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134 Lições de história

Leopold von Ranke sua carreira como professor de letras clássicas no Friedrichs Gymnasium,
de Frankfurt. Ali despertaria seu interesse pelo passado e pela história.
Julio Bentivoglio Depois de muitos estudos e várias visitas a arquivos, redigiu sua pri-
meira obra, publicada em 1825, Geschichte der romanischen und germanis-
chen Völker von 1494 bis 1514 (História dos povos latinos e germânicos de 1494
“Como é ambição natural de todo homem deixar atrás de a 1514), na qual demonstrou sua capacidade de investigação histórica,
si algum registro útil de sua existência, eu tenho alimentado por usando uma variedade de fontes que incluíam memórias, diários, cartas
muito tempo o projeto de devotar minhas energias e minha pessoais e formais, documentos governamentais e diplomáticos, testemu-
capacidade a este trabalho tão importante.” nhos oculares. De maneira semelhante a Niebuhr e Johann Gustav Droy-
Ranke, História da Reforma na Alemanha, 1847 sen (1808-1884), Ranke apoiou-se na crítica documental desenvolvida
por Friedrich A. Wolf (1759-1824) e pelo orientador de Droysen, August
“Parece-me risível [...] dizerem que não me interessam as questões
Böckh (1785-1867), e na hermenêutica romântica de Friedrich Schleier-
filosóficas ou religiosas. Foram justamente essas questões, e só elas, que me
macher (1768-1834). Estava aí a base do método histórico que se consti-
encaminharam à história.”
tuiria a partir de então. Esse livro, que o alçou à carreira acadêmica, trazia
Ranke, Carta a Heinrich Ritter, 1830
em sua introdução a tão incompreendida frase: “a história escolheu para si
o cargo de revelar o passado e instruir o futuro para o benefício das gera-
Franz Leopold von Ranke nasceu, em 21 de dezembro de 1795, em Wiehe ções futuras. Para mostrar aos altos oficiais o que o presente trabalho não
(atual Unstrut), na Turíngia, e morreu em 23 de maio de 1886 em Berlim. pressupõe: ele busca apenas mostrar o que realmente aconteceu”. A despeito
Casou-se em 1843 com Helena Clarissa Graves (1808-1871) quando con- de interpretações apressadas de sua obra, Ranke jamais se limitou a produ-
tava 48 anos e já era renomado historiador. Iniciou seus estudos no ginásio zir uma história factual, meramente política ou que apregoasse que os fatos
de Schulpforta — onde também estudou Fichte (1762-1814) —, man- deveriam falar por si mesmos; tampouco afirmou que o historiador pode-
tendo por toda a vida suas convicções religiosas em meio a uma família de ria anular sua subjetividade, como se verá em seu texto, mais adiante.
pastores luteranos e nutrindo desde a infância grande afeição pelo estudo Recém-ingresso na Universidade de Berlim, em 1825, nomeado como
das letras clássicas. Ausserordentlicher Professor, Ranke colocou-se ao lado de seu amigo Frie-
Em 1814 entrou para a Universidade de Leipzig, onde estudou teo- drich Carl von Savigny (1779-1861) em oposição ao pensamento histórico
logia e filologia. Apreciava o estudo de autores antigos, tendo como seus de Friedrich W. Hegel (1770-1831). Embora não discordasse da existência
prediletos Tucídides (460-400 a.C.), Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) e Dionísio de uma história universal e de caráter divino, Ranke preferia valorizar o
de Halicarnasso (54 a.C.-8 d.C.). Entre seus contemporâneos, apreciava
o pensamento de Barthold Georg Niebuhr (1776-1831), Immanuel Kant
(1724-1804), Joahnn Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Schelling

Schulin, 1966:584.

Iggers, 1988:65.
(1775-1854) e Friedrich Schlegel (1772-1829). Tais simpatias dizem muito 
Gadamer (2003:271) indica, contudo, que o caminho seguido por Ranke se inspira, mas não
acerca da formação e das convicções teóricas de Ranke. Em 1817, iniciou se fundamenta na hermenêutica de Schleiermacher. Para ele a escola histórica buscou apoio na
“teoria romântica da individualidade”; embora os “historicistas” tomem a realidade histórica
como um texto a ser compreendido, eles procuram compreender a totalidade dos nexos da
história da humanidade, inspirando-se em Herder e Chladenius.

Famosa escola criada no século XV, onde lecionou, por exemplo, Friedrich W. Nietzsche entre 
A tão citada frase “wie es eigentlich gewesen”.
1858 e 1864. 
Para muitos, como Fontana (2004:225), “a frase foi tirada do contexto injustificadamente e

Segundo Gay (1990:71), “foi a filologia clássica, e não a história, que atraiu Ranke”. interpretada como uma declaração metodológica”.

