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MtTOS ,..

,,,,DE
CRIAÇAO
Marie-Louise von Franz

~
PAULUS ,
Coleção AMOR E PSIQUE • Puer aeternus, M.-L. von Franz
Relaclonamentos e parcerias
MARIE-LOUISE VON FRANZ
O feminino
• Aborto - perda e renovação, E. Pattis • Amar, trair, A. Carotenuto
• As deusas e a mulher, J. S. Bolen • Eros e phatos, A. Carotenuto
• A feminilidade consciente - entrevistas • Não sou mais a mulher com quem você se
com Marion Woodman, M. Woodman casou, A. B. Filenz
• A joia na ferida, R. E. Rothenberg • No caminho para as núpcias, L. S.
• A mulher moderna em busca da alma: Leonard
Guia junguiano do mundo visfve/ e do • Os parceiros invisíveis: O masculino e o
mundo invisível, J. Singer feminino, J. A. Sanford
• A prostituta sagrada, N. Q. Corbett • O Projeto Éden - a busca do outro mágico,
• O medo do feminino, E. Neumann J. Hollis
• Os mistérios da mulher, Esther Harding Sombra
• Variações sobre o tema mulher, J. • Mal, o lado sombrio da realidade, J. A.
Bonaventure Sanford
O masculino • Os pantanais da alma, J. Hollis
• Curando a a/ma masculina, G. Jackson • Psicologia profunda e nova ética, E.
• No meio da vida: Uma perspectiva Jungui-
ana, M. Stein
• O pai e a psique, A P. Lima Filho
Neumann
O autoconheclmento e a dimensão social
• Meditações sobre os 22 arcanos maiores
MITOS
• Os deuses e o homem, J. S. Bolen
• Sob a sombra de Saturno, J. Hollis
Pslcologla e rellglão
do tarô, anônimo
• Encontros de psicologia analítica, Maria
Elci Spaccaquerche (org.)
DE
• A doença que somos nós, J. P. Dourley Psicoterapia, Imagens e técnicas pslco-
• Nesta jornada que chamamos vida, J.
Holllis
• Uma busca interior em psicologia e
teráplcas
• Psicoterapia, M.-L. von Franz
• Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz
CRIAÇÃO
religião, J. Hillman • A terapia do jogo de areia, A. Ammann
Sonhos • O mundo secreto dos desenhos: uma
, Aprendendo com os sonhos, M. A. Gallbach abordagem junguiana da cura pela arte,
• Breve curso sobre os sonhos, R. Bosnak G. M. Furth
• Os sonhos e a cura da alma, J. A. Sanford • No espelho de Psique, Francesco Don-
francesco
Maturidade e envelheclmento
• O abuso do poder na psicoterapia e na
• A passagem do meio, James Hollis medicina, serviço social, sacerdócio e
• No meio da vida, M. Stein magistério, A. G. Craig
Contos de fadas e histórias mitológicas • Ciência da alma: uma perspectiva jungui-
• A ansiedade e formas de lidar com ela nos ana, E. F. Edinger
contos de fadas, V. Kast • Saudades do Parafso: perspectivas psi-
• A individuação nos contos de fada, Marie- cológicas de um arquétipo, M. Jacobi
Louise von Franz • O mistério da Coniunctio: imagem a/qufmi-
, A interpretação dos contos de fada, Marie- ca da individualização, E. F. Edinger
Louise von Franz Psicoterapia junguiana e a pesquisa
• A psique japonesa: grandes tema_s e con- contemporânea com crianças:
tos de fadas japoneses, H. Kawa1 Padrões básicos de intercâmbio
• A sombra e o mal nos contos de fada, M. emocional, Maria Jacoby
-L. von Franz Corpo e a dimensão flslopslqulca
• Mitos de criação, M.-L. von Franz • Dionísio no exflio: Sobre a repressão da
• Mitologemas: encarnações do mundo emoção e do corpo, A. L. Pedraza
invisível, J. Hollis • Corpo poético: O movimento expressivo
• O Gato, M.-L. von Franz em C. G. Jung e R. Laban

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, O que conta o conto?, Jette Bonaventure • A joia na ferida - o corpo expressa as
O puer necessidades da psique e oferece um
• O livro do Puer, ensaios sobre o arquétipo caminho para a transformação, A. E.
do Puer Aeternus, J. Hilman Rothemberg PAULUS
INTRODUÇÃO À COLEÇÃO
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AMOE E PSIQUE
Fr_anz, Marie-Louisez~f~d~ !~-Maria Silvia Mourão.
Mitos de cria~~~it~~j;~u~s:uri; :~~ :_ (Anfo:. e psique)
Titulo original: Creation myths
ISBN 978-85-349-2056-B

1. Criação 2. Mito - Aspectos psicológicos 1. Título. 11 Série.


CDD-291.24019
03-0861
lndlces para catálogo sistemático:
1. Mitos de criação : Aspectos psicológicos 291.24019

Coleção AMOR e PSIQUE coordenada por Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o
Dr. Léon Bonaventure
Ora. Maria Elci Spaccaquerche homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua
Título original interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um
Creation myths
© 1972 1995 Marie-Louise von Franz
lugar novo de experiência. Os viajantes destes caminhos
' ISBN 0-87773-528-X nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma,
Tradução
mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de
Maria Si/via Mourão buscar causas, explicações psicopatológicas às nossas fe-
Revisão ridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro
Valéria Righe Dias lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo
Editoração é que poderemos reconhecer que estas feridas e estes so-
Linotec
frimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado,
Papel revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal
Chamois Fine Dunas 70g/rn'
e transpessoal, para a nossa unidade e a realização de
Impressão e acabamento nossa totalidade. Assim a nossa própria vida carrega em si um
PAULUS
sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primei-
ro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do
olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen-
tido, o que significa que a psicologia pode de novo esten-
2ª edição, 2011
der a mão para a teologia.
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço
© PAULUS - 2003 . para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do
. • 04117_091 São Paulo (Brasil)
Rua Fra;~:(f1 f~~:;
9~~~27 • Tel. (11) 5087-3700
www.paulus.com.br. editorial@paulus.com.br
espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si
ISBN 978-85-349-2056-B
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a à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle- PREFÁCIO
~:~~~rante a prática psicoterápica, e _está co~eçindo ª
renovar o modelo e a finalidade da p~1cote_r~pia. um:
. - d homem na sua existência cotidiana, do se
nova v1sao o b · d d. n-
t e dentro de seu contexto cultural, a rm o ime
s~;;~iferentes de nossa existência para podermos reen-
lma Ela poderá alimentar todos aque-
cont rar a nossa a · · · · lma
les que são sensíveis à necessidade de msenr mais a
em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisament: rer
tituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma g_eraçao e
sacerdotes capazes de entender n_ovamente a linguagem
da alma", como C. G. Jung o deseJava.
O texto deste volume decorre de palestras apresen-
Léon Bonaventure
111das no C. G. Jung Institute, no semestre de inverno de
1!HH-62, conforme as transcrições de Una Thomas. Andrea
1>ykes preparou um índice que, para esta edição, foi revi-
11ndo por Austin Delaney.
Quero agradecer a Dra. Vivienne Mackrell, por sua
11.i uda na revisão desta edição, por seu valioso apoio, e a
S ra. Allison Kappes, que efetuou a comparação com a edi-
~·ao em alemão e a digitação. Quero também agradecer
l<endra Crossen da Shambala Publications, por sua pa-
ciência e cooperação.
Meus agradecimentos também vão para Princeton
University Press, pelas citações extraídas do Collected
Works of C. G. Jung (Bollingen Series XX), traduzidas
f)ara o inglês por R. F. C. Hull e editadas por H. Read, M.
Fordham, G. Adler e William McGuire, e pelas citações
tiradas de Aurora Consurgens; A Document Attributed to
Thomas Aquinas on the Problem ofüpposites in Alchemy,
de Marie-Louise von Franz, traduzido para o inglês por
R. F. C. Hull e A. S. B. Glover; para Pantheon Books, de
Nova York, pelas citações de Mircea Eliade em The Myth
ofthe Eternal Return (Bollingen Series XLVI), 1954; para
o Museum of Navajo Ceremonial Art, de Santa Fé, Novo

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Capítulo 1
México, pelas citações do N a:vajo Creation MJt1{v.f:e{;;::
en Khah, conforme os registros de MarY_ . -
t\t· ara John Muray, de Londres, pelas citaçoes da obra O MITO DE CRIAÇÃO
!e 'sfr Arthur Grimble, A Pattern of ~sla:1-ds, 195:; para
H Schuman de Nova Iorque, pelas citaçoes extraidas de
The Sacred Scriptures of the Japanese, de P~st w;eeler,
1952· e para Doubleday, pelas citações extrai~s a!{:-
duçfi,o de Isabel Hutchinson para Festens ave e
Eagle's Gift), de Knud Rasmussen, 1932.

Neste livro, tentarei interpretar os motivos que ocor-


1·1·m freqüentemente nos mitos de criação. Os mitos de
niação pertencem a uma classe diferente dos outros mi-
l.os - por exemplo, os mitos dos heróis ou os contos de
1'11das - pois, quando são narrados sempre existe uma
rnta solenidade que lhes confere uma importância cen-
1.ral; eles transmitem um estado de ânimo que deixa im-
plícita a mensagem de que o que está sendo dito refere-se
nos padrões básicos da existência, a algo mais do que o
que está contido nos outros mitos. Portanto, pode-se di-
·,.er que, no que tange aos sentimentos e ao tom emocional
que os acompanha, os mitos de criação são os mais pro-
l'undos e importantes de todos. Em muitas religiões pri-
mitivas, narrar o mito de criação estabelece um ensina-
mento essencial no rito de iniciação. O mito é contado para
os jovens iniciados como a parte mais importante da tra-
dição tribal. De muitas outras maneiras também, como
veremos mais adiante, os mitos de criação referem-se aos
problemas mais básicos da vida humana, pois dizem res-
peito ao significado final, não só de nossa própria exis-
tência, mas da existência do cosmo inteiro.
Como a origem da natureza e da existência humana
é para nós um completo mistério, o inconsciente produziu
muitos modelos desse evento. A mesma coisa acontece

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onde quer que a mente humana se aproxime dos limites cio progresso dos instrumentos técnicos, continuam existindo
do desconhecido. Se, por exemplo, você olhar os mapas da 1111.o~~s ~esconhecidos. Há modelos arquetípicos e projeções
antigüidade, verá que a Grécia aparece 1:1-ais ou menos cl11 ('J enc1a moderna que discutirei mais adiante, mas conti-
no centro do mapa mas, nas bordas, as coisas torn~m:se 111111mos sendo confrontados por fatos completamente intri-
um pouco distorcidas: a parte superior d~ Iugoslávia in- 1-111 ntcs e por teorias contraditórias. Outras civilizações não
clina-se para o alto da Itália e, em segmda, no final de foram menos ingênuas que nós, pois também caíram no bu-
uma região conhecida, aparece simplesmente um dese- 111_<'0 d? desc?nhecimento e, quando confrontadas por um
nho do uróboro, a serpente que come o pr~prio_ rabo e que, 1111sténo, _proJetaram símbolos mitológicos dos quais, entre
nos mapas antigos, representa o oceano. A ~msa de dec~- 11111.ras coisas, nasceram os mitos de criação.
ração, nos cantos dos mapas são colocadas figuras de_ai:n-
mais ou monstros, ou dos quatro ventos. Na Idade Media, Para explicar o que significa uma projeção, gostaria
a área do mundo conhecido era sempre mostrada no cen- ele· chamar sua atenção para a definição de projeção apre-
tro, cercada por símbolos abrangentes e, às vezes, inclu- :1e·ntada por Jung_. Há inúmeras evidências atestando que
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sive figuras demoníacas; os quatro ventos sopravam na processo da proJeção não foi realmente compreendido e
direção do centro, na forma de cabeça com bocas que so- qtH' s empre dá margem a toda espécie de equívocos de
pravam ou algo semelhante. Esses. mapas dem~nstram 1ntc rpret~ção. Ao final de Tipos Psicológicos, Jung diz em
1n1a defirnção:
ad oculos que, onde quer que a realidade conhecid~ aca~
be, ou seja, quando tocamos a fü~b_ria do desconhecido, ai
projetamos uma imagem arquetlpica. Projeção sig'!ifica a expulsã~ de um conteúdo subjetivo
para um obJeto; é o oposto de introjeção. Nesse senti-
É o mesmo que acontece nos gráficos astronômicos do,. é um projeto de dissimilação (v. assimilação) por
medievais. Na Idade Média, as pessoas desenhavam to- meio do qual um conteúdo subjetivo se torna alienado
das as constelações que conheciam e, fora delas, o cosmo do _s~jeito e'. por assim dizer, é incorporado ao objeto. O
era rodeado pela serpente zodiacal, aquela na qua: esta- su1eito_ se_ livra de. conteúdos dolorosos, incompatíveis,
vam todos os signos do zodíaco; a lém dela, estendia-se o ao pro1e~a-los, assim como de valores positivos que, por
desconhecido. Novamente temos a serpente que mo~d~ a um motivo ou outro - por exemplo, a autodepreciação
própria cauda, o motivo do uróboro, pois esse e:a o limite - lhe são inacessíveis. {Agora, a sentença que é impor-
do conhecimento consciente do homem de entao. No pe- tante para nós] A projeção resulta da identidade ar-
ríodo final da antigüidade, os primórdios da química mo~- caica entre sujeito e objeto, mas só é corretamente cha-
tram que as pessoas també1? ~inham um c_erto conhec~- mada dessa maneira quando a necessidade de dissol-
mento dos elementos e um limitado conhecimento técrn- ver a identidade com. o objeto já se manifestou. Essa
co, mas, quando era atingido o fin:1 dos fatos con~e~idos, necessidade aparece quando a identidade se torna um
eles novamente projetavam essa imagem arquetipica, o fator de perturbação, quer dizer, quando a ausência do
símbolo do uróboro, para caracterizar a matéria desco- cont~údo projetado é um obstáculo à adaptação, e o re-
nhecida. Na alquimia, era o símbolo da prima materia, colhimento para dentro do sujeito se tornou desejávez.1
ou seja, da matéria original do mundo .
A maior parte das indagações sobre a origem e a subs- 1
C. G. Jung, Collecte~ _!Vorks (Princeton, NJ: Princeton University Press,
tância do nosso cosmo ainda não tiveram resposta; apesar 1D69), vol. 6, § 783. [Ed1çao em português, Obras Completas de C. G. Jung]

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Às vezes, usamos o termo projeção quando falamos
das sociedades primitivas, para dizer que seus mitos e nente de identidade com objetos... Não se trata de uma
deuses são projeções de imagens arquetípicas . Isso causa eq_uação, mas de uma semelhança a priori que nunca
foi obJeto da consciência. 2
confusão porque, na sociedade em que esses deuses ainda
estão psicologicamente vivos, não se tornou manifesta a
necessidade da retirada da projeção. Portanto, ainda pre- Portanto, devemos presumir que, nos estágios rela-
valece um estado de identidade arcaica. É só porque nós 11vamente iniciais de nosso desenvolvimento não havia
cl if'ercnça entre nossa psique inconsciente e o' mundo ex-
não acreditamos, por exemplo, nos deuses da tribo Shilluk
1t•rno; esses campos estavam num estado de completa
do alto Nilo que podemos falar agora de projeção; mas
1g11aldade, quer dizer, de identidade arcaica. Então, ocor-
essa é uma aplicação indireta do termo. Freqüentemente
l't'l'~m certos processos psíquicos misteriosos, certas mu-
discutimos com os etnólogos que dizem que isso não é só 1.nçoes, que perturbaram a paz dessa identidade e nos for-
uma projeção, pois eles viveram com esses povos primiti-
~·aram a recolhe~ determinadas representações, consta-
vos e, para eles, os deuses são uma realidade viva; por i ando dessa maneira que eram fatos internos, não externos.
isso, não se pode simplesmente dizer que "não passam de 1•:m vista disso repomos a idéia sobre os fatos externos
projeção". Esses cientistas apenas entenderam de forma mm uma nova "projeção", da qual ainda não enxergamos
equivocada como usamos o termo projeção. o aspecto subjetivo.
Há ainda um outro motivo pelo qual pretendo conti- Como se verá quando estudarmos alguns mitos de
nuar comentando este ponto, mas primeiro quero me de- criação, às vezes nos é r evelado com muita clareza que
ter na expressão identidade arcaica, que Jung usa e de- t•lcs representam processos inconscientes e pré-conscien-
fine no mesmo livro: tes que descrevem, não apenas a origem do nosso cosmo
mas a origem da percepção consciente que o homem te,,;,
Uso o termo identidade para denotar uma conformi- do mundo. Isso significa que, antes de me tornar cons-
dade psicológica. É sempre um fenômeno inconscien- <"i_ente do mundo como um todo, ou de uma parte do am-
te, uma vez que a conformidade consciente envolve- bient e que me cerca, acontecem muitas coisas no meu in-
ria necessariamente a consciência de duas coisas dis- consciente. Os processos pré-conscientes que se desenro-
semelhantes e, em conseqüência, uma separação en- 1am num ser humano, antes que sua consciência o inun-
tre sujeito e objeto, em cujo caso a identidade já teria de, podemos observá-los nos sonhos e em material do in-
sido abolida. A identidade psicológica pressupõe que consciente; o~ analistas estão em posição de ver, às vezes
é inconsciente. É uma característica da mentalidade com uma, qumzena_ de antecedência, ou até antes, que
primitiva e a base real da participation mystique, que agora esta se aproximando uma nova forma de consciên-
nada mais é do que vestígios da indiferenciação en- cia J?ªS que o sujeito ainda não o concebe conscientemen-
tre sujeito e objeto e, por conseguinte, do estado in- te. E como a anunciação de um processo na consciência
consciente primordial. É também uma característica que aparece no sonho, mas ainda não se configurou den-
do estado mental vigente no início do primeiro ano tro dos parâmetros da realidade. Duas semanas mais
de vida e, finalmente, do inconsciente do adulto civi- adiante o sonhador poderá vir e dizer: "Agora eu entendo,
lizado, que, na medida em que não se tornou um con-
teúdo da consciência, continua num estado perma- 2
lbid., §§ 741-42.

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u~orn ou mo de i conta de uma certa coisa", mas o analista tiu o modelo da idéia a partir da qual ele reconhece C; ele
viu no sonho que esse novo plano de entendimento, que só vê que o objeto coincide com sua idéia. É isso que cons-
essa súbita constatação, estava sendo preparada já há titui o processo da cognição como um todo.
algum tempo nos processos pré-conscientes. Apresento
este comentário, agora, como uma declaração a priori mas Bem, esse modo de apercepção está certo desde que
funcione. Se, por exemplo, digo que Fulano me parece um
espero poder demonstrá-la de maneira convincente quan-
gênio, e se ele continuamente se comporta como tal, sem
do estivermos examinando os mitos de criação.
nunca fazer nada que contradiga minha opinião, então nin-
O que não podemos mais conceber é que tais proces- guém jamais me convencerá de que ele não é um gênio.
sos também devem refletir a origem de nosso mundo cós- Mas se ele um dia se comportar como um perfeito idiota
mico externo. Isso se atribui ao fato de a nossa antiga (que é o fator da perturbação), então eu direi: "Ora, ora, de
identidade ter sido perturbada e de outras projeções no- onde foi que eu tirei a idéia de que este sujeito é um gê-
vas terem sido produzidas - projeções que parecem a nós nio?" Somente quando ocorre uma perturbação, uma não-
representar modelos científicos "objetivos" do mundo ex- coincidência, é que começo a me dar conta de que acon-
terno. Os novos modelos desalojaram os antigos e, com teceu al~uma coisa que deve ter perturbado minha con-
isso, entendemos que esses eram projeções. Na forma de cepção. E esse o caso que Jung menciona: a projeção não
um desenho, o processo da projeção transcorre basicamente se encaixa mais. Por exemplo, quero ser convencido de
como o diagrama abaixo: que um objeto é como isto ou aquilo, mas minha idéia não
se encaixa; existem muitos fatores que, como se diz hoje
na moderna ciência natural, não convergem: não existe
sujeito
convergência de resultados. Se, na idéia defendida por
A --------➔, Edwin Hubble sobre o universo em expansão, determina-
dos resultados da pesquisa atômica não coincidirem e não
se obtiver uma convergência de resultados, pode-se co-
meçar a cogitar sobre se essa idéia não é só uma espe-
culação ou, na nossa linguagem, uma projeção da parte
de Hubble. Porém, enquanto os resultados parecerem con-
campo da vergir numa mesma direção, enquanto o objeto parecer
consciência
realmente comportar-se de acordo com o meu modelo men-
tal, não tenho motivos para retirar a projeção. Estarei
ingenuamente convencido de que conheço a qualidade do
A, o ser humano ou Eu no centro de seu campo de objeto em si.
consciência, olha para um objeto, estando ele como sujei-
to. Quando existe uma projeção original, significa que um Assim, um dos motivos para se recolher uma proje-
arquétipo foi constelado no inconsciente, B. O sujeito con- ção é a idéia do objeto não corresponder aos fatos, é algo
templa o objeto, C, e não consegue entendê-lo, o que ele é, falsear em algum ponto e não coincidir com os fatos. Uma
afinal! Então tem uma idéia e concebe o objeto como isto outra possibilidade muito freqüente é que um outro ar-
e aquilo, mas não está consciente do fato de que o arqué- quétipo (D) se constele: um segundo arquétipo se mobili-
tipo, B, foi constelado em seu inconsciente e lhe transmi- za e destaca no inconsciente e apresenta outro modelo ou

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idéia à mente do sujeito, viabilizando outra pr?j~~ão so- 111i111•H mi tos se os chamarmos simplesmente de projeção de
bre O objeto. O sujeito então salta sobre a _nova ideia, ale- p, 111·1•ssos pré-conscientes, sem ter a idéia clara de "proje-
gando que esta é verdadeira e que a an~e:ior era um e~ro, ' ll ll'' 1•xatamente no sentido que busquei descrever.
uma ilusão _ uma projeção. A uma ~is~o retrospectiva, Antes de tentarmos compreender os mitos de cria-
chamamos a primeira concepção de proJeçao, ma~, ~nqua~- ' 11 11, temos de nos lembrar também de um outro fato, a
to a pessoa estiver presa nela, en~uanto? arquetipo esti- 111hc•r, que nós não podemos falar de nenhuma espécie de
ver constelado como válido, no mcon~ciente ~ n_o cons- , ,·,,/ir/ade exceto em sua forma como conteúdo de nossa
ciente da pessoa, ela nunca o cham~ra de p_roJeçao; p_el_o , ,11,s,·iência . Como Jung assinalou, a única realidade so-
contrário, irá considerá-lo a verdadeira cog~içao. O suJe~- 111 ,, a qual podemos nos pronunciar é aquela da qual esta-
to então sente que está falando de fatos reais e da ~ª?"ei- 111os cientes .3 Se para você isso é difícil de compreender,
ra mais honesta que consegue. Essa troca de arquetipos 1111a~ine então que você teve um sonho na noite passada e
em geral coincide naturalmente com mud~nças_ externas 111io se lembra dele pela m a nhã. Se não houve n enhum
de condições, de tal modo que certa~ teonas ~ªº. corres- 11hs1) rvador provando que você sonhou, entã o o sonho não
pondam mais a eles. Enquanto sen~1r~os subJetivamen- 11•v1• existência. Você pode presumir que ele exis tiu, ou
te que não estamos falando de proJeçoes mas da ver~a- q 11 <' não existiu, pode dizer qualquer coisa arbitrária que
deira qualidade de um objeto - que é u~ aspecto especial gos te de afirmar a esse respeito, mas, cientificament e fa-
de nossa mentalidade ocidental - entao chamamo-la de l11 11 do, você não pode dizer se ele existiu ou não. Tudo isso
verdade científica. q1H~r dizer que nenhum fator que não tenha em algum
Os orientais são tão introvertidos que, mesmo quan- ponto entrado no campo da percepção consciente de algu-
do se sentem convencidos, ainda aliment~m uma c~rta rna criatura humana pode ser citado como real. Os únicos
dúvida e não conseguem evitar o P_ºn!o ~e 11;1te:rogaçao a l"uLos que podemos afirmar que são reais são os que, de
respeito de suas "verdadeiras conv1cçoes . Ja nos estamos 11 lg um modo, em algum lugar, entraram no campo de cons-
seguros de que falamos de um objeto externo, desde que 1·iê)ncia de um ser humano. Todo o resto é especulação ar-
nossas projeções pareçam corresponder a eles. ~o mome~t_o hiLrária. Naturalmente, pela manhã, a pessoa pode su-
estamos sob O domínio de uma nova constelaçao arquetipi- 11or que teve um sonho e o esqueceu, mas isso não pode
ca que, por ora, está funcionan~o ~ na qual parece que ~e se r chamado de fato.
encaixam todas as qualidades obJetivas.,On_de quer que haJa Em termos práticos, portanto, podemos asseverar que
o qu e Bavinck denominou de convergencia .de resultados a única realidade que nos é possível mencionar ou com a
científicos, onde quer que tudo pareça se enca1x~r num qua- qual efetivamente lidamos é a imagem da realidade pre-
dro e ninguém seja capaz de pensar em quaisquer ,fatos sente no campo de nossa consciência. O argumento es-
contraditórios ao modelo que temos em mente, possmmos, pontâneo do extrovertido, que por temperamento tem uma
por um período de tempo, a nossa verdade. ~endo menos int ensíssima ligação com os objetos, será algo como: "Sim,
críticos em geral, e tendo apenas um conheci~ento frag- mas existe uma realidade, só que não podemos falar dela".
mentado dos fatos externos, ou _só . 1:m conhec11?-ento pa~- Dia nte disso, só podemos dizer que se ele prefere supor
cial se comparado ao nosso, os pnmit1vos pr~du~1ram expli-
cações cosmogônicas para a ongem da existencia que, p_ara

:0~ ós são projeções absolutamente transparentes. Prec1sa-


ter esse fato em mente, porque não podemos entender
i C. G. Jung, Memories, Dreams, Ref{.ections (Nova Iorque: Random
House, 1963), pp. 255-56. [Em português, Memórias, Sonhos, Reflexões]

