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METAFÍSICA
ARISTÓTELES
Capa de
Tradução de
CLARA PECHANSKY
L E O N E L VALLANDRO
1969
EDITORA GLOBO
Direitos exclusivos de tradução, em língua portuguêsa, da
Editôra Globo S.A. — Porto Alegre — Rio Grande do Sul
PÔRTO ALEGRE Brasil
uma só experiência. E esta se parece muito com a ciência e a
arte, mas na realidade a ciência e a arte nos chegam através
da experiência; porque "a experiência fêz a arte", como diz
Pólo, "e a inexperiência fêz o acaso v \ Ora, a arte surge quan-
do, de muitas noções fornecidas pela experiência, se produz
em nós um juízo universal a respeito de uma classe de obje-
tos. Porquanto formar o juízo de que tal remédio curou Cálias
quando sofria de certa doença, e da mesma forma no caso de
Sócrates e de muitos outros indivíduos, é questão de experiên^
cia; mas julgar que êsse remédio tem curado todas as pessoas
de determinada constituição, definida como uma classe, quan-
LIVRO I
do padeciam de tal doença — p. ex., pessoas fleumáticas ou
biliosas ardendo em febre — isso é questão de arte.
1
No que se relaciona com a ação, a experiência não parece
Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal dis- ser em nada inferior à arte, e os homens experimentados têm
so é o prazer que nos proporcionam os nossos sentidos; pois, até melhor êxito do que aquêles que possuem a teoria sem ex,-
ainda que não levemos em conta a sua utilidade, são estima- periência. (A razão disto é que a experiência é conhecimento
dos por si mesmos; e, acima de todos os outros, o sentido da do particular e a arte, do universal; ora, todas as ações e pro-
visão. Com efeito, não só com o intento de agir, mas até quan- duções vi*sam sempre o caso particular; pois o médico não cura
do não nos propomos fazer nada, pode-se dizer que preferimos o homem, salvo por uma decorrência acidental, mas a Cálias,
ver a tudo mais. O motivo disto é que, entre todos os sentidos, a Sócrates ou a algum outro que tenha um nome individual
é a visão que põe em evidência e nos leva a conhecer maior como êstes e que, acidentalmente, seja um homem. Se, por con-
número de diferenças entre as coisas. seguinte, alguém possui a teoria sem a experiência e reconhece
o universal sem, no entanto, conhecer o indivíduo que nêle se
Os animais são naturalmente dotados da faculdade de sen- inclui, êsse alguém muitas vêzes falhará no tratamento, já que
tir, e em alguns dêles a sensação gera a memória, ao passo que é o indivíduo que cumpre curar.) Apesar disso, pensamos que
em outros isso não acontece. Em conseqüência, os primeiros o conhecimento e a compreensão pertencem antes à arte do que
são mais inteligentes e mais aptos para aprender do que aquê*- à experiência, e julgamos os teóricos mais sábios do que os em-
les que não possuem memória; os que não têm a capacidade píricos (de onde se conclui que em todos os homens a Sabe-
de ouvir sons são inteligentes, embora não possam ser ensina- doria depende, antes de mais nada, do conhecimento); e isso
dos: sirva de exemplo a abelha e qualquer outra raça de ani- porque os primeiros conhecem a causa, e os segundos, não.
mais que se assemelhe a ela; e os que, além da memória, tamr Com efeito, os empíricos sabem que a coisa é assim, mas igno-
bém possuem êsse sentido da audição, podem ser ensinados.
ram o porquê, enquanto os outros conhecem o porquê e a
Os outros animais vivem de aparências e reminiscências, ca- causa. Pelo mesmo motivo temos maior estima pelos mestres
recendo quase completamente de experiência concatenada; mas de qualquer arte do que pelos obreiros e os consideramos mais
a raça humana vive também pela arte e pelo raciocínio. Nos sábios e mais conhecedores, no verdadeiro sentido da palavra,
homens, a memória gera a experiência, pois as diversas recor- do que êstes últimos, porque conhecem as causas do que se faz
dações da mesma coisa acabam por produzir a capacidade de (os obreiros são comparados a certas coisas inanimadas que efe-
tivamente trabalham, mas sem saber o que fazem, como o fogo
queima; mas, enquanto as coisas inanimadas realizam as suas
NOTA: Os números acompanhados de letras são indicações apro- funções por uma tendência natural, os obreiros as desempe-
ximadas das páginas e colunas do texto grego da edição clássica
das obras de Aristóteles pela Academia de Ciências de Berlim
(1831); os números menores indicam as linhas no mesmo texto. 1 Cf. Platão, Górgias, 448, 462.
