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ÉTICA DA VIRTUDE1
Julia Annas

Na tradição da filosofia ocidental desde o século V a.C., a forma padrão de teoria ética tem
sido alguma versão do que é hoje chamado de ética da virtude; reais alternativas teóricas
surgem apenas com Kant e com o consequencialismo. Este persistente domínio não é muito
surpreendente, dado que a preocupação com a virtude é uma preocupação com o tipo de
pessoa que você é, e isto sempre foi importante para questões éticas da vida real, nas
sociedades ocidentais. (E, como está se tornando cada vez mais familiar, isso também é
verdade de algumas sociedades e tradições filosóficas não-ocidentais, particularmente as
asiáticas.)
A tradição tem assumido várias formas diferentes, e separar estas será útil para
identificar uma estrutura subjacente. Vou também falar um pouco sobre a maneira em que a
ética da virtude foi ignorada ou banalizada pela filosofia ética analítica, por cerca de cem
anos, para ressurgir vigorosamente durante os quarenta últimos anos.
A ética da virtude é melhor compreendida se atentarmos para as características
centrais do que eu chamarei de a versão clássica da tradição. Sua estrutura teórica foi
originalmente enunciada, de maneira clara, por Aristóteles; mas é equivocado pensá-la
como especificamente aristotélica, uma vez que ela está na base de toda teoria ética antiga
(Annas, 1993, 1999). A versão clássica é o nosso melhor ponto de partida no tema, pois
temos uma grande quantidade de material que foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo de
centenas de anos através de amplo debate e que contém os meios para o estabelecimento de
toda a estrutura teórica [da ética da virtude], e para compreender o que nela é básico e o que
é mais paroquial. As teorias éticas da virtude contemporâneas ainda não alcançaram uma tal
massa crítica de argumentação e teoria, e a maioria ainda é parcial ou fragmentada. Como
vou mostrar, somente quando tivermos todo aquele quadro [teórico] em vista poderemos
compreender outras teorias que se denominam de ética da virtude. Assim, eu primeiramente

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Tradução de Leonardo de Mello Ribeiro, do original ‘Virtue Ethics’, in Copp, D., The Oxford Handbook of
Ethical Theory, Oxford: Oxford University Press, 2006.
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desenharei, passo a passo, um quadro de toda a estrutura da ética da virtude clássica, e


então veremos como diferentes versões resultam dele, ao se ignorar ou rejeitar partes
daquela estrutura. O resultado, ainda que inevitavelmente esquemático, deve ajudar a
esclarecer os vários debates que ganham força na ética da virtude, e ajudar a orientar
aqueles que são menos familiarizados com o domínio [em questão] e, por vezes, ficam
confusos com a recente proliferação de teorias com o nome ética da virtude.

1. Ética da Virtude: O Quadro Completo


1.1 O Papel Central do Raciocínio Prático
Uma virtude é um estado ou disposição de uma pessoa. Esta é uma afirmação intuitiva
plausível; se, digamos, alguém é generoso, então ele tem um caráter de certo tipo, ele é
disposicionalmente—isto é, confiável e habitualmente—generoso. Uma virtude, porém, não
é um hábito no sentido em que hábitos podem envolver comportamentos impensados,
fontes de ação no agente que ignoram seu raciocínio prático. Uma virtude é uma disposição
para agir, e não uma entidade que [meramente] se desenvolveu dentro de mim e geradora
de comportamento; é a minha disposição para agir de determinadas maneiras e não de
outras. Uma virtude, ao contrário de um mero hábito, é uma disposição para agir por razões
e, portanto, é uma disposição que é praticada através do raciocínio prático do agente; ela é
desenvolvida através do ato de fazer escolhas e praticada através do ato de fazer novas
escolhas. Quando uma pessoa honesta decide não se apropriar de algo com relação ao que
ele não tem direito, este não é o resultado de um desdobramento causal de ações anteriores,
mas uma decisão, uma escolha que endossa a disposição do agente de ser honesto.
O exercício do raciocínio prático do agente é, portanto, essencial para a maneira
como a virtude é ao mesmo tempo desenvolvida e praticada. Devido a esta característica, a
ética da virtude clássica foi criticada como sendo excessivamente intelectualista (mesmo
"elitista") (Driver, 2001). Porém, o raciocínio em questão é o mesmo que todos fazem uso;
assim, é difícil entender como uma teoria que apela para o que está disponível a todos pode
ser elitista. Diferentes teorias da virtude nos oferecem diferentes maneiras de tornar nossas
reflexões mais sofisticadas teoricamente, mas a ética da virtude tenta aprimorar o raciocínio
que todos nós compartilhamos, em vez de substituí-lo por um tipo distinto.
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Qual é o papel do raciocínio prático do agente? Virtude é a disposição para fazer a


coisa certa pela razão certa, da maneira apropriada—honestamente, corajosamente, e assim
por diante. Isto envolve dois aspectos, o afetivo e o intelectual.
Qual é o aspecto afetivo da virtude? O agente pode fazer a coisa certa e ter uma
variedade de sentimentos e reações a isso. Ela pode detestar fazer a coisa certa, mas fazê-la
mesmo assim; fazer a coisa certa, mas com sentimentos conflitantes ou com dificuldade;
fazer a coisa certa sem qualquer esforço e sem qualquer oposição interna. Uma
característica da versão clássica da ética da virtude é a ideia de que fazer a coisa certa sem
inclinação contrária é uma marca da pessoa virtuosa, em oposição à pessoa meramente
autocontrolada. A mera realização da ação correta deixa em aberto a questão da atitude
global do agente; a virtude exige que a coisa certa seja feita pela razão certa, sem oposição
interna séria, como uma questão de caráter. Esta é, afinal, apenas uma implicação da ideia
de que, para uma ética da virtude, é importante que tipo de pessoa que você é. É claro que
aquilo que leva você a desenvolver o seu caráter de tal maneira que você seja inteiramente
sincero ao ser generoso, a agir de forma justa, sem arrependimentos, e assim por diante, é
uma questão muito ampla. Não há uma teoria unificada da nossa natureza afetiva que todas
as teorias da virtude compartilhem, e assim há uma variedade de explicações sobre a forma
como nos tornamos virtuosos, além de apenas fazer a coisa certa pela razão certa.
Entretanto, todas as teorias da tradição clássica aceitam e enfatizam o ponto, familiar ao
senso comum, de que há uma diferença moral importante entre a pessoa que meramente age
de forma correta e a pessoa que é sincera [efetivamente comprometida] no que faz.
Algumas teorias contemporâneas implicitamente negam a importância desta distinção, sem
fornecer uma razão para isso.
O agente virtuoso, então, faz a coisa certa, sem conflitos, pela razão certa—ele
compreende que esta é a coisa certa a fazer. O que é esta compreensão? Na ética da virtude
clássica, começamos nossa educação moral aprendendo com os outros, tanto fazendo juízos
particulares sobre o certo e o errado quanto tomando algumas pessoas como modelos ideais
ou mestres ou seguindo certas regras. Inicialmente, como aprendizes, adotamos essas
opiniões porque assim fomos instruídos, ou porque nos pareciam óbvias, e assim
adquirimos uma coleção de opiniões morais que são fragmentadas e aceitas com base na
autoridade de outros. Para a ética da virtude, o objetivo da boa educação moral é fazer com
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que o aprendiz pense por si mesmo sobre as razões segundo as quais ele age, e assim sobre
o conteúdo do que lhe foi ensinado. O ideal, então, é que o aprendiz comece a refletir por si
mesmo sobre o que ele aceita, detecte e lide com inconsistências, e tente tornar seus juízos
e prática coerentes com base em uma compreensão mais ampla, que lhe permitirá unificar,
explicar e justificar as decisões particulares que ele toma. Este é um processo que exige que
o agente use a sua mente em cada passo, pense sobre o que está fazendo e tente alcançar
compreensão disto (Annas, 2001).
Podemos ver isso a partir de um exemplo. Em muitas sociedades contemporâneas,
os modelos óbvios de coragem são machistas, com foco em esportes e filmes de guerra. Um
garoto pode crescer pensando que estes são os contextos paradigmáticos de coragem, e ter
assim diversas opiniões sobre coragem e covardia que os pressupõem. Mas se ele refletir
sobre o assunto, ele pode vir a pensar que também está disposto a chamar de corajosas
pessoas em outros contextos bastante diferentes—uma criança lutando contra o câncer,
alguém defendendo uma pessoa que sofre rejeição na escola, e assim por diante. Uma
reflexão adicional poderá então mostrar que a compreensão machista da coragem era
inadequada, e levá-lo a perguntar o que conecta todos esses casos diversos de coragem; o
que poderá levá-lo a perguntar quais são as razões com base nas quais pessoas corajosas
agem, em vez de permanecer acriticamente com as opiniões e as atitudes que ele
inicialmente pensava serem óbvias.
O desenvolvimento da compreensão ética, que leva o agente a desenvolver uma
disposição que é a virtude, é entendido, na tradição clássica, de maneira padrão, como
ocorrendo da mesma maneira que a aquisição de uma habilidade prática ou perícia. Como
diz Aristóteles, tornar-se justo é como se tornar um construtor. No desenvolvimento de uma
habilidade prática aprende-se algo, transmitido pelo ensino; o perito é a pessoa que
compreende através da reflexão o que lhe foi ensinado, e pensa por si mesmo sobre isto.
Estamos familiarizados com a noção de perícia prática em contextos mundanos como o do
mecânico de automóveis, do encanador, e assim por diante. Na tradição clássica da ética da
virtude, esta é uma analogia importante porque o desenvolvimento ético possui algo que
podemos ver mais claramente nestes contextos mais circunscritos: há um progresso do
seguir “mecânico” de uma regra ou modelo, típico do aprendiz, para o maior entendimento
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do perito, cujas respostas são sensíveis às particularidades das situações, e expressam