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16
isso, que fique à vontade, mas isso não passa de uma_ su- 111111 1n, ou da origem e significado da vida, nunca poderá
posição inteiramente subjet~va. Se vo~ê gosta de o~mar 11111 11•1-q wndida racionalmente com certeza absoluta e in-
sobre as coisas e diz: "Acredito que existe uma realidade tl11h 1t nvcl, ela tem, segundo Jung, uma importância tão
alé~ do campo de minha consciência", essa crença brota l 111111t• 11d a, s e não inteiramente essencial, que nos dedica-
de determinadas necessidades de seu temperamento; en- 1111111 11 f'ormular idéias a esse respeito. Se uma pessoa não
tretanto, se uma outra pessoa não acredita dessa forma, 111111 mi to algum _ace_rca dessas indagações, ela está psi-
você não tem o menor direito de arrancar-lhe a cabeça. q111r11mente desvitalizada e empobrecida e, provavelmen-
Por conseguinte, se os indianos preferem dizer que não 1,,, 1wf'rc ~e uma neurose. Jung, por exemplo, sugeria a
existe realidade além daquela que entra no campo de sua 1odos os idosos que conviviam com ele que refletissem
consciência, não temos o direito de dizer que são_ bobos. H11 hrc· as questões de haver ou não vida após a morte e
Podemos simplesmente comentar que isso não co1:1bma ~om tl11 q ual era o sentido da morte para eles. Um dos alunos de
a nossa disposição de temperamento, que pre_fenmos hdar 11111g perguntou-lhe: "Agora estou com setenta anos e você
com as coisas como se acreditássemos que existe uma re~- 111111 oitenta. Você não poderia me dizer o que pensa sobre
lidade que transcende a nossa consciênci~: apesar de nao 11 vid a após a morte?" A resposta de Jung foi: "Não vai
podermos lidar diretamente com ela. Aqu~ mgressa_~os no 11 p1Cl á-lo em nada lembrar, quando estiver em seu leito de
terreno das crenças e suposições metafísicas e rehg10sa~, 111o rte, que 'Jung disse isto ou aquilo'. Você tem de ter as
no qual todos são livres para fazer as suposições que mais '. \""-" própri_as i~éias a es~e respeito. O seu mito pessoal.
lhes agradem; mas com isso abandonamos o _campo do 1<'r o próprio mito quer dizer sofrer e se debater com uma
fato científico passível de discussão. Sendo assim, e com- q, ws tão até que uma resposta brote das profundezas da
preensível que as histórias que suposb~mente servem para 11 lrna . Não quer isso significar que tenha chegado à ver-
descrever a origem do mundo real esteJam co~pleta~ente d11de definitiva, mas sim que essa verdade que lhe ocor-
entremeadas e mescladas com fatores que sena mais con- r1•u é relevante para você, na forma como a conhece. Acre-
dizente denominar histórias dos processos pré-conscientes ditar nessa verdade ajuda a pessoa a se sentir bem".
4
a respeito da origem da consciência humana. _Co~statamos, des~a forma, que há mitos de impor-
Chegamos aqui a uma outra quest_ão imp~rt~nte: de Ulncia vital. Podemos dizer que, no plano psicológico, ocor-
que maneira essas idéias míti_cas, ?e
i:_11portancia_ no?to- re um fenômeno similar. Por exemplo, todos os povos do
mundo conheciam a importância vital do sal. Como é bem
riamente vital, diferem de rac10nahzaçoes de dese~os. A
maioria vai dizer: "Não passam de contos de fadas . Mas sabido, os povos migravam e, em certas circunstâncias che-
isso não é exato. Se nos observarmos psicologicamente_ ao garam até a abrir mão de todos os seus bens e tesouro's por
longo de um período de tempo, em breve p~deremos ~ife- um punhado de sal. Há somente cerca de trinta anos foi
renciar e dizer "algo" está pensando em nos, quer_dizer, esclarecido o motivo para tanto. Sabe-se atualmente que o
certos conteúdos se nos apresentam e podemos agir. com sal desempenha um papel importante na fisiologia huma-
base neles pois fazem sentido para nós, e nos sentimos na. Ma~ aquele "algo" em nós, mencionado antes, sempre
melhor se pensamos dessa determinada manei:ª· Ap~sar soube disso. Nos tempos antigos, a importância do sal era
do fato de todos sabermos que a questão da vida apos a expl~cada mitologicamente. Havia a busca de idéias que
explicassem por que o sal é tão vital para o homem. Tudo
era baseado em conhecimentos instintivos, vitais. Portan-
• e. G. Jung, Collected Works, vo!. 14, § 766. to, os mitos expressam um conhecimento vital e instintivo
'
18 19
a pessoa confia nesse tipo de conhecimento então , 11111, o ambiente em que se encontra está todo destruído,
e quando • 1· - d 11 11 11pcrfície do mundo se abre numa fenda interminável,
é saudável. Isto não tem nada a ver com. raciona 1zaçao e
desejo ou com alguma espécie de fantasia. 1111HHi rn por diante. Estas imagens em geral avisam que a
11111Hriência desse ser humano está em estado explosivo
Até O momento atual, ainda existem algumas tribos 1111 pres tes a explodir, e que sua consciência da realidade
primitivas, mesmo que lame~tavelmente apenas umas ' " 11 breve irá desaparecer: seu mundo subjetivo será real-
poucas, que se recusam terminantemente a contar seus 11H111 Le destruído. Mas, muito freqüentemente, quando o
mitos secretos para os povos brancos. ~les ~abem q.ue es- 11p1s6dio esquizofrênico começa a ceder, ou supera sua fase
ses mitos contêm seu conhecimento vital, mcum~ndo de 11~11Hl a, então, nas fantasias e em sonhos, os motivos dos
lhes preservar a vida. Se_ um bran~o ~h.egas~e e m.t,;rf:- , 111 Los de criação surgem e o mundo é recriado a partir de
. de maneira desrespeitosa e preJud1cial, dizendo. N ao 11111 g-crme muito pequeno, tal como nos mitos de criação.
nsse ·to nisso. Não passa de conto de f a d as " , es t ana
· a t·m-
acredl · ·t·
gindo profundamente a alma desses povos p~1m1 1vos. o
s, A r<ialidade é reconstruída. Com base em minha experiên-
, 111 profissional, se se entendem esses símbolos de recons-
se pode dizer que a pessoa que não tei:n um m1!0 nem uma 1 rn~:ão, se se entende o que está acontecendo quando es-
idéia consistente a respeito do Asent1~0 d~ v1~a, ou, ~ue 11c•s s ímbolos surgem depois de um episódio, e se, no papel
· plesmente acredita no que le nos Jornais, e neurotica clt> terapeuta, se pode dar-lhes o devido apoio, acompa-
sim . • · d
e deve ser objeto de pena, poi~ é p~1s~oneira a crença em 11 hnndo o desenvolvimento dessas ideações e lidando com
tão-somente meias-verdades ideologicas. Dev~mos ter ~m ,· lns da forma adequada, pode-se às vezes ajudar a re-
te que quando tentamos interpretar os mitos de cna- rnnstrução de uma nova personalidade consciente que
men ' . l' . . t f
ção como projeção de processos .ps1co ogicos m _ernos, a- o retorno dessa onda posteriormente não conseguirá mais
zemos isso segundo a perspectiva da. p~pula~ao_ branca Hll bjugar.
centro-européia. Essa perspectiva sena impropria se e~ Lembro-me de um caso em que aconteceu isso, em-
estivesse lidando com mitos extraídos das crenç?s ~eh- bora não tivesse sido tão forte; não se tratava de uma es-
. dos esquimós ou de alguns outros grupos etrncos. quizofrenia clínica. Era um quadro limítrofe, uma mu-
g10sas . . "S'
Entendendo quem eles são, eu d1na: n:1, eu t amb,em i he r que, numa condição de completa possessão pelo
acredito que O mundo foi feito dessa_ man~1ra", ,e _este co- animus, tinha destroçado seu relacionamento com um
mentário não seria nem uma mentira d1plom~tica por- homem com quem vivia uma transferência fortíssima. Era
qu' e Para eles ' o mundo foi criado dessa maneira e essa um animus ambulante e não tinha nada além do animus
crença reflete sua concepção de mundo. funcionando dentro dela. Uma completa destruição de sua
Onde é que, hoje em dia: localizai:nos mito~ d: cria- personalidade feminina tinha se desenrolado ao longo de
-0 elementos ou motivos típicos de mitos de cnaçao, em muitos anos (uma disposição esquizofrênica), e ela esta-
ça ' 1 , . h ?A va por um triz para perder a cabeça. Uma colega que tra-
nossa atuação analítica nos consu tonos, e nos s?n os ..
forma mais visível pode ser obser~adaAn~ m~terial esqui- tava dela comigo sugeriu que a internássemos, conside-
frênico em que o episódio esqmzofrernco e geralmente rando que ou ela cometeria suicídio, ou faria alguma ou-
zo tra maluquice desse porte, como matar o homem que apa-
preparad'o por sonhos de destruição mundial.
_ . Em termos
f'
modernos, costuma ser uma explosão .atom1ca, ou o im rentemente a havia decepcionado seriamente. Antes de
do mundo, as estrelas despencando - imagens absoluta- concordar com essa proposta, quis eu mesma vê-la, e quan-
mente apocalípticas; ou a pessoa desperta e todos morre- do fiz isso percebi, de imediato, que eu não conseguiria

20 21
mais estabelecer qualquer contato. Ela ol_ho~ at_ravés de por uma situação extremamente perigosa. Com isso se vê
mim com olhar vidrado, e eu não consegui atmgi-la ~mo- rnmo é importante conhecer esses processos arquetípicos
cionalmente. Tive a sensação de que ela não me ouvm, .º pré-conscientes. ·
que mais tarde foi confirmado po,r ela mesma ao me ~i- Passei pela experiência de, normalmente, não se po-
zer que não tinha escutado _uma so palavra d~ que eu dis- der transmitir o significado desses mitos de criação para
sera. Estava numa tal condição que sua atençao, sua cons-
ns pessoas quando elas estão bem no meio das trevas por-
ciência achava-se completamente anulada. No meu de- que esse material descreve processos que transcorrem
sesper~, finalmente lhe disse: "Nenhu,!11 son~o, ~~m~um num plano muito distante do da consciência. Em contras-
sonho numa situação tão desesperada? Ela disse. So um te com outras mitologias, esses temas não dão ao indiví-
fragmento. Vi um ovo e uma v~z dis~e: 'a ~ãe e a filha"'. duo aquela reação íntima de quando se entende alguma
Fiquei muito feliz diante da situaçao e fui logo falando rnisa e se é capaz de aplicar esse entendimento ao pró-
para ela sobre os mitos de cria~ão e como o mundo renas-
prio caso, que é o sentimento de quem ouve interpreta-
ce do ovo mundial. Disse que isso mostrava o ge_rme de \·ões de contos de fadas ou de mitos sobre o herói, nos quais
uma nova possibilidade de vida e que tudo ficaria bem, se constrói uma ligação emocional e afetiva com o mate-
que só precisávamos esperar até _qu~ tudo viesse para fora rial. Os motivos dos mitos de criação parecem estranhos
do ovo e assim por diante. Deixei-me arrastar por um
<' extremamente abstratos, e portanto são difíceis de tra-
entusi;smo avassalador e disse que "a mãe e ª. filha" n~- zer até o plano da consciência. Por ter um significado tão
turalmente referiam-se aos mistérios de Elêusis, e expli-
remoto, quando se tenta transmiti-lo a outras pessoas é
quei tudo isso para ela, falando sobre o .:en~scim~nto do difícil oferecer-lhes a sensação de que entenderam.
mundo feminino, em que a nova consc1encia sen~ uma
consciência feminina, e assim por diante. Percebi que'. O que se pode observar nos casos limítrofes, a saber,
enquanto eu falava, ela ficou quieta; _fi~alm:nte, coloquei a destruição da consciência e da percepção consciente da
minha mão em seu braço e perguntei: Voce se s~nte me- realidade e a reconstrução de uma nova consciência, é só
lhor?" Pela primeira vez ela sorriu e disse que si~. Per- o caso extremo, o exagero de algo que também se encon-
guntei se ela achava que podia ir para a ca~a e nao fa~e~ tra nas situações normais. Identificamos a presença de
nenhuma bobagem, e ela respondeu que si~, que podia. motivos de criação sempre que o inconsciente estiver pre-
E foi isso que aconteceu, e o difícil episódio foi transposto. parando um avanço fundamentalmente importante na
Mais tarde, ela falou que estava num buraco tão ne~ro, e consciência do indivíduo. O desenvolvimento psicológico
que a consciência tinha ido tão long~, que nã,o ~avia en- de um ser humano parece seguir o padrão do crescimento
tendido uma só palavra do que eu dissera. So tmha per- fisiológico das crianças, que não crescem de forma contí-
cebido que eu tinha entendido o_ motivo do ~onho e o en- nua mas em acessos e aos arrancos. O crescimento da cons-
tendera de forma positiva; por isso, a camm~o de casa, ciência também tende a dar saltos repentinos para a fren-
ela falara com os próprios botões: "Bom, aquilo po~e ser te: há períodos em que o campo da consciência se amplia
entendido, e parece ser uma coisa boa". Então, ~eJa, eu de forma súbita, e em larga escala. Sempre que o alarga-
tinha entendido o que estava acontecendo. Eu nao pu?e mento da consciência ou sua reconstrução é muito súbita,
transmitir-lhe essa noção, seu complexo do Eu est~va dis- as pessoas dizem que tiveram uma "iluminação" ou reve-
tante demais, mas o mero fato de ela haver sentido que lação. Quando esse processo é mais contínuo, elas não o
alguém a compreendera tinha sido suficiente para trans- percebem tanto e só têm a sensação agradável de esta-

22 23
rem crescendo, de estarem se movimentando no fluxo da , 11, 11,·111. Ilá determinados processos preparatórios que de-
vida, que é interessante, sem passarem pela sensação de ••11111 Ht'r entendidos, porque deles se pode, no mínimo, ex-
uma repentina iluminação ou despertar. Semp:e que ~ l 1111.- certos indícios quanto ao rumo que a invenção irá
processo da consciência dá um grande salto adi_ante ha 111111111·, poupando assim, ao analisando, um doloroso des-
sonhos preparatórios, geralmente contendo motivos dos 11111d1rio de tempo. O analista pode servi-lo como um cão
mitos de criação. 'I"" l"nrcja e diz: "Por aqui não, não por esta trilha, mas por
Finalmente, mas não por último, é preciso conhecer 111p1tda lá!" Dessa forma, você pode intuitivamente circuns-
os motivos dos mitos de criação quando se analisa uma , , 11vc:r a direção em que está se encaminhando o processo
personalidade criativa. Analisar pessoas criativas é um 1, 111t1vo dele, de tal sorte que ele não precisa perder tempo
grande problema porque, freqüente?1ente, ~l~s pensam d11rnnte anos perseguindo caminhos errados, sendo possí-
que são neuróticas ou estão numa crise neurotica, e m.o s- v11I. J~ort_anto, acercar-se mais depressa do evento original
tram todos os sinais disso; entretanto, quando se estuda o d, , r naçao de um mundo que se constelou em sua psique.
material de seus sonhos, fica claro que são neuróticas não Isto tem uma importância enorme se você pensar no
devido a desajustamentos aos fatos internos ou externos q11:1nto é difundida a crença de que a psicanálise e a aná-
da vida mas sim porque estão sendo perseguidas por uma 11111· junguiana também destroem a personalidad; criativa.
idéia c;iativa e precisam fazer algo a esse respeito. São Mui tos artistas e cientistas criativos evitam contato co-
acossadas por uma tarefa criativa; vistas de fora, elas se nosco porque acreditam que nós, dentro de um modelo ana-
comportam exatamente da maneira qw~ os out:os neuró- l 11.ico redutivo, iremos destruir sua personalidade criati-
ticos e muitas vezes, elas mesmas se diagnosticam como v11 . Rilke disse, quando insistiram para que fosse fazer
neuróticas por causa disso. A dificuldade, porém, está em 1111álise freudiana, que tinha medo de, ao expulsar seus
que não se pode fazer a invenção pelo outro! Digamos qu_e cl,·mônios, seus anjos também fossem expulsos e , portanto,
um físico que deve inventar uma coisa procura atendi- rncusava-se a fazer análise. Eu afirmo que esse medo da
mento; é isso o que o inconsciente quer dele. Não se pod: personalidade criativa em se submeter a um tratamento
fazer isso por ele! Antes de mais nada, provavelmente vo~e nnalítico, ou de mostrar interesse pela análise, é justifica-
não conhece física o bastante e, em segundo lugar, sena do na medida em que são poucos os analistas que conhe-
afinal a sua invenção, e invenere significa adentrar a~gu- <·em os processos criativos da mente e, entendendo-os de
ma coisa ' descobrir algo novo, e não se. pode fazer
. isso
,..
forma equivocada, usam métodos redutivos de cura da neu-
pela outra pessoa. Graças a Deus por isso, pois voe~ a rose, quando deveriam, em vez disso, adotar uma atitude
estaria privando da mais valiosa experiência de sua vida de favorecer novos conteúdos que estão prestes a vir à luz
se o fizesse. Portanto, você tem de acompanhar o outro na consciência. Quem tem uma personalidade criativa,
em sua sofrida jornada. Ele diz: "Sim, mas o que é que eu quando uma tarefa criativa o pressiona e deprime, de fato
tenho de descobrir?" Bom, eu também não sei, mas ele comporta-se, muitas vezes, como um n eurótico horrível de
tem de descobrir alguma coisa! Então ele diz que se eu maneira desajustada e impossível. Corrigir ou coibir 'um
não posso lhe dizer o que é, não o estou ajudando. Então, pouco o comportamento neurótico, sem destruir ao mesmo
você tem de ter bastante material científico à mão para tempo o cerne criativo do processo, é uma tarefa delicada.
conseguir mostrar ao indivíduo que um ato criativo está Para tanto, é muito importante conhecer o material para
acontecendo agora, que um mundo novo está prestes a se poder reconhecer os processos. Vocês verão que os mitos
nascer, que algo inédito quer entrar no campo da cons- de criação podem ajudar-nos a encontrar esse material.

24 25
Às vezes pode-se afirmar que a parte criativa é 80%
do problema, e o reajustamento, 20%; outras é o inverso. /\o IPr ~ li_a?e, descobrimos que os mitos de cria ão
Parte disso sempre está presente, e essa é uma das suti- ' 111 111 1111.as c1v1hzações eram re t·d . ç
11 O . pe I os em condições es-
lezas da análise. Depende muito do relacionamento afetivo 11111 11·1 1.- ;. s mitos cosmogônicos e a mitologia da Í d.
11111 r•'<111 nplo, são usados toda vez ue ' n I~
entre analista e analisando, pois se é muito intensa a
, 11rnd , uída. Eliade oferece uma ilus1raç~;a nova casa e
contratransferência, o analista tende a não ser suficien-
temente redutivo, e se o analista depreciar secretamente
o analisando, pode prejudicá-lo e, com isso, destruir suas "() astrólogo mostra em que local os alicerces ficam
possibilidades criativas. Essa é uma situação muito deli- ,·71ta!71-ente sobre a cabeça da serpente [que é uma cons-
cada, na qual a pessoa tem, eventualmente, de confiar / ba~_ao estelar} que sustenta o mundo. O carpinteiro
nos próprios sonhos. É como o jardineiro que precisa de- ,:;. , ica um p~queno gancho de madeira do tronco da
cidir sobre o que irá arrancar e o que ir.á cuidar para que . ~ore Khadira, e com um coco enterra o gancho no
cresça. Pode-se, contudo, fazer uma transferência muito '}ªº' nesse ponto_ específico, de tal maneira que o gan-
intensa, pensando que o cerne de criatividade da pessoa ~ LO p; end:, com firmez a a cabeça da serpente no solo
é a coisa mais importante e que todas as bobagens que pe ra 'undamental é colocada em cima do ...
saem daí são criativas e por isso devem ser alimentadas. ;·~io.
e no
";pedra angular, portanto, fica situada exata!:~~
centro do mundo'· Mas o ato da fiu n d açao
- repete
O analista excessivamente maternal, que se senta em cima a
para chocar um monte de ovos de fênix, acaba parindo . o mesmo tempo, o ato cosmogônico, pois 'firmar' ~
ovos falsos! cabeça da serpente, enterrar o gancho nela é imita 0
gesto primordial de Soma (Rgveda II 12 1') I dr
Por outro lado, acho que o instinto criativo é tão for- qu d t 'fi. , , , ou n ra
~ an o es e mcou a serpente em seu covil' (VI 17
te que se o analista tentar destruí-lo o analisando aban- 9 :·· A serpente simboliza o caos, o informe e não'.ma'.
donará a análise. Não se pode destruí-lo. Se o analista nifesto. lndra sobrepuja Vrtra (IV 19 B) . d ' .
efetuou a tentativa errada de reprimi-lo, causa mal-estar (aparv ) - d , , in iviso
an , nao- esperto ( abudhyam)... "5
e ódio pela psicologia. Alimentará amargor, mas a força
dinâmica de uma disposição criativa jamais s erá supri- No instante em que a pessoa assenta o alicerce de
mida. Pode-se dizer que há também criaturas humanas ~, '.~rn~as:, _ela (por assim_ dizer) recria o mundo todo outra
sem uma criatividade muito forte, apenas com uma pe-
H ~ z~ ad a1xa Idade_Mé?ia, quando os vikings ou os anglo-
quena dose de fantasias criativas, e que poderiam alar- , xoes avam o primeiro passo p b
gar seus horizontes e tornar suas existências mais signi- '.1 '.~vo :err~tór~o, construíam um altaª:: r:~::i~~e;~:;0 ~ :
ficativas; portanto por que não deixar que vivam! Pois, <, iaçao, s1gmficando com isso que aquele t ·t , .
~
afinal de contas, a pessoa de fato se sente melhor se não
se esmaga o impulso. Se toda vez que você quiser brincar :.~~d~a:~:r:~iit!: !e~u:a8!;;°;:•c~~m pr;;:~i;1~e!:;,e!
com alguma coisa divertida você pensar que é criancice, cientemente submetido a algum tipo d!c~;~~: : ~ido co~s-
então você definha. Não chega a ser uma catástrofe; mas vam entrando nele e se instalando em tal lu~ar_ui oq~;:
acho que é uma pena esmagar pequenos impulsos criati-
vos, que poderiam tornar a vida muito mais bonita. Gra-
5
ças a Deus, em geral os sonhos ficam selvagens quando a Margaret Sinclair Stevenso Th R.
1920), citado em Mircea Eliade i'he e Ltes of the Twice-Born (Londres,
pessoa tenta erradamente esmagar alguma coisa. mos and History (Princeton N/ p . M{ th f{~he E~ernal Return: or Cos-
' · rmce on mve rs1ty Press, 1971), p. 19.
26
27
povo conquistado sentia não era levado em conta. Ames- t·ológica e fisicamente numa sit - .
ma repetição do mito de criação será encontrada em mui- t·o tremendo voceA perd uaçao perigosa; é um ris-
tas civilizações toda vez que uma cidade é fundada: cada ' eu as suas ra, - ,
1ndo, e portanto se encont b izes, nao esta adap-
cidade fundada repete, por assim dizer, a cosmogonia; é d iHsociação psicológica p ra so am~aça de morte física e
estabelecido um centro que é o umbigo do mundo e em l'IO, o conquistador est~b º{ consegumte, em novo territó-
torno do qual tudo o mais se concentra, e a cidade é uma 11 ia do Ano Novo mostra e ece um novo cosmo. A cerimô-
nova ordem, um novo cosmo, estabelecido desde este cen- da realidade e que noss q1:1e ~ossa percepção consciente
tro. Portanto, o mito de criação é, ou parcialmente reen- vanecer-se, tornar-se dis~o;~~ amento ~ ~la tende a des-
cenado uma vez mais de forma ritual, ou narrado com !'1cnte, em vez de um esfor o a e uI?- habito semi-incons-
solenidade. Um outro uso do mito de criação, nos casos rncsma forma como o s' bçl cdonsci:nte, e envelhece da
em que ainda permanece vivo dentro de uma religião, é im O o o rei envelh
s_Í m b olos religiosos envelhec O ece, como os
ser descrito todos os anos, na festa do Ano Novo. Mencio-
no a festa do Ano Novo não só na nossa acepção desse
termo, mas sempre que começa um novo ano, em qual-
de todo o coração, torn:-::~~
s rdo na juventude um

o passar do tempo. Essa


em. que talvez antes tenha

t
,~;l~~~!~• b~~~,ª con; f:rvor e
a- a mecamco com
quer sentido. Toda vez que esse novo tempo se inicia, en- '.·epetitivo e na continuaç~~n~:n__te_ameaça de ~esvalar no
tão um mito de criação é exposto minuciosamente de for- , nconsciência de perd camca, de deslizar para a
ma solene, o que significa que agora o mundo começa de ' er a sensaçã d ·t 1·
d~terminado procedimento te o e v1 a i~ade de um
novo e, portanto, é preciso que retorne à consciência das criação da realidade intei;a m de ser comba,tida pela re-
pessoas tudo que se passou in illo tempore, como diz Eliade. consciência. Os nativos de F'd ~e;?rnando ate ~ fonte da
Uma outra situação em que o mito de criação é ex- mecânica de fazer a i Ji_ em uma maneira menos
presso aparece nos povos das ilhas Fidji. Esses povos repe- mito de criação só a ca~ex;: ;01sa: eles não repetem seu
tem-no não só a cada nova cerimônia de coroação de um tem, de repente que existe ovo, mas toda vez que sen-
rei, como também sempre que as colheitas são ruins: "Toda /Sempre que estão amea ad uma a~eaça_ ur.?ente à vida.
vez que a vida está em risco e que o cosmo, aos olhos deles, co e pela desordem soci11 t~s rela dissociaçao, p~lo pâni-
está exausto e vazio, os nativos de Fidji sentem a necessi- cosmo todo narrando seu' ?t adm re~ta~rar a criação e o
' mi o e cnaçao.
dade de um retorno in principio; em outras palavras, espe- Eles criam de novo por .
ram a regeneração da vida cósmica não por um processo das coisas e depois es ' ass;,m, a ordem consciente
de restauro, mas de recriação. Portanto, a importância es- suas almas 'o que sÍgn'pfieram o e ei~o correspondente em
. ' l ica que mais uma l d
sencial, nos rituais e mitos, de qualquer coisa que possa nam sentir-se pessoalmente er:i d vez, e es :ve-
significar o 'começo', o original, o primordial...".6 Nesse re-
lato se obtém a confirmação do que podemos observar sem-
pre que é necessária uma nova atitude consciente, um
nes dessa região esse p
por exemplo, qu~ndo a
chamar-se um curande.
t:i:s~o or em. Para os abonge-
pode ch:gar ao ponto de,
e arroz nao está indo bem
novo reajustamento à realidade, a partir de um estrato enquanto assim proced~r~a~::ªo qu:t elJ cir~ul: o campo e
profundo e básico. Se por exemplo, no papel de um con- Daí em diante é como m1 o e cnaçao do arroz.
quistador, você entra em terreno desconhecido, está psi- "Bom, agora e~ sei outr::eºz ~~roz fosse car,az de dizer:
novamente capaz de crescer e mo devo ser '. e tornar-se
que se trata de uma . - m ampla quantidade. Claro
6
Ibid., p. 81. tem qualquer influên p_roJeçbao no arroz que dificilmente
eia so re o cereal. Mas isso causa
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29
uma forte impressão em nós. Quando sabemos de novo a dois criadores, como o dos dois animais, ou os criadores
razão pela qual nascemos, e qual é de fato a nossa tarefa }{<'meos. O motivo do Deus faber, a Divindade que fabrica
na terra, e quando tomamos conhecimento outra vez de 1> mundo, como no nosso mito bíblico da criação, irá ocu-
qual é o real sentido de nossa vida, então podemos nova- par-nos em seguida. Posteriormente, passamos pelo mo-
mente tocá-la em frente. É por isso que Jung disse que tivo da primeira vítima. Depois, serão brevemente des-
nunca tratou de um paciente que estivesse na segunda 1-ritos os estados subjetivos de ânimo do Ser criador; por
metade da vida sem chegar na questão do sentido da vida 1•xemplo, a criação pelo riso, pelo medo, pelo choro, e to-
para essa pessoa. Não fazia diferença que problema coti- das as criações através de sentimentos ou anseios, de en-
diano tivesse dado início ao tratamento; ele sempre re- tregas e do amor. Discuto, então, rapidamente, alguns
dundava nessa indagação final. Se, pois, a pessoa sabe 11/,0tivos primordiais básicos, ou seja, o ovo mundial , o ho-
que sua vida tem sentido, então ela é capaz de suportá- 111,em primordial por meio de cuja decadência o cosmo in-
la. O homem é capaz de agüentar praticamente qualquer teiro é construído, o conceito de libido por um fogo criati-
coisa, desde que veja o significado que isso tem. 110, um mana, uma energia mundial, de onde tudo brota.
/\ seguir, analiso brevemente por que tantos mitos de cria-
Por fim, ainda podemos ver que quando a pessoa é
1Jio contêm inúmeras cadeias de gerações. Esses são mi-
ameaçada fisicamente ou por uma dissociação completa,
l.os de criação basicamente da Polinésia e do Havaí, mas
como no exemplo que citei antes, o mito de criação é no-
também do Japão e, novamente, dos mitos gnósticos de
vamente narrado pelo inconsciente. O inconsciente rela-
criação, nos quais Deus produz pares gêmeos, tais como
ta partes do mito de criação para resgatar, mais uma vez, vida e verdade, ou Logos e Verbo, e assim por diante, ca-
a vida consciente e a percepção consciente da realidade.
deias e cadeias de gerações de deuses ou espíritos, ou ou-
Haverá, aqui, a presença de mais um elemento, a saber, a tros seres, até que a realidade nasça. Em seguida, há o
analogia do mito de criação com o simbolismo do processo motivo das partículas, as sementes do mundo. E, final-
de individuação, que é visto, com muita clareza, no mate- mente, a reprodução subjetiva da criação na meditação,
rial alquímico. Este aspecto eu abordarei mais adiante. conforme a alquimia a praticava, em que a confecção da
Discutirei os mitos de criação da seguinte maneira: pedra filosofal era tida como a reprodução da criação do
primeiro narro o mito que mostra, mais claramente ~ue mundo, em nível subjetivo.
os outros, como a criação é um despertar para a conscien- Um grande problema deste livro sobre mitos de cria-
cia, no qual podemos captar o flagrante de como o desper- ção é que eles são os mitos mais básicos de todas as civili-
tar para a consciência é idêntico à criação do mundo. De- zações e, portanto, a essência da humanidade; isso não
pois, introduzo alguns exemplos do nascimento do cosmo quer dizer que sejam fáceis de se entender. Por outro lado,
através de uma ação acidental. Em terceiro lugar, apre- parece-me que os mitos de criação não são especialmente
sento o tipo em que a criação é representada como ~1? interessantes naquelas linguagens que entendo do ponto
movimento de cima para baixo - em que seres esp1n- de vista filológico, como o grego e o latim, por exemplo.
tuais do Além criam, descendo ou atirando coisas para Muitos mitos de criação são altamente abstratos e basea-
baixo. Depois, partimos para a criação que decorre de um dos em idéias abstrusas e em conceitos aparentemente
movimento de baixo para cima, tal como a que encontra- estranhos. Para poder apresentar palestras sobre eles, de
mos em mitos de emergência nos quais tudo vem de um forma apropriada, é preciso que se saiba hebraico, sâns-
buraco na terra. Em seguida será abordado o motivo dos crito, babilônio, sumério e todas as demais línguas primi-

30 31
tivas. Não sou capaz disso. Logo, vejo-me forçada a con- Capítulo 2
fiar em traduções. Tentei trabalhar com as melhores, mas
não posso garantir que todas as nuanças de cada pala- O DESPERTAR COSMOGÔNICO
vra, em cada mito, tenham sido apropriadamente capta-
das pela tradução. Por causa disso, planejei enfatizar e
dar especial atenção a certas similaridades de motivos
e tipos de motivos, sem entrar muito pelos detalhes de
um único mito.
Estou também inteiramente ciente de que muitos lei-
tores ficarão chocados ao ler uma miscelânea de mitos
oriundos de tantas civilizações, alguns dos gregos e de ou-
tros grupos culturais variados, altamente diferenciados.
Não tentarei elucidar as diferenças culturais. Os etnólogos
e historiadores de religiões estão em muito melhores con-
dições para isso. O alvo de minha pesquisa é mostrar que Começarei com um mito que descreve a criação do
há estruturas arquetípicas básicas brilhando por trás da mundo como um despertar da consciência. Este mito foi
variedade de motivos, e que tais estruturas, entre outras rc: atado por Knud Rasmussen, em seu livro The Eagle's
funções, são manifestações do mistério da criatividade da Gi(t, no qual ele ~eproduz uma coletânea de mitos esqui-
psique humana inconsciente. Ao tentar interpretar alguns mos. Um desses e narrado por Apatac, do rio Noatak, a
dos motivos, atingimos esse fator criativo, que se manifes- quem Rasmussen perguntou como o mundo foi criado. E
ta de forma simbólica. Buscarei fornecer ao leitor recursos ele respondeu que:
para o entendimento dos processos criativos alojados nas
profundezas da psique humana. As pessoas não gostam d e pensar. Elas não gostam
de trabalh°:r com as coisas que são difíceis de captar
e talvez seJa essa a razão pela qual conhecemos tão
pouco sobre o céu e a terra e a origem dos homens e
animais. Talvez sim, talvez não. É muito complicado
entender como começamos a existir e para onde va-
mo~ quando morremos. As trevas ocultam o começo e
o fim. Como saber mais sobre o mais numinoso que
nos cerca e que nos mantém vivos, sobre aquilo que cha-
mamos de ar e céu e mar, e o que denominamos de
hu_mano e todos os lugares que habita, e os animais e
peixes e mares e lagos? Ninguém pode saber-coisa al-
guma ao c~rto a respeito do início da vida. Mas aque-
le que abrir os olhos e os ouvidos, e tentar se recordar
do que os antigos diziam, pode preencher o vazio de
seu pensamento com este ou aquele conhecimento.