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aspecto humano e singular na história, recusando-se a aceitar que ela fosse de nossa gente”.15 O fato é que Ranke acompanhou sem entusiasmo a po-
apenas a realização de ideias. O adversário nessa disputa era Heinrich Leo lítica de Otto von Bismarck. Mesmo saudando-o como um dos fundadores
(1799-1878), e o centro da discórdia residia, sobretudo, na divergência do império alemão, em 1879, o fazia somente porque aquele líder havia
em torno do pensamento político e da figura histórica de Maquiavel. Em defendido a Europa dos males da revolução.16
Berlim, despertou-se a insaciável curiosidade arquivística de Ranke, que se Entre 1834 e 1836, Ranke redigiu seu Die römischen Päpiste, ihre kirche
via como um Colombo da história.10 O meio universitário franqueou-lhe ar- und ihr Staat im sechzehnten und siebzehnten Jahrhundert (História dos papas,
quivos. Passou a dedicar-se ao estudo e à pesquisa de fontes primárias — não sua Igreja e Estado no século XVI e XVII). A despeito de o Vaticano ter proi-
somente em território prussiano — e a desdenhar daqueles historiadores bido Ranke de consultar seus arquivos em Roma, ele se valeu das corres-
que ainda se valiam de memórias, anais ou obras bibliográficas já existentes pondências diplomáticas privadas feitas entre Veneza e o papado para seu
para produzir seus trabalhos. A Universidade de Berlim, criada em 1810, trabalho. Nesse livro, formulou o conceito de contrarreforma, e sua recep-
expressava o espírito da Bildung fundido ao de Wissenchaft.11 Ao contrário ção provocou forte polêmica com a Igreja Católica e também com os pro-
das universidades antigas, que priorizavam a instrução, na futura Humboldt testantes; para aquela, Ranke era um crítico mordaz, para estes, um crítico
Universität priorizava-se a pesquisa como um dos pilares para a formação.12 muito brando do catolicismo. Essa obra complementou-se com Deutsche
Em 1825 viajou para Suíça e Itália, retornando em 1827. Em 1831, Geschichte im Zeitalter der Reformation (História da Reforma na Alemanha),
a pedido do governo prussiano fundou a revista Historisch-Politische Zeits- escrito entre 1845 e 1847. Novamente Ranke demonstrou sua incrível ca-
chrift.13 Nela combateu o liberalismo e defendeu um pensamento monár- pacidade de pesquisa ao examinar, em menos de dois anos, os 96 volumes
quico e conservador até meados de 1836. Para Laue, os escritos dessa épo- da Dieta Imperial17 em Frankfurt para explicar a Reforma religiosa alemã,
ca expressam seu pensamento político, que vê de um lado a sociedade e de revelando o elo que havia entre as disputas políticas e religiosas.
outro os experts em governar.14 Outro aspecto decisivo revela a leitura que Em 1841, Ranke tornou-se historiógrafo real da corte prussiana.
tinha, em particular, da experiência política francesa. Ranke via a Revolu- Em 1849, publicou Neun Bücher preussicher Geschichte (traduzido para
ção Francesa como uma expressão daquela nação, e seu programa é claro e o inglês como Memoirs of the House of Brandenburg and history of Prussia,
direto: “organizemo-nos nós próprios, sem imitarmos nossos vizinhos [...] during the Seventeenth and Eighteenth Centuries), onde examinou o Hohen-
precisamos empreender uma tarefa que nos cabe, uma tarefa bem alemã. zollern18 da Idade Média até Frederico, o Grande. Mas nessa obra não
Temos que constituir um verdadeiro Estado alemão, que responda ao perfil há, como nos demais historiadores da chamada escola histórica alemã
— Droysen, Maximilian Duncker (1811-1886) ou Heinrich von Sybel
(1817-1895) —, nenhuma apologia ao Estado prussiano, nem naciona-
lismo exacerbado. Nela a Prússia não é, em momento algum, apresentada

Iggers, 1988:66-69. como uma grande potência do presente e do futuro, mas apenas como

A este respeito ver Baur (1998). um país como outro qualquer.
10
Laue, 1950:34.
11
Bildung significa formação e Wissenchaft, ciência. Na Alemanha do século XIX, ambas são a
expressão máxima do espírito que animava as artes, a cultura e o pensamento. Pressupunham
a formação plena do homem e valorizavam a pesquisa e a cultura como instrumentos decisivos 15
Apud Guilland (2001:64).
para isto.Ver a respeito Gilbert (1990). 16
Iggers, 1988:72.
12
Iggers, 1997:24. 17
Reichstag, termo que significa Dieta Imperial, é a instituição que representa o parlamento ale-
13
Sob a iniciativa do conde von Bernstorff, ministro do Exterior, que pretendia, sobretudo, mão, remontando a Carlos Magno e ao Sacro Império Romano-Germânico no século IX.
defender a burocracia prussiana das críticas de liberais e de partidários da esquerda. Ver Iggers 18
Dinastia real formada na região de Brandenburgo a partir de 1415, depois sob o ducado da
(1988:70). Prússia a partir de 1525, originária de condes da Suábia, que governou a Prússia até o fim da
14
Laue, 1950. I Guerra Mundial, da qual fazia parte Frederico II.

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Os seminários realizados para o futuro rei Maximiliano II da Baviera ra reduzi-lo à visão caricata da tão incompreendida máxima wie es eigentlich
em 1854 são índices preciosos a respeito do método histórico em Ranke. gewesen. Grosso modo, o fragmento refere-se ao fato de que o historiador
Ali, como em sua preleção Sobre as afinidades e diferenças entre história e polí- não deve louvar nem julgar. Um dos mais influentes teóricos do século XX,
tica, desenvolveu sua “exposição mais sistemática e coerente dos princípios Robin G. Collingwood (1889-1943), afirma que Ranke empregava a crítica
historicistas na historiografia do século XIX”.19 Em um deles, professou histórica como cerne de seu trabalho, mas não realizava uma segunda etapa
seu historicismo de cunho religioso, ao dizer que “cada época é imediata cara à filosofia positiva, ou seja, localizar uma lei geral de desenvolvimento
a Deus” (jede Epoche ist unmittelbar zu Gott), deu ênfase às singularidades histórico.23 Para G. P. Gooch essa incompreensão teve um efeito benéfico:
e recusou qualquer tipo de abordagem teleológica na qual um período separou, em alguma medida, o estudo do passado das paixões políticas do
provocaria o período subsequente. Assim, a Idade Média não poderia ser presente.24 Assim, o que pode parecer ingenuidade epistemológica era, na
vista como uma época inferior ao Renascimento, tampouco este um mero verdade, uma postura desafiadora para os demais historiadores alemães,
desenvolvimento daquela. da escola histórica ou da esquerda, que desejavam uma história mais ou
Após sua aposentadoria, em 1871, continuou a escrever sobre uma menos comprometida com o poder. Marrou acertadamente observou que
variedade de assuntos e, a partir de 1880, iniciou um ambicioso trabalho a frase não significava a defesa, por parte de Ranke, da promoção de uma
em seis volumes sobre a história universal, o qual começou com o Egito anti- ressurreição integral do passado.25 De qualquer modo, Hans-Georg Gada-
go e com os hebreus. Até seu falecimento, em Berlim, no ano de 1886, havia mer defende que esse autoapagamento proposto por Ranke não excluía,
alcançado apenas o século XII. Subsequentemente, seus assistentes e orien- em absoluto, a participação no real.26 Ou seja, o historiador pode ter cons-
tandos utilizaram suas notas e rascunhos para expandir a série até 1453. ciência de seus pré-julgamentos e da interferência de sua subjetividade em
Em 1865 Ranke recebeu o título de barão (Freiherr) e em 1882 se tornou suas escolhas e ações, tanto em seu trabalho quanto na vida pública, mas
membro do Conselho Prussiano. Em 1884 foi escolhido como membro de seu engajamento, ou não, é uma questão de opção. Ranke preferiu a discri-
honra da American Historical Association, o que indica sua larga aceitação e ção e o recolhimento, dedicando-se, sobretudo, à pesquisa.
posterior influência nos países anglo-saxões.20 Ranke é herdeiro intelectual de Wilhelm von Humboldt (1767-1835)
Esses breves apontamentos biográficos talvez não façam justiça àquele e de Barthold Niebuhr, a seu modo propagadores do recurso imperativo
que, para muitos, é considerado o maior historiador do século XIX.21 Leo- das fontes primárias27 em pesquisa histórica, do uso da crítica histórica
pold von Ranke foi consagrado em vida como um dos fundadores da ciên- documental, bem como da defesa de uma escrita da história compromis-
cia histórica moderna, eclipsando contemporâneos talentosos como Droy- sada com a verdade dos fatos, objetiva e apartidária. Isso não significou,
sen ou o ganhador do prêmio Nobel Theodor Mommsen (1817-1903). In- em nenhum momento, a recusa da imaginação em Ranke, a presença da
fluenciou toda uma geração de historiadores alemães, ingleses e franceses. subjetividade ou a rejeição de uma poética da história.28 Afinal, ele via com
Lamentável é ver que ainda hoje paira uma incompreensão a respeito de
sua obra — já várias vezes refutada —, onde se demonstra que Ranke não 23
Para Collingwood (1989:133), os historiadores do século XIX teriam aceitado a primeira eta-
era nem nunca foi um historiador positivista.22 Esse mal-entendido procu- pa do método positivo, a recompilação de fatos, mas não a segunda, o descobrimento de leis.
24
Gooch, 1935:97.
25
Marrou [s.d.]:37.
26
Para Gadamer (2003:287), “uma vez que todos os fenômenos históricos são manifestações do
19
Iggers, 1988:70. todo da vida, participar deles é participar da vida”.
20
Gildherhus, 2007:47; Iggers, 1962. 27
Para Gay (1990:75), esse é um de seus méritos: com seus esforços, não deixou dúvidas quan-
21
Vierhaus, 1987. to ao fato de que os documentos detêm a chave da verdade histórica, embora necessitem da
22
Não foram poucos a desmitificar o equívoco: Iggers (1962); Braw (2007); Holanda (1979); intervenção por parte do historiador que os acolhe, seleciona e analisa.
Vierhaus (1987). 28
Ver o brilhante ensaio de Rüsen (1990).