compreensão e reflexão geral.
A analogia da habilidade prática traz à tona dois pontos importantes sobre a
compreensão ética: Ela exige tanto que você aprenda com os outros quanto que você pense
e compreenda por si mesmo. (O fundamental progresso do aprendiz para o perito é perdido
na tendência contemporânea de reduzir todo o conhecimento prático a um “saber como”,
em oposição a um “saber que”.) A reflexão ética começa a partir do que você aprendeu em
sua sociedade; mas ela requer que você progrida a partir daí. A virtude começa com o
seguir regras ou modelos no seu contexto social e cultural; mas ela exige que você
desenvolva uma disposição para decidir e agir que envolve o tipo de compreensão que só
você pode obter em seu próprio caso.
Em sua estrutura, a virtude é como uma habilidade. Mas a analogia da habilidade
prática possui, é claro, limites. Um deles é que as habilidades práticas são direcionadas à
realização de fins que podemos abandonar se deixarmos de desejá-los, enquanto que a
virtude é destinada a alcançar o nosso fim último que, como mostrarei, não é um fim que
podemos simplesmente deixar de querer. Outro limite é que o desenvolvimento da
compreensão prática de uma habilidade pode ser relativamente independente de emoção e
sentimento, ao passo que o desenvolvimento da compreensão prática de uma virtude ocorre
juntamente com um desenvolvimento dos afetos e reações da pessoa virtuosa.
Alguns teóricos contemporâneos têm dificuldade para entender o papel do
raciocínio prático na versão clássica da ética da virtude porque este está em oposição a um
dogma comum contemporâneo, de que a razão funciona apenas instrumentalmente, para
satisfazer quaisquer desejos que viermos a ter. O problema é amplo demais para ser
discutido aqui, mas é importante notar que a teoria clássica do raciocínio prático é um rival
teórico deste dogma, de modo que pressupô-lo contrariamente à versão clássica da ética da
virtude é cometer uma petição de princípio. (Um dos mais interessantes e frutíferos debates
contemporâneos em ética consiste em levantar a questão da sustentabilidade da concepção
instrumentalista.) Pode-se mostrar que a concepção clássica tem bom suporte empírico, e
isto torna mais fácil mostrar que a ética da virtude do tipo clássico não é vulnerável a
algumas críticas que pressupõem a verdade de uma concepção de raciocínio prático que ela
rejeita (Annas, 2001).
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A concepção clássica também tem sido criticada por conta das noções de disposição
e de caráter que lhe são centrais. Algumas teorias contemporâneas objetam à ideia de tornar
o caráter um fator básico no discurso ético, ao contrário de ações individuais; o que reflete
uma diferença entre tipos de teoria ética que se concentram em ações, de forma isolada, e
tipos que enfatizam a importância da vida do agente como um todo, e, relacionado a isto, a
importância da educação e do desenvolvimento moral. Recentemente, a ética da virtude do
tipo clássico foi atacada com base na ideia de que a sua noção de disposição é irrealista.
Estes ataques se baseiam em trabalhos em psicologia social “situacionista”, que afirmam
que aspectos não-explícitos de situações particulares têm grande papel na explicação de
nossas ações. Alguns filósofos têm afirmado, a partir disto, que não estamos justificados
em pensar que as pessoas possuem traços de caráter robustos, pois, se elas os possuíssem,
estes explicariam as suas ações de forma confiável e em uma ampla variedade de tipos de
de situação, excluindo aquele tipo de influência [de aspectos não-explícitos] (Doris, 2002;
Harman, 1999).
Porém, esses estudos pressupõem uma noção de disposição que é definida
unicamente em termos da frequência de ações, em que as ações em questão são definidas
sem referência às razões para agir do próprio agente. Para a ética da virtude, no entanto,
uma virtude é uma disposição para agir por razões, e questões sobre a frequência de ações
são irrelevantes para tal, até que alguma conexão plausível seja estabelecida com as razões
do agente, algo que nenhum dos situacionistas fez (Sreenivasan, 2002).

