando num bosque, outra criança ouve con-
destino e a experiência próprias. tar histórias de silfos que ali dançam de noite...
A exigência do livre acesso de todos à filosofia «Mas não há silfos!...» De outra vez falam-lhe ape-
tem de ser reconhecida. Os mais sinuosos caminhos, nas de realidades, fazem-na observar o movimento
as mais complexas vias que os seus entendidos sigam, aparente do Sol, explicam-lhe o problema do movi-
só terão sentido se desembocarem na condição hu- mento de translação da Terra e apresentam-lhe os ar-
mana definida pelo modo como se «certifica» do ser gumentos a favor da forma esférica do globo e da ro-
e de si própria nele inclusa. tação em torno de si próprio... «Isto é que mão é ver-
Segundo: o pensamento filosófico deverá ser dade», diz a menina e bate com o pé no chão, «a Terra
sempre original. Cada homem deverá realizá-lo por está fixa. Só acredito naquilo que vejo». Replicam-
si próprio. -lhe: «Então também não acreditas em Deus, porque
As perguntas das crianças são um admirável não o podes ver» ; a criança cala-se e responde muito
sinal de que o homem, enquanto homem, filosofa decidida, após curta pausa: «Se não fosse Deus nós
espontâneamente. Mão é raro ouvir-se da boca das não existiríamos». Esta criança sentiu o espanto
crianças algo que, pelo seu sentido, mergulha direc- perante a existência que não provém de si própria.
tamente nas profundezas do filosofar. Referindo E entendeu a diferença entre os dois problemas: o do
exemplos : objecto no mundo; outro relativo ao ser e à nossa
Uma criança mostra-se surpreendida: «tento existência na sua totalidade.
constantemente pensar que sou outro e afinal sou Outra menina sobe uma escada para fazer uma
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visita. Apercebe-se de que tudo se vai tornando dife- a voz de uma verdade que nos perturba. No início
rente, ficando para trás e desaparecendo, como se de certas doenças mentais há revelações metafísicas
deixasse de existir. «Mas há-de haver alguma coisa espantosas, cuja forma e linguagem nem sempre é,
que seja firme... hei-de fixar que estou subindo a aliás, de molde a que a sua expressão tenha um valor
escada para visitar minha tia». O temor e o espanto objectivo, a não ser em casos como os do poeta
que provoca a transitoriedade efémera e universal Hölderlin ou do pintor Van Gogh. Mas quem os pre-
convidam-na a procurar, perplexa, uma solução. senceia não pode furtar-se à impressão de que se
Poder-se-ia apresentar uma filosofia infantil rompeu o véu sob o qual habitualmente vivemos. Tam-
muito rica, se nos déssemos ao trabalho de respigá- bém muitas pessoas normais tiveram a experiência
-la. Em relação a estes pensamentos profundamente da revelação de misteriosos e profundos significados
sérios não colhe a objecção segundo a qual as crian- no estado anterior ao despertar do sono, que se des-
ças teriam ouvido aos pais ou a estranhos estas res- vanecem ao acordar e apenas se sentem por se
postas. Outra objecção, a de que não desenvolvem terem tornado impenetráveis. Há um sentido pro-
esses pensamentos que seriam, portanto, mani- fundo no adágio que afirma que crianças e loucos
festações fortuitas, ignora o facto de as crianças dizem a verdade. Porém, a espontaneidade criadora
possuírem muitas vezes uma genialidade que se perde a que devemos os grandes pensamentos filosóficos
na idade adulta, como se, no decorrer dos anos, nos não se encontra nestes casos ; surge em alguns raros
deixássemos envolver e aprisionar por convenções e grandes espíritos, independentes e ingénuos, que apa-
opiniões, por disfarces e juízos sem fundamento, per- receram no curso dos séculos.