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restrição o preenchimento de lacunas, mas não o recurso à imaginação.29 Para Ranke, um historiador precisa de três qualidades cardeais: bom
Valorizava, igualmente, a narrativa do historiador.30 Para ele, a história era, senso, coragem e honestidade. Figura ao lado de Droysen como um aluno
ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte, e o historiador não deveria in- ideal de Humboldt, como indicou Georg Iggers, pois tem posição seme-
culcar nela suas posições políticas.31 Nesse sentido, afastava-se radicalmen- lhante às do mestre em relação a temas como a natureza do pensamento
te de seus contemporâneos, como Droysen, e de seus próprios discípulos histórico, o Estado, a cultura e a dificuldade de se encontrarem leis univer-
Sybel, Duncker e Heinrich von Treitschke (1834-1896). Evidentemente, sais para o estudo do passado. E cada um, a seu modo, enfatiza a necessi-
Ranke sabia da impossibilidade de uma escrita neutra, mas preconizava a dade do realismo histórico e do senso de realidade.36 Tinha Herder como
recusa a tomar-se partido.32 referência-chave, pois este pensador “forneceu um modelo para um modo
Para Ranke, a meta da história seria conhecer as tendências dominan- de escrever a história que pode ser desprendido de sua base teórica formal
tes de uma época; entretanto, negava a filosofia da história de Hegel por e julgado em seus próprios termos, como um protocolo metodológico que
não ver nela nada de humano, apenas a ideia divina desprovida de qual- pode ser partilhado por românticos, realistas e historicistas indistintamen-
quer traço concreto. Apreciava ainda os romances de Walter Scott e o his- te”.37 Sua compreensão da história como uma ciência rigorosa expressa
toricismo de Herder (1744-1803). E defendia o estudo dos nexos, dos elos uma tensão entre uma demanda explícita por objetividade científica e a
que articulam quaisquer constelações de eventos.33 Por fim, não se pode rejeição aos julgamentos de valor e especulações metafísicas, bem como a
descuidar do conteúdo religioso de seus escritos, mencionado por inúme- intromissão de questões políticas ou filosóficas na pesquisa.38 Igualmente
ros intérpretes há mais de um século. Para Ranke, dar vida ao passado seria rejeitava “toda sorte de positivismo que reivindicasse o estabelecimento
uma forma de encontrar-se com Deus;34 porém, se a história expressa a dos fatos como a tarefa essencial do trabalho do historiador”.39
obra divina, não há nele o fervor do pregador. Sua história conferia ênfase Amigo de Frederico Guilherme da Prússia e de Maximiliano da Bavie-
à política, sobretudo à política internacional (Aussenpolitik). E, embora não ra, Ranke publicou a partir de 1865 suas obras completas, atualmente com
tenha sido o primeiro, pode-se atribuir a Ranke a institucionalização do quase 60 volumes, e pôde ver seus discípulos ocuparem cadeiras de his-
seminário como moderno meio de ensino universitário, disseminado pelas tória nas principais universidades alemãs. Combateu a revolução, o Ilumi-
universidades alemãs a partir de seus cursos.35 nismo, o romantismo e o hegelianismo, E embora rejeitasse a ideia de pro-
gresso, não deixava de compartilhar certo otimismo em sua época, o que
não o impedia de duvidar que qualquer evento histórico pudesse ter uma
29
“Em Ranke, a mão modeladora do artista literário nunca se distancia do labor construtivo do validade universal, pois, para ele, cada criação histórica era um produto
historiador” (Gay, 1990:63). genuíno do espírito de uma nação.40 Para Ranke, a realidade não se esgo-
30
Para Guilland (2001:13), Ranke conferia extrema importância à forma e escrevia com viva-
cidade e graça. tava nos eventos históricos, e a imparcialidade significava reconhecer sua
31
Conta-se a anedota de que, num congresso, um colega teria dito a Ranke que, como ele, posição diante das forças ativas em estudo.41 Aproximar-se de uma época
era historiador e cristão; ao que retrucou Ranke: “sou historiador, não apologeta” (Holanda, seria uma percepção espiritual, e não somente uma constatação construída
1979:13).
32
A este respeito ver, sobretudo, Vierhaus (1990:64-65). a partir dos dados encontrados na pesquisa.
33
Não resta dúvida quanto à influência da apreensão organicista, relacional do processo históri-
co, tal como proposta por Herder. Maior discussão a respeito em Baur (1998).
34
“Sobre tudo flutua a ordem divina das coisas, difícil por certo de demonstrar, mas que sempre 36
Gilbert, 1990.
se pode intuir. Dentro da ordem divina, assim como na sucessão dos tempos, os indivíduos 37
White, 1995:91.
importantes ocupam seu lugar; assim é como os há de conceber o historiador” (apud Fontana, 38
Iggers, 1988:25.
2004:227). 39
Ibid.
35
Nestes seminários notabilizou seu método de estudo crítico das fontes (Quellenkritik), ao 40
Para uma síntese de suas principais concepções, ver Braw (2007).
formar duas gerações de historiadores alemães. Ver Stern (1973:54). 41
Iggers, 1988:77.