nham em virtude do hábito); e assim, nós os julgamos mais
sábios não por terem a capacidade de agir, mas por possuírem^ 2
a teoria e conhecerem as causas. E, em geral, é indício do ho-
mem que sabe e do que não sabe a aptidão do primeiro para Como é êsse o conhecimento que buscamos, devemos indagar
ensinar, e daí julgarmos que a arte é um conhecimento mais de que espécie são as causas e princípios cujo conhecimento
genuíno do que a experiência, pois são os teóricos, e não os constitui a Sabedoria. Talvez a resposta se torne mais eviden-
empíricos, que podem ensinar. te se examinarmos as opiniões que correm a respeito do ho-
mem sábio. Suponhamos, para começar, que êle conhece todas
Por outro lado, não identificamos nenhum dos sentidos com as coisas na medida do possível, embora não tenha ciência de
a Sabedoria, se bem que êles nos proporcionem o conhecimento cada uma delas em particular; e, segundo, que é capaz de
mais fidedigno do particular. Não nos dizem, contudo, o por- aprender coisas difíceis e pouco acessíveis ao homem comum (a
quê de coisa alguma — p. ex., por que o fogo é quente; só nos percepção dos sentidos é comum a todos e, por conseguinte, fá-
dizem que o fogo é quente. cil, não constituindo marca de Sabedoria) ; a seguir, que em to-
dos os ramos da ciência é mais sábio quem possui conhecimen-
É natural, pois, que o primeiro inventor de qualquer arte tos mais exatos e se mostra mais capaz de ensinar as causas; e
que fôsse além das sensações comuns da humanidade se tor- também que, das ciências, a que se apresenta como desejável
nasse alvo da admiração dos homens, não só pela utilidade que por si mesma e por amor ao conhecimento participa mais da
tinham as invenções, mas por ser reputado sábio e superior natureza da Sabedoria do que aquela que é ambicionada por
aos demais. À medida, porém, que foram sendo inventadas* causa de seus resultados, e a ciência superior é mais filosófica
do que a subsidiária; pois ao sábio não convém subordinar-se,
novas artes, algumas das quais tinham em mira as necessidades
mas subordinar, nem deve ser êle o que obedeça, mas ao menos
da vida e outras a recreação, é natural que os inventores das
sábio é que compete obedecer-lhe.
segundas sempre fossem considerados mais sábios que os das
primeiras, porque os seus ramos de conhecimento não visavam Tais e tantas são, por conseguinte, as opiniões que temos
à utilidade. Daí resulta que, uma vez estabelecidas tôdas essas acêrca da Sabedoria e dos sábios. Ora, destas características a
invenções, foram descobertas as ciências que não têm por obje- de conhecer tôdas as coisas deve pertencer àquele que no mais
to nem o prazer, nem a utilidade; e isso aconteceu primeiro alto grau possui o conhecimento universal; pois, em certo sen-
naqueles lugares em que os homens começaram a desfrutar de tido, êsse conhece todos os casos particulares que se incluem
lazeres. Eis aí por que as artes matemáticas foram criadas no no universal. E essas coisas, as universais, são em suma as mais
Egito, onde o lazer era permitido à casta sacerdotal. difíceis de conhecer, por mais longe se encontrarem dos senti-
dos. E as mais exatas de tôdas as ciências são as que tratam
Na Ética 1 apontamos a diferença entre a arte e a ciência, por dos primeiros princípios, porquanto as que envolvem menor
um lado, e as demais faculdades congêneres pelo outro; mas o número de princípios são mais exatas do que as que reque-
objeto da presente discussão é mostrar que todos os homens en- rem princípios adicionais: p. ex., a Aritmética é mais exata do
tendem por Sabedoria a ciência das primeiras causas e dos prin- que a Geometria. Mas a ciência que investiga as causas é tam-
cípios das coisas; de modo que, como já dissemos, o homem bém instrutiva em grau superior, pois as pessoas que nos ins-
que possui experiência é considerado mais sábio do que os truem são aquelas que mostram as causas de cada coisa. E a