dendo assim a espontaneidade da infância. Esta é Quarto: dado que a filosofia é imprescindível ao
ainda receptiva, no estado em que a vida é contínua homem, está sempre presente e manifesta; nos pro-
criação; sente, vê e pergunta, para um pouco mais vérbios tradicionais, em máximas filosóficas corren-
tarde tudo esquecer. Abandona o que se lhe revelou tes, em convicções dominantes como sejam, por exem-
num instante e fica surpreendida quando, mais plo, a linguagem e as crenças políticas ; está presente,
tarde, os adultos que registaram os seus gestos e sobretudo, nos mitos anteriores ao início da história
palavras lhe contam o que disse e o que perguntou em Não se pode fugir à filosofia. Pode perguntar-se ape-
criança. nas, se é consciente ou inconsciente, boa ou má, Con-
Terceiro: tal como nas crianças, nos psicopatas fusa ou clara. Quem recusar a filosofia está reali-
manifesta-se também uma filosofia espontânea. zando um acto filosófico de que não tem consciência.
Parece que por vezes, embora raramente, se que-
bram os laços do que costuma estar velado e se ouve
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Que é então a filosofia que se manifesta de um tâneamente a marcha do pensamento vivo e a cons-
modo tão universal e sob formas tão insólitas? ciência desse pensamento (reflexão), isto é, o acto
A palavra grega filósofo (philosophos) é formada e o respectivo comentário. Só a partir da tentativa
em oposição a sophos, significa o que ama o saber, pessoal poderemos aperceber-nos do que se nos depara
em contraposição ao possuidor de conhecimentos que no mundo com o nome de filosofia.
se designava por sábio. Este sentido da palavra man- Podemos, no entanto, enunciar outras fórmulas
teve-se até hoje: é a demanda da verdade e não a relativas ao sentido da filosofia. Nenhuma delas
sua posse que constitui a essência da filosofia, muito esgota esse sentido e nenhuma é a única válida. Na
embora tenha sido frequentemente traída pelo dog- antiguidade dizia-se que a filosofia era (conforme
matismo, isto é, por um saber expresso em dogmas o objecto) conhecimento das coisas divinas huma-
definitivos, perfeitos e doutrinais. Filosofar signi- nas, conhecimento do sendo enquanto sendo; era
fica estar-a-caminho. As interrogações são mais (quanto aos fins) aprender a morrer, o esforço
importantes do que as respostas e cada uma destas pensante para atingir a bem-aventurança ; era (em
transforma-se em nova interrogação. sentido total), aproximação do divino, o saber
O estar-a-caminho, que é o destino do homem dos saberes, a arte das artes, a ciência em absoluto
no tempo, envolve a possibilidade de profundas satis- que não se dirige apenas a um único domínio.
fações e até mesmo, em certos momentos sublimes, Hoje, ao tratar da filosofia, poderemos utilizar as
pode conceder a plenitude. Esta mão se encontra seguintes fórmulas para indicar o seu sentido :
nunca num explicitável ter-ficado-ciente, nem em dog-
mas e profissões de fé; realiza-se històricamente no — Contemplação da realidade na origem;
assumir da condição humana pela qual o próprio ser — Apreensão da realidade pelo modo como convi-
nasce. O sentido do filosofar reside na conquista da vemos connosco pelo pensamento na intimidade
realidade da situação em que sempre o indivíduo se dos nossos actos;
encontra. — Consciência da amplidão do englobante;
Estar-a-caminho em demanda de algo ou alcançar —Comunicação de homem para homem, em todas
a serenidade e a plenitude de um instante, não são as direcções da verdade, numa arriscada mas
definições da filosofia. A filosofia a nada se subor- generosa porfia;
dina ou se equipara. Não deriva de algo diferente.
