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01
DISCIPLINA:
METAFÍSICA I
OBJETO, MÉTODO E
PRINCÍPIOS DA METAFÍSICA
SUMÁRIO DA UNIDADE
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................................5
1 O TERMO “METAFÍSICA”...........................................................................................................................................6
1.1 A “METAFÍSICA”, OBRA DE ARISTÓTELES............................................................................................................6
1.2 METAFÍSICA – DENOMINAÇÃO ADEQUADA.........................................................................................................6
1.3 OBJETO DA METAFÍSICA.........................................................................................................................................8
1.3.1 OS NOMES DA METAFÍSICA E SEU OBJETO......................................................................................................8
1.3.2 A CIÊNCIA DO ENTE ENQUANTO ENTE............................................................................................................ 10
1.3.3 SENTIDOS ANALÓGICOS DO ENTE.................................................................................................................... 11
1.4 PRINCÍPIOS E MÉTODO DA METAFÍSICA............................................................................................................ 13
1.4.1 HÁ CERTEZA NA METAFÍSICA?.......................................................................................................................... 13
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INTRODUÇÃO
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Admitiremos que ela é possível e a faremos nos moldes que nos foram deixados pela tradição
clássica. Evidentemente, o que aprenderemos dará os instrumentos para refutar os negadores
da metafísica, mas eles serão inicialmente deixados de lado. Essa é uma opção didática: antes de
entrar nas discussões sobre as “condições de possibilidade” da metafísica, ou mesmo se ela é um
saber com significado, é preciso antes exercitá-la, aprendê-la, conhecer seus argumentos e noções
fundamentais. Depois, lidaremos com as críticas de maneira mais fecunda, em Metafísica 2 e na
História da Filosofia.
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1 O TERMO “METAFÍSICA”
O surgimento do nome “Metafísica”, para designar uma disciplina da filosofia, teve uma
trajetória, no mínimo, peculiar. Trata-se do nome de uma obra – um conjunto de livros que foram
unidos – que passou a denominar um campo do conhecimento humano, mas que nunca foi
empregado pelo autor da obra, Aristóteles, que a denomina “filosofia primeira”, “ciência do ente
enquanto ente” e até “teologia”. Esses livros receberam o título de “Metafísica” posteriormente e
já têm esse nome na organização da obra aristotélica levada a cabo por Andrônico de Rodes, no
século I a.C.
O motivo da escolha do nome “Metafísica” é discutido por historiadores e filósofos.
Segundo alguns dos mais importantes estudiosos de Aristóteles, como Bonitz, Zeller e Düring,
essa nomeação, de consequências tão importantes, deveu-se à posição que os livros recolhidos
sob esse título ocupavam na organização de Andrônico. Eram os livros que vinham depois dos
tratados de “Física”, que abrangiam a obra com esse nome, e outras que tinham como objeto
aspectos da realidade material, tal qual “Sobre o Céu”, “Sobre a Alma”, “Das partes dos animais”,
“Sobre os Meteoros”, e assim por diante. Portanto, o nome se devia a uma mera “etiqueta de
classificação”.
Essa justificativa, ainda que tenha algo de verdade, não explica tudo. De fato, os livros que
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hoje compõem a “Metafísica” estão colocados após as obras de filosofia natural. Por isso, são “ta
meta ta jusika”, “as coisas depois daquelas da física”, os livros posteriores à física. Contudo, devemos
nos questionar: por que foram colocados ali? Foi uma escolha arbitrária ou simplesmente porque
não havia outro lugar onde inseri-los?
Segundo Paul Moraux, a expressão meta ta physika era empregada nos livros em questão
em listas distintas e anteriores às de Andrônico de Rodes. Em uma delas, esses livros vinham
provavelmente depois das obras de matemática, e não das de física. Por isso, o nome não se
devia apenas à posição das obras em um catálogo, mas ao seu conteúdo. Esses livros eram “além,
depois” da física, porque tratam de temas que devem ser estudados após o conhecimento das
realidades físicas ou materiais, conforme a ordem natural do conhecimento humano indicada
por Aristóteles. Portanto, o nome da obra decorre de razões didáticas (MORAUX, 1951, p. 315).
Uma terceira hipótese para essa denominação é que a “meta física” versa sobre realidades
que transcendem as físicas, as materiais. Foi proposta por Simplício, um antigo comentador de
Aristóteles. Moraux considera que essa explicação é demasiado carregada de neoplatonismo, o
que a torna inaceitável. No entanto, ela não deve ser descartada, porque Aristóteles efetivamente
considera que essa ciência trata de realidades imateriais.
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compreensão geral de toda a realidade. Ora, será tanto mais sábia a ciência que é escolhida por si
mesma, e não pelos resultados práticos que ela produza, bem como aquela que ordena as demais,
e não é ordenada (Met., l. 1, c. 2; 982, a, 14 – 19).
Portanto, é uma ciência teórica, não voltada para a conduta ou para a produção de algo.
Aqui, temos uma visão cara aos pensadores clássicos, que consideravam que o saber mais nobre
era um fim em si mesmo, e não um meio para outra coisa. A nobreza da metafísica implica sua
autonomia, como algo que importa em si.
Além disso, ela é o conhecimento mais elevado em dignidade por ser o mais divino, tanto
em seu objeto quanto em seu sujeito. Nas palavras de Aristóteles, “Deus é a causa de todas as
coisas e certo princípio, e só Deus, ou ele principalmente, pode possui-la [a metafísica]. Todas as
outras ciências são mais necessárias que esta; mas melhor, nenhuma” (Met. l. I, c. 2; 983, a, 4 – 11).
Além de ser a ciência que a divindade apresenta em si mesma, tal conhecimento tem por objeto
realidades divinas, entendidas essas em sentido amplo, como algo além do humano.
Outro fator a realçar é que os demais campos do saber dependem dessa ciência, que os
organiza e os ordena. Nesse sentido, Tomás de Aquino comenta que a ciência que regula as demais
é a maximamente intelectual, ou seja, a que trata das realidades sumamente inteligíveis. Assim
é porque o intelecto deve guiar e conduzir o que é caracterizado pela força ou pelo material, tal
como a razão humana conduz o comportamento e o esforço físico do sujeito. Logo, a ciência
ordenadora e condutora deve ser a mais inteligível de todas, que adentra mais profundamente na
realidade e alcança o universal que está nos distintos entes.
Algo pode ser considerado mais inteligível de três maneiras. Primeiro, pela ordem do
conhecimento, de onde ele inicia e para onde ele vai. Aquilo do qual a inteligência obtém maior
certeza é o mais inteligível. Ora, é pelo conhecimento das causas que adquirimos maior segurança
e certeza sobre algo. Logo, a ciência que considera as primeiras causas, das quais todas as demais
dependem, é a que nos proporciona maior certeza e regula as outras ciências, sendo a mais
inteligível.
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Por fim, temos aqueles entes que existem em si mesmos fora da matéria e são também
objetos da nossa intelecção e abstração mental. São as substâncias separadas e a divindade, que
possuem, por isso, a mais alta inteligibilidade em si mesmas. A ciência que trata dessas realidades
plenamente imateriais é a mais intelectual, princípio dos demais conhecimentos.
Essas três maneiras de reconhecer a ciência mais inteligível de todas nos conduzem à
metafísica. Os entes imateriais são as causas primeiras e universais do ser. Compete à mesma
ciência considerar as causas próprias de um gênero e o próprio gênero. Na metafísica, o gênero
a ser estudado é o ente comum, compartilhado em distinta medida por tudo que possui ser. As
substâncias imateriais são exatamente as causas universais e comuns desse ente. O conhecimento
das causas de um gênero é o fim que se busca ao estudar esse gênero, pois a ciência é o conhecimento
pelas causas e princípios.
Convém esclarecer que a metafísica estuda o ente comum separado da matéria, tanto real
quanto conceitualmente. Essa separação, contudo, não abarca apenas os entes que nunca podem
estar na matéria, como são a divindade e outras substâncias imateriais, mas também aqueles que
podem ser nela. Para a metafísica, no entanto, não importa que os entes estejam na matéria, mas
simplesmente que sejam entes.
Por isso, podemos estudar a essência, a substância, o ato e a potência, todas noções
metafísicas, e aplicá-los aos distintos entes, que são e podem ser compreendidos no ente comum.
Vemos, então, a universalidade da metafísica, que chega a todas as realidades, separando-as da
materialidade e indo ao que é comum aos vários entes.
Tomás de Aquino observa que, das três razões que conferem excelência a essa disciplina,
surgem seus três nomes. É chamada de “ciência divina” ou “teologia”, enquanto considera a
divindade e as substâncias imateriais. “Metafísica”, porque estuda o ente e as coisas que dele
decorrem, chegando ao que está além do material, ao “trans físico”. Finalmente, ela é a “filosofia
primeira” por tratar das causas primeiras das coisas e dos princípios que as ciências particulares
empregam em seus campos de estudo (Tomás de Aquino, Sententia Metaphysicae, pr.).
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Na época moderna, surgiu outro nome para o estudo do ente: “ontologia”. Ainda que sua
aparição tenha se devido a um desvio em relação ao pensamento clássico, usar esse termo não
acarreta problemas. Afinal, a metafísica é o estudo do ente enquanto ente, conforme veremos no
próximo tópico. Logo, pode ser chamada de ontologia (MILLÁN-PUELLES, 1970, p. 425). Mais
adiante, retornaremos a essa questão, trazendo alguns matizes.
Esses três nomes identificados por Tomás, bem como “ontologia”, relacionam-se, de modo
mais ou menos próximo, ao ente enquanto ente, que Aristóteles afirma ser o objeto da ciência
mais importante e nobre a ser estudada. Tal ciência não se identifica com nenhuma das que
chamamos particulares (Met., l. 4, c. 1; 1003, a, 21 – 6).
Entender o que significa “ente enquanto ente” pode não ser simples. Temos a tendência
a considerar que o ente é um conceito maximamente abstrato, que se aplica com a mais ampla
universalidade – a tudo o que é – e, consequentemente, com a menor compreensão ou conteúdo
possíveis. Seria um conceito ao lado do nada, ao qual se acrescentaria apenas a existência, que
não traria qualquer determinação, nota ou qualidade.
De fato, na história da filosofia houve filósofos importantes, como Hegel, que aproximaram
o ente puro ou abstrato ao nada. Ao abstrair tudo de um ente, para ficar apenas com que ele exista,
chegaremos a um vazio absoluto de toda determinação, que é verdadeiramente o nada (GILSON,
2016, p. 244).
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No entanto, a noção de ente, de que estamos tratando aqui, é a mais rica e profunda de
todas. Não pode ser confundida com o nada; ao contrário, ela abrange todos os entes, porque
todos, antes de qualquer outra coisa, são. Certamente, não é uma espécie de enciclopédia ou
armazém de entes. Ela traz o que é comum aos vários entes, que é sua ligação com o ato de ser,
do qual decorrem a realidade e a existência efetiva. Para estudarmos os entes nos seus gêneros
distintos, com suas características próprias, necessitamos contar, antes, com noções que dizem
respeito ao ente comum, objeto da metafísica.
Estudar o ente enquanto ente, que é a tarefa da metafísica, consiste em analisar o que
há de comum em tudo o que é, abrangendo os princípios, causas primeiras e elementos do
ente enquanto tal. Todos esses aspectos são contemplados pela mesma ciência, porque estão
relacionados entre si.
A unidade e a multiplicidade, o igual e o diferente, a substância e os acidentes, o ato e
a potência são alguns dos temas diretamente relacionados aos entes enquanto tal. Por isso, são
estudados pela metafísica. Também o são os princípios que governam a realidade, sem os quais
não poderíamos compreendê-la, nem ela se sustentar.
A filosofia é a ciência da verdade, e essa qualificação aplica-se primordialmente à metafísica.
Não conhecemos a verdade sem conhecer a causa, e o que apresenta a excelência por sua própria
natureza é a causa pela qual outras coisas recebam tal excelência. Algo maximamente inteligente
será a causa da inteligência de outros, assim como o fogo é a causa do calor em um ambiente.
Logo, será mais verdadeiro o que for a causa da verdade nas outras coisas. Disso, Aristóteles
conclui que os princípios dos seres eternos são sempre, necessariamente, os mais verdadeiros,
e cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser (Met., l. 2, c. 1; 993, b, 19 – 31). Por
trás dessa conclusão, está a concepção de que as coisas imutáveis, eternas, são a causa do ser das
realidades físicas e mutáveis.
A relação entre verdade, ser e ente é estreita e clara. Cabe à metafísica estudar essas
causas fundamentais da verdade e do ente. Daí sua posição única no saber humano e as enormes
dificuldades em que nos encontramos quando não lhe reconhecemos seu devido valor.
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O ente é dito de vários modos; mas todo ente se diz em referência a um único
princípio. De fato, algumas coisas são chamadas entes porque são substâncias;
outras, porque são afecções [modos de ser, paixões] das substâncias, outras
porque são uma via para a substância, ou corrupções, ou privações, ou qualidades
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da substância, ou porque produzem ou geram a substâncias ou as coisas que se
referem à substância, ou porque são negações de alguma destas coisas ou da
substância (Met., l. 4, c. 2; 1003, b, 5 - 10).
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www.youtube.com/watch?v=H_M7CloVrEw.
É possível colocar legendas em inglês.
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de ambas – ciência e dialética – é a sofística.
A matéria da dialética, que discorre sobre tudo, é o ente e o que diz respeito a ele; a
filosofia também trata do ente. Por sua vez, a sofística aparenta uma sabedoria que não possui,
que lhe vem por discutir a respeito do ente. Portanto, as três se voltam, de modos distintos, para
o ente.
Se há esse elemento comum a elas, a filosofia difere da dialética pela sua potência ou força,
e da sofística pela escolha prévia de um tipo de vida. Na dialética, basta testar o conhecimento,
analisá-lo, enquanto a filosofia procura conhecer positivamente. Já a sofística é mero conhecimento
aparente (ARISTÓTELES, Met., l. 4, c. 2; 1004, b, 17 – 26).
O filósofo ou metafísico procede demonstrativamente acerca do ente, visando a conhecê-
lo com certeza. Já o dialético trata do ente a partir de argumentos prováveis, não alcançando a
ciência, mas opiniões. Aí está a diferença de potência ou força entre metafísica e dialética. Por
fim, a sofística visa a aparentar saber o que desconhece, e essa é a meta da sua vida. O filósofo
ou metafísico, ao contrário, volta-se vitalmente para o conhecimento da verdade. Aqui estão os
tipos de vida distintos, escolhidos pelo filósofo e pelo sofista (TOMÁS DE AQUINO, Sententia
Metaphysicae, lib. 4, l. 4, nn. 5 – 6).
