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ÉTICA DA VIRTUDE1
Julia Annas
Na tradição da filosofia ocidental desde o século V a.C., a forma padrão de teoria ética tem
sido alguma versão do que é hoje chamado de ética da virtude; reais alternativas teóricas
surgem apenas com Kant e com o consequencialismo. Este persistente domínio não é muito
surpreendente, dado que a preocupação com a virtude é uma preocupação com o tipo de
pessoa que você é, e isto sempre foi importante para questões éticas da vida real, nas
sociedades ocidentais. (E, como está se tornando cada vez mais familiar, isso também é
verdade de algumas sociedades e tradições filosóficas não-ocidentais, particularmente as
asiáticas.)
A tradição tem assumido várias formas diferentes, e separar estas será útil para
identificar uma estrutura subjacente. Vou também falar um pouco sobre a maneira em que a
ética da virtude foi ignorada ou banalizada pela filosofia ética analítica, por cerca de cem
anos, para ressurgir vigorosamente durante os quarenta últimos anos.
A ética da virtude é melhor compreendida se atentarmos para as características
centrais do que eu chamarei de a versão clássica da tradição. Sua estrutura teórica foi
originalmente enunciada, de maneira clara, por Aristóteles; mas é equivocado pensá-la
como especificamente aristotélica, uma vez que ela está na base de toda teoria ética antiga
(Annas, 1993, 1999). A versão clássica é o nosso melhor ponto de partida no tema, pois
temos uma grande quantidade de material que foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo de
centenas de anos através de amplo debate e que contém os meios para o estabelecimento de
toda a estrutura teórica [da ética da virtude], e para compreender o que nela é básico e o que
é mais paroquial. As teorias éticas da virtude contemporâneas ainda não alcançaram uma tal
massa crítica de argumentação e teoria, e a maioria ainda é parcial ou fragmentada. Como
vou mostrar, somente quando tivermos todo aquele quadro [teórico] em vista poderemos
compreender outras teorias que se denominam de ética da virtude. Assim, eu primeiramente
1
Tradução de Leonardo de Mello Ribeiro, do original ‘Virtue Ethics’, in Copp, D., The Oxford Handbook of
Ethical Theory, Oxford: Oxford University Press, 2006.
2
que o aprendiz pense por si mesmo sobre as razões segundo as quais ele age, e assim sobre
o conteúdo do que lhe foi ensinado. O ideal, então, é que o aprendiz comece a refletir por si
mesmo sobre o que ele aceita, detecte e lide com inconsistências, e tente tornar seus juízos
e prática coerentes com base em uma compreensão mais ampla, que lhe permitirá unificar,
explicar e justificar as decisões particulares que ele toma. Este é um processo que exige que
o agente use a sua mente em cada passo, pense sobre o que está fazendo e tente alcançar
compreensão disto (Annas, 2001).
Podemos ver isso a partir de um exemplo. Em muitas sociedades contemporâneas,
os modelos óbvios de coragem são machistas, com foco em esportes e filmes de guerra. Um
garoto pode crescer pensando que estes são os contextos paradigmáticos de coragem, e ter
assim diversas opiniões sobre coragem e covardia que os pressupõem. Mas se ele refletir
sobre o assunto, ele pode vir a pensar que também está disposto a chamar de corajosas
pessoas em outros contextos bastante diferentes—uma criança lutando contra o câncer,
alguém defendendo uma pessoa que sofre rejeição na escola, e assim por diante. Uma
reflexão adicional poderá então mostrar que a compreensão machista da coragem era
inadequada, e levá-lo a perguntar o que conecta todos esses casos diversos de coragem; o
que poderá levá-lo a perguntar quais são as razões com base nas quais pessoas corajosas
agem, em vez de permanecer acriticamente com as opiniões e as atitudes que ele
inicialmente pensava serem óbvias.
O desenvolvimento da compreensão ética, que leva o agente a desenvolver uma
disposição que é a virtude, é entendido, na tradição clássica, de maneira padrão, como
ocorrendo da mesma maneira que a aquisição de uma habilidade prática ou perícia. Como
diz Aristóteles, tornar-se justo é como se tornar um construtor. No desenvolvimento de uma
habilidade prática aprende-se algo, transmitido pelo ensino; o perito é a pessoa que
compreende através da reflexão o que lhe foi ensinado, e pensa por si mesmo sobre isto.