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Principais obras de Ranke: lidam com o reino do ideal, enquanto a história deve ater-se à realidade.44
Se alguém designasse à filosofia a tarefa de penetrar a imagem que apareceu
F Geschichte der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514 no tempo, isso implicaria descobrir a causalidade e conceituar o âmago da
(1824). 2v.; existência: então, a filosofia da história não seria também história? Se a fi-
F Die serbische Revolution. Aus serbischen Papieren und Mittheilungen losofia da história pudesse atribuir à poesia a tarefa de reproduzir o vivido,
(1829); seria então história.
F Die römischen Päpste in den letzten vier Jahrhunderten (1834-1836). 2v.; A história distingue-se da poesia e da filosofia não em consideração
F Deutsche Geschichte im Zeitalter der Reformation (1839-1847). 2v.; a sua capacidade, mas pelo objeto abordado, que lhe impõe condições e
F Neun Bücher preussischer Geschichte (1847-1848). 3v.; a sujeita à empiria.45 A história traz ambas juntas em um terceiro elemen-
F Französische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahr- to peculiar somente para si. Ela não é nem uma nem outra, porém exige
hundert (1852-1861). 5v.; uma união das forças intelectuais ativas em ambas, poesia e filosofia, sob a
F Englische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahrhun- condição de que estas últimas sejam dirigidas através de sua relação com o
dert (1859-1869). 3v.; ideal em direção ao real.
F Die deutschen Mächte und der Fürstenbund (1871-1872); Existem nações que não têm a habilidade de controlar esse elemento.
F Ursprung und Beginn der Revolutionskriege 1791 und 1792 (1875); A Índia teve filosofia, mas não teve história.
F Hardenberg und die Geschichte des preussischen Staates von 1793 bis 1813 É estranho como entre os gregos a história desenvolveu-se quando
(1877); se emancipou da poesia. E os gregos tiveram uma teoria da história que,
F Serbien und die Türkei im neunzehnten Jahrhundert (1879); conquanto marcadamente desigual à sua prática, era, não obstante, signi-
F Weltgeschichte — Die Römische Republik und ihre Weltherrschast. (1886) 2v. ficativa. Alguns destacaram mais o caráter científico, outros, o artístico,
mas ninguém negava a necessidade de unir os dois. Suas teorias movem-se
entre esses elementos e não se pode decidir por nenhum. Quintiliano ainda
Sobre o caráter da ciência histórica42 disse: “historia est proxima poetis et quodammodo carmen solutum”.46
Nos tempos modernos, nos casos de dúvida, tem-se lidado somente
A história distingue-se de todas as outras ciências por ser também
com os elementos de realidade ou então insistido na ciência como único
uma arte.43 A história é uma ciência ao coletar, buscar, investigar; ela é uma
princípio. Têm-se ido tão longe a ponto de fazer a história diluir-se como
arte porque recria e retrata aquilo que encontrou e reconheceu. Outras
uma parte da filosofia.47 De qualquer modo, como foi dito, a história preci-
ciências satisfazem-se simplesmente registrando o que foi encontrado; a
sa ser ciência e arte ao mesmo tempo. A história nunca é uma sem a outra.
história requer a habilidade para recriar.
Como ciência, a história é parecida com a filosofia; e como arte, com
a poesia. A diferença é que, de acordo com suas naturezas, filosofia e poesia 44
A esse respeito, há profunda semelhança do pensamento de Ranke com o de Gervinus, que
escreveu seu Grundzüge em 1837. (N. do T.)
45
É este também o pensamento de Droysen (2009). Lembro, contudo, que Ranke via no fenô-
meno uma totalidade, uma realidade espiritual. (N. do T.)
46
Instituto oratoria X, I, 31: “a história é aparentada ao poema; é, por assim dizer, um poema
42
O texto “Idee der Universalhistorie” foi pela primeira vez editado por Eberhard Kessel e pu- em prosa”. Solutum nesse contexto significa liberdade das restrições métricas (nota de Iggers e
blicado na Historische Zeitschrift, CLXXVIII em 1954. A versão aqui traduzida foi publicada em Moltke, 1973).
Iggers e Moltke (1973:33-46). 47
Há aqui uma crítica direcionada a Kant e, em maior grau, a Hegel, pois Ranke tinha restrições
43
Não há dúvida quanto à influência decisiva de Humboldt nesta sentença (ver Humboldt, em relação a uma filosofia da história que procurasse aprisionar a história como também um
2001). Compartilha dessa opinião Gervinus (2010). (N. do T.) domínio do pensamento especulativo. Cf. Iggers, 1988. (N. do T.)