32 33
[Aqui podemos enxergar como a projeção é realmente <L argila onde os abrisse. A terra era argila e tudo à
descrita: enchemos o vazio de nosso pensamento, pro- 11olta dele era argila morta. Ele deixou que seus de-
jetamos no vazio.] dos deslizassem sobre a argila, e então achou seu rosto
,, sentiu que tinha nariz, olhos e boca, e também que
Por isso é que gostamos de ouvir as pe~:ºª.s que nos possuía braços e pernas, como nós. Ele era um ser
trazem informações colhidas das experiencias que as humano, um homem. Em cima de sua testa, sentiu
gerações anteriores acumularam_, porque t~dos os um pequeno nó duro, mas não sabia por que estava
mitos antigos que nossos ancestrais contam sao o que lá, ele não possuía idéia de que havia se tornado um
os mortos nos dizem. Ainda podemos fala_r com as corvo antes, e que esse pequeno nó iria crescer e se
várias pessoas que foram sábias há muito tempo transformar no seu bico. Mergulhou em meditação.
atrás mas sabemos que são poucos os que gostam de Agora entendia, de repente, que era um ser livre, algo
ouvi: Minha avó sabia muitas coisas surpreenden- independente que não estava pregado no que o ro-
tes a respeito dos fatos antigos, e sei por ela o que vou deava. Rastejou pela argila, devagar e com cuidado.
lhe contar agora. Queria descobrir onde estava. De repente, suas mãos
O céu começou a existir antes da terra, t~da_via não encontraram um espaço vazio à sua frente e ele per-
era mais velho, porque quando começou a existir a terra cebeu que não devia avançar mais. Depois p egou um
também estava se formando. Já possuía uma crosta toco de argila e o atirou na fenda. Prestou atenção
firme antes que houvesse qualqu~r terra e ante! que porque queria ouvir quando o barro duro chegasse
também surgisse o primeiro ser vivo de quem nao sa- no fundo, mas não escutou nada, e por isso se afas-
bemos coisa alguma. Esse ser nós chamamos 7:ulun- tou do abismo e encontrou um objeto duro que enter-
gersaq, ou Pai Corvo, porque ele ~riou toda a vida d?- rou na argila. Ele ignorava porque havia feito isso,
terra e os seres humanos e é a origem de todas as coi- mas fizera, e depois se sentou de novo em meditação,
sas. Ele não foi uma ave comum, mas um poder sa?r~- refletindo sobre o que poderia existir em toda essa
do, criador de vida, que estava em tud? que existia funda escuridão que o rodeava. Então escutou um tre-
neste mundo no qual hoje vivemos. [Aqui temos o con- mor no ar e uma criatura muito pequena e leve pou-
ceito de energia.] Entretanto, ele também começou na_ sou em sua mão. Com a outra mão ele a tocou e sen-
forma de um ser humano (portanto não pense no Pai tiu que tinha bico, asas e penas quentes e macias no
Corvo como um corvo; ele apenas se tornou u_m corvo) corpo, e minúsculos pés despidos. Era um pequeno
e ficava vagando no escuro e todos os seus feitos ~ram pardal, e que ele percebeu que já estava ali antes dele
completamente erráticos, até que se tornou manifesto e tinha vindo em sua direção, proveniente da escuri-
para ele quem ele era e o que deveria fazer. dão, saltitando à sua volta, e ele não o havia notado
Sentava-se crocitando no escuro quando _de repen!_e antes que o tocasse.
despertou para a consciência e se descobriu. Ele_ n~o Como esse homem gostava de contato social, tornou-
sabia onde estava ou como tinha começado a exi~tir: se mais ousado e avançou mais corajosamente raste-
mas respirou e teve vida, ele viveu. Tudo o mais .ª jando sobre a terra e se aproximou de um lugar em
sua volta encontrava-se no escuro e ele não consegui?- que tinha enterrado uma coisa antes, e esta havia
ver coisa alguma. Com as mãos, tateava seu cami- criado raízes e se tornado viva: um arbusto tinha bro-
nho a esmo, tocando os objetos, e seus dedos tocavam tado e a terra não era mais estéril pois a argila nua

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35
estava agora coberta de arbustos; e tinha grama tam- 110 ar pelas asas. Pegou, então, gravetos da floresta
bém. Mas o homem ainda se sentia só, e por isso for- que pareciam asas e colocou-os nos ombros. Os
mou uma figura de argila que lembrava a sua, e en- f..!rave tos se transformaram em asas de verdade, e dele
tão novamente se sentou crocitando e esperando. As- mesmo nasceram penas que cobriram seu corpo e o
sim que o novo ser humano se tornou vivo, começou a nó em sua testa começou a crescer e formar um bico.
cavar a terra com as mãos. Não tinha sossego e cava- Agora, o homem percebeu que podia voar como o pe-
va incessantemente, constantemente, toda a terra à queno pardal, e eles saíram voando juntos. O homem
sua volta, e, então, ele descobriu que esse outro ser disse: "Gôuq! Gôuq!" e havia se tornado uma grande
humano tinha um perfil psicológico diferente do dele, ave negra e se autodenominou Corvo.
e que possuía um temperamento quente, prontamen-
te irritável, além de atitudes violentas. Ele não gos- A terra de onde vieram foi por ele chamada de Céu.
tou disso e arrastando-o até o abismo jogou-o lá den- Ficava tão longe quanto hoje o céu é distante da ter-
tro. Esse ser, se diz, tornou-se mais tarde Tornaq, o ra, de modo que quando chegaram ao fundo estavam
espírito mau, de quem descendem todos os maus es- completamente exaustos. Ali tudo era deserto e esté-
píritos da terra. Depois, o homem rastejou_ de volta_ ril, e ele novamente plantou a terra como havia feito
para a árvore que ele havia plantado, e viu 9ue ah com o céu e saiu voando para todo lado e chamou
havia outras árvores, uma atrás da outra. Tinha se essa nova área de Terra. Depois, para habitar a Ter-
tornado uma floresta com um solo rico, e as plantas ra, ele criou seres humanos. Alguns dizem que ele os
haviam nascido por todo lado. Ele as tocou com as criou de argila, da mesma maneira como tinha feito
mãos e sentiu seu formato, seu aroma, mas não con- o primeiro ser no Céu; outros relatam que ele criou o
seguia vê-las. Por isso se sentiu com_pelido a sabe~ homem por acaso, o que seria ainda mais estranho
mais sobre a terra que ele mesmo havia fundado e foi do que se ele o tivesse criado pela força da vontade e
se arrastando para cá e para lá, com o pequeno par- de propósito.
dal sempre voando sobre a sua cabeça. Ele não podia Pai Corvo andou pela Terra e plantou ervas e flores.
vê-lo, mas sempre escutava suas asas e, às vezes, ele Descobriu uns casulos e ao olhá-los abriu um; um ser
pousava em sua cabeça ou em sua mão. Mas o h~- humano pulou de dentro, lindo e completamente cres-
mem se arrastava pelo chão, no escuro, porque nao cido, e o Corvo ficou tão espantado que arrancou sua
ousava andar em pé no escuro, e por toda parte depa- máscara de ave e, com essa admiração, tornou -se de
rou com água e assim descobriu que estava numa ilh_a. novo ele também um ser humano. Acercou-se rindo
Agora, queria saber o que havia lá embaixo, no abis- do homem recém-nascido e disse: "Quem é você e de
mo, e pediu ao pequeno pardal que descesse ~ara des- onde você vem?" O homem disse: "Venho deste casu-
cobrir. Diante disso, a ave saiu voando e ficou fora lo", e mostrou o buraco de onde ele havia saído. "Eu
muito tempo; quando retornou, disse que lá embaixo, não queria ficar mais deitado lá dentro, então forcei
no abismo, existia terra, uma terra nova que tinha o casulo com os pés e abri o buraco, e saltei para fora".
acabado de formar sua crosta. O homem decidiu des- Com isso, Pai Corvo deu uma gargalhada e disse:
cer e pediu ao pardal que se sentasse sobre seus joe- "Bem, bem, você é mesmo uma criatura estranha!
lhos. Então ele notou como o bicho era feito e tentou Nunca conheci nada como você!" Depois riu de novo e
descobrir como o pardal conseguia se manter suspenso acrescentou: "Fui eu quem criou este casulo, mas não

36 37
sabia o que nasceria dele. Mas a terra na qual você n ~nsciência. Este é projetado no Pai Corvo que, por assim
está caminhando ainda não está terminada. Você não di zer, se torna lentamente consciente e, à luz dessa cons-
sente como ela treme? Devemos ir para um lugar mais (' iência, a realidade começa, ao mesmo t empo, a existir.
alto, onde a crosta seja mais dura". E assim apare-
Ocorrem aqui alguns motivos que não discut irei, mas
ceu o primeiro homem e mais tarde Pai Corvo criou
110s quais retornarei depois, num a conexão posterior. Um
todos os outros seres. 7
diz respeito aos dois seres originais: Pai Corvo e o pequeno
pardal. Mais adiante, veremos que é muito difundido o
Vou pular o resto da história, que fala de como fo-
111otivo de haver, no princípio, um criador relativamente
ram feitos os ursos, raposas e todas as aves etc., e de como,
111ais ativo, um Deus protagonista de criação· ele tem uma
sempre com a ajuda do pardal, Pai Corvo pôde dar um
f'igura de sombra que o acompanha, que é p'assiva e lem-
outro passo adiante. Ele ensina os seres humanos a cons-
bra o pequeno pardal, que só está ali, e praticamente não
truir casas e caiaques, a fisgar peixes etc. Um dia, uma
hz nada além de existir; contudo, é absolutament e neces-
enorme massa negra saiu do mar e o Pai Corvo ajudou os
seres humanos a matá-la. Era um monstro marinho. Eles :;,írio como contraparte . De acordo com esta história, ele é
o cortaram em pedaços, que atiraram para vários lados, e i11clusive mais antigo do que o protagonista ativo. Tam-
l><•m vemos aqui o motivo da forma h u mana do primeiro
desses surgiram todas as grandes ilhas. Assim, lentamen-
te, a terra cresceu e se tornou um lugar onde habitavam ser criativo, uma figura de antropos que vocês irão perce-
as pessoas e as criaturas. ber que é um outro motivo arquetípico muito difundido nos
lll itos de criação. A criação começa na forma do homem· só
A história termina dizendo que, quando a terra tinha depois é que aparecem todas as outras formas. '
se tornado no que devia, o Corvo reuniu todos os seres hu-
manos e disse: "Eu sou o seu Pai e vocês devem a mim a No nosso mi to, vemos a imagem de um criador incons-
terra que têm e sua pessoa, e nunca devem me esquecer". ciente, que cria o mundo de uma maneira inter mediária
Então, partiu voando da Terra e subiu ao Céu onde ainda descobrindo-o, tornando-se con sciente dele e, em parte, po;
era escuro, mas ele havia recolhido algumas pederneiras at?s acidentais como atirar barro n uma fenda, ouvir e de-
da terra e com essas criou as estrelas . Atirou no céú o que pois plantar uma semente e mais tarde descobrir um ar-
havia sobrado das pedras, e delas surgiu um grande fogo busto e depois plantar o casulo. Mas, como ele confessa
que derramou luz sobre a Terra, e assim foram criados o não tinha noção do que poderia sair dali e ficou absoluta~
Céu e a Terra. Foi dessa maneira que a Terra e todos os mente pasmo quando apareceu um ser humano. E le não
seres humanos e todos os animais começaram a existir; havia tencionado criar um ser humano. No entanto, esse
entretanto, ant es desses todos existia o Corvo, e antes deste criador não é tão incon scient e e animalesco quanto outros
ainda havia o pequeno pardal. criadores dos mitos primitivos, pois é dito que às vezes sen-
Lava-se e mergulhava em meditação. O t ermo em alemão
Essa é uma linda história que mostra que o processo diz que ele afundava em "pensam entos". Isso significa que
de despertar para uma percepção de realidade é parecido ele dá um passo no sentido da criação: ele reflete e cogita a
com o estado de ânimo de quem sai de um estado de in- respeito. Também acontece um certo grau de planejamen-
to, como quando ele quer s aber o que há no abismo. Tenta
7 Knud Rasmussen, Die Gabe des Adlers (Frankfurt am Main: Societãts-
igualmente imitar o pardal que tem asas, quando quer
Verlag, 1937), p. 47. descer até o fundo desse mesmo abismo.

38 39
E sse despertar da consciência pode ser encontrado tanto, impotentes e inconscientes é muito mais provável
11 o mi to de criação dos Winnebago, publicado por Paul q ue esses acidentes aconteçam. Se você não pu der pintar,
ltndin. Neste, desde as primeiras palavras, está dito: "No acontece que o inconsciente constela muit o mais nesse ato
princípio, o Que Faz a Terra [i. e., o criador, que é uma de pintar , ao passo que se você domina uma forma de arte
l'i g11 ra paralela à do Pai Corvo] estava sentado no espaço e é muito hábil e, por conseguinte, capaz de excluir essas
q11nndo chegou à consciência e não havia nada mais em interferências acidentais perturba doras do inconsciente,
p11rte alguma". 8 Aqui, há o mesmo motivo: primeiro exis- você sabe como manejar o pincel e pode prevenir as man-
te um ser completamente inconsciente de forma humana, chas; mas , se você é incapaz e fica infeliz quando faz uma
e seu primeiro passo é despertar para uma percepção cons- pintura borrada e é tomado por uma emoção, pois ficou
ciente do mundo externo. Se isso não prova que a história t rabalhando naquilo durante três horas e tudo ficou hor-
da origem do mundo e da origem da consciência desse rível, então você mergulha num afeto e o inconsciente se
mesmo mundo, são fatores absolutamente coincidentes, manifesta! De repente, você tem uma fantasia a respeito
não sei o que mais possa prová-lo. da man cha que lhe diz alguma coisa, como uma mancha
A criação por ato acidental é um fato altamente im- de Rorschach ; logo é realmente uma imagem que vem do
portante, quando buscamos alcançar o entendimento do inconsciente. Você tem a sensação de que é uma coisa es-
processo criativo no inconsciente. Vocês sabem que quan- pontânea que apareceu exatamente quando você ficou com
do tentamos desenhar ou pintar, costuma acontecer de, raiva e queria rasgar aquilo em m il pedaços. Portanto,
por engano, fazermos uma mancha. O pincel se move ajuda a entrar no m esmo estado de ânimo do Pai Corvo,
errado, por "vontade própria", e faz uma marca feia. Mui- de tatear no escuro e se sentir perdido: então, o processo
tas vezes, quando permitimos que esses acidentes acon- criativo do inconsciente é constelado. Por isso é que, na
teçam, de repente enxergamos um rosto ali, ou fazemos imaginação ativa, é importante usar um meio no qual a
uma figura para cobrir a mancha e, com isso, muda toda pessoa não seja exímia, não domine qualquer técnica que
a imagem. Esses acidentes são um dos fatores mais cons- possa excluir a interferência do inconscient e.
telados da fantasia inconsciente. Na arte moderna, eles Na história das invenções da civilização há muitas
desempenham um papel significativo; alguns artistas até que foram descobertas por acaso, quando a pessoa estava
cultivam essa forma de criação na qual manchas, furos e brincando com um objeto e, subitamente, teve uma idéia.
objetos achados por acaso são, num determinado momen- Schiller chega inclusive a dizer que o homem está no mais
to, inseridos na figura total. Esses artistas buscam apro- elevado de si mesmo quando brinca, quando não age mo-
ximar-se do processo criativo acolhendo a~ coisas aciden- vido por propósitos conscientes. A criatividade pelo lúdico
tais que se oferecem espontaneamente. E por isso que, é um fator tão conhecido e essencial que nem se precisa
quando deixamos um analisando entrar num processo de a ssinalá-lo. Todavia, constatamos repetidas vezes que se
imaginação ativa e ele é pintor, em geral nós o aconselha- tentamos induzir nossos analisandos a fazer uma imagi-
mos a escrever em vez de pintar e, se é escritor, a pintar nação ativa todo o racionalismo cético salta à vista: é uma
em vez de escrever, porque onde somos incapazes, e por- perda de tempo, não é possível fazer isso, n ão sei dese-
nhar, não tenho tempo para isso hoje, nem amanhã, não
estou inspirado - e todas as outras formas de resistên-
8 Paul Radin, Winnebago Culture as Described by Themselves (Baltimore: cias e bloqueios da consciência que possam ser citadas.
Waverly Press, 1950), p. 9. Mas todo novo começo, assim como todo processo essen-

40 41
cial de consciência, deve primeiro provir de um estado des- Capítulo 3
ses; somente então, o ser humano se mostra aberto o sufi-
ciente para deixar que o novo elemento penetre e permita CRIAÇÃO QUE VEM DE CIMA,
assistir o desenrolar do que vier. Muitas pessoas criati-
vas acendem sua criatividade com uma depressão monu-
CRIAÇÃO QUE VEM DE BAIXO
mental. Elas têm uma consciência do Eu tão bem cons-
truída e tão forte que o inconsciente precisa recorrer a
meios muito enérgicos - como enviá-las a uma depres-
são infernal - antes que consigam se soltar o suficiente
para deixar que as coisas aconteçam espontaneamente.
Observei que as pessoas que tendem a ter essas depres-
sões criativas; se puderem antecipá-las brincando, não ne-
cessitam entrar na depressão e sempre que se consegue
induzir alguém que está em séria depressão a começar
alguma brincadeira, o estado depressivo imediatamente Quero passar agora para o prox1mo motivo impor-
se desvanece, pois a intenção secreta final dessa espécie tante, ou seja, a criação que acontece de cima para baixo,
de depressão é, como o próprio termo demonstra, depri- e de baixo para cima. No exemplo que estarei citando, de
mir, abaixar o nível da consciência, para que esses pro- forma relativamente detalhada, os dois motivos apare-
cessos entrem em ação. Isso então é a escuridão, a nigre- cem na mesma história. Minha intenção é sempre apre-
do, no qual o Ser divino mais elevado deste conto esqui- sentar um mito de criação com mais detalhes, já que re-
mó está assentado, como símbolo de algo que ocorre vezes presenta um tipo completo de mito, ao passo que os ou-
e vezes seguidas sempre que aparecer um impulso criati- tros só são citados em parte, pois penso que dessa man ei-
vo essencial da consciência. ra podemos formar uma noção muito melhor do mito do
que se passarmos correndo por uma série de motivos iso-
lados. O mito que vou narrar foi extraído da tribo dos iro-
queses, que são nativos norte-americanos. 9
De acordo com esse mito, havia do "outro" lado do
céu, virado de costas para nós, seres que eram chamados
Ongwe. As notas dizem que o termo Ongwe significa ho-
mem-ser e representa as imagens de todas as coisas que
existiram posteriormente na terra, i. e., uma imagem das
casas, uma imagem das árvores, e de todos os animais. 10
Esses arquétipos - não posso evitar essa expressão - de

9
J. N. B. Hewitt, lroquoian Cosmogony, vol. 21 (Washington, D. C.:
Annual Reports of the Bureau of American Ethnology, 1903).
'º lndianermii.rchen aus Nordamerika, dentro da série "Marchen der
Weltliteratur" (Jena: Diederichs Verlag, 1924), p. 93.

42 43
tod m1 111-1 co i1-1111-1 Lo r ronns e r a m chamados de Ongwe, e vi- as suas mãos sobre os meus olhos. Vou dizer-lhe mais
v i11 n1 na que le lad o do céu virado de costas para nós. O uma coisa: você deve fazer um caixão e colocar meu
céu era entendido como uma espécie de cúpula sobre a corpo lá dentro, como numa tumba, e depois colocar
nossa terra , e as Ongwe viviam além dele. Veremos mais o caixão num local alto". A mulher fez como lhe ha-
adiante que algumas dessas Ongwe eram identificadas via sido dito e tudo aconteceu como fora previsto. Eles
com constelações das estrelas fixas. Viviam em casas, o colocaram num caixão que foi depositado num lo-
iguais àquelas em que os iroqueses moravam. Geralmen- cal elevado. Então, a mulher velha perguntou à mu-
te saíam para caçar pela manhã e voltavam para casa ao lher nova, outra vez, quem era o pai da criança, mas
entardecer. Assim, as Ongwe levavam realmente uma vida de novo não obteve resposta.
similar à que os iroqueses depois tiveram.
A criança, uma menina, nasceu e se desenvolveu ra-
Num certo local havia duas Ongwe, um homem e pidamente e logo estava correndo por todo canto. Mas
uma mulher, pessoas de alta posição, que levavam uma depois começou a chorar e ninguém sabia por quê, e
existência muito religiosa e solitária. Um dia a mu- ela chorou durante cinco dias. A avó então disse que
lher foi até o local em que vivia o homem. Ela pos- deviam mostrar para ela o caixão, e levaram a garo-
suía um pente e disse a ele que ficasse em pé pois que- tinha até lá e a suspenderam. Quando ela viu o ca-
ria pentear-lhe os cabelos. Ele se ergueu e ela pen- dáver do pai parou de chorar, mas tão logo a desce-
teou o cabelo dele. Todos os dias acontecia a mesma ram ela chorou de novo. Isso aconteceu durante dias,
coisa. Mas logo os parentes da mulher começaram a e eles sempre tinham de levá-la de volta para ver o
falar entre si porque ela estava mudada, e a cada dia homem morto. Um dia, a criança voltou com um anel
ficava mais evidente que ela iria ter um filho. A mãe que o homem morto tinha usado e eles a repreende-
dela, uma pessoa idosa, reparou e perguntou à filha ram e perguntaram por que ela havia pego o anel. A
com que homem ela se havia deitado, entretanto a criança disse que fora o homem que lhe dissera para
moça não respondia. Ao mesmo tempo, o homem fi- tomá-lo, porque ele era realmente seu pai e, depois
cou doente e a mulher velha foi até ele e lhe pergun- disso, mais ninguém disse uma palavra a respeito.
tou se ele se sentia mal. Ele respondeu: "Oh, Mãe, Depois de algum tempo, o pai de dentro do caixão
preciso lhe dizer que vou morrer." A mãe disse: "Mor- chamou a menina, e lhe disse que tinha chegado o
rer! O que isso quer dizer?" Pois aquelas pessoas que momento de ela se casar, e que deveria levantar-se
viviam no céu não sabiam o que significava morrer; bem cedo na manhã seguinte e dirigir-se a um lugar
até então, nenhuma Ongwe tinha morrido. O homem muito distante, que ele lhe indicaria, no qual ela iria
prosseguiu: "Quando eu morrer, acontecerão as se- encontrar um chefe de boa reputação cujo nome era
guintes coisas: a vida deixará o meu corpo, que se Hoohwengdschiawoogi, o que significa "Aquele que
tornará completamente frio. Oh, Mãe, depois você deve sustenta a terra", e esse era o homem com quem ela
fazer o seguinte: deve me tocar com as suas mãos dos deveria se casar.
dois lados do meu corpo, e deve me olhar fixamente Assim, a moça se aprontou e partiu no dia seguinte.
quando perceber que eu estou morrendo. Quando você [Vou pular os detalhes da viagem que o pai morto lhe
vir que a minha respiração está ficando mais fraca, deu}. Mas ela precisava atravessar um rio em que
saberá que eu estou morrendo, e então deve colocar havia um dragão e esse dragão era a Via Láctea. Ela