Estamos familiarizados com a noção de perícia prática em contextos mundanos como o do
mecânico de automóveis, do encanador, e assim por diante. Na tradição clássica da ética da
virtude, esta é uma analogia importante porque o desenvolvimento ético possui algo que
podemos ver mais claramente nestes contextos mais circunscritos: há um progresso do
seguir “mecânico” de uma regra ou modelo, típico do aprendiz, para o maior entendimento
5
A concepção clássica também tem sido criticada por conta das noções de disposição
e de caráter que lhe são centrais. Algumas teorias contemporâneas objetam à ideia de tornar
o caráter um fator básico no discurso ético, ao contrário de ações individuais; o que reflete
uma diferença entre tipos de teoria ética que se concentram em ações, de forma isolada, e
tipos que enfatizam a importância da vida do agente como um todo, e, relacionado a isto, a
importância da educação e do desenvolvimento moral. Recentemente, a ética da virtude do
tipo clássico foi atacada com base na ideia de que a sua noção de disposição é irrealista.
Estes ataques se baseiam em trabalhos em psicologia social “situacionista”, que afirmam
que aspectos não-explícitos de situações particulares têm grande papel na explicação de
nossas ações. Alguns filósofos têm afirmado, a partir disto, que não estamos justificados
em pensar que as pessoas possuem traços de caráter robustos, pois, se elas os possuíssem,
estes explicariam as suas ações de forma confiável e em uma ampla variedade de tipos de
de situação, excluindo aquele tipo de influência [de aspectos não-explícitos] (Doris, 2002;
Harman, 1999).
Porém, esses estudos pressupõem uma noção de disposição que é definida
unicamente em termos da frequência de ações, em que as ações em questão são definidas
sem referência às razões para agir do próprio agente. Para a ética da virtude, no entanto,
uma virtude é uma disposição para agir por razões, e questões sobre a frequência de ações
são irrelevantes para tal, até que alguma conexão plausível seja estabelecida com as razões
do agente, algo que nenhum dos situacionistas fez (Sreenivasan, 2002).
Até aqui eu falei da virtude, mas é claro que na vida cotidiana nos deparamos com
várias diferentes virtudes—justiça, generosidade, coragem e assim por diante. As virtudes,
tal como nós ordinariamente as pensamos, incorporam compromissos com uma série de
valores, e isto se reflete nos modos em que diferentes tipos de situação tipicamente exigem
diferentes virtudes.
O que torna tais virtudes diversas como coragem e generosidade virtudes,
disposições que são eticamente admiráveis de se possuir? Qualquer teoria da virtude terá
algo a dizer sobre a forma como as diferentes virtudes são valiosas. Uma vez que as
virtudes são minhas disposições de mim mesmo, elas são maneiras do que eu sou, traços do
meu caráter; de forma que elas contribuem para o meu viver a minha vida como um todo de
uma certa maneira. Assim, pensar sobre as virtudes leva-me a pensar na minha vida como
um todo. Esta noção é crucial, e é proeminente em todas as formas de ética da virtude
clássica, pois as virtudes fazem sentido apenas no seio de uma concepção de vida que toma
a vida que eu vivo como sendo uma unidade global, em vez de uma sucessão de estados
mais ou menos desconectados. E, ainda, cultivar as virtudes é algo valioso porque viver
virtuosamente constituirá viver minha vida como um todo de uma maneira tal que
significará vivê-la bem, de uma maneira que é valiosa viver.
O fim último para o qual as virtudes contribuem é frequentemente chamado de
eudaimonia, uma vez este é o termo encontrado nas teorias da Grécia antiga (que são,
portanto, trivialmente chamadas eudaimônicas). O equivalente contemporâneo em
português menos insatisfatório é florescimento, que usarei. Felicidade seria em muitos
aspectos melhor, mas infelizmente acarreta dois problemas. Um deles é que a noção
filosófica contemporânea de felicidade recebe a influência de ideias utilitaristas, levando
facilmente ao pensamento banal de que felicidade é prazer. E, embora a ideia de que
felicidade seja florescimento—uma vida bem vivida—tenha lugar nas concepções comuns
de felicidade, ela também aparece muitas vezes acompanhada de ideias implicitamente
conflitantes, como a de que felicidade é desfrutar do momento, ou ser próspero. Além
disso, as teorias contemporâneas análogas às teorias eudaimônicas antigas são chamadas de
ética da virtude, e não de ética da felicidade. Virtude é o conceito que se tornou central na
filosofia recente, às vezes até obscurecendo a importância da ideia do florescimento global
do agente, para o qual as virtudes contribuem.