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Mas é possível que uma ou outra seja mais pronunciada. Em cursos a histó- [Fichte] investe contra o filósofo49 que, partindo de uma verdade en-
ria pode, é claro, aparecer somente como ciência. Só por esse motivo faz-se contrada em algum outro lugar e em um caminho peculiar para ele como
necessário compreender o momento para lidar com a ideia de história. pensador, constrói toda a história para si: como isso deve ter ocorrido de
A arte repousa em si mesma: sua existência prova sua validade. Por acordo com seu conceito de humanidade. Não satisfeito em verificar se
outro lado, a ciência pode ser totalmente desenvolvida fora de sua verda- sua ideia está correta ou incorreta, sem se iludir sobre o curso dos eventos
deira concepção e ser clara em seu núcleo. que realmente ocorreram, ele intenta subordinar os múltiplos eventos à
Consequentemente, eu gostaria de iluminar a ideia de história do sua ideia. Certamente, ele reconhece a verdade da história somente até
mundo em algumas leituras preliminares — tratando sucessivamente do
certo ponto, enquanto a subordina à sua ideia. Esta é um mero constructo
princípio histórico, do alcance e da unidade da história mundial.
de história.
Se fosse correto esse procedimento, a história perderia toda sua inde-
Sobre o princípio histórico pendência. Ela seria governada simplesmente por uma proposição deriva-
da da filosofia pura e sucumbiria como a verdade desta. Tudo aquilo que
Pergunta-se sobre o que justifica os esforços dos historiadores em si.
Seu esforço é reconhecido como necessário, e pode ser vão falar a respeito é peculiarmente interessante a respeito da história universal desapareceria.
de sua utilidade, já que ninguém duvida disso. A sociedade, a inter-relação Tudo que é digno de conhecimento se reduziria a saber em que extensão os
das coisas o exigem. Mas nós precisamos nos situar em um nível mais ele- princípios filosóficos podem ser demonstrados na história: em que exten-
vado. Para justificar nossa ciência contra as reivindicações da filosofia, pre- são o progresso da humanidade, visto a priori, tem lugar. Mas não haveria
cisamos nos reportar ao sublime; procurar um princípio do qual a história interesse algum em investigar os eventos que aconteceram ou mesmo em
receberia uma vida única, própria. Para encontrar esse princípio devemos desejar saber como os homens viveram e pensaram em determinado tem-
considerar a história em sua luta com a filosofia. Estamos falando daquele po. Somente a totalidade do conceito que esteve uma vez vivo na história
tipo de filosofia que alcançou seus resultados mediante especulação e que observável do homem poderia ser importante. Obter certeza sobre o curso
afirma dominar a história. da história universal através do estudo da história não seria mais possível.
Mas quais são essas reivindicações? Fichte,48 entre outros, expres- As únicas variações possíveis estariam em conceitos distorcidos,50 deduzin-
sou-as assim: “se filosofar é deduzir os fenômenos que são possíveis na do-se o menor do maior. Isso é suficiente para dizer que a história se tornar
experiência da unidade de seu conceito pressuposto, então está claro que dependente, sem um objeto inerente e específico, e que sua fonte secaria.
não se necessita da experiência para tudo em seu trabalho. Permanecendo Dificilmente valeria a pena devotar estudo à história, já que esta estaria
livremente dentro dos limites da filosofia sem considerar qualquer experi-
implícita no conceito filosófico.
ência, deve-se estar apto a priori para descrever todos os tempos e épocas
Estas alegações foram levantadas em outras épocas pela teologia, que,
possíveis a priori”. Ele exige da filosofia uma ideia unificada de toda a vida
também com base naquilo que era inquestionavelmente uma incompreen-
que está dividida em várias épocas, cada qual compreensível abstratamente
são, queria dividir toda a história humana em poucos períodos baseados
ou através das outras, assim como cada uma dessas épocas especiais é no-
no pecado, salvação, milênios, ou nas quatro monarquias profetizadas por
vamente um conceito unificado de uma era especial — que manifesta a si
Daniel. Desse modo, procurou capturar a totalidade dos fenômenos em
mesma em um fenômeno mimético e plural.

48
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo alemão, um dos representantes do romantismo. 49
Hegel é este filósofo. (N. do T.)
(N. do T.) 50
No original, splitting concepts. (N. do T.)

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poucas proposições contidas no Apocalipse — como a teologia interpreta- os resultados da filosofia como absolutos, mas somente como fenômenos
va o Evangelho.51 no tempo. Assume que a mais exata filosofia está contida na história da
De qualquer forma, a história perderia toda a base e o caráter cien- filosofia, isto é, que a verdade absoluta reconhecível pela humanidade
tíficos: seria impossível falar de um princípio próprio do qual a história é inerente às teorias que aparecem de tempo em tempo, não importa
derivaria sua vida. como elas se contradizem. A história vai ainda além aqui, pois assume
Mas, adiantamos que a história permanece em inabalável oposição que a filosofia, especialmente quando se engaja em definições, é somen-
a essas reivindicações. Realmente, até mesmo a filosofia nunca foi hábil o te a manifestação do conhecimento nacional inerente à linguagem. Ela
suficiente para exercitar essa regra. Até onde vão os trabalhos impressos a assim nega à filosofia alguma validade e a compreende em sua outra
respeito, não encontrei filosofia alguma que tenha dado o menor sinal de manifestação.54 Nisso, tanto os filósofos como os historiadores, em regra,
ter controlado ou que tenha sido bem-sucedida em deduzir a diversidade aceitam todos os sistemas anteriores somente como passos, apenas como
de fenômenos a partir de um conceito especulativo; para a realidade dos fenômenos relativos, e atribuem validade absoluta somente para seus
fatos, escapa e ilude o conceito da especulação em todos os aspectos. próprios sistemas.
Além do mais, descobrimos que a história sempre se opôs a essas Não pretendo dizer que o historiador está certo em sua visão da filo-
reivindicações com força plena e crescente. Assim prova o caráter único do sofia; só quero mostrar que, a partir de uma perspectiva histórica, há um
princípio inerente à história, oposto ao da filosofia. princípio ativo que se opõe ao olhar filosófico e que constantemente se
Antes de conferir expressão a esse princípio, perguntamo-nos primei- expressa. A questão é que esse princípio é o que permanece na base daquilo
ro com que leis ele se manifesta. que se expressa.
Antes de tudo, a filosofia sempre volta-nos para a afirmação da ideia Enquanto o filósofo vê a história de seu ponto privilegiado e busca a
suprema. A história, por outro lado, traz-nos para as condições da exis- infinitude do ser meramente em progressão, desenvolvimento e totalidade;
tência. A primeira confere importância ao interesse universal; a última, ao a história reconhece algo infinito em cada existência, em cada condição,
particular.52 A primeira considera o desenvolvimento essencial e vê cada em cada ser; algo eterno vindo de Deus, e este é seu princípio vital.55 Como
particular somente como uma parte de um todo. A história volta-se com poderia qualquer coisa existir sem uma base divina?
simpatia também para o particular.53 A filosofia constantemente o rejeita: Consequentemente, como dissemos, a história volta-se com simpatia
estabelece a condição com a qual ela o aprovaria no futuro remoto. Por sua para o indivíduo; portanto, insiste na validade da importância do particu-
natureza, a filosofia é profética, dirigida adiante. A história vê o bem e o lar. Reconhece o benefício, o ser e resiste a mudanças que negam o existir.
benefício naquilo que existe. Tenta compreendê-los e olha para o passado. Até no erro ela admite uma parcela da verdade. Por esse motivo, vê nas
Certamente, nessa oposição uma ciência ataca diretamente a outra. filosofias anteriormente rejeitadas uma parte do conhecimento eterno.
Quando, como vimos, a filosofia pretende tornar a história subjetiva a si, Não nos é necessário provar que o eterno reside no indivíduo. Esse
a história, por sua vez, faz afirmações similares. Ela não quer considerar é o fundamento religioso sob o qual repousam nossos esforços. Acredita-
mos que não há nada sem Deus, e nada vive senão por meio de Deus. Li-
vrando-se das exigências de uma determinada teologia estreita, queremos,
51
Como se teologicamente a história já estivesse dada e cujo fim seria algo conhecido, tal como
na escatologia de João em seu Apocalipse. (N. do T.)
52
É evidente o afastamento em relação ao idealismo de Hegel nesse ponto. Sem contar que em
Ranke não há em nenhum momento o apelo ao conceito de destino (ver Hyppolite, 1970:48- 54
No original, begreift sie unter der anderen Erscheinung — sentido pouco claro (nota 6 de Iggers
62). (N. do T.) e Moltke, 1973:38).
53
Ranke aqui quase reproduz o pensamento de Herder a respeito da historicidade, em contra- 55
A influência da teologia em Ranke é inegável, sua hermenêutica glosa com o divino. Mais a
posição ao de desenvolvimento teológico e necessário da humanidade. (N. do T.) respeito, ver Gay (1990). (N. do T.)