44 45
111·1•1·i:mva cruzar uma série de constelações perigosas doente e sente que está para morrer. Ele diz para a
como resistir aos ataques do dragão das tem-
11 11.<1 i111, esposa que agora está bastante seguro de que uma
fll'Slades e outros perigos. Finalmente, ela chega na menina Ongwe irá nascer e diz que ela deve alimen-
cabana desse chefe, ao lado da qual encontra-se uma tar e amamentar essa menina que crescerá e deverá
árvore Onodscha cujas flores emanam luz, a luz que ser chamada Gaengsdesok - "Doce Vento Rodopian-
vemos na terra e que também dava luz para as Ongwe. te". A esposa não entende o que ele lhe diz, mas de-
Ela entra na cabana, apóia a cesta no chão, e diz: pois de um tempo dá à luz uma m enina e, após dez
"Você e eu vamos nos casar". O chefe não dá resposta, dias, ela a leva embora. Lentamente os sofrimentos
mas estende um tapete no qual ela pode se acomodar do chefe pioram cada dia mais. Por isso, ele diz que a
e lhe diz que pode ficar ali a noite toda. Na manhã árvore Onodscha, a árvore de luz que fica ao lado de
seguinte, pede a ela que se levante e vá trabalhar, sua cabana, deve ser arrancada pelas raízes; então a
como era costume das mulheres. Ela deve cozinhar o terra [que é na realidade a cúpula do céu] ficará com
milho, mas, ao fazer isso, sente dores muito fortes por- um buraco e, ao lado desse buraco, ele deve ser colo-
que ele mandou que ela ficasse despida enquanto co- cado com a esposa sentada p erto dele. Assim é feito e,
zinhava, e seu corpo ficou queimado com a massa tão logo a mulher se senta perto do buraco com ele,
quente de milho que espirrava da gamela. Todavia, diz que eles devem olhar juntos para baixo e que ela
ela apertou os dentes e suportou a dor. Todas as ve- dev e pôr Gaengsdesok nas costas e embrulhá-la cui-
zes, depois de ela haver tolerado o sofrimento, ele cura dadosamente com roupas. Ele lhe dá um pouco de
seu corpo com óleo. Ficam juntos mais duas noites. comida e lhe pede que se sente ao lado dele com as
No quarto dia, o chefe lhe diz que ela pode voltar para pernas penduradas pelo buraco. Ele sugere que ela
casa; ele simplesmente a manda de volta e lhe pro- olhe para baixo e, enquanto ela está olhando, ele a
mete que lhe enviará o milho como recompensa pelo segura e a empurra para baixo pelo buraco. Assim que
que ela havia feito. ela começa a cair, o chefe se põe em pé e se sente muito
Assim, a mulher volta pelo caminho perigoso que melhor. Diz que agora é novamente o Velho, que se
havia cruzado na ida [novamente vou omitir alguns sente muito bem de novo, e que a árvore Onodscha
dos detalhes dessa parte da viagem], mas quando deve ser novamente erguida. Ele sentira ciúme da
regressa para os pais fica com saudades do marido e Autora Boreal e do Dragão de Fogo, com seu corpo
volta a ficar com ele. Ela faz a viagem três vezes. O branco - um dos dragões que ela havia transposto;
chefe fica muito surpreso em vê-la novamente, mas era por isso que ele adoecera, pois tinha pensado que
um dia percebe que ela está grávida. Dia após dia, talvez um deles fosse o pai da criança e, por causa de
noite após noite, ele pensa sobre isso e não consegue seu ciúme, ele a empurrara pelo buraco.
compreender como ela engravidou, pois ele nunca a A mulher que fora empurrada pelo buraco no céu
tocou fisicamente. Ele está estupefato. Ele acha que afunda pela escuridão sem-fim. Todas as coisas ao
aconteceu quando o hálito dos dois se fundiu enquan- seu redor são de cor azul escuro; ela não consegue ver
to conversavam. Mas é óbvio que ela dará à luz uma nada e não sabe o que lhe acontecerá à medida que
criança. O chefe fica transtornado e pergunta para uai afundando cada vez mais. Às vezes ela enxerga
ela quem pode tê-la engravidado, mas ela não enten- alguma coisa, mas não sabe o que é. É a superfície de
de. Então o chefe que "sustenta a terra" fica muito uma grande água com muitas aves aquáticas que nela
46 47
nadam. Uma dessas aves de repente solta um grito e mais ruins [i. e., os aspectos desagradáveis da cria-
diz que um ser humano, uma mulher, está saindo da ção. Como temos um outro capítulo reservado para o
água: ele está olhando para a água e vê a miragem. · motivo dos gêmeos, não quero entrar em detalhes so-
Uma outra, no entanto, relata que ela não está saindo bre o mesmo agora; iria atrapalhar].
da água mas descendo dos céus [Aqui vêm-se os dois
movimentos.] As aves fazem uma rápida conferência Segundo alguns comentaristas, a primeira gravidez
sobre o que podem fazer para salvar a mulher. Todas da primeira mulher Ongwe decorre do fato de ela haver
elas alçam vôo juntas e, quando alcançam a mulher, penteado o cabelo do marido e, provavelmente, pensa o
carregam-na às costas e lentamente descem com ela. comentarista, ter engolido algum piolho dele. Sabemos
Nesse ínterim, uma grande tartaruga chega à super- que entre alguns povos primitivos é um gesto amistoso
fície da água, e as aves depositam a mulher nas cos- pentear o cabelo de alguém, e há quem não só esmague os
tas largas desse animal. Então [e este é um motivo piolh,os entre as u nhas como efetivamente chegue a comê-
famoso e bastante recorrente em muitos mitos de cria- los. E um motivo mitológico famoso o de que uma gesta-
ção norte-americanos] algumas aves tentam mergu- ção sobrenatural possa ocorrer por meio de pulgas ou ou -
lhar para recolher terra e, no final, uma delas conse- tros insetos do gênero. O piolho, no simbolismo, normal-
gue trazer um tanto de volta. Elas espalham essa ter- mente tem o significado de um pensamento completamen-
ra nas costas da tartaruga e, quando fazem isso, a te autônomo, de algo que fica na cabeça, embora não se
terra fica lá, se espalha e se torna toda a superfície queira, e suga o sangue. É um símbolo maravilhoso para
terrestre de nosso mundo. idéias obsessivas: idéias que ficam na mente, subjugando
Nesse meio tempo, a mulher novamente engravida todos os outros pensamentos e, ao mesmo tempo, sugan-
porque [e isto é só assinalado de passagem, mas vocês do o sangue, sorvendo a energia psíquica.
devem guardar o detalhe em mente], durante a que- Fiquei muito impressionada ao constatar o quanto é
da, a criança tornou a entrar em seu útero. O nasci- vivo esse simbolismo do piolho quando visitei, na Améri-
mento que já tinha acontecido no céu se torna regres- ca, uma das grandes instituições perto de São Francisco,
sivo, por assim dizer; quando a mulher chega nas o Hospital Estadual de Napa Valley. Um dos médicos
costas da tartaruga da terra, ela fica novamente grá- apresentou-me uma senhora polonesa de origem muito
vida da menina e dá outra vez à luz o Doce Vento simples que, de acordo com o diagnóstico, era esquizofrê-
Rodopiante. Mãe e filha então ficam juntas e a meni- nica. Era de tipo muito comunicativo e vivia em estado
na cresce com notável velocidade. Mais uma vez, essa delirante, que ela parecia apreciar bastante. Trabalhava
menina encontra um homem desconhecido. O mesmo no hospital e não era infeliz em seu delírio. Quando o
tema se repete três vezes. De maneira misteriosa, ela médico lhe pediu que ela me contasse algumas de suas
engravida. Seu marido é um homem que parece ín - idéias acerca do sistema do mundo, ela despejou uma
dio: ele tem uma flecha e mais tarde é dito que ele é o imensa quantidade de material mitológico. Disse que ti-
espírito da grande tartaruga na terra. A menina en- nha visto Deus, qual a fisionomia dele, como o mundo ti-
tão dá à luz a um par de gêmeos; um, que é um tipo nha sido criado, e assim por diante. E então, no meio de
positivo de salvador, cria o mundo e a humanidade; uma longa história, ela disse que na lua viviam todos os
o outro, que é negativo, um ser diabólico, cria todas índios e loucos - os "lunáticos" - e que as pessoas que
as coisas destrutivas tais como os mosquitos e os ani- enlouqueciam eram aquelas que constantemente se es-

48 49
do cn tar os piolhos, aqueles que não esmagavam
q111 11· 111 111 O motivo do pai que adoece assim que a mãe engra-
wt p1oll10s de s uas cabeças! Aí é possível ver ainda o sim- v ida é repetido duas vezes. No primeiro caso, ele morre;
1101 11-1 mo original numa linda ilustração, pois quem não e·, no segundo, teria morrido se não houvesse empurrado
c·1·1t.icn ne m luta continuamente com as idéias obsessivas, 11 esposa para baixo, rumo à terra. O motivo do "primeiro
qu1• não catam os piolhos - e dizem "Mas o que é isso? ser que morre" também reaparece em algumas outras cos-
O que estou pensando? Isto é verdade?" - são os que vão rnogonias. Agora quero apenas apontá-lo: mais adiante,
para a lua, para o nível dos lunáticos e índios: regridem a discutiremos este aspecto em conexão com o motivo dos
um estado primitivo. Fiquei impressionada ao encontrar ~êmeos e com a idéia de que se uma coisa se torna real,
o simbolismo do piolho nesta forma moderna. alguma outra tem de desaparecer e passar pelo umbral,
Em muitas mitologias, as divindades ou demônios caindo do outro lado. Pode-se dizer que, no inconsciente,
da terra roubam seres humanos para pegar os piolhos Ludo é e não é. Quando se torna consciente, "é", e portan-
deles. Existe um famoso motivo na mitologia esquimó da Lo o aspecto "não é" também se torna manifesto. Pode-se,
deusa Sedna, que vive sob o mar e é responsável por cui- inclusive, dizer que, no inconsciente, tudo é tudo, dá-se
dar de todas as criaturas marinhas, as focas, baleias e uma completa contaminação dos conteúdos, mas assim
peixes. Entretanto, quando não há focas ou outras cria- que um conteúdo ultrapassa o limiar da consciência, tor-
turas para caçar, tem-se o sinal de que a cabeça de Sedna na-se definido e, n essa medida, se dest aca do contexto em
está cheia de piolhos e sujeira. Quando isso acontece, um que estava inserido; recua e morre, ou se torna o aspecto
xamã tem de mergulhar n.9 mar para encontrar Sedna, de sombra da coisa. O motivo da criação essencia lmente
que então vai estar de péssimo humor, e portanto muito vinculada com algo que está morrendo ou sendo destruí-
perigosa de ser abordada, pois tentará matar qualquer do reaparecerá em muitos outros contos. Quero primeira-
um que chegue perto dela. O xamã tem de se aproximar, mente apresentar um levantamento de diversas variações
pentear-lhe o cabelo, limpar sua cabeça e catar todos os do mesmo motivo, antes de nos dedicarmos mais de perto
piolhos; depois disso, ela o agradecerá efusivamente e. no- à interpretação do mesmo. Nesta história, pretendo ater-
vamente enviará animais para os esquimós caçarem. Isso me essencialmente ao motivo de cair, do alto para o fun-
deve ser feito periodicamente. Há um crescimento .e ons- do, e ao motivo da imagem refletida da mulher como se
tante de conteúdos autônomos no inconsciente, que po- estivesse saindo do fundo para o alto.
dem se tornar destrutivos se ó homem n ão cuidar deles Acerca do motivo da Ongwe, ou seja, que no céu ha-
devidamente. via antigamente todo o conjunto de imagens arquetípicas
Estou me delongando nos comentários sobre esse mo- das coisas que, mais tarde, começaram a existir na terra,
tivo porque é uma variação do motivo da criação que come- não há muito o que dizer. De um ponto de vistajunguiano,
ça com um evento completamente ácidental: a mulher pen-. é uma confirmação do que descobrimos partindo de um
teia o cabelo do marido e talvez tenha comido um piolho. ângulo completamente diferente, ou seja, dos arquétipos .
Isso é inclusive uma conjectura e não está contida no texto, Pode-se dizer que as Ongwe são as imagens arquetípicas
mas decorre de uma seqüência de eventos que, a mim, pare- no inconsciente coletivo. Em nosso pr imeiro mito de cria-
cem extremamente significativos: esses minúsculos inícios ção havia um motivo semelhante. Pai Corvo primeiro cria
apontam para a presença do fenômeno de um pensamento tudo no céu e depois desce voando pelo abismo adentro, e
autônomo que vem vindo de algum lugar do inconsciente e recria tudo da mesma maneira na terra: as coisas são to-
que futuramente terá enormes conseqüências. das criadas primeiramente no céu e uma réplica é criada,

50 51
cl 11 p 11i11, 11 11 l.111T11.Est e padrão não se limita aos aboríge- península do Labrador, assim como algumas tribos afri-
11 1111 11 0 1•1,o 11 111o ricanos ou do Alasca, mas pode ser identi- canas, contam que todas as espécies de animais têm um
f 11·11d o 0111 Lod n part e , e sugiro a leitura de uma coletânea animal médico-rei, que é responsável pela vida de todos
d 11111111H 11wLivos no trabalho de Eliade, O mito do eterno os demais. Digamos que entre os wapiti - há centenas e
, 1'1111' 11 1J. E le diz, na seção intitulada "Arquétipos celestes milhares deles na mata - existe um fantasma, ou super-
dn 1.(• rTiLórios, templos e cidades": wapiti, que você jamais deve matar, ferir ou aborrecer.
Não se pode de fato matá-lo, mas se você disparar contra
Segundo as crenças da Mesopotâmia, o Tigre tira seu esse super-wapiti, contra essa "idéia" wapiti, então todos
modelo da estrela Anunit, e o Eufrates da estrela da os outros desaparecerão da mata e não se poderá mais
Andorinha. Um texto sumério fala do "lugar da cria- achar nenhum. Esse é o responsável pelo fato de que ha-
ção dos deuses", em que "a [divindade] dos rebanhos via wapitis e é o único princípio por trás da multiplicida-
e grãos" pode ser encontrada. Para os povos dos mon- de dos outros wapitis. Portanto, o caçador que depara com
tes Urais, há da mesma maneira um protótipo ideal esse animal arquetípico deve mostrar o devido respeito e
no céu. No Egito, lugares e casas eram denominados nunca feri-lo ou disparar contra ele, ou matá-lo, porque
segundo os "campos" celestiais: primeiro os campos se fizer isso estará destruindo todas as suas chances de
celestiais eram conhecidos, depois eram identificados uma boa caçada. Essa é a mesma idéia que as cosmogonias
na geografia terrestre. apresentam, mas o animal arquetípico, aqui, este super-
Na cosmologia iraniana da tradição zarvanítica, wapiti, vive na terra em meio às outras criaturas, não
"todo fenômeno terrestre, quer abstrato, quer concre- distante, no céu. Nesse padrão, pode-se ver o que hoje
to, corresponde a um termo celestial, transcendental seria possível descrevermos como o inconsciente coletivo
e invisível, a uma "idéia" no sentido platônico. Cada e os processos psíquicos ainda completamente entrelaça-
coisa, cada noção, se apresenta sob um duplo aspec- dos na realidade externa, e a tal ponto que existem n a
to: o de menok e o de getik. Há um céu visível; por- mesma esfera.
tanto, também há um céu menok que é invisível ... " 11 No mito Ongwe, acontecem coisas de uma ordem mais
desenvolvida: a idéia da árvore arquetípica e do animal
Há centenas de outros exemplos similares, nos quais arquetípico etc., diz que essas criaturas não estão na ter-
se pode ver que essa idéia de tudo ter uma réplica, ou ra mas vivem em algum lugar além do Céu. Isto corres-
melhor, uma imagem modelo no céu, pode ser encontrada ponde a uma experiência que ocorre reiteradamente. Tro-
em muitas civilizações e, finalmente, mas não por último, pecei eu mesma com ela, numa experiência pessoal, há
na filosofia platônica, embora nesta tenha se tornado li- quatro anos, quando construí uma casinha de férias, um
geiramente abstrata. Crenças màis primitivas, de civili- chalé que terminou tendo um formato bastante simbóli-
zações que progrediram menos em uma tradição consciente co. Naturalmente, como construir é uma empreitada muito
coletiva, contêm o mesmo motivo, mas aí as imagens-mo- empolgante, fiquei completamente perdida na coisa e to-
delo não ficam no céu, e sim na terra. Por exemplo, os dos os dias me cobria de cimento e pó. Acompanhava cada
índios naskapi, uma tribo muito primitiva que vive na etapa da construção com grande prazer e, aparentemen-
te, de acordo com o inconsciente, deixei-me entusiasmar
u m pouco além das medidas, porque tive um sonho no
11 Eliade, The Myth of the Eternal Return, p. 6. qual havia uma réplica exata da casa que eu estava er-

52 53
guendo no Além, e que eu não devia ~e esquecer dis~o. mente - uma lata de lixo na qual conteúdos inaceitáveis
Fiquei muito impressionada com essa imagem e cont ei o da consciência e da experiência pessoal são reprimidos
sonho para Jung, que riu a plenos pulmões e disse: "Não é ou suprimidos, ao lado de a lguns resíduos arcaicos, em-
mesmo engraçado? Tive a mesma experiência!" Ele nunca bora estes sejam apenas vagamente definidos por Freud.
me dissera nada sobre isso até então, mas naquele dia fa- Mas se acontece alguma coisa no sonho, sempre se favo-
lou que, quando estava fazendo sua torre em Bollingen - rece a tendência de localizar sua origem em a lgum even-
que é muito simbólica, e ele havia iniciado a construção to externo concreto, seja um trauma de infância, seja uma
com o esquema de uma mandala -, também tivera um representação da consciência, ou algum outro evento ex-
sonho, em que no Além havia aquela mesma Bollingen, terno. Jung, no entanto, observando os seus pacientes,
numa réplica, e que teve a sensação de que não se deve chegou cada vez mais à conclusão de que o inconsciente
esquecer que, ao fazer algo criativo na realidade, isso n~o não é só um sistema de respostas, um sistema reativo que
passa de uma réplica, de um segundo modelo, de algo cuJa responde a situações externas, como pensamentos oure-
realidade estava no Além e permanecia lá. Isso foi há ape- presentações conscientes, mas pode, sozinho, e sem ser
nas quatro anos, mas desde então tive três outros sonhos movido por qualquer outra razão externa ou biográfica,
nos quais sonhei com uma casa do Além, que parece exata- produzir algo novo. Em outras palavras, é criativo na
mente a mesma; entretanto, possui uma espécie de atmos- acepção essencial desse termo. Isso quer dizer que, por
fera mágica. Toda vez que sonho com a casa do Além, um exemplo, você pode ter uma vida sem surpresas, em que
evento muito essencial e importante sempre acontece nela. tudo parece ir transcorrendo muito bem até que, de re-
Esse é um exemplo moderno; pode-se imaginar como essas pente, algo começa a borbulhar no seu inconsciente e você
crenças provavelmente se originaram porque se eu ~uises- passa a ter um sonho perturbador atrás do outro e, lenta-
se criar uma crença a partir dos meus sonhos, saberia ago- mente, chega à sensação de que algo está se agitando num
ra que minha casa é apenas uma réplica de uma casa nível subliminar, e você não sabe por quê. Esse movimen-
Ongwe no Além, que sentia a extrema necessidade de re- to vai devagar atingindo o plano da consciência, tanto
petir aqui na terra. De maneira completame:1te aut~~o- como u ma exigência interna de mudança quanto como
ma, essa idéia reapareceu, e é provável que tais expenen- uma ampliação da consciência ou um impulso criativo.
cias oníricas tenham também induzido os índiós a cons- Naturalmente, você ainda pode concluir que deve ter ha-
truir essa tradição. A casa do Além com a qual sonhei era vido a necessidade de alguma compensação. Não sabemos,
naturalmente eterna, uma casa que não poderia ser des- por exemplo, se os iroqueses, no momento em que seu mito
truída nem pelo fogo nem pela água, e onde se pode morar cosmogônico apareceu, não estavam passando por algu-
depois da morte. A casa deste plano irá sofrer naturalmente ma situ ação específica que exigia a compensação forneci-
o mesmo destino de todas as casas da terra. da por esse mito. Pode-se dizer que deve ter sido uma rea-
A criação é um evento repentino e autônomo que, de ção a algum acontecimento, entretanto não se pode espe-
uma perspectiva psicológica, poderíamos dizer que o~or- cificar qual. Devemos nos ater ao fato de que o mito apon-
re no inconsciente coletivo sem qualquer outro motivo. ta para o surgimento autônomo de algo no inconsciente,
Aqui podemos perceber, em forma mitológica projetada, sem qualquer outro motivo, apenas espontaneamente. Há
uma confirmação da hipótese ju nguiana de o inconscien- muitos mitos de criação nos quais acontece de, subita-
te ser dotado de uma criatividade a u tônoma. A visão mente, um deus se sentir solitário e querer uma parceira,
freudiana, o inconsciente é somente - dizendo nua e crua- ou de r epentinamente Pai Corvo acordar para a consciên-

54 , 55
eia ou de uma mulher engravidar em meio a seres arque- Céu Ongwe
' .
típicos, depois do que tem início uma longa cadeia de rea- buraco
ções do processo criativo. Pessoalmente, inclino-me a acre-
ditar que nem sempre precisamos ir em busca de razões
externas, mas que na realidade a psique humana incons-
ciente é capaz de criar do nada: o inconsciente é capaz de,
subifamente, produzir um novo impulso e não podemos
,.,r, mulher caindo
:
'
-
r
explicá-lo como reação a nada, exceto talvez ao tédio! tarta~ga
Quando tudo está calmo, talvez exista um ligeiro acúmu- cf2;;,------
lo, uma aglomeração de energia em algum ponto, que reflui
para o inconsciente e produz uma reação dessas. Mas con-
traria essa teoria o fato de que muitas vezes testemunhei
pessoas acossadas por um novo impulso criativo justamen-
te numa fase em que estavam extraordinariamente can-
lo\
r eflexo da mulher
sadas e ocupadas com questões de sua vida externa, e nem
um pouco entediadas, e que tiveram reações do tipo: "Oh, Um dos fatos mais interessantes dessa história é o
meu Deus, agora! Justo agora! Não quero fazer nada cria- pequeno detalhe das aves vendo o reflexo da mulher que
tivo agora! Não posso, tenho muitas outras coisas para cai; uma ave avisa que uma mulher está descendo do céu,
cuidar!" Portanto, a mim não parece que poupar energia enquanto outra, olhando para a superfície da água, diz
destinada ao mundo externo possa explicar esse fato: é que ela está vindo de baixo para cima. Eles a enxergam
mais como se realmente existisse um spiritus creator no em reflexo, como se ela viesse de cima e de baixo. O mo-
inconsciente que se manifesta dessa maneira, e mobiliza tivo da miragem não seria tão importante se não sou-
novas possibilidades. béssemos que, em alguns outros mitos de criação, esse
processo todo começa sob a terra e é um lento emergir até
Se analisarmos a '1geografia" desse mito i~oquês, te- a superfície.
mos primeiro o Céu onde a Ongwe vive com a árvore. Então O tipo de mito de criação em que todo o processo co-
o chefe faz um buraco nela e uma mulher despenca. Em- meça embaixo e lentamente vai subindo para um plano
baixo, há uma superfície de água, embora ninguém saiba superior, pode ser encontrado em um dos mais detalhados
como ela surgiu, e há aves aquáticas nadando por ali, que relatos que se conhece a respeito, no trabalho de Mary
também já existiam; estas parecem ser co-eternas com a Wheelwright intitulado The Navajo Creation Myth, que tem
Ongwe. Na superfície da água está' a tartaruga. A mulher por subtítulo "A história do que emergiu". Não vou entrar
assenta sobre ela e nas costas do animal o mundo lenta- em todos os detalhes, pois o texto é cheio de nomes indíge-
mente se expande; primeiro, as aves fisgam a terra e en- nas com definições muito difíceis. Trata-se de um mito ti-
tão o crescimento se inicia por si até que, aos poucos, picamente primitivo, muito complicado e sutil, com nume-
forma-se uma superfície de terra que nada no oceano ten- rosas figuras e nuanças, mas, para nossos objetivos mais
do a tartaruga como seu centro de apoio. A mulher se imediatos, estes aspectos dificultam o relato. Este começa
acomoda aí e dá à luz uma criança e, desse momento em com a história do que emergiu. Há mundos diferentes que
diante, os eventos terrestres continuam surgindo. emergem um do outro. O primeiro é o mais baixo.

56 57
A história começa no Lugar de Correr e Arremessar, quarto mundo que é coberto de água. Com a ajuda do
ou Jahdo-konth-Hashjeshjin. O filho do Fogo, cuja gafanhoto, as pessoas chegam e se instalam no quar-
mãe é um Cometa, e Etsay-Hasteen, o primeiro ho- to mundo. 12
mem, que é o filho da Noite e cujo pai é Nahdoklizh,
que é o azul em cima do lugar onde o Sol se põe, Na seqüência, têm início, por meio de um processo
estavam lá, e também Estsa-assun, a primeira mu- longo e complicado, a organização e as cerimônias tribais.
lher, e assim por diante. O nome dela tem a ver com Nos quadros de areia dos navajos, o centro da imagem_
a Aurora. O Deus-terra é Begochiddy; ele é o Deus o centro da mandala - é sempre o ponto que representa
realmente criador. É o grande Deus cuja mãe é um esse local da criação. Em todos quadros feitos com areia
Raio de Sol e cujo pai é a Luz do Dia. Este Deus- pelo curandeiro para curar doenças, o centro é o local de
terra "construiu uma montanha branca a leste e uma onde tudo emerge; é onde a criação ocorre e onde todos os
montanha azul ao sul", e assim por diante. Primeiro mundos acontecem em quatro etapas.
ele cria embaixo, sob a terra, uma espécie de cosmo
Entre os índios hopi existe um mito similar. 13 No tem-
que é cercado por quatro montanhas nas quatro di-
reções do horizonte. Também cria quatro tipos de po das origens, as pessoas viviam muito embaixo da ter-
ra. Tinham determinados motivos para virem à tona: es-
formigas e alguns insetos. Na montanha do leste,
ele planta bambu e outras coisas. Depois, decorrido tavam e~ nú1?ero excessivo, muito apertadas em pouco
algum tempo, quando o bambu estava crescido e alto, espaço, discutia~ demais. Por isso, alguns chefes pensa-
todos eles subiram em seus talos; e "Begochiddy pu- ram que era preciso fazer alguma coisa. Enviaram pássa-
xou o bambu até o segundo mundo e Hashjeshjin ros para explorar e assim conseguiram descobrir u m mun-
soprou quatro vezes no buraco o que o fez se fechar e d~ superior. Subiram num pinheiro, em contraste com o
o primeiro mundo ardeu e ainda está ardendo". Esse
pe de_ bambu dos navajos e chegaram em outra camada.
primeiro mundo, criado perto do centro da terra, era Depois de algum tempo, estavam passando pelos mesmos
só um mundo temporário e todos os seus habitantes, ~puros _nesse segundo mundo: a situação, então, se torna
animais e deuses, subiram ao sair dele e o destruí- mtoleravel e eles têm de dar um outro passo. Isso conti-
ram depois. O mundo ígneo subterrâneo 'e xplica os nua até que atingem a superfície atual da terra.
vulcões que existem hoje. Provavelmente, esses mitos são influenciados uns
Depois, esses primeiros seres entraram no segundo pelos outros porque as tribos mantinham um certo inter-
mundo: "Begochiddy levou terra do primeiro mundo câmbio. No mito hopi, há um motivo secundário da descida
e criou as montanhas do leste, sul, oeste e norte, e que é importante: ao final do relato é dito que eles chega-
plantas semelhantes às do prlmeiro mundo, e plan- ram _no local do nascer do sol antes que as outras tribos
tou algodão branco a leste, algodão azul no· sul" e surgissem e que, tão logo o primeiro grupo de pessoas che-
assim por diante. [Novamente, vou pular um trecho gou à atual superfície da terra, numerosas estrelas caíram
do ceu.
, "Ah1." , d'isse o povo que estava emergindo naquele
longo porque estou seguindo só uma certa linha.]
Depois, sobem para o terceiro mundo, e lá, novamen-
te, seis deuses criam todas as coisas vivas. Em segui-
:: Mary C. Wheelwright, Navajo C~eation Myths (Santa Fé, 1942), p. 39.
da, entram no quarto mundo; lá, o gafanhoto surge da
Frank Waters, Book of the Hopi (Nova Iorque: Viking Press 1963)
crosta que cobria o terceiro mundo e entra naquele pp. 9ss. ' '

58 59
in :-i tantc, "alguém já está aí", e eles se instalaram onde se 111,rrn pção consciente em que o complexo do Eu age como
oncontravam. Aqui, o movimento principal é representa- 11111t. ro regulador. Assim que digo "eu sei", algo entrou no
do como um surgimento em etapas, mas no final, quando 1 11 111 po da minha consciência. Naturalmente, há fronteiras

u lcançam a superfície, as estrelas caem. Portanto, o con- 111clistintas onde sei e não sei. Às vezes, sei e às vezes não,
Lramovimento também é contido no mito, mas só como dnpendendo da intensidade com que algo entra no campo
motivo secundário, na imagem das estrelas cadentes. cl n ronsciência do Eu. Ocorre a mesma coisa com a percep-
l,'11o sensorial: se você estiver atento e ouvir uma nota muito
No mito navajo de criação, os deuses que estavam no 11~urla, e de repente pensar em alguma outra coisa, não
primeiro mundo, no início dessa criação, eram seres divi- ouvirá mais a nota ou se ouvir não se dará conta do que
nos cujos nomes se referem a todos fenômenos celestes: a 1•1-1!.á ouvindo. Se ligar o rádio no quarto num volume
luz amarela depois do pôr-do-sol, a luz azul, a aurora, to- 11111 i to suave, irá perceber a mesma coisa: haverá mo-
das as diferentes gradações de luz que podemos ver no 111 cn tos em que você vai escutar a música, mas se seus
céu. Portanto, apesar de estarem muito embaixo da ter- pe ns amentos passarem para algum outro tópico, talvez
ra, geograficamente falando, eram na realidade deuses 1H im perceba se o rádio estava liga do ou n ão. Assim,
celestes, e vocês podem agora também se lembrar que as ).(1iralmente existe no nosso campo de consciência um cen-
Ongwe dos iroqueses são ligadas a constelações. Assim, t ro no qual a luz da consciência do Eu está focalizada, e
os deuses criadores dos navajos também têm um certo re- nm torno dela há áreas de penumbra e outras completa-
lacionamento com aparições celestes, mesmo quando vêm mente inconscientes, nas quais pode-se dizer que o que
de baixo. No mito hopi, a emergência é descrita como a se encontra ali é inconsciente, uma vez que não entra no
subida dos chefes e seres humanos, ao passo que as estre- campo da consciência.
las caem na terra, e portanto, novamente, ocorre uma li-
gação secreta com constelações celestes e, de maneira ex- No início, tentei ilustrar a idéia de que o que gosta-
traordinária, o que está acima está embaixo; todavia, isso mos de achar que "está na realidade" é o conteúdo de nos-
é dizer as coisas de modo enfático demais: há alusões, como sa consciência. A realidade além do conteúdo da consciên-
se o que está embaixo tivesse ligação com o que está em cia é e continua sendo algo indescritível, algo a cujo r es-
cima e vice-versa. peito não podemos falar nada. Portanto, podemos dizer
que a superfície do mundo real coincide com o que cha-
A superfície da terra que é alcançada, ou criada, é o maríamos de campo da consciência, de consciência vigil,
resultado final de um longo processo de queda ou emer- e este só é criado lentamente, através de todos os event os
gência; é o que, em linguagem psicológica, nós chamaría- pré-conscientes que são representados por movimentos de
mos de campo da consciência. Jung representa a consciên- queda e ascensão.
cia humana como algo semelhante à um campo, um campo
magnético, por assim dizer. Assim que um conteudo in- Já na filosofia grega e novamente no gnosticismo e
gressa no campo da consciência, cai numa rede de associa- na tradição medieval, a psique humana tem sido situada
ções. Se eu sei alguma coisa, então ela está associada ao numa posição intermediária entre opostos. Por exemplo,
complexo do Eu, e por meio deste está conectada a todos os a psique era considerada como um fenômeno intermediá-
outros conteúdos conscientes momentâneos da minha cons- rio entre o espírito e o corpo, entre o céu e a terra. Jung
ciência. Portanto, se desejamos imaginar a consciência usou esse esquema para ilustrar o papel tja consciência e
dentro de um esquema, podemos dizer que é um campo de o papel da psique em seu artigo intitulado "Sobre a natu-