1.2 Virtudes e o Florescimento Pessoal


Virtudes são, então, traços de caráter do tipo discutido acima. Há traços de caráter, porém,
que não são virtudes. Para ser uma virtude, um traço de caráter deve incorporar um
compromisso com algum valor ético, como justiça ou benevolência. Ademais, este
compromisso não é meramente uma questão de realizar ações que vêm a ser justas,
benevolentes, ou o que quer que seja; uma disposição, como já salientado, funciona através
do raciocínio prático do agente. As virtudes são disposições para ser justo,
benevolente e assim por diante, dar aos outros a sua justa parte, tratar os outros com
consideração, defender os direitos dos outros.
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Até aqui eu falei da virtude, mas é claro que na vida cotidiana nos deparamos com
várias diferentes virtudes—justiça, generosidade, coragem e assim por diante. As virtudes,
tal como nós ordinariamente as pensamos, incorporam compromissos com uma série de
valores, e isto se reflete nos modos em que diferentes tipos de situação tipicamente exigem
diferentes virtudes.
O que torna tais virtudes diversas como coragem e generosidade virtudes,
disposições que são eticamente admiráveis de se possuir? Qualquer teoria da virtude terá
algo a dizer sobre a forma como as diferentes virtudes são valiosas. Uma vez que as
virtudes são minhas disposições de mim mesmo, elas são maneiras do que eu sou, traços do
meu caráter; de forma que elas contribuem para o meu viver a minha vida como um todo de
uma certa maneira. Assim, pensar sobre as virtudes leva-me a pensar na minha vida como
um todo. Esta noção é crucial, e é proeminente em todas as formas de ética da virtude
clássica, pois as virtudes fazem sentido apenas no seio de uma concepção de vida que toma
a vida que eu vivo como sendo uma unidade global, em vez de uma sucessão de estados
mais ou menos desconectados. E, ainda, cultivar as virtudes é algo valioso porque viver
virtuosamente constituirá viver minha vida como um todo de uma maneira tal que
significará vivê-la bem, de uma maneira que é valiosa viver.
O fim último para o qual as virtudes contribuem é frequentemente chamado de
eudaimonia, uma vez este é o termo encontrado nas teorias da Grécia antiga (que são,
portanto, trivialmente chamadas eudaimônicas). O equivalente contemporâneo em
português menos insatisfatório é florescimento, que usarei. Felicidade seria em muitos
aspectos melhor, mas infelizmente acarreta dois problemas. Um deles é que a noção
filosófica contemporânea de felicidade recebe a influência de ideias utilitaristas, levando
facilmente ao pensamento banal de que felicidade é prazer. E, embora a ideia de que
felicidade seja florescimento—uma vida bem vivida—tenha lugar nas concepções comuns
de felicidade, ela também aparece muitas vezes acompanhada de ideias implicitamente
conflitantes, como a de que felicidade é desfrutar do momento, ou ser próspero. Além
disso, as teorias contemporâneas análogas às teorias eudaimônicas antigas são chamadas de
ética da virtude, e não de ética da felicidade. Virtude é o conceito que se tornou central na
filosofia recente, às vezes até obscurecendo a importância da ideia do florescimento global
do agente, para o qual as virtudes contribuem.
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Nós temos um tal fim último? É importante notar aqui que a ideia não é uma
exigência de filósofos estranha ao raciocínio ético cotidiano. É apenas uma maneira muito
comum e corriqueira de pensar nossas vidas. Chegamos a ela simplesmente refletindo que
nossas ações podem ser pensadas não apenas de uma forma linear, como a realização de
uma ação após outra: Elas também podem ser pensadas de forma unificada, como acontece
sempre que nos perguntamos por que estamos fazendo algo, pois a resposta fará geralmente
referência a alguma preocupação mais ampla, e esta, por sua vez, a uma preocupação mais
ampla ainda. Dado que eu tenho apenas uma vida para conduzir, terminarei refletindo sobre
uma concepção muito ampla de minha vida como um todo, como algo que dá sentido a
todas as minhas ações em qualquer momento de minha vida. Eu não posso escapar do fato
de que, em qualquer momento de minha vida, minhas ações refletem e expressam o tipo de
pessoa que eu sou, e a natureza dos meus fins e prioridades. Esta é uma maneira muito
comum de pensar sobre nossas vidas, na qual todos estão envolvidos. (Pessoas que vivem
seriamente em conflito sobre os seus objetivos, ou rejeitam a maneira como suas ações se
adequam a padrões mais amplos de suas vidas, parecem ser exceções a isso; mas note que
pensamos que elas têm vidas deterioradas, e não como nos apresentando formas
alternativas de viver bem.)
Pensando dessa forma, chegamos à noção do meu viver minha vida como um todo,
e vivê-la bem. Aqui ainda não há algo específico quanto ao seu conteúdo. (Para Aristóteles,
é trivial que o meu objetivo final é eudaimonia ou felicidade, mas esta conexão não é óbvia
para nós, e até mesmo para Aristóteles este foi [apenas] o ponto de partida, não o fim, do
debate sobre o que consiste viver bem.) Mas este não é um resultado trivial. Por um lado,
meu fim último deve satisfazer a exigência formal de ser completo—todas as minhas ações
são realizadas tendo-o em vista, e eu não o busco por um fim ulterior. Isto, por si só, exclui
alguns fins instrumentais, tais como dinheiro ou fama, que sempre levantam a questão da
razão por que são procurados, que papel desempenham em uma vida de florescimento. Por
outro lado, o meu fim último, o florescimento, não pode consistir de objetos, coisas, ou
estados passivos como prazer. Eu objetivo viver de um certo modo, ser ativo no que quer
que diga respeito a minha vida, em vez de deixá-la ser levada. Uma grande diferença para
muitas teorias contemporâneas é que eu objetivo viver a minha vida de uma forma que só
eu posso realizar, através do desenvolvimento do meu modo de raciocinar sobre ela; eu não
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objetivo a obtenção de coisas ou estados que outras pessoas poderiam muito bem fornecer a
mim.
Como as virtudes contribuem para o meu florescimento? As teorias clássicas da
ética da virtude afirmam que a virtude é, de modo mais fraco, necessária, ou, de modo mais
forte, suficiente para o florescimento. Como isto pode ser entendido? As teorias clássicas
da virtude rejeitam a ideia de que florescimento possa ser especificado de início,
substantivamente e sem referência às virtudes. Alguém que supõe que florescimento pode
ser definido como um sentir-se bem, ou como a obtenção do que você quiser, terá fornecido
uma explicação que é inaceitável para uma teoria da virtude, mesmo antes de discutirmos
as virtudes. Em vez disso, a ética da virtude diz-nos que uma vida vivida de acordo com as
virtudes é a melhor especificação do que é o florescimento. Esta afirmação, portanto, não é
neutra entre o defensor da ética da virtude e a pessoa que pensa que florescimento consiste
em obter o que quiser. Já temos aqui especificações rivais do que seja florescimento, do
que seja levar uma boa vida. E é exatamente isso o que devemos esperar, dado que a
questão do que é levar uma vida de florescimento não é algo que podemos esperar ser
decidido no início da investigação ética, antes de tentarmos esclarecer o que significa viver
uma vida em que se tenta viver de forma justa, corajosa, e assim por diante, em oposição a
viver uma vida em que você objetiva obter o que quer que venha a desejar. É uma
vantagem teórica da ética da virtude clássica o fato de que ela respeita um ponto
fundamental de nossas discussões éticas. Quando as pessoas discordam acerca de alguém
ter ou não destruído a sua vida como resultado de ter realizado uma ação que, apesar de
honesta, o fez perder um emprego que ele desejava, nós não esperamos que se resolva a
disputa apelando a uma lista neutra de indicadores de que modo de vida é valioso.
Reconhecemos que este tipo de disputa não é uma simples discordância sobre meios rivais
para a realização de um fim que não é objeto de disputa [que é inquestionável]. É um tipo
complexo de disputa que traz à tona uma ampla gama de questões, pois o que está em
disputa é exatamente que tipo de vida constitui uma vida de florescimento, em oposição a
uma vida que fracassa neste aspecto.
Muitos críticos contemporâneos opuseram-se à alegação de que a virtude seja até
mesmo necessária para o florescimento, sob a suposição de que nem todo mundo pensa que
é importante ser justo ou corajoso, e que algumas dessas pessoas parecem estar florescendo
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por padrões convencionais. É claro, entretanto, que esse tipo de objeção não entende que a
ética da virtude não começa com uma especificação de florescimento que seja substantiva e
independente das virtudes. Defensores da ética da virtude são muitas vezes acusados de
ingenuidade por [supostamente] pensarem que ser virtuoso é uma boa aposta se você quiser
florescer, em que florescimento é entendido de forma independente das virtudes; mas
defensores da ética da virtude rejeitam esta concepção de florescimento. Cada um de nós
começa com uma noção não especificada de viver a sua vida bem como um todo, e
diferentes teorias dentro de ética da virtude nos fornecem diferentes respostas sobre a
importância da virtude quanto a nos dar uma especificação correta do viver bem, e assim do
florescer. A ética da virtude começa a partir do ponto que atribuímos valor a ser virtuoso,
bem como a ter dinheiro, uma vida familiar, e assim por diante. (É uma exceção ser cínico
sobre o valor das virtudes na vida, e não o padrão, como alguns críticos contemporâneos
pensam; isto não é o que ensinamos às nossas crianças, ou pressupomos na maior parte dos
discursos éticos.) O argumento prossegue nos fazendo ver que a virtude não é apenas um
valor na vida, que poderia ser plausivelmente superado por outros, como o dinheiro; mas
tem um estatuto especial de tal forma que, na versão mais fraca, aqueles sem virtude não
florescem, não importa o que mais possam ter, e, na versão mais forte, a virtude é
necessária e suficiente para uma vida de florescimento. Diferentes teorias levantam pontos
diferentes, e uma completa gama de argumentos positivos não pode ser fornecida aqui; mas
pode-se ressaltar que a maioria das teorias clássicas enfatiza o ponto que a virtude é como
uma habilidade praticada sobre os materiais de sua vida. Agir virtuosamente não é uma
alternativa a ganhar dinheiro, por exemplo. Ao contrário, ganhar dinheiro é uma das coisas
que você tem que fazer, uma das circunstâncias de sua vida, e você pode fazer isto
virtuosamente ou não; de qual maneira você fará faz toda a diferença para o sentido de
ganhar dinheiro em sua vida.
A questão de que o florescimento, como o objetivo das virtudes, não é especificado
anterior e independentemente da vida virtuosa é também importante para responder às
várias objeções de que a ética da virtude clássica é egoísta. Às vezes, é dito que uma pessoa
que vive virtuosamente como forma de obter florescimento age por razões egoístas. Mas
esta é uma confusão. A pessoa que tem como objetivo uma vida de florescimento, vivendo
de uma forma justa, generosa e corajosa, não está almejando o seu bem, em oposição ao
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bem dos outros. Menos ainda ela está almejando algum estado de si mesma. Levar uma
vida de florescimento é uma atividade, a atividade em curso em uma vida, e viver corajosa
e generosamente, etc., é uma especificação do que ela é.
Assim, é um erro afirmar que a motivação da pessoa virtuosa é egoísta porque
almeja o seu próprio florescimento, e não o meu, ou o vosso. Ela almeja o seu próprio
florescimento e não o meu apenas no sentido de que ela está vivendo a sua vida e não a
minha. Não há qualquer implicação de que ela esteja promovendo os seus próprios
interesses às custas dos meus. Seria estranho fazer isto agindo justamente, sendo generosa,
e corajosamente defendendo os outros! Ainda menos plausível é supor que o agente que
pensa que viver virtuosamente é a melhor especificação de uma vida de florescimento age
por razões egoístas. Esta objeção simplesmente desfigura o que é uma virtude. Coragem,
por exemplo, é, entre outras coisas, a disposição para defender o que é certo, não importa se
isto beneficia a mim ou aos outros. Coragem não é uma disposição que pode ser
abandonada quando meus interesses, em oposição aos de outrem, não estão em jogo.
Alguém que possui disposições que promovem apenas os seus próprios interesses, de uma
forma tal que poderiam entrar em conflito com os interesses de outros, não é nem mesmo
um candidato a ser virtuoso.
A acusação de que a ética da virtude é egoísta é surpreendentemente recorrente. Ela
parece depender, por um lado, da pressuposição de que florescimento deve ser especificado
independentemente da prática das virtudes (de modo que estas são apenas um meio para
aquele como um fim independentemente estabelecido) e, por outro lado, da pressuposição
de que disputas éticas sobre vidas são disputas sobre meios alternativos para fins já
determinados [que estão fora de questão]. Mas nenhuma destas pressuposições é
compartilhada pela ética da virtude, de forma que tais objeções erram o alvo. E, de todo
modo, elas são falsas.