possuidores de qualquer percepção sensorial, o artista mais sá- compreensão e o conhecimento buscados por si mesmos são mais
bio do que os homens de experiência, e o mestre de ofício comumente encontrados no conhecimento daquilo que é mais
mais do que o operário; e julgamos que os conhecimentos cognoscível (pois quem almeja conhecer por amor ao conhe-
teóricos participam mais que os produtivos da natureza da Sa- cimento escolherá de preferência o conhecimento mais autên-
bedoria. É evidente, pois, ser esta o conhecimento de certos tico, e êsse é o conhecimento das coisas mais cognoscíveis) ; ora,
princípios e causas. os primeiros princípios e as causas são os mais cognoscíveis,
porquanto é em razão dêles e por meio dêles que tôdas as outras
coisas se tornam conhecidas, e não êles por meio do que lhes
1 1139, 14 — 1141b, 8. está subordinado. E a ciência que mais autoridade possui e
que a tôdas as outras subordina é a que sabe com que fim nas; ora, só esta ciência tem ambas as qualidades requeridas,
cada coisa deve ser feita — fim êsse que é o bem da respectiva pois (1) dizemos que Deus é uma das causas de tôdas as coisas,
coisa e, de modo geral, o bem supremo da natureza como um um dos primeiros princípios; e (2) uma tal ciência, só Deus
todo. Julgado, pois, por todos os critérios que mencionamos, a pode possuir, ou Deus mais do que qualquer outro. As ou-
o nome em aprêço cabe à mesma ciência: deve ela ser uma tras ciências, em verdade, são mais necessárias do que esta,
ciência que investigue os primeiros princípios e causas; pois o porém nenhuma é melhor.
bem, isto é, a finalidade, é uma das causas.
N o entanto, a sua posse deve, em certo sentido, resultar em
Que a Filosofia não é uma ciência prática, vê-se claramente algo que é o oposto da disposição em que nos encontrávamos
pela própria história dos primeiros filósofos. Com efeito, foi ao iniciar essas indagações. Todos os homens, dizíamos, come-
pela admiração que os homens começaram a filosofar tanto no çam por se admirar de que as coisas sejam tais como são, assim
princípio como agora; perplexos, de início, ante as dificuldades como se admiram dos títeres que se movem por si mesmos, dos
mais óbvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram proble- solstícios, ou da incomensurabilidade da diagonal de um qua-
mas a respeito das maiores, como os fenômenos da Lua, do drado com o seu lado; pois a todos aquêles que ainda não en-
Sol e das estréias, assim como a gênese do universo. E o homem contraram a razão disso parece maravilhoso que alguma coisa
que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante não seja comensurável nem mesmo com a menor das medidas.
(por isso o amigo dos mitos é, em certo sentido, um filósofo, Mas devemos terminar no estado contrário e melhor, segundo
pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como o provérbio, como nestes exemplos, quando os homens são ins-
filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam truídos das causas; pois nada causaria maior surprêsa a um
a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. geômetra do que ver a diagonal tornar-se comensurável.
E isto é confirmado pelos fatos, já que foi depois de atendidas
quase tôdas as necessidades da vida e asseguradas as coisas que Fica, assim, definida a natureza da ciência que buscamos,
contribuem para o conforto e a recreação, que se começou a bem como a meta que deve propor-se a nossa investigação.
procurar êsse conhecimento. Está claro, pois, que nós não o
buscamos com a mira posta em qualquer outra vantagem; mas,
assim como declaramos livre o homem que existe para si mes- 3
mo e não para um outro, assim também cultivamos esta ciência
Ê evidente que devemos adquirir o conhecimento das causas
como a única livre, pois só ela tem em si mesma o seu próprio
originais (uma vez que só dizembs conhecer uma coisa quando
fim.