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não obstante, professar que todos os nossos esforços provêm de uma fonte mais ou menos talentoso. Todo gênio repousa sobre a congruência entre o
maior, religiosa.56 individual e a espécie. O princípio produtivo que formou e criou a natureza
Deve ser rejeitada a ideia de que mesmo os esforços históricos são [humana] manifesta-se no indivíduo, que a reconhece, evidenciando-se e
dirigidos unicamente para a busca desse princípio maior nos fenômenos. alcançando a autocompreensão.
Assim, a história aproximar-se-ia demasiado da filosofia, já que pressuporia Esse dom é possível em maior ou menor grau e, em certa medida, to-
antes de tudo contemplar esse princípio. A história eleva, confere signifi- dos o possuem. Inteligência, coragem e honestidade para contar a verdade
cado e abarca o mundo dos fenômenos, em e por si mesma, devido àquilo são suficientes. Qualquer um espera descobrir e investigar, desde que a isso
que contém. Ela devota seus esforços ao concreto, não apenas ao abstrato tenha devotado seu esforço e se em seus estudos permanecer livre de pre-
que pode estar contido nisso. conceitos, mantendo sua humildade. Mas o que é ausência de preconceito?
Agora que justificamos nosso princípio supremo, temos de considerar Essa questão leva-nos à terceira exigência que emite nosso princípio.
as exigências que resultam disso para a prática histórica. 3. Um interesse universal. Existem aqueles que estão interessados so-
1. A primeira exigência é o puro amor à verdade.57 Reconhecendo algo mente nas instituições cívicas, nas constituições, no progresso científico, na
sublime no evento, na condição, ou na pessoa que desejamos investigar, ad- criação artística, ou apenas em enredos políticos. A maior parte da história
quirimos certo apreço por aquilo que aconteceu, passou ou surgiu. O pri- até aqui tratou de guerra e paz. Mas já que esses aspectos da sociedade
meiro propósito é reconhecer isso. Se procurássemos antecipar esse reco-
encontram-se presentes não separadamente, mas juntos — certamente, de-
nhecimento com nossa imaginação, contrariaríamos nosso propósito elevado
terminando um ao outro —, e já que, por exemplo, as atitudes da ciência59
e investigaríamos somente o reflexo de nossas noções e teorias subjetivas.
frequentemente influenciam a política doméstica, interesse igual deve ser
Com isso, entretanto, não queremos simplesmente dizer que o indivíduo
devotado a todos esses fatores. Do contrário nos tornaríamos incapazes de
deva permanecer atrelado à aparência, ao seu quando, onde ou como. Pois,
compreender um aspecto sem o outro e trabalharíamos ao contrário da
assim, somente tomaríamos o domínio de algo externo, apesar de nosso pró-
finalidade da cognição. Nisso reside a liberdade de preconceitos que dese-
prio princípio nos dirigir para o interior.
jamos. Isso não é uma falta de interesse, mas sim um interesse em cognição
2. Consequentemente, um estudo documental, penetrante e pro-
pura, despida de noções preconcebidas. Mas como? Poderia esse esforço
fundo faz-se necessário. Antes de tudo, esse estudo deve ser devotado ao
penetrante e essa busca da verdade apenas dissecarem a unidade do campo
fenômeno em si mesmo, à sua condição, seu ambiente, principalmente
em partes individuais, e com isso não nos ocuparíamos somente com séries
pela razão de que nós, de outra maneira, seríamos incapazes de conhecer
a sua essência, seu conteúdo; pois, em última análise, como cada unida- de fragmentos?
de é uma unidade espiritual, ela pode somente ser apreendida através da 4. Investigação do nexo causal. Basicamente, deveríamos estar satis-
percepção espiritual.58 Essa percepção clara repousa sobre a aceitação das feitos com uma informação simples — satisfeitos que elas correspondam
leis, de acordo com o que a mente observadora procede com aquelas que meramente ao objeto. Nossa exigência original teria sido satisfeita se exis-
determinam o surgimento do objeto em observação. Aqui, já é possível ser tisse ao menos uma sequência entre os vários eventos. Mas há uma conexão
entre eles. Eventos que são simultâneos tocam e afetam uns aos outros; os
que precedem determinam os que se seguem; há uma conexão interna de
causa e efeito. Embora esse nexo causal não seja designado por datas, ele
56
Holanda (1979) e Gay (1990) são categóricos em afirmar a influência da religiosidade no
pensamento de Ranke. (N. do T.)
57
Ranke distingue a história da ficção, a narrativa histórica como antagônica à ficcional em
relação ao princípio da referência ao real, semelhantemente a Humboldt. (N. do T.) 59
No original, die wissenschaftlichen Richtungen — sentido não muito claro nesse contexto (nota
58
Fritz Stern (1973:56-57) analisa essa questão, relacionando-a com o círculo hermenêutico. 9 de Iggers e Moltke, 1973:40).