1.3 Vivendo Virtuosamente


Como a ética da virtude explica a noção da qual fiz uso anteriormente, da coisa certa a
fazer? Ela é claramente importante para a teoria, uma vez que uma virtude é uma
disposição desenvolvida ao se fazer a coisa certa e adquirir uma progressiva compreensão
do que ela é, e do seu porquê.
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A ética da virtude faz a suposição realista de que, quando você passa a pensar em
ética e em desenvolver ou melhorar a sua vida como um todo, você já tem uma vida. Você
já possui uma posição social, uma educação cultural, uma família, um emprego, e assim por
diante. Estes são fatores que já contribuíram para o seu desenvolvimento ético, para o bem
ou para o mal. Porque para a ética da virtude importa que tipo de pessoa você é, ela leva em
consideração a importância da pessoa que você é quando você começa a pensar em ser
virtuoso. Não é realista pensar que todos os seus pontos de vista éticos são descartáveis, e
que você poderia vir a ser uma pessoa melhor através de uma conversão da noite para o dia.
Quando você pensar por si mesmo sobre o que é ser corajoso, justo, e assim por diante,
você já terá desenvolvido pontos de vista e atitudes.
Entretando, a ética da virtude clássica sempre pressupõe que a reflexão sobre nossos
pontos de vista éticos os revela inadequados para a forma como queremos ser. Como
Aristóteles diz: “Em geral todos buscam não aquilo que é tradicional, mas o bem” (Politics
1269a3-4). Toda a ética da virtude clássica pressupõe que, de uma forma estranhamente
ausente de muitas teorias contemporâneas, que o pensamento ético inclui, essencialmente,
uma aspiração a ser melhor do que somos. As teorias da virtude clássica são marcadas,
tanto pelo reconhecimento realista da natureza socialmente integrada de nossa vida ética,
quanto pela insistência de que, se pensamos eticamente, estamos nos esforçando para ser
melhor, para alcançar um ideal que ainda não foi atingido. E todas as teorias clássicas da
virtude são muito exigentes a esse respeito (Annas, 2002). É, portanto, irrelevante salientar
que as teorias clássicas foram criadas para um público em sociedades muito diferentes da
nossa. A ética da virtude é relevante sempre que percebermos que as crenças éticas segundo
as quais vivemos são inadequadas, que, por exemplo, elas podem implicar atitudes sexistas
e racistas, e que precisamos nos tornar pessoas melhores. A ética da virtude se desenvolve a
partir do pensamento plausível de que eu tenho que melhorar a mim mesmo; nenhum
mestre ou livro pode fazer este trabalho.
Nada disso é incompatível com o nosso reconhecimento de que existem alguns
juízos sobre ações que são, não apenas amplamente compartilhados, mas não negociáveis
quando pensamos sobre a virtude e a boa vida. Isto é apenas parte de nosso “background”
inicial comum. O que é importante, porém, é que isto não pode se desdobrar em uma teoria
que diga às pessoas o que é certo ou errado fazer, de uma forma tal que não leve em
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consideração o fato de que elas aspiram a ideais dentro de diferentes contextos e em


estágios muito diferentes do seu próprio desenvolvimento ético. Algumas teorias
contemporâneas supuseram que existe tal coisa como uma “teoria da ação correta”, que nos
dirá que ações são corretas ou nos fornecerá uma explicação sobre o que torna uma ação
correta, de tal forma que ela possa ser usada por qualquer um, em qualquer estágio de seu
desenvolvimento moral, com qualquer nível de interesse em ser uma boa pessoa. Isto
tornaria o pensamento ético sobre como agir algo como usar um manual de computador.
Como foi enfaticamente ressaltado (Hursthouse, 1991, 1999), esta é uma visão
completamente irrealista do pensamento ético. Não é plausível supor que uma pessoa
inteligente de dezoito anos possa, ao ler um livro, tornar-se uma pessoa eticamente sábia,
uma excelente fonte de conselhos éticos sobre o que fazer. Nem podemos realisticamente
separar a questão sobre respeitar o conselho de alguém acerca do que fazer e a questão do
nosso posicionamento acerca do que este alguém pensa que é admirável na vida. Não
podemos tomar seriamente a “teoria da ação correta” de alguém, se ele possui péssimas
prioridades em sua vida—mesmo que ele afirme, em bases teóricas, que os dois não estão
relacionados.
A resposta que a ética da virtude oferece à questão sobre o que é certo fazer nega
que exista tal coisa como uma “teoria da ação correta”, em um sentido abstrato. Ao explicar
o que é certo fazer, a ética da virtude apela para a ideia do que seria feito pela pessoa
virtuosa. Esta não é uma definição em que a pessoa virtuosa é independentemente definida
e ações corretas derivadas disto. A ética da virtude defende que “a pessoa virtuosa” não
pode ser definida do nada e, então, usada para derivar ações corretas. Ao contrário, a ideia é
que a coisa que devo fazer, na minha situação, é o que eu faria se fosse corajoso (generoso,
justo, etc.), em que isto significa dizer: mais corajoso do que sou, mais próximo do ideal da
pessoa corajosa. Descobrir a resposta é algo complexo, pois, como vimos, ela exige saber
tanto o que importa na situação em questão quanto o que a coragem demanda. Isto, por sua
vez, requer uma reflexão sobre quais são os fatores relevantes em jogo, e se a concepção
que eu adquiri de coragem é adequada; talvez eu [descubra que] precise pensar mais
cuidadosamente sobre o raciocínio da pessoa corajosa. Obviamente, nenhuma fórmula
simples, universalmente aplicável, resultará disto.
14