A dialética nos permite chegar a conclusões prováveis, verossímeis, perfectíveis e
superiores aos enunciados dos quais partimos. Há um ganho de aprofundamento e de ampliação
nos temas, sem que alcancemos resultados certos e seguros. Ao admitir o valor da dialética, é
ainda mais significativo que Aristóteles sustente que a metafísica vá além dela e nos possibilite
obter enunciados firmes e exatos.
Muitos dos adversários da metafísica consideram-na inviável por tratar de temas que
estão além das demonstrações matemáticas, lógicas, ou do que é verificado pelo conhecimento
sensível. Ao mirar o abstrato, a metafísica seria impedida de obter verdades firmes e se limitaria,
no melhor dos casos, a proposições inseguras e nebulosas, e, no pior, a um discurso sem sentido
e inútil, porque versa sobre temas sobre os quais não se pode afirmar nada.
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Para o pensamento clássico, o que sucede é o contrário. A metafísica trata daquelas verdades
que, em si mesmas, são as mais certas, exatas e seguras. Tanto é assim, que os conhecimentos das
outras áreas se fundamentarão necessariamente nela. As afirmações metafísicas são as mais claras
e verdadeiras em si mesmas, por natureza, mas não necessariamente para alguns, especialmente
aqueles não treinados ou habilitados para o pensamento filosófico e abstrato. Ou seja, não é o
grau efetivo de certeza e exatidão que alguém possui a respeito de uma verdade que garante o
quanto aquela verdade é essencial ou exata em si mesma. Frequentemente, a certeza do sujeito –
ou falta dela, sobre algumas verdades – decorre de uma especificação ou limitação dele, e não do
objeto do conhecimento em si mesmo.
Uma das descrições do método de pesquisa aristotélico, em termos bastante gerais, é
alcançar o que é conhecido por natureza ou por si mesmo através daquilo que é conhecido por
nós. Por isso, o conhecimento usualmente começa nas “aparências” (phainomena), relacionadas
aos sentidos externos, para, então, alcançar verdades mais sólidas e profundas, como as essências
(IRWIN, 1988, p. 29). Esse trajeto é seguido na metafísica ainda que haja primeiros princípios
dos quais partimos necessariamente e que possibilitam a apreensão das realidades mais básicas.
Concluindo, a metafísica não se resume a uma discussão dialética em torno do provável,
mas procura verdades certas. Seus primeiros princípios são seguros, da maneira mais forte como
isso pode ser afirmado da cognição humana e da estrutura da realidade. Essa certeza pode não
ser patente para nós, ao menos em um primeiro momento, mas é uma decorrência de a metafísica
ser a filosofia primeira, que examina o fundamento último da realidade e o ente enquanto tal. O
método da metafísica é comprovado pela força de seus princípios.
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A certeza, ou não, do nosso conhecimento é uma questão estudada na gnosiologia
ou teoria do conhecimento. A respeito dela, há uma espécie de pêndulo histórico,
com épocas em que se propõe a competência do ser humano de compreender
todas as coisas e desvendar os vários segredos do universo, seguidas de fases de
ceticismo e relativismo. Há grandes filósofos em todas essas vertentes mesmo
que elas se contradigam diretamente. A concepção clássica, especialmente
a apresentada por Aristóteles, Platão e seus seguidores, é a mais equilibrada.
Muitos autores modernos e contemporâneos a consideram superada, mas eles
mesmos não conseguem soluções superiores, que durem sem serem duramente
contestadas e até refutadas.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Não implica contradição com o sujeito ser humano, o que seria diferente se afirmássemos
que um burro é igualmente um hipopótamo, literalmente. Daí a enunciação de Aristóteles indicar
que a contradição seja “no mesmo sentido”.
Não há contradição em atributos distintos em um sujeito no decorrer do tempo. Uma
banana, que hoje é amarela, estava verde alguns dias atrás. Contraditório seria se ela fosse verde e
amarela inteiramente ao mesmo tempo. Tampouco haveria problema se partes da banana fossem
de uma cor, partes de outra, pois a simultaneidade não se daria no mesmo local. Esse princípio não é
apenas epistemológico, ligado ao nosso conhecimento, como se fosse um instrumento empregado
pela nossa mente para ordenar e diferenciar os conceitos. Ao menos para os pensadores clássicos,
é uma configuração fundamental do mundo em si, da qual não se pode desviar ou renunciar.
Sendo o primeiro princípio, ele não pode ser demonstrado por outro anterior a si. Isso
poderia nos trazer perplexidade, porque o fundamento de toda ciência metafísica, o princípio
mais firme, não pode ser ele mesmo demonstrado. A isso, Aristóteles responde que é ignorância
não distinguir entre coisas que podem ser demonstradas e as que não o podem. É impossível haver
demonstração de absolutamente tudo, porque, então, iríamos ao infinito, o que é incongruente
com a demonstração (Met., l. 4, c. 4; 1006, a, 5 – 10).
A falta de demonstração, em vez de enfraquecer, reforça o princípio de não contradição.
Ele é conhecido de maneira quase natural na medida em que entendemos os termos e conceitos
que fazem parte dele, e não por aquisição. Através dele, alcançamos os demais princípios das
várias ciências; não os deduzindo dele, mas tendo-o como pressuposto.
Se não cabe demonstrar o princípio da não contradição, podemos mostrar sua necessidade
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e refutar os que o negam. O adversário do princípio, ao expor sua posição, já se refuta, porque
suas palavras têm um sentido determinado, no qual não cabe a contradição simultânea no mesmo
sentido. Sem o princípio da não contradição, o sujeito não seria sequer capaz de raciocinar consigo
mesmo ou com outrem.
Há diferentes graus de oposição entre os conceitos. Assim, “cavalo” é diferente de
“marrom” e de “não-cavalo”; porém, a oposição entre “cavalo” e “não-cavalo” é maior do que entre
esses dois conceitos e “marrom”. Inclusive, um sujeito pode ser cavalo, ou não, e ter a cor marrom
simultaneamente, mas não pode, ao mesmo tempo, ser cavalo e não ser cavalo. Mas, mesmo em
um cavalo marrom, é distinto ser cavalo de ser marrom.
Essas distinções são importantes, e parece-me que aqueles que buscam formalizar o
pensamento em estruturas lógicas totalmente formais, se não forem cuidadosos, podem ficar
cegos para elas. A formalização tem sua razão de ser, mas não pode ser exagerada, sob pena de
distorcer o pensamento.
Retornando à questão das diferenciações dos conceitos e dos entes, se o princípio da
não contradição fosse descartado, tais diferenciações não poderiam ser explicadas. Faltariam a
consistência e a estabilidade para que as diversas realidades se mostrassem distintas umas das
outras. Por isso, com sua agudez habitual, Aristóteles indica que aqueles que não admitem as
contradições terminam por negar a substância e as essências. Precisam sustentar que tudo é
acidente, pois não existe, segundo eles, o que constitui essencialmente a quididade ou a substâncias
das coisas. Se qualquer propriedade ou nota pode pertencer, ou não, a algo simultaneamente,
não faz parte essencialmente desse algo. Assim, pode ou não pertencer à coisa e, por isso, é um
acidente dela (ARISTÓTELES, Met., l. 4, c. 4; 1007, a, 20 – 36).
Outra maneira de negar o princípio de não contradição é sustentar que o verdadeiro
consiste no que os sentidos mostram para cada indivíduo. Então, algo poderia ser quente ou frio
ao mesmo tempo, pois sujeitos distintos poderiam chegar a conclusões diversas a esse respeito.
Levando mais adiante essa maneira de pensar, chegaríamos a concluir que não há verdade, mas
apenas opiniões que não apresentam superioridade umas em relação às outras, porque todas têm
algum sujeito que as sustente.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Além do princípio da não contradição, há outros que também dizem respeito ao ente
enquanto tal. O mais importante deles é o do terceiro excluído, que estabelece: “não é possível
que haja qualquer intermediário entre enunciados contraditórios: é preciso necessariamente
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ou afirmar, ou negar, um único predicado, qualquer que seja, de um determinado sujeito”
(ARISTÓTELES, Met., l. 4, c. 7; 1011, b, 23 – 24). Ou seja, não há uma terceira possibilidade, um
ente intermediário, entre uma afirmação e sua negação. Se a afirmação é verdadeira, a negação
será falsa, ou vice-versa.
Esse princípio se aplica entre afirmações e negações, e não simplesmente entre afirmações
distintas. Por isso, se alguém sustenta que uma camisa é verde, e outro a considera vermelha,
ambos podem estar errados, porque a cor verdadeira é azul. Porém, se um afirma que a camisa
é verde, e outro que ela não o é, um dos dois terá de estar correto, sem haver uma terceira opção
que negaria as duas primeiras.
Nossa mente, ao afirmar ou negar, liga ou afasta dois termos. Se a verdade aparece ao ligar
os dois termos – por exemplo, “Sócrates é filósofo” –, afastar esses termos será mentira – “Sócrates
não é filósofo”. Temos essas duas opções, não é possível uma terceira, e isso é justamente o que
sintetiza o princípio do terceiro excluído.
Portanto, o nosso modo de pensar, com os juízos formados a partir de ligações ou
afastamentos de termos, exige que as opções sejam duas – verdade ou mentira – sobre o que foi
afirmado ou negado.
O terceiro princípio, sustentado por autores posteriores a Aristóteles e Tomás de Aquino,
é o da identidade. Ele pode ser formulado de maneira bastante sucinta: “o ente é o ente”, ou, em
linguagem lógica, “A é A”. Algo é o que é, primária e fundamentalmente; não pode ser outra coisa
que não si mesmo.
Notamos a proximidade entre esse o princípio da identidade e o da não contradição. No
entanto, não são idênticos, e as críticas a um não afetam necessariamente o outro. O princípio de
não contradição não sustenta que o sujeito é idêntico a si mesmo, mas, sim, que certo predicado
não pode pertencer e não pertencer simultaneamente e no mesmo sentido a um objeto.
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Hegel e outros autores criticaram o princípio de identidade como mera tautologia, porque
ele não acrescenta nada de novo ao conhecimento do sujeito. Ao afirmar que “A é A”, que um ente
é aquele ente, não se descobre nada do ente em questão (BERTI, 2012, p. 70-1). O formalismo
do princípio da identidade – que, mais do que equivocado, seria de importância menor – é uma
razão para não o reconhecer como um princípio metafísico fundamental. Reconhecer uma coisa
como o que ela é, e não outra, exige a ideia do não ser, que não está no princípio de identidade,
mas, sim, no de não contradição (MILLÁN PUELLES, 1970, p. 443).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Normalmente, tratar do que seja uma área do conhecimento é simples. Indicamos sua
diferença com relação a outros campos, indicamos seu objeto fundamental e seguimos adiante.
No entanto, isso não se dá na metafísica. Estabelecer o que ela é já é fazer metafísica. Exige afastar
certas posições filosóficas como insuficientes, bem como aceitar que há verdades em si mesmas
superiores aos seres humanos, que merecem ser investigadas.
Claro que não basta definir, na medida do possível, o que é metafísica para entender tudo
sobre o que ela trata. Afinal, o curso inteiro será justamente para avançar nessa compreensão,
cientes de que ficaremos aquém por mais que nos esforcemos e nos dediquemos. No entanto, essa
nossa limitação não é causa de desânimo ou decepção, mas tributo a um conhecimento superior,
o mais elevado ao que o ser humano pode almejar por meios apenas intelectuais.
Realçamos nesta unidade que a metafísica é pressuposta pelas ciências naturais e pelos
outros campos da filosofia. A função ordenadora da “filosofia primeira” é notória. Por isso, uma
boa metafísica auxilia a colocar tudo no seu devido lugar, em termos cognitivos. Uma metafísica
deficiente, ao contrário, é causa de confusão e obscurecimento. Mais um motivo para procurarmos
penetrar no que mentes brilhantes foram capazes de escrever e pensar a respeito das realidades
fundamentais.
METAFÍSICA I | UNIDADE 1
Na metafísica, podemos obter verdades certas, seguras. Com elas, avançamos em outros
campos de maneira confiante, mesmo que cientes das nossas limitações e falhas intelectuais. Há
o perigo de exagerar na capacidade da inteligência humana, propondo a ela mais do que é capaz.
Porém, atualmente, ainda mais nociva é a tendência de desconfiar da nossa aptidão para chegar
a verdades amplas, fundamentais, globais. O equilíbrio entre o excesso e a falta, a respeito da
inteligência humana, é alcançado mais facilmente com o desenvolvimento de uma metafísica
correta.
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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA
02
DISCIPLINA:
METAFÍSICA I
SUBSTÂNCIA E ACIDENTES
SUMÁRIO DA UNIDADE
INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 21
1 SUBSTÂNCIA, O ENTE POR EXCELÊNCIA...............................................................................................................22
1.1 O ENTE SUBSTANCIAL, QUESTÃO CENTRAL DA FILOSOFIA..............................................................................22
1.2 NOTAS DA SUBSTÂNCIA........................................................................................................................................23
1.3 DEFINIÇÃO DE SUBSTÂNCIA.................................................................................................................................24
1.4 SUBSTÂNCIAS NAS CATEGORIAS........................................................................................................................25
2 OS SENTIDOS DE SUBSTÂNCIA..............................................................................................................................26
2.1 A SUBSTÂNCIA COMO O UNIVERSAL E O GÊNERO...........................................................................................26
2.2 O SUBSTRATO E A SUBSTÂNCIA..........................................................................................................................27
2.3 A ESSÊNCIA COMO SUBSTÂNCIA PRIMÁRIA....................................................................................................27
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
INTRODUÇÃO
Para estudarmos o ente enquanto ente, que é o objeto da metafísica, é razoável que
comecemos pela noção central de ente, em torno da qual giram as demais. Essa noção é a
substância, na qual as demais realidades inerem e da qual dependem para existir.
As substâncias foram conhecidas por nós no âmbito da filosofia da natureza. No entanto,
a análise delas chega a um nível muito superior de complexidade e profundidade na metafísica. O
que aprendemos sobre as substâncias materiais serve como preparação para o que veremos agora
e pode surpreender alguém o quanto é possível avançar em relação ao que já vimos anteriormente.
De fato, por mais próximos de nós que sejam os seres físicos ou materiais, cuja apreensão
iniciamos com nossos sentidos externos, eles são menos ricos, em termos de significado e
amplitude, do que os entes imateriais, ou que podem existir independentemente da causa
material. Por isso, a análise da substância na metafísica exige muito mais, mas também é mais
compensadora.