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existe, não obstante. Ele existe, e porque ele existe devemos tentar reorga- 5. Imparcialidade. Como uma regra, dois partidos rivais aparecem na
nizá-lo. Esse tipo de observação da história, que deriva efeitos de causas, história mundial.64 As disputas em que esses partidos estão engajados são,
chama-se pragmática;60 mas gostaríamos de compreendê-la não na maneira com certeza, muito diferentes, mas relacionadas intimamente. Nós sempre
usual, mas de acordo com nossos conceitos. vemos uma desenvolver-se da outra. Que ninguém acredite que eles serão
Desde o desenvolvimento da historiografia contemporânea, a escola tão facilmente esquecidos no curso do tempo. Há no homem uma confian-
pragmática de pensamento, tal como aplicada às ações, tinha introduzido ça feliz no julgamento da história e da posteridade que é apelada mil vezes.
um sistema de acordo com o qual egoísmo e sede de poder seriam a mola Mas, raramente esse julgamento é transmitido objetivamente. Não sobre-
principal de todas as ações.61 O que é usualmente requerido é explicar as vive conosco um interesse similar àquele do passado. Julgamos o passado
ações observáveis dos indivíduos como o resultado de paixões que deriva- muito mais, repetidas vezes, pela situação presente. Talvez esse traço nunca
mos dedutivamente do nosso conceito de homem. O ponto de vista resul- tenha sido pior que no presente, quando alguns interesses que permeiam
tante tem uma aparência de aridez, irreligiosidade e falta de sensibilidade toda a história mundial ocupam a opinião geral e, mais do que nunca, a
que nos conduz ao desespero. Não posso negar que o egoísmo e a sede de dividem em muitos prós e contras.
poder podem ser motivos muito poderosos e tiveram grande influência, Esse pode ser o caminho do proceder na política, mas não é verda-
mas nego que eles sejam os únicos.62 Antes de mais nada, temos que inves- deiramente histórico. Nós, que buscamos a verdade, mesmo em erro, que
tigar a informação genuína tão precisamente quanto possível para determi- vemos cada existência como permeada de vida original, devemos acima de
nar se podemos descobrir os motivos reais. Fazer isso é bem possível, mais tudo evitar esse erro. Onde houver conflito similar, ambos partidos devem
do que frequentemente se pode pensar. Somente quando esse caminho não ser vistos sobre seu próprio terreno, em seu próprio desenvolvimento, por
nos conduz mais além, é-nos permitido conjecturar. Que ninguém acredite assim dizer, em eu próprio estado particular interior. Nós devemos com-
que essa limitação pode restringir a liberdade de observação. Não! Quanto preendê-los, antes que julgá-los.
mais documentada, mais exata e mais frutífera a pesquisa, mais livremente Poder-se-á levantar a objeção de que o escritor, também aquele que des-
pode se desdobrar a nossa arte, que só floresce no elemento da imediata e creve, deve ter sua opinião, sua religião, das quais não pode se desvencilhar.
irrefutável verdade! Motivos apenas inventados são estéreis. Os verdadei- Essa objeção seria justificada se nós presumíssemos dizer quem está
ros, derivados de observações pontuais, são diversos e profundos. Assim correto em cada disputa.65 É muito possível que, mesmo no calor de uma
como o conhecimento em geral, mesmo nosso pragmatismo é documen- disputa, já saibamos claramente que lado apoiaríamos, em favor de qual
tal. Ele pode mesmo ser muito reticente e ainda muito essencial. Onde os opinião decidiríamos. Também é possível que aquela imparcialidade que,
eventos falam por si, onde a composição pura manifesta a conexão, não é em um conflito entre duas opiniões divergentes, geralmente vê a verdade
necessário falar dessa vinculação detalhadamente.63 no meio-termo torne-se impossível para o historiador, já que ele é defini-
tivamente muito devotado a sua própria opinião. Mas isso não é tudo que
importa. Podemos ver o erro, mas onde não há erro? Isso não nos levará a
60
Ranke faz a distinção que também será feita posteriormente por Bernheim (1903) entre his-
tória genética e história prática. (N. do T.)
61
De certo modo, há uma referência implícita aos historiadores iluministas, como Voltaire,
adeptos desse modo de pensar a história. (N. do T.) 64
Partidos que expressam as forças da ordem e da desordem, “que constituem as condições
62
Agentes da história. (N. do T.) primeiras do processo do mundo” (White, 1995:181). (N. do T.)
63
Aqui fica claro onde Ranke sugere que os fatos possam falar por si e, como se pode ver, não 65
Aqui se evidencia uma defesa radical pela não tomada de posição, pelo não julgamento, pela
parece ser algo amplo, mas muito específico, que ocorre em casos particulares de grande com- ausência de juízos de valor em relação às ações humanas no passado, expressão da imparciali-
provação empírica e de evidência espiritual. (N. do T.) dade rankiana. (N. do T.)