60 61
reza da psique". 14 Devo enfatizar aqui que concordamos vermelho, é o ponto em que os fenômenos psíquicos lenta-
com a asserção de que a psique é um fator inteiramente mente se tornam fenômenos físicos. Nesse pólo, também
desconhecido que, tal como no caso da matéria, só pode- se dá o fenômeno do instinto, que parece estar intimamen-
mos descrever como uma substância, sem qualquer deci- Lc ligado à nossa estrutura corporal como animais. Temos
são acerca do que seja. Jung diz que poderíamos equipa- reações instintivas que, em grande extensão, se manifes-
rar O fenômeno psíquico num ser humano ao espectro de tam como reações físicas imediatas. Se, por exemplo, eu
luz que contém todas as cores do arco-íris. Por um lado, fa ço um movimento como se fosse golpeá-lo, você recua sem
vemos que o fenômeno psíquico se dissolve lentamente nem pensar; seu corpo reage instintivamente no ato. Com
nos processos físicos, no corpo e em seus processos mate- Jung, definimos instinto como uma disposição inata para
riais. A medicina psicossomática está atualmente con- reações físicas típicas. Essas reações instintivas a huma-
centrando todas as suas investigações nessa misteriosa nidade tem em comum com todo reino animal, pois os ani-
interface. Cada vez sabemos mais que existe alguma li- mais também têm estruturas instintivas que, em situações
gação e que há interações entre os processos físicos e específicas, sempre reagem da mesma maneira a estímu-
psíquicos, que uma reação psíquica pode influir numa los externos. Mas nós podemos reagir instintivamente, sem
reação física, e vice-versa. Isto não exige nenhum conhe- a participação de qualquer processo psíquico consciente.
cimento médico profundo, pois, se você beber uma certa Se um carro avança na sua direção, você dá um salto para
quantidade de álcool, logo perceberá que ele influi em se afastar e só no instante seguinte é que vai entender o
sua condição psíquica, embora seja muito evidente que que aconteceu e por que agiu daquele modo. Naturalmen-
a sua psique foi influenciada por um agente material. Mas te, você pode ter a sens·ação de perceber de forma clara o
também se dá o fato oposto, que algumas pessoas negam que está se passando, mas isso não é absolutamente ne-
mas que é igualmente óbvio. Se você receber uma carta cessário: você pode reagir fisicamente através do corpo ou
dizendo que seu melhor amigo morreu, você pode desmaiar através do inconsciente.
ou ficar muito pálido, porque suas artérias se contraem No pólo oposto, Jung situa o mundo dos arquétipos
com O choque. Não é a carta, mas o conteúdo dela que o que, em si, é t ã o misterioso e desconhecido quanto a quí-
afetou fisicamente; é o que a carta transmite que desen- mica do corpo em sua configuração mais essencial. Quan-
cadeou a reação física: não foi a tinta no papel que o fez do ele situa os arquétipos nessa extremidade, está se re-
desmaiar, e sim o significado da mensagem. ferindo aos mesmos como fator psicóide. 15 Jung atribui ao
Há, portanto, há uma interação, cujas leis e condi- arquétipo um aspecto psicóide, o que significa que há tra-
ções ainda não conhecemos por inteiro; todavia, no geral, ços que apontam para o fato de ele não ser "só" psíquico
podemos dizer que existe uma espécie de transição gra- no senso mais estrito do termo, mas que contém alguns
dual entre as condições físicas e psíquicas, em que ambas aspectos que transcendem o campo que denominamos de
as reações se transformam uma na outra. São necessárias psíquico. Por exemplo, quando o arquétipo aparece den-
muito mais pesquisas para que possamos afirmar como tro de um fenômeno sincrônico, então podemos concluir
essa ligação acontece. Naturalmente, isto é um símile. que sua natureza é psicóide. O arquétipo constelado num
Entretanto, o final da escala cromática, onde está o infra- fenômeno sincrônico tem o aspecto de ser capaz de apare-

16 Ibid., § 420.
1< e. G. Jung, Collected Works, vol. 8, §§ 343ss.

62 63
cc r como uma disposição dos fatos materiais externos. A ,,ormalmente alimenta quando est á apaixonada. A parte
na tureza psicóide dos arquétipos é um grande problema Huperior tem um rabo inferior, por assim dizer, no extre-
para nós, neste preciso momento. rno físico. Quanto mais nos aproximamos da parte inferior
romo u ma função, seu extremo infravermelho, mais en-
O fato desnorteante é que existe a forte suspeita de
tramos no campo em que as variações e uma certa liber-
que aqueles dois pólos realmente têm uma ligação secre-
dade de ação - i. e., a capacidade de parar n9 meio de
ta, que aquilo que polarizamos em dois aspectos nos limi-
uma r eação - não podem mais ser percebidas. E por esse
tes da psique são, na realidade, somente dois aspectos de
motivo que na esfera instintiva temos aquilo que os zoó-
um fenômeno vivo e unificado - um X que não podemos
logos chamam de reação "t udo ou nada". Na zoologia, é
definir e que devemos, por exemplo, chamar de mistério
bem sabido que, se um animal começa uma atividade ins-
vivo do ser humano. Mas se observarmos cuidadosamen-
Lintiva , freqüentemente ela n ã o pode ser interrompida no
te os fenômenos psíquicos, veremos que existe uma certa
meio; é como um mecanismo que, t ã o logo iniciado, t em
polarização. Digamos que um monge medieval tem uma
de ser percorrido do começo ao fim, e que é o que se ch a -
visão da Virgem Maria e entra em êxtase por causa disso,
ma de reação "t udo ou nada". Se, de fora, você interrompe
e que depois escreve um artigo sobre mariologia e o signi-
um animal "ativado" por uma reação dess as , en tão acon-
ficado da Mãe de Deus. Então, ele estará experimentan-
tecem as ditas reações deslocadas, pois de alguma manei-
do o arquétipo da mãe em seu pólo espiritual, como um
ra a energia acumulada t em de ser descarregada. Se você
arquétipo que transmite uma experiência emocional e
par ar, digamos, dois animais que estã o no meio de uma
espiritual e dá um certo significado à sua vida. Se o mes-
luta - antes que uma decisão natural tenha sido alcan-
mo monge encontra uma mulher gorda, maternal, e cai
çada, com a vitória ou a derrota de um ou de outro - o
no colo dela e fica ali sentado o resto da vida, então está
animal ou comerá furiosamente ou arranhará violenta-
experimentando o arquétipo da mãe em seu pólo instinti-
mente ou fará qualquer coisa para expressar uma rea-
vo. Nesse sentido, ele é basicamente um instinto; pode-
ção deslocada. Ocorre o mesmo se você interromper o
mos dizer que ele caiu no padrão instintivo mãe-filho.
aca salamento ou uma refeição : é como um processo me-
Recorri a casos extremos para ilustrar que existe um cer-
cânico posto em funcionamento, que se for int errompi-
to contraste, milenar, que tem sido descrito :r;i.a filosofia
do, tem de ah-reagir de alguma outra forma. Isso quer
como a oposição entre espírito e corpo, entre espírito e
pulsão instintiva. dizer que o animal tem mais ou menos de seguir com o
processo até o fim, mesmo que no meio par eça ter per-
Em seu ensaio, Jung retoma de novo o antigo concei- dido o sentido.
to de Pierre Janet, o de aspecto inferior e aspecto superior Konrad Lorenz certa vez deu um exemplo maravi-
de uma função psíquica, o que deixa implícito que todas lhoso de duas aves macho, que queriam lutar, mas as duas
as nossas funções psicológicas têm, por assim dizer, o ex- sentiam tanto medo quanto desejo de agredir. As duas es-
tremo infravermelho, que é o aspecto inferior da função, tavam sendo impelidas à luta pela agressão, mas as duas
e que culmina nos processos somáticos, e também o ex- eram igualmente grandes e por isso não podiam lutar,
tremo superior, que mais ou menos entra no campo da porque cada uma temia igualmente a outra. Se são abso-
consciência. Tomemos, como exemplo, uma reação como o lutamente iguais , então existe o bloqueio da reação, pois
amor: o extremo inferior seriam os impulsos sexuais físi- há um equilíbrio completo que nenhum dos adversários
cos e o superior, os sentimentos e fantasias que a pessoa consegue romper. Sabe o que as aves fizeram? Entreolha-

64 65
e enfiaram a cabeça embaixo das res-
1 11 11 1 1111 l l111 1111 n 11Lc uma decisão por livre e espontânea vontade, mesmo que
p 111 l lv11 ~ 11t11111 o dormiram! Houve um tipo de suspense depois algum filósofo lhe diga que sua reação tinha sido
11 111111 1111 d1111 :;; todavia elas não chegaram a nenhuma de- condicionada por alguma outra coisa.
1•111n o N 11111 cnso assim, instala-se uma reação deslocada.
Jung diz que não encontrou um só arquétipo sem um
1'111•1.11 111.o, se você começa de fora, ou se existe um equilí-
instinto correspondente. Isso serviria para confirmar a
l)l'l o (' 11 Lrc dois instintos, a coisa não pode seguir em frente suspeita de uma conexão secreta entre ambos. Se você
porq uc há duas reações igualmente fortes, e isso resulta vai na direção do extremo espiritual, tem imagens arque-
numa reação deslocada. Alguma coisa precisa acontecer típicas, experimenta o significado emocional dessas ima-
e então entra em cena, subitamente, um terceiro padrão gens e se torna mais rico por causa dessas representa-
instintivo. De modo que os dois inimigos dormiram, um ções internas; se você se movimenta na direção do outro
de frente para o outro. extremo, então você se move no sentido de agir, de ence-
Antigamente, nas pesquisas sobre comportamento tar uma atividade instintiva, de executar uma certa ação
animal, pensava-se que quanto mais para baixo se cami- no plano da realidade física. O caso não é necessariamen-
nhasse na escala da vida animal, mais se verificariam te tão extremo, pois em geral a consciência humana muda
condutas completamente mecânicas, reações "tudo ou de nível. Poderíamos comparar o Eu humano a um raio de
nada". Mas, pesquisas mais recentes com insetos demons- luz que se move ao longo de uma escala, às vezes aproxi-
traram que, mesmo no nível das vespas e formigas, já mando-se mais de um extremo, às vezes mais de outro, e
existem, além das reações "tudo ou nada", uma certa quan- às vezes ainda permanecendo mais no meio do espectro.
tidade de variações livres. Com base nos estudos sobre Para usar um exemplo ·que mencionei antes: quando eu
instinto animal, até onde eu sei, a idéia de que animais estava construindo minha casa, o impulso para a cons-
inferiores são como máquinas, como motores que simples- trução veio da idéia arquetípica que eu tinha na cabeça,
mente ligam no padrão instintivo e seguem funcionando, mas durante a atividade da construção entrei fundo de-
mais na camada oposta e me tornei absolutamente como
e que quanto mais subimos pela escala mais há variedade
o animal construindo seu ninho, perdida na "loucura" da
de condutas, parece que não é verdadeira, pois os primór-
construção, e depois tive um sonho corretivo, que serviu
dios de uma certa liberdade já existem num ní'vel muito para me lembrar do outro extremo, da casa eterna no
elementar. Mas, comparado com reações humanas, pode- Além. Com a minha consciência do Eu, eu tinha me movi-
mos dizer que todas as reações animais são relativamen- do excessivamente na direção do pólo instintivo da escala
te reações "tudo ou nada", e que somente por causa de um e, por razões que me eram desconhecidas, não me era per-
acentuado aumento na força de vontade do complexo do mitido agir assim. Por que isso não tem autorização para
Eu é que os humanos podem assumir uma certa dose de ser ninguém sabe, pois tenho visto muitas pessoas felizes
liberdade em suas reações. Neste contexto, liberdade sig- em sua dedicação a essas atividades físicas, esquecidas
nifica um fenômeno subjetivo ou uma experiência em que do outro extremo, sem que tenham quaisquer sonhos para
a pessoa se sente livre para decidir. Filosoficamente, nun- admoestá-las. Ora, o fator regulador que força uma cria-
ca se pode comprovar uma reação livre, e também não se tura a permanecer mais neste extremo ou ir mais até o
pode provar o contrário, mas subjetivamente a pessoa outro é algo que pertence aos mistérios do processo de
sente que gostaria de comer aquele bife, todavia, não o individuação. A pessoa tem uma certa estrutura para rea-
fará por este ou aquele motivo. A pessoa sente que tomou lizar e talvez não transcenda a lei interna.
66 67
Em nosso mito iroquês, a tartaruga vem de baixo:
ext remo extremo
infravermelho para a mitologia dos iroqueses, a tartaruga é o espírito
ultr avioleta
físico
da terra; a tartaruga carrega a terra. Ela tem o mesmo
experiências
corpo psicóides papel na mitologia hindu. O fato de existirem animais e
imagens (1gua embaixo, e constelações estelares e seres humanos
reações
mecânicas arque típicas cm cima, corresponde muito bem a esses dois pólos dos
instintivas fenômenos psíquicos.
É importante saber a diferença qualitativa entre uma
fenômeno vivo criação que começa em baixo e uma que principia em cima.
homem como psique, corpo e espírito Se, nos sonhos, você encontra um motivo de criação que
vem de baixo, tem de esperar uma coisa diferente do que se
n criação fosse descrita como vinda de cima. Lembro do
Se vocês se lembrarem desse esboço da psique, en- son ho de um homem: uma nave sideral pousou e uma lin-
tenderão melhor por quê, de acordo com os mitos de cria- da mulher sa iu de dentro dela e queria induzi-lo a fazer
ção, a realidade humana - ou seja, a realidade da cons- certas coisas. Essa seria uma ver são moderna do tema~
ciência humana - é descrita, nesses mitos de criação, ancestral de uma Ongwe que desceu para ele. Os sonhos
como um fenômeno intermediário, que se desenrola entre modernos costumam usar naves estelares com esse pro-
dois pólos. Evidentemente, os arquétipos psicóides cor- pósito. Nesse caso, você pode esperar com relativa certe-
respondem às Ongwe, do nosso primeiro mito. São as ima- za (eu pelo menos ainda não deparei com exceções) que,
gens eternas, as constelações eternas, e caem na terra quando essa experiência pousar na consciência (quando o
humana. No mito de emergência, essas imagens vêm do homem teve esse sonho não estava acontecendo muita coi-
extremo oposto. Se quisermos saber a diferença entre os sa em sua vida consciente), ela tomará a forma de uma
dois extremos, temos de amplificar mitologicamente, o que idéia carregada de emoção, algo que será descrito como
significa qualitativamente, a diferença que há entre am- u ma iluminação repentina, um súbito despertar, uma
bos. Vocês também enxergaram a identidade se~reta de n ova percepção na consciência, e assim por diante. Assu-
ambos, porque no centro dos deuses terrestres realmente mirá basicamente o que poderíamos chamar de uma for-
há deuses celestes, portadores de um estranho componen- m a mental emocional. Por outro lado, se um processo cria-
te terrestre. Assim, de certa maneira, de um lado há os t ivo é descrito num sonho como algo que vem vindo de
deuses semimateriais, enquanto os outros são realmente baixo , então facilmente pode acontecer de a primeira ater-
mais espirituais. Aqui podemos ver a união dos opostos, rissagem na consciência ser algo que o sonhador execute
ou a relativa intermutabilidade dos extremos, que sabe- n o plano da realidade, uma ação cujo significado simbóli-
mos ser um processo típico dos fenômenos psíquicos; as- co ele só compreenderá depois do evento. Ele será repen-
sim que um fenômeno psíquico toca um extremo, ele co- tinamente induzido a comprar um barco e sair remando,
meça de modo sub-reptício, e depois mais intensamente, ou construir uma casa, ou sentirá uma necessidade im-
a manifestar sua qualidade oposta. Dessa forma, fala- periosa de se comportar de determinada maneira, e en-
mos do fenômeno da enantiodromia, segundo o qual uma tão, talvez muito mais tarde ainda, quando já tiver rea-
coisa cai na oposta. lizado a atividade até o fim, sinta interesse em cogitar e

68 69
c8pccular sobre o significado simbólico. Mas a primeira ('IP ntista, transferir sua visão para o papel, de uma manei-
a titude a ser imediatamente tomada ocorrerá no plano 111 que consiga apresentá-la para os colegas como uma nova
da realidade física. l(•oria, é uma conquista notável. Também é por esse moti-
A criação que desce do alto tem origem nas imagens vo que existem tantos "prováveis" gênios nesta terra. Es-
arquetípicas que, então, descem e entram no território lPH são, principalmente, indivíduos que de fato tiveram al-
das realizações. Em termos psicológicos, aplicando-se isto 1-1 umas intuições criativas mas que são preguiçosos demais
ao processo criativo, seria o mesmo que se um artista ti- pH ra enfrentar as grandes dificuldades e labutas ineren-
vesse uma intuição arquetípica, uma idéia intuitiva, mas 1.<•s a trazer para o plano da terra tais visões.
claro que isso não significa que ela tenha sido realizada. Por assim dizer, essa é uma criação que vem de cima.
Qualquer pessoa que tenha tentado pintar terá passado S ignifica a realização de idéias arquetípicas que s e origi-
pelo que chamo de desapontamento criativo. Em seu ínti- 11 am no inconsciente e então vêm à luz no plano da reali-
mo, a pessoa tem a imagem perfeita de alguma coisa e,
da de, através da consciência. Esse é um tipo descida, pois,
portanto, pega o pincel ou o lápis, sentindo um grande
vis ta pela perspectiva sensível, é como um escurecimento,
entusiasmo. O que ela acaba produzindo no papel é uma
uma deterioração da visão interna original.
cópia muito triste, imperfeita e canhestra, extremamen-
te decepcionante, quando é comparada com a imagem in- Quando a criação é vista vinda de baixo, pode-se di-
terna que ela inicialmente tentara recriar. De acordo com :r.er que a criatividade fica situada no corpo. Essas pes-
minha experiência, fico inteiramente preocupada com essas soas sofrem de sintomas psicossomáticos que afetam prin-
imagens internas e parece que até consigo enxergá-las no cipalmente as funções controladas pelo sistema nervoso
papel à minha frente. É só na manhã seguinte, quando simpático, por exemplo, a área abdominal: elas sofrem de
olho sobriamente para o que fiz que enxergo a realidade e dor de estômago, cólicas estomacais, e coisas do gênero.
então tenho a impressão de estar vendo, em vez do ideal, Essas pessoas acham útil quando alguém as incentiva a
um rabisco deveras patético. A coisa só assume essa for- trabalha r com o corpo sem n enhuma intenção con sciente;
ma extrema, é claro, para a pessoa que não é-artista. Mas por exemplo, uma atividade com argila, lápis ou pincel
muitos artistas com quem conversei me asseguraram que que se deixa deslizar por um papel, ou simplesmente
o que criaram na tela, quando comparado com a imagem m ovimentos rítmicos, como os que as crianças fazem. Pode-
interior, nunca é satisfatório e, portanto, sempre dá en- se também sugerir que façam os movimentos que os im-
sejo a um novo tipo de desapontamento. Uma verdadeira pulsos as impelem a realizar.
descida do alto para um plano mais abaixo é sempre algo
acompanhado pela decepção. Pode-se facilmente enten- Todos os impulsos criativos originam-se no incons-
der isso pois, no mundo dos arquétipos, a pessoa está ciente, e faz uma diferença mais qualitativa eles virem
inflacionada como se estivesse lidando com os deuses. de cima ou de baixo. Se um impulso vem de cima, a pes-
Entretanto, essa inflação é necessária porque não é pos- soa tem a vivência de uma idéia ou inspiração, e na sua
sível sermos criativos sem um certo teor de entusiasmo. mente aparece uma imagem ou idéia. Então o que as con-
Precisamos dessa intensidade e desse ímpeto, e isto, cer- fronta é a questão da realização. Se ele vem de baixo, é
tamente, vem de Deus. A dificuldade está na realização como um chamado das profundezas do corpo, or iundo do
da tarefa. Isso também se evidencia na história da ciên- desconhecido, que muitas vezes se faz acompanhar por
cia, quando se lidam com as grandes descobertas. Para o sintomas psicossomáticos.

70 71
É importante identificar a diferença qualitativa en- seres humanos. 16 Bom, temos aqui uma indicação inte-
tre as duas formas de criação. Por exemplo, se seu pa- ressante. O Deus mais elevado - Mennebosh - tenta
ciente tem sonhos que vêm de baixo, você deve chamar a transmitir algo para o ser humano, mas não consegue pois
atenção para o fato de que, caso alguma necessidade ins- existe um bloqueio. O mito não explica qual é, se as pes-
tintiva repentina surja e o mobilize para fazer alguma soas são muito ignorantes, ou o quê; por isso ele ensina
coisa, ele não a reprima e nem, por exemplo, se recolha um instinto, um animal, porque não consegue fazê-lo do
numa reflexão introvertida dizendo para si mesmo que outro jeito e então o animal toma parte, naturalmente.
não é nada mais que uma coisa simbólica, que ele sabe o Portanto, a razão pela qual às vezes o novo conhecimento
que ela significa e não precisa colocá-la em prática. Às vem por uma porta talvez seja pelo fato de a outra se en-
vezes, tendo em vista a criatividade, é absolutamente contrar obstruída. A obstrução da entrada pelo espiritual
essencial primeiro fazer algo no plano físico e só depois ocorre principalmente devido a dogmatismos, de teor re-
entrar no significado simbólico. Se a pessoa pula esse es- ligioso, científico ou de alguma espécie de visão de mun-
tágio com uma introjeção precoce, dizendo que sabe o que do [weltanschauliche]. Estou me referindo a dogmatismo
aquilo que dizer, que é só simbolicamente isto ou aquilo, no seu sentido negativo, ou seja, quando o sujeito está~
ela perde todo o impacto emocional do novo conteúdo e dogmaticamente certo de que algo quer dizer exatamente
não conseguirá realmente introduzi-lo na consciência. isto ou aquilo, · sem a menor possibilidade de discussão a
Portanto, se existem motivos de criação vindo de baixo, respeito. Assim que a consciência humana adota uma for-
não se deve reprimir a necessidade premente, física ou ma absolutamente dogmática de convicção contra o mis-
irracional, de executar algo, a menos, claro, que seja mui- tério do mundo circundante e da psique, então natural-
to perigoso ou dispendioso. Há, naturalmente, limitações mente um dos pólos do eixo bipolar fica bloqueado. Em
razoáveis. Mas com as experiências que vêm de cima é tais circunstâncias, tenho muitas vezes constatado que
preciso, ao contrário, advertir o analisando a eventual- um arquétipo que quer ser observado tem de se manifes-
mente não se deixar arrastar demais pela inflação de que tar pela lontra. Dessa forma, a constelação arquetípica pode
agora teve uma grande iluminação que deve contar para o causar sintomas físicos pois não existe abertura mental
mundo todo etc., e que deve se manter aberto a quaisquer suficiente para dizer: "Sim! Por que não?" É preciso que
novas percepções repentinas que lhe ocorram, vindas de haja uma certa elasticidade mental para se receber uma
cima, e raiem - maravilhosa palavra! - sobre ele. revelação oriunda do inconsciente espiritual mas, se essa
O motivo pelo qual um novo conteúdo criativo oriundo via estiver obstruída pelo dogmatismo, e houver no segun-
do inconsciente entra às vezes por uma certa porta e ou- do plano uma forte constelação, então o arquétipo pode usar
tras, pela outra, não sabemos. Tenho só uma suspeita de a lontra de Mennebosh e afetar o corpo de uma outra ma-
qual possa ser esse motivo. Certa feita tomei conhecimento neira. Não é possível engolir, ou você acaba tendo algum
de um mito indígena norte-americano em que o grande outro sintoma desagradável. Isso quer dizer que seu cor-
Deus queria ensinar ao seu povo um conhecimento de · po, seu animal, começa a tentar transmitir o significado.
medicina secreta, mas não conseguia que eles o ouvissem, Estou falando agora de reações anormais; por exem-
não conseguia transmitir-lhes seu conhecimento secreto; plo, a obsessão de se lavar quarenta vezes por dia ou coi-
por isso, eJ.e ensina a lontra e lhe dá o segredo do saco
medicinal e todos os outros segredos do ritual de medici-
na e os medicamentos, e então é a lontra que ensina os 16
Indianermi:irchen aus Nordamerika, p. 76.

72 73
sa assim. Evidentemente, as pessoas que têm essa obses- Quero abordar um motivo que aparece na história
são deveriam lavar, não a sujeira das mãos, mas a sombra dos iroqueses, onde uma mulher é a figura principal do
em sua psique. Em geral, existe muito evidente a necessi- processo criativo, ou melhor, algumas mulheres. O mito
dade premente de remover a sujeira pela água. Tive um começa com uma mulher que engravida no céu; então
paciente, um introvertido, homem de pouca vontade, que uma outra moça engravida e cai. Novamente nasce uma
se deixava arrastar pela extroversão da esposa e pelo am- menina; e só então é que se torna um processo masculi-
biente extrovertido que ela criava, e então ele desen- no de criação, pois somente na terceira geração é que a
volveu a idéia obsessiva de que toda vez que queria sair mulher dá a luz a gêmeos, os quais se tornam o Criador
ele tinha de acompanhar com o dedo o desenho dos sapa- e o Anticriador, os poderes positivo e negativo da cria-
tos . Sentava-se para colocar os sapatos e passava o dedo ção. Todavia, existe uma longa série de figuras femini-
pela borda dos calçados. Isso indicava claramente que ele nas antes que haja uma masculina. Também é incomum,
precisava afirmar sua posição. Ele deveria dizer: "Essa é a se compararmos com os mitos de criação da nossa civili:.
minha posição, e a sua é esta", e expressar a sua, que era zação, o fato de que a figura que desce do céu é feminina
diferente. Era precisamente isso que ele nunca conseguia e não masculina.
fazer, mas sendo do tipo sensação intuitivo, ele se deixava Se examinarmos os muitos outros mitos de criação
arrastar por todas as situações e depois se lamentava amar- poderemos ver que os dois tipos existem, em diversas va-
gamente. A obsessão mostrava exatamente o que ele devia riações. Não podemos dizer que um tipo seja primário e o
ter feito, não fisicamente desenhando o contorno dos sapa- outro, um desvio. A questão mais proveitosa seria: "Há
tos, mas o plano físico, apresentando onde se situava. alguma diferença qualitativa e psicológi'ca entre esses dois
Às vezes, uma nova percepção, se for muito essencial tipos?" Será que podemos encontrar nessas civilizações
e importante, vem de dentro e de fora. Digamos que exis- outras indicações que expliquem ou esclareçam o fato de
te um jovem que ainda está na constelação bissexual ado- ser feminino o Deus Céu e masculino o Deus Terra (algo
lescente, mais para homossexual, mas que não t em expe- que nós sempre imaginamos do j eito inverso)?
riências concretas. Freqüentemente constatei que esse Um paralelo famoso (e podemos guardar uma relati-
jovem teria sonhos mostrando a anima vindo ~o seu en- va margem de segurança ao presumir que não houve in-
contro, numa experiência interior, com todas as espécies fluência do mito iroquês sobre esta) pode ser encontrado
de percepções internas da anima, ao passo que no plano na mitologia egípcia, em que a Deusa do Céu, a Grande
externo ele estava se apaixonando pela primeira vez. Deusa Mãe, Nut, representa toda a cúpula celeste. Ela
Nesse sentido, encontrava a anima nos dois extremos, na cobre a terra inteira, uma imensa vaca em cujo ventre
projeção sobre uma mulher externa, num encontro exter- todas as estrelas estão consteladas, uma figura feminina
no físico e, ao mesmo tempo, na primeira percepção interna monumental que se debruça sobre a terra. A t erra é Geb,
do princípio feminino. Isso não é verdade só para essa o deus masculino, seu consorte. 17
situação específica, pois muitas vezes observei que, se uma
É difícil explicar a questão de por que o represen-
nova percepção essencial é constelada, ela tende a vir de
tante da terra é, aqui, uma divindade masculina; talvez
fora e de dentro, e então acontece aquilo que a pessoa
chama de sincronicidade. Dessa maneira, uma nova per-
cepção de fatos internos coincide com o contato com no- 17 Manfred Lurkker,Gô'tter und Symbole der alten Aegypten (Berna:

vos fatores externos pela primeira vez. Scherz Verlag, 1974), pp. 37ss.