— Vigilância da razão, paciente e incansável,
Cada filosofia define-se a si própria pelo modo como
mesmo perante o que há de mais estranho e
se realiza. Para saber o que é filosofia tem de se
até em face do iminente malogro.
fazer uma tentativa. Só então a filosofia será simul-
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A filosofia é o acto de concentração pelo quai Acresce ainda a simples norma de utilidade pro-
o homem se torna autênticamente no que é e parti- veniente da vida quotidiana, do bom-senso equili-
cipa da realidade. brado, perante o qual a filosofia claudica. Já Thaïes,
Embora a filosofia possa inspirar qualquer pes- considerado o primeiro filósofo grego, fora alvo do
soa, mesmo uma criança, sob a forma de pensamen- riso da sua serva que o viu cair no poço quando
tos simples e eficazes, a sua elaboração consciente observava o firmamento. Porque procuraria o mais
é tarefa nunca totalmente cumprida e sempre repe- distante, quando se mostrava tão desajeitado em re-
tida na sua totalidade presente; assim surge nas lação ao mais próximo!
obras dos filósofos maiores e, em eco, nas dos meno- A filosofia tem, pois, que justificar-se, o que é
res. A consciência desta tarefa, qualquer que seja impossível. Não pode justificar-se partindo de qual-
a forma que assuma, manter-se-á perenemente en- quer outra coisa que a legitime pela sua utilidade.
quanto os homens forem homens. Só pode voltar-se para as forças que, de facto, em
Não é de hoje o ataque radical à filosofia, que todos os homens o impelem a filosofar. Pode saber
a rejeita globalmente por supérflua e prejudicial. que se dedica à causa do homem enquanto homem,
Para que existe? — dizem. Não resiste à prova da alheia a qualquer problema de utilidade ou prejuízo,
desgraça ! e que se processará sempre enquanto houver homens.
O pensamento eclesiástico autoritário repudiou Nem as forças que a hostilizam podem eximir-se a
a filosofia autónoma, alegando que afastava de Deus, reflectir sobre o sentido que lhes é próprio e a pro-
que era uma sedução profana e corrompia a alma duzir certas formas de pensamento pragmáticas, que
com futilidades. O pensamento político totalitário são um sucedâneo da filosofia e estão condiciona-
apresentou outra objecção: os filósofos teriam ape- das pelo efeito que pretendem obter —como seja o
nas interpretado o mundo de diversos modos, o que marxismo ou o fascismo. Estas mesmas formas de
urgia era transformá-lo. Para ambas estas formas pensamento atestam a inelutabilidade da filosofia.
de pensamento se afigurava perigosa a filosofia, por- A filosofia está sempre presente.
que dissolvia a ordem, fomentava o espírito de inde- Não pode lutar para se impor, não pode demons-
pendência e, concomitantemente, o da insurreição e trar-se, mas pode comunicar-se. Não opõe resistên-
da revolta, ludibriando os homens e desviando-os da cia quando é repudiada, não triunfa quando é aten-
sua missão real. Tanto a força de atracção de um dida. Vive equânime no fundo de humanidade que
além-terreno iluminado pelo Deus da Revelação como permite que todos se liguem com todos. Há dois milé-
a força açambarcadora de um mundo sem Deus pre- nios e meio que se elabora no Ocidente, na China
tendem aniquilar a filosofia. e na índia uma filosofia sistemática e de estruturas
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altamente complexas. Uma grande tradição apela


para nós. A multiplicidade dos modos de filosofar,
as contradições e as pretensões à verdade que reci-
procamente se excluem não logram impedir que haja
no fundo uma unidade, que ninguém possui, mas
em torno da qual gravitaram sempre todos os esfor-
ços dignos de consideração: a eterna filosofia ima,
a philosophia perennis. Estamos atidos a este fun-
damento histórico do nosso pensamento se quiser-
mos meditar no que é essencial com a mais lúcida
consciência.
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tigação do universo. Daí nasceu a filosofia, o maior


bem que os deuses concederam aos mortais». Aristó-
teles disse: «foi a admiração que incitou os homens
a filosofar: admiraram-se primeiro do que lhes acon-
tecia e lhes era estranho, depois, pouco a pouco,
foram mais longe e inquiriram dos movimentos da
Lua, do Sol, dos astros e da criação do universo».