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Nós temos um tal fim último? É importante notar aqui que a ideia não é uma
exigência de filósofos estranha ao raciocínio ético cotidiano. É apenas uma maneira muito
comum e corriqueira de pensar nossas vidas. Chegamos a ela simplesmente refletindo que
nossas ações podem ser pensadas não apenas de uma forma linear, como a realização de
uma ação após outra: Elas também podem ser pensadas de forma unificada, como acontece
sempre que nos perguntamos por que estamos fazendo algo, pois a resposta fará geralmente
referência a alguma preocupação mais ampla, e esta, por sua vez, a uma preocupação mais
ampla ainda. Dado que eu tenho apenas uma vida para conduzir, terminarei refletindo sobre
uma concepção muito ampla de minha vida como um todo, como algo que dá sentido a
todas as minhas ações em qualquer momento de minha vida. Eu não posso escapar do fato
de que, em qualquer momento de minha vida, minhas ações refletem e expressam o tipo de
pessoa que eu sou, e a natureza dos meus fins e prioridades. Esta é uma maneira muito
comum de pensar sobre nossas vidas, na qual todos estão envolvidos. (Pessoas que vivem
seriamente em conflito sobre os seus objetivos, ou rejeitam a maneira como suas ações se
adequam a padrões mais amplos de suas vidas, parecem ser exceções a isso; mas note que
pensamos que elas têm vidas deterioradas, e não como nos apresentando formas
alternativas de viver bem.)
Pensando dessa forma, chegamos à noção do meu viver minha vida como um todo,
e vivê-la bem. Aqui ainda não há algo específico quanto ao seu conteúdo. (Para Aristóteles,
é trivial que o meu objetivo final é eudaimonia ou felicidade, mas esta conexão não é óbvia
para nós, e até mesmo para Aristóteles este foi [apenas] o ponto de partida, não o fim, do
debate sobre o que consiste viver bem.) Mas este não é um resultado trivial. Por um lado,
meu fim último deve satisfazer a exigência formal de ser completo—todas as minhas ações
são realizadas tendo-o em vista, e eu não o busco por um fim ulterior. Isto, por si só, exclui
alguns fins instrumentais, tais como dinheiro ou fama, que sempre levantam a questão da
razão por que são procurados, que papel desempenham em uma vida de florescimento. Por
outro lado, o meu fim último, o florescimento, não pode consistir de objetos, coisas, ou
estados passivos como prazer. Eu objetivo viver de um certo modo, ser ativo no que quer
que diga respeito a minha vida, em vez de deixá-la ser levada. Uma grande diferença para
muitas teorias contemporâneas é que eu objetivo viver a minha vida de uma forma que só
eu posso realizar, através do desenvolvimento do meu modo de raciocinar sobre ela; eu não
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objetivo a obtenção de coisas ou estados que outras pessoas poderiam muito bem fornecer a
mim.
Como as virtudes contribuem para o meu florescimento? As teorias clássicas da
ética da virtude afirmam que a virtude é, de modo mais fraco, necessária, ou, de modo mais
forte, suficiente para o florescimento. Como isto pode ser entendido? As teorias clássicas
da virtude rejeitam a ideia de que florescimento possa ser especificado de início,
substantivamente e sem referência às virtudes. Alguém que supõe que florescimento pode
ser definido como um sentir-se bem, ou como a obtenção do que você quiser, terá fornecido
uma explicação que é inaceitável para uma teoria da virtude, mesmo antes de discutirmos
as virtudes. Em vez disso, a ética da virtude diz-nos que uma vida vivida de acordo com as
virtudes é a melhor especificação do que é o florescimento. Esta afirmação, portanto, não é
neutra entre o defensor da ética da virtude e a pessoa que pensa que florescimento consiste
em obter o que quiser. Já temos aqui especificações rivais do que seja florescimento, do
que seja levar uma boa vida. E é exatamente isso o que devemos esperar, dado que a
questão do que é levar uma vida de florescimento não é algo que podemos esperar ser
decidido no início da investigação ética, antes de tentarmos esclarecer o que significa viver
uma vida em que se tenta viver de forma justa, corajosa, e assim por diante, em oposição a
viver uma vida em que você objetiva obter o que quer que venha a desejar. É uma
vantagem teórica da ética da virtude clássica o fato de que ela respeita um ponto
fundamental de nossas discussões éticas. Quando as pessoas discordam acerca de alguém
ter ou não destruído a sua vida como resultado de ter realizado uma ação que, apesar de
honesta, o fez perder um emprego que ele desejava, nós não esperamos que se resolva a
disputa apelando a uma lista neutra de indicadores de que modo de vida é valioso.