74 75
seja por que o que cost umamos considerar masculino, o llffi texto que oferece instruções práticas para se mumifi-
Deus do Céu, é uma divindade feminina. Penso que se car um corpo. O começo se perdeu, mas o fragmento que
analisarmos a civilização egípcia como um todo, uma de Lemos diz o seguinte: "Primeiro untar a cabeça duas ve-
suas mais notáveis características é algo que eu chama- ,.cs com um bom óleo [de uma planta específica] e depois
rei de concretude de suas idéias. Civilizações mais primi- 1lizer: 'Oh, Osiris [e aqui entra o nome do falecido] este
tivas, semiprimitivas e até mesmo altamente desenvolvi- <>leo chegou até você vindo de Punt para que seu odor pos-
das, com poucas exceções, acreditavam em alguma forma s a ser embelezado pelo odor da divindade; que parte do
de vida após a morte, mas só os egípcios se deram ao tra- 11 uxo do Deus Sol Ra possa chegar até você; que sua alma -
balho de garantir a imortalidade pela mumificação do ascenda ao reino divino. Horus vem para encontrá-lo por
corpo e pela construção de enormes câmaras funerárias meio deste óleo'". Depois, as orelhas e o nariz são untados
nas quais retratavam cada um dos passos da travessia do e assim se seguem as instruções, dizendo que as vísceras
mundo inferior pelo morto. A idéia da imortalidade do in- devem ser tiradas e colocadas em quatro canopos e, em
divíduo não só era concebida e ensinada de maneira reli- s eguida, nas ânforas de porcelana, e depois a parte de
giosa mas também era praticada na matéria. dentro da múmia devia ser untada com óleo. Enquanto
A maioria das civilizações sabe que um deus, mesmo isso está sendo feito, deve ser lido um texto (que hoje está
que more numa estátua ou num fetiche, tem de ser man- perdido). Depois, o cadáver deve ser virado de bruços e
tido vivo pela participação humana, seja por meio de san- ter as costas untadas, com cuidado para que não caia de
gue humano ou de sacrifícios animais, ou com preces diá_- volta dentro do caixão, pois a cabeça e o ventre estão cheios
rias. Mas nenhuma outra civilização foi tão longe quanto de ervas e óleo, e os deuses dentro do caixão não devem
a egípcia, que cuidava das estátuas de seus deuses em ser incomodados. Ao longo de todo o procedimento, o ros-
medida extraordinária. Pela manhã, há o despertar do rei, to do cadáver deve ficar virado para o leste. Sobre suas
as estátuas dos deuses são acordadas, banhadas e ungidas unhas deve ser colocado ouro, com as seguintes palavras:
e depois carregadas até o Nilo e lavadas e novamente "Oh, Osiris [e novamente o nome do morto deve ser pro-
untadas e devolvidas ao templo no qual colocam _alimen- nunciado], agora você está recebendo unhas de ouro e seus
tos aos pés delas, e assim por diante. A dimensão concre- · dedos agora são de metal e as unhas dos dedos dos pés
ta da idéia religiosa vai aqui muito mais longe do que em são de eletro. As emanações do Deus Sol Ra chegam até
qualquer outra civilização da qual eu tenha ouvido falar. você, verdadeiros membros divinos de Osiris. Agora você
Para dar-lhes uma noção de como era concreto o en- caminha com os próprios pés até a Casa da Eternidade e
sinamento egípcio, havia um texto, um fragmento de pa- ergue os braços para a Casa do Infinito. Com o ouro está
piro, que descreve o processo químico do embalsamamen- mais formoso, com o eletro encontra-se mais forte. Seus
to. Vocês sabem que, primeiro, os intestinos e o cérebro dedos se tornaram maleáveis na Casa de Ra e nas ofici-
eram removidos e depois o cadáver era colocado numa nas de ,Horus". O texto continua então sem mais qual-
solução de sal e sódio, na qual permanecia imerso por quer menção à múmia. Quando quer se referir ao cadá-
vários dias. Essa solução tinha uma qualidade de pre- ver, emprega a expressão "este deus". Diz: "Agora apli-
servação e, depois disso o cadáver era untado com certos que [este ou aquele ungüento] neste deus" etc. 18 A mumi-
óleos e embrulhado nas tiras de linho da múmia. Num pa-
piro que hoje se encontra no Cairo mas que vem de Tebas, 18 Günther Roeder, Urkunden zur Religion des alten Aegypten (Jena:

assim como em outros hoje exist entes no Louvre, temos Diederichs Verlag, 1923), p . 297.

76 77
111111;11 0 (, destinada a conferir ao falecido as qualidades l'oisas do Além, ou aos conteúdos do inconsciente. Por-
d11 111.nf'nidade e da divindade; é uma divinização e uma 1.nnto, de certa maneira, existe uma peculiar inversão dos
1111n1·l.11lização da personalidade, mas cada passo é execu- HPntimentos perante a vida: para nós esta vida, nossa
1.ndo de forma absolutamente concreta. É uma concreti- <•xistência física temporal, é a realidade, e o outro mundo
znçí'\.o notável de fenômenos que, em geral, em outras re- ,. algo relativamente real para algumas pessoas, mas com-
i igiõcs, são, ao contrário, considerados invisíveis e inte- pletamente irrea l para muitos racionalistas. Quando Jung,
grantes de um reino invisível.
viajou até o Egito, ficou chocado com esse fato e comentou
Há passos no sentido dessa concretização, mágica rnm um dos guias, que ainda levava turistas até a s t um-
por excelência, na maioria das religiões primitivas; en- lJ11s e que parecia um homem sábio, como era estranho
tretanto, eles nunca são executados a tal ponto. Se algum que os egípcios nunca se dessem ao trabalho de construir
dia vocês forem até o Vale dos Mortos, do outro lado de rnsas decentes que durassem, em contrapartida com o fato
Luxor, onde se localizam as tumbas de todos os reis egíp- d<· labutarem para preservar as tumbas pela eternidade
cios, e entrarem nessas câmaras, verão que ao longo de 11 fora. Numa típica reação oriental, ao m esmo tempo sá-
um número interminável de câmaras e passagens exis- bia e melancólica, o guia devolveu-lhe um sorriso e res-
tem imagens representando o que a alma do falecido pas- pondeu que numa das casas a pessoa vivia setent a anos
sa antes de se tornar Ba, uma estrela imortal no céu. Aí, n , na outra, a eternidade inteira; logo valia mais a pena
novamente, cada passo é executado completa e concreta- rn nstruir para a eternidade! Ele ainda preservava essa
mente no teto da câmara funerária. Nessas tumbas, vocês 111<~1:; ma atitude diante da vida. Segundo ela, esta vida era
verão o que chamamos de processo de individuação re- 11 pcnas um episódio sem importância; nossa vida presen-
presentado no teto das câmaras funerárias. Vocês po- 1<· e nossa existência material eram coisas im'perman entes
dem ler cada passo do processo, se souberem o suficien- 1, banais, se comparadas com as idéias e representações
te de simbolismo comparado. Acho que essa concretiza- 11 rquet ípicas que, para os egípcios, eram completa e con-
ção de coisas que hoje chamaríamos de idéias espirituais 1•rdamente reais.
ou religiosas tem a ver com o fato de que no Egito a terra
é masculina e o céu, que nós consideramos como o reino Os índios nort e-americanos , em particular os iroque-
espiritual, é mais feminino. 111,H, parecem-me mostrar uma propensão semelhante em
1nf'mos de sua atitude religiosa porque - embora não atin-
De maneira estranha, aquilo que consideramos como Hl lldo os extremos dos egípcios - têm a mesma tendência
a realidade material é ignorada ou tratada como transi- dn considerar a existência tempora l nesta t erra como algo
tória e insignificante pelos egípcios. Por exemplo, ape- 1·11lntivamente sem importância, acentuando a r ealidade
sar de todo dinheiro e trabalho investidos na construção 1•nncreta daquilo que, hoje, nós chamaríamos de conteú-
de templos e tumbas, eles nunca, ou quase nunca, cons- dm; espirituais. Por cons eguinte, o que estou tentando
truíam casas particulares de alguma durabilidade; sim- 11 11 l'ntizar é que se um conceito mitológico é qualificado
plesmente, viviam em tocas de barro que caíam aos peda- 1•01110 masculino ou feminino, como um ser celestial ou
ços em questão de vinte ou cinqüenta anos. A existência 111rrcstre, essas são qualificações psicológicas sem uma
terrena era tratada como mais imaterial, como algo a ser 11111 li dade absoluta, ou um significado em si; também elas
ignorado quase que por completo. Toda a ênfase era dada 11 no passam de qualificações simbólicas. Se uma coisa é
às coisas que chamaríamos de realidade espiritual, ou às dfl.11 ser terrestre, não deveríamos entendê-la dentro do
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preconceito do que chamamos de terrestre; simplesmen- ri ências religiosas, e onde possuímos uma realidade con-
te, temos de captar o sentido da palavra terrestre, ou seja, creta eles praticavam a realização concreta daquilo que
algo que aparece em forma relativamente concreta. nós hoje descrevemos como espiritual.
Ora, por que a Deusa do Céu, Nut, deveria ser uma Situado acima da Deusa Nut celestial, segundo a es-
entidade feminina no Egito? O que isso quer dizer do ponto trutura cósmica egípcia, existe ainda o Deus Sol Ra, que
de vista prático? Espero ter transmitido a vocês o que signi- passa de barco sobre as costas dela. Não deveríamos es-
fica o Deus espiritual ser um Deus da Terra. Já interpretei quecer que também em nosso mito iroquês há tantas Ongwe
o que Geb é, mas não o que Nut representa. Ao lerem os masculinas quanto femininas e que lá em cima também
textos religiosos egípcios, provavelmente vocês ficaram cho- está Onodscha, a árvore da luz que ilumina os mundos aci-
cados com sua tremenda expressividade poética e emocio- ma e abaixo. Portanto, além do princípio feminino, nova-
nal. A qualidade emocional é tecnicamente confirmada pela mente existe o princípio masculino. Essas estruturas de-
quantidade incomum de repetições. Ora, a necessidade de veriam ser entendidas como qualitativamente caracterís-
repetir a mesma sentença vinte ou trinta vezes apenas de- ticas daquilo que está mais perto e mais distante da con s-
monstra a intensidade da emoção. As pessoas emocional- ciência, embora não num sentido absoluto.
mente tomadas por uma história ou uma idéia r epetem-na
incessantemente e não conseguem parar de falar sobre ela Retomando o mito de criação esquimó, vocês hão de
ou de contá-la vezes e vezes seguidas. Acontece o mesmo lembrar que, no céu, Pai Corvo era um ser humano e que
quando a pessoa sofreu um choque - um acidente de carro, o único aspecto incomum apresentado por ele era uma
por exemplo; é preciso evitá-la senão ficaremos ouvindo ~ pequena protuberância em sua testa que, mais tarde, se
história do acidente vinte vezes ou mais, no mesmo dia. E tornou bico. Foi só quando ele decidiu descet pelo abismo
uma forma de abreagir um impacto emocional forte. que havia descoberto - abismo que corresponde ao bura-
co no céu no mito iroquês - que primeiro se dotou de
Tanto nos textos indígenas dos norte-americanos, asas feitas dos gravetos tirados de árvores e depois setor-
como nos textos egípcios, existe uma similaridade notá- nou um corvo. Essa é uma história muito vaga porque
vel a esse respeito, pois constata-se um acúmulo 'i ncomum mais tarde, na terra, ele não é um corvo mas um homem
de adjetivos elogiosos e de repetição emocional. Aqueles com máscara de corvo: num dado momento, quando ri ao
dentre vocês que já leram textos religiosos egípcios, ou descobrir que um ser humano se tornou realidade, ele
textos dos índios norte-americanos, sabem disso. Portan- arranca sua máscara de corvo e mostra sua face humana;
to, parece-me que aquilo que hoje nós chamamos de o rei-
então deixa a máscara novamente de lado. Isso mostra
no celestial das idéias platônicas, a esfera do logos, para
que mesmo depois de se haver tornado um corvo, ele ain-
esses povos era mais uma experiência emocional e sen-
da é secretamente um ser humano. Portanto, o corvo é
sível-sensorial. Isso quer dizer que se trata mais de uma
mais um disfarce ou concha, que o recobre por fora. Só o
questão de estabelecer um tom emocional, um clima de
pardal pode ir e vir entre os dois mundos, sem se transfor-
vinculação afetiva com esses conteúdos, algo que tem um
mar. No mito indígena de Mennebosh, que queria trans-
teor essencialmente feminino e que, para a psicologia
mitir uma certa sabedoria de cura para as tribos dos
masculina, pertence à anima.
algonquin,-não lhe foi possível ser ouvido, por isso ele teve
Assim, onde nós situamos o nosso céu espiritual os primeiro de ensinar a lontra e foi esta que, saindo da água,
egípcios tinham mais uma atmosfera emocional de expe- ensinou os seres humanos.

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O denominador comum dessas histórias mostra que pd,prio Mercúrio fazendo gracinha com você no meio da
às vezes o contato entre o Além e a esfera que chamamos 1witc! Sabemos que muitas descobertas matemáticas fo-
de realidade é uma coisa complicada, e que não é sempre 1·11 m feitas por meio de percepções repentinas. Henri
possível para determinados conteúdos passarem de nível l'oincaré narra várias dessas experiências, assim como
sem sofrer alterações: eles não podem ultrapassar deter- 1111 tros matemáticos que também as tiveram; logo, é muito
minados limiares sem submeter-se a mudanças. Isso cor- provável que no meu inconsciente eu tenha visto uma coisa
responde ao fato de às vezes você despertar pela manhã , <·ai, mas absolutamente nada transpôs o limiar.
ainda se lembrando de ter tido um sonho tremendamente
Essa dificuldade de limiar também tem a ver com o
numinoso, colorido, repleto de emoções, com muitas nuan-
l'H to de que nossa consciência está estruturada para po-
ças de significado, mas que, ao acender a luz e tentar
dur representar as coisas numa ordem espacial e tempo-
transpor para o papel, o que resulta é um fragmento hor- m i que não existe para os conteúdos que surgem no in-
rível, que não parece mais conseguir traduzir a riqueza ronsciente, onde parece que se encontram simultaneamen-
do que foi experimentado no sonho inconsciente, do qual te presentes. Adolf Guggenbühl-Craig realizou um expe-
ainda resta na boca um certo sabor que, porém, não é mais rimento interessante. Ele colocou um gravador ao lado
possível fazer aflorar. Você não consegue trazê-lo à tona. da cama, e sempre que tinha um sonho à noite ele falava
Talvez já tenha tido sonhos que ajudaram tremendamen- <' gravava, no estado semi-adormecido em que se achava;
te a esclarecer algum problema, e nos quais você enten- clcpois, de manhã, sem ouvir a fita, ele tentava se recor-
deu tudo num relance e percebeu como tudo estava-inter- ei ar e anotava o sonho de maneira normal. Queria desco-
ligado, e então, de manhã, só era capaz de lembrar que brir, saber se falsificamos os sonhos. Quanto é que muda-
durante a noite a solução tinha ficado clara, mas sem res- mos neles, ao anotá-los? Não havia nenhuma falsificação
tar mais nada dela à luz do dia! importante, mas alguns detalhes se perdiam ou sofriam
Mais ou menos com 16 ou 17 anos, fiquei muito es- ligeiras alterações. Todavia o resultado mais notável foi
tressada por causa de um problema de matemática_e, de que na fita gravada a ordem temporal era confusa. Por
noite, sonhei que via sua resolução; acordei dizendo que exemplo, ele sonhava que estava na igreja fazendo isto
precisava anotar aquilo imediatamente pois no dia seguin- ou aquilo, e então entrava na igreja. De manhã, ao anotar
te teria esquecido. Portanto, sem nem parar para acen- o sonho, ele automaticamente o reorganizava, escrevendo
der a luz para não me arriscar a perder a impressão, saí que entrava na igreja onde ocorriam tais e tais coisas. As-
da cama e peguei um lápis e anotei o que tinha me pare- sim, no estado consciente, ele instaurava uma ordem tem-
cido ser a solução, fazendo um esforço terrível para lutar poral natural nos eventos que, na fita gravada, não exis-
contra o torpor do sono; despenquei de volta na cama, tia; nessa, a ordem temporal era totalmente caótica.
muito aliviada e pensando que já estava tudo registrado Portanto, podemos lidar com a hipótese de que no
no papel. De manhã, acordei achando que estava solucio- inconsciente existe o que Jung chama de relatividade do
nada a questão! Levantei e fui toda feliz até a mesa e o tempo e do espaço, e uma certa simultaneidade espacial e
que estava escrito? Com uma caligrafia trêmula, quase temporal de todo o conteúdo. Isso corresponde também a
ilegível, eu lia: dois é três! Esse foi um dos truques mais certas experiências místicas. Por exemplo, Jakob Boheme,
baixos que o espírito do sonho já usou comigo! Isso é o o grande místico, teve uma iluminação repentina quando

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olhava para um prato de latão em que um raio de sol era rnnsta em outros tipos de mitos, contos de fadas e mitos
refletido. Essa imagem lançou-o num estado de êxtase e de herói, nos quais às vezes é extraordinariamente difícil
ele viu o que disse ser todo o mistério do cosmo. Todas as c•rürar no Além. O herói tem primeiro de satisfazer certas
canhestras tentativas de descrição e a precariedade do es- condições. Em muitos mitos e contos de fada, há uma tre-
tilo da narrativa são, na realidade, fruto do esforço de co- menda dificuldade não apenas para entrar no Além, mas
locar numa seqüência lógica e espacial essa experiência também para voltar de lá. Muitas vezes, por exemplo, o
única que ele teve e por meio da qual se sentiu arrebatado herói vai até o Além e encontra uma linda mulher, mas,
num instante. Embora não tenha conseguido traduzir ple- 110 caminho de volta, ele cai no sono e o in imigo rouba de
namente o que sua consciência captara, ele passou o resto novo o tesouro, ou ele o perde. Um exemplo dos mais fa-
da vida esforçando-se para elaborar o seu conteúdo, a fim mosos é o de Gilgamesh, que encontra a erva da imortali-
de colocar a vivência em palavras e dentro do sistema de dade e então, bem no momento em que se distrai e vai se
sua consciência. Essa diferença qualitativa entre as coisas banhar numa lagoa, ele deixa que a serpente roube a erva
no inconsciente e entre as mesmas coisas depois de trans- de novo. Essa é uma dificuldade de limiar, um trazer de
porem o limiar da consciência, provavelmente cria as difi- volta à tona algo que foi localizado no Além. Nesse senti-
culdades do limiar. Se dois sistemas psíquicos, o campo da do, o problema com limiares não é específico dos mitos de
consciência e o que chamamos de inconsciente, fossem qua- criação. A dificuldade geral está entre o reino da cons-
litativamente a mesma coisa, não haveria a menor dificul- ciência e o inconsciente, em trazer deste os conteúdos que
dade para o conteúdo sair da inconsciência. No limiar, po- são para pertencer àquele.
rém, é constelada uma certa dificuldade que você também
encontra nos motivos dos mitos de criação. As fileiras de filósofos, em particular os existencia-
listas, levantam uma objeção recorrente ao fato de falar-
No exemplo do Corvo, transpor o limiar é um empo- mos do inconsciente como se fosse uma cois a , apenas um
brecimento: o Corvo tem sua forma humana completa no conceito negativo, limítrofe. Na opinião deles, cometemos
Além, mas só pode aparecer na terra, pelo menos no plano o mesmo erro de filosoficamente postular os conceitos de
externo, como uma ave, embora no plano interno conserve ser e não-ser e, então, repentinamente, hipostasiamos o
sua qualidade de antropos, a qualidade de um .ser humano conceito de não-ser e passamos a falar dele como se fosse
divino. Ocorre um escurecimento, um empobrecimento, uma coisa. Parmênides já ficava furioso diante dessa in-
quando ele cruza o limiar. A mãe e a filha do mito iroquês genuidade do pensamento, segundo a qual um conceito é
tornam-se novamente uma quando cruzam o limiar: esse hipostasiado quando, na realidade, não passa de um con-
aspecto precisa ser visto pelo mesmo prisma do empobre- ceito limítrofe. O próprio Jung levantou a mesma ques-
cimento ou de uma aparente regressão. Tornam-se uma só tão, e a discutiu extensamente.
figura enquanto que no Além tinha havido antes uma dife-
renciação entre os dois aspectos. Estes, porém, são nova- PodemÓs afirmar que o inconsciente é uma realidade,
mente simplificados quando transpõem o limiar, de modo já que só quer dizer aquilo que não é consciente? Certamen-
que a diferenciação tem de ocorrer na esfera da consciên- te, nos é permitido assegurar que um certo conteúdo é incons-
cia, quer dizer, no mundo terrestre concreto. ciente ou consciente, mas será que podemos hipostasiar isto e
falar a respeito do inconsciente, como se fosse uma ens reale,
Esse fenômeno do limiar não é encontrado apenas algo que existe? Porém, o mero fato de que um conteúdo ao
nos mitos de criação; é um motivo mitológico geral, que transpor o limiar e tornar-se inconsciente é alterado em sua

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qualidade, e que quando o transpõe novamente em sentido Por exemplo, se você sonha com uma determinada rua,
inverso e retorna à consciência é alterado de novo, é um dos não é suficiente dizer que essa era a rua em que morava
motivos pelos quais temos permissão para imaginar que o quando criança. Tudo leva a crer que isso tem a ver com
inconsciente é um meio, ou algo. lembranças de infância, mas depois é preciso tentar recu-
Se eu deixo alguma coisa cair e ela está úmida quan- perar o contato com o sentimento que havia na época em
do a pego de volta, posso então presumir com relativa se- que você saiu dessa casa. Como era a rua e com o que você
gurança que embaixo existe água, e que o limiar não é só cruzou estando nela? Qual era o cheiro que havia a li?
uma linha imaginária e que temos ar aqui e água ali. É a Somente então é que você poderá entender o que esse
mesma coisa com os conteúdos psíquicos. Quando são es- quadro transmite. Se não for dessa maneira, você não terá,
quecidos, por exemplo, ou reprimidos, eles não são pre- de modo algum, se associado adequadamente em relação
servados da mesma forma, começam a se alterar no in- a o sonho, pois é necessário que você reconstrua exata-
consciente e vice-versa: quando se os extrai até a cons- mente a riqueza que está mais além e que ficou perdida
ciência, outra vez eles se alteram qualitativamente. Ve- na passagem pelo limiar. A seguir, conforme o nosso mé-
mos como isso está ilustrado nos mitos. Dessa forma, po- todo, depois de termos feito isso, quando houvermos enri-
demos discorrer sobre o inconsciente enquanto um meio quecido o nosso sonho e o devolvido à matriz emocional
real, como uma realidade psíquica, e falar assim não é só do qual ele brotou, temos de formular a interpretação, o
ingenuidade filosófica e não é uma hipostasia sobre um eu quer dizer que tentamos, a partir do contexto, recons-
termo abstrato. Pelo contrário, é em virtude desses fenô- truir a mensagem central do sonho, o seu significado.
menos de limiar que somos induzidos a pensar no incons- Agora podemos usar o outro método - nossa abstração
ciente como uma coisa real em si. Quando esses conteú- ocidental - para tentar chegar ao sentido do sonho no
dos empobrecidos atravessam o limiar da consciência, te-
que chamaríamos resumidamente de uma sentença.
mos de amplificá-los (enriquecê-los!) novamente, para
podermos entendê-los. Sempre me lembro que, quando fazíamos interpre-
Fazer associações em torno de um tema significa tações de sonho com Jung, ele nos deixava buscar o signi-
mergulhá-lo de novo no inconsciente por um breve ins- ficado de cada pedacinho de cada cena do sonho, e então
tante; deitamo-nos e deixamos que venha à tona qualquer andava um pouco para lá e para cá, e dizia: "E agora, por
emoção, nuança ou lembrança a respeito desse motivo. O favor, diga-nos em uma única sentença o que o sonho diz!
ponto principal é concentrar-se, especialmente, nas qua- Em uma só sentença!" Essa é a parte mais difícil da in-
lidades emocionais e na sensibilidade, e não em defini- terpretação, pois teoricamente deveria acontecer de a
ções. Você pode até criar definições se realmente não con- mensagem ser transmitida numa linguagem humana tão
segue prescindir delas, mas isso não é o mais vital; é pre- simples que 'acerta o prego no alvo e transmite uma men-
ciso que você realmente tente resgatar a, riqueza origi- sagem surpreendente. Se você ficar tateando para cá e
nal do que aquela imagem transmite. E por isso que para lá, dizendo que tem a ver com isto ou aquilo, que
amplificamos, e esse é o jeito correto de agir. Amplificar parece querer dizer uma coisa ou outra, você está no rumo
quer dizer retornar tanto quanto possível para aquém do certo, mas ainda não chegou à mensagem. Não chegou ao
limiar, e reviver todas aquelas difusas idéias emocionais, núcleo do sonho, que é como uma carta ou um telegrama,
sensações e reações que temos acerca de alguma coisa. com uma mensagem definida a ser transmitida e que não

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r 1

joga simplesmente um monte de imagens em cima de você. 11 1 um efeito vivificante se você entender corretamente o
Com a amplificação, você satisfaz as necessidades emo- q11n isto quer dizer, porque agora, pelo menos, você sabe
cionais do inconsciente e da personalidade, mas não as nndc está o problema e sabe por que sempre t ropeça com
da personalidade consciente, e também não fortalece o 1·MLas dificuldades tanto no mundo externo, como no
complexo do Eu se não realizou o segundo passo, que é 111 11ndo interno. Pode ser que sua reação seja de desa-
completamente oposto ao primeiro - a saber, abstraí-lo l{rndo diante dessa informação, mas agora você sabe o
até que se torne uma mensagem simples e compreensí- q 11 c é [ E isso tem um efeito vivificante, mesmo que desa-
vel. Se damos esses dois passos da interpretação, então Krndável. Há tensão e uma súbita adesão entre conteú-
lidamos apropriadamente com a incompatibilidade entre dos conscientes e inconscientes. Penso que os fenôme-
as personalidades consciente e inconsciente. Isso é reali- 1rns de limiar nestes mitos de criação e em outros refle-
zar uma síntese através da interpretação do sonho. Faze- 1.c•rn esse fato psicológico.
mos justiça aos fenômenos inconscientes e também ten-
tamos fazer justiça à parte consciente da personalidade.
Há uma dificuldade de limiar, um aspecto limítrofe,
que requer um verdadeiro esforço para reunir ambos os
elementos. Pela física, sabemos que duas partículas de
mesma carga elétrica se repelem mutuamente, a menos
que sejam forçadas a se aproximar além de um certo limi-
te espacial; então ocorre o contrário, e elas se unem com
um tremendo poder de adesão. Para usar um símile: você
já viu bolhas em sua xícara de café. Podem existir duas
que dançam uma em torno da outra, repelindo-se, sem
poder se combinar; mas de repente, as duas correm e se
fundem e formam uma bolha maior. Para mim, isso é um
símile ilustrativo do que acontece com conteúdos incons-
cientes e conscientes. O complexo do Eu tem uma certa
tendência a repelir o complexo inconsciente: é preciso
aplicar uma certa força para reuni-los. Depois, de um ins-
tante para outro, temos o fenômeno de sua união e de seu
enriquecimento, de algo que "ligou". A interpretação cer-
ta cai como ficha na inserção justa, e o sentimento é de
vivificação. Toda boa interpretação deve surtir esse efei-
to vivificante sobre a personalidade consciente, um efeito
vitalizador. Vamos supor que você tem um sonho em que
aparecem figuras de sombra medonhas e você, desconfor-
tavelmente, precisa entender que isso também é você. Até
mesmo um sonho depressivo, uma mensagem triste, sur-