O comprometimento da ética da virtude com a posição de que agir corretamente


deve ser entendido como agir tal como a pessoa virtuosa agiria gerou uma série de
diferentes objeções. Uma delas apenas reafirma que isto não é uma “teoria da ação correta”,
disponível a todos, independentemente de como as pessoas são. Estamos agora em
condições de notar que não há como a ética da virtude ser compatível com uma tal teoria,
de forma que a questão passa a ser se isto é uma vantagem ou não. Até o momento,
defensores de uma tal “teoria da ação correta” não forneceram quaisquer argumentos para
acreditarmos que esta é a forma que a ética deve tomar; sobretudo porque era até
recentemente uma pressuposição inquestionável. Neste ponto, a ressurgência recente da
ética da virtude abriu um debate que era necessário.
Outra objeção (cada vez menos comum na medida em que a ética da virtude se
torna melhor compreendida) é que ela é eticamente conservadora, visto que ela tem início
em nossas vidas contextualizadas [socialmente], em vez de pressupor que somos tábulas
rasas, receptivas de uma “teoria da ação correta” que nos diz o que fazer. Estas acusações
surgem apenas se atentarmos para parte dos compromissos da teoria com a ação, o seu
reconhecimento de uma forma de contextualismo [social]. Elas ignoram o compromisso da
teoria com a virtude como ideal, e a insistência de que a ética envolve a aspiração a um
ideal. Na tradição clássica, diferentes teorias fazem exigências mais ou menos fortes sobre
nós na medida em que aspiramos a um ideal. A exigência mais forte, a dos Estoicos, é que,
para ser virtuoso, eu devo pensar-me como apenas um entre outros seres humanos
racionais, um membro da comunidade moral, sem qualquer status especial em função de
minhas realizações e relações individuais. Outras teorias fazem exigências menos fortes.
Nenhuma teoria da virtude clássica leva a sério a ideia de que a virtude poderia ser
alcançada através de uma adequação às convenções sociais [particulares]; isto deixaria de
fora tudo aquilo sobre o que é a ética—uma aspiração a um ideal, na tentativa de se viver
melhor.
No início de seu recente ressurgimento, a ética da virtude foi, por vezes, acusada de
não ser “aplicável” a problemas morais; dizer-nos que tipo de pessoa ser, pensou-se, não
nos ajudará com problemas como o status ético do aborto, da eutanásia e de outros
problemas morais difíceis, com os quais esperaríamos que uma teoria ética nos ajudasse. Já
está claro que a ética da virtude não pode fornecer uma “teoria da ação correta”
15

multifuncional, que possa mecanicamente fornecer a qualquer um as respostas a tais


problemas em qualquer contexto. Mas também está claro que a ética da virtude rejeita esta
visão de “uma teoria da ação correta” em favor a uma explicação que faz mais jus ao nosso
discurso moral e psicologia moral. Enquanto isso, a ética da virtude tem sido aplicada a
uma série daqueles problemas, com tremenda eficácia, a se julgar pelo nível de interesse
nela. Existe atualmente uma riqueza de abordagens da ética da virtude em todos os ramos
da ética aplicada, de modo que os fatos agora estão disponíveis em terreno público.
Abordagens da ética da virtude ao aborto, em particular, têm sido extremamente
influentes.2

1.4 Virtude e Natureza


Pressupõe-se frequentemente que a ética da virtude é naturalista—isto é, que as suas
alegações sobre nosso fim último e virtudes depende de uma visão específica da natureza,
em especial da natureza humana, entendida de uma maneira amplamente científica,
independente das próprias alegações éticas. Às vezes, esta teoria é chamada de
‘aristotélica’.
Não é, porém, verdade que a ética da virtude deva ser naturalista. No mundo antigo,
encontramos versões da ética da virtude que incorporam crenças judaicas e cristãs, e as
teorias da virtude cristãs eram o modelo padrão no período medieval e, de uma forma
diferente, no século dezoito. Mesmo entre os antigos pagãos existia uma tradição
minoritária, derivada de passagens de Platão, que tomava a virtude como sendo um ‘tornar-
se como Deus’. Portanto, aspirar ao ideal da virtude pode ser entendido em termos de uma
teoria radicalmente supranatural, metafísica ou religiosa, que nos diz que devemos
descobrir algo sobre a natureza humana apenas para transcendê-la.
Porém, as mais influentes e bem acabadas teorias clássicas da virtude foram
naturalistas, assim como são naturalistas a maior parte das versões contemporâneas (com
exceção do ressurgimento da ética da virtude cristã, como em Porter, 2001). As mais
conhecidas teorias contemporâneas da virtude, as de Foot e de Hursthouse, caracterizam-se
como neoaristotélicas, e esta é a forma de naturalismo mais comumente associada à ética da

2
Hursthouse, 1991, foi reimpresso em vários compêndios.
16

virtude clássica. Ela é aristotélica em espírito, pois a alegação de que as virtudes me


beneficiam, ao constituírem o meu florescimento, é fundamentada na ideia de que possuir
as virtudes me beneficia como um ser humano. Eu floresço apenas se eu for virtuoso, pois a
natureza humana é tal que o florescimento, para seres humanos, exige que nós vivamos de
uma maneira virtuosa.
Esta é, obviamente, uma afirmação forte e notável, e tem sido frequentemente
criticada por razões equivocadas. Diz-se, às vezes, que ela depende de uma “biologia
metafísica”, peculiar a Aristóteles e já há muito rejeitada. Porém, a teoria da virtude
clássica não depende da biologia, ou de qualquer ciência, segundo o modo que filósofos
contemporâneos têm comumente demandado de uma teoria que é naturalista. A ética da
virtude não é derivada da ciência ou de qualquer outro campo; como vimos, ela surge como
uma versão teórica (em última instância, várias versões teóricas) de nossos pensamentos
reflexivos. Não há qualquer questão da ética ser “reduzida” a algum nível não-ético, ou
emergindo como resultado de uma análise do vocabulário de algum outro domínio. A ética,
nesta tradição, emerge de nossas reflexões sobre como viver e, quando desenvolvida de
maneira teoricamente rigorosa, sobre como guiar-nos para uma vida melhor.
Entretanto, uma teoria ética é enfraquecida se a ciência contemporânea mais
desenvolvida entra em conflito com suas alegações ou torna difícil saber como estas
poderiam ser verdadeiras. No mundo antigo, as formas clássicas de ética da virtude
apelaram para o que consideravam a mais desenvolvida ciência disponível, que é a razão
por que Aristóteles com razão supôs que sua ética era suportada por sua descrição biológica
da natureza humana: ela explicava e suportava a psicologia moral que a ética pressupunha.
Porém, podem formas contemporâneas da ética da virtude apelar à natureza humana,
cientificamente considerada, da mesma maneira? Alguns têm tentado ressuscitar algumas
características particulares do pano de fundo biológico do próprio [modelo de] Aristóteles,
tal como a sua teleologia, mas isto não tem sido considerado muito convincente.
A ética da virtude contemporânea com as ambições das teorias clássicas—entre as
quais o exemplo mais poderoso é o de Hursthouse—faz em termos contemporâneos aquilo
que as teorias clássicas faziam nos seus termos. Ela olha para a natureza humana a partir
das melhores explicações científicas. Aqui as ciências relevantes são biologia, etologia e
psicologia, estudos dos seres humanos e de outros animais como partes da vida de nosso
17