Reconhecemos que este tipo de disputa não é uma simples discordância sobre meios rivais
para a realização de um fim que não é objeto de disputa [que é inquestionável]. É um tipo
complexo de disputa que traz à tona uma ampla gama de questões, pois o que está em
disputa é exatamente que tipo de vida constitui uma vida de florescimento, em oposição a
uma vida que fracassa neste aspecto.
Muitos críticos contemporâneos opuseram-se à alegação de que a virtude seja até
mesmo necessária para o florescimento, sob a suposição de que nem todo mundo pensa que
é importante ser justo ou corajoso, e que algumas dessas pessoas parecem estar florescendo
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por padrões convencionais. É claro, entretanto, que esse tipo de objeção não entende que a
ética da virtude não começa com uma especificação de florescimento que seja substantiva e
independente das virtudes. Defensores da ética da virtude são muitas vezes acusados de
ingenuidade por [supostamente] pensarem que ser virtuoso é uma boa aposta se você quiser
florescer, em que florescimento é entendido de forma independente das virtudes; mas
defensores da ética da virtude rejeitam esta concepção de florescimento. Cada um de nós
começa com uma noção não especificada de viver a sua vida bem como um todo, e
diferentes teorias dentro de ética da virtude nos fornecem diferentes respostas sobre a
importância da virtude quanto a nos dar uma especificação correta do viver bem, e assim do
florescer. A ética da virtude começa a partir do ponto que atribuímos valor a ser virtuoso,
bem como a ter dinheiro, uma vida familiar, e assim por diante. (É uma exceção ser cínico
sobre o valor das virtudes na vida, e não o padrão, como alguns críticos contemporâneos
pensam; isto não é o que ensinamos às nossas crianças, ou pressupomos na maior parte dos
discursos éticos.) O argumento prossegue nos fazendo ver que a virtude não é apenas um
valor na vida, que poderia ser plausivelmente superado por outros, como o dinheiro; mas
tem um estatuto especial de tal forma que, na versão mais fraca, aqueles sem virtude não
florescem, não importa o que mais possam ter, e, na versão mais forte, a virtude é
necessária e suficiente para uma vida de florescimento. Diferentes teorias levantam pontos
diferentes, e uma completa gama de argumentos positivos não pode ser fornecida aqui; mas
pode-se ressaltar que a maioria das teorias clássicas enfatiza o ponto que a virtude é como
uma habilidade praticada sobre os materiais de sua vida. Agir virtuosamente não é uma
alternativa a ganhar dinheiro, por exemplo. Ao contrário, ganhar dinheiro é uma das coisas
que você tem que fazer, uma das circunstâncias de sua vida, e você pode fazer isto
virtuosamente ou não; de qual maneira você fará faz toda a diferença para o sentido de
ganhar dinheiro em sua vida.
A questão de que o florescimento, como o objetivo das virtudes, não é especificado
anterior e independentemente da vida virtuosa é também importante para responder às
várias objeções de que a ética da virtude clássica é egoísta. Às vezes, é dito que uma pessoa
que vive virtuosamente como forma de obter florescimento age por razões egoístas. Mas
esta é uma confusão. A pessoa que tem como objetivo uma vida de florescimento, vivendo
de uma forma justa, generosa e corajosa, não está almejando o seu bem, em oposição ao
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bem dos outros. Menos ainda ela está almejando algum estado de si mesma. Levar uma
vida de florescimento é uma atividade, a atividade em curso em uma vida, e viver corajosa
e generosamente, etc., é uma especificação do que ela é.