II. ORIGENS DA FILOSOFIA
O espanto impele ao conhecimento. Pelo espanto
me torno consciente da minha ignorância. Procuro
conhecer por amor ao próprio conhecimento e não
A história da filosofia iniciou-se há dois milénios
«para satisfazer qualquer necessidade trivial».
e meio enquanto pensamento metódico; enquanto pen-
A filosofia é como um despertar da vinculação
samento mítico começou muito antes.
às necessidades vitais. Consuma-se esse despertar
Princípio, porém, é algo diferente de origem. O quando se contemplam as coisas celestes e terres-
início é histórico e dá aos vindouros um número tres sem qualquer fim utilitário e formulando estas
crescente de pressupostos constituídos pela elabora- perguntas: o que será e de onde provirá tudo isto?
ção intelectual já realizada. Origem, porém, é a fonte Interrogações cujas respostas não têm qualquer uti-
de onde dimana o impulso do filosofar. É este que lidade, mas conferem em si uma satisfação.
confere sentido a cada uma das filosofias vigentes Segundo: satisfeito o espanto e a admiração pelo
e que permite entender as filosofias anteriores. conhecimento do ser logo surge a dúvida. É certo
Este impulso original é multímodo. Do espanto que os conhecimentos se acumulam, mas nada é
provém a interrogação e o conhecimento, da dúvida seguro se não comprovado criticamente. As percep-
em relação ao que se conhece deriva a comprova- ções dos sentidos condicionados pelos nossos órgãos
ção crítica e a clara certeza, da comoção do homem sensoriais são ilusórias ou, pelo menos, não concor-
e da consciência da sua perdição provém a interroga- dantes com o que as coisas são em si independen-
ção relativa a si próprio. Atentemos primeiramente temente da nossa percepção. As normas do pen-
nestes três motivos. samento são as do entendimento humano. Enre-
Primeiro: Platão disse que a origem da filosofia dam-se em insolúveis contradições. Constantemente
era o espanto. O sentido da visão permitiu-nos «con- os enunciados se opõem uns aos outros. Filosofando
templar as estrelas, o sol e o firmamento celeste». apodero-me da dúvida, procuro conduzi-la às últi-
Esse espectáculo deu-nos «o impulso para a inves- mas consequências radicais e, então, entrego-me ao
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prazer da negação pela dúvida que tudo invalida e mento o que de mim depende, nomeadamente as for-
não me deixa avançar, ou procuro encontrar tuna mas e conteúdos das minhas representações.
certeza ao abrigo de qualquer dúvida que resista
honestamente a todas as críticas.
A célebre proposição de Descartes: «penso, logo Certifiquemo-nos da nossa situação humana. Esta-
existo» era para ele uma certeza indubitável, embora mos sempre em determinadas situações. Estas modi-
duvidasse de tudo o mais. O mais completo en- ficam-se, surgem novas oportunidades; se as des-
gano do meu conhecimento, de que talvez não me perdiçarmos, não tornam a oferecer-se. Por mim
aperceba, não pode todavia iludir-me quanto ao facto posso agir para alterar a situação. Há, porém, situa-
de eu existir, mesmo que o meu pensamento se ções que se mantêm essencialmente idênticas, mesmo
engane. quando a sua aparência momentânea se modifica
A dúvida torna-se, enquanto dúvida metódica, a « se oculta a sua força avassaladora: tenho que mor-
comprovação crítica de todo o conhecimento. Por- rer, tenho que sofrer, tenho que lutar, estou sujeito ao
tanto, sem a dúvida radical não há autêntica filo- acaso e incorro inelutàvelmente em culpa. A estas
sofia. Decisivo é saber como e onde, pela própria dú- situações fundamentais da nossa existência damos
vida, se alcança o chão firme da certeza. o nome de «situações-limites». Quer isto dizer que são
Terceiro: entregue ao conhecimento dos objectos situações que não podemos transpor nem alterar.