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negar as realidades da existência. Perto do bem, nós reconhecemos o mal, 6. Concepção de totalidade. Assim como existe o particular, a cone-
mas este é um mal que é inerente à situação. xão entre um e outro, há também finalmente a totalidade. Se isto é uma
Não são opiniões que nós examinamos. Nós lidamos com a exis- vida, portanto alcançamos sua aparência. Percebemos a sequência pela
tência que tem reiteradas vezes a mais decisiva influência em disputas qual um fator segue outro. Mas não é o bastante. Há também algo de total
políticas e religiosas. Aqui erguemo-nos para contemplar o caráter essen- em cada vida; ela começa, exerce efeitos, adquire influência, ela prossegue.
cial das oposições, dos elementos em conflito, vendo quão complexos e Essa totalidade é tão certa em cada momento quanto em toda expressão.
entrelaçados eles são. Não nos cabe julgar erro e verdade enquanto tais. Precisamos devotar toda nossa atenção a isso. Se estamos tratando com
Nós meramente observamos uma figura surgindo lado a lado com outra um povo, não estamos somente interessados nos momentos individuais de
figura; vida, lado a lado com vida, efeito, lado a lado com efeito contrário. suas expressões de vida. De preferência, tratamos da totalidade de seu de-
Nossa tarefa é investigá-los na base de sua existência e retratá-los com senvolvimento, de suas ações, suas instituições e sua literatura, a ideia nos
completa objetividade. fala tanto que simplesmente não podemos negar nossa atenção. Quanto
Até o presente, dois grandes partidos engajaram-se em uma batalha mais longe vamos, mais difícil é, claro, chegar à ideia — pois aqui também
para a qual a resistência e o movimento das palavras tornaram-se um lema. podemos realizar algo somente através da pesquisa exata, através de uma
A história posiciona-se fora do partido que deseja a preservação eterna, compreensão passo a passo, e através do estudo dos documentos. Se esse
assim como do movimento contínuo avante. Alguns consideram ser a pre- processo procede através da indução do já sabido, ele é um conhecimen-
servação o legítimo princípio. Esses encontram uma legalidade na preser- to intuitivo (divination);66 se procede de uma prenoção, toma a forma
vação de certo status quo, de uma lei definitiva. Eles não querem perceber de proposições filosóficas abstratas. Vê-se quão infinitamente difícil são
que o que existe deriva da reforma pelos conflitos que destruíram o que os objetos da história universal. Que quantidade infinita de fontes! Que
existia antes. Mas, por outro lado, a história cessaria. Ela alcançaria em diversidade de esforços! Como é difícil trabalhar apenas com o parti-
algum ponto o seu objetivo. Não deveria haver, por assim dizer, nenhuma cular. Afinal, há muitas coisas que desconhecemos; então, como vamos
condição ilegal, nada que a razão pudesse confrontar com uma conclusão entender o nexo causal em todo lugar ou ir ao fundamento essencial da
impossível. Mas a história tampouco aceitaria a suplantação do velho, como totalidade? Considero impossível resolver esse problema inteiramente. Só
se fosse algo completamente morto e inutilizável, sem consideração para com Deus conhece a história universal. Reconhecemos as contradições — “as
interesses locais ou particulares. Se a história evita a violência na observação, harmonias”, como disse um poeta indiano: “conhecido pelos deuses, ig-
com maior vontade evitará a violência na execução. Este destruir, mudar e norado pelo homem”, nós podemos apenas intuir, somente nos apro-
novamente demolir não é o caminho da natureza. Ela é a condição de uma ximar à distância. Mas, para nós, existe claramente uma unidade, uma
ruína interior que se manifesta dessa maneira. Ela é um organismo em con- progressão, um desenvolvimento.
flito consigo mesmo, certamente curioso de se observar, mas não agradável. Então, pelo caminho da história chegamos até a definição da tarefa
A história, é claro, reconhece o princípio do movimento, mas como evolu- da filosofia. Se a filosofia é o que devia ser, se a história fosse perfeitamente
ção, e não como revolução. Esta é a verdadeira razão por que reconhece o clara e completa, então elas poderiam coincidir completamente uma com
princípio da resistência. Somente onde movimento e resistência equilibram a outra. A ciência histórica imiscuiria seu sujeito de análise com o espírito
um ao outro sem se envolverem nessas batalhas violentas e vorazes pode a da filosofia. Se a arte histórica pode então surgir ao dar vida ao sujeito con-
humanidade prosperar. Somente porque a história reconhece a ambos, pode creto e ao reproduzi-lo com aquela parte de força poética que não pensa
ser justa com ambos. Não cabe à história sequer julgar em teoria o conflito
que o passado ensina. A história sabe muito bem que o conflito será decidido 66
A divinação é uma das operações iniciais do método compreensivo, tal como se apresenta na
de acordo com a vontade de Deus. hermenêutica de Schleiermacher. (N. do T.)

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novas coisas, mas que espelha em seu caráter verdadeiro aquilo que conse- a Terra. Em nosso método, não revelamos nada sobre esses tópicos; permi-
guiu apreender e compreender, ela iria, como dissemos no início, unir de tamo-nos confessar nossa ignorância.69
maneira peculiar ciência e arte ao mesmo tempo. Como para os mitos, não quero negar categoricamente que eles sequer
contenham um elemento histórico ocasional. Mas a coisa mais importante
é que eles expressam o olhar de um povo sobre si mesmo, sua atitude dian-
Do alcance da história mundial
te do mundo etc. Eles são importantes, sobretudo, como uma característica
Em três caminhos — com respeito a (1) sequência, (2) simultaneida- subjetiva de um povo ou como seus pensamentos foram expressos neles,
de e (3) desenvolvimentos individuais.67 não por causa de algum fato objetivo que possam conter. Em um primeiro
1. Sequência — Em resumo, a história abrangeria toda a vida da hu- aspecto eles possuem um firme fundamento e são muito confiáveis para a
pesquisa histórica, mas não em última instância.
manidade surgida no tempo. Mas muito desta é também perdida e desco-
Finalmente, não podemos devotar maior atenção àqueles povos que
nhecida. O primeiro período de sua existência e seus elos estariam perdi-
ainda hoje permanecem em um tipo de estado de natureza e que nos le-
dos sem qualquer esperança de serem encontrados novamente.
vam a supor que aquilo que eles foram desde o início mantivera-se, que a
Podemos perceber que significado a história tem. Se autores de outro
condição pré-histórica tinha sido preservada neles. Índia e China reivindi-
tipo estão perdidos, perde-se a expressão do individual. Em um livro histó-
cam uma era de ouro e têm uma longa cronologia. Mas até o mais arguto
rico, entretanto, expressam-se não somente a existência e o olhar de um au-
cronologista não pode compreendê-la. Sua antiguidade é lendária, mas sua
tor; o livro histórico interessa-nos por causa do que contém das vidas dos
condição é antes um caso para a história natural.
outros. Muito que era descrito foi perdido, algo que pode ter sido descrito.
Tudo isso é ameaçado pela morte. Somente aqueles que a história relembra
não estão completamente mortos; seu caráter e sua existência continuam
a existir na medida em que eles permanecem na consciência dos homens.
Somente com a extinção da memória estabelece-se a morte.68
Somos afortunados quando vestígios documentais permanecem. Pelo
menos eles podem ser compreendidos. Mas o que acontece quando não
existe nenhum, como, por exemplo, na pré-história? Estou de acordo em
excluir esse período da história porque ele contradiz o princípio histórico,
que é a pesquisa documental.
Alguém poderia excluir por completo aquilo que comumente é to-
mado sobre a história mundial da dedução geológica e dos resultados da
história natural a respeito da primeira criação do mundo, o sistema solar e

67
Esta é uma sentença incompleta no original alemão. Nota 14 de Iggers (1988:45).
68
Passagem que evoca a abertura das Histórias de Heródoto: “Heródoto de Halicarnasso apre-
senta aqui sua historíe, para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague 69
Ranke prenuncia a distinção feita por Wilhelm Windelband (1848-1915) que, em discurso
da memória e para que grandes e maravilhosas obras, produzidas tanto pelos bárbaros, quanto famoso de 1894, insistiu na separação entre história e a história natural, aproximando esta últi-
pelos gregos, não cessem de ser retomadas” (apud Hartog, 1999:17). (N. do T.) ma das ciências naturais, devido ao seu caráter nomotético. (N. do T.)

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