planeta. Quando olhamos para outras espécies, podemos distinguir padrões de


florescimento particulares às espécies. Tem havido relutância em estender isto a seres
humanos, sob a alegação de que, contrariamente a outros animais, nós podemos escolher e
criar diferentes padrões de vida e avaliá-los, tendo como resultado, às vezes, a rejeição ou
alteração do padrão. Foi apenas recentemente que se percebeu que isto não é uma razão
para a rejeição do naturalismo; pois este fato sobre nossa espécie é, precisamente, um fato
sobre a nossa espécie. É porque somos seres racionais que podemos criar e avaliar
diferentes maneiras de se viver, em vez de persistir seguindo o mesmo conjunto de padrões,
tal como os membros de outras espécies fazem. E este é um fato sobre nós do mesmo tipo
de outros fatos sobre outras espécies, com base nos quais nós as estudamos. A
racionalidade humana não é algo que nos separa do resto do universo biológico; é apenas o
que é mais característico de nós como uma espécie. Se levarmos a sério este ponto, então
uma explicação naturalista de seres humanos precisa fornecer padrões de florescimento,
assim como fazemos com as outras espécies, com a exceção de que sejam específicos a
seres humanos; explicando, assim, o modo como nossos padrões de vida são dominados
pelo fato de sermos seres racionais. Em vez de apelar a ideias aristotélicas ultrapassadas, a
teoria da virtude contemporânea se aproveita do fato de que a racionalidade humana tem
sido objeto de estudo científico por psicólogos já há algum tempo (embora tenha sido
apenas recentemente reconhecida como tal) para, com base neste, fornecer uma
fundamentação naturalista para a ética da virtude.
Tipos neoaristotélicos de ética da virtude afirmam, não apenas que beneficia a mim
mesmo como um indivíduo ser virtuoso, mas também que possuir virtudes beneficia seres
humanos em função do tipo de animais que somos. Esta é obviamente uma alegação [com
implicações] ampla[s], e ela tem sido considerada questionável. Mas é importante notar que
é uma afirmação baseada na aceitação e no estudo da melhor explicação científica
disponível. Ela não depende de ignorar a biologia ou de “moralizar” explicações biológicas.
Ela surge da tentativa de levar a sério o fato de que somos animais racionais, como um fato
natural. Com isso, a ética da virtude também trouxe à tona uma série de novas questões
prolíferas. Uma delas é se, ao conferir o peso devido ao fato de nossa racionalidade
determinar a maneira como vivemos, terminaremos mais próximos de uma visão estóica do
que de uma visão aristotélica—isto é explorado por Becker (1998).
18

O que apresentamos foi uma descrição altamente esquemática e simples das


principais características da ética da virtude clássica. Eu não pude nem mesmo abordar
algumas das muitas prolíferas áreas que foram exploradas tanto por escritores
contemporâneos quanto por escritores antigos. Para mencionar apenas algumas: a
importância do raciocínio prático na virtude gera a questão do grau em que as virtudes são
unificadas pelo raciocínio que elas compartilham. Isto, por sua vez, ressalta a importância
do elemento afetivo da virtude e de explorar a psicologia moral das emoções e do prazer. A
inserção social das virtudes levanta questões sobre cooperação social e política, e o tipo de
teoria da justiça que uma ética da virtude exige. Ela também coloca em evidência o tipo de
demanda que o ideal da virtude deve estabelecer se a ética da virtude possuir o tipo de
universalidade que nós comumente exigimos de uma teoria ética. Todas essas questões
estão agora ressurgindo como objetos de uma acalorada discussão.

2. Versões deflacionárias da Ética da Virtude


2.1 Enfraquecendo a centralidade do raciocínio prático
Embora todas as características já mencionadas da ética da virtude em sua versão clássica
sejam importantes, talvez a mais crucial seja o papel central do raciocínio prático do agente.
Eu não sou virtuoso a menos que eu tenha refletido e compreendido por mim mesmo as
razões pelas quais eu ajo, mesmo que eu as tenha originalmente absorvido de mestres e
pais. Se omitirmos este ponto, a ideia de uma virtude se reduz a uma mera disposição para
agir. [Neste caso,] não precisaria ser uma disposição que eu mesmo endosso ao refletir
sobre as razões que me levam a decidir agir corajosamente, justamente, etc.
Qual seria o ponto de uma tal disposição? Uma linha de pensamento comum é que
eu tenho razão para ter uma tal disposição, para agir corajosamente, etc., se ela promove
algum bem, ou para mim ou para os outros. Afinal, por que eu deveria estar motivado a ter
a disposição, se ela não promovesse nenhum bem a mim ou aos demais? Com base nisto,
obtemos um tipo “Humeano” de ética da virtude.3 Segundo esta posição, uma virtude é uma
disposição que é, de modo amplo, útil a mim ou aos outros, uma disposição que, em geral,
promove algum bem. Mas por que, segundo esta posição, deveria ser relevante que eu

3
Baier, 1994; ver também Foot, 1978. (Compare com a obra recente de Foot, 2002, em que as posições dela
sobre o papel do raciocínio prático e da virtude são muito mais próximas da posição clássica.)
19

endossasse a disposição no meu próprio pensamento reflexivo? A versão moderada desta


posição sustenta que posso ter uma virtude mesmo que a minha reflexão revele que eu a
adquiri puramente como resultado da influência de outros, sem meu próprio endosso
reflexivo (Merritt, 2000). A versão radical sustenta que eu não preciso absolutamente de
qualquer pensamento reflexivo sobre a questão; posso possuir uma virtude mesmo que
possuir tal disposição exija que eu seja ignorante ou irreflexivo sobre ela (Driver, 2001).
Uma vez que tenhamos enfraquecido o requerimento que a disposição se
desenvolva e seja praticada através do raciocínio prático do agente, as virtudes podem
passar a ser entendidas meramente como disposições para agir que são produtivas de algum
bem (do agente, ou geral), e esta é a parte que lhes é conferida naquelas formas de
consequencialismo que admitem um papel para as virtudes. O valor das virtudes para um
consequencialista é instrumental, e uma vez que elas adquirem valor por serem produtivas
de um bem consequencialista, é esta sua capacidade de promover um bem que determinará
a sua forma.4 Assim, para um consequencialista, as virtudes serão disposições plásticas que
assumem formas cambiantes segundo alterações nas circunstâncias produtivas do bem. Este
tipo de pensamento atinge níveis cômicos extremos em Bentham. Porém, certos
consequencialistas mais recentes perceberam que isto nos distancia demais de qualquer
compreensão ordinária das virtudes, tornando provavelmente o seu exercício desprovido de
sentido. Eles têm, assim, explorado a ideia das virtudes em sua versão clássica,
perguntando em que sentido elas podem ser indiretamente produtivas de um bem a partir de
uma estrutura consequencialista (Slote, 1998).
Todas estas variedades de virtude são claramente triviais em comparação com o
modelo clássico, e teorias que atribuem a virtudes qualquer daqueles papeis não são
geralmente entendidas como tipos de ética da virtude. Isto se dá porque a centralidade do
raciocínio prático na versão clássica conecta uma virtude como uma disposição ao
raciocínio reflexivo do agente, e assim ao seu caráter; a virtude não é apenas uma
disposição no sentido de um hábito confiável que promove algo, mas é a maneira que o
agente é, constitutiva da maneira segundo a qual ele vive a sua vida, como resultado de suas