do mundo, procedendo pela dúvida que é a via da A tomada de consciência destas situações-limites
certeza, encontro-me junto das coisas, não penso em é, após o espanto e a dúvida, a origem mais pro-
mim nem nos meus fitos, na minha felicidade ou sal- funda da filosofia. Na existência comum esquivamo-
vação. Esquecido de mim, sinto-me satisfeito na aqui- -nos a elas muitas vezes, fechando os olhos e vivendo
sição desses conhecimentos. como se não existissem. Esquecemos que temos de
Isto é diferente quando tomo consciência de mim morrer, esquecemos a nossa culpabilidade e a nossa
na minha própria situação. sujeição ao acaso. Defrontamo-nos assim apenas com
O estóico Epicteto disse: «a origem da filosofia situações concretas que resolvemos em nosso bene-
é a tomada de consciência da nossa fraqueza e impo- fício e às quais reagimos por planos e actos insti-
tência». De que poderei socorrer-me na minha impo- gados pelos interesses da nossa existência no mundo.
tência? E a sua resposta foi: considerar indiferente Às situações-limites, porém, a nossa reacção é dife-
tudo o que sendo necessário não está em meu poder, rente: ou as ignoramos ou, se realmente as apreende-
e, por outro lado, esclarecer e libertar pelo pensa- mos, desesperamos e readquirimo-nos a nós pró-
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prios por uma metamorfose da nossa consciência contra todos e por fim aboli-la ; pretende obter segu-
do ser. rança por via da solidariedade recíproca.
Mas também aqui há limites. Se houvesse esta-
dos em situação tal que cada um dos seus cidadãos
Podemos definir a nossa situação humana de convivesse com os outros segundo as exigências da
outro modo: como ausência de garantia de tudo o solidariedade absoluta, estariam então asseguradas a
que está no mundo. justiça e a liberdade totais. Só nesse caso, se uma
A ausência de problematicidade em nós aceita o injustiça fosse cometida fariam bloco comum contra
mundo como absoluto. Numa situação feliz rejubila- ela. Nunca assim foi. Houve sempre apenas um cír-
mos com a nossa força, acalentamos uma confiança culo restrito, ou só alguns homens isolados, que ver-
impensada e nada conhecemos para além do nosso pre- dadeiramente são uns para os outros nas situações
sente. Atingidos peia dor, pela fraqueza, pela impo- mais cruciantes, até na própria impotência. Não há
tência, desesperamo-nos. E se vencermos essas situa- estado algum, nem igreja, nem sociedade que pro-
ções e continuarmos vivos, deixamo-nos novamente teja absolutamente. Essa protecção foi uma bela
embalar, alheados e esquecidos. miragem de épocas tranquilas em que os limites esta-
O homem, porém, aprendeu muito com essas expe- vam velados.
riências. A ameaça mostrou-lhe que era urgente uma à total insegurança do mundo contrapõe-se, po-
garantia. O domínio da natureza e a comunidade rém, este outro facto: no mundo há o que é digno
humana são as garantias de existência que encon- de crença, o que inspira confiança, o solo firme que
trou, nos suporta: a pátria e a terra natal, os pais e os
O homem apodera-se da natureza para se asse- antepassados, os irmãos e os amigos, a esposa. Há
gurar do seu serviço ; a natureza deverá ser domes- o fundamento histórico do património tradicional da
ticada pelo conhecimento e pela técnica. língua materna, as crenças, as obras dos pensadores,
Todavia, o próprio domínio da natureza é alea- dos poetas e dos artistas.