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Capítulo 4 HII e disse: "Você matou a sua mãe!" Mas o gêmeo ígneo
11cusou o outro e persistiu com tamanha veemência nisso
OS DOIS CRIADORES que a avó finalmente pegou o gêmeo inocente, de forma
humana, e o jogou nos arbustos; o do corpo de pederneira
),ornou-se seu filho bem-amado a quem ela amamentou e
de quem cuidou. A avó então tomou sua filha morta e com
o cadáver dela formou o sol e a lua e todas as outras lu-
zes. O gêmeo que tinha sido descartado no mato recupe-
ro u-se e cresceu, tornando-se o criador positivo chamado
ll roto Macho; brigava constantemente com Tawiskaron
I' tinha muitas dificuldades com esse gêmeo de cabeça d~
fogo.
Existe um típico mito do herói em que Broto Macho
Aproximamo-nos deste problema do limiar se passar- rria_ os seres humanos, o milho e todas as boas plantas, e
mos para o motivo dos criadores gêmeos, ou melhor, dos 1·nsma ao homem todas as atividades culturais. Tawiska-
dois criadores, pois nem sempre são gêmeos. Em nosso ron imita-o, mas só cria os crocodilos, mosquitos e outros
mito iroquês, quando a mulher chegou à terra, deu à luz 11 nimais horríveis. Ele também tenta criar sere's huma-
uma menina, e esta mais tarde foi impregnada pelo espí- nos, mas estes não podem andar e são demoníacos. As-
rito da tartaruga. Durante seu trabalho de parto, ela ou- s im, ele se torna um verdadeiro simia dei (macaco de Deus)
viu os gê~eos falando dentro de seu útero. Um disse para que desfaz grande parte da criação de Broto Macho. Ao
o outro: "E por aqui que devemos sair; é o caminho mais final desse portentoso mito iroquês, trava-se uma bata-
curto e o brilho da luz já está entrando". Mas o outro disse: lha final entre os dois, na qual um persegue o outro por
"Oh, não! Se fizéssemos isso mataríamos a nossa mãe! Loda a superfície da terra até que, finalmente, o bom der-
Devemos sair por um outro caminho, aquele que todos os rota o mau, e o demônio de pederneira se retira da terra
seres humanos tomarão, futuramente. Vamos nos virar com sua avó, a velha mãe terra, para as lonjuras da fron-
de cabeça para baixo". O que falou primeiro assentiu e o Lcira oriental do mundo, onde vive como o deus dos mor-
outro disse que era dessa maneira que deveria acontecer, tos . Ele se torna o deus da terra dos mortos e do Além e
daí por diante. Foi assim que nasceu a primeira discus- fica lá com sua avó, a terra, ao passo que Yoskeh a, o B;o-
são. O segundo então disse que o outro deveria ir na fren- Lo Macho, ou Oterongtongia (t ermo que aparece em ou-
te, mas este afirmou que o irmão deveria ir antes, e com Lr~s versões e tem o mesmo significado), é o verdadeiro
isso ficaram brigando um com o outro, até que o segundo criador e Deus salvador desta tribo.
cedeu, virou de ponta cabeça, e saiu de cabeça. A avó o Bem, essa extrema polarização de opostos em bem e
recebeu e depois voltou sua atenção para a mulher, para mal, que não podemos evitar de comparar com o nosso
acolher a segunda criança, mas este segundo gêmeo não mito do Cristo e do Anticristo, porque a oposição entre
saiu do modo normal e, sim, de dentro da axila da mãe. O bem e mal é tão forte, não é o tipo comum do motivo do
topo de sua cabeça era uma faca de pederneira, e com ela criador duplo. É excepcional e incomum. O mais usual é
ele perfurou a mãe e saiu. Isso a matou. A avó ficou furio- que, quando há dois deuses criadores, um é um pouco mais

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duro O o 01111111 11111 111111111 111111 H escuro; um é um pouco xas, e ouviu os grilos cricrilando na superfície da ter-
mni s masc11ll1111111111111.ro, um pouco mais feminino; um ra. Ele imediatamente começou a devorar as cerejas,
é mais habíf1d11~1111 o outro, mais desajeitado, ou sonolen- as ameixas e os gafanhotos. [Nessas tribos, o Coiote é
to, ou animaln,wo Mn8 os opostos não são arrastados para o deus traquinas, muito voraz e obsceno.] Depois de
pólos tão opoHtos, criando uma oposição ética tão podero- algum tempo, ele indagou: "Onde estamos? Que lu-
sa. Às vezes, a oposição é bem pequena. Quero dar como gar é este?" Raposa de Prata respondeu: "Não sei,
exemplo urn mito que vem da tribo Achomavi, residente agora estamos aqui! Chegamos nessa praia!" Natu-
da região centro-norte da Califórnia. ralmente ele sabia, mas negou que tivesse criado aque-
le mundo porque não queria que Coiote soubesse que
No início, havia água por toda parte e o céu era lim- era sua criação. Então disse: "O que faremos agora?
po e sern nuvens mas, de repente, uma nuvem se for- Este é chão sólido. Vamos ficar nesta terra e nos ins-
mou no céu, condensada, e se transformou no Coiote. talar aqui". E foi isso que eles fizeram. Raposa de
A umidade se acumulou e condensou e dela veio a Prata construiu um agradável abrigo e ali viveu. 19
Raposa de Prata. Eles começaram a pensar e, pen-
sando, criaram um bote. Disseram: "Agora vamos nos Temos aqui um outro tipo do motivo do duplo criador,
instalar aqui e viver neste bote, como se fosse uma no qual um só contribui com o seu sono e, depois, tenta
casa". Assim, ficaram à deriva à tona d'água duran- devorar o que tinha sido criado, enquanto o outro realiza
te muitos, muitos anos, e o bote ficou velho e coberto todas as atividades criativas. Esse aspect o lembra o pri-
de algas e eles acabaram se entediando de ficarem meiro mito, do pequeno pardal e o corvo. O corvo fez todo o
dentro dele o tempo todo. "Deite-se", disse a Raposa trabalho criativo mas o pardal estava lá primeiro. O par-
de Prata para o Coiote, e este obedeceu. Enquanto ele dal é inclusive mais ativo que o Coiote porque, pelo menos,
estava dormindo, a Raposa de Prata penteou o seu ele obedece as ordens do Pai Corvo e desce para explorar o
próprio cabelo e foi pondo de lado o que saía no pen- fundo da terra e, assim, presta ajuda; afora isso, também
te, e quando já tinha um grande monte de pêlos fez não contribui para a criação. No entanto, a despeito disso,
um bola com as mãos que depois alisou e estendeu. ao final da história, é dito: "Assim, Pai Corvo criou a terra
Em seguida colocou sobre a água e abriu a manta e mas o pequeno pardal estava lá primeiro". Essa sentença,
cobriu imediatamente toda aquela superfície. Então, que surge de repente no fim da história, é uma ênfase, como
a Raposa de Prata achou que ali deveria existir uma se o pequeno pardal ainda fosse uma figura mais antiga e
árvore e no mesmo instante havia uma. Depois fez a importante, apesar de sua ineficácia na criação. Aqui te-
mesma coisa com os arbustos e as rochas, ainda fi- mos Coiote, um estranho irmão da raposa-criadora, que só
xou a fina crosta da terra com pedras, para que não participa com o seu sono.
se balançasse nem enrolasse, caso o vento entrasse Na mitologia de muitas tribos, o Coiote é o deus tra-
pelas bordas ao soprar na superfície da água. E dei- quinas por excelência. São narrados ciclos inteiros de seus
xou tudo do jeito certo. feitos. Podemos encontrar esse material no livro que Paul
o bote aportou suavemente na beirada deste novo Radin, Karl Kerényi e C. G. Jung publicaram juntos so-
mundo e a Raposa de Prata chamou o Coiote: "Acor-
de! Estamos afundando! Vamos para o fundo!" Coiote
despertou e abriu os olhos: viu no alto cerejas e amei- 19 Indianermêirchen aus Nordamerika, p. 401.

92 93
°
hrc, o traquinas divino.2 Com base nos comentários de Jung, inconsciente; sendo capazes, dessa forma, de ir ao encon-
podemos ver que ele interpreta o Coiote como uma figura tro desses conteúdos. Não foi por acaso que, por exemplo,
de sombra cuja função é desfazer a consolidação da cons- ,1ung escreveu Resposta a Jó, o livro que considerou sua
ciência. A consciência tem a infeliz tendência, inerente ao 111clhor obra, quando estava acamado com febre alta. Ter-
seu funcionamento, de solidificar-se, afirmando-se e man- 111 inado o manuscrito, saiu da cama e estava totalmente
tendo sua continuidade - sua própria essência deve ser :. urado. Foi preciso esse rebaixamento do nível m ental
assim, para que possa funcionar; mas tem a desvantagem para a produção desse trabalho criativo. É uma obra alta-
de constantement e excluir o irracional , o primitivo, o mente emocional e precisou da doença para desfazer sua
indesejado. Por isso, precisa de uma contrafunção no in- ronsciência, que normalmente tem um funcionamento
consciente, algo que constantemente rompa a consolida- muito forte. Há muitos outros exemplos desse t ipo. Bee-
ção da consciência coletiva e, dessa forma, mantenha aberta thoven e Goethe são dois típicos representantes dos dois
a porta para o aporte de novos conteúdos criativos. tipos de pessoas criativas: Beethoven, que vivia constan-
As pessoas criativas freqüentemente têm uma forte temente próximo do inconsciente e levava uma vida boê-
e sólida consciência do Eu e, em geral, precisam de algum mia e desregrada; Goethe, pelo contrário, sempre preci-
sava se apaixonar e entrar na inevitável crise, antes de
abalo poderoso vindo de fora - uma depressão, um trans-
poder produzir outra obra. Goethe sempre tendia a se con-
torno emocional interior, ou até mesmo uma doença -
solidar no H err Geheimrat, m as suas constantes expe-
para entrar naquele est ado em que são capazes de criar.
riências amorosas desfaziam o suficiente sua consciência
Observei que há dois tipos: um é mais boêmio e é bem para que ele se tornasse novamen te criativo. E sse é um
freqüente entre os artistas criativos que praticamente dos principais truques do inconsciente: para desfazer a
vivem em estado de constante rebaixamento do nível men- consciência do homem quando se encon tra solidificada em
tal. Vivem em ambientes boêmios e não se ajustam à excesso, a anima faz um buraco nela!
maioria das regras sociais da coletividade, permanecen-
do constantemente no mundo do Coiote, o Traquinas, por O comentário de Jung sobre a figura do Coiote n ão
assim dizer, incessantemente abertos a novas inspirações. se refere só aos mitos de criação. É notável que nessa
Existe porém o outro tipo de personalidade criativa que cosmogonia Achomavi o Deus Traqu inas esteja lá desde o
tem, apesar de seus dons criativos, a capacidade de se princípio. Podemos presumir que, inicialmen t e, não exis-
ajustar e conformar à coletividade e construir uma forte tisse tal figura, só um criador, e que só depois de algum
consciência do Eu. Essas pessoas em geral precisam de tempo, quando a consciência estava bem estabelecida e
uma e~periência esmagadora antes que possam voltar a consolidada, é que emergiu do inconsciente a figura com-
criar. E inevitável, mas se sabem disso então, natural- pensatória do traquinas para desfazer o enrijeciment o da
mente, assim que percebem os primeiros sintomas de uma consciência. Aparentement e, porém, segu ndo este mito e
doença criativa desse gênero, vão em sua direção, perce- alguns outros que narrarei mais adiante, isso não é ver -
dade. A dualidade, ou seja, a tendência a uma consciên-
bendo que algo está emergindo novamente e, com isso,
podem defender-se dos iminentes ataques da sombra e do cia ordenada e a tendência básica a uma cont raposição,
algo que age de acordo com as emoções, estados de ânimo
e as perturbações momentâneas, uma figura semi-animal,
20
Paul Radin, com comentários de Karl Kerényi e C. G. J ung, The está lá desde o princípio. Ela surge no mesmo momento
Trickster (Nova York: Schocken Books, 1972). como um duplo movimento de nascimento da consciência,

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11, 111111111 a quando estendemos o braço e assim mo-
11<11111
t.em dois deuses criadores, mas com um terceiro por trás,
111 111111 tl111H músculos, um que se contrai e outro que se
11 1111 11 11111 . A:,;sim, podemos dizer que, desde os primórdios
por assim dizer, que permanece no céu e não participa
il11 , ,inHciência, se existe um sim na direção da consciên- da criação.
1 111 , também existe um não, ou seja, a tendência a desfa- Uma outra tribo da Califórnia tem o seguinte mito
wr e a criar uma contraposição. de criação: no início não havia nem sol, nem lua e nem
Antes de prosseguirmos com a análise desse proble- Pstrelas. Por todo lado era só trevas e águas. Uma balsa
ma do criador duplo, quero relatar alguns outros mitos boiava à deriva; tinha vindo do norte e havia duas pes-
em que há dois criadores. Uma tribo aparentada dos soas nela, Osma, a tartaruga, e Pepeipe, o pai do conheci-
Achomavi, a tribo Maidu também da região centro-norte mento secreto. Então desceu uma corda do céu e por ela
_da Califórnia (as duas provavelmente influenciaram uma veio o Iniciado da Terra. O rosto dele estava coberto, por
à outra em alguma medida), tem o seguinte mito de cria- isso não se podia vê-lo, e o seu corpo brilhava como o sol.
ção: o Criador da Terra estava nadando na água. Encon- Depois de descer ele não falou durante muito tempo. Fi-
trava-se preocupado e pensou: "Como será, onde será, em nalmente, a tartaruga disse: "De onde você veio?" e o Ini-
que lugar será que encontrarei um mundo". "Você é mui- riado da Terra respondeu: "Venho de cima". Então esses
to forte porque você pensa esse mundo", disse Coiote. E l.rês criaram o mundo juntos. Aqui existem realmente três,
então o editor acrescenta: "De onde surge o Coiote, re- mas, no começo, antes que o Iniciado da Terra de!5ça para
pentinamente, o mito não esclarece". É evidente que tan- começar o processo criativo, dois deuses estão à deriva
to o Coiote, como o Criador da Terra, são eternos. Então, 11 uma balsa.
o Criador da Terra e o Coiote planejam como criar juntos o
mundo, e assim por diante. Não vou entrar nos detalhes Encontramos a mesma constelação, às vezes, nos mi-
dessa criação. tos de criação dos índios sul-americanos. Por exemplo, o
111ito da tribo Mandacaru, da região central do Brasil, diz o
Nos mitos de criação dos índios Pima, também há seguinte: no início do mundo, havia escuridão, e da escuri-
dois criadores. Um desce de uma nuvem, como a Raposa dão vieram duas pessoas. Uma era chamada Karu e a ou-
de Prata, e cria o mundo com partes do seu corpo. Este é tra era seu filho, Rairu. Os dois são contemporâneos, pois
chamado Médico da Terra ou Mágico da Terra e, desde o um não cria o outro; eles coexistem. Rairu tropeçou numa
princípio, tem um rival chamado Irmão Mais Velho. 21 Es-
pedra, oca como uma xícara, e gritou com ela. Karu, seu
ses dois criadores são novamente mais hostis, como no
pai, disse-lhe que pegasse a pedra com que tinha brigado.
mito iroquês do Broto Macho e o demônio da pederneira,
llairu assim o fez e pegou a pedra, colocando-a na cabeça.
pois o Irmão Mais Velho tenta o tempo todo desfazer e
destruir o que o Médico da Terra criou. Ela começou a crescer em todas as direções e a ficar muito
pesada; então Rairu disse para o pai: "Esta pedra já está
Entre os Odjibwai, que pertencem à tribo Algonquin, muito pesada". A pedra ainda cresceu mais e Rairu não
há um alto deus, Kitchi Manitu, e na terra estão dois podia mais andar, mas a pedra continuava crescendo. De-
criadores, Mennebosh e a Lontra. Assim, também exis- pois, ela tomou a forma de uma xícara que forma o céu, e
nele apareceu o sol. Karu odiou o seu filho Rairu por saber
21 mais do que ele: o filho era mais sábio do que o pai. Um
Indianermiirchen aus Nordamerika, p. 406.
dia, Karu disparou uma flecha contra uma árvore e pediu
96
97
1111 li lho q11 <• s ubisse nela, pois queria matá-lo. Agora segue Segue-se outro mito de criação da tribo Basonge: Ko-
11 11 111 10 11 1-{n narrativa sobre a luta, mas Karu não conse- lurn bo mui fangi, ou Kolornbo, era aquele que tinha cria-
1(114• 11 rn tar o próprio filho. 22 do a si mesmo. Mwile, o mais alto deus desta tribo, disse
1111 seu povo: "As pessoas sempre falam de Kolombo mui
Esse motivo da inimizade entre dois criadores tam- l1111gi. Gostaria de ver Kolornbo mui fangi" . As pessoas
l>é_m apar~ce em muitos paralelos africanos. 23 O seguinte l~1ram até Kolombo mui fangi e disseram: "Mwile quer vê-
m1t? ~e criação africano é narrado na tribo Basonge: Nkolle lo". Kolombo disse: "Eu irei". Então, ele convocou todos os
e F1d1 Mkullu discutiram (este último é uma divindade 11 11imais e, depois de urna caminhada muito, muito longa,
que aparece em muitas histórias africanas, um tipo de c·hcgaram diante do deus mais alto, Mwile. Quando ele
alto deus para essas tribos; Nkolle, como esta história vai l' hcgou, Mwile perguntou: "Quem é você?" E Kolombo dis-
nos dizer mais adiante, é o filho mais velho de Fidi Mkullu). 11n : "Sou Kolombo mui fangi, aquele que se criou por si".
Nkolle disse: "Criei tudo!" Fidi Mkullu disse: "Não, eu criei
Mwile disse: "Isso não é verdade. Eu fiz tudo. Faça
tudo!" Nkolle disse: "Eu posso fazer todas as coisas!" Fidi
isto". Mwile pegou um punhado de terra e cuspiu nela a t é
Mkullu disse: "Muito bem, então vá lá para baixo e reine
sobre todos os seres humanos". que ficasse úrnida e virou-a na mão como quando se faz
uma vasilha. Formou um ser humano e o colocou sobre a
Nkolle desceu e se tornou um grande chefe entre os ter ra , e ele era um ser humano vivo. Kolombo também
seres humanos. Ele os guiava, entretanto, a humanidade pegou um pouco de terra . Cuspiu nela até qu e ficasse
ficou doente. Ele não sabia o que fazer. Sofriam, mas ele i.'i mida. Virou-a e moldou-a como um ser humano e tam-
não era capaz de ajudar. Os seres humanos disseram: "Li- bém colocou a figura na terra. Era um ser humano vivo.
vre-nos dessa dor". Nkolle não sabia ajudar. Os seres hu- Mwile disse: "Faça com que seu ser humano fale!" Kolom -
manos morreram e enquanto morriam diziam: "Livre-nos bo disse: "Primeiro, faça o seu falar", e isso se repetiu
d~ssas dores". Nkolle não podia ajudar. Ele voltou para 0 três vezes. Eles discutiram sobre qual dos dois deveria
;eu. _?s seres humanos foram até Fidi Mkullu e disseram: primeiro fazer seu ser humano falar. Mwile fin almente
Vocc deve ser nosso chefe novamente". Fidi Mkullu então disse para o seu: "Fale!", e o homem falou. Kolombo disse
cur?u alguns e os outros ele ajudou para que morressem para o seu homem: "Fale!", mas este só movimentou os
rapidamente. Os seres humanos disseram: "Você é o nosso lábios, não era capaz de falar. Mwile disse: "Vou destruir
verdadeiro chefe e permanece nosso líder". Nkolle era o o meu homem". Colocou a mão sobre ele e o homem de
filho mais velho de Fidi Mkullu. Enquanto foi bom seu Mwile estava morto. Mwile disse: "Agora destrua o seu".
nome era Mwile, mas quando ficou mau passou a ser' cha- E Kolombo mui fangi colocou a mão sobr e seu homem e o
mado de Nkolle Nfule. Como Nkolle tinha se tornado mau homem de Kolombo também estava morto.
Fidi Mkullu tinha mandado todas aquelas doenças. ' Mwile disse: "Vejo que você pode fazer is so, mas ago-
ra entre nesta casa e feche a port a. Eu vou queimar a
22
!ndianermiirchen aus Südamerika, dentro da série "Màrchen der
casa e então veremos quem é você. Porqu e eu criei tudo e
Welthteratur" (Jena: Diederichs Verlag, 1921), p. 225. posso destruir tudo". Kolornbo entrou com seu povo na
23
Herm~n Baumann, Schopfung und Urzeit des Menschen im Mythus casa e disse para dois animais: "Cavem um buraco na ter-
der afnkanischen Volker (Berlim: Reimer, 1964) (Photomech. Nachdruckk ra que chegue até a minha aldeia". E para um pássaro
d. Ausg. V. 1936). Vários mitos africanos mencionados neste capítulo po-
dem ser encontrados no livro de Baumann. que tinha levado consigo ele falou: "Ponha seus ovos no

98 99
, li 11,1 11 111.oH de sairmos pela rota de fuga subterrânea". V1•rmelho discutem por causa de poder. O Deus Verme-
t\1011 111 , P ie deixou em segredo a casa que ardia, atraves- 1Iro é chamado N aiterukop, o que começou a terra, mas a
1t1111do o túnel sob a terra e os ovos, quando queimaram, 1 r,bo diz que ele não é tão grande quanto o Deus Negro.
1•x plodiram, e por isso Mwile, que estava ouvindo do lado A,-;sim, vemos que às vezes o criador é um pouco menos
de fora, disse: "Isso é muito bom, agora Kolombo quei- q1w o outro, mas ainda assim é o criador .. Com os Unyoro,
mou". A casa foi completamente destruída pelo fogo . Mwile ,•11contramos também um duplo Deus criador: o segundo
foi até as cinzas e buscou os ossos de Kolombo, mas a úni- n o Irmão do Deus e o Primeiro Homem. Existe um Gran-
ca coisa que viu foi cascas de ovos. Um homem chegou e d1• Deus, e coexiste com ele o irmão de Deus, que é cha-
disse: "Kolombo mui fangi fugiu com todo o seu povo de 11ntdo Nkya, o qual pede a Deus que crie o mundo. Deus
volta para a aldeia". 11ao o teria feito por sua vontade, mas Nkya, seu irmão,
Um outro mito de criação, desta feita da tribo Baluba, IH'de-lhe que siga em frente com a criação, e ele assim
narra o seguinte: procede. Este mito, de acordo com Hermann Baumann,
1a mbém é narrado pelos Masai.
Kadifukke disse para Fidi Mkullu: "Você não me
criou". Fidi Mkullu retrucou: "Eu criei tudo. Criei a ter- O motivo do criador oculto deu origem a uma teoria
ra. Por que não teria criado você?" Kadifukke disse: "Você upresentada por Max Schmidt, o grande etnólogo, que, na
não me criou. Eu vim de mim mesmo, da terra". Fidi minha opinião, é uma distorção deplorável. Os relatos de
Mkullu, então, afirmou: "Meu filho, vá com Kadifukke até missionários e etnólogos sobre tribos primitivas contêm
uma árvore". Kadifukke e o filho de Fidi Mkullu foram afirmações segundo as quais existia antes um Alto Deus ,
até uma palmeira e então lutaram pelo poder. (Esta par- que porém foi substituído por deidades politeístas. 25 Como
te eu vou pular porque realmente não pertence ao mito vocês puderam ver com base nos poucos exemplos que lhes
de criação). Kadifukke quase matou o filho de Fidi Mkullu, apresentei, há em alguns desses mito~ com_ cri~dores du-
mas não chegou lá. Então Fidi Mkullu novamente ficou plos a tendência de uma figura ser mais antiga, importan-
furioso com Kadifukke e aprisionou-o numa casa, e ten- Lc e passiva do que a outra - esse é o Deus que não segue
tou queimá-la. De novo Kadifukke escapou, como na ou- em frente com a criação, mas que fica em segundo pla-
tra história, por um túnel sob a terra. Quando Fidi Mkullu no; em outros mitos, contudo, a criação é efetivada por uma
investigou as cinzas, veio um homem que disse que figura que a seguir se recolhe ao céu. A notável freqüência
Kadifukke não estava queimado, e Fidi Mkullu foi constatar desse motivo induziu o Padre Schmidt a presumir que, em
e o encontrou ainda vivo. Então Fidi Mkullu disse para alguma época, houve um monoteísmo original, que uma
Kadifukke: "Eu sou branco, você é preto". Frobenius, que religião monoteísta teria existido anteriormente entre os
anotou essa história, diz que as pessoas não entendem essa pobres pagãos, mas que depois, aos poucos, co~ o avanço
última sentença. Se lhes perguntam por que um diz "Eu sou de uma degeneração religiosa, o monoteísmo foi sobre_pu-
branco e você é preto", elas não sabem o que isso quer signifi- jado por sistemas mais politeístas. Para nós, que analisa-
car. Dão de ombros e não apresentam qualquer explicação. 24
mos esses mitos de uma perspectiva psicológica, é muito
A tribo Masai da África também tem um mito de cria- claro que não estamos aqui diante de resquícios de um pro-
ção com dois criadores. Nesse, um Deus Negro e um Deus
2s Max Schmidt, The Primitiue Races of Mankind (Londres: George G.
24 Ibid., p. 179. Harrap, 1926).

