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HISTÓRIA DA FILOSOFIA –

A ANTIGUIDADE TARDIA
PROF. MARCELO CONSENTINO
Presidente da Mantenedora
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Reitor:
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Pró-Reitoria Acadêmica
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Diretora de Ensino
Prof.a Dra. Gisele Caroline
Novakowski
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© Direitos reservados à UNINGÁ - Reprodução Proibida. - Rodovia PR 317 (Av. Morangueira), n° 6114 Cristiane Alves
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA – A ANTIGUIDADE TARDIA

O ORIENTE ANTIGO E A
EVOLUÇÃO DA FILOSOFIA GREGA

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................................4
1 EXCURSO ORIENTAL..................................................................................................................................................5
1.1 ÍNDIA.........................................................................................................................................................................5
1.2 CHINA.......................................................................................................................................................................6
1.3 PÉRSIA......................................................................................................................................................................8
1.4 EGITO........................................................................................................................................................................9
1.5 CALDEIA E FENÍCIA................................................................................................................................................ 10
2. AS ESCOLAS HELENÍSTICAS.................................................................................................................................. 11
2.1 RAÍZES DAS ESCOLAS CÍNICAS, CÉTICAS, EPICURISTAS E ESTOICAS........................................................... 11
2.2 DESENVOLVIMENTO, PROPAGAÇÃO, ESTAGNAÇÃO E DECADÊNCIA DAS ESCOLAS HELENÍSTICAS NA ERA
DOS IMPÉRIOS MACEDÔNICO E ROMANO...............................................................................................................13
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................ 16

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INTRODUÇÃO

Se a filosofia for tomada em seu sentido estrito de busca puramente racional da verdade, é
lícito iniciar a sua história na Grécia, senão por mais nada, porque o próprio nome “philo-sophia”,
hoje empregado mundialmente, é grego e foi consolidado por Platão. Mas, sobretudo, porque foi
na Grécia que essa a “pureza” da razão “pura” foi destilada e circunscrita de forma rigorosa pela
primeira vez.
Contudo, entendida em seu sentido amplo de “amor à sabedoria”, a filosofia, assim como
outros produtos das duas potências distintivas do ser humano, a vontade e a razão, tal como o
Estado, o direito, a arte ou a religião, existe, ao menos em forma embrionária e confusa, desde
que existe o ser humano.
Assim, antes de retornar à Grécia, convém realizarmos um excurso digressivo rumo ao
Oriente, para expor as formas mais elevadas em que esse germe foi desenvolvido, ainda que não

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tenha atingido a “pureza” conquistada pelos gregos.
De resto, há inegáveis influências do pensamento oriental sobre o grego (por exemplo,
dos povos vizinhos do Egito, da Pérsia, da Fenícia e mesmo de seus irmãos de sangue arianos,
na Índia), ainda que, com as fontes à disposição, seja difícil para a filologia e a historiografia
contemporânea precisar o seu grau e extensão (as exposições a seguir foram coligidas com base
em extratos e reduções de quatro fontes principais: o manual Précis de l’Histoire de La Philosophie,
editado por L.A. de Salinis e B.D. de Scorbiac; os volumes I (Filosofia Pagã Antiga) e II (Patrística
e Escolástica) da História da Filosofia de G. Reale e D. Antiseri; verbetes da Enciclopedia Filosofica
Bompiani; e a Introdução à História da Filosofia de G.W.F. Hegel. Outras fontes e referências de
estudo podem ser consultadas na Bibliografia ao fim da apostila).

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1 EXCURSO ORIENTAL

No Oriente, na China, na Pérsia e no Egito formam como três ângulos de um triângulo


luminoso, no interior do qual exerceu-se a atividade do gênio oriental, e no qual a Caldeia e a
Índia ocupam praticamente o meio.

1.1 Índia

Na Índia, os rudimentos da especulação filosófica estão radicados nas doutrinas sobre


Deus, a criação e a alma dos livros sagrados conhecidos como Vedas (XVI-X a.C.) – uma derivação
da palavra sânscrita vidya, “ciência”, “lei” –, além das grandes epopeias, o Ramayana (VII a.C. -
III d.C.) e o Mahabharata (III a.C. – III d.C.), de onde emerge o Bhagavad-Gita; os textos legais
do Manava-Dharma-Sastra (II-III d.C.), que dá origem ao hinduísmo; e os poemas teogônicos e

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cosmogônicos nas Puranas (IV-XI d.C.).
De acordo com os Vedas, eternamente existe Brahm, a substância primeira, infinita,
a unidade pura, como que mergulhada, na origem, em um sono divino. Ao despertar, Brahm
se torna luz, inteligência determinada, e pronuncia a palavra fecunda, da qual procede todo o
Universo. Do seio de Brahm, emerge Brahma, o criador; Vishnu, o conservador das criaturas;
e Siva o destruidor das criaturas, o qual promove o retorno dos seres a unidade originária em
Brahm.
Mas essa dinâmica só se desencadeia a partir da emanação de um quarto princípio, Maya:
a matéria, ou a ilusão, fonte de todos os fenômenos e o meio através qual surgem as existências
individuais. Em Maya, residem três qualidades, a bondade, a impureza e a obscuridade. Da união
de Brahm, que contém os arquétipos dos seres, com Maya, princípio da individualização, resulta
toda a criação.
O universo se desenvolve a partir de dois grandes germes: Mahabhouta, a condensação
das almas, e Pradjapati, a condensação dos corpos. Daí surgem os espíritos e a raça humana.
Ambos estão submetidos à lei universal da transmigração, a passagem sucessiva de corpos menos
perfeitos aos mais perfeitos, até a libertação final, ou seja, a reunião definitiva com a grande “alma
do Mundo”, Atma. A doutrina da transmigração é comum a todas as religiões indianas, cada uma
advogando o meio mais eficaz de promovê-la.
A Bhagavad-Gita (Canção do Senhor) desenvolve esse sistema em todo seu rigor
metafísico, com suas consequências morais. Ainda que em forma poética, suas deduções lógicas
marcam a transição da primitiva consciência mitológica indiana para a reflexão racional.
Os indianos distinguem suas teorias filosóficas entre ortodoxas e heterodoxas, conforme a
sua sintonia à doutrina dos Vedas. Os dois sistemas Mimansa são considerados ortodoxos. Pourva
ensina a arte do raciocínio aplicado à interpretação dos Vedas. O sistema Vedanta deduz dos
Vedas uma metafísica que chega à negação do mundo material e de toda a existência individual.
Parte ortodoxos e parte heterodoxos são os sistemas Nyaya, uma espécie de filosofia lógica, e
Vaisechika, uma filosofia física; e a filosofia Sankhia, de onde deriva a Yoga. As espiritualidades
Djaina e Budista são consideradas inteiramente heterodoxas.

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As ideias comuns, a maior parte desses sistemas são: 1) uma substância infinita, eterna,
que “sonha” uma multidão incontável de formas e fenômenos que compõem o universo; 2) a
ideia de “emanação”, mais do que “criação”, enquanto manifestação de existências que estavam
em estado latente no ser originário; 3) a matéria enquanto meio através do qual se formam as
existências individuais; 4) a sucessão infinita de criações e destruições periódicas; 5) um estado
de abstração pelo qual a alma se separa completamente da natureza, e mesmo um estado de
aniquilação, resultante da absorção na substância primordial, que são estados de perfeito repouso,
de felicidade suprema e o objetivo definitivo da sabedoria; 6) a tendência à indiferença e à apatia
absolutas, que não exclui a atividade, mas a considera um meio transitório até o perfeito repouso.
Em resumo, o pensamento indiano é dominado pela ideia de que só a unidade absoluta
é real e a multiplicidade de todas as coisas é só uma aparência transitória rumo à reabsorção do
finito no infinito.
Apesar desse epicentro, as filosofias indianas são marcadas por divisões profundas, que
se manifestam em três soluções fundamentais: o panteísmo, que não vê nos seres finitos mais do
que modificações da substância infinita, a única realmente existente; o dualismo, que divide o Ser
ou a Substância entre dois princípios irredutíveis; e o materialismo ou o ateísmo, que substitui a

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unidade infinita por uma espécie de multiplicidade infinita de átomos.
O panteísmo foi definido de uma maneira rigorosa pela escola Vedanta: o universo não é
mais que o espetáculo que Deus oferece a si mesmo de seus próprios pensamentos. A concepção
dualista predomina na escola Sankhia. A doutrina Vaisechika é a expressão mais bem acabada do
materialismo indiano.

1.2 China

Como os Vedas na Índia, o I Ching, ou Livro das Mutações (c. XI-VIII a.C.), uma espécie
de enciclopédia primitiva de temas metafísicos, físicos e morais, forma o mais antigo monumento
literário e espiritual da China.
Segundo o I Ching, todas as coisas se originam da razão originária, o Tao, e se apoiam
nela. O Tao gera duas naturezas complementares, Yin, o princípio receptivo (literalmente,
“treva”), e Yang, o princípio ativo (“luz”), de onde emanam as dualidades fundamentais entre céu
e terra, verão e inverno, masculino e feminino, ordem e desordem. No I Ching, Yin (imperfeito)
é representado por uma linha quebrada (--) e Yang por uma linha contínua (–).
A dinâmica do universo é simbolizada pela combinação dessas linhas em séries de três,
resultando em oito trigramas, que representam os princípios fundamentais da realidade, conforme
a predominância maior ou menor de um dos princípios. Como dois polos opostos, o trigrama
“Céu” (plenamente Yang) é formado por três linhas contínuas, e o trigrama “Terra” (plenamente
Yin), por três linhas quebradas. Os seis princípios intermediários são Trovão, Água, Montanha,
Vento, Fogo e Lago. Os trigramas, por sua vez, são combinados em séries de dois, dando origem
a 64 hexagramas, que representam todas as forças em interação no universo.
A moral do I Ching se apoia sobre o princípio de que o ser humano deve imitar a razão
celeste, o Tao, que, sublime e luminoso, abaixa-se até a terra. Ao se humilhar, o ser humano é
elevado pelo Tao.
A noção metafísica do I Ching encerra assim uma ideia comum a quase todas as filosofias:
a criação, que surge da unidade originária (Tao), contém dois princípios subordinados, um ativo
e um passivo. Os espíritos são eminentemente o princípio ativo, e a matéria é o princípio passivo
que eles moldam e orientam. Os dois grandes princípios entram na composição do homem, que
forma assim uma espécie de microcosmo.

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Também no I Ching está contida, embrionariamente, a ideia comum em todas as filosofias,


da qual germinarão as ciências, de que as operações da natureza correspondem a leis matemáticas.
Dentre as muitas variações das filosofias chinesas (fala-se em “100 escolas”), duas se
tornaram particularmente paradigmáticas e historicamente predominantes: a de Lao-Tzé (VII-V
a.C.), conhecida no Ocidente como Taoismo, e a de Confúcio (VI-V a.C.), o Confucionismo.
Lançando mão de uma generalização, pode-se dizer que a doutrina de Lao-Tzé é fundada em
uma concepção metafísica que inspira uma conduta moral. A de Confúcio é fundada em uma
concepção moral que inspira uma contemplação metafísica.
Segundo o livro fundante do Taoísmo, o Tao Te Ching, a razão primordial, impenetrável
e inefável, o Tao, “produziu o um (a substância da razão), o um produziu o dois (o Céu e a Terra),
o dois o três (o matrimônio entre o Céu e a Terra), e o três todas as coisas”. “O ser humano tem
seu tipo e seu modelo na terra; a terra, no céu; o céu, na razão; e a razão, em si mesma”. As almas
são emanações do céu, onde se reunirão, após a morte, se forem virtuosas, ou seja, se viverem em
perfeita harmonia com a natureza emanada do Tao.
“Tudo aquilo que eu vos ensino, os antigos sábios praticaram antes de nós”, dizia Confúcio,
resumindo a sua doutrina. “Esta prática se reduz à observação das três leis fundamentais da

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relação entre os soberanos e os súditos, entre os pais e os filhos, entre os esposos e as esposas, e à
prática exata das cinco virtudes capitais: . . . A humanidade, ou seja, a caridade universal para com
todos, sem distinção; a justiça, que dá a cada indivíduo aquilo que lhe é devido, sem favorecer
um sobre o outro; a conformidade às cerimônias e aos costumes, afim de que aqueles que vivem
juntos tenham uma mesma maneira de viver e partilhem das mesmas satisfações e dos mesmos
incômodos; a retidão de espírito e de coração, que faz com que se busque em tudo a verdade . . . e,
enfim, a sinceridade ou a boa fé, ou seja, aquela franqueza, aquela abertura de coração, mesclada
de confiança, que exclue todo fingimento e toda dissimulação, tanto no comportamento quanto
nas palavras”.
O caráter próprio da doutrina de Confúcio é que todos os deveres do ser humano são
apresentados como formas variadas de deveres domésticos. A lei da família é a lei universal.
Assim, todas as virtudes são redutíveis a uma só: a piedade filial. A fonte de todos os males é
o conflito que existe entre os superiores e os inferiores, que perturba a harmonia individual,
familiar, social e mesmo cósmica. A piedade filial restaura essa harmonia. “Ela se divide em três
imensas esferas, a primeira é a dos cuidados e respeitos devidos aos pais; a segunda envolve tudo
aquilo que diz respeito ao serviço do soberano e da pátria; a última e mais elevada é a aquisição
das virtudes, e daquilo que faz a nossa perfeição”.
Por mais sublime que seja, a moral de Confúcio sofre de um vício de origem que
reflete profundamente o espírito da civilização chinesa e afetou os seus destinos. Ela confunde
radicalmente a sociedade política com a família: todas as propriedades são do pai, assim como
todas as vontades são a vontade do pai. Esta confusão reprime todo elemento de liberdade
individual em favor da obediência. Daí a imobilidade da civilização chinesa, em contraste com o
dinamismo ocidental.

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1.3 Pérsia

Como os Vedas para os indianos e o I Ching para os chineses, o núcleo originário das
doutrinas persas estão contidos na coletânea conhecida como Avesta, atribuída a Zoroastro ou
Zaratustra (VIII-VII a.C.). O fim desta doutrina parece ter sido reformar e depurar os cultos
persas, conduzindo-os ao espiritualismo, ou seja, apresentando o mundo sensível como a
expressão e o símbolo do mundo espiritual.
No começo, existia o Tempo sem limites, a unidade primeira e fonte de todos os seres.
O Tempo sem fim produziu Ormuzd, o ser puro e bom por excelência, a luz e palavra criadora.
Produziu também Ahriman, o perverso, o princípio tenebroso da anarquia e do conflito. Ormuzd
corresponde ao princípio espiritual; Ahriman, ao material. Assim a criação traz em seu seio uma
divisão radical, uma luta necessária e inexorável. A ideia do combate torna-se a fórmula geral do
universo, e daí a sucessão do dia e da noite, que disputam o império do Tempo, e perseguem um
ao outro.
Ormuzd produz os arquétipos vivos de todas as coisas e os espíritos primordiais, que

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creem nele e o adoram. Ahriman produz as forças tenebrosas, os espíritos perversos.
Assim, a criação sobre-humana é dupla. Ela comporta dois mundos opostos que se
introduzem na criação inferior, o mundo humano ou terrestre. Ormuzd produz o germe desta
criação inferior, contendo o princípio da vida dos seres humanos, dos animais e das plantas, e
é representado pela forma de um touro, símbolo da potência orgânica. Ahriman, após investir
malogradamente contra o céu, desce à terra, e fere de morte o touro misterioso. Mas sua morte
fecunda gera toda a vida: de seu ombro esquerdo sai sua alma, princípio vital de todos os seres
vivos; de seu ombro esquerdo, o primeiro ser humano, que encerra o homem e a mulher; de seu
sangue surgem os animais puros; de seu corpo, as plantas puras. Para sustentar sua luta, Ahriman
cria os animais e plantas impuras.
O ser humano primitivo, que encerra o homem e a mulher, surge assim entre os dois
extremos: o dos espíritos luminosos de Ormuzd e o dos tenebrosos de Ahriman. Ele vive entre
os seres terrestres puros do primeiro e os impuros do segundo, mas escapa a esta duplicidade.
Ahriman não foi capaz de criar um ser humano perverso e impuro, e não tinha outro recurso
senão ferir o ser humano primordial. De seu sangue nasceram os ancestrais do gênero humano,
que foram seduzidos por Ahriman e passaram a adorar os espíritos perversos.
A luta entre Ormuzd e Ahriman se perpetua no gênero humano, sob a dupla influência
dos espíritos bons e maus, e o duplo contato com as criaturas puras e impuras. Daí a necessidade
de uma dupla purificação, espiritual e corporal, através das orações e ritos ensinados por Ormuzd
a Zoroastro.
As almas que seguem Ahriman se reunirão aos espíritos perversos no abismo de trevas
e suplícios. As que seguem Ormuzd se reunirão a ele e aos espíritos benevolentes na luz e na
felicidade. No fim dos tempos, Ahriman será ele mesmo purificado, o mal será vencido, e o
antagonismo da criação desaparecerá.
As concepções persas formam um contraste saliente em relação às indianas. Se o
pensamento predominante na filosofia dos Vedas é a unidade da criação, no zoroastrismo não
é só a sua duplicidade, mas o antagonismo que a perpassa de alto a baixo, em todos os seus
graus. Mas este antagonismo não pode ser reduzido ao dualismo radical que seria desenvolvido
posteriormente pelas escolas dos Magos persas, e que concebe dois princípios coeternos,
necessários, não-gerados. Ao que tudo indica, na doutrina original de Zoroastro o princípio
luminoso e o tenebroso surgem ambos de uma unidade primordial, o Tempo sem limites. Esta
unidade está na origem da criação, na pura indeterminação, e estará em seu fim, na apoteose
definitiva do bem.

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A ambivalência no desenvolvimento histórico do zoroastrismo entre uma duplicidade


contigente e uma dualidade absoluta depende da questão se Ahriman surgiu perverso por
natureza ou se se perverteu pelo abuso de sua liberdade. A ideia de sua redenção sugere que a
última opção é a mais verossímil. Mas certas tradições se definem resolutamente pelo dualismo:
o princípio tenebroso, identificado com a matéria, é concebido como essencialmente maléfico,
mas, para não atribuir a Deus a causa do mal, essas mesmas tradições admitem que a produção
deste princípio não estava contida na vontade original do criador, mas que foi somente uma
consequência inevitável da criação dos seres bons, tal como a sombra se segue à pessoa.
Há um eclipse nas fontes históricas sobre a evolução da tradição persa. Mas, com maior
ou menor força, elas parecem influenciar o culto de Mitra, já na era cristã.

1.4 Egito

Não se conhece nenhum livro de origem das concepções filosóficas egípcias, os vestígios
das doutrinas sacerdotais reportados pelos gregos são fragmentários e opacos.

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Tudo indica que, no princípio da teologia egípcia, esteja o deus sem nome, a obscuridade
primitiva, o ser incompreensível, o princípio oculto de tudo aquilo que existe, a fonte invisível da
luz e da vida, que está além de toda inteligência.
Sua primeira emanação é Kneph, a razão primordial das coisas, o criador, o demiurgo. A
segunda é Phta, o organizador do mundo, deus do fogo, princípio vital. Finalmente, vem Osiris,
o princípio ativo da natureza. Cada uma dessas emanações parece ter uma companheira, uma
espécie de versão diminuta e que por vezes parece ter propriedades opostas. Seu papel parece ser
conferir uma completude à trindade originária egípcia e seu mundo.
A partir daí, surge uma emanação tenebrosa (Athyr), que se identifica com a matéria
primitiva, cuja primeira forma foi a água.
À medida que os poderes são incorporados no universo, ou enquanto o constituem
radicalmente, eles são representados por uma dupla emanação, Osiris e Isis. Osiris é o princípio
luminoso e ativo na natureza; Isis, o princípio passivo, tenebroso, material. As vestes de Osiris são
de pura luz, a qual, nas vestes de Isis, se multiplica em todo tipo de gradações coloridas. Todas as
criaturas são geradas pelo matrimônio de Osiris, o pai (identificado com o sol), e de Isis, a mãe
(identificada com a lua).
Depois de Osiris e Isis, vêm outras emanações subordinadas à combinação do princípio
ativo e passivo, que correspondem aos grandes fenômenos da natureza.
Mas na criação, há uma lei de destruição: há desordem na ordem; o mal no bem; a morte
na vida. O princípio do mal é Typhon. Sua origem é obscura, mas parece ter surgido de Athys,
que representa o caos tenebroso, o estado primordial dos elementos. Typhon é revestido de todos
os atributos da força maligna e desordenada. Ele se une a Nephtys, a perfeição, a beleza plena, e
daí a mescla entre o bem e o mal, que é como que a essência do mundo.

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1.5 Caldeia e Fenícia

As fontes para essas duas civilizações também vêm majoritariamente dos gregos, mas são
ainda mais crípticas do que as fontes egípcias.
Na Caldeia, Deus aparece no seio do caos, a natureza primitiva – que não era mais que
trevas e água, uma matéria úmida contendo criaturas monstruosas, e que é personificada em uma
mulher, Omorca – para dividir seu corpo e formar, com uma metade, o céu, e com a outra, a terra,
produzindo a luz que mata os monstros, filhos do caos, e dá origem à ordem e à regularidade.
Com seu próprio sangue e o de outros deuses inferiores mesclados à terra, ele cria as
almas dos seres humanos e as dos animais, que têm portanto uma origem divina, ao passo que
os corpos inanimados celestes e terrestres são formados com a substância de Omorca, ou a
substância meramente material.
Em toda essa cosmogonia, praticamente não há vestígio das abstrações tipicamente
produzidas por um instinto especulativo filosófico. Mas, curiosamente, há algum germe de
ciência. Nas corporações sacerdotais caldeias, a observação dos movimentos astronômicos se

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combinava com uma ideia teórica, segundo a qual os acontecimentos do mundo inferior ou
humano se davam em dependência dos movimentos do mundo superior, celeste.
Esta filosofia astrológica contrasta com as doutrinas da Índia e da Pérsia. O bramanismo,
consumido pela ideia do infinito, caiu no idealismo, na negação da realidade à matéria. Os Magos
persas dividiam suas meditações entre o mundo espiritual e o mundo material. Já os caldeus
se abandonaram sobretudo ao aspecto material da criação, e particularmente aos fenômenos
celestes. Nas duas outras filosofias, o espírito era concebido como predominante sobre a matéria.
Na filosofia caldeia parece haver uma predominância inversa, que sugere o domínio de um certo
fatalismo e materialismo.
O universo, para a filosofia primitiva dos indianos, era como um imenso espetáculo que
Deus oferecia a si mesmo. Os persas o conceberam como um grande combate. Para a astrologia
caldeia, era uma inalterável harmonia, um concerto entre as revoluções siderais e os destinos dos
seres humanos e de todas as criaturas terrestres.
Os vestígios conhecidos da cosmogonia fenícia parecem sugerir uma explicação do
universo por causas materiais, entre as quais se pode entrever um espiritualismo rudimentar.
A julgar pelos registros gregos, a Fenícia não foi de todo alheia a símbolos filosóficos análogos
a alguns que seriam desenvolvidos posteriormente na Grécia. Fala-se mesmo de uma doutrina
abstrata que explicaria a origem do universo pela combinação de átomos. Foi provavelmente o
primeiro ensaio de uma cosmologia materialista produzida na Ásia ocidental. Esta tendência foi
favorecida pelo gênio característico dos fenícios, povo industrial e comerciante, cuja atividade do
espírito estava particularmente restrita ao círculo das coisas materiais.

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2. AS ESCOLAS HELENÍSTICAS

Depois de Sócrates, surgem diversas concepções fragmentárias que podem ser divididas
em duas classes: umas destacam da doutrina de Sócrates algumas partes que, alteradas, tornam-se
a base de novos sistemas; outras foram a continuação, um pouco restrita, de sistemas anteriores a
Sócrates, mas modificadas pela influência socrática.

2.1 Raízes das Escolas Cínicas, Céticas, Epicuristas e Estoicas

A escola dos cínicos fundada por Antístenes (c. 446-366 a.C.), que teve em Diógenes seu
principal expoente, emprestou a Sócrates a ideia de que o bem do homem consiste na virtude, ou
na imitação de Deus. Partindo da ideia de que Deus é o soberanamente independente, os cínicos
compreenderam a virtude como uma orgulhosa independência de todas as coisas exteriores.

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Tudo o que poderia prejudicar essa independência deveria ser negligenciado: daí seu
desdém, não só pelos prazeres e pela reputação, mas pelo decoro social e pelas teorias científicas,
que eles rejeitavam como um punhado de sutilidades estéreis. Assim, como para Platão, a virtude
para os cínicos é o bem supremo. Mas se Platão buscava orientar harmoniosamente à virtude
todos os elementos da natureza humana, os cínicos sacrificaram a natureza humana a uma ideia
de virtude que no fim não era mais que a exaltação selvagem do egoísmo.
A doutrina de Pirro (c. 360-270 a.C.), o fundador do ceticismo, apresenta uma mescla
singular. Como para Sócrates, Platão ou os cínicos, toda a filosofia deve se orientar à ideia de virtude.
A ciência é inútil, e para provar essa inutilidade, Pirro buscou estabelecer a impossibilidade da
ciência, emprestando aos antagonistas de Sócrates, os sofistas, os argumentos contra as certezas
humanas.
O fim último da filosofia de Epicuro (341-270 a.C.) é conduzir o ser humano à felicidade,
ou ao bem-estar pleno. A verdade, o bem absoluto, a ordem, já não são, como para Platão, o fim
último da filosofia; o bem moral, que une e subordina cada indivíduo, desapareceu, cedendo seu
lugar ao “bem-estar”, diretamente relativo à individualidade.
Para Epicuro, o ser humano só pode conquistar o bem-estar verdadeiro fazendo bom uso
da razão para aprender a triunfar sobre as causas do sofrimento que o cercam.
A fonte de todo conhecimento são as sensações: as impressões exteriores formadas no
animal através de emanações de partículas que escapam dos objetos e se combinam com seu
organismo. O ser humano é capaz de extrair da repetição de sensações noções gerais, as quais
Epicuro denomina “antecipações”, porque são o ponto de partida de todo raciocínio abstrato.
O erro não pode estar nas sensações puras, porque elas resultam da ação direta da natureza,
mas sim da ação humana. Daí que a regra fundamental da razão é confrontar perpetuamente as
antecipações às sensações, ou seja, de analisá-las para reduzi-las aos seus elementos primitivos, e
verificá-los através desta dedução.
Provido dessa regra, o ser humano deve investigar a verdade para descartar as causas de
seu sofrimento. Estas causas são internas e externas. As externas se subdividem entre aquelas
derivadas da natureza e as derivadas da sociedade.
Contra as causas internas, o ser humano deve aprender a conhecer a si mesmo, concluindo
que todas as suas faculdades devem se orientar a um fim único: evitar o sofrimento e buscar o
prazer. Seu único dever é ser feliz. A consciência desse princípio o liberta de uma das principais
causas de seus sofrimentos, já que a maioria dos seres humanos imagina que existe uma moral
distinta do prazer: a luta entre a lei real do prazer e uma lei quimérica do dever gera na alma
humana o tormento, o conflito e o remorso.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Após reconhecer que o prazer e o dever são idênticos, o ser humano deve ponderar seus
prazeres, de modo a evitar todo excesso capaz de prejudicar tanto o seu bem-estar físico, que é a
saúde do corpo, quanto o seu bem-estar psíquico, que é a serenidade da alma.
Não admitindo no espírito humano mais do que sensações, e na natureza mais do que
corpos, Epicuro supõe que tudo, inclusive a alma, é composto pelas aproximações, combinações
e separações de átomos indivisíveis, eternos, indestrutíveis. Este conhecimento liberta o homem
dos inumeráveis males que geram a superstição, ou seja, a religião, o temor dos deuses e de uma
outra vida.
As leis da sociedade, por sua vez, não passam de ramificações diversas de uma única
lei fundamental: o interesse. Os homens se unem em sociedade por compreender que ela pode
aumentar seus prazeres e diminuir suas aflições. Para cada indivíduo, o pacto social é um mero
cálculo de utilidade: se a utilidade cessa, o pacto se dissolve. Epicuro exclui de sua teoria da
sociedade toda ideia de justiça, e ainda mais de uma lei divina originariamente revelada.
A doutrina de Epicuro apresenta um desenvolvimento em lógica, psicologia, lógica,
cosmologia, moral e política sem comparação com as vertentes materialistas precedentes. Já
as posteriores, estão encerradas nos limites circunscritos por ele. Assim como todo idealismo

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e espiritualismo antigo receberiam a marca do pioneiro Platão (daí os “platonismos”) todo
materialismo e sensualismo se desenvolveria sobre a égide de Epicuro, como formas do
“epicurismo”.
Se por este fundo materialista e sensualista, a doutrina de Epicuro se opõe diametralmente
à de Sócrates, elas convergem na rejeição das especulações metafísicas como estéreis a um fim
prático. Toda a sua lógica, cosmologia, psicologia ou política estão radicadas em uma necessidade
prática e conduzem a uma moralidade, mas radicalmente viciada pela absorção da ideia de dever
na de prazer.
O estoicismo fundado por Zenão de Citium (c. 334-262 a.C.) e desenvolvido por Crisipo
(279-c.106 a.C.) se distingue tanto dos grandes sistemas de Platão, Aristóteles ou Epicuro, quanto
das concepções parciais extraídas da experiência socrática, como o cinismo ou o ceticismo.
Como os primeiros, ele organiza uma vasta filosofia, alicerçada em uma lógica que
compreendia as regras da razão e da linguagem, e uma física holística, ambas coroadas por uma
moral que era a parte principal do sistema. Por outro lado, não há no estoicismo uma unidade real
de princípio, como no epicurismo, no aristotelismo e no platonismo. Ele foi uma combinação de
dois elementos opostos: de um lado o sensualismo e o materialismo, que abaixam o ser humano
ao seu nível animal, de outro um elemento espiritualista, que o eleva e o enobrece. Assim, de um
lado, o estoicismo tocava o epicurismo, de outro, o platonismo.
Como no epicurismo, para os estoicos, os conhecimentos humanos surgem das sensações
elaboradas e generalizadas pelo entendimento. Assim, os estoicos compreendiam que não existem
outros seres senão corpos; que os seres corporais podem se dividir em duas classes, uma ativa e
outra passiva; que o princípio passivo (a matéria) foi informado pelo princípio ativo (designado
pelo nome de “Deus”, princípio inteligente que é o puro éter e o fogo primordial); que o universo
é, assim, um “grande animal”; que as almas dos deuses e dos homens são emanações de um
fluido primitivo; que tudo está submetido à lei da fatalidade, pois Deus, ou o fluido primitivo
inteligente, só pode agir segundo a sua natureza e segundo a natureza do princípio passivo que
ele informa, e as almas, emanadas da alma universal, são, pela mesma razão, submetidas às leis
fatais em sua esfera de atividade; que as almas, perecíveis por sua natureza, se dissipam um dia ao
reentrar na grande Alma do Mundo; e, finalmente, que o próprio mundo, formado pelo fogo, será
dissolvido pelo fogo, e sofrerá uma grande recriação (palingenesis). Em resumo, a inteligência está
encerrada no círculo das sensações e o universo não é mais que um conglomerado de princípios
corporais, cuja lei é a fatalidade.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Por outro lado, a moral estoica compreende elementos espiritualistas que representam
uma tendência oposta ao epicurismo. É a justiça, a honestidade, a santidade que devem mover
as ações do ser humano; o sábio deve se esforçar por reprimir em si todas as comoções da alma,
que arrastam a vontade, e submetê-la ao juízo da razão, de modo a chegar àquele estado de
imperturbabilidade onde a vontade, livre de todos os afetos irracionais, se move plenamente
rumo à honestidade e à justiça que a razão lhe mostra; a justiça é o único bem; a injustiça, o
único mal: tudo aquilo que não é nem justo nem injusto, tal como as privações, a dor, a morte,
não é nem bom nem mal e, portanto, não abala a tranquilidade do sábio; seu único esforço deve
ser assemelhar-se a Deus; o ser humano, parte do todo, deve viver segundo as leis do todo ou da
Natureza, e estas leis têm sua manifestação mais excelente na essência divina e na ação de Deus
sobre o mundo; pois Deus é, por sua essência, a ordem, a justiça, a santidade, a bondade.
Assim, a moral estoica implica duas ideias fundamentais aparentemente incompatíveis
com a cosmologia estoica. De uma parte, a noção de justiça, de santidade não pode ser derivada
das sensações, e, de outra parte, não há como aliar a ideia de dever, de obrigação, de moral à ideia
de fatalidade.
A parte nobre e elevada do estoicismo ganhou gradualmente preeminência, e cada vez

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mais pensadores foram atraídos a ela por sua severa majestade moral.
Ainda assim, tal como na escola cínica, o estoicismo padece de um vício capital: a
exaltação do orgulho humano. Na sua imitação de Deus, muitos estoicos acreditaram, mais ou
menos deliberadamente, ser como Deus: independente da natureza e justo em razão da pura
autodeterminação de sua vontade. Neste sentido, o estoicismo foi uma espécie de deificação do
ser humano operada exclusivamente pelas forças do ser humano.

2.2 Desenvolvimento, Propagação, Estagnação e Decadência das Escolas


Helenísticas na Era dos Impérios Macedônico e Romano

Após o apogeu do pensamento grego à época de Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro e


dos fundadores do cinismo, do ceticismo e do estoicismo, a filosofia grega atinge uma grande
força de propagação, mas não mais de criação. A criatividade perdida só será retomada com o
contato com fluxos espirituais vindos do oriente, que serão abordados mais adiante. Dois novos
centros de atividade intelectual se estabelecerão: Alexandria e Roma – Roma responderá pela
propagação da filosofia na antiguidade, Alexandria, por sua recriação.
De todas as escolas gregas, a fundada por Platão era a que tinha pretensões mais elevadas.
A teoria das ideias implicava o conhecimento completo e absoluto das coisas em sua essência. Para
defender essa possibilidade, os platônicos começaram criticando as concepções da inteligência
humana de outras escolas por serem, a seu ver, limitadas. Mas quanto mais dificuldades se
acumulavam contra a sua ambição absolutista, mais eles começaram a se desesperar em relação
à própria inteligência humana.
Assim, a escola platônica, que elevou o espírito humano à sua maior altitude, foi a primeira
a descer ao seu extremo oposto. A confiança extrema na razão se inverteu em dúvida extrema.
A partir de Arcesilau (c. 316-241 a.C.) e Carneades (c. 214-129 a.C.), a “Nova” Academia passou
a questionar a capacidade da inteligência humana de conhecer as coisas em si mesmas, não
deixando outro critério à razão que aparências prováveis. Para, literalmente, “salvar as aparências”,
era preciso renunciar às certezas e se firmar nas probabilidades.
A doutrina oficial da academia passou a ser um ceticismo moderado. O ser humano
conhece, não as coisas em si, mas as aparências. Contudo, para afirmar com certeza que uma
aparência é verdadeira ou não, seria preciso conhecer a coisa em si.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Se as aparências podem ser verdadeiras, afirmar que o conhecimento da verdade


é impossível, como faz o ceticismo radical, seria tão dogmático quanto afirmar que este
conhecimento é possível. Resta à inteligência discernir entre aquilo que é provável e o que não é.
Se essa probabilidade não pode ser deduzida do objeto em si, que não pode ser conhecido a não
ser por suas aparências, é preciso buscá-la no sujeito, que, ao menos, tem a capacidade de um
conhecimento direto de si mesmo.
Assim, a probabilidade tem três fontes ou graus: 1) a vivacidade da impressão produzida
pelo objeto no espírito; 2) o acordo entre uma aparência e outras aparências que, ao invés de
negá-la, a confirmam; e 3) o exame dessa aparência em seus diversos aspectos. Quanto mais forte
e coerente for a reunião desses diversos aspectos, maior será a probabilidade de que a aparência
de alguma coisa corresponda à essência dessa coisa.
Este ceticismo “moderado” ou “não dogmático” se mostrou altamente propício a uma
época de sincretismo cultural e a uma mentalidade pragmática como a romana. Cícero (106-43
a.C.), o senador romano célebre por sua eloquência, estudou na Academia. Em suas investigações
filosóficas ele enfrentou todos os grandes problemas humanos, Deus, a liberdade, a vida após a
morte, sem afirmar uma solução definitiva para nenhum deles, mas também sem renunciar a

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ponderar soluções prováveis, coligidas a partir dos consensos dos povos e das perspectivas de
diversas escolas.
Os peripatéticos não chegaram a desbravar novas concepções filosóficas além daquelas
deixadas pelo mestre Aristóteles, mas, em um movimento tipicamente científico, desenvolveram
todas elas, em especial naquelas hoje reconhecidas como disciplinas científicas, tal como a
psicologia, a biologia e a física.
Similarmente, a escola de Epicuro se perpetuou e se propagou amplamente ao longo do
período helenístico e romano, porém sem produzir nenhum novo trabalho digno de nota. Mas
se o platonismo (o original, não aquele da Nova Academia), que considerava a criação como uma
grande epopeia divina, e o estoicismo, com suas ideias dramáticas sobre a luta entre a liberdade
humana e a fatalidade cósmica, se aliaram naturalmente à poesia, não havia nada menos poético
do que o materialismo mecânico e as modestas ambições de bem-estar individual do epicurismo.
Boa parte das outras escolas e pensadores (Cícero, por exemplo) atribuíam ao epicurismo
um caráter corruptor e indigno do ser humano. Entretanto, através de Lucrécio (c. 99-55 a.C.),
Epicuro encontrou um bardo capaz de cantar a natureza, a matéria e o prazer. Em épocas de
conflitos precipitados por crenças religiosas exaltadas, esta filosofia se mostrou de grande
apelo àqueles que buscavam preservar uma concepção universalista da realidade, mas sob uma
perspectiva puramente humanista.
O estoicismo prevaleceu não por suas especulações sobre a mecânica do universo, mas
sobretudo por sua teoria da moral e dos costumes. Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), o preceptor de Nero,
fez para o estoicismo aquilo que Lucrécio fez para o epicurismo, ornando com brilhantismo
poético as doutrinas estoicas. Mas os principais expoentes do estoicismo, como o escravo Epiteto
(c. 50-135 d.C.) ou o imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.), cultivaram sobretudo o seu rigor
e austeridade moral.
Nas eras helenística e romana, a proliferação, por um lado, de cultos religiosos, sobretudo
influenciada pelas culturas orientais, e, por outro, de especulações cada vez mais refinadas, mas
cada vez mais conflitantes entre si, deixou a cultura humana em uma situação similar àquela
em que prosperaram os sofistas. Mas o espirito filosófico havia amadurecido demais ao longo
de experiências prolongadas e laboriosas, para que a inteligência fosse tomada, como foi pelos
sofistas, como um jogo ou um mero instrumento de poder. O novo ceticismo deveria se oferecer
como uma sistematização séria, rigorosa e, por assim dizer, “científica” da dúvida.

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O ceticismo, que encontrou no pensamento de Sexto Empírico (160-210 d.C.) senão a


sua expressão mais genial e penetrante, a mais rigorosa e exaustiva, parte de uma distinção que
tem por objetivo conciliar a especulação e a prática. Ele distingue, no ser humano, a natureza e a
razão. Em virtude de seus instintos naturais (de sobrevivência de si e perpetuação da sua espécie),
o ser humano busca satisfazer suas necessidades e se conforma aos costumes: toda a vida humana
repousa sobre esta base, e neste sentido, o ceticismo admite um critério prático. Mas quando, ao
invés de seguir seus instintos, o ser humano faz intervir a razão, quando ele crê que através dela
ele conhece não a aparência (provável e contingente) das coisas, mas sim a sua essência (certa e
absoluta), ele tenta o impossível.
Assim, a dissidência entre o ceticismo e seu inimigo capital, o dogmatismo, não diz
respeito à necessidade incontornável de um critério prático (para orientar a vida humana entre as
aparências), mas sim de um critério especulativo (para estabelecer uma relação de certeza entre
as aparências das coisas e a sua essência).
A impossibilidade de um critério especulativo resulta, segundo os céticos, dos limites
invencíveis aos três elementos envolvidos no ato de conhecer: 1) o espírito ou o sujeito do
conhecimento; 2) o objeto do conhecimento; e 3) a relação entre o sujeito e o objeto.

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O sujeito do conhecimento é afetado por sensações e concepções. Mas essas duas fontes do
conhecimento, como o prova a própria história das crenças e especulações humanas, se chocam
em uma tríplice antítese: entre sensações e concepções, entre concepções e concepções, e entre
sensações e sensações. Estas antíteses se materializam na diversidade virtualmente infinita de leis,
costumes e mitologias.
Em relação aos objetos do conhecimento, uma vez que todos estão direta ou indiretamente
relacionados entre si, só seria possível conhecer cada um conhecendo o todo do qual ele é
parte. Além disso, os próprios objetos se apresentam a nós não em sua simplicidade, mas como
compostos de diversos elementos, e estas composições sofrem variações perpétuas.
Enfim, quanto à relação entre o sujeito e o objeto, o espírito procede ou intuitivamente ou
discursivamente, ou seja, ou por percepções anteriores a toda especulação ou por combinações
de ideias abstratas reguladas pela lógica. Para se fazer qualquer afirmação legítima a partir de
simples percepções, seria preciso discernir o que nelas pertence ao objeto e o que ao sujeito. Mas
este discernimento é impossível, porque a resposta à questão sempre se apoiaria sobre as noções
produzidas pelo próprio sujeito. A lógica é a arte de combinar definições, categorias e raciocínios.
Mas todas estas noções não passam de abstrações gerais das sensações particulares, e portanto
participam necessariamente de todas as incertezas inerentes a elas.
O ceticismo absoluto é invencivelmente repulsivo à natureza humana, ainda que não possa
ser refutado, de maneira absoluta, pela lógica humana. Pois toda refutação deste tipo implica um
princípio certo sobre o qual ela repousa, e o ceticismo não admite nenhum princípio certo. Mas
a natureza, diz Pascal, impede a razão impotente de extravasar até este ponto. O ser humano crê
naturalmente na verdade. A inteligência repele o ceticismo como a vida repele a morte, como o
ser repele o nada, pois a dúvida absoluta seria a extinção mesma da razão.
O vício do ceticismo não consiste em sustentar que é impossível demonstrar radicalmente
que o ser humano pode conhecer com certeza a verdade, mas em exigir esta demonstração. Ao
estabelecer o primeiro ponto, ele segue a razão humana. Ao sustentar o segundo, ele nega a natureza
humana, que crê em certas verdades fundamentais em virtude de uma fé vital e invencível, e não
de uma demonstração especulativa. O próprio ceticismo, ao mesmo tempo que nega as relações
entre a inteligência e as coisas, crê ao menos na existência desta inteligência, e é em virtude desta
crença que ele ataca todas as outras.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre a filosofia grega e a filosofia do oriente há um contraste radical: enquanto a


última partiu da intuição radical da unidade das coisas, e a partir dela buscou explicar a sua
multiplicidade, a primeira, inversamente, partiu da percepção imediata da pluralidade das coisas
para compreender a sua unidade.
Por isso, é natural que na Grécia, a concepção metafísica dualista tenha prevalecido sobre
a concepção monista característica do oriente; que os procedimentos lógicos tenham prevalecido
sobre a intuição; e que a antropologia tenha se desenvolvido mais do que a cosmologia, e a
cosmologia, mais do que a teologia. Na Grécia, Deus e o universo são discutidos à luz de uma série
de especulações sobre o conhecimento, a moral e a política que foram ignoradas ou desdenhadas,
por exemplo, pelo panteísmo indiano.

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Buscando racionalizar de maneira exata e rigorosa uma extravagante mitologia produzida
pelas potências poéticas do ser humano, os filósofos gregos muitas vezes substituíram o simbolismo
antigo, compacto, porém holístico, por uma série de abstrações sutis e estéreis, caindo, muitas
vezes, no vício oposto à luxúria da imaginação característica do pensamento oriental. Não é
por acaso, mas por uma dialética histórica, que os momentos finais das duas grandes fases da
filosofia grega, a era de seu florescimento, com os pré-socráticos, e a era de seu amadurecimento,
com as escolas pós-socráticas, tenham sido, respectivamente, marcados pela emergência de duas
filosofias da dúvida, ou anti-filosofias, por assim dizer: a sofística e o ceticismo.
Lançando mão de uma última generalização: se, em seu declínio, os excessos da filosofia
grega precipitaram uma fuga da razão “para baixo”, rumo à descrença e ao relativismo, os excessos
da filosofia oriental precipitaram uma fuga da razão “para cima”, rumo à mística e ao absolutismo.
O encontro entre as duas tendências produzirá toda uma série de novas escolas, que serão tratadas
na seção seguinte.

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

02
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA – A ANTIGUIDADE TARDIA

RACIONALISMO OCIDENTAL,
MISTICISMO ORIENTAL
E REVELAÇÃO CRISTÃ

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 19
1 A FILOSOFIA GRECO-ORIENTAL..............................................................................................................................20
1.1 FILON DE ALEXANDRIA, HERMETISMO, ORÁCULOS CALDEUS E A CABALA..................................................20
2 O NEOPLATONISMO................................................................................................................................................. 21
2.1 O CRISOL DE ALEXANDRIA................................................................................................................................... 21
2.2 O ECLETISMO NEOPLATÔNICO............................................................................................................................ 21
3 GNÓSTICOS, MANIQUEÍSTAS E HEREGES.............................................................................................................24
3.1 O GNOSTICISMO.....................................................................................................................................................24
3.2 MANIQUEÍSMO......................................................................................................................................................26
3.3 AS HERESIAS..........................................................................................................................................................26
4 A FILOSOFIA PATRÍSTICA........................................................................................................................................27

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

4.1 INTRODUÇÃO: A FÉ E A RAZÃO, UNIDAS, MAS NÃO CONFUSAS, DISTINTAS, MAS NÃO SEPARADAS........27
4.2 A UNIDADE DIVINA................................................................................................................................................27
4.3 A CRIAÇÃO..............................................................................................................................................................28
4.4 O VERBO DIVINO EM RELAÇÃO À CRIAÇÃO.......................................................................................................30
4.5 O MAL......................................................................................................................................................................30
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................ 31

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

Não cabe a uma história da filosofia, e, a rigor, nem à própria filosofia, decidir sobre a
origem divina, ou não, da Revelação cristã. Independentemente disso, mesmo dentro dos limites
estritos da filosofia pura, o cristianismo é demonstravelmente o evento mais transformador da
história.
Em tese, o matrimônio perfeito entre o Céu e a Terra prometido pela Revelação cristã
consuma as aspirações de todas as religiões e de todas as filosofias desde o início da raça humana.
Além disso, verdadeira ou não, a ideia da união plena entre Deus e a humanidade, realizada
perfeitamente no Deus-homem Jesus Cristo, e, através de sua graça, progressivamente por sua
Igreja, introduz na história humana o princípio de um progresso perpétuo e universal.
A partir da era cristã, as especulações filosóficas podem ser divididas em três grandes

HISTÓRIA DA FILOSOFIA – A ANTIGUIDADE TARDIA | UNIDADE 2


classes, conforme a sua relação com os símbolos cristãos: aquelas independentes da ortodoxia
cristã; as opostas à ortodoxia cristã; e as harmonizadas com esta ortodoxia.
As primeiras, seja por falta de contato com a Revelação cristã ou por desinteresse, se
desenvolveram paralelamente a ela, buscando revitalizar a filosofia pagã ou recriá-la a partir da
síntese com doutrinas orientais.
É o caso dos diversos platonismos, como os de Porfírio, Iâmblico, Proclo e, sobretudo,
Plotino, mas também de filosofias desenvolvidas a partir de conceitos helenísticos reformulados
por influxos judaicos, como as especulações de Fílon ou da Cabala, ou orientais, como nas
especulações elaboradas em torno ao Corpus Hermeticum ou aos Oráculos Caldeus.
Alexandria, que, após ser fundada pelo grego Alexandre o Grande sobre as areias do
antigo Egito, tornou-se sob o comando dos romanos um ponto de intersecção entre culturas da
África, Europa e Ásia, entre elas, a dos judeus, foi o celeiro natural deste ecletismo filosófico.
As segundas buscaram combinar as teorias filosóficas gregas com o misticismo oriental e
a Revelação cristã, alterando pontos fundamentais dos símbolos apostólicos. É o caso das diversas
formas do gnosticismo, do maniqueísmo e das heresias. As últimas foram desenvolvidas pelos
chamados Padres da Igreja.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1 A FILOSOFIA GRECO-ORIENTAL

1.1 Filon de Alexandria, Hermetismo, Oráculos Caldeus e a Cabala

O judeu Fílon de Alexandria (20 a.C. – c 50 d.C.) assimilou as categorias platônicas e


empenhou-se em demonstrar a presença da filosofia, em forma alegórica, nas escrituras sagradas
dos judeus. Para ele, a questão principal é o conhecimento de Deus, primariamente atingido pela
contemplação espiritual. Mas, ao modo oriental, ele afirma que a alma não pode saber o que
Deus é, mas somente que ele é. Mas o “reflexo ou imagem” de Deus, o seu “Filho Primogênito”, é
a “razão” (logos), o sentido interior de todas as Ideias. As coisas naturais são sustentadas pelas leis
da razão, mas o ser autoconsciente pode conhecer estas leis, e isto é a sabedoria. Assim o Logos, o
“Verbo de Deus”, é o “sumo sacerdote”, o mediador entre Deus e o ser humano.
Nos primeiros séculos da era cristã, desenvolveu-se uma literatura de caráter filosófico-
soteriológico-religioso, supostamente revelada pelo mensageiro dos deuses egípcios, Thot,

HISTÓRIA DA FILOSOFIA – A ANTIGUIDADE TARDIA | UNIDADE 2


identificado pelos gregos com Hermes, chamado “Trismegistos” (três vezes grandes), de onde o
nome de “literatura hermética”.
No Corpus Hermeticum, Deus é concebido como uno, incorpóreo, transcendente e
infinito, “princípio e raiz de todas as coisas”, sumamente simbolizado pela luz. Teologia negativa
e positiva se cruzam. Ao mesmo tempo em que Deus é concebido como inefável, “totalmente
outro”, “sem forma e sem figura” e mesmo “sem essência”, reconhece-se que Deus é o Bem e o
Pai de todas as coisas. Entre Deus e o mundo há uma hierarquia de realidades geradas por ele:
o Logos, o “Filho Primogênito”; um Intelecto demiúrgico, consubstancial ao Logos; o Anthropos,
o ser humano arquetípico e incorpóreo, “imagem de Deus”; e, finalmente, o intelecto divino
dado ao homem terreno, superior à alma. O nascimento do ser humano é explicado através
de um “apaixonamento” do Anthropos por sua imagem refletida na natureza (simbolizada pela
água). Desejando unir-se a ela, ele cai, e assim surge o ser humano com sua dúplice natureza,
espiritual e corpórea. A mensagem do hermetismo e todas as suas teorias metafísicas, teológicas,
cosmológicas e antropológicas, se resumem a uma doutrina da salvação. Assim como o ser
humano nasce da queda do Anthropos na natureza material, a sua salvação consiste em se libertar
dos laços materiais para ascender aos céus. Essa salvação depende de uma tomada de consciência
de que seu intelecto é parte de Deus, mas que ele existe em cada um apenas em estado potencial.
Ao atualizá-lo, a partir da escolha do bem, o ser humano se diviniza.
Uma sotereologia similar, não ligada às tradições egípcias, mas caldeias, se encontra nos
“Oráculos Caldeus” (c. II d.C). Os Oráculos introduzem às tradições platônicas o conceito de
uma “tríade” originária, que “contém todas as coisas e de todas é a medida”, e também de práticas
“teúrgicas”, ou seja, a magia aplicada a fins religiosos, especificamente a purificação da alma com
vistas à união com o divino.
Os judeus deram o nome de Cabala a uma doutrina místico-filosófica supostamente
arcana que teria se perpetuado secretamente entre eles. Dos registros históricos, ele começa a
tomar forma nos primeiros séculos da Era Cristã e se desenvolve na Idade Média. O Talmud
tem um papel importante, mas as bases da Cabala são ideias comuns à maior parte os sistemas
panteístas do Oriente, revestidos de símbolos singulares ao judaísmo. Na Cabala, a substância
primeira é representada como um Oceano de luz. A criação ou mais exatamente a emanação é
como um “véu” que a luz infinita coloca ante si, inscrevendo nele as formas das coisas.
De uma emanação primitiva, que, sob o nome de Adam Kadmon, é a um tempo a
imagem de Deus e o arquétipo do homem, surgem emanações decrescentes, chamadas Sephiroth.
A matéria tem uma existência puramente ideal e negativa, enquanto obscurecimento dos raios
divinos no último grau das emanações, como uma carbonização da substância divina.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2 O NEOPLATONISMO

2.1 O Crisol de Alexandria

No início da Era Cristã, todas as doutrinas filosóficas orbitam, se chocam e se entrecruzam


em Alexandria. A reunião do orientalismo e do helenismo implicava diversas fusões subordinadas.
Antes de tudo, havia duas forças, em certo sentido, opostas, que se repeliam reciprocamente: os
sistemas gregos e os cultos politeístas, a filosofia racionalista e os ritos religiosos. Ademais, assim
como a filosofia grega tinha se dividido em sistemas contrários, os ritos religiosos se multiplicavam
em cultos inimigos.
Em relação à filosofia grega, era preciso antes de tudo unir os dois sistemas mais
representativos, o de Platão e o de Aristóteles, buscando uma interpretação mais profunda dessas
doutrinas. A união dos cultos politeístas dependia de velhas doutrinas orientais conservadas
particularmente nos mistérios, ou seja, doutrinas esotéricas que estabeleciam a harmonia de

HISTÓRIA DA FILOSOFIA – A ANTIGUIDADE TARDIA | UNIDADE 2


todos os ritos e todos os símbolos. O helenismo superior – a união de todos os sistemas filosóficos
gregos – e o orientalismo superior – a união de todos os cultos – não eram eles mesmos mais do
que duas faces de uma unidade mais ampla e mais profunda, na qual eles se confundem.
A escola que empreendeu essa missão épica recebeu dois nomes: “eclética” e “neoplatônica”.
Embora essas denominações pareçam se excluir – uma vez que a conexão a um sistema particular
(o platônico) parece incompatível com a reunião de todos os sistemas (o ecletismo) – elas se
complementam. O ecletismo não é mero sincretismo, a reunião aleatória, sem princípio nem
regra, de fragmentos de teorias casualmente justapostas e entrecruzadas, mas sim o esforço de unir
a multiplicidade total de doutrinas a partir de um princípio único e primordial. Os alexandrinos
e seus próceres buscaram este princípio na parte superior do platonismo.

2.2 O Ecletismo Neoplatônico

Ammonius Saccas (175-242 d.C.), ao que parece um apóstata da fé cristã, foi o grande
inaugurador da escola eclética. Ele foi o mestre de Plotino, o maior e mais profundo dos
pensadores neoplatônicos, e também de Orígenes, o mais energético e criativo dos Padres da
Igreja orientais. Nele se inspiraram Porfírio, Iâmblico e Proclus. Os elementos metafísicos da
doutrina neoplatônica foram desenvolvidos, sobretudo, por Plotino (c. 204-270 d.C), a lógica,
por Porfírio (c. 234-305 d.C.), a teosofia e a liturgia, por Iâmblico (245-325 d.C.). Proclus (412-
485 d.C.) foi um sistematizador das ideias de seus predecessores.
Resumindo o núcleo comum a esses pensadores, no princípio há a unidade primeira, pura
e absoluta, na qual não existe qualquer distinção, nem mesmo entre o conhecido e o conhecedor.
Como na teologia negativa, a noção de unidade absoluta exclui a atribuição de quaisquer
qualidades das quais possamos formar uma ideia qualquer.
Da unidade primordial emana a Inteligência, que a reflete, mas é necessariamente inferior
ao princípio que a origina. Ela, por sua vez, produz uma outra emanação, que também lhe é
inferior, a Alma, que, não sendo, como a Inteligência, a imagem imanente da unidade imóvel, é
uma força motriz, o princípio de todo movimento. A Alma, enfim, gera todas as criaturas.
Quando a Unidade gera a Inteligência, começa a distinção entre o conhecido e o
conhecedor. A unidade torna-se múltipla, e assim surge o número. A Inteligência encerra em si
todas as ideias das coisas possíveis.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A Alma, princípio do movimento, força ativa, expansiva, tende necessariamente a


reproduzir as ideias, e as ideias produzidas são as diversas almas. Mas as ideias ou formas só
podem existir em um sujeito. É preciso, portanto, que a Alma, ao reproduzir as ideias, produza
também a matéria. A Alma participa da luz infinita da Inteligência, mas como uma emanação
inferior, limitada. Nas fronteiras de sua própria luz, ele percebe as trevas. Destas trevas, a Alma
extrai a matéria, como se fosse uma habitação, um templo construído para si, onde ela deposita as
ideias. Assim, o monismo neoplatônico concebe a matéria como uma derivação direta do mundo
inteligível.
A matéria em si é um sujeito indeterminado, desprovido de qualidades, uma pura
potência. Quando ela recebe as ideias, ela passa da potência ao ato, diversificando-se em realidades
compostas: os corpos.
Assim o mundo nada mais é que a Alma informando a matéria com as ideias reproduzidas
da Inteligência, que, por sua vez, é a emanação primeira e o reflexo da Unidade absoluta.
Proclo e outros neoplatônicos distinguiram (possivelmente inspirando-se superficialmente
na doutrina cristã da Trindade imanente e da Trindade econômica) duas Almas, a Alma
supramundana e a Alma do Mundo, emanação da primeira. De um modo ou de outro, o mundo é

HISTÓRIA DA FILOSOFIA – A ANTIGUIDADE TARDIA | UNIDADE 2


eterno, porque a Alma é eterna, e eternamente ativa. Assim, como ela é precedida pela Inteligência,
e a Inteligência pela Unidade, ela precede o mundo, mas por uma prioridade de princípio, não
de tempo.
Assim, da união entre a Inteligência, o sujeito das ideias, e a Alma, o princípio do
movimento, procede a razão seminal do mundo: o conjunto de ideias dotadas pela alma de
atividade e vida. Esta razão seminal, o princípio de todas as coisas, se particulariza nos diversos
fenômenos.
O mundo é uno, mas distinguido em um mundo inteligível (considerado em si mesmo,
enquanto arquétipo) e um mundo sensível (enquanto imagem em movimento do arquétipo). O
mundo é regido pela Necessidade. Dessa maneira, como a Alma, por sua natureza, não podia não
gerar o mundo, todas as almas que emanam dela não podem agir senão impulsionadas por suas
essências: a sua vontade nada mais é que a sua essência em ação.
Daí se segue que o mundo é perfeito, que tudo é bom. O mal nada mais é que a desigualdade
das almas, ou a manifestação dessa desigualdade. Os neoplatônicos sugerem ainda, de uma
maneira bastante obscura e imprecisa, que a origem do mal está na matéria.
Os neoplatônicos explicam da seguinte forma as diversas classes de almas: os deuses
intelectuais, isentos de todo sofrimento e de toda paixão, contemplam os deuses inteligíveis ou
ideias não produzidas. Eles animam os céus e governam os astros. Deuses e humanos são como os
dois extremos de uma proporção, na qual os heróis e os demônios são os termos intermediários.
Os primeiros administram o universo e dirigem as forças criadoras; os segundos, que dirigem as
forças vitais, presidem o governo das coisas humanas.
Abaixo das almas humanas, estão as almas dos animais, as almas das plantas e as outras
partes da natureza. A alma humana, enquanto procedente do mundo inteligível, é indivisível e
independente da natureza. Mas ela é suscetível de uma certa divisibilidade, enquanto unida ao
corpo e dependente das revoluções austrais. Assim, com grande ambivalência, os neoplatônicos
sugerem uma alma humana dúplice.
A alma está presente em cada parte do corpo, mas o corpo está nela, mais do que a alma
está no corpo. Pois ela está presente nele pela vida vegetativa e sensitiva, mas ela lhe escapa pela
inteligência, e, através da inteligência, busca libertar-se de seus laços naturais, para ascender ao
seu estado primitivo, e se transformar na grande Alma, confundir-se com a essência divina.

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Pela evolução da criação, as almas, que são o último dos princípios inteligíveis, e o
primeiro das coisas sensíveis, são afastadas de Deus. Elas devem então se empenhar em uma
evolução reversa, que as reúna a Deus. Mas este retorno depende de certas condições. Aquelas
que, abusando de seus sentidos, caem abaixo da própria vida sensitiva, renascerão após a morte
inseridas na vida vegetativa das plantas. Aquelas que viveram puramente conforme as suas
sensações, renascerão sob a forma de animais. Aquelas que tiverem vivido uma vida puramente
humana, renascerão em corpos humanos. Somente renascerão em Deus aquelas que tiverem
desenvolvido em si a vida divina.
O desenvolvimento da vida divina, por sua vez, está subordinado a duas condições,
os esforços dos homens e o socorro dos deuses. Os esforços dos homens são relativos à sua
inteligência e à sua vontade: eles produzem o conhecimento e a virtude.
A inteligência tem dois modos, um perfeito e um imperfeito. O último consiste no
conhecimento propriamente dito, apoiado sobre os procedimentos lógicos que combinam as
ideias. Esse conhecimento é uma preparação para o conhecimento superior, que é mais exatamente
uma presença intima de Deus, e é obtido não através da reflexão, mas da iluminação, uma espécie
de repouso da alma em seu núcleo mais íntimo.

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Analogamente, as virtudes físicas, relativas ao aperfeiçoamento dos corpos; as virtudes
morais e políticas, que compreendem os deveres do homem enquanto ser social; as virtudes
purgativas, pelas quais o homem se abstém das ações e afetos corporais; as virtudes teoréticas, que
são a contemplação da alma por si mesma, são todas elas graus preparatórios para se ascender às
virtudes superiores, chamadas teúrgicas. Aquele que as possui conversa com os deuses, os evoca,
comanda os espíritos, e se liberta das limitações da humanidade. O último grau das virtudes
teúrgicas são as virtudes divinas, que realizam a transformação em Deus. Esta teoria moral teve
particularmente Iâmblico por intérprete.
Mas o desenvolvimento da vida divina depende, sobretudo, do auxílio dos deuses, que
é obtido seja através de orações, seja através de ritos exteriores que representam as realidades
celestes.
Como se vê, a doutrina dos neoplatônicos não encerra nenhum elemento particularmente
novo em relação às doutrinas anteriores. O que a caracteriza é a fusão sistemática destas doutrinas.
Às doutrinas orientais, eles estão ligados por suas ideias sobre a unidade, as emanações, a matéria,
a lei das transmigrações e a reabsorção final no ser supremo. À filosofia helênica, representada
sobretudo por Platão, eles estão ligados por suas concepções sobre a tríade primitiva (a Unidade,
a Inteligência e a Alma); muitas de suas concepções sobre a natureza e as funções da Alma do
Mundo; e a distinção entre o mundo das ideias e o mundo sensível. Além disso, eles aplicam as
concepções lógicas de Aristóteles ao sistema de emanações, e fazem amplo uso de sua distinção
entre forma e matéria.
Também buscaram uma síntese entre o racionalismo filosófico e o sentimento religioso
ao combinar sua doutrina sobre as emanações com a teoria das ideias, personificadas em deuses,
demônios e heróis que governam e animam todas as partes do universo, e com os quais é possível
se relacionar a partir da oração e de rituais. Até mesmo ao cristianismo, os neoplatônicos
emprestaram alguns elementos: é difícil saber, por exemplo, o quanto a sua tríade foi influenciada
pela Trindade cristã; aparentemente, a ideia de mediação é inspirada por certos fragmentos da
concepção cristã; e é possível que Iâmblico tivesse em mente a doutrina católica dos sacramentos
ao elaborar sua teoria dos ritos simbólicos como canais da graça divina.
Ainda assim, os neoplatônicos não tinham as comunidades cristãs em alta conta. Mesmo
que tenham destacado um ou outro elemento do cristianismo conforme a sua conveniência,
seu entendimento do todo foi superficial e não deixou uma impressão muito profunda em
seus espíritos e seus sistemas. Já no caso de seus antecessores ou contemporâneos gnósticos, o
cristianismo teve um peso bem diferente.

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3 GNÓSTICOS, MANIQUEÍSTAS E HEREGES

3.1 O Gnosticismo

O gnosticismo, tomado em seu conjunto, oferece uma combinação de doutrinas persas,


caldeias e egípcias, unidas a concepções cujas fontes antigas estão radicadas na Índia, e outras
ideias similares às que serviram de base ao hermetismo, aos Oráculos Caldeus, à Cabala e ao
neoplatonismo. Todas essas fontes jorraram sobre o solo ocidental helenístico e romano num
momento em que a filosofia grega, exaurida na dúvida, fazia com que os espíritos sentissem
uma vaga necessidade de especulações mais ambiciosas. Os gnósticos buscaram responder a essa
demanda.
Porém, a causa mais imediata deste movimento foi o choque provocado pelo cristianismo
recém-nascido. Grande parte dos orientalistas foram atraídos com força pelo cristianismo, e
acreditaram encontrar em seus dogmas o desenvolvimento de velhas doutrinas orientais. Possuídos

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por essa ideia, seu entusiasmo por essas doutrinas foi energizado pelo impulso evangelizador,
inspirando-lhes um proselitismo ardente. Contudo, eles se enganaram fundamentalmente quanto
à essência e o espírito do cristianismo, e ao invés de subordinar as velhas filosofias humanas à
nova fé divina, fizeram o inverso.
Em seu sentido originário e corriqueiro, o termo “gnose” significa simplesmente
“conhecimento”, mas já havia sido empregando precedentemente para significar uma sabedoria
superior às crenças vulgares. Para os gnósticos, o termo exprimia a tripla superioridade de sua
doutrina sobre os cultos e símbolos pagãos, que ela explicava; sobre as doutrinas hebraicas,
cujas imperfeições e vícios ele pretendia denunciar; e, finalmente, sobre a doutrina comum da
comunidade cristã (ecclesia), que, a seus olhos, não era mais que o invólucro débil ou corrompido
do cristianismo transcendente do qual eles se diziam depositários.
O gnosticismo foi de alguma forma intermediário entre os hereges e os pagãos
orientalistas, mas após o seu florescimento fulgurante em duas ou três gerações, não deixou
impressões profundas nem na religião cristã, nem na cultura pagã. Isso porque, como os hereges,
eles reconheciam a revelação de Cristo. Mas se os hereges queriam apenas apagar do símbolo
ortodoxo os dogmas que os incomodavam, os gnósticos queriam submeter todo o cristianismo
a doutrinas anteriores. Como os neoplatônicos, eles se nutriam de doutrinas orientais. Porém,
ainda que emprestassem sub-repticiamente muitos elementos à filosofia helênica, para todos os
efeitos públicos, eles a desprezavam ao ponto do escárnio, o que despertou severa antipatia de
filósofos como Plotino.
O gnosticismo gerou sistemas diversos e extravagantes, mas que podem ser relacionados
a dois grandes eixos ou prevalências, que correspondem, do ponto de vista histórico, à Síria e ao
Egito, e, respectivamente, do ponto de vista lógico, ao dualismo e ao panteísmo.
Comum à maior parte dos sistemas gnósticos é a distinção de dois mundos, o superior,
ou reino da luz, da pureza, da bondade, da imortalidade, e o mundo inferior, das trevas, vícios,
misérias e morte.
A razão da divisão é que o ser infinito, a substância primordial, não podia permanecer
inativa: dela irradiaram diversas emanações. As arcanas, mais próximas de sua fonte, participam
amplamente da essência divina. Mas à medida que as emanações se afastam dela, decrescem
em seu grau de perfeição. A um certo ponto, chega-se a uma emanação, em que a perfeição e a
imperfeição estão em estado de equilíbrio. Esta emanação – o Demiurgo – organizou o mundo
inferior, com todas as suas falhas e desordens.

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Os gnósticos, divergiam entre si sobre o modo como este mundo foi formado. Para uns,
de cunho dualista, o ser que organizou o mundo inferior não o criou, mas apenas exerceu sua
potência sobre uma matéria eternamente existente fora do mundo superior, e a distinção entre os
dois mundos começou com essa intervenção. Para outros, de cunho panteísta, este ser produziu
ou extraiu de si mesmo este mundo inferior, de modo que ele é apenas o último anel da cadeia de
emanações, o mais grosseiro, no qual, de todo modo, todas as coisas compreendem duas partes,
submetidas a duas leis opostas: a da perfeição e a da imperfeição, da luz e da sombra.
O ser infinito é indivisível, inefável, o pai desconhecido, o abismo, análogo ao Brahm
indeterminado da metafísfica indiana; o Piromis da teologia egípcia, o Um neoplatônico, ou o
fundo do ser, a substância inefável da filosofia moderna.
As emanações (Eons) do mundo superior não são a criação daquilo que não existia e
passou a existir, mas somente a manifestação daquilo que se encerra no fundo inesgotável do
abismo. Elas são o “transbordamento”, por assim dizer, da substância, seus atributos, formas e
nomes, e constituem com ela o Pleroma ou a plenitude das inteligências. Conforme a maior parte
das teogonias antigas, as emanações procedem em pares opostos e complementares.
A última emanação do Pleroma, o Demiurgo, é a primeira potência do mundo inferior, que

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o produziu ou simplesmente o organizou – conforme a escola gnóstica em questão. De um modo
ou de outro, ele é o grande intermediário entre os dois mundos. Segundo as teorias gnósticas,
a criação foi realizada sem a intervenção ou a participação de Deus ou do Pai desconhecido:
ela é indigna dele. Sendo o Demiurgo, uma mistura de luz e de ignorância, de força e fraqueza,
o plano da criação, ainda que encerre coisas boas, é radicalmente viciado, e por isso há de ser
destruído. De um modo geral, o gnosticismo é um grande anátema lançado pelo ser humano
contra a criação.
Em todos os sistemas gnósticos prevalece essa ideia de uma degradação, não somente
do gênero humano, mas do mundo inferior inteiro. Por vezes ela é explicada como uma queda,
o aprisionamento das almas no mundo corporal, seja por determinação do Demiurgo, seja por
uma invasão da matéria à qual elas não conseguiram resistir. Outras vezes, é explicada como um
crime primitivo que teria origem ou no orgulho, invejoso de toda forma de superioridade, ou na
concupiscência, que arrasta as almas para os bens sensíveis.
A contrapartida da ideia da queda é a de regeneração, não tanto da criação,
irremediavelmente perdida, mas das almas individuais predestinadas à salvação. Como essa
regeneração consiste em reformar a obra do Demiurgo, não poderia ser realizada por ele. Era
preciso que uma das altas potências do Pleroma, o primeiro pensamento divino, a Inteligência,
o espírito, descesse pessoalmente até os últimos graus da criação, ou ao menos comunicasse seus
dons ao ser humano para iluminá-lo e lhe ensinar a rota de retorno ao seio do Pleroma. Esta
virtude redentora é o Cristo, o antagonista do Demiurgo, o reformador de seu plano, o destruidor
de sua criação.
Cristo é a manifestação da primeira emanação divina, mas ele não se encarnou em um
corpo – pois isso implicaria misturar-se à matéria e à sua natureza maligna –, apenas tomou sua
aparência. Além disso, a lei promulgada pelo Salvador, não é a superação ou a extrapolação da lei
primitiva, cuja expressão mais bem acabada é a lei mosica, mas a sua destruição. Estas leis foram
ditadas por Yahweh, que é o Demiurgo. A lei de Cristo, o Logos, é a lei do Pai desconhecido.
A humanidade se divide em duas categorias, correspondentes a duas épocas. Na primeira,
da criação à redenção, os homens foram regidos pela religião do Demiurgo. Na segunda, eles têm
a oportunidade de se tornaram adoradores do verdadeiro Deus.

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Os seres humanos podem ser divididos também em três classes, segundo o princípio que
domina em cada um: os que se deixam cativar pelo mundo inferior, cuja matéria é o princípio;
aqueles que buscam se elevar sobre ele, mas apenas até o Demiurgo, vivendo conforme o princípio
psíquico; e, finalmente, os que aspiram a entrar no Pleroma e participam da vida superior que
tem seu princípio nele, o princípio espiritual ou pneumático. Os pagãos foram materiais; os
judeus, psíquicos; os pneumáticos são os verdadeiros cristãos. Os próprios cristãos, por sua
vez, se dividem em duas classes: uns, como os fiéis da igreja apostólica, se detêm na letra, nos
símbolos, e se alimentam da árvore da vida, os outros se elevam à intuição da verdade e se nutrem
diretamente do espírito divino.

3.2 Maniqueísmo

O persa Manes (216-274 d.C.) buscou combinar os dogmas do cristianismo com o


dualismo iraniano. Os elementos principais do maniqueísmo pertencem originariamente ao
gnosticismo e às doutrinas dos Magos persas, que haviam corrompido as doutrinas zoroastristas.

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O dogma dos dois princípios, o do espírito da luz e o da matéria tenebrosa, personificada
em Satã, deriva dessa combinação, assim como a concepção panteísta, segundo a qual todas as
almas não são mais que epifenômenos, ou particularizações de Deus, e todos os corpos e todos os
demônios são particularizações de Satã e da matéria.
Naquilo que diz respeito à consumação das coisas, o maniqueísmo admite com o
gnosticismo o retorno a Deus de todas as emanações divinas purificadas, mas ele se separa do
gnosticismo em relação ao destino final da matéria. Ele não acreditava que o princípio material
pudesse ser aniquilado, pois, não tendo sido produzido, ele é eterno e indestrutível. Para conciliar
essa indestrutibilidade com o triunfo de Deus, ele supôs que o mundo material seria reduzido
para sempre a uma espécie de estado cadavérico, uma morte imortal. Suas cinzas seriam relegadas
no abismo de onde ele saiu, e as almas que se deixaram seduzir por ele seriam condenadas a fazer,
imóveis e tristes, a guarda em torno a este sepulcro eterno.

3.3 As Heresias

Se os gnósticos e maniqueístas buscaram submeter os dogmas e símbolos cristãos às suas


concepções orientalistas, a dinâmica própria das heresias era distorcer e corromper esses dogmas
e símbolos a partir de dentro, instilando neles antigos vícios filosóficos.
O arianismo foi, em parte, uma prolongação parcial do panteísmo gnóstico, que pôs em
voga a doutrina das emanações divinas decrescentes. Para o presbítero Arius (256-336 d.C.), o
Verbo divino foi uma emanação inferior do Pai. Se para a ortodoxia cristã a natureza divina e a
natureza humana se unem perfeitamente na pessoa de Cristo – perfeito Deus, perfeito homem –
para os arianos ele foi um ser singular, superior ao homem, mas inferior a Deus.
Assim como os dualistas dividiram a unidade substancial de Deus em dois princípios,
o arcebispo Nestorius (386-450 d.C.) dividiu a unidade pessoal do redentor em duas pessoas, a
divina e a humana.
Analogamente, assim como o panteísmo negava a realidade do finito e o absorvia no
infinito, o presbítero Eutiques (380-456 d.C.) negava a natureza humana de Cristo absorvendo-a
na natureza divina. Assim como a matéria, para o panteísmo, não foi mais do que uma ilusão, a
carne do Cristo foi como um fantasma.

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4 A FILOSOFIA PATRÍSTICA

4.1 Introdução: a Fé e a Razão, Unidas, mas não Confusas, Distintas, mas


não Separadas

Grande parte dos trabalhos dos escritores cristãos ortodoxos, os chamados “Padres da
Igreja”, tinha por objetivo expor os dogmas da fé cristã, os preceitos de sua moral e os ritos de seu
culto. Entre os tratados especulativos, há ainda aqueles que buscam investigar as provas históricas
da revelação cristã. As partes que interessam à história da filosofia se apresentam ora sob uma
forma polêmica, enquanto refutações aos pensadores anticristãos, ora sob uma forma didática.
Suas investigações filosóficas não estavam centradas em si mesmas, mas na Revelação, e
tinham, em geral, dois objetos principais: provar a necessidade de tomar a Revelação como base ou
regra das especulações racionais e construir uma ordem de especulações racionais harmonizada
com os dogmas revelados.

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A filosofia dos Padres tem frequentemente um fim prático. Na antiguidade tardia, os
espíritos eram consumidos, por um lado, pela dúvida, por outro, por um misticismo extravagante
e muitas vezes imoral e contrário à natureza humana. A fé na revelação de Cristo era o remédio
que eles ofereciam para ambos os males. Os sistemas dualistas e panteístas haviam, a seu ver,
corrompido a noção de Deus e, com isso, todas as noções derivadas dela, inclusive e sobretudo
as morais. Para os Padres, a metafísica, a cosmologia, a lógica, a psicologia nada mais eram que
meios: a vida moral era o fim imediato; a salvação dos homens, o fim definitivo.
Não sendo a filosofia para eles um fim em si mesmo, nenhum deles criou propriamente
uma teoria ou um sistema filosófico. Uma visão de conjunto precisa ser como que “montada”
pelos estudiosos a partir dos pedaços especulativos imbricados em suas exposições catequéticas.
Em relação às filosofias anteriores, a obra dos Padres tem o caráter de um vasto ecletismo.
Em cada escola, eles selecionavam aquilo que parecia se harmonizar com a unidade do dogma
revelado. Mas se as outras formas de ecletismo tomavam por princípio de união alguma teoria
especulativa julgada superior, o ecletismo dos Padres tinha por centro e por regra um princípio
meta-especulativo: a revelação de Jesus Cristo.
No que diz respeito às suas bases filosóficas, as fontes gregas são comuns a todos. Mas
alguns Padres foram particularmente influenciados por influxos orientais. É o caso, por exemplo,
do chamado Dionísio o Areopagita, Orígenes, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, Basílio
de Cesareia ou Máximo o Confessor. Outros, como Tertuliano, Ambrósio ou Agostinho, são
particularmente marcados por influxos latinos.

4.2 A Unidade divina

A doutrina dos Padres sobre a unidade substancial, desconhecida, escondida reproduz


e aprofunda as ideias radicadas em todas as grandes teologias antigas. Eles distinguiam dois
tipos de unidade: a suprema, que exclui qualquer divisão, e aquela que consiste nas existências
individuais. A primeira pertence somente ao infinito, pois em todo ser limitado, o limite indica a
sua divisão, sua separação de algo mais completo.
“Como todas as noções se referem a existências, aquilo que está além de toda existência
escapa a toda noção. Ele não pode ser compreendido nem pelos sentidos, nem pela imaginação,
nem pelo pensamento, nem pela linguagem”, diz o escritor responsável por uma série de escritos
do século VI d.C. atribuídos a Dionísio o Areopagita.

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“Ele é aquele Um desconhecido, supersubstancial, que é o próprio Bem”. Mas mesmo


esta última afirmação acabará por ser relativizada pela teologia negativa da qual Dionísio é o
principal expoente. Como diz um comentador bizantino do Areopagita (Pachymeres), no sentido
ordinário das palavras “o um não é, se for permitido falar assim, nem bom nem belo: pois essas
palavras exprimem qualidades, afetos, maneiras de ser, e o Um é concebido como qualquer coisa
de transcendente, de ulterior a toda qualidade particular”.
Para Marius Victorinus (IV d.C.), um neoplatônico convertido ao cristianismo:

[...] o Um é infinito, desconhecido, indistinguível, ele é, propriamente falando, a


infinidade e a indeterminação. . . . Somos portanto forçados a dizer, a respeito
dele, que seu ser, sua vida, sua inteligência são incompreensíveis, que ele está além
de tudo aquilo que pode ser expresso, e por conseguinte que ele é sem existência,
sem substância, sem inteligência, sem vida, não por privação destas coisas, mas
por superabundância. Todas estas realidades que estes nomes exprimem são
com efeito posteriores à sua unidade (Victorinus, IV d.C.).

Falando aos gregos, Justino o Martir (c. 100 - c. 165 d.C.), argumentou que “[...] não é

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possível dar a Deus nenhum nome particular; pois os nomes têm por objeto a designação e a
distinção de coisas múltiplas e variadas”.
Assim, o único nome possível àquele que não pode receber nenhum nome particular é
aquele que exprime o ser em geral: ele é Aquele que é.
Paradoxalmente, é enquanto absolutamente transcendente que Deus pode ser
absolutamente imanente. “Tudo está na unidade, e com a unidade: [...] o Um é tudo para todas
as coisas”, diz Victorinus. Deus é o “imenso mar de substância”, diz o monge João Damasceno (c.
675-749 d.C.). Em termos similares, o arcebispo Gregório de Nazianzo (c. 329-390 d.C.) diz “[...]
que se pode colocar tudo nele, ele encerra tudo, pois todo ser vem dele”. O bispo Sinesius (c. 373
– c. 414 d.C.), em linguagem poética, se refere a Deus como “[...] a unidade das unidades, a raiz
das raízes, a ideia das ideias, o mundo dos mundos”.

4.3 A Criação

Os Padres precisavam combater, por um tempo, o panteísmo e o dualismo.


O panteísmo destruía a noção mesma de Deus. No sistema panteísta das emanações,
todos os seres são meras frações, epifenômenos de Deus, que se divide ao produzi-los. Isso quebra
o caráter essencial da substância divina: a unidade. Em segundo lugar, neste sistema, o mal – as
doenças, os erros, os crimes – afetam a essência divina, na medida em que os seres criados (ou
emanados), sujeitos ao mal e, pior ainda, sujeitos do mal, são partes desta essência. A fórmula
ortodoxa antagônica a este panteísmo é: A essência divina não é nem divisível e nem corruptível,
em nenhum grau, sob nenhum aspecto.
Paralelamente, quando o dualismo atribui à matéria, ou àquilo que variável e divisível,
um ser necessário, independente e eterno, isso também apaga a noção de Deus, ao tomar-lhe
suas características próprias e incomunicáveis, que de resto são contraditórias com a essência
da matéria, porque aquilo que é variável e divisível não pode ter em si mesmo a razão de sua
existência, já que ele pressupõe um princípio invariável, uma unidade anterior. A fórmula geral
com que o dogma ortodoxo se opõe ao dualismo é: Deus fez tudo aquilo que existe a partir
daquilo que não existia, do nada (ex nihilo), ou seja, sem uma matéria pré-existente.
Estes argumentos não chegam a ser uma refutação do panteísmo e do dualismo. Mais
propriamente, eles revelam a sua incompatibilidade com o dogma ortodoxo e com a noção da
unidade absoluta e transcendente.

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Os Padres admitem, com o panteísmo, que todas as coisas vêm de Deus, mas divergem
dele ao afirmar que elas não são partes nem simples modificações do próprio Deus. Eles admitem,
com os dualistas, que todas as coisas não são Deus, mas negam qualquer outra origem para elas
que não Deus. O desafio então é explicar como os seres finitos surgiram do Ser infinito.
Aquilo que se concebe de mais primitivo em Deus é o ser em sua ideia transcendental, ou
seja, aquilo que está além de todas as maneiras de se conceber tal ou qual ser, aquilo que é o suporte
da sabedoria divina, da vida divina e de todas as outras propriedades de Deus, em uma palavra,
a unidade radical e absoluta. Deus é um abismo luminoso, um mistério infinito incompreensível
e inominável, e, neste sentido, só se pode falar dele em termos negativos e paradoxais: só se pode
compreendê-lo como incompreensível; atingi-lo como inacessível; nomeá-lo como inominável.
Essa ignorância luminosa é a forma mais alta de sabedoria.
Na consciência humana, portanto, Deus não é conhecido diretamente tal qual ele é
radicalmente em si mesmo, mas sim pelas propriedades divinas das quais as criaturas participam.
Quando dizemos que ele é “sábio”, “bom”, “potente”, “belo” etc., nós designamos apenas as
virtudes divinas que emanam de Deus em nós. O que elas são e como o são em sua fonte, nenhum
pensamento humano pode conceber.

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Assim, o conhecimento de Deus é um composto de conhecimento e ignorância. Deus
é desconhecido em si – porquanto é infinito, transcendendo todas as nossas concepções – e é
conhecido em sua mais alta potência – porquanto tudo aquilo que conhecemos deriva dele.
Assim, para se aproximar da verdadeira ideia de Deus, é preciso defini-lo por contrários
irredutíveis que se reúnem nele. Ele é uma supersubstância, que reside incorruptivelmente em
todas as substâncias, mas que está separado de todas as substâncias; ele é a unidade inesgotável e
a multiplicidade indivisível; ele não tem forma e, ao mesmo tempo, é a forma universal. Em uma
palavra, Deus é aquele de quem se pode dizer que é tudo e que não é nada.
Deus em si não pode ser concebido, mas nenhuma criatura pode ser concebida senão em
virtude de sua participação em Deus. Esta concepção crucial de Platão, a “participação”, é chave
para a concepção cristã do mistério da criação. Para conceber a criação, é preciso distinguir três
coisas: Deus, os seres individuais, e uma ordem de realidades intermediárias entendidas como
participações.
Deus em si, enquanto infinito, é imparticipável. Os seres individuais, enquanto são
necessariamente finitos, são o oposto de Deus. As participações são certas propriedades ou
virtudes divinas infinitas – a potência, a bondade, a sabedoria, a vida etc. –, que existem nas
criaturas em graus finitos.
Elas devem ser consideradas em duas relações: enquanto são propriedades divinas elas
existem em Deus, infinitas como ele – elas são o próprio Deus –; enquanto participadas em graus
finitos, elas sustentam duas relações diversas, uma com Deus, a unidade absoluta, a outra com os
seres individuais.
Em relação a Deus, elas são sua obra, pois nada que é finito pode ser Deus, tudo o que
é finito é necessariamente criatura. Elas existem fora de Deus e, por isso, são chamadas não
“emanações”, mas “progressões” divinas. Estas progressões são o princípio constitutivo de todos
os seres individuais.
Em resumo, estas participações, enquanto existem em Deus, estão fora dos seres
individuais; enquanto são princípios de cada ser individual (ou, na linguagem aristotélica, “causas
eficientes”), elas existem fora de Deus, e formam assim a união de cada ser individual finito com
o infinito.

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4.4 O Verbo Divino em Relação à Criação

Os Padres consideravam a inteligência divina sob dois aspectos, um enquanto a mais


absoluta unidade, o outro, encerrado nesta unidade, enquanto o princípio e a razão da diversidade,
ou seja, as ideias, os arquétipos de todas as naturezas criadas. É sob este segundo aspecto que eles
representam o Verbo como forma originária de todas as criaturas. “É manifesto a todos”, diz o
bispo Atanásio (c. 296-298 d.C.):

“[...] que o Verbo é chamado primogênito, não como se ele mesmo fosse
qualquer coisa de criado, não como se ele tivesse algum parentesco, alguma
afinidade de essência com as criaturas, mas porque, ao formá-las no princípio,
ele se conformou a elas, ele se abaixou à sua medida, para que elas pudessem vir
a existir: elas não teriam podido sustentar alguma relação com a natureza do
Verbo, com o esplendor indefectível do Pai, se, conforme o amor do Pai pelos
homens, o Verbo não tivesse se proporcionado à condição das coisas criadas,
estendendo-lhes, por assim dizer, a mão, para elevá-las até a potência do ser
(ATANÁSIO, 296-298 d.C).

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Assim, o Verbo é o eterno mediador entre as criaturas e o Pai. A noção de que a inteligência
divina contém os arquétipos, as ideias das coisas, foi intuída pela filosofia oriental e especialmente
por Platão.

4.5 O Mal

A metafísica cristã considera o mal moral como não sendo, em nenhum grau, o produto
da necessidade, mas do livre arbítrio criado, e, por isso mesmo, imperfeito.
O mal não é algo positivo, mas uma privação do bem. “O mal não pode vir do bem, e, se
ele vem do bem, não é o mal”, diz o Areopagita. “Não é da natureza do calor produzir o frio, nem
da natureza daquilo que é bom produzir aquilo que não é bom. Se tudo aquilo que existe vem do
bem, pois a natureza do bem é produzir e conservar, como aquela do mal é corromper e destruir,
nada daquilo que existe vem do mal, e o mal não pode existir por si mesmo . . . . O mal portanto
somente pode existir enquanto ele não é absolutamente o mal, mas somente enquanto ele encerra
alguma parte do bem, que é tudo o que há de positivo nele”.
Para o bispo Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), “tudo aquilo que existe é bom, e o
mal não pode ser uma substância. Se ele fosse uma substância, ele seria bom; se incorruptível,
ele seria um grande bem; se corruptível, ele não poderia ser corrompido senão enquanto fosse
previamente bom”. “Todas as naturezas são boas, porque seu Autor é soberanamente bom; mas
porque elas não são, como ele, soberanamente e imutavelmente boas, o bem pode ser aumentado
e diminuído nelas; ora, a diminuição do bem é o mal”. Para o preceptor de Agostinho, o bispo
Ambrósio de Milão (339-397 d.C.), o mal não é mais que a indigência do bem.
O mal não está no conjunto do universo, pois o conjunto tende a Deus. “Tudo se relaciona
ao bem, tudo tende a ele”, diz Dionísio, “os seres espirituais e inteligentes tendem a ele pela
sua razão; os seres puramente sensitivos pelo seu instinto do sentimento; os seres privados de
sentimento, pelo movimento inato de seu apetite vital; os seres que são privados da vida e não
possuem nada mais que a existência, pela inclinação que produz neles a necessidade de participar
do ser”.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para apreciar a doutrina dos Padres em seu conjunto, é preciso observar que ela buscava
responder, sucessivamente, a duas necessidades da humanidade.
Primeiro, era preciso purificar o espírito humano dos erros propagados por sistemas de
filosofia, a seu ver, parciais, decadentes ou falsos. De fato, eles lograram que o pensamento o
cristão se tornasse gradualmente hegemônico no Império romano do Ocidente, assim como no
Império romano do Oriente, em Bizâncio.
Em segundo lugar, era preciso organizar todas as ciências sobre a base de uma filosofia
cristã. Os Padres fizeram magníficos esforços nesta direção, mas a sua maturação e desenvolvimento
caberia aos pensadores cristãos da chamada Idade Média.

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ENSINO A DISTÂNCIA

REFERÊNCIAS
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