4
Hurka, 2001, segue G. E. Moore ao conferir à virtude um papel limitado não-instrumental dentro do
consequencialismo. A definição idiossincrática da virtude de Hurka, como uma atitude positiva em relação ao
bem intrínseco, gera uma versão deflacionária; ela omite o aspecto disposicional da virtude, o papel do
raciocínio prático, e o papel de um fim último.
20

próprias decisões. Não é um acidente que as teorias que mencionam a virtude mas omitem
este elemento tentam acomodar a virtude em uma estrutura que é fundamentalmente
centrada em algo distinto do agente: normalmente a produção de um bem
consequencialista. A virtude nestas teorias é banalizada, já que são cortadas suas relações
com o tipo de vida que o agente leva de acordo com o seu próprio raciocínio reflexivo, em
vez do tipo de vida segundo valores que foram meramente absorvidos [pelo agente]. Pois
este é o ponto da ética da virtude clássica.
Teorias Kantianas também são acusadas de tornar banalizar a virtude; mas esta é
uma questão mais complexa. Ao discutir a virtude, Kant a toma como a força de vontade de
realizar nosso dever, e ele foi interpretado como defendendo que a virtude não é nada mais
do que uma disposição valiosa instrumentalmente por seu papel em permitir ao agente fazer
aquilo que é independentemente reconhecido como o que ele deve fazer. Esta impressão é
fortalecida pelos sutis ataques de Kant às teorias clássicas da virtude, que a vêem como
constituindo nosso fim último (Irwin, 1996). Apesar disto, outras interpretações de Kant
insistem que a sua teoria não separa tão radicalmente a correção de uma ação da vida do
agente e de seus padrões globais de resposta emocional. Recentes interpretações complexas
de Kant, que levam em consideração todas as suas obras em ética, fornecem uma visão
mais refinada do papel da virtude em seu pensamento (Engstrom, 2002; Sherman, 1997;
Wood, 2002). Isto se harmoniza com uma interpretação recente de Kant e com teorias neo-
kantianas que colocam menos ênfase no aspecto deontológico da obediência a regras e
conferem mais importância ao papel do respeito pelas pessoas e ao “reino dos fins”
(Herman, 1993; Korsgaard, 1996). A relação da ética Kantiana com a ética da virtude
clássica ainda está em processo de descoberta (Engstrom and Whiting, 1996; Hursthouse,
1997).

2.2 Restringindo a nossa concepção de florescimento


A ideia de que nosso fim último é definido por restrições formais em vez de ser restringido
por conteúdo é relativamente pouco familiar na filosofia ética contemporânea. Somos
também pouco familiarizados com o pensamento de que o ponto de partida de nossa teoria
é uma especificação vaga de florescimento, mas que, através da reflexão ética, alcançamos
a compreensão de que florescimento requer uma vida virtuosa (em cujo ponto haverá
21

diferentes opções teóricas sobre o papel da virtude em uma vida de florescimento). As


teorias contemporâneas tendem a pressupor que qualquer concepção de florescimento que
tenha um papel em teoria ética deve ser definida [de antemão,] no início da investigação, de
maneira que seja independente das virtudes. (Esta tendência foi encorajada pelo
utilitarismo, que entende a felicidade de modo passivo, em termos de um estado prazeroso,
em vez do viver ativo de uma vida.) Isto tem o resultado imediato de que as virtudes
parecem ter um papel egoísta, sendo vistas como meramente instrumentais à aquisição do
fim último do agente, e sendo vistas neste papel limitado tem encorajado a rejeição
generalizada da virtude como uma noção ética no século vinte. A ética da virtude também é
vista como implausível por sustentar que ser virtuoso é a melhor maneira de se alcançar
florescimento, independentemente definido. Muito críticos vêem a ética da virtude como
uma combinação pouco atrativa de intelectualismo e egoísmo. Mas o alvo destas críticas é
apenas a versão deflacionária da virtude, que é o resultado quando nossa concepção de
florescimento é de antemão estreita, ao ser definida independentemente da virtude. E não é
surpresa que têm sido os próprios críticos hostis que têm forjado esse alvo fácil.
Entender as virtudes meramente como meio para um fim independentemente
especificado é algo que seduz consequencialistas que tentam conectar as virtudes a um fim
distinto do florescimento do próprio agente. Mas, como vimos, ou as virtudes tornam-se
disposições plásticas movidas de um lado para o outro pelas exigências de produção de um
bem consequencialista, ou elas devem ser defendidas de uma maneira meramente indireta.
Se este resultado é problemático, então o consequencialismo deve ou rejeitar as virtudes
completamente como parte de uma teoria ética (um recurso que vem se tornando cada vez
menos plausível) ou descobrir uma maneira de fornecer-lhes um papel não-instrumental na
produção do bem, em que este é definido independentemente da vida e das preocupações
do agente. Mas isto é algo difícil de se defender, uma vez que o ponto de possuir virtude
estaria desconectado das preocupações do agente com a sua própria vida; se o papel do
raciocínio prático também for eliminado, então nenhuma conexão é estabelecida entre a
virtude e as prioridades do agente acerca de sua vida, e isto relega a virtude a um papel
trivial e limitado.5

5
Ver nota 3.
22

2.3 Rejeitando um fim último


O que acontece se rejeitarmos a ideia de que possuímos um fim último ou, menos
radicalmente, rejeitarmos a ideia de que as virtudes estão conectadas a tal fim, se nós o
possuirmos? É possível sustentar que nossas vidas ganham forma através de um fim último,
mas negar que as virtudes contribuam para tal fim. Talvez as virtudes sejam voltadas para
valores tão diferentes que a prática delas não unifica a minha vida. Ou talvez elas o façam,
mas o resultado talvez não seja que elas me beneficiam, em cujo caso a noção de
florescimento estará separada da maneira pela qual as virtudes permitem que eu leve um
tipo específico de vida (Swanton, 1997).
É mais comum, entretanto, rejeitar ou simplesmente ignorar totalmente a noção de
florescimento e de um fim último. Isto, em si mesmo, não implica rejeitar ou ignorar as
virtudes, mas implica a rejeição de uma justificativa unificada para elas. Como tal, é
compatível com a aceitação ou rejeição de um papel central das virtudes no raciocínio
prático, mas ela compromete a teoria com a ideia de que o raciocínio prático do agente,
apesar de atuar em diferentes virtudes ao longo da vida do agente como um todo, fá-lo de
uma forma não unificada. Isto, por sua vez, introduz restrições severas à extensão que a
prática das virtudes pode assumir como parte da aspiração a um ideal de viver uma vida
melhor como um todo.
Nos últimos anos, tem havido, por vezes, um retorno ao interesse pelas virtudes,
mas desacompanhado de um interesse na noção da vida do agente como um todo, como
[forma de] fornecer uma justificativa unificadora para as virtudes. Uma forma que isto
assume é o estudo das virtudes particulares de uma maneira conscientemente assistemática.
Isto tem ocorrido a partir de abordagens deliberadamente a-teoréticas, ou mesmo anti-
teoréticas (Pincoffs, 1986).
Outras abordagens têm sido mais teoréticas mas elas têm se limitado a discutir as
virtudes na ausência de uma estrutura eudaimônica. Como resultado, não é clara a relação
da virtude com outras noções eticamente importantes, particularmente com aquelas que
dizem respeito à ação, e tem havido muito debate sobre isso. Uma versão argumenta que a
correção de ações pode ser baseada na qualidade da motivação virtuosa do agente (Slote,
2001). Uma outra versão vai ao outro extremo, ao identificar a virtude apenas na realização
23

de ações virtuosas, dispensando com o papel do caráter na virtude (Thomson, 1997). De


modo não surpreendente, esta tem sido caracterizada como resultando em uma forma de
pluralismo “Rossiano”, a visão segundo a qual vários tipos de ações são simplesmente
certos ou errados.