100 101
i:1,10.u ltlid,111kn, e nem que existem motivos para se presu-
11 rq uetípica para a consciencia. Essa tendência para a
ntl t 111111 l,11111111havido um, a fim de que se consiga explicar
c-o nsciência seria como o filho da totalidade pré-cons-
cHr111 111 11 " 1110 110. Muito pelo contrário, o motivo dos dois cria-
1·iente C, mas ao mesmo tempo as duas instâncias exis-
dor·c,11 (\ do teor arquetípico e pode ser encontrado em todas
l.1· m numa união natural porque essa tendência para a
as (, poc118 e partes do mundo.
rn nsciência decorre da totalidade original. Vejam, o pró-
Eu poderia ter apresentado paralelos da Índia e dos prio desenho já é enganoso porque ilustra uma dualida-
gnós ticos, mas concentrei-me nos mitos dos índios ameri- d1), mas, naturalmente, essa tendência para a consciên-
canos e africanos, neste caso, porque suas histórias são (' ia é inerente à coisa toda. Somente quando se torna ma-
mais vívidas, coloridas. Contudo, podemos encontrar equi- 11 i fes ta é que passa a h aver algum contraste entre A e B.
valentes no mundo inteiro. Até mesmo na China há o mo- l•:sse contraste é fo rmulado de maneiras diferentes . Pri-
tivo do duplo criador. No mundo todo há a tendência a atri- 111ciro, você tem duas figuras idênticas. Depois, como nos
buir o ato da criação a uma figura que, então, se retira e rnntos africanos t ais como os de Kadifukke e Mkullu,
fica de lado, enquanto uma outra assume o ato da criação. 1·m que ambos alegam terem sido feitos por si mesmos,
Parece-me muito óbvio que esse é um motivo arquetípico, quando tentam mostrar um para o outro quem tem mais
que descreve a separação da consciência individual em re- poder , fica provado que ambos são igualmente podero-
lação ao contexto do inconsciente, enquanto as duas ins- sos e n enhum pode destruir o outro - Mkullu tenta des -
tâncias juntas representam a totalidade pré-consciente. Lruir Kadifukke mas não consegue. E les são criadores
Portanto, não temos qualquer motivo, quando encontra- relativament e idênticos mas:
mos esses mitos, para assumir que houve um tempo histó-
rico anterior em que o "Alto Deus", como o descreve o Padre 1. Um é mais ativo. Um é mais passivo.
Schmidt, era adorado e depois deixou de sê-lo. Isto é proje-
ção de um fator psicológico na história. 2. Um sabe mais. Um sabe menos.
3. Um é mais humano. Um é menos humano.
Nos exemplos que citei, há dois motivos que eu gos-
taria de ilustrar com um des enho, porque é difícil de ex- 4. Um é o filho. Um é o pai.
pressar o que está acontecendo nesses mitos. Seria mais 5. Um é masculino. Um é feminino
fácil de explicar se aplicássemos os rótulos de consciên- 6. Um é bom. Um é mau .
cia do Eu e sorn.bra, o que até é possível porque certamen-
te, em cada indivíduo, essas duas figuras correspondem 7. Um é mais propenso à vida. Um é mais propenso
em parte a tal classificação, à morte.
mas eu prefiro chamar a figura
1 de totalidade pré-consciente 1. Esta é uma diferença apenas relativa; vide Raposa
A de Pra ta e Coiote: um dorme e o outro age.
(C) - tudo reunido em um -
e quermaria
dizer, o que Schmidt cha-
de o Alto Deus. Nessa fi-
2. No mito sul-americano, por exemplo, é dito que
B Rairu, o filho, sabia mais que seu pai, Karu, e essa
gura, o ponto luminoso A repre- é a razão pela qual o pai tentou destruir o filho .
senta a consciência, ou eu a
chamaria antes de a tendência 3. Um é mais humano e o outro , menos. Vemos isto no
mito esquimó, em que o pardal não tem qualquer
102 103
característica humana ao longo da história toda, ao 111n todo. Os aspectos são pai e filho só em sua relação
passo que Corvo é realmente um ser humano que 1·0111 a característica de que, de alguma forma, um veio do
só se torna uma figura de corvo temporariamente. 1111Lro mas na realidade, de acordo com alguns mitos, eles
11110 a utocriados e todos existem simultaneamente, desde
4. O ativo é mais um tipo filho e a outra figura é mais
o, princípio.
um tipo pai. Essa diferenciação pode ser encontra-
da em alguns mitos africanos e sul-americanos. Entramos aqui numa certa dificuldade, mas as pes-
5. O contraste masculino-feminino é uma das diferen- 11oas que têm algum treinamento teológico verão de ime-
ciações finais, mas dedicarei a este aspecto um ca- di ato que o mesmo tipo de constelação arquetípica pode
pítulo especial. Her encontrada nos ensinamentos cristãos, nos quais Cris-
to é o Verbo, estando desde o princípio identificado com
6. O contraste entre bom e mau ocorre em muitos Ucus e servindo-lhe, por assim dizer, como instrumento
graus. Por exemplo, no mito iroquês e também nas
narrativas sobre Nkolle e Fidi Mkullu, e em alguns de criação. Cristo como Logos eterno - muito antes de
outros contos, um se torna realmente destrutivo. É 11 parecer como o Filho na terra - já estava na criação e
interessante que em um dos mitos africanos, no qual nra inclusive a atividade criativa do Pai. Portanto, na
a figura do filho mais tarde se torna má, ambos são mitologia cristã do Logos, podemos reconhecer a estrutu-
bons no princípio, e é após alguns acontecimentos ra dessa mesma constelação arquetípica que presencia-
que um se torna mau. mos nos mitos primitivos. Para mim, todos parecem cir-
cular, ou descrever de maneira simbólica, o mistério -
7. Um é mais o Deus dos vivos e o outro, mais dos mortos. que nunca seremos capazes de desvendar - de por que
há consciência e de por que a consciência veio do incons-
Um pertence ao aspecto relativamente mais huma-
ciente ou se sempre esteve com o que agora chamamos de
no da divindade, e o outro ao aspecto menos humano.
Quando falo do tipo filho e do tipo pai, vocês não devem o inconsciente, e sempre existiu aí. Podemos apenas di-
pensar que o filho é posterior ao pai, pois os dois, como zer que, em todo ser humano, deparamos com o mesmo
alguns mitos mostram de forma cabal, coexistem. Assim, fato, ou seja, uma totalidade pré-consciente em que tudo
pai e filho é um tema que não tem como intenção repre- está contido, inclusive a consciência e, ao mesmo tempo,
sentar uma seqüência temporal, na qual o pai viria pri- algo como uma tendência ativa para a construção de uma
meiro e o filho, depois. A diferença em mente é transmiti- consciência separada, que então, às vezes, num gesto lu-
da pelo fato de que, considerando-se a série à qual per- ciferiano, se volta para a totalidade pré-consciente e diz:
tence o filho, ou o tipo humano, todas essas característi- "Não fui criada por você; eu mesma me fiz". Isto aparece
cas mostram a tendência para a criação da consciência de modo bem evidente no mito africano em que Fidi
humana: atividade, aumento do conhecimento, ênfase no Mkullu e Kadifukke, ou Nkolle, discutem acerca de quem
bem contra o mal, ser mais humano e mais criativo. As- fez quem, e a disputa termina sem que tenham chegado a
sim, retomando o nosso desenho, uma parte serviria para uma decisão.
caracterizar a tendência para a consciência e a outra, o
tipo passivo, o que sabe menos, o mau, o tipo pai, a parte Tentar discutir, portanto, o que estava primeiro, se
menos humana, seria a totalidade pré-consciente como a consciência ou o inconsciente, é o mesmo que discutir

104 105
11111111, 411111111 veio antes, o ovo ou a galinha. Na realidade,
qtH', de maneira unilateral, pensamos que um fator é o
1111 1111111110s uma sinopse dos vários mitos, as duas figuras
p 1111 •1·1•111 surgir de modo relativamente simultâneo.
.. :-; tritamente positivo e outro, o estritamente negativo.
Mas, quando retomamos os mitos primitivos, vemos que
1~ muito óbvio que o inconsciente só faz sentido se o problema do bem e do ma l, que o relacionamento entre
110s pressupomos a consciência. Enquanto não há cons- 1í consciência e o inconsciente, entre a ativação da cons-
ciência, não há significado para a palavra inconsciente, ,·,0ncia concentrada e a permanência numa condição pas-
isso nem existe! Portanto, assim que começamos a falar H1va e sonhadora próxima da totalidade instintiva pré-
sobre o fenômeno da consciência, estabelecemos por uma rnnsciente, é um problema muito mais complicado, e que
questão de lógica o inconsciente. Além disso, se lembra- 11ao se pode simplesmente separar esse conjunto a golpe
mos que o inconsciente é cheio de luminosidade, podemos d<' espada, julgando as coisas como boas e más. Os dois
de fato dizer que, basicamente, são fenômenos coexistentes lados têm aspectos que realmente são positivos e negati-
que não evoluíram um do outro dentro de uma seqüência vos. O que encontramos nos conteúdos oníricos de um
temporal, mas existem desde o princípio como duas ten- 11nalisando moderno corresponde muitas vezes mais a esse
dência co-iguais dentro da psique. Não obstante, os mitos motivo do que, por exemplo, à nossa contraposição de Cris-
nos quais os dois criadores são relativamente igu ais e só lo e Anticristo, do filho bom de Deus contra o mal, que é
discutem sobre quem veio primeiro, sem nuanças éticas 11 ma posição específica e extrema e que, no fundo, consiste
em sua discussão, parecem provir, até onde me é dado de fato numa supervalorização da consciência. Chegamos
ver, de tribos especialmente primitivas. Além disso, es- inclusive a ver que, em alguns desses mitos primitivos,
sas histórias têm uma qualidade vaga, oniróide, como por ('Xiste a tendência de tornar o que é normalmente mau como
exemplo quando a Raposa de Prata entr a num bote imagi- a melh or das duas partes: o elemento passivo, sonhador,
nário que navega pelo mar e, a seguir, cria o mundo com os aquele que não participa da criação, é, por assim dizer, o
pêlos que tirou do próprio corpo. As tribos que apresentam Alto Deus que se retira para o céu; o elemento ativo é às
um maior desenvolvimento cultural parecem demons-
vezes mais destrutivo, com um viés luciferiano que se afasta
trar uma t endência para criar mitos em que a figura da
da harmoniosa totalidade pré-con sciente.
consciên cia contém a ênfase de ser positiva e boa, ao pas-
so que a outra figura é n egativa e destrutiva. Esse ele- Nessa medida, as ênfases são dadas de forma dife-
mento ético, que não entra em todos os contos mas só rente da que ocorre no desenvolvimento da nossa civili-
aparece num certo estágio do desenvolvimento cultural, zação, e penso que temos de aprender mais sobre essa
parece-me refletir um estágio mais elevado da consciên- relatividade dos dois elementos para podermos compre-
cia, no sentido de que há aí uma certa diferenciação da ender o ser humano de uma maneira mais total. O taoísmo
consciência ética e, portanto, algum progresso da cons- chinês, e também o movimento chinês do zen budismo,
ciência é refletido. por exemplo, enfatizam completamente o plano pré-cons-
ciente da inconsciência com suas percepções indistintas
Parece-me tremendamente importante retomar so- ou sua enevoada consciência total das coisas, que é mais
bretudo os mitos primitivos naturais, nos quais os dois
valorizado que qualquer consciência cultural com suas
criadores não são colocados em contraposição ética, por-
atividades éticas e culturais. O grande conflito na China
que hoje em dia tendemos a exagerar em nossa valoriza-
ção da consciência. Realmente chegamos a um estágio em entre o confucionismo e o taoísmo se baseia também nes-
sa dualidade. O confucionismo acentua a importância da
106
107
1mloni social e do comportamento ético, e o taoísmo sem- p111't .11 nto, contém todos os arquéti_pos; é m~ltiplo e _ence:•
pre enfatiza a autoconsciência pré-consciente da totali- , 11 1•111 s i todos os deuses - Elohim - e e uma coisa so,
dade , como o fator mais importante. p11rqu e é a totalidade pré-~onsciente. Dessa_ forma, a
111111.radição entre o verbo no smgular e o substantivo no plu-
No taoísmo, o homem tenta tornar-se tão incons- rn l 1• realmente uma maravilhosa maneira de expressar o
ciente quanto possível, para escapar o máximo que puder q1 1c • é essa totalidade pré-consciente, ou seja, uma unidade-
da criação. Por outro lado, o seguidor de Confúcio diz "sim" 11111I Liplicidade que, por assim dizer, não é e, ao mesmo
à vida e tenta moldá-la segundo alguma perspectiva polí- 1,,11,po é, idêntica a Yahweh, o criador ati;º· ~o~f~rm_e
tica ou sob qualquer outro ponto de vista. Partindo de t,,11Lci assinalar, nossas duas colunas tambem sao identi-
uma perspectiva junguiana, podemos dizer que, em certa 1•11s ; não se pode separá-las, são duas e, não obstante, uma
medida, esse é o conflito que vemos configurado como a 1111 , como os dois lados de uma única coisa.
diferença entre a extroversão e a introversão. O tipo ex-
tremamente introvertido é a pessoa que tende a negar a No gnosticismo, havia várias seitas que acreditavam
realidade e a dar muita importância ao relacionamento q11 e primeiro viera Elohim, um alto deus que ~ra bom e
com o inconsciente. Por outro lado, a pessoa extrovertida rnmpletamente espiritua l e não estava envol~ido com a
dá importância ao mundo externo e à consciência. Pro- l' ri ação; esta foi obra de Yahweh, o mau, que mterpreta-
vavelmente, é vantajoso não adotar uma posição muito v:i m como uma figura demoníaca, luciferiana.26 Isso ex-
radical pois sempre temos em nós os dois lados. Assim pli ca por que a criação é tão má; dessa maneira, segundo
temos esses dois deuses de criação em nossa alma, e de- os ensinamentos gnósticos, Cristo tinha de descer para
vemos nos dar conta de que os dois possuem em si prós e n~dimir o povo e levar suas almas de volta para Elohim,
contras, e que este é, simplesmente, um paradoxo insolú- para o deus mais alto e bondoso, que nunca havia tom~do
vel de nossa existência humana. Eu só estou aludindo su- parte da criação. Esse ensinamento h erege se encaixa
perficialmente a esses opostos para ilustrar que o motivo naquela sentença do Gênesis. Nela podemos ver que_, ~m
dos dois criadores inclui um dos mais profundos proble- contraste com a nossa avaliação enormemente positiva
mas da humanidade, a saber, a questionabilidade do de- da criação (i. e., a consciência), até naqueles tempos ha-
senvolvimento de uma consciência cultural no homem. via essa outra avaliação de que o passivo, aquele que se
havia retirado, o que se havia mantido de fora, é a figura
A dualidade do deus criador imiscuiu-se até mesmo positiva, e o ativo, aquele que realiza a criação, é um agen-
em nossa tradição, através do fato de que o mito de cria-
te diabólico, destrutivo.
ção da Bíblia foi um amálgama que resultou numa única
versão obtida a partir de duas: o texto em que Yahweh é o Essa idéia gnóstica é baseada na experiência sensí-
único criador, e a segunda versão, em que o criador é cha- vel da realidade como algo maligno. Os que acham que a
mado de Elohim. O verbo que acompanha os feitos de criação e a vida humana são um fracasso compl~t o e não
Elohim é conjugado no singular, embora a terminação deveriam ter acontecido, que é deplorável que exista essa
de Elohim seja plural. Se entendermos que Elohim re- realidade em que vivemos, atribuirão ao criador do nosso
presenta, em nosso desenho, a totalidade pré-consciente, mundo todos esses males. Provavelmente n esse mito
isso se torna claro porque a totalidade pré-consciente re-
presenta uma multiplicidade, no sentido de que simboli-
za a totalidade da consciência e do inconsciente e que, 2s Hans Leisegang, Die Gnosis (Leipzig: Kroner, 1924), pp. 116-25.

108 109
gnóstico existe uma certa dose de influência do extremo 11omem consciente, foi uma catástrofe, uma desastrosa e
oriente; para o budismo, a realidade é considerada má e a 1·1 ilamitosa criação que, do ponto de vista da vida em si,
l.nia sido melhor que nunca tivesse ocorrido.
consciência do Eu é má. O objetivo da vida é escapar dela.
Também em outras civilizações existem tendências simi- Claro que essa é uma forma deveras radical de dizê-
lares a se considerar a criação como um erro crasso que 1,o, e de causar um estremecimento proposit al, levantan-
não deveria ter sido cometido, que foi a sombra de Deus, do dúvidas, em nosso íntimo, a respeito de a consciência
por assim dizer, que o levou a criar e que se ele tivesse 111•r de fato o máximo, ou inerentemente boa. Pelo contrá-

tido consciência do que estava fazendo não teria criado rio, é uma coisa perigosa também. Algumas raças experi-
esta realidade miserável. Quando se trata de uma avalia- 111cntaram mais intensamente esse aspecto. Ret ornaremos
ção sensível ou ética da criação, então depende realmen- posteriormente a esse tema da consciência demoníaca e
te da reação humana. 110 aspecto demoníaco da criação.

No mito taoísta-chinês que estarei discutindo poste- No meu desenho do círculo, o tipo pai caracteriza
riormente, os deuses que representam a consciência são pHicologicamente a totalidade da psique pré-consciente,
decididamente maus, e os que simbolizam o inconscien- ,,m que o consciente e o inconsciente são um só e em que o
te são bons. O clima implícito neste mito de criação, por- Li po ativo e mais criativo corresponderia à tendência de
tanto, nos informa que a criação é catástrofe. Não deve- l'ormar um campo de consciência mais iluminado, que
ria ter acontecido. Para nós, ocidentais, essa idéia pode <!volui mais lentamente a partir da totalidade pré-cons-
parecer muito estranha. Entretanto, se tentarmos por um ciente. A totalidade pré-consciente, represen tada pelo cír-
momento vê-la do ponto de vista do mundo animal na culo grande, muitas vezes se torna depois, nos m itos, o
época em que o homem ainda não havia se destacado dos deus dos mortos como, a título de ilustração, no mito iroquês
animais, no período neanderthal por exemplo, quando pe- e.lo Broto Macho e do diabo com cabeça de pederneira,
quenos bandos de humanos vagavam em meio a outros Tawiskar on. O Criador Pederneira, o malvado, é perse-
bandos de animais e não diferiam destes em nenhum as- guido e expulso desta terra e se refugia no oriente, e lá
pecto significativo, então pode-se facilmente imaginar que passa a viver com a Terra Mãe no Além, cercado por gelo.
a criação foi menos destruída naqueles tempos do que hoje. E le é o grande deus para o qual acorrem os mortos. As-
Isto é especialmente relevante quando se reconhece o fato sim, podemos dizer que voltam para a totalidade pré-cons-
de que, por meio do desenvolvimento da consciência hu- ciente, para o pai, para a coisa mais velha, quando dei-
mana, somos capazes de destruir todas as formas de vida xam a realidade e o campo da consciência. Esse padrão
deste planeta, incluindo aí as plantas e as pessoas, por também pode ser encontrado em certos mitos de criação
meio da radiatividade ou da explosão de uma bomba atô- africanos, como naquele em que os dois criadores são o
mica. Se o mundo fosse terminar dessa maneira, o que Vermelho e o Negro. Este é o deus dos mortos, que está
está absolutamente dentro do âmbito das possibilidades, fora da criação, e o Vermelho é o deus criador. Os mortos
então seríamos obrigados a dizer que a descoberta da cons- voltam para o Negro. Aqui o Negro não é maligno, mas,
ciência humana feita pela natureza (pois a consciência como Osiris no Egito, é simplesmente o deus dos mortos,
humana não é obra nossa, mas sim a natureza e a histó- da noite, do Além, pois a morte não é simplesmente o fim da
ria de nossa própria evolução nos levaram a atingir essa vida, e sim, uma outra forma de existência no Além. Lá
consciência) foi efetivamente uma catástrofe. Então esta- os mortos continuam a viver com o deus Negro, ou seja,
ria provado que a criação do homem, principalmente a do na totalidade pré-consciente.

110 111
O motivo do gêmeo naturalmente não se restringe aos , 11derizações de conteúdos conscientes. Quer dizer, se di-
mitos de criação. Há inúmeros mitos de herói em que exis- 11•mos que algo representa conteúdos espirituais da psi-
te um pai como Gilgamesh e Enkidu. Nesses mitos de dois q 11c, incluindo conteúdos psicológicos, que não têm reali-
heróis, há uma certa similaridade com os nossos dois cria- d11de material, ou se falamos de algo que tem realidade
dores, pois é em geral um tipo mais sombrio, como Enkidu. 11rnterial, as duas coisas só podem ser percebidas por meio
No mito de Gilgamesh e Enkidu, descobrimos que da psique. Algumas nós caracterizamos como material-
Gilgamesh está ligado ao deus sol e que Enkidu vai pri- 111cnte reais e outras, como espiritual, interna ou psicolo-
meiro para o mundo inferior. Enkidu está mais relaciona-
v.icamente reais.
d~ com a morte e é o mais mortal dos dois; ele precede
Gilgamesh na terra dos mortos e é o tipo mais antigo de Se tentarmos chegar ao fundo do problema, a única
homem, com seus comportamentos arcaicos e animalescos. rPalidade imediata que podemos perceber é a realidade
Devemos pressupor que essa dualidade é uma lei básica psicológica; não conseguimos ir além dos conteúdos da
de todas as manifestações psicológicas e não aparece só na nossa consciência. Tendemos, porém, a caracterizar al-
origem da consciência, quer dizer, nos mitos de criação, ~uns conteúdos da nossa consciência como materialmen-
mas também em muitas outras narrativas. No ensinamento 1.c reais e outros como psíquica ou espiritualmente reais.
dos órficos gnósticos, por exemplo, existe a noção de dois Tanto a realidade material como a espiritual são em úl-
salvadores; dizem que havia dois Adãos, o homem original tima análise transcendentais, mas não transcendentais
que foi criado antes que existisse o tempo (i. e., o homem 1·m algum sentido filosófico ou teológico. Para a termi-
inconsciente), e o ser humano que, tendo adquirido a gnose nologia junguiana, transcendental significa simplesmen-
(a consciência), renasce do homem espiritual pneumático e te o que transcende a consciência, o que transcende a
se torna idêntico ao primeiro homem. Um dos textos dessa possibilidade da percepção pela consciência: são os con-
seita diz que têm, na frente de seus templos, as estátuas de teúdos unanschaulich (inobserváveis), e esse termo vem
dois homens idênticos, representando o primeiro Adão, que da física. A quarta dimensão, por exemplo, seria inob-
estava lá antes que tivesse acontecido qualquer coisa, e tam- servável, quer dizer, não podemos formar a seu respeito
bém o homem espiritual - anthropos pneumatikos - que uma imagem interna, uma representação na imagina-
possui exatamente a mesma aparência de Adão. Temos no- ção. Sua realidade pode ser concluída matematicamen-
vamente aqui o motivo do dois: um é o homem inconsciente te, ou seja, chegamos à sua realidade por um processo
em sua totalidade pré-consciente e o segundo é o homem de conclusões lógicas, mas não podemos representá-la,
espiritualmente r enascido que novamente alcança essa pois não temos dela uma imagem interna imediata. Isso
mesma totalidade mas de forma consciente. 27 é verdade também para os arquétipos que, em si mes-
Jung define a psique como uma totalidade conscien- mos, também são inobserváveis. Não temos idéia do que
te-inconsciente. Para ele, o termo psyche significa a tota- são; o que podemos observar são as imagens arquetípi-
lidade dos processos consciente e inconsciente. Dualida- cas, com base nas quais concluímos que existem coisas
de também se refere ao problema da psique e matéria. tais como arquétipos que, em si mesmos porém, não po-
Matéria e psique aparecem na esfera psicológica como ca- demos imaginar. Por conseguinte, Jung diz que em sua
natureza essencial os arquétipos são inobserváveis, da
27
mesma forma que se dá com a matéria porque alcança a
lbid., capítulo intitulado "Die Ophiten". quarta dimensão. A psique inconsciente é inobservável
112 113
11111 11' 11111 p1üque e suas imagens são a única realidade que
111111
11
of'o rccida de imediato, ou seja, a única realidade Estou me alongando nessa discussão porque o proble-
1 1
11 " pod ümos observar diretamente. ma da totalidade consciente-inconsciente pré-consciente, que
c•m nosso desenho seria o círculo sem o campo de luz em
O fisico Wolfgang Pauli citou essa explicação de Jung volta, estaria nesta perspectiva incluindo toda a realidade
0
a~rescentou-lhe alguns pontos esclarecedores. Estou ex- e~ m si, não só o campo psíquico, mas o físico também. Essa
tramdo estes dados de uma palestra que Pauli apresen- questão ainda está em aberto, e só é uma hipótese que nos
tou por ocasião do octogésimo aniversário de Jung. 28 N es- 11j uda a pensar nesses fatores. O fato de não podermos nos
sa 0 portll:nidade, Pauli disse que não é fato de não se po- 11rastar das estruturas básicas dessa totalidade pré-cons-
der 1,~agmar (quer dizer, ter uma representação disso) a ritmte-consciente é ilustrado por uma das teorias sobre a
°;1-atena ou o espírito que cria as dificuldades lógicas, mas origem do cosmo em que voltamos a nos deparar com o 1'.1º-
sim? que Jung afirma na sentença seguinte, a saber, que livo dos gêmeos. Há uma cosmogonia na física que tem sido
ª psique é "dada imediatamente" (dada a priori) pois sen- ,·laborada por Jordan e Dirac (Dirac diverge um pouco de
do uma totalidade consciente-inconsciente, como poderia ,Jordan de modo que, na discu ssão mais detalhada, surgirão
~er dada imediatamente? Se o físico mantém um olhar 11 lgumas diferenças). Esses autores começam com a idéia de
mgên~o diante disso, deve presumir primeiro que só os q11c o cosmo todo se originou de partículas gêmeas - de
conteudo~ conscientes são proporcionados imediatamente. dois elétrons que eram partículas gêmeas. Não havia nem o
O que vai além disso parece ao físico ser questionável por- lc·mpo nem o espaço; o continuum tempo-espaço só começou
q_ue _ele s: Pergunta se o que vai além também não pode- 11 existir com algum conteúdo. Na microfísica, também en-
na 1~clu~r o aspecto material. Abreviei o argumento de rnntramos a afirmação de que não existe um tipo único de
Pauli e so ªPresentei o cerne de seus comentários. Não se partícula desprovido de sua antipartícula.
tr~t~ realmente de uma crítica mas só de uma asserção Vemos nessa cosmogonia - projetada na matéria -
a_dicwnal, a saber, que essa totalidade consciente-incons-
11 mesma idéia dos criadores gêmeos. Embora nesta nova
ciente também inclui o mundo físico, ou seja, o mundo l"nrma surja como idéia da ciência natural, ainda se pode
que pode_ ser observado pelo físico em determinados pro- rc•conhecer claramente a m esma estrutura ar quetípica
cessos_ microfísicos. Ele então diz que, se alguém imagi- H11bjacente à idéia, pois essa dualidade de todos os con-
nar O mc?nsciente em oposição à matéria, estará indire- 1c·údos conscientes-inconscientes, assim como de partícu-
tamente isolando em excesso o inconsciente do aspecto l11s e ant ipartículas, mostra um paralelismo notável. Por-
~ateria! da -realidade. Penso que aqui Pauli não contra- 111 nto, realmente não surpreende que se identifique esse
diz Jung, POt-que este mesmo diz que o lado material é só 111otivo da dualidade em todas as tentat ivas humanas de
uma caracte-rística das coisas no plano subjetivo; ou seja, 11<· descrever os processos básicos por meio dos quais co-
caracterizam.os certas coisas como materiais, todavia não 11111çou a existir a nossa consciência da r ealidade.
podemos provar imediatamente a sua existência.
Devo porém dizer que o esquema montado aqui é em
p11 rte suspeito , pois assim que se esboça alguma coisa,
28
Wolfgang Pauli, "Naturwissenschaftliche und erkenntnistheoretische dt•ixando de lado alguns aspectos para se esclarecer ou-
Aspekte der ldeen vom Unbewussten: Vortrag anliisslich des 8 0. 1 rns certas coisas são mais enfatizadas e, com isso, todo
Geburtstages vo:n e. G. Jung". Reimpresso em Aufsiitze und Vortriige über 1 i po' de esboço é um pouco errado. Portanto, quero que
P~iySik u nd Erkenntnistheorie ed. Wilhelm Westphal (Braunschweig:
V1eweg, 1961). ' vocês entendam o que lhes apresentei apenas como uma
i111 stração relativa. Retomarei este ponto mais adiante.
114
115
Gostaria agora de contar um sonho individual sobre Sonhara que um colega tinha aparecido em seu con-
um problema criativo, para ilustrar, ou para nos trazer 1wltório (que fica num apartamento no andar debaixo de
de volta à dimensão mais prática do problema, também onde ele mora) e novamente desaparecera. Esse colega é
como demonstrar como essas coisas funcionam na reali- 11 m americano muito extrovertido, interessado em gené-

dade. Deve igualmente servir para ilustrar em que medi- t.-ica, que trabalha com problemas relativos à ár ea. Então
da a sombra costuma estar envolvida nos passos iniciais o sonhador está em seu apartamento e se sente muito mal.
de um processo criativo. Tendo Raposa de Prata e Coiote, S ua esposa diz que devem ir ver um ginecologista. Ela
Kadifukke e Mkullu e outros em mente, vocês vão poder t.clefona para um colega ginecologista que vem imediata-
entender como o seguinte sonho é engraçado. mente. E le é um tipo durão, extrovertido, que começa no
mesmo instante a se queixar do problema de dar atesta-
Há ainda um outro aspecto a que esse sonho deve dos ou de fazer abortos legais em mulheres. Ele diz: "Você
servir de exemplo. No mito iroquês era uma mulher o prin- Lambém não passa por essa experiência de as mulheres,
cipal agente da criação. Ela representa o princípio femi- quando vêm querendo tirar um filho, estarem tão impos-
nino, tanto nas mulheres como nos homens. Como é bem s íveis, tão difíceis de se conversar - elas querem o filho e
sabido, Jung chama o aspecto feminino do homem de ani- não o querem? Elas não querem analisar o problema, só
ma. Como veremos, a anima tem um papel importante na desejam rapidamente pagar pelo atestado. São muito obs-
vida criativa do homem. (O animus, por outro lado, é im- Linadas e a gente t em grandes dificuldades para conse-
portante na criatividade da mulher.) guir falar com elas e realmente levar o problema a sério:
Este sonho foi narrado por um médico, um clínico ge- elas só querem uma solução superficial, e a gente sabe
ral, que tinha passado por análise junguiana, e que depois que os problemas surgirão novamente". Depois esse gine-
mudara de país, mas mesmo assim foi em frente, traba- cologista prossegue dizendo que, no caso de uma certa grá-
lhando os seus próprios sonhos sem mais análise. É um vida que atenderam, tiveram de decepar com uma nava-
tipo introvertido sensação-intuição e, portanto, muito ca- lha, dentro dela, a cabeça do embrião (naturalmente isso
paz de pescar as coisas do próprio inconsciente. Foi em fren- é uma cirurgia onírica) mas o embrião continuava vivo; a
te, entendendo muito bem, segundo me disse, mais ou me- gestação foi em frente e a criança permanecia no útero e
nos 60% de seus sonhos. Ele se sentia bem e não tinha continuava a crescer.
problemas aparentes; seu casamento e sua carreira profis- O sonhador entra na conversa e diz: "Sim, é horrível,
sional estavam indo bem a contento. Mas quando veio ter eu realmente gostaria de desistir de dar atestados de abor-
comigo disse que há algum tempo vinha se sentindo ente- to. Eu sei que isso é um horror. A única coisa que se pode
diado e vagamente inquieto, com a suspeita de que estava fazer é parar para cuidar disso, e fazer um esforço terrí-
começando a ser um bem-sucedido sujeito de peito estufado: vel para conversar com a mulher e atingir realmente o
tudo acontecia com facilidade e estava bem e ele não tinha fundo do problema. Aí, em geral, descobre-se que ela quer
do que se