Assim, é um erro afirmar que a motivação da pessoa virtuosa é egoísta porque
almeja o seu próprio florescimento, e não o meu, ou o vosso. Ela almeja o seu próprio
florescimento e não o meu apenas no sentido de que ela está vivendo a sua vida e não a
minha. Não há qualquer implicação de que ela esteja promovendo os seus próprios
interesses às custas dos meus. Seria estranho fazer isto agindo justamente, sendo generosa,
e corajosamente defendendo os outros! Ainda menos plausível é supor que o agente que
pensa que viver virtuosamente é a melhor especificação de uma vida de florescimento age
por razões egoístas. Esta objeção simplesmente desfigura o que é uma virtude. Coragem,
por exemplo, é, entre outras coisas, a disposição para defender o que é certo, não importa se
isto beneficia a mim ou aos outros. Coragem não é uma disposição que pode ser
abandonada quando meus interesses, em oposição aos de outrem, não estão em jogo.
Alguém que possui disposições que promovem apenas os seus próprios interesses, de uma
forma tal que poderiam entrar em conflito com os interesses de outros, não é nem mesmo
um candidato a ser virtuoso.
A acusação de que a ética da virtude é egoísta é surpreendentemente recorrente. Ela
parece depender, por um lado, da pressuposição de que florescimento deve ser especificado
independentemente da prática das virtudes (de modo que estas são apenas um meio para
aquele como um fim independentemente estabelecido) e, por outro lado, da pressuposição
de que disputas éticas sobre vidas são disputas sobre meios alternativos para fins já
determinados [que estão fora de questão]. Mas nenhuma destas pressuposições é
compartilhada pela ética da virtude, de forma que tais objeções erram o alvo. E, de todo
modo, elas são falsas.
A ética da virtude faz a suposição realista de que, quando você passa a pensar em
ética e em desenvolver ou melhorar a sua vida como um todo, você já tem uma vida. Você
já possui uma posição social, uma educação cultural, uma família, um emprego, e assim por
diante. Estes são fatores que já contribuíram para o seu desenvolvimento ético, para o bem
ou para o mal. Porque para a ética da virtude importa que tipo de pessoa você é, ela leva em
consideração a importância da pessoa que você é quando você começa a pensar em ser
virtuoso. Não é realista pensar que todos os seus pontos de vista éticos são descartáveis, e
que você poderia vir a ser uma pessoa melhor através de uma conversão da noite para o dia.
Quando você pensar por si mesmo sobre o que é ser corajoso, justo, e assim por diante,
você já terá desenvolvido pontos de vista e atitudes.
Entretando, a ética da virtude clássica sempre pressupõe que a reflexão sobre nossos
pontos de vista éticos os revela inadequados para a forma como queremos ser. Como
Aristóteles diz: “Em geral todos buscam não aquilo que é tradicional, mas o bem” (Politics
1269a3-4). Toda a ética da virtude clássica pressupõe que, de uma forma estranhamente
ausente de muitas teorias contemporâneas, que o pensamento ético inclui, essencialmente,
uma aspiração a ser melhor do que somos. As teorias da virtude clássica são marcadas,
tanto pelo reconhecimento realista da natureza socialmente integrada de nossa vida ética,
quanto pela insistência de que, se pensamos eticamente, estamos nos esforçando para ser
melhor, para alcançar um ideal que ainda não foi atingido. E todas as teorias clássicas da
virtude são muito exigentes a esse respeito (Annas, 2002). É, portanto, irrelevante salientar
que as teorias clássicas foram criadas para um público em sociedades muito diferentes da
nossa. A ética da virtude é relevante sempre que percebermos que as crenças éticas segundo
as quais vivemos são inadequadas, que, por exemplo, elas podem implicar atitudes sexistas
e racistas, e que precisamos nos tornar pessoas melhores. A ética da virtude se desenvolve a
partir do pensamento plausível de que eu tenho que melhorar a mim mesmo; nenhum
mestre ou livro pode fazer este trabalho.
Nada disso é incompatível com o nosso reconhecimento de que existem alguns
juízos sobre ações que são, não apenas amplamente compartilhados, mas não negociáveis
quando pensamos sobre a virtude e a boa vida. Isto é apenas parte de nosso “background”
inicial comum. O que é importante, porém, é que isto não pode se desdobrar em uma teoria
que diga às pessoas o que é certo ou errado fazer, de uma forma tal que não leve em
13
2
Hursthouse, 1991, foi reimpresso em vários compêndios.