conhecemos a sua primeira causa). Ora, nós falamos de causas
Por isso, haveria talvez razão para considerar a sua posse em quatro sentidos: no primeiro nos referimos à substância,
como estando além dos podêres humanos. Com efeito, a nature- isto é, a essência (aqui, o "porquê" se reduz finalmente à defi-
za humana é servil sob muitos aspectos, de modo que, segundo nição, e o último "porquê" é uma causa e um princípio); no
Simônides, "só Deus pode ter semelhante privilégio", não fi- segundo é a matéria ou substrato; no terceiro é a origem da
cando bem ao homem cobiçar uma ciência desproporcionada mudança, e no quarto, a causa contrária a esta, a finalidade e
às suas forças. Se há, portanto, algo de verdade no que dizem o bem (pois êste é a finalidade de toda geração e de toda mu-
os poetas e a inveja é natural aos deuses, êste seria bem o caso dança) . Embora já tenhamos estudado suficientemente estas
de nos invejarem, e todos os que se distinguissem neste gênero causas em nosso trabalho sôbre a Natureza 1 , vamos recorrer
de conhecimento seriam infortunados. Mas a natureza divina agora àqueles que antes de nós se aplicaram à investigação do
não pode ser invejosa (e quem não conhece o provérbio: "mui- ser e filosofaram a respeito da realidade. Pois é evidente que
ta mentira dizem os poetas"?), nem se pode admitir que haja também êles falam de certos princípios e causas; e assim, o
ciência mais nobre. Pois a mais divina das ciências é também exame de suas opiniões será proveitoso para a presente inda-
a mais nobre; e esta, ela só, é de duas maneiras a mais divina. gação, por isso que, ou havemos de descobrir nelas uma outra
Com efeito, a ciência que mais conviria a Deus possuir é uma
ciência divina, e também o é aquela que trata de coisas divi- 1 Física, II, 3 e 7.
espécie de causa, ou ficará confirmada a exatidão daquelas que docles, os quatro elementos (acrescentando um quarto, a terra,
agora propomos. aos que já foram mencionados); pois êstes, segundo êle, sempre
persistem e não são gerados, salvo a geração que consiste em
Dos primeiros filósofos, a maioria considerou os princípios se tornarem mais ou menos pela agregação de vários num só e
de natureza material como sendo os únicos princípios de tudo
pela dissociação de um só em vários.
que existe. Aquilo^de que são constituídas todas as coisas, o
primeiro elemento de que nascem e o último em que se resol- Anaxágoras de Clazomenas, que, embora mais velho do que
vem (persistindo a substância, mas mudando em suas determi- Empédocles, lhe foi posterior na atividade filosófica, diz que
nações acidentais), a isso chamam eles o elemento e o prin- os princípios são em número infinito; pois, no seu modo de
cípio das coisas, julgando, por conseguinte, que nada é gerado pensar, quase tôdas as coisas que são compostas de partes se-
ou destruído, já que essa espécie de entidade se conserva sem- melhantes a elas próprias, como a água ou o fogo, são geradas
pre, assim como não dizemos que Sócrates nasce quando se e destruídas dessa maneira — isto é, apenas por agregação e
torna belo ou músico, ou que deixa de existir quando perde dissociação — não o sendo em qualquer outro sentido e persis-
essas características, porque persiste o substrato em si, que é tindo eternamente.
Sócrates. Da mesma forma, dizem êles que nenhuma outra coisa
nasce ou deixa de existir, pois deve existir alguma entidade — De tudo isto poderia concluir-se que a única causa é a cha-
uma ou mais de uma — das quais se originam todas as coisas, mada causa material; mas, à medida que os homens foram pro-
enquanto ela própria se conserva. gredindo neste terreno, os próprios fatos lhes abriram o cami-
nho, constrangendo-os a prosseguir na investigação. Se é ver-
Nem todos êles concordam, porém, quanto ao número e à na- dade que tôda geração e toda destruição procede de um ou
tureza dêsses princípios. Tales, o fundador dês te tipo de filo- mais elementos, por que sucede assim e qual é a causa de tais
sofia, diz que o princípio é a água (por êste motivo afirmou acontecimentos? Pois é certo, pelo menos, que o próprio subs-
que a Terra repousa sobre a água), sendo talvez levado a for- trato não é a causa de sua mudança: p . e x . , a madeira e o
mar essa opinião por ter observado que o alimento de todas bronze não produzem as suas próprias alterações, e não é a
as coisas é úmido e que o próprio calor é gerado e alimentado madeira que fabrica a cama nem o bronze que faz a estátua.,
pela umidade: ora, aquilo de que se originam todas as coisas mas outra coisa tem de ser a causa dessa mutação. E buscar
é o princípio delas. Daí lhe veio esta opinião, e também de essa outra coisa é buscar a segunda causa, como diríamos nós
que as sementes de tôdas as coisas são naturalmente úmidas e — isto é, aquilo de que provém o início do movimento. Ora,
de ter origem na água a natureza das coisas úmidas. aqueles que em primeiro lugar empreenderam esta espécie de
pesquisa e que afirmavam a unidade do substrato não se per-
Pensam alguns que os próprios Antigos, que viveram muito turbaram com isso; mas alguns, pelo menos, dos que mantêm
antes das gerações de agora e foram os primeiros a discorrer essa unidade, como que vencidos na busca da causa primeira,
sôbre os deuses, tinham uma concepção semelhante da nature- sustentam que o Um e a Natureza como um todo é imutável
za; pois êles faziam de Oceano e de Tétis os pais da criação não só no tocante à geração e à destruição (no que todos haviam
e afirmavam que os deuses tomavam a água por testemunha de concordado desde o comêço), mas também com respeito a qual-
seus juramentos, chamando-lhe Estige. Gom efeito, o mais an- quer outra mudança; e esta doutrina lhes é peculiar. Dos que
tigo é o mais venerável, e o mais venerável é aquilo por que diziam uno o universo, nenhum conseguiu descobrir subse-
se jura. É duvidoso, talvez, que tal concepção da natureza seja qüentemente uma causa desta espécie, com exceção, talvez, de
primitiva e remota; mas, pelo menos, diz-se ter sido essa a Parmênides, e êsse mesmo só enquanto admite a existência não
doutrina de Tales sôbre a causa primeira. Quanto a Hípon, de uma única, mas, em certo sentido, de duas causas. Mas a
ninguém se lembraria de incluí-lo entre êsses pensadores, tão dificuldade não é tão grande para os que admitem mais de
insignificante é o seu pensamento.
um elemento, como o quente e o frio, ou o fogo e a terra;
Anaxímenes e Diógenes dão prioridade ao ar sôbre a água pois êles tratam o fogo como tendo uma natureza capaz de
como o mais primário e simples dos corpos, enquanto Hípaso mover as coisas, e a água, a terra e o mais que se lhes asseme-
de Metaponto e Heráclito de Éfeso propõem o fogo e Empé- lha como se tivessem a natureza contrária.
Uma vez passada a voga dêsses filósofos e de tais princípios, que pedimos vênia para decidir mais tarde; mas, visto que os
como êstes últimos se mostrassem insuficientes para gerar a na- contrários das várias formas de bem eram percebidos como
tureza das coisas, mais uma vez foram os homens compelidos presentes na natureza — não só a ordem e o belo, mas também
pela própria verdade, como dissemos, a buscar uma outra causa. a desordem e o feio, e maior quantidade de males que de bens,
Pois não é verossímil que o fogo, a terra ou qualquer elemento de coisas ignóbeis que de' coisas belas — outro filósofo intro-
semelhante seja a razão de manifestar-se a bondade e a beleza duziu a Amizade e a Discórdia, cada uma delas a causa de um
tanto nas coisas que são como nas que vêm a ser, nem que dêsses conjuntos de qualidades. Pois, se seguirmos até as últi-
êsses filósofos tenham feito tal suposição; e, por outro lado, mas conseqüências a opinião de Empédocles, interpretando-a
não seria judicioso atribuir efeito de tal monta à espontanei- de acordo com o seu espírito e não com a sua expressão bal-
dade e ao acaso. Por isso, quando surgiu um homem dizendo buciante, veremos que a Amizade é a causa de tudo que é bom,
que a razão estava presente por igual nos animais e em toda e a Discórdia, de tudo que é mau. Portanto, se dissermos que
a Natureza, como causa da. ordem e de todo arranjo harmonio- Empédocles em certo sentido menciona e é o primeiro a men-
so, pareceu ele o único sensato em meio às divagações de seus cionar o bem e o mal como princípios, não estaremos longe da
preüecessores. Sabemos com certeza que Anaxágoras adotou êsse verdade, uma vez que a causa de todos os bens é o próprio bem.
ponto de vista, que, no entanto, muitos dizem ter sido expres-
sado antes dele por Hermótimo de Clazomenas. Os que assim Êstes filósofos, como dizemos, evidentemente chegaram a con-
pensavam afirmaram a existência de um princípio das coisas ceber, dentro dos limites indicados, duas das causas que dis-
que é ao mesmo^tempo a causa da beleza e aquela espécie de tinguimos em nossa obra sobre a Natureza 1 — a matéria e a
causa de onde se origina o movimento. origem do movimento. Fizeram-no de modo vago e obscuro, no
entanto, como homens não exercitados que, nos combates, se
jogam para todos os lados, vibrando, por vêzes, golpes de admi-
4 rável eficácia; mas não combatem de acordo com os princípios
da arte, como êsses filósofos que parecem não saber o que di-
Seria de suspeitar que Hesíodo tenha sido o primeiro a bus- zem, pois é evidente que êles não recorrem às causas que apon-
car algo dêsse gênero — êle ou algum outro que colocasse o tam, a não ser raramente. Anaxágoras, por exemplo, apela para
Amor ou o Desejo como um princípio entre as coisas existen- a razão como um deus ex machina na criação do mundo, quan-
tes, a exemplo de Parmênides; pois assim se expressa êste ao do incapaz de indicar a causa necessária de algum aconteci-
descrever a gênese do universo mento, mas nos outros casos prefere atribuí-los a tudo, menos
à razão. Quanto a Empédocles, se bem que faça muito mais
Antes de todos os deuses criou ela o Amor. uso das causas, não o faz suficientemente, nem alcança a coe-
rência nas suas exposições. Pelo menos, são numerosos os casos
E Hesíodo 2 : em que, para êle, a Amizade separa e a Discórdia congrega;
pois, sempre que o universo é dissolvido em seus elementos
Primeiro que tudo foi feito o Caos, e depois pela segunda, o fogo se congrega num todo só, e o mesmo su-
cede aos outros elementos; mas sempre que, por influência da
A Terra de amplos seios... primeira, êles tornam a unir-se num só todo, as partes devem
novamente separar-se de cada elemento.
E o Amor, supremo entre todos os deuses.
Foi assim Empédocles, em contraste com os seus predecesso-
o que implica que entre os sêres existentes devia haver desde res, o primeiro a introduzir a divisão desta causa, postulando
o comêço uma causa motriz e ordenadora das coisas. Como dis- não uma origem única do movimento, mas origens diferentes
por êsses pensadores segundo a ordem de prioridade, é questão e contrárias. Também foi o primeiro a mencionar quatro ele-
mentos materiais; apesar disso, não faz uso dos quatro, mas
1 Fragm. 13.
2 Teogonia, 116-120. X Fisica, II, 3, 7.
trata-os como sendo apenas dois: o fogo em si e os seus con- como, em suma, tôdas as outras coisas pareciam ser modeladas
trários — a terra, o ar e a água — como uma só coisa. Isto é em sua natureza integral pelos números, e os números se afi-
o que se observa pelo estudo de seus versos. guravam ser as primeiras coisas na Natureza como um todo,
supuseram êles que os elementos dos números fossem os ele-
Assim, pois, como dissemos, falou este filósofo dos princípios
mentos de tôdas as coisas, e que o céu inteiro fosse uma escala
e tal foi o número que lhes designou. Leucipo e seu adepto musical e um número. E, sempre que podiam mostrar uma
Demócrito afirmam que os elementos são o cheio e o vazio, correspondência das propriedades dos números e das escalas
dando a um o nome de ser e, ao outro, o de não-ser: o cheio e com os atributos, as partes e a disposição total dos céus, in-
o sólido correspondem ao ser e o vazio ao não-ser (por isso cluíram e ajustaram tais propriedades ao seu sistema, preen-
dizem que o ser não è mais do que o não-ser, porquanto o chendo sem hesitar as lacunas que se lhes deparavam, a fim de
sólido não è mais do que o vazio); e dêstes princípios fazem dar coerência à teoria. Por exemplo: como o número 10 é con-
as causas materiais de tudo que existe. E, assim como aquêles siderado perfeito e contendo em si a natureza de todos os
que consideram o substrato como uno fazem derivar tôdas as números, dizem êles que os corpos que se movem através dos
outras coisas das suas modificações, vendo no denso e no rare- céus são dez; ora, os corpos visíveis são apenas nove, de ma-
íeito as origens dessas modificações, também êstes filósofos di- neira que, para vencer a dificuldade, inventam o décimo — a
zem que as diferenças nos elementos são as causas de tôdas as "Antiterra".
outras qualidades. Essas diferenças, acrescentam êles, são três:
forma, ordem e posição. Pois, no seu modo de ver, o real só se J á discutimos estas questões com mais rigor em outra parte 1
diferencia pelo "ritmo", pelo -'contato mútuo" e pelo "girar e se as repassamos aqui é no intuito de aprender com êstes
sôbre si"; e, dêstes, o ritmo é a forma, o contato mútuo é a filósofos quais supõem ser os princípios e como se enquadram
ordem, e o girar sôbre si é a posição; com efeito, A difere êstes nas causas que mencionamos. Pois bem: é óbvio que êles
de N pela forma, AN de NA pela ordem, e S d e H pela posi- também consideram o número como princípio, tanto na qualida-
ção. O problema do movimento — de onde e como vem êle de de matéria das coisas como de origem de suas modificações e
encontrar-se nas coisas — êsses filósofos, como os outros, negli- estados permanentes, afirmando que os elementos do número
gentemente puseram de parte. são o par e o ímpar, e que, dos dois, o segundo é limitado e o
primeiro, ilimitado; e que a unidade procede de ambos (sendo,
E até aí, dizemos nós, parecem ter chegado as investigações
ao mesmo tempo, par e ímpar), e da unidade, o número; e os
dos primeiros filósofos no tocante às duas causas.
números constituiriam, como já se disse, o céu inteiro.
Ainda mais: por que é uno um número quando tomado no Tampouco têm as formas qualquer relação com o que vemos
seu todo? ser a causa no que se refere às artes, aquilo para que tende
a operação de tôda inteligência, assim como da natureza intei-
Por outro lado, além do que já ficou dito, se as unidades ra — com essa causa que afirmamos ser um dos primeiros prin-
são diversas os Platônicos deveriam ter falado como os que sus- cípios; mas a Matemática passou a identificar-se com a Filoso-
tentam a existência de quatro ou de dois elementos; pois cada fia para os pensadores modernos, embora digam que ela deveria
um dêsses filósofos dá o nome de elemento não àquilo que é ser estudada no interêsse de outras coisas 1 .
comum, como p. ex., o corpo, mas ao fogo e à terra, quer haja,
quer não haja algo de comum entre êles (isto é, o corpo). Mas Também se poderia supor que a substância subjacente apon-
o fato é que os Platônicos falam como se o Um fosse homogê- tada por êles como matéria é excessivamente matemática, e
neo, a exemplo do fogo e da água; e, a ser assim, os números antes um predicado e diferenciação da substância, isto é, da
não serão substâncias. Evidentemente, se existe o "Um-em-si" matéria, do que matéria propriamente dita; em outras pala-
e êsse é um primeiro princípio, a palavra " u m " está sendo vras, o grande e o pequeno são como o denso e o tênue de que
usada em mais de um sentido; de outra forma, a teoria é im- falam os Fisiólogos, chamando-lhes diferenciações primárias do
possível. substrato; pois êles são uma espécie de excesso e carência. E
Quando desejamos reduzir substâncias aos seus princípios, di- no que tange ao movimento, se o grande e o pequeno são mo-
zemos que as linhas provêm do curto e do comprido (isto é, vimento, evidentemente as Formas se moverão; mas, se não são
de uma espécie de grande e pequeno), o plano do largo e do movimento, de onde proveio êste? Todo o estudo da natureza
estreito, e o corpo do espêsso e do fino. Mas, nesse caso, como fica assim aniquilado.
pode o plano conter uma linha, ou o sólido conter um plano
E aquilo que parece fácil — mostrar que tudo é um — não se
ou uma linha? Pois o largo e o estreito constituem uma classe
consegue; pois o que se prova pelo método expositivo não é
diferente do espêsso e do fino. Por conseguinte, assim como o
que tudo seja um, mas que existe um Um-em-si — se concede-
número não está presente nêles, porque os muitos e os poucos
mos todos os pressupostos. E nem mesmo isso se segue, se não
constituem ainda outra classe, evidentemente nenhuma das
classes superiores estará presente nas inferiores. Mas, por ou- concedemos que o universal seja um gênero — o que por vê-
tro lado, o largo não é um gênero que inclua o espêsso, pois zes é impossível.
nesse caso o sólido seria uma espécie de plano. E, além disso, Tampouco é possível explicar como existem ou podem exis-
de que princípio derivaria a presença dos pontos na linhaf O tir as linhas, os planos e os sólidos que vêm depois dos núme-
próprio Platão levantava objeções a esta classe de entidades, ros, nem qual seja o significado dêles; pois não podem ser
como sendo uma ficção geométrica. Chamou "princípio da li-
nha" às linhas indivisíveis, que muitas vêzes postulou. E con-
1 Cf. Platão, República, VII, 531, 533.
Formas (uma vez que não são números), nem intermediários Claramente se conclui do exposto que todos os homens pa-
(os quais constituem o objeto da Matemática), nem coisas cor- recem buscar as causas indicadas na Física 1 e que não é pos-
ruptíveis. Trata-se, evidentemente, de uma quarta classe dis- sível indicar nenhuma outra além dessas; procuram-nas, porém,
tinta. vagamente; e, se bem que em certo sentido tôdas elas já te-
nham sido descritas, em outro sentido não o foram em absolu-
De um modo geral, se buscamos os elementos das coisas exis- to. Efetivamente, a mais antiga filosofia é balbuciante em
tentes sem distinguir os numerosos sentidos em que se diz que todos os assuntos, por ser jovem e estar em seu comêço. O pró-
elas existem, não conseguimos encontrá-los, especialmente se a prio Empédocles diz que o osso existe por força de uma rela-
pesquisa dos elementos de que se compõem as coisas é condu- ção. Ora, essa é a substância e a essência do osso. Mas é tam-
zida desta forma. Com efeito, é realmente impossível descobrir bém necessário que a carne e cada um dos outros tecidos sejam
de que são compostos a "ação", a "paixão" e o "reto"; mas, se uma relação dos respectivos elementos, ou que nenhum dêles
possível é descobrir elementos, serão apenas os elementos das o seja; pois é devido a isso que tanto a carne como o osso e
substâncias. Portanto, labora em erro quem procura ou julga tudo mais existe, e não devido à matéria que êle chama fogo,
haver encontrado os elementos de tôdas as coisas existentes. terra, água e ar. Mas, embora Empédocles não pudesse deixar
de /concordar se algum outro o dissesse, êle mesmo não o expri-
E como poderíamos aprender os elementos de tôdas as coi- miu claramente.
sas? É evidente que não poderia haver nenhum conhecimento Sôbre estas questões já nos manifestamos antes; mas voltemos
prévio. Pois, assim como quem está aprendendo Geometria, à enumeração das dificuldades que podem surgir acêrca dos
embora possa ter conhecimento de outras coisas, nada sabe da- mesmos pontos 2 ; isso talvez nos ajude a resolver dificuldades
quelas de que trata essa ciência e que êle se dispõe a aprender, posteriores.
o mesmo sucede em todos os outros campos. Portanto, se exis-
te uma ciência de tôdas as coisas, tal como pretendem alguns,
quem começasse a estudá-la nenhum conhecimento prévio teria.
No entanto, todo aprendizado se baseia em premissas, tôdas ou
algumas delas conhecidas com antecedência — quer o aprendi-
zado se faça por demonstração, quer por definições; pois de-
vemos conhecer prèviamente os elementos da definição e estar
familiarizados com êles; e o aprendizado por indução se pro-
cessa de forma semelhante. Mas, por outro lado, se esta ciência
fôsse realmente inata, seria pasmoso que possuíssemos a mais
alta das ciências sem nos apercebermos disso.