2.4 Preservando o contexto [social] e negando a aspiração [ideal]


Algumas teorias desenvolvidas recentemente, que se auto-intitulam ética da virtude, têm
enfatizado o contexto social da virtude em detrimento do ideal da aspiração da teoria: o
ponto de que a virtude é um ideal que se exige que tentemos alcançar. (A obra inicial de
Alasdair MacIntyre [1984] foi interpretada apenas a partir de uma dessas perspectivas, mas
a sua obra posterior fornece um equilíbrio entre elas.) Estas teorias colocam uma ênfase na
ideia de que as virtudes são desenvolvidas dentro de tradições e sociedades existentes. Uma
ênfase excessiva neste ponto envolve o risco, porém, de se cair em um relativismo: a
posição segundo a qual virtudes diferentes são desenvolvidas dentro de contextos que não
podem ser comparados de maneira significativa e estão, assim, fora de [um contexto de]
discussão e crítica mútua. (Esta visão tem gerado críticas injustas à teoria clássica, que
sempre enfatiza a virtude como um ideal não limitado a contextos sociais particulares.)
Essas versões da ética da virtude foram tanto atacadas quanto defendidas por serem
eticamente conservadoras, ao acentuarem a importância de nossos contextos sociais em
detrimento da reflexão sobre a sustentabilidade ética de muitos aspectos de tal
contextualização.
A falta de ênfase na dimensão da aspiração idealista da virtude também tende a
levar a uma redução do papel do raciocínio prático nas virtudes. De fato, teorias
culturalmente conservadoras reduzem as suas concepções de virtude ao salientarem o lugar
do aprendiz como alguém que deve adquirir as virtudes dentro de um contexto social e
cultural, ao mesmo tempo em que negligenciam os estágios do desenvolvimento do
entendimento e do pensamento auto-suficiente, que são cruciais nas versões clássicas.
Teorias culturalmente conservadoras deste tipo podem enfatizar a importância de um fim
último do agente como o ponto fundamental das virtudes, mas reduzirão a ênfase na
extensão de que a reflexão do próprio agente é capaz para repensar e reordenar as suas
prioridades.
24

Uma vez que a teoria clássica é constituída de vários diferentes elementos


importantes, existe obviamente um vasto número de maneiras através das quais as teorias
contemporâneas podem produzir descrições deflacionárias da virtude, omitindo ou
minimizando elementos em várias combinações possíveis. Tentei apenas apresentar, de
uma forma que espero que seja esclarecedora, as maneiras mais comuns em que teorias
contemporâneas divergem do modelo completo da virtude na tradição clássica.

3. Versões contemporâneas não-deflacionárias da virtude


Nem todas as versões da ética da virtude [contemporânea] operam com uma versão
deflacionária de virtude. As mais promissoras neste ponto são as obras de Foot e
Hursthouse, por desenvolverem uma teoria da virtude “neoaristotélica”, e a obra de Becker,
por desenvolver uma teoria “neoestóica”. Estas teorias reconhecem a importância do
raciocínio do próprio agente na prática da virtude; afirmam que as virtudes beneficiam o
agente ao conduzi-lo ao florescimento; e enfatizam que a pessoa virtuosa vai muito além de
se conformar com as convenções da sua sociedade. Ademais, elas exploram uma forma de
naturalismo que situa seres humanos no universo biológico, de uma maneira
cientificamente consistente. Estas teorias, é claro, divergem das teorias eudaimônicas de
muitas maneiras; mas isto é exatamente o que devemos esperar. Elas repensam toda a
estrutura da ética da virtude clássica a partir de uma perspectiva caracteristicamente
contemporânea.

4. Conclusão
Por que a ética da virtude foi tão negligenciada por boa parte dos últimos cem anos? Uma
influência foi o consequencialismo, que reconhece apenas uma noção limitada de virtude,
como um instrumento para a obtenção de algum bem que é definido independentemente [da
virtude]. Há também um foco geral sobre ações em detrimento de agentes; as formas
dominantes de ética kantiana estiveram até recentemente estreitamente obcecadas com
regras e princípios. De fato, até recentemente era um pressuposto que as duas únicas
fundamentais formas de teoria ética eram o consequencialismo e a deontologia—um
pressuposto que claramente toma como inquestionável que a preocupação central da ética é
com ações, em detrimento de agentes. O ressurgimento da ética da virtude não apenas
25

forneceu uma “terceira via”; ele questionou aquela pressuposição latente, e assim não
apenas forneceu uma alternativa às outras formas de teoria, mas também forneceu recursos
a partir dos quais elas podem ser enriquecidas.
Um outro papel nesse contexto também tem sido exercido por uma “metaética”
estreita e orientada metafisicamente, que argumenta, a partir de premissas metafísicas que
têm pouco a ver com a ética, que qualquer forma de naturalismo é problemática. Pensou-se,
por algum tempo, que isto colocava problemas para a ética da virtude. Mas isto está
duplamente errado: a ética da virtude não é por definição naturalista, e aquelas formas dela
que são tomam como ponto de partida o nosso estado de conhecimento em biologia,
etologia e psicologia, em vez de metafísica. De fato, o crescimento da ética da virtude
colocou um desafio à ideia de que a metafísica tem um privilégio sobre a ética; muitos
autores em ética sentem-se desconfortáveis com a ideia de que a metafísica é a “filosofia
primeira”, que pode estabelecer as regras para a ética anteriormente a um trabalho feito
propriamente em ética. O rápido crescimento da ética da virtude contemporânea ocorreu
concomitantemente a uma explosão de interesse em ética aplicada que, da mesma forma,
pressupõe que nossa primeira tarefa é compreender a ética adequadamente, e somente então
perguntar sobre as implicações metafísicas; em vez de o contrário.6
Estamos apenas agora emergindo de um período de compreensão fragmentada da
ética da virtude, e de uma variedade de teorias focadas em uma ou outra forma
deflacionária de virtude. Deve ser óbvio, a partir deste artigo, que eu penso que o futuro
pertence a teorias que fazem em termos contemporâneos aquilo que as teorias clássicas
fizeram nos seus termos. A razão disto não é nenhuma reverência ao passado, mas
simplesmente porque aquelas teorias lidaram com uma gama completa de questões que são
levantadas pela virtude, e assim forneceram à virtude, como uma noção ética, a estrutura
adequada para mostrar como e por que ela é o conceito central em uma teoria ética, assim
como no discurso ético. Quanto mais discussões trouxerem à tona as principais questões [da
virtude], mais rapidamente nos livraremos das críticas ainda recorrentes que tomam as
objeções às versões deflacionárias de virtude como se fossem objeções à teoria completa
clássica. Nos últimos trinta e quarenta anos, assistimos à virtude reemergir como uma

6
A obra de John McDowell, porém, é influenciada por preocupações metaéticas: ver McDowell, 1979
(reimpresso várias vezes).
26

noção teórica na discussão ética e progredimos até o ponto que a ética da virtude é
novamente reconhecida como uma teoria ética. Estamos nos aproximando do ponto de
conseguirmos desenvolver alguns dos maiores temas das teorias clássicas em termos
contemporâneos—por exemplo, o tipo de naturalismo que precisamos para fundamentar
uma teoria que, como faz a ética da virtude, apela substancialmente à racionalidade da
natureza humana. [Mas] aquilo sobre o que precisamos de mais clareza diz respeito à
relação da virtude com o florescimento e com o raciocínio prático, questões que são
proeminentes no debate corrente.
A ética da virtude recebe críticas muito mais ácidas e hostis do que outras formas de
teoria ética, e isto parece ser o caso porque ela questiona pressupostos que têm
fundamentado a ética por grande parte dos últimos cem anos, e assim ela é corretamente
percebida como uma força radical e inquietante. Uma vez que olhamos além das
concepções deflacionárias de virtude, podemos entender por que a ética da virtude tem sido
recebida de forma tão desconfortável pela ortodoxia acadêmica previamente estabelecida.
A ética agora deve considerar explicações rivais do raciocínio prático; prestar atenção à
psicologia moral; perguntar seriamente sobre o que está envolvido em uma justificação
uniforme de nossos usos de um conceito moral; questionar se uma teoria ética pode gerar
um procedimento de decisão global que resolva todos os problemas éticos, levar seriamente
o papel ético de nossas vidas como um todo e o viver a vida como uma atividade em vez de
um estado passivo. Há o suficiente aqui para manter o caldeirão fervendo por muitos anos.

Referências

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———. 1999. Platonic Ethics Old and New. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press.
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Paul, F. D. Miller and J. Paul, 236–256. Cambridge: Cambridge University Press.
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