16
3
Baier, 1994; ver também Foot, 1978. (Compare com a obra recente de Foot, 2002, em que as posições dela
sobre o papel do raciocínio prático e da virtude são muito mais próximas da posição clássica.)
19
4
Hurka, 2001, segue G. E. Moore ao conferir à virtude um papel limitado não-instrumental dentro do
consequencialismo. A definição idiossincrática da virtude de Hurka, como uma atitude positiva em relação ao
bem intrínseco, gera uma versão deflacionária; ela omite o aspecto disposicional da virtude, o papel do
raciocínio prático, e o papel de um fim último.
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próprias decisões. Não é um acidente que as teorias que mencionam a virtude mas omitem
este elemento tentam acomodar a virtude em uma estrutura que é fundamentalmente
centrada em algo distinto do agente: normalmente a produção de um bem
consequencialista. A virtude nestas teorias é banalizada, já que são cortadas suas relações
com o tipo de vida que o agente leva de acordo com o seu próprio raciocínio reflexivo, em
vez do tipo de vida segundo valores que foram meramente absorvidos [pelo agente]. Pois
este é o ponto da ética da virtude clássica.
Teorias Kantianas também são acusadas de tornar banalizar a virtude; mas esta é
uma questão mais complexa. Ao discutir a virtude, Kant a toma como a força de vontade de
realizar nosso dever, e ele foi interpretado como defendendo que a virtude não é nada mais
do que uma disposição valiosa instrumentalmente por seu papel em permitir ao agente fazer
aquilo que é independentemente reconhecido como o que ele deve fazer. Esta impressão é
fortalecida pelos sutis ataques de Kant às teorias clássicas da virtude, que a vêem como
constituindo nosso fim último (Irwin, 1996). Apesar disto, outras interpretações de Kant
insistem que a sua teoria não separa tão radicalmente a correção de uma ação da vida do
agente e de seus padrões globais de resposta emocional. Recentes interpretações complexas
de Kant, que levam em consideração todas as suas obras em ética, fornecem uma visão
mais refinada do papel da virtude em seu pensamento (Engstrom, 2002; Sherman, 1997;
Wood, 2002). Isto se harmoniza com uma interpretação recente de Kant e com teorias neo-
kantianas que colocam menos ênfase no aspecto deontológico da obediência a regras e
conferem mais importância ao papel do respeito pelas pessoas e ao “reino dos fins”
(Herman, 1993; Korsgaard, 1996). A relação da ética Kantiana com a ética da virtude
clássica ainda está em processo de descoberta (Engstrom and Whiting, 1996; Hursthouse,
1997).
5
Ver nota 3.
22
4. Conclusão
Por que a ética da virtude foi tão negligenciada por boa parte dos últimos cem anos? Uma
influência foi o consequencialismo, que reconhece apenas uma noção limitada de virtude,
como um instrumento para a obtenção de algum bem que é definido independentemente [da
virtude]. Há também um foco geral sobre ações em detrimento de agentes; as formas
dominantes de ética kantiana estiveram até recentemente estreitamente obcecadas com
regras e princípios. De fato, até recentemente era um pressuposto que as duas únicas
fundamentais formas de teoria ética eram o consequencialismo e a deontologia—um
pressuposto que claramente toma como inquestionável que a preocupação central da ética é
com ações, em detrimento de agentes. O ressurgimento da ética da virtude não apenas
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forneceu uma “terceira via”; ele questionou aquela pressuposição latente, e assim não
apenas forneceu uma alternativa às outras formas de teoria, mas também forneceu recursos
a partir dos quais elas podem ser enriquecidas.