tório. Constantemente ameaçado, por vezes malogra- Mas também este património tradicional não nos
-se totalmente. Não se pode abolir o trabalho penoso, oferece refúgio nem podemos confiar nele em abso-
o envelhecimento, a doença e a morte. O proces- luto. Pois, sob a forma em que se nos apresenta,
so que assegura o domínio da natureza é um caso é todo obra do homem, Deus não se encontra em
particular no enquadramento da total insegurança. nenhum lugar do mundo. A tradição é sempre simul-
Por outro lado, o homem congrega-se numa comu- taneamente um problema. A todo o tempo o homem,
nidade para restringir 'a interminável luta de todos em confronto com ela, tem de descobrir espontâ-
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neamente o que para ele é certeza, ser e segurança. sente como fronteira permanente da sua existência;
Contudo, na insegurança geral do mundo serve-nos pode recorrer a soluções e paliativos fantásticos
de indicação, impede a completa satisfação mundana, ou aceitá-lo honestamente calando-se perante o
aponta-nos algo diferente. indecifrável. O modo como se apercebe do fracasso
é o fundamento da sua evolução.
Nas situações-limites revela-se o nada ou torna-se
As situações-limites — morte, acaso, culpa e inse- sensível aquilo que autênticamente é, apesar de e
gurança — mostram o fracasso. Que farei eu perante para além do ser mundano evanescente. O próprio
este fracasso absoluto a cuja intuição me não posso desespero, pelo facto de ser possível no mundo,
furtar se honestamente o apreendo? aponta para além do mundo.
Não nos satisfaz o conselho do estóico que nos Por outras palavras : o homem busca a redenção.
recomenda o refúgio na independência do pensamento A redenção é-lhe oferecida pelas grandes religiões
que é a liberdade própria. Errou o estóico porque, universais. O seu sinal é uma garantia objectiva da
não viu quão profundamente radical é a impotência verdade e realidade da redenção. Seguir esta via con-
do homem. Passou-lhe também despercebida a inde- duz ao acto da conversão do indivíduo. Isto não pode
pendência do pensamento que em si é vazio e está a filosofia oferecer-lhe. Todavia, o filosofar é um
atido ao que lhe é dado; esqueceu também a possi- triunfo sobre o mundo, o análogo da redenção.
bilidade da loucura. O estóico deixa-nos desolados
ma simples liberdade do pensamento, porque este
carece de conteúdo. Deixa-nos sem esperança porque
Em resumo: a origem da filosofia é o espanto,
exclui qualquer tentativa espontânea de íntima supe-
a dúvida e a consciência da perdição. Em qualquer
ração, bem como a plenitude obtida pela dádiva de
dos casos, principia por uma comoção que abala o
nós próprios, que o outro nos restitui, em amor e
homem e o incita à procura de uma finalidade.
esperançosa expectativa do possível.
Platão e Aristóteles procuraram a essência do
Mas o que o estóico pretende é autêntica filo-
ser no espanto.
sofia: a sua origem nas situações-limites provoca
Descartes procurou na ilimitada incerteza uma
o impulso fundamental para encontrar o acesso ao
certeza irrecusável.
ser no próprio fracasso.
Os estóicos procuraram na dor da existência a
O modo como o homem sente o fracasso é deci-
sivo: pode não dar por ele e ser, de facto, dominado, paz da alma.
por fim, ou apercebê-lo nitidamente mantendo-o pre- Todos estes abalos têm a sua verdade e, consoante
a sua encarnação histórica, possuem noções e lingua-
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gens correspondentes. Por via da história penetra- vez mais homens que se não entendem, que se encon-
mos nas origens que ainda estão presentes em nós. tram para logo se dispersarem, indiferentes uns aòs
Ansiamos por encontrar chão firme, profundidade outros de tal modo que já não há fidelidade nem
do ser e eternidade. comunidade incontestável e digna de confiança.
Mas talvez nenhuma destas origens seja para Recupera agora decisiva importância uma situa-
nós a mais incondicional e original. O ser patente rão humana geral que, de facto, sempre existiu:
à nossa admiração deixa-nos respirar fundo, mas querer concordar com os outros e todavia não poder;
leva-nos a fugir dos homens e a deixar-nos apode- a crença, precisamente quando assegurada, colide
rar pela magia da pura metafísica. A certeza com as crenças alheias; algures, num limite, a per-
irrecusável pertence aos domínios da orientação no sistente luta sem esperança de conciliação, terminada
mundo por intermédio do conhecimento científico. pela submissão ou pelo aniquilamento ; a passividade
A inabalável firmeza de alma do estoicismo vale ape- e a indolência adoptada cegamente pelos que não
nas na desgraça como tábua de salvação na iminên- têm crença ou pelos que obstinadamente a desafiam;
cia da ruína completa, mas é em si própria desti- e nada disto, afinal, é secundário ou destituído de
tuída de conteúdo e de vida. importância.
As incitações da filosofia actual mão se reduzem Poderia sê-lo se no meu isolamento houvesse uma
às três motivações actuantes, do espanto e do conhe- verdade que me bastasse. O sofrimento devido à falta
cimento, da dúvida e da certeza, da perdição e da de comunicação e essa satisfação única que a autên-
autocriação. tica comunicação nos proporciona não nos dariam
Nesta nossa época em que se verifica uma ruptura tão forte abalo filosófico se, na nossa absoluta soli-
na continuidade histórica, nesta era de inaudita deca- dão, tivéssemos a certeza da verdade. Eu, porém,
dência e de oportunidades só obscuramente pressenti- apenas sou alguém com o outro, sozinho nada sou.
das, as três motivações que evocámos são válidas mas A comunicação, que não é apenas de entendimento
insuficientes. Estão sujeitas a uma condição que é para entendimento ou de espírito para espírito, é de
a comunicação entre os homens. existência para existência, utiliza os conteúdos e valo-
Até hoje havia na história uma natural solida- res impessoais apenas como meios. A justificação e
riedade de homem para homem, em comunidades o ataque servem apenas para uma aproximação, não
estáveis, em instituições e no espírito em geral. O para alcançar um predomínio. A luta é um duelo de
próprio indivíduo solitário estava, por assim dizer, amor em que se facultam ao contendor todas as
acompanhado na sua solidão. Hoje, a decadência é nossas armas. A certeza do ser autêntico reside "uni-
predominantemente sensível no facto de haver cada camente na comunicação pela qual uma liberdade
INICIAÇÃO FILOSÓFICA 31

enfrenta outra, em total e mútuo confronto, sendo


todos os preliminares apenas um degrau e tudo o
que é decisivo reciprocamente pressuposto no que
está em questão. Na comunicação se consuma toda
a outra verdade, só nela sou eu próprio, não só
vivendo, mas cumprindo a vida. Deus só indirecta-
mente se mostra e nunca sem o amor de homem para
homem; a certeza evidente é particular e relativa,
subordinada ao todo; o estoicismo torna-se assim
uma atitude vazia e petrificada.
A posição filosófica fundamental, cuja expressão
conceptual expomos, radica no abalo motivado pela
ausência de comunicabilidade, no anseio de autêntica
comunicação e na possibilidade de um duelo de amor
que una profundamente um ser a outro ser.
E esta filosofia radica simultâneamente nos três
abalos filosóficos, todos eles condicionados pela ajuda
ou impedimento que significam para a comunicação
do homem com o homem.
Assim, a origem da filosofia é o espanto, a dúvida
e a experiência das situações-limites ; mas, em último
lugar e incluindo todas estas motivações, é a vontade
de autêntica (comunicação. Isto revela-se logo de prin-
cípio pelo facto de toda a filosofia ansiar pela parti-
cipação, exprimir-se, pretender ser ouvida ; essencial-
mente é a própria comunicabilidade que está indisso-
lùvelmente ligada à verdade.
Na comunicação a filosofia alcança a sua fina-
lidade, o fundamento e o sentido último de todos
os fins: a apreensão do ser, a claridade do amor,
a plenitude da paz.

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