Nesta unidade, veremos primeiramente qual a definição de substância, à qual chegamos
a partir das notas fundamentais desse gênero de entes. Essa é uma das questões mais importantes
de toda a filosofia, e precisamos adentrar nela com segurança e clareza. A seguir, buscaremos o
princípio fundamental das substâncias.
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Finalmente, estudaremos a relação entre a substância e os acidentes, bem como a
interação entre o todo e as suas partes. Neste momento, estudaremos algumas teorias modernas
para explicar ou refutar a noção de substância. É importante que, pouco a pouco, comparemos a
filosofia clássica com teorias contemporâneas, que são também vigorosas e instigantes ainda que
frequentemente incompletas.
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os campos, o que em boa parte compete às ciências particulares, mas, sim, em seus elementos
centrais, que são os mais fundamentais e comuns às distintas áreas.
A substância é o ente primeiro, porque aquilo que é, por si e de maneira absoluta em
qualquer gênero, é anterior ao que é por outro ou de maneira relativa. A substância é ente de
modo absoluto e por si mesma. Por sua vez, os demais gêneros ou categorias são entes a partir da
substância e em relação a ela.
A prioridade da substância frente aos demais entes se dá de vários modos, dos quais
indicaremos três: pelo enunciado ou conceito, pelo conhecimento e pelo tempo. Pelo tempo,
porque nenhuma das categorias pode ser separada da substância, mas ela pode ser separada das
demais. No mesmo sentido, pode haver substâncias sem acidentes (substâncias imateriais), mas
não o contrário. Logo, não existem substâncias apenas quando se dão acidentes, mas estes só
existem se houver a substância.
Trata-se de uma anterioridade metafísica, em que algo é exigido para que o outro possa
surgir. Ainda que muitas vezes o acidente se dê imediatamente junto com a substância, a segunda
tem anterioridade em termos conceituais, e mesmo existenciais.
Pelo conceito ou enunciado, porque na definição de qualquer acidente será preciso inserir
a definição da substância. Para entender o que é “arrebitado” ou “narigudo”, é preciso, antes,
saber o que seja o nariz. Quando queremos descrever um odor, por exemplo, indicamos a qual
substância ele pertence: perfume de rosas, cheiro de laranja, e assim por diante. A definição da
substância aparece na do acidente; por isso, a primeira é anterior ao segundo.
Finalmente, a prioridade da substância é segundo o conhecimento, porque ela manifesta
melhor a coisa. Conhecemos mais perfeitamente algo quanto mais sabemos da sua substância.
Então, mesmo que os acidentes se modifiquem, não nos enganamos a respeito de qual ente se
trata. Descobrir que determinado ente é uma macieira é mais completo do que apenas perceber
algo verde e marrom, que faz certo barulho ao ser movido pelo vento e desprende um odor
característico quando tem flores. Os acidentes são conhecidos na medida em que participam do
modo como a substância é conhecida (TOMÁS DE AQUINO, Sententia Metaphysica, lib. 7, l. 1,
nn. 13 – 15).
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Para Aristóteles, a substância é a primeira causa do ser (Met., l. 7, c. 17; 1041, b, 28).
Como veremos adiante, mais radical ainda, como causa de todas as coisas, é o ato de ser. Porém,
Aristóteles não alcançou essa noção com a riqueza com que ela foi desenvolvida por Tomás de
Aquino e seus seguidores. Por isso, a substância é a noção central da Metafísica aristotélica.
METAFÍSICA I | UNIDADE 2
esse sentido principal, precisamos determinar, antes, quais notas ele deverá preencher. Em outras
palavras, a partir das noções preliminares da substância, que iremos posteriormente aperfeiçoar
e aprofundar, poderemos discutir qual elemento é o fundamento dessa categoria central da
realidade.
O que é necessário para que algo seja uma substância? O que lhe fornece essas
características? A primeira pergunta trata da definição e notas da substância. A segunda, do
fundamento ou elemento central da substância. Certamente, ambas as questões estão intimamente
ligadas e, às vezes, pode parecer que se confundem. Mas a segunda depende da primeira para ser
respondida; por sua vez, a primeira será completada com a solução da segunda questão.
Sobre as notas da substância, as principais são: 1) ser um ente separável; e 2) uma coisa
determinada (ARISTÓTELES, Met., l. 7, c. 3; 1029, a, 27-28). Separável significa independente,
que não é em outro. A cor de uma página não pode ser destacada da página; porém, a página é
separável do resto do livro e posso pintá-la com outra tonalidade. Tampouco o peso é independente
da coisa pesada, o que o desqualifica como substância. Essa possibilidade de separação decorre de
ser em si mesmo, de maneira autônoma. É uma nota fundamental da substância, que a distingue
claramente dos acidentes.
Por sua vez, ser uma coisa determinada indica que a substância não é um mero conceito
ou uma realidade abstrata. Trata-se de algo individual, que possui autonomia como ente e no qual
os acidentes são. A substância é algo próprio, determinado; uma realidade que existe em si.
Não significa que a substância necessite ser material ainda que tais entes sejam aqueles que
conhecemos com mais facilidade. Sejam materiais ou imateriais, as substâncias são individuais,
determinadas. Não se replicam sem distinção, nem se encontram as mesmas em várias realidades
diferentes. Se isso acontecer, não estamos diante de uma substância, mas de algo diferente. Isso
ficará mais claro quando estudarmos os universais e sua relação com os entes concretos.
Portanto, a separabilidade e ser um ente determinado, individual, são as notas fundamentais
da substância. Elas nos servem de base para o estudo do tema, e as outras características estarão
ligadas a essas duas, que são marcantes e centrais.
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do gênero próximo; não há um gênero próximo à substância, porque ela é o mais geral de todos
(WIPPEL, 2000, p. 230-4). Ainda assim, podemos chegar a uma boa compreensão da substância,
que completaremos nos próximos tópicos.
Podemos, então, entender a substância como “a coisa a cuja essência pertence não ser em
outro” (TOMÁS DE AQUINO, De potentia, q. 7, a. 3, ad 4). As duas notas que precisavam estar
presentes, a separabilidade e a determinação concreta, encontram-se aqui. A substância não é em
outro e, por isso, pode ser separada, tomada independentemente de qualquer ente distinto. É uma
coisa, algo determinado, individualizado.
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Em sua obra Categorias, Aristóteles trata das substâncias. Essa obra explica especialmente
elementos ligados à lógica e à arte de pensar, separando os conceitos em distintas categorias.
Ao mesmo tempo, as considerações examinadas ali têm interesse metafísico, pois pensamos de
maneira a entender e representar a realidade. Sem dúvida, Aristóteles aprofundou bastante a
respeito das substâncias na Metafísica; mas o que está afirmado nas Categorias segue relevante e
deve ser harmonizado com o que veio na obra posterior (WEDIN, 2000, p. 3).
Aristóteles sustenta que as substâncias não são predicadas de nenhum sujeito, nem estão
em qualquer sujeito. São sujeitos individuais, como o ser humano, uma árvore ou um animal
concreto. Não são predicadas de um sujeito; antes, tudo é predicado delas, as substâncias.
Tampouco estão em um sujeito, porque elas são o sujeito no qual estão os acidentes.
Ficam patentes as notas da separabilidade e de tratar-se de algo determinado, uma coisa
concreta e individual. Essas substâncias são denominadas primeiras por serem as substâncias por
excelência, com uma essência que implica ser em si mesmas, e não em outros.
“Todas as outras coisas, ou são ditas das substâncias como de sujeitos, ou estão nelas
como em sujeitos” (ARISTÓTELES, Cat., c. 5; 2, a, 35-6). O peso é do sujeito, bem como a cor;
tantos quilos estão no sujeito, e o azul está nos seus olhos. Essa posição central da substância,
em relação às demais realidades, está de acordo com o que estudamos sobre a importância dessa
noção para a filosofia por se tratar do ente primário e fundamental.
Também são chamadas de substâncias, mas segundas, as espécies e os gêneros aos quais as
METAFÍSICA I | UNIDADE 2
substâncias primárias pertencem (ARISTÓTELES, Cat., c. 5; 2, a, 11-19). Os gêneros são menos
substâncias que as espécies, pois estas se encontram mais próximas das substâncias primeiras,
que são o caso central dessa categoria.
Adiantando algo que estudaremos na Unidade 4, se não houvesse substâncias primeiras,
não existiriam as demais realidades: os acidentes, os gêneros e as espécies. Sem indivíduos, não
haveria de que predicar os gêneros e as espécies; logo, essas substâncias segundas não teriam
existência alguma. De modo paralelo, os acidentes somente podem ser predicados de sujeitos,
nos quais eles são. Portanto, sem substâncias, os acidentes tampouco poderiam ser entes.
As observações que Aristóteles recolhe nas Categorias ajudam a desvendar uma série de
dificuldades na interpretação da Metafísica. Para tanto, é importante recordar que a substância
primeira são os indivíduos, com sua separabilidade e determinação concreta. Já as substâncias
segundas são também chamadas substâncias embora de maneira menos fundamental.
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2 OS SENTIDOS DE SUBSTÂNCIA
Se o estudo das substâncias começou nas Categorias, ele alcança outro grau de dificuldade
e profundidade na Metafísica, especialmente no livro Z, ou sétimo. Não nos interessa aqui
mergulhar nas distintas interpretações dos vários capítulos desse livro, que são objeto de uma
bibliografia abundante em quantidade e qualidade, muitas vezes voltada para especialistas. Mas
apresentaremos as principais lições do livro, basilares para a compreensão da nossa disciplina.
A substância é entendida não em um único sentido, mas em vários, dentre os quais
encontramos quatro principais: a essência, o universal, o gênero e o sujeito ou substrato. Há
razões para sustentar qualquer um desses sentidos como o fundamental, do qual os demais seriam
derivações. Vamos estudá-los, sempre guiados pelas considerações de Aristóteles a respeito.
METAFÍSICA I | UNIDADE 2
abertura. Nesses casos, teremos uma aplicação unívoca do termo: sempre o empregando no
mesmo sentido.
Por outro lado, podemos lançar mão do termo “janela” para expressar um intervalo ou
possibilidade. Assim, dizemos que há uma “janela” para se adquirir algo ou para progredir em
um campo. É uma metáfora, com fundamento na analogia. Assim como a janela é uma abertura
na parede, temos “janelas” no tempo. No entanto, reconhecendo a importância da aplicação ou
predicação analógica dos termos, aqui nos importa principalmente o uso unívoco deles.
Ao tratarmos das substâncias primeiras, nós nos referimos a elas frequentemente
empregando universais. Aquele indivíduo, que é substancial, é um cachorro ou uma amendoeira
ou uma pedra de cristal. Todos esses termos são universais. Por isso, alguns sustentaram que o
sentido principal de substância seria justamente o universal, que serve para identificar o indivíduo
com características específicas ou gerais, compartilhadas por outros. Sem que se predicassem
universais do sujeito, ele não seria inteligível.
Além disso, o universal está relacionado à essência das coisas. Tanto que indicamos a
essência por um conceito universal. As substâncias são coisas, que possuem uma essência, que
indicamos através de um universal.
Esses aspectos nos permitem compreender o porquê de alguns sustentarem que o universal
seria a substância primeira. No entanto, isso não é correto. Conforme vimos antes, a substância é
uma coisa individual, algo determinado. O universal não apresenta essa característica, porque, por
sua própria definição, ele se dá em muitos. Se o universal fosse a substância, todos os indivíduos,
dos quais o universal é predicado, seriam a mesma substância, o que é absurdo. Cada indivíduo
é uma substância distinta.
Além disso, os universais são predicados dos indivíduos e estão neles. Nisso, apresentam
contraste com a substância, que não é predicada de sujeito algum, nem está em qualquer indivíduo.
Finalmente, os universais frequentemente indicam acidentes, como azul, cheiroso,
pesado, vagaroso... Não apenas elementos ligados à essência. Mas as substâncias são distintas dos
acidentes e, se os universais fossem as substâncias em sentido primeiro, teríamos acidentes que
seriam substâncias, o que é contraditório.
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é predicado de nenhuma outra coisa, tal qual sucede com as substâncias. Ademais, ele cumpre a
função de ser o elemento subjacente aos acidentes.
O substrato pode ser tomado em três sentidos: como matéria, como forma ou como o
composto resultante da união da matéria com a forma. Como matéria, ele seria algo que não
é determinado por nada, seja forma, quantidade ou qualidade. Logo, é justamente o substrato
último de todas as demais características do indivíduo. Se eliminarmos essas características,
dentre as quais estão a largura, o comprimento e a profundidade, a fim de alcançarmos a matéria
pura e simples, em si mesma, acabamos ficando sem nada além da matéria indeterminada. Ela é
o substrato último e, por isso, seria a substância.
No entanto, a substância é algo determinado, uma coisa separada com essência; e a matéria
não apresenta essas características. Ao contrário, a forma e o composto estão mais próximos da
substância do que a matéria justamente por trazerem determinações. Isso não descarta que a
matéria seja importante para a noção de substância; porém, ela não é o fundamental e precisa
estar unida a outros princípios ou causas.
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Há várias propriedades que decorrem da essência, sem fazer parte dela. O pato tem penas
e patas peculiares; essas características não estão na essência do pato ainda que dela decorram.
Um pato depenado ou com defeito nas patas segue sendo um pato, porque sua essência continua
íntegra. A essência é ela mesma um universal se a tomamos separada de qualquer indivíduo.
“Humanidade” é a essência de todos os seres humanos; também existe uma essência compartilhada
pelos leões, carvões, roseiras e assim por diante. No entanto, não é a essência universal que pode
ser considerada como substância, porque ela sofre as críticas apresentadas anteriormente sobre a
inadequação do universal como substância.
As essências estão individualizadas nos entes concretos, unidas à matéria. Nesse sentido,
dizemos que cada indivíduo tem a sua essência, que deriva de sua forma. Como bem explica Berti
(2012), a espécie à qual pertencem os indivíduos é um universal, mas a forma de cada um deles é
única, separada das demais. Em termos filosóficos, as formas são numericamente distintas: cada
ser humano possui a sua forma, que é especificamente (ou seja, na espécie) idêntica às de outros
seres humanos, mas diferente do ponto de vista numérico (BERTI, 2012, p. 102-3).
Cada forma de uma espécie, ao se individualizar na composição com a matéria, apresentará
características próprias, distintas de outras formas individualizadas por matérias diferentes. Por
isso, ainda que as almas de todos os seres humanos, que são as formas deles e das quais advêm
suas essências, sejam especificamente iguais, elas diferem bastante. A maneira de pensar, o grau
de inteligência, a capacidade de observação, o funcionamento dos órgãos... Apesar de haver a
semelhança específica das formas, elas se apresentam como diversas nos seres concretos. Sem
diferenças essenciais, mas relevantes. Isso também se dá nos indivíduos das várias espécies
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animais, vegetais e, mesmo, minerais.
A essência e a forma estão presentes tanto nos acidentes como nas substâncias. No entanto,
tal como se dá com os entes em geral, as essências e formas por excelência são as substanciais, ou
seja, as que determinam as substâncias. As demais, acidentais, dependem das formas substanciais
para sua existência.
Portanto, formas apreendidas pelo nosso intelecto de maneira universal, mas que existem
concretamente em sujeitos de maneira individual. Essa distinção nos permite compreender
pontos fundamentais de várias áreas da filosofia.
Há discussões complexas sobre a essência e as formas dos seres individuais e até que
ponto elas servem para explicar a substância. As discordâncias são profundas e extensas, o que
demonstra haver dificuldade para juntar os vários aspectos da substancialidade. Os textos de
Aristóteles a respeito da substância não são claros, por serem um tanto elípticos e pelo tema ser
intrincado por si mesmo. Não é à toa que existe uma bibliografia considerável a respeito do livro
7, ou Z, da Metafísica.
Apesar disso, há uma série de pontos que podem ser interligados, o que nos permite ter
um entendimento satisfatório das substâncias, coroando o que estudamos nos pontos anteriores
e em Filosofia da Natureza. De início, sustento que cabe harmonizar os distintos textos de
Aristóteles sobre a substância, especialmente os correspondentes capítulos das Categorias e livros
da Metafísica.
As substâncias são os indivíduos em si mesmos, autônomos e determinados. São substratos,
porque os acidentes inserem-se neles, e eles estão como elemento unificador do ente. Aqui, temos
de recordar que, sendo indivíduos, as substâncias não se confundem com os acidentes que estão
nelas. Por isso, elas não são simplesmente “os indivíduos”, mas estes no que são por si mesmos,
não acidentalmente.
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Ao afirmar que o “Zé Carioca” é o papagaio verde e caolho que pertence ao meu vizinho,
estou descrevendo um indivíduo pássaro. Empreguei elementos substanciais – “papagaio” – e
acidentais – “verde”, “caolho” e “pertence ao meu vizinho”. Todas essas notas estão presentes
no indivíduo, fazem parte dele. Porém, apenas o ser “papagaio” é substancial, porque indica a
definição, o que o Zé Carioca é em si mesmo. Se ele for adquirido por outro dono ou se ele tivesse
dois olhos – como talvez tenha tido antes –, continuaria sendo o Zé Carioca. No entanto, se
deixar de ser papagaio, significa que ele terá morrido, o que indica a corrupção do ente e o fim
da sua existência.
A substância é o indivíduo, mas enquanto determinado por sua essência, que decorre
da sua forma. Voltamos aqui à definição que apresentamos anteriormente sobre a substância:
“aquele ente que possui uma essência à qual pertence não ser em outro”. Nela, está clara a ligação
da substância com a essência; não é tudo no indivíduo que é substância, mas o que diz respeito à
sua essência, pela qual podemos definir o indivíduo.
Ao mesmo tempo, ao contrário do que alguns defendem, a substância não é simplesmente
a essência, nem a forma substancial. A materialidade é um aspecto fundamental dos entes físicos,
que deve ser levada em conta em sua substancialidade, e ela é distinta da forma. Se apenas a forma
fosse a substância, o elemento material seria colocado de lado, o que é um erro. Importa-nos
aqui a forma unida à matéria, que dá origem ao composto existente (a composição hilemórfica,
examinada na Filosofia da Natureza).
Além dos entes naturais ou físicos, compostos de matéria e forma, temos os entes
imateriais ou substâncias separadas. Em vários trechos das suas obras, Aristóteles afirma que nem
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todas as substâncias são materiais (por exemplo, Met., l. 7, c. 10; 1035, a, 28 – 32). Sendo assim, a
matéria estará relacionada à essência de algumas substâncias, mas não de todas. Na Idade Média,
os entes materiais foram frequentemente denominados substâncias separadas, porque existem
fora e separados da matéria. Para vários autores, dentre os quais Tomás de Aquino, tais entes são
constituídos apenas pela sua forma e, como tal, são individuados.
Nos textos aristotélicos, há momentos em que o filósofo comenta que apenas a forma é
a substância; isso vale para os entes imateriais, que são os mais importantes de todos. Em outros
trechos, Aristóteles dirá que o composto matéria e forma será a substância, o que está correto
para os entes materiais. Tanto nos imateriais como nos materiais, a essência é o que define o que o
indivíduo é; por isso, ela é também considerada como substância em certas passagens dos escritos
aristotélicos. E a essência é estabelecida pela forma.
Os sentidos dos termos não são exatos para Aristóteles e para muitos dos que o tomaram
por guia. A linguagem humana é flexível, e os pensadores clássicos estavam cientes disso. Daí a
sutileza das suas análises, que frequentemente não são conclusivas, mas abrem para nós o horizonte
da realidade. A partir de onde partimos, ou do que buscamos, todos os sentidos de substância
indicados anteriormente – substrato, forma, composto, essência – são corretos (ARISTÓTELES,
Met., l. 8, c. 1; 1042, a, 24 – 32).
Os entes cuja essência ou quididade consiste em ser em si mesmos, e não em outros, são
as substâncias. Ela são o que são pela sua essência ou quididade, que decorre da sua forma, que, se
são materiais, está unida à matéria. Quando queremos definir algo, buscamos sua essência, que é
relacionada à substância. Por isso, o Zé Carioca é primordialmente um papagaio, e não um verde,
ou uma propriedade do meu vizinho, ainda que essas duas notas sejam verdadeiras. Chegamos
aqui aos acidentes, que são na substância, mas não a definem em si mesma, mas apenas de certa
maneira ou em alguma medida.
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3.1 Definição e Tipos de Acidentes
A partir da definição de substância a que chegamos, com todas as suas variantes e matizes,
podemos delinear a noção de acidente. Trata-se de uma coisa à qual corresponde ser em outro.
Quando o acidente se une à substância, há uma alteração acidental, com a formação de um ser
secundário, que cabe ao acidente. Em princípio, os acidentes têm seu ser, que depende do ser da
substância na qual eles se inserem, mas se distingue do ser substancial. Há razões e argumentos
sólidos para sustentar o contrário, que o ser dos acidentes é o mesmo da substância (WIPPEL,
2000, p. 265), mas considero que, se há um ente acidental, ele terá o ser que lhe compete ainda
que dependente de outro ente.
Em vários momentos, sustentamos que a substância recebe os acidentes, sendo o substrato
deles. Nesse prisma, ela é similar à causa material dos acidentes, o princípio potencial que eles
atualizam. Isso é verdadeiro, mas cabe agora desenvolver melhor a relação entre substância e
acidente.
Primeiro, há diferentes modos como os acidentes se relacionam com a substância. Alguns
deles são criados a partir dos princípios da espécie do sujeito, sendo, então, propriedades do
sujeito. Tais acidentes, designados também próprios ou propriedades, costumam aparecer em
todos os indivíduos da espécie, embora possam faltar em alguns deles, configurando um defeito
ou privação. Outros acidentes são causados pelos princípios do sujeito ou indivíduo, como a cor
dos seus olhos, o tom da voz, seu sexo, a capacidade para certa ciência ou atividade física. Não é
algo que caracteriza a espécie, mas aquele sujeito concreto.
Outros acidentes são introduzidos no sujeito de fora, e aqui vemos também duas situações
distintas. Em uma, vai-se contra a natureza de quem recebe o acidente e, por isso, pode ser
considerado uma violência. É o que se dá quando uma árvore tem seus galhos queimados, ou a
pedra pouco a pouco é rachada pela água que corre sobre ela. Na segunda, o acidente não vem da
natureza do sujeito, mas não é contrário a ela, como quando alguém é refrescado pela água em
um dia de calor, ou uma pessoa coloca óculos para enxergar melhor.
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Por essa simples enumeração, vemos que a substância não tem apenas uma relação passiva
em relação aos acidentes. Em grande parte, ela os define ou, ao menos, torna possível que alguns
deles sejam recebidos por ela.
Por ser a substância que recebe os acidentes e eles inserem nela, podemos dizer que
ela produz o acidente. Assim é porque ela está em ato e torna possível que eles sejam nela. Ao
mesmo tempo, enquanto em potência, a substância recebe a forma acidental, exatamente porque
a substância tem a potência para recebê-la. Temos, portanto, uma situação dupla quanto à relação
entre substância e acidente: enquanto atual, a substância produz ou gera o acidente; enquanto em
potência, a substância recebe o acidente. Tal situação dupla dá-se nos acidentes próprios, não nos
que vêm de fora, isto é, nos acidentes extrínsecos. Com relação a estes, o sujeito é apenas receptor,
sem produzi-los (WIPPEL, 2000, p. 271).
Aristóteles explica que não é possível desenvolver ciência a partir dos acidentes, porque
eles não são necessários, enquanto a ciência trata do que sucede sempre da mesma maneira ou,
ao menos, na maior parte das vezes. Sendo um pouco mais exatos, sem desvirtuar o pensamento
do filósofo, cabe desenvolver ciência a partir das propriedades, porque estas sucedem na maior
parte dos indivíduos que possuem determinada natureza. Isso não se pode dizer dos acidentes
extrínsecos, cuja existência não se dá sempre, nem na maior parte das vezes.
Um arquiteto enquanto tal projeta edifícios. No entanto, ele pode consertar um carro; fará
isso por acidente, não essencialmente, enquanto arquiteto. Aqui tratamos de uma qualidade – ser
arquiteto – que é um acidente. Os acidentes têm a sua essência, e a de ser arquiteto habilita o sujeito
a trabalhar com arquitetura sempre que desejar. Contudo, o arquiteto não sabe, por sua essência
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de arquiteto, trabalhar como mecânico. Alguns arquitetos saberão fazê-lo acidentalmente. Isso é
exatamente o que caracteriza o acidental: o que não é gerado necessariamente, nem na maioria
das vezes (ARISTÓTELES, Met., l. 6, c. 2; 1026, b, 21 – 1027, a, 19).
Novamente, reforçamos que essa noção vale principalmente para os acidentes extrínsecos,
que foram mais bem desenvolvidos pela tradição aristotélica posterior. Os acidentes próprios se
dão na maior parte das vezes de uma maneira determinada, previsível, justamente por estarem
intimamente ligados à essência e à substância do sujeito.
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A relação entre o todo e a parte é um tema que diz respeito à substância e pode refletir
na compreensão dos acidentes. A substância, pelo que vimos, corresponde à estrutura de todo
o ente, algo que o unifica, recebendo os acidentes e apresentando, por si mesma, características
fundamentais advindas da forma substancial.
Há linhas filosóficas que consideram que a substância não existe como realidade
autônoma. Ela nada mais é do que um “pacote” (bundle) de características particulares ou
propriedades, denominadas “tropos”. Assim, não haveria um todo no qual os acidentes são, mas
apenas propriedades ou “tropos” – universais ou particulares, como adiante estudaremos –, que
se unificam no “pacote”, que não têm existência por si. No entanto, a teoria dos pacotes acaba não
explicando satisfatoriamente a existência dos indivíduos particulares. Estes não são um conjunto
de propriedades e notas, mas algo além disso, que é justamente a substância (MARMODORO;
MAYR, 2019, p. 25-33).
Penso que teorias como a dos “pacotes” de propriedades encontram sua força na
epistemologia empirista, que considera que existe fundamentalmente o que conseguimos
captar pelos sentidos. Conforme estudamos anteriormente, sustentar que os sentidos são o que
determina o conhecimento e nosso acesso à realidade, sem outro grau de verdade e comprovação,
termina por negar que haja algo além do sensível, como é justamente o caso da substância.
Como é preciso explicar os indivíduos e harmonizá-los com as propriedades que captamos
com os sentidos e, ao mesmo tempo, não se admite nada além do sensível, sustentar que tudo
METAFÍSICA I | UNIDADE 2
seja um bundle de propriedades é uma resposta que alguns consideram satisfatória. Afinal, as
propriedades materiais costumam estar ao alcance da experiência sensível e frequentemente
podem ser medidas com padrões quantitativos. No entanto, essa redução da substância a um
pacote pouco substancial (perdoe o jogo de palavras...) é um erro grave, que vai contra o senso
comum e o que nossa inteligência mostra. As coisas não deixam de ser o que são ainda que
algumas de suas propriedades mudem. Percebemos a sombra de Heráclito nesse tipo de equívoco;
como é importante conhecer o pensamento antigo para entender posturas contemporâneas!
Outra discussão dos nossos dias, próxima da questão da substância, é sobre as partes e o
todo. Alguns denominam o estudo desse tema de mereologia. Ela procura explicar os indivíduos
como todos que têm várias partes, sendo que há diversas abordagens sobre a relação entre o
composto e seus elementos.
É possível defender uma mereologia clássica, compatível com a metafísica realista. No
entanto, o mais comum é que os estudiosos da mereologia considerem a matéria e a forma como
dois elementos distintos, que se unem como as partes de um todo. Essa visão prejudica a unidade
da substância e concede uma autonomia para a matéria e a forma, antes de que se unam no
composto, que não existe na realidade.
O niilismo mereológico (mereological nihilism) é uma vertente que nega a existência da
substância, afirmando que apenas partículas existem. Essa linha não conseguiu muitos adeptos,
porque vai contra o nosso senso comum. Segundo ela, somos um mero amontoado de pedaços
de matéria que, juntos, são chamados sangue, ossos, tecidos e se unem no ser humano, que
realmente não existe em si. Evidentemente, há autores importantes por trás dessa explicação, mas
ela efetivamente não se sustenta.
Penso que, apesar de ser contemporânea, a mereologia é ultrapassada pela metafísica
clássica, de cunho aristotélico, que mostra a necessidade de se identificar a substância como algo
real, um princípio que vai além das suas partes e modifica as partes enquanto tais. Um galho
cortado é diferente do mesmo galho junto à árvore de modos relevantes. Logo, a árvore não se
compõe apenas da soma das suas partes, mas de algo que está além disso, em termos metafísicos.
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O que sucede, antes, é que o todo parece ser o responsável por manter unidas e diferenciar
as várias partes de um corpo vivo, bem como de alguns minerais ou acidentes geográficos. Esse
todo tem como princípios a substância e a forma.
As partes materiais de um ente físico são posteriores à substância e ao composto inteiro,
isto é, ao todo, porque este é que faz com que as partes se desenvolvam e sejam agregadas a
ele. Tanto é assim que apenas sabemos a função de um membro quando o vemos no todo. Por
sua vez, a essência e a forma são anteriores ao composto individual, porque as duas são as que
determinam o composto ou substância. Mesmo antes que um ser vivo se desenvolva plenamente,
ele já possui sua forma e essência, responsáveis para que a substância se desenvolva. Finalmente,
as partes principais são simultâneas ao composto, porque constituem o suporte fundamental da
forma e da substância (ARISTÓTELES, Met., l. 7, c. 10; 1035, b, 3 – 32).
Essas anterioridades a que nos referimos são de caráter metafísico, não necessariamente
temporal. Porém, são reais, porque mostram o quê depende de quê, na estrutura dos entes.
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No entanto, a palavra “substância” é empregada por pensadores modernos e
contemporâneos, como Descartes ou David Lewis, em sentidos que podem ser
muito distantes daqueles da filosofia clássica. Por isso, ao ler essa palavra, é
preciso saber em qual contexto de pensamento ela foi usada, sob pena de cair em
confusões entre palavras e conceitos.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta unidade é sobre um dos temas mais difíceis da filosofia, e dos mais importantes.
Pudemos analisar a definição de substância, buscando uma que fosse compatível com as notas
fundamentais dessa categoria. Depois, verificamos os sentidos em que a substância pode ser
tomada, a partir de qual seja seu elemento central. Esse é o ponto mais complexo, porque não há
respostas fechadas, mas afirmações que se complementam e são verdadeiras a partir de um ponto
de vista, mas não de outro. Caminhar por todas essas possibilidades é um exercício intelectual
recompensador, que nos faz mais sensíveis aos matizes e detalhes dos conceitos e da realidade.
Por fim, coube-nos estudar os acidentes de maneira geral. Não cada um deles, como
está nas Categorias aristotélicas, mas como maneiras como o ente se apresenta; no caso, tendo
por essência ser em outro. A distinção entre substância e acidentes é realmente central. Não a
entender bem acarreta uma série de confusões, nas quais a realidade tende a ser concebida como
frágil e instável, mais do que ela efetivamente é. Ou mesmo negada como algo além do que a
sensibilidade alcança e, por isso, quimérico.
A substância não esgota o estudo nem a realidade. Ao mesmo tempo, muitas outras
noções e entes giram em torno dela. Por isso, conhecê-la bem é chave para se aprofundar na
filosofia de maneira orgânica e segura.
METAFÍSICA I | UNIDADE 2
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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA
03
DISCIPLINA:
METAFÍSICA I
ATO E POTÊNCIA
SUMÁRIO DA UNIDADE
INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................37
1 SENTIDOS DA POTÊNCIA..........................................................................................................................................38
1.1 AS POTÊNCIAS E SUAS CLASSIFICAÇÕES...........................................................................................................38
1.2 POTÊNCIAS E PODERES: DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS..........................................................................40
1.3 POTÊNCIA, POSSIBILIDADE, IMPOSSIBILIDADE E NECESSIDADE.................................................................. 41
2 OS ATOS E SUAS DISTINÇÕES................................................................................................................................42
2.1 O QUE SIGNIFICA ESTAR EM ATO........................................................................................................................42
2.2 AÇÕES IMANENTES OU FINAIS E AÇÕES TRANSITIVAS OU NÃO FINAIS......................................................42
3 ANTERIORIDADE DO ATO EM RELAÇÃO À POTÊNCIA..........................................................................................44
3.1 ANTERIORIDADE CONCEITUAL, SUBSTANCIAL E TEMPORAL DO ATO EM RELAÇÃO À POTÊNCIA............44
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
INTRODUÇÃO
Além de se referir à substância e aos acidentes, os entes também dizem respeito ao ato
e à potência. Como a metafísica estuda os entes em seus vários significados – que vimos serem
analógicos –, bem como suas causas, a consideração do ato e da potência interessa a ela de modo
direto.
Examinamos o ato e a potência na filosofia da natureza para preparar a explicação do
movimento nos entes. Também vimos que um dos sentidos de ente é o que gera ou corrompe a
substância, e o ato e a potência nos permitem entender esse processo.
Essas duas noções, correlatas e complementares, são um ponto central da filosofia
clássica. Há autores que inclusive defendem ser a distinção entre ato e potência o fundamento
do pensamento de Tomás de Aquino, enquanto outros a consideram a doutrina mais original de
Aristóteles e uma das que teve mais êxito na história da filosofia ocidental (BERTI, 2012, p. 109).
Nesta unidade, vamos primeiramente analisar a potência, com várias questões que
surgem em torno dela. Depois, iremos estudar a atualidade e suas distinções. Terminaremos com
a exposição da anterioridade do ato em relação à potência.
Tal como aconteceu na substância, avançaremos aqui em relação ao que aprendemos na
filosofia da natureza. Lá, o principal interesse em relação ao ato e à potência girava em torno do
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
movimento ligado à materialidade. Aqui, serão as faculdades e potencialidades dos sujeitos, e
como elas são ativadas, que nos importarão mais. Não há uma contradição, porque um grupo
importante de faculdades diz respeito aos movimentos dos entes materiais. Além disso, o uso de
uma faculdade implica movimento.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
1 SENTIDOS DA POTÊNCIA
As noções de potência e ato podem ser entendidas uma em função da outra embora
não seja possível defini-las. Teremos de lançar mão de descrições e enunciados que nos ajudam
a formular o mais precisamente possível os conceitos dessas formas de ser. Não será possível
recorrer a noções mais amplas e abstratas, a partir das quais possamos definir o ato e a potência,
porque, mais geral do que eles, temos apenas o ente. Apenas por isso, já podemos concluir que o
ato e a potência estão em várias realidades, ajudando-nos a entendê-las.
Em grego, potência é dunamis, dynamis, que foi traduzida para o latim como potentia.
Ela é o princípio do movimento ou da mudança que está em outro, ou em si mesmo enquanto
outro. Também há uma potência para ser mudada ou movida por outro, ou por si mesmo
enquanto outro (ARISTÓTELES, Met., l. 5, c. 12; 1019, a, 15-20). A primeira descrição é aplicada
à chamada potência ativa, enquanto a segunda cabe à potência passiva; ou seja, à possibilidade de
mudar outro e de ser mudado por outro, respectivamente.
A potência ativa não está naquele que será mudado, mas em outro, o agente do movimento.
Por exemplo, a capacidade de escrever não está no que é escrito – a página, ou a parede, ou uma
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
tela etc. –, mas no escritor. Pode acontecer que o escritor desenhe letras em sua pele. Nesse caso,
ele recebe as letras em seu corpo não por ter a capacidade de escrevê-las, mas porque sua pele
pode ser pintada. O princípio do movimento está nele, mas enquanto outro. O escritor não recebe
as letras em sua pele porque é capaz de escrevê-las, mas porque a pele pode ser pintada.
Ao mesmo tempo, a potência da pele de ser pintada é um exemplo de potência passiva;
ela foi mudada por outro enquanto outro, não por si mesma. Se a pele é do escritor, isso não faz
diferença; ela pode ser pintada por um terceiro do mesmo modo.
Em certo sentido, a potência para fazer – ativa – ou para padecer – passiva – é a mesma,
mas em sujeitos diferentes. Melhor ainda, são mutuamente dependentes. Apenas pode ser alterado
o que tem capacidade para isso; a potência ativa exige um objeto adequado para ser exercida. A
potência passiva e ativa são, portanto, duas faces complementares da realidade do movimento. A
água tem a potência de ser aquecida pelo fogo, enquanto o fogo tem a capacidade de esquentá-
la. Portanto, o agente e o paciente da mudança são entes com potências, seja porque podem ser
modificados por outro, seja porque podem modificar outro.
Por outro lado, é evidente que, de outro ponto de vista, são potências diferentes. Uma
está no paciente, que necessita ter certo princípio ou característica para sofrer a ação. Não é
possível escrever no gás carbônico ou na água, ao menos com tinta comum, porque ambos não
apresentam a potência passiva para serem modificados por uma inscrição, o que é distinto do que
se dá em uma folha de papel ou em uma tela. A potência ativa está no agente, como a capacidade
de escrever está no escritor, ou o calor está no fogo. Então, uma é a potência do paciente, outra a
do agente, ainda que se pressuponham e existam simultaneamente, para que se dê o movimento
ou mudança.
Outra classificação das potências é a que as divide em racionais e irracionais. As potências
racionais estão na alma racional, como sucede com as artes e as ciências. Por elas, temos uma
capacidade – potência ativa – de realizar algo, como construir, cantar, escrever um texto, curar.
Essas potências podem produzir efeitos contrários e opostos; por exemplo, quem constrói sabe
também como demolir ou levantar um edifício que não conseguirá se sustentar.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
As ciências e artes fazem com que o agente tenha o conceito das realidades com que
trabalha – o que significa produzir carros, ou realizar cirurgias, ou elaborar discursos – e o domine.
Por isso, o artista ou cientista conhece o conceito ou enunciado, bem como a sua negação, tendo
a capacidade de produzir o que é próprio do seu saber, como aquilo que é contrário a esse saber.
As potências irracionais, ao contrário, produzem apenas um tipo de efeito, o que lhes é
próprio, e não efeitos contrários. O gelo irá esfriar, não esquentará algo; também os órgãos vitais
produzem seus efeitos próprios a não ser que estejam defeituosos, o que implica a perda ou avaria
de determinada potência. Em todas essas situações, importa que o paciente esteja nas condições
requeridas para sofrer a ação do agente. A água no estado vaporoso não pode ser bebida como se
fosse líquida, pois ela não está na situação adequada para que o agente atualize sua potência de
bebê-la.
As potências racionais necessariamente são em um ente animado, enquanto as irracionais
podem estar em um agente animado ou inanimado. Nas potências irracionais, quando o agente e
o paciente estão nas condições requeridas por elas, elas agem ou padecem necessariamente. Por
exemplo, se a água se aproxima do fogo, será aquecida por ele; se um metal está no campo de
um ímã, será atraído; o alimento engolido será digerido pelo aparelho digestivo. Nas potências
racionais, apesar de haver a aproximação, o efeito pode ou não ocorrer, dependendo do que
estabelecer o agente, que tem o poder de escolha quanto a gerar, ou não, a consequência.
Temos potências congênitas ou inatas, como os sentidos externos e a capacidade de
crescer de um ser vivo, ou as adquiridas pela prática e pelo estudo. Aprender a marcenaria,
dançar balé, cozinhar e escrever englobam prática e estudo, com exercícios prévios. As potências
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
inatas, assim como as passivas, não exigem essa preparação anterior. As potências adquiridas pela
prática demandam certo domínio de si, em maior ou menor medida; muitas delas serão, por isso,
racionais. As inatas são, em sua maior parte, irracionais.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Uma característica importante das potências é que elas estão presentes mesmo quando
não atuam. São algo permanente em quem as possui, não uma qualidade que apenas existe quando
o sujeito atua através delas – potência ativa – ou sofre uma mudança em virtude delas – potência
passiva. Se fosse assim, uma comida não teria sabor enquanto não fosse apreciada por alguém,
nem uma flor teria odor se ninguém a cheirasse, pois essas são potências a serem percebidas.
Logo, enquanto não percebidas, não existiriam, o que é um absurdo (ARISTÓTELES, Met., l. 9,
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
c. 3, 1047, a, 4-7) (que, por sinal, foi defendido por um filósofo importante, Berkeley, para quem
“ser é ser percebido”. Vamos estudá-lo na História da Filosofia Moderna).
Ademais, se as potências somente estivessem presentes enquanto houvesse atualização,
esta surgiria do nada. Afinal, é impossível atualizar uma potência que não exista enquanto não for
atualizada: não há o que atualizar. Na verdade, essa postura de subordinar totalmente a potência à
atualização, pelo seu fracasso, mostra como ambos os conceitos são correlatos e interdependentes,
sem que se confundam.
Há situações em que podemos pensar em um ato sem potência alguma, mas isso se dá de
maneira muito específica e rara. É preciso que seja um ato pleno, que se dá apenas na divindade
de modo completo. Fora disso, a atualização implica uma potência existindo previamente. Não
admitir isso implica a dissolução das noções de ato e potência. Logo, uma potência pode existir
e não ser atualizada: um animal pode correr, mas está parado; posso enxergar, mas tenho meus
olhos fechados, e assim por diante. Resumindo, as capacidades existem, são potências, mesmo
que não sejam realizadas em determinado momento.
Como determinar se algo está, ou não, em potência para determinada atualização?
Nem sempre é fácil fazê-lo. O tronco da árvore viva é potência para a estátua ou precisa ser
antes atualizado como madeira cortada da árvore? Um corpo doente está em potência para ser
curado ou só o estará quando superar as enfermidades que impedem inclusive almejar a saúde
diretamente?
A esse respeito, Aristóteles faz uma série de distinções interessantes. Quando as coisas
dependem da razão, elas passam de ser em potência para ser em ato quando são queridas, e
não encontram qualquer obstáculo exterior para essa mudança. Os ingredientes que possuo para
fazer um bolo são em potência se têm condições, pela minha vontade e ação, de serem usados na
produção do bolo. Se o leite está azedo, ou a farinha apodreceu, eles não serão o bolo em potência,
porque apresentam obstáculos exteriores para o serem. Caso o forno estivesse quebrado, teríamos
também um obstáculo exterior. Essa exterioridade diz respeito à potência racional; não é um
defeito dela, mas um problema no mundo fora do agente.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Algo pode não ser em potência em um instante e logo vir a sê-lo. No caso do forno,
uma vez consertado, poderemos, então, considerar os ingredientes como o bolo em potência.
Igualmente se eles fossem simplesmente levados a outro lugar, onde há um forno que funciona.
Portanto, a noção de potência pode apresentar graus na medida em que a aptidão de algo para ser
atualizado aumenta. Nesse sentido, a madeira da árvore é menos potência para a estátua do que
o bloco de madeira cortado; porém, é mais potência do que uma pedra de talco, na qual esculpir
é praticamente impossível.
Nas coisas que têm em si os princípios da sua atualização, elas serão potência de outro por
sua própria natureza, quando não houver impedimentos exteriores. A macieira tem potência de
produzir flores e, posteriormente, frutos. Se ela estiver saudável e íntegra, recebendo água e seus
nutrientes, os frutos serão atualizados. Se a natureza não estiver perfeita, algumas potências não
existirão mais. É o que se dá quando um animal não pode mais se reproduzir, porque envelheceu
ou sofreu uma doença que o esterilizou.
No caso da geração dos animais, Aristóteles considera que o sêmen não é o animal em
potência, mas apenas o é quando é colocado na fêmea. Nosso filósofo não conhecia os processos
biológicos da reprodução como nós. Por isso, não sabia da carga genética, da determinação dos
genes, apesar de ter percebido a semelhança entre gerado e gerador. Mas, se entendemos o animal
adulto como aquele plenamente desenvolvido, o embrião será esse animal em potência, porque
ainda não teve seus órgãos, tecidos e membros diferenciados. Isso só ocorrerá com o tempo, se não
houver obstáculos interiores e exteriores (ARISTÓTELES, Met. l. 9, c. 7; 1048, b, 37 – 1049, a, 18).
Nos dias de hoje, pelo que sabemos através da ciência, podemos dizer que o embrião é o
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
animal, com suas determinações genéticas. Enquanto animal, já está atualizado; mas não como
animal desenvolvido corporalmente. Então, o sêmen seria a potência dos animais. Penso que essa
é uma explicação satisfatória para esse caso específico, de acordo com os princípios e conceitos da
teoria do ato e potência, ainda que contrária às palavras expressas de Aristóteles.
Outro caminho para identificar a potência é distinguir quando algo é alguma coisa de
quando afirmamos que algo é de alguma coisa. Nesta segunda situação, descobrimos a potência.
Afirmamos que uma peça é de aço, não aço; por sua vez, o aço é de minério de ferro, não é minério
de ferro. O que segue imediatamente a substância principal é a potência em sentido rigoroso
e sem limitações. Assim, o aço é a potência para que surja a peça, e o minério é a potência em
relação ao aço. O minério poderia ser entendido como potência da peça? Em certa medida, sim,
mas não de modo rigoroso e exato, pois esse minério terá que ser transformado antes em aço (cf.
ARISTÓTELES, Met., l. 9, c. 7; 1049, a, 18 – 27).
Algo é possível se não é absurdo ou contraditório que apresente o ato para o qual tenha
potência. É possível que a água seja esquentada, mesmo que agora ela esteja fria; o aquecimento
não é absurdo ou contraditório. Diferente é que um cavalo escreva uma peça teatral: ele não tem
essa potência. Por isso, é impossível para ele realizar o ato relacionado a dita potência.
Quando um ente é possível, ele é realizável; isto é, pode se tornar real. Por isso, seria
falso afirmar que algo é possível, mas jamais acontecerá. Nunca ocorrer é próprio do impossível,
não do possível. Também percebemos a diferença entre “falso” e “impossível”. O primeiro não é
verdadeiro, mas pode vir a sê-lo: “neste momento, não estou estudando”. Se eu parar de estudar
e fechar o livro, a afirmação se tornará correta. No impossível, simplesmente não sucederá o que
foi afirmado, nem agora, nem depois, pois não há potência para realizar a ação indicada. A pedra
não aprenderá a ler, porque é impossível (ARISTÓTELES, Met., l. 9, c. 4; 1047, b, 3 – 14).
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
2.1 O Que Significa Estar em Ato
Tal como ocorre com a potência, não é possível definir perfeitamente o ato, mas descrevê-
lo. Podemos partir da noção proposta por Aristóteles: o ato é o existir do ente, da coisa, na
realidade, e não de maneira quando dizemos que está em potência. Estão em potência a estátua
em relação ao bloco de mármore, o jogador que não entrou no campo, a criança cujos dentes não
nasceram... (ARISTÓTELES, Met., l. 9, c. 6; 1048, a, 30 – 35).
O ato é a realidade que está presente inteira diante de nós, desenvolvida, “atualizada”.
Ela não é mera possibilidade, mas algo realizado. Em parte, essas explicações são circulares, mas
permitem que formulemos a ideia de ato e a apliquemos a situações concretas.
Empregamos a noção “ato” analogicamente, não exatamente igual em todas as
circunstâncias. Alguns entes estão na relação do movimento para com a potência, enquanto
outros estão na relação da substância com certa matéria. O movimento surge em um ente em
potência, assim como a substância se dá em uma matéria (tratando-se de uma substância física,
evidentemente). Há um paralelismo, ainda que não uma identificação absoluta; é a marca da
analogia.
Há ações cujo termo, meta ou finalidade não estão nelas; logo, tais ações não são um fim
em si, mas tendem ao fim. Por exemplo, enquanto alguém emagrece, ainda não atingiu a meta do
emagrecimento, mas está se dirigindo a ela. O emagrecer é um ato, mas não uma ação perfeita,
porque é um movimento que não tem um fim em si. Perfeito, como a própria etimologia nos
mostra, é o que está terminado, feito até o final.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
As ações imanentes ou finais são denominadas por Aristóteles de energeia, energeia, que,
em português, é muitas vezes traduzida por “ação”. Na Metafísica, Aristóteles classifica tanto a
energeia como a kinesis em tipos de praxis, práxis. A energeia é a práxis final, e a kinesis é a não
final. Em geral, práxis significa também ação, o que é razoável: o sentido perfeito é o primeiro
e fundamental, enquanto o imperfeito é derivado. Logo, a energeia é a práxis por excelência,
enquanto a kinesis é uma práxis não completa por não ter o fim por si e em si (Met., l. 9, c. 6; .1048,
b, 18 – 36).
As ações imanentes e transitivas fundamentam os comportamentos humanos em sentido
moral e vital. As ações imanentes, como o conhecer e o amar, são as mais importantes. A ética
diz respeito principalmente a ações imanentes na medida em que elas aperfeiçoam o sujeito ou o
corrompem, o que é um fim da ação por si mesma. Já as artes mostram-se primordialmente em
ações transitivas, que são as estudadas de modo principal na filosofia da natureza, no âmbito do
movimento local.
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METAFÍSICA I | UNIDADE 3
de amadurecer uma fruta exige, para ser pensada, que saibamos, antes, o que é o fruto maduro.
Portanto, o conceito do ato precede o da potência, do mesmo modo como o conhecimento do ato
vem antes do da potência (TOMÁS DE AQUINO, Sententia Metaphysicae, lib. 9, l. 7, n. 3).
O ato também sempre é anterior à potência pela substância. O que é posterior do ponto
de vista da geração é anterior do ponto de vista da substância, ou da espécie, pois adquire tal
substância ou espécie antes do ente em potência. Apenas no ente em ato, a substância está inteira.
É o que se dá com a árvore em relação à semente ou com a galinha em relação ao ovo. Mais uma
vez, os exemplos de Aristóteles não contam com os conhecimentos genéticos contemporâneos;
porém, segue verdade que o ente desenvolvido tem a substância desenvolvida, atualizada, antes
do ente em potência.
Por fim, do ponto de vista temporal, a anterioridade do ato se dá quando ele e a potência
são da mesma espécie, mas de número ou individualidades distintas. Caso se trate do ato e da
potência no mesmo indivíduo e com espécies iguais, a potência terá, então, prioridade. Tomemos
a água que ainda não foi esquentada: ela já no início apresenta potência de ser esquentada, mas
não o ato de ser quente. O ato virá depois da potência.
Por outro lado, a água será esquentada por uma fonte de calor que já é atualmente quente.
A fonte de calor é da mesma espécie da potência da água, pois ambas dizem respeito ao aumento
de temperatura; porém, estão em sujeitos distintos. Nessa situação, o ato é anterior à potência
temporalmente, estando cada um deles em indivíduos diferentes.
A partir do existente em potência, é gerado algo em ato por intervenção de uma coisa que
já existe em ato. Essa noção, de que a atualização se faz por força de algo atual, que move ou altera
o ente em potência, é central no pensamento clássico e decorre das próprias definições de ato e de
potência. Algo em potência não pode atualizar a si mesmo, pois teria de ter justamente aquilo que
ainda não possui e virá a obter. Em poucas palavras, tudo o que é movido, é movido por outro.
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realizá-lo (ARISTÓTELES, Met., l. 9, c. 8; 1050, a, 4 – 14).
A matéria em potência pode ser atualizada e adquirir uma forma determinada. Essa
forma é uma atualização, isto é, um ato. Vimos antes que a forma está relacionada à essência. Por
isso, ao adquirir a forma, a matéria atinge a essência almejada.
Isso vale também para as ações e operações: aprender a escrever é adquirir uma forma
que leva à operação, a produzir. É uma atualização, porque o aluno inicialmente ignorante –
em potência – passa a dominar a leitura e a escrita – atualidade; a operação é o fim daquele
aprendizado, e ela é um ato, um realizar. Em todas essas situações, é o ato que explica e causa a
potência, e a potência existe em função do ato.
Quando a operação produz algo exterior a ela, o ato se desdobra no objeto que é produzido.
Assim, o ato de discursar, no discurso; o ato de pintar, na pintura; de modo mais geral, o ato do
movimento, naquilo que é movido. Todas essas ações são, conforme estudamos antes, transitivas.
Nelas, a ação ou operação realizadas estão no objeto produzido. Vemos que é assim mesmo
quando reconhecemos que os traços do artista estão em sua obra: sua ação a plasmou e, por isso,
o ato está no seu objeto.
Nas ações imanentes, diferentemente, nada ocorre além da própria atividade. Ela está nos
agentes, assim como o pensamento está em quem pensa e a visão, em quem enxerga. O fim da
ação se confunde com o próprio exercício dela.
Se as potências são operações, o ser forma ou substância é uma maneira de ser atualidade.
Anteriormente, vimos que, pela substância, o ato é anterior à potência, porque sempre haverá
um ato para atualizar a potência, ou mesmo para que a possamos discernir. Sem a atualidade, a
potência sequer é cognoscível. A substância é o ente por excelência, e os demais entes são nela.
As potências e capacidades, portanto, serão na substância, porque elas são acidentes, em outro.
Por sua vez, a forma é que estabelece o que a coisa é, pois vimos que ela está muito próxima
da essência. Ser algo é uma atualidade, e todas as demais operações têm como pressuposto o
sujeito que possui uma essência. Afinal, operamos conforme o que somos. Logo, a forma também
é atualidade.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Se a potência é atualizada por um ato, este será anterior a ela. Por sua vez, esse ato também
é fruto de uma atualização anterior. Se vamos regredindo nessa cadeia de atualizações, chegamos
necessariamente a um ato que sempre move primordialmente e tem prioridade sobre todos os
demais atos e potências.
Disso, Aristóteles conclui que as coisas eternas são anteriores, segundo a substância,
às corruptíveis. As primeiras existem em ato e não têm potência para serem corrompidas. Nas
segundas, pelo próprio sufixo -ível, com o qual terminam, vemos a possibilidade, ou seja, a
potência. Toda potência é simultaneamente potência de contraditórios, de ser algo ou de não
o ser. O que é possível pode ou não existir; essa possibilidade dá-se em relação à corrupção da
essência ou de uma mudança acidental.
De qualquer modo, a potência pressupõe um ato pelo qual ela será ou não atualizada. Isto
é, será atualizada a potência A, ou o seu contraditório não-A, ou permanecer como estava. A água
pode ser esquentada ou não esquentada, abrangendo essa segunda possibilidade tanto o deixá-la
na temperatura ambiente como esfriá-la. De qualquer modo, o que será atualizado dependerá de
algo em ato: quente ou frio. A potência para contrários se dá simultaneamente: posso enxergar ou
fechar os olhos, comer ou ficar em jejum, curar-me ou adoecer, e assim por diante. Por outro lado,
os contrários não podem ocorrer simultaneamente, com os correspondentes atos. Atualmente,
estou em pé ou sentado, não ambos ao mesmo tempo.
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
Além da comparação entre ato e potência segundo o anterior e o posterior, eles podem ser
divididos segundo o bom e o mau. A potência é mesma tanto para o ato bom quanto para o ato
ruim. Pintar serve tanto para produzir belos quadros quanto para sujar o que está ao meu redor
com tinta; posso falar de maneira articulada, com mensagens úteis, ou mentir, ou simplesmente
soltar sons barulhentos.
Quando algum ato é bom, ele é melhor do que simplesmente a potência em relação a
ele. Ou seja, a atualidade do bem é superior à potência em relação a esse bem. Já a potência é
melhor do que o ato mau ou ruim. De certo modo, podemos dizer que o mal é uma potência
que foi atualizada defeituosamente, que não atingiu sua atualidade plena. Eu queria esquentar,
mas não consegui; queria me curar, mas não superei a doença. Outro modo de entender isso é
que a potência é tanto para o bem como para o mal atuais; portanto, ela se encontra entre eles. É
inferior ao bem atual, mas superior ao mal efetivo.
O bem, quando em ato, é somente bom, no que difere da potência, que pode se inclinar
para o bem ou para o mal. O ato ruim, por sua vez, está mais longe da perfeição da natureza do
que a potência. Avançando nesse ponto, Aristóteles sustenta que, nas coisas primordiais e eternas,
não há mal, erro ou corrupção, pois nelas sequer há potência para não serem. Por isso, serão
atualizadas necessariamente conforme a sua natureza. Se assim não fosse, não seriam primordiais
nem eternas, pois a contradição com a natureza não pode durar muito sem a corrupção do ente
(ARISTÓTELES, Met., l. 9, c. 9; 1051, a, 19 – 21).
O último critério para comparar o ato e a potência é pela inteligência do verdadeiro e
do falso, que podemos dividir: a) em relação ao inteligir; e b) quanto ao verdadeiro e ao falso.
Primeiramente, de acordo com nosso inteligir, conhecemos as realidades em ato, porque nosso
intelecto é ato enquanto intelige. Por isso, as realidades que ele intelige são atos. Anteriormente,
vimos que as potências são conhecidas através das suas atualizações. Meramente como potências,
não são acessíveis para nós. As formas e as essências são atos, e a elas chegamos por meio da
inteligência (TOMAS DE AQUINO, Sententia Metaphysicae, lib. 9, l. 10, n. 12). Tendo em conta o
ato, somos capazes de alcançar o potencial também, mas em um segundo momento.
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METAFÍSICA I | UNIDADE 3
apresentam qualidades como as dos entes materiais: não são dotadas de cores, nem produzem
sons, nem possuem extensão. Nelas, o verdadeiro e o falso não se dão pela união ou separação
dos termos, mas simplesmente se elas são ou não conhecidas pelo que são, na sua essência. Não
há acidentes a unir ou separar, mas o conhecimento da essência, que ocorrerá ou não.
Reitero que é normal que nos custe pensar em um ente simples, não composto, imaterial.
Mas essa noção está claramente presente no pensamento platônico e aristotélico e foi amplamente
utilizada pela filosofia posterior. Aqui, importa-nos saber que há menos possibilidades de
equívocos a respeito deles, exatamente porque não são compostos, mas conhecidos diretamente
em sua essência pela inteligência. Esta pode se enganar acidentalmente, mas o normal é que ela
capte o que as coisas simples são.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
METAFÍSICA I | UNIDADE 3
metafísica também pode ser denominada teologia.
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04
DISCIPLINA:
METAFÍSICA I
SUMÁRIO DA UNIDADE
INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 51
1 A QUESTÃO DOS UNIVERSAIS.................................................................................................................................52
1.1 A RESPOSTA DO MONISMO: A NEGAÇÃO DA MULTIPLICIDADE.......................................................................52
1.2 A PERGUNTA SOBRE A ESSÊNCIA DOS UNIVERSAIS........................................................................................53
1.3 DISPUTAS MEDIEVAIS EM TORNO DO UNIVERSAL...........................................................................................54
2 NOMINALISMO E REALISMO..................................................................................................................................57
2.1 A RESPOSTA REALISTA.........................................................................................................................................57
2.2 O NOMINALISMO E SUAS VERTENTES...............................................................................................................58
3 ANALOGIA E PARTICIPAÇÃO...................................................................................................................................60
3.1 O QUE É A ANALOGIA?...........................................................................................................................................60
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INTRODUÇÃO
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Idade Média, ainda que suas raízes se encontrassem no pensamento grego.
O outro ponto que estudaremos, a analogia do ente e a participação, é pouco analisado em
vários dos livros contemporâneos sobre metafísica. A noção de participação tem raízes platônicas
e, por isso, acaba sendo afastada por seguidores mais estritos de Aristóteles. Ao mesmo tempo,
as concepções materialistas e empiristas a renegam por considerarem-na demasiado idealista e
conduzir a alguma divindade.
O desconhecimento da participação traz muitas dificuldades, das quais espero que saiamos.
Ela ajudará a fundamentar a explicação sobre a unidade e a multiplicidade dos entes, além de nos
fornecer subsídios para, posteriormente, aprofundarmo-nos no estudo da causalidade.
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múltiplo. Ele nega a multiplicidade e sustenta a unidade total. Evidentemente, ao fazê-lo, necessita
explicar o porquê observamos realidades que se mostram como distintas umas das outras, o que
não é simples e dá origem a uma miríade de teorias distintas.
Não deixa de ser curioso que o monismo gere teorias diferentes entre si e, nesse ponto,
não seja tão monista assim. Mas, provavelmente, o defensor dessa teoria consideraria que estou
sendo frívolo ao fazer essa observação. Eu responderia que ele não deveria se preocupar com
isso, porque, no fundo, ele e eu estamos dizendo a mesma coisa ou somos só manifestações
aparentemente distintas da mesma realidade. Por isso, não há motivo para discordarmos. Com
essa resposta, ele talvez fique mais bravo ainda...
Desculpe-me pela digressão, mas, às vezes, o melhor modo de mostrar a dificuldade de
uma doutrina é reduzi-la ao absurdo, uma forma de argumentação válida e importante. Não
quero com isso indicar que o monismo não seja robusto em termos intelectuais, mas, sim, que
ele apresenta problemas maiores do que aqueles que supostamente deseja solucionar. Mas, como
é uma doutrina que recorre a uma realidade que está além das nossas percepções ou ideias
habituais, ela possui recursos para ao menos se defender, ainda que não me pareça que consiga
fazê-lo de maneira exitosa.
A questão dos universais diz respeito a soluções diferentes do monismo para o problema
do uno e da variedade. Todos os pensadores que se envolveram nessa questão aceitam a diversidade
dos entes; alguns não aceitam a semelhança ou igualdade entre eles, enquanto outros procurarão
harmonizar a igualdade com a diferença. Portanto, estamos em um campo no qual a resposta do
monismo já não é admitida.
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Antes de tudo, necessitamos estabelecer o que são os universais. Já nos referimos a eles
quando analisamos qual seria o elemento central das substâncias. Vimos, então, que uma das opções
eram os universais, mas que ela devia ser descartada por eles serem predicados dos sujeitos e por
não configurarem um indivíduo concreto, mas, sim, estarem em muitos. No entanto, Aristóteles
considera que as espécies e os gêneros, que englobam vários indivíduos e são predicados deles,
sejam as substâncias secundárias. Ora, as espécies e os gêneros são, indubitavelmente, universais.
Na metafísica contemporânea, é comum que os autores comentem que os universais são
propriedades dos sujeitos. Assim, Felipe é ser humano, falante, mulato, venezuelano, com 27
anos. Cada uma dessas notas seriam propriedades. Contudo, é mais exato denominar propriedade
aqueles acidentes que decorrem da essência de algo, sem se confundir com ela, conforme
estudamos anteriormente. No exemplo que estamos utilizando, “falante” é uma propriedade, mas
as demais notas, não. “Ser humano” diz respeito à definição de quem é Felipe, à sua essência; as
demais notas são acidentes simples.
Considerar todas as notas de um indivíduo como suas propriedades não é exatamente
errado, mas empobrecedor. Nós perdemos diferenciações relevantes, que ajudam a compreender
as coisas. Porém, se estamos atentos, podemos usar dessa simplificação quando estudamos ou
tratamos com pessoas que ignoram esses recursos conceituais que o pensamento clássico nos
fornece.
Os universais abrangem tanto as definições essenciais comuns a vários indivíduos como
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as propriedades e acidentes simples que possam ser predicados de mais de um. Universalidade
não significa que todos os indivíduos ou entes que existem terão aquela característica ou nota,
mas, sim, que ela será predicável de um grupo de sujeitos. Nem todos os entes são brasileiros,
mas apenas os relacionados ao Brasil de alguma maneira, sejam homens, plantas ou, mesmo,
inanimados. Evidentemente, essa relação com o país será diferente nos vários casos de entes, mas
podemos aplicar a qualidade “brasileiros” a vários sujeitos, em sentidos próximos.
Se os universais são predicados de muitos, a questão que surge é: eles são reais ou
não? Trata-se de algo que está na mente ou nos indivíduos, ou em nenhum dos dois? Serão
simplesmente palavras sem conteúdos significativos, mas que usamos apenas como instrumento
da comunicação? Se os universais são predicados de muitos, eles são distintos dos indivíduos.
Estes, todos aceitamos como existentes e reais. Aquela planta, a água que está no vaso, o gato
que subiu a escada... Mas, veja, eu os estou descrevendo empregando universais, como “planta”,
“água”, “vaso”. Frequentemente, os artigos definidos ajudam a indicar que se trata de um indivíduo
da espécie, e não da espécie tomada como universal. Pois bem, podemos sustentar que esses
universais são reais, e de qual maneira? As respostas a essa pergunta fazem parte da querela ou
questão dos universais.
De maneira elegante, Porfírio resumiu no Isagoge, um comentário, escrito por volta de
270, às Categorias de Aristóteles, as questões a que aludimos anteriormente:
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Porfírio (1994) indica algumas dúvidas sobre os universais, mas se abstém de resolvê-las,
porque reconhece que se trata de uma tarefa extremamente difícil. Boécio, que traduziu Porfírio
no início do século VI, procurou avançar nesse tema. Com isso, ficou pronto o material para a
querela dos universais, que girará inicialmente em torno de Pedro Abelardo, um filósofo e lógico
do século XII. Podemos considerar que Abelardo foi o primeiro a se aprofundar em que são os
universais e qual a essência da universalidade.
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Figura 1 – Benja Kay Thomas e os gêmeos perfeitos. Há algo de comum entre eles? Ou só o nome “humanos”?
Fonte: Thomas (2017).
Abelardo resolveu enfrentar o problema empregando a lógica, que ele tão bem dominava,
como arma. De fato, estamos falando daquele que provavelmente é um dos maiores lógicos de
todos os tempos. Porém, como ressalta Gilson (1998, p. 19-22), a questão dos universais não era
passível de ser solucionada apenas com a lógica, porque se trata de um tema metafísico, antes de
tudo.
Sem dúvida, os universais importam para a lógica. Porém, eles dizem respeito também a
como as coisas são (metafísica) e como as compreendemos (gnosiologia). Apenas com a lógica,
aconteceu de Abelardo e seus contemporâneos se emaranharem em discussões muitas vezes
brilhantes, mas insatisfatórias e complicadas.
Por exemplo, Guilherme de Champaux, que fora professor de lógica de Abelardo em Paris,
considerava que os gêneros e espécies eram coisas reais, atualmente existentes fora da mente, e
não meras concepções do entendimento. Segundo ele, se podemos predicar o mesmo universal
de indivíduos numericamente diferentes, deve haver um elemento comum entre esses indivíduos.
Tal elemento deve ser tão real como o que constitui cada indivíduo em seu ser particular; mais
ainda, como é o que faz com que os indivíduos sejam o que sejam, deve ser sua verdadeira
substância (GILSON, 1998, p. 23).
Assim, entre os dois botões de rosas que encontro na floricultura, o elemento comum
que torna ambos rosas é o mais real, que não se limita a ser nos indivíduos, mas, de certo modo,
transcende-os. É fácil perceber que o mundo das ideias platônicas é uma solução similar à
proposta por Guilherme de Champaux.
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Abelardo não aceitou a teoria do seu mestre. Se o universal de rosa está parcialmente
presente nas várias individuais, nenhuma delas será verdadeiramente rosa. Em outras palavras,
se a substância completa é o universal e ele está parcialmente nos particulares, estes não são
aquela substância de modo pleno. Ao contrário, se um indivíduo for plenamente a substância
“rosa” ou “ser humano”, os demais indivíduos dessa espécie, ao serem diferentes dele, não serão
substancialmente completos.
Aqui, vemos um dos problemas fundamentais da questão dos transcendentais. Se o
universal existe por si mesmo, terá de ser em algo diferente dos indivíduos do qual o predicamos.
Logo, esses indivíduos não devem ser considerados com uma natureza semelhante ao universal, o
que faz com que prediquemos deles algo que não são perfeitamente. A linguagem e a compreensão
da realidade se tornam prejudicados.
Os argumentos de Guilherme e de Abelardo são corretos, mas puramente lógicos. Por
isso, baseiam-se apenas no princípio de contradição e não percebem que João e André podem ser
ambos seres humanos, com diferenças como indivíduos, mas compartilhando a mesma espécie.
São iguais enquanto seres humanos, mas sujeitos distintos. O universal que predicamos deles não
precisa existir separadamente, em si mesmo, para ser real. Afinal, existe nos indivíduos de fato,
ainda que não de modo pleno em nenhum deles.
Mas não adiantemos os argumentos. Guilherme de Champaux é um realista, no sentido
platônico, a respeito dos universais. Para Aberlado, ao contrário, “todas as coisas são tão diversas
umas das outras, que nenhuma pode participar com outra essencialmente na mesma matéria
ou na mesma forma”. Ninguém defendeu que elas participassem na mesma matéria; na mesma
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forma, Guilherme de Champaux não conseguiu explicar como isso se daria. Então, ele modificou
sua doutrina e disse que os gêneros e espécies não estão presentes nas coisas essencialmente, mas
apenas indiferentemente. Os botões de rosa não têm uma natureza comum, mas não diferem
enquanto rosas. A ausência de diferença seria o motivo pelo qual predicamos o mesmo universal
de indivíduos distintos (GILSON, 1998, p. 25).
A resposta de Abelardo foi dura. A falta de diferença não é suficiente para fundamentar
uma semelhança. João, Pedro, o gato Félix e o louro José não diferem enquanto cavalos, mas nem
por isso são semelhantes, nem cavalos. É preciso haver algo mais, positivo.
Se conseguiu refutar a solução de Guilherme, Abelardo não foi tão feliz em apresentar
algo melhor. Ele sustenta que o universal não seja algo que exista fora do entendimento; então,
como o entendimento predica esse universal de vários indivíduos? Por que o intelecto atribui a
esses indivíduos algo que não está na realidade? Abelardo respondeu que o universal é expresso
por palavras: “rosa”, “ser humano”, “roxo” etc. Logo, elas são o fundamento da universalidade.
A construção de Abelardo foi também uma refutação de outro professor de lógica,
Roscelino, para quem os universais são meros flatus vocis, expressões verbais, sons. Abelardo
percebeu que isso não era verdade, porque, ao dizer um universal, não nos limitamos a produzir
sons, mas falamos, que é produzir sons articulados com significados. Ademais, cada palavra é
predicada de um grupo de indivíduos concretos, e não de outros: chamo a alguns animais de
raposas, a outros de leões, e alguns são macacos. Se as palavras não tivessem conteúdo, se fossem
apenas sons, por que emprego umas, e não outras para indivíduos específicos?
Ao mesmo tempo, vimos que os universais não são algo real. Então, as palavras universais
também nada significam. Chegamos a um impasse, que Abelardo percebeu e dele tentou escapar.
Como? Primeiramente, ele reconhece que, por nada significar em particular, as palavras universais,
como “ser humano”, não podem ser predicados de um indivíduo qualquer. Logo, muito menos de
um grupo de indivíduos. Por isso, “nem Sócrates nem nenhum outro homem, nem a coleção total
dos homens, pode razoavelmente ser entendida sob o alcance do nome comum homem”.
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Mas nós predicamos a palavra de alguns indivíduos. Por quê? Para nosso autor, isso se
deve a que João e Pedro, por distintos que sejam quanto à sua essência e propriedades, “coincidem,
não obstante, em serem homens”. Ser homem não é compartilhar uma essência, porque, então,
seria aceitar a realidade do universal fora da mente, nas coisas; antes, é ter um estado ou condição.
Nas palavras de Abelardo: “chamamos estado de homem ao ser homem, o que não é uma
coisa, e a isso chamamos também causa comum da imposição da palavra aos indivíduos segundo que
coincidam entre si”. Está sendo proposta uma causa que não é coisa alguma. Etienne Gilson reconhece
que é incapaz de entender o pensamento do lógico medieval neste ponto e, realmente, as confusões
se amontoaram e não permitiram que surgisse uma construção satisfatória (GILSON, 1998, p. 30-2).
Ao final, Abelardo sustentará que cada indivíduo é único, sem que haja uma essência real
que o una a outros, ainda que eles possam ser denominados pela mesma palavra ou nome (daí,
nominalismo). Portanto, não conseguimos ter conhecimento de formas gerais que não sejam
percebidas pelos sentidos, mas apenas dos indivíduos. Do geral, temos apenas opinião, e não intelecção.
É uma conclusão pessimista a respeito do conhecimento humano, que fica impossibilitado de fazer
ciência do universal, porque este nada mais é do que uma palavra que indica seres semelhantes entre
si, mas que não compartilham qualquer natureza (GILSON, 1998, p. 35).
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em https://www.youtube.com/watch?v=ycjjDaX1rFQ.
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2 NOMINALISMO E REALISMO
Vamos agora verificar quais foram as respostas dadas às questões dos universais
posteriormente a Abelardo e seus contemporâneos. O tema continua absolutamente atual, com
publicações relevantes procurando tratar, com mais ou menos acerto, do problema que nos
interessa.
O realismo considera que os universais existem realmente, sem que seja possível reduzi-
los a palavras ou, mesmo, representações mentais. Por isso, os entes que apresentam notas comuns
compartilham algo, sua semelhança está fundada em algo efetivo, que todos possuem. Assim, o
vermelho nos vários indivíduos dos quais o predicamos é uma realidade comum deles todos,
ainda que em medidas diferentes. Podemos pensar nas distintas tonalidades, em vermelhos
que são característicos daquele tipo de ente – a cor do tomate ou da maçã, por exemplo – ou
meramente acidentais – o cabelo pintado de vermelho de uma pessoa –, mas todos esses casos
dizem respeito a uma essência comum, que é compartilhada em medidas distintas.
Há diversas explicações sobre a maneira pela qual os universais são reais. A primeira é
a de que têm existência própria, separada, em si. Mais uma vez, chegamos ao mundo platônico
das ideias. Nele, as ideias existiriam de modo autônomo, com mais entidade do que no mundo
sensível. Assim, o realismo dos universais é extremo, porque eles são aquilo que existe de maneira
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mais efetiva, sendo o resto um reflexo empobrecido deles. Por isso, os conceitos e noções são
perfeitos, em sua abstração e universalidade, enquanto os entes materiais, dos quais predicamos
os universais, são sempre precários.
Na Academia platônica, houve disputas sobre quais ideias entrariam nesse mundo
perfeito, como universais subsistentes. Alguns discípulos de Platão defendiam que apenas
aquelas indicavam substâncias; outros sustentavam que também as propriedades secundárias,
que hoje denominamos acidentes, seriam ideias, junto com os números. Esse foi sempre um tema
controverso devido à dificuldade de imaginar se um cachorro pastor alemão preto seria uma
ideia única ou apenas a noção de cachorro ou, ainda, a de cachorro, de pastor alemão e de preto
seriam três ideias distintas.
Pode-se dizer que a teoria das ideias, como explicação dos universais, não foi aceita por
muitos filósofos. As críticas de Aristóteles a enfraqueceram, e o próprio Platão percebeu que ela
trazia dificuldades difíceis de superar. De qualquer modo, ele não a abandonou, e ela foi revivida
no âmbito do cristianismo, que sofreu influência neoplatônica, com diferenças relevantes. Para
pensadores como Agostinho, Boécio e Boaventura, as ideias das coisas estariam na mente de
Deus, como modelo para toda a realidade. Não é o mundo platônico das formas, mas algo com
certa semelhança que garante a prioridade dessas formas em relação ao mundo material, criado,
bem como a realidade delas fora da mente. São ideias ante rem, que existem antes das coisas
sensíveis, no logos divino.
A posição aristotélica é frequentemente denominada realismo moderado. Ela defende
que os universais são reais, mas não existem por si, de maneira separada e autônoma. Eles
estão ligados às formas, às naturezas, substanciais ou essenciais, das coisas. Por isso, podem ser
conhecidos pela nossa inteligência, que abstrai do indivíduo a sua forma ao conhecê-lo. Essa
abstração não é uma criação da mente, mas a identificação da forma que está no sujeito; por isso,
o universal se encontra nos entes concretos. São universais in re, na coisa.
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Portanto, o universal se encontra na mente como um conceito, uma ideia, e nas coisas
como sua forma. Por isso, quando dizemos que algo é negro, indicamos uma forma acidental,
no caso qualitativa, daquele sujeito. Esse negro se encontra em outros indivíduos; tanto que
posso descrever o negro de um pelo de outro: “Iracema tinha cabelos mais negros que as asas da
graúna”. Se não houvesse qualquer identidade entre a cor da asa da ave e os cabelos de Iracema,
essa comparação seria inviável.
Há uma semelhança de forma entre indivíduos dos quais se predica um universal. Tal
universal está na mente de quem conhece e consegue usar palavras para expressar o conceito
e atribuí-lo a algo ou alguém. Também se encontra na coisa da qual se predica e, por isso, a
linguagem tem um sentido que está além da mente humana e busca espelhar a realidade.
Se não compreendemos o que seja a causa formal, nem as substâncias e os acidentes,
a resposta realista em relação aos universais fica sem fundamento. Parece-me que isso é o que
se dá em muitos que a negam. A dificuldade para eles não é apenas a realidade ou não dos
universais; funda-se em posições mais básicas ainda, que levam a não poder admitir formas que
sejam compartilhadas por vários indivíduos. Daí que a posição quanto aos universais serve de
termômetro sobre a visão global filosófica dos autores e professores.
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Figura 2 – Guilherme de Ockham. Fonte: Wikimedia Commons (2020).
Abelardo examinou muitas posições a respeito dos gêneros e das espécies. Ele demonstrou
nisso honestidade e rigor, pois derrubava as teses que ele mesmo propunha, quando percebia que
elas não tinham solidez. Por um lado, desde o início, ele se mostrou não realista, porque não
admitia que dois entes distintos – Pedro e João, por exemplo – pudessem ter algo comum. Se o
tivessem, eles não poderiam se diferenciar naquele aspecto; mas eram distintos. Logo, o realismo
era falso. Abelardo acabou por considerar que o nome era aquilo que havia de comum aos vários
indivíduos dos quais predicamos algum universal. Não era uma essência ou uma característica ou
uma propriedade compartilhada, mas o nome.
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são denominados por um universal possuam aquela característica, uma vez que eles não têm uma
natureza ou forma comuns. O que faz com que um elefante seja tal, ou um círculo seja essa figura
geométrica, ou o álcool etílico possa ser tido como essa composição química? Para um realista, a
resposta está na natureza ou na essência. Para os nominalistas, a solução proposta dependerá da
vertente que ele segue.
Uma primeira é a teoria dos tropos, segundo a qual as propriedades dos entes individuais
existem e são os “tropos”. São qualidades irrepetíveis, que diferem de ente para ente, ainda que
se empreguem as mesmas palavras para identificá-las. Assim, o verde de uma folha é um tropo,
assim como o verde de outra; são verdes diferentes, porque pertencentes a indivíduos distintos.
Não cabe falar aqui de universais compartilhados. Há uma semelhança entre tropos nomeados
da mesma maneira, mas isso não seria devido a algo comum. Pela semelhança, usamos o mesmo
nome, sem que isso esteja fundamentado em algo desnecessário para a explicação, como seria a
natureza ou essência.
Outros nominalismos são o de predicado, o de conceito e o nominalismo do Avestruz
(Ostrich nominalism). Para o nominalismo de predicado, algo tem uma qualidade porque ela é
predicada dele; não significa que haja o universal correspondente. Assim, a lava é quente, porque
o quente é predicado dela, sem implicar que haja como o calor ou o universal “quente”.
De maneira similar, o nominalismo de conceito, ou conceitualismo, sustenta que algo
apresenta uma propriedade porque cai sob conceito dessa propriedade, mas disso não posso
inferir que haja o universal correspondente à propriedade. Por exemplo, a maciez do algodão vem
de o algodão cair sob o conceito de maciez. O nominalismo de predicado ressalta a atribuição
da propriedade ao sujeito, enquanto o conceitualismo privilegia o sujeito estar sob um conceito.
O nominalismo de Avestruz (Ostrich nominalism), adotado pelo famoso filósofo analítico
Quine, afirma que não há razão alguma para que o indivíduo apresente uma propriedade. Ele
simplesmente a possui. Chamar essa teoria de avestruz foi uma crítica, porque ela se esconderia
dos problemas que deveria solucionar; mas tal denominação acabou por ser aceita pelos seus
seguidores. Talvez, eles considerassem apenas que a teoria era avestruz por ser avestruz, sem
haver razão para isso.
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3 ANALOGIA E PARTICIPAÇÃO
Vimos anteriormente que o ente é dito de muitas maneiras e que essas distintas
considerações dos entes são analógicas. Cabe agora estudar melhor o que sejam a analogia e a
participação, ambas noções próximas uma da outra.
Uma expressão empregada analogicamente em múltiplas situações tem um significado em
parte comum em todas elas. Ou seja, um núcleo de notas presente em todas as suas utilizações, o
que afasta a equivocidade, que é a predicação da mesma palavra a conceitos distintos, sem ligação
entre eles: “manga” pode ser fruta ou uma parte da camisa.
Ao mesmo tempo, a analogia apresenta elementos distintos, que a separam da mera
univocidade, ou uso da palavra com o mesmo sentido: “cavalos” para os quatro equinos que estão
diante de mim. Já palavras como “saudável”, “belo” e“bom” são empregadas cada uma em distintos
contextos e expressando conteúdos desiguais, mas sempre mantendo algo conceitualmente
próximo nesses sentidos diferentes (ARISTÓTELES, Met., l. 4, c. 2; 1003, a, 3 – b). Assim, dizemos
que uma ação é bela, assim como uma paisagem, um rosto ou uma peça fabricada artificialmente.
Igualmente serão saudáveis o animal, o ar que ele respira, a comida que ele ingere, bem como sua
fisionomia.
Na filosofia medieval, foram estabelecidas distinções entre tipos de analogias. Porém, não
há unanimidade entre os autores quanto à melhor classificação desses tipos, nem quanto ao seu
número. Para nossos propósitos, é suficiente assinalar três espécies de analogia, que nem sempre
se distinguem perfeitamente: a de proporcionalidade, a de proporção e a de atribuição.
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termo, a partir do qual derivam os outros sentidos análogos. Por isso, é uma analogia duorum
ad tertium, de dois a um terceiro. Nesse sentido, “marcenaria” é primordialmente o conjunto de
objetos de madeira trabalhados. Por derivação, também nomeamos “marcenaria” à técnica pela
qual tais objetos foram produzidos, bem como o local onde essa arte é exercida. Os instrumentos
usados pelo marceneiro são igualmente denominados “de marcenaria” devido à finalidade a que
estão destinados. Portanto, a partir de um sentido primário, conceituamos várias outras realidades
pela sua relação com aquele primeiro sentido (FABRO, 2010, p. 219-20).
Para os medievais, a atribuição ad unum, ou pros hen, admitida por Aristóteles e semelhante
ao que os anglo-saxões contemporaneamente denominam focal meaning, é a analogia de atribuição.
É controvertido, entre os estudiosos de hoje, que Aristóteles tenha entendido a atribuição ad unum
como uma analogia. Para autores importantes como Berti, Aubenque e Owen, essa atribuição
seria algo à parte, que não se confundiria com a analogia aristotélica, que seria mera comparação.
De fato, não é claro que Aristóteles tenha considerado que a atribuição ad unum fosse um tipo
de analogia. Porém, ainda que seja assim, é possível entender que a interpretação dos medievais
foi um desenvolvimento legítimo da doutrina aristotélica, não apresentando contradição com os
princípios dela (TOMÁS DE AQUINO, Sententia Metaphysicae, lib. 4 l. 1 n. 8).
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por definição é comum, ou seja, pode estar em vários de modos parcialmente diferentes, acaba
determinada para este ou aquele sujeito. Assim, o princípio que recebe a forma – a substância ou
a matéria – participa dessa forma. Essa participação é denominada real ou ontológica.
A terceira participação é a do efeito em sua causa, que se dá especialmente quando o
efeito não é igual ao poder da causa. O que é esquentado participa da fonte de calor, e a escultura
participa no escultor (WIPPEL, 2000, p. 96-8).
Uma das mais importantes participações é a dos entes em relação ao ato de ser, que
estudaremos na disciplina Metafísica 2. Neste ponto em que estamos, vemos a relevância da
participação dos indivíduos em suas espécies e gêneros. Nela, encontramos mais uma chave para
compreender a questão do uno e do múltiplo.
Os distintos indivíduos de uma espécie participam dela. Nenhum deles a esgota,
porque a espécie é mais universal e traz em si mais possibilidades que o sujeito. Ele representa
a concretização de possibilidades da espécie; quando algumas dessas potências são atualizadas,
outras deixam de estar presentes. Assim, ao ter cabelo ruivo cacheado, o sujeito não pode ao
mesmo tempo apresentar um cabelo liso negro ou loiro, nem ser careca. Todas essas são potências
para um ser humano abstratamente, mas se concretizam – são atualizadas – apenas algumas.
Então, o indivíduo participa da sua espécie, sem a esgotar.
Uma dificuldade que vimos assombrar Abelardo e outros pensadores é que indivíduos são
distintos entre si; por isso, não poderiam compartilhar nada. Mas essa conclusão é equivocada,
porque não leva em conta a participação, que se dá de modos distintos, atualizando aspectos
diversos. Tendo inteligências em graus diferentes, disposições físicas diversas, características
anatômicas singulares, todos os seres humanos participam da espécie humana, que abarca todas
essas possibilidades. Isso vale igualmente para os indivíduos de outras espécies em relação a elas.
Aqui, somos enfim capazes de admitir, com os nominalistas, que as qualidades ou
“propriedades” de cada indivíduo são únicas. Afinal, elas estão em um sujeito concreto, não em
outros. Porém, elas advêm da participação em uma forma, substancial ou acidental. Nisso está
sua similitude. É a participação real ou ontológica.
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Então, as semelhanças que observamos são reais e têm um fundamento metafísico. Nesse
sentido, o realismo se mostra como a melhor explicação sobre o uno e o múltiplo.
Pela participação, temos uma visão do universo com uma maior dependência
entre os vários entes, ainda que respeitando suas individualidades. O fato de
participarem de uma forma aproxima todos os indivíduos da espécie; eles têm
algo em comum, que não é apenas uma palavra. Para a compreensão da dignidade
humana, dos direitos humanos, da igualdade entre todos os homens e mulheres,
a participação e a noção de universal são recursos preciosos. E provavelmente
insubstituíveis.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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