Um outro papel nesse contexto também tem sido exercido por uma “metaética”
estreita e orientada metafisicamente, que argumenta, a partir de premissas metafísicas que
têm pouco a ver com a ética, que qualquer forma de naturalismo é problemática. Pensou-se,
por algum tempo, que isto colocava problemas para a ética da virtude. Mas isto está
duplamente errado: a ética da virtude não é por definição naturalista, e aquelas formas dela
que são tomam como ponto de partida o nosso estado de conhecimento em biologia,
etologia e psicologia, em vez de metafísica. De fato, o crescimento da ética da virtude
colocou um desafio à ideia de que a metafísica tem um privilégio sobre a ética; muitos
autores em ética sentem-se desconfortáveis com a ideia de que a metafísica é a “filosofia
primeira”, que pode estabelecer as regras para a ética anteriormente a um trabalho feito
propriamente em ética. O rápido crescimento da ética da virtude contemporânea ocorreu
concomitantemente a uma explosão de interesse em ética aplicada que, da mesma forma,
pressupõe que nossa primeira tarefa é compreender a ética adequadamente, e somente então
perguntar sobre as implicações metafísicas; em vez de o contrário.6
Estamos apenas agora emergindo de um período de compreensão fragmentada da
ética da virtude, e de uma variedade de teorias focadas em uma ou outra forma
deflacionária de virtude. Deve ser óbvio, a partir deste artigo, que eu penso que o futuro
pertence a teorias que fazem em termos contemporâneos aquilo que as teorias clássicas
fizeram nos seus termos. A razão disto não é nenhuma reverência ao passado, mas
simplesmente porque aquelas teorias lidaram com uma gama completa de questões que são
levantadas pela virtude, e assim forneceram à virtude, como uma noção ética, a estrutura
adequada para mostrar como e por que ela é o conceito central em uma teoria ética, assim
como no discurso ético. Quanto mais discussões trouxerem à tona as principais questões [da
virtude], mais rapidamente nos livraremos das críticas ainda recorrentes que tomam as
objeções às versões deflacionárias de virtude como se fossem objeções à teoria completa
clássica. Nos últimos trinta e quarenta anos, assistimos à virtude reemergir como uma
6
A obra de John McDowell, porém, é influenciada por preocupações metaéticas: ver McDowell, 1979
(reimpresso várias vezes).
26
noção teórica na discussão ética e progredimos até o ponto que a ética da virtude é
novamente reconhecida como uma teoria ética. Estamos nos aproximando do ponto de
conseguirmos desenvolver alguns dos maiores temas das teorias clássicas em termos
contemporâneos—por exemplo, o tipo de naturalismo que precisamos para fundamentar
uma teoria que, como faz a ética da virtude, apela substancialmente à racionalidade da
natureza humana. [Mas] aquilo sobre o que precisamos de mais clareza diz respeito à
relação da virtude com o florescimento e com o raciocínio prático, questões que são
proeminentes no debate corrente.
A ética da virtude recebe críticas muito mais ácidas e hostis do que outras formas de
teoria ética, e isto parece ser o caso porque ela questiona pressupostos que têm
fundamentado a ética por grande parte dos últimos cem anos, e assim ela é corretamente
percebida como uma força radical e inquietante. Uma vez que olhamos além das
concepções deflacionárias de virtude, podemos entender por que a ética da virtude tem sido
recebida de forma tão desconfortável pela ortodoxia acadêmica previamente estabelecida.
A ética agora deve considerar explicações rivais do raciocínio prático; prestar atenção à
psicologia moral; perguntar seriamente sobre o que está envolvido em uma justificação
uniforme de nossos usos de um conceito moral; questionar se uma teoria ética pode gerar
um procedimento de decisão global que resolva todos os problemas éticos, levar seriamente
o papel ético de nossas vidas como um todo e o viver a vida como uma atividade em vez de
um estado passivo. Há o suficiente aqui para manter o caldeirão fervendo por muitos anos.
Referências
Annas, Julia. 1993. The Morality of Happiness. Oxford: Oxford University Press.
———. 1999. Platonic Ethics Old and New. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press.
———. 2001. “Moral Knowledge as Practical Knowledge.” In Moral Knowledge, ed. E. E.
Paul, F. D. Miller and J. Paul, 236–256. Cambridge: Cambridge University Press.
———. 2002. “My Station and Its Duties: Ideal and the Social Embeddedness of Virtue.”
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Baier, Annette. 1994. Moral Prejudices. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
Becker, Lawrence. 1998. A New Stoicism. Princeton, N.J.: Princeton University Press.
Crisp, Roger, ed. 1996. How Should One Live? Oxford: Oxford University Press.
Crisp, Roger, and Michael Slote, eds. 1997. Virtue Ethics. Oxford: Oxford University
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Doris, John M. 1998. “Persons, Situations and Virtue Ethics.” Nous 32: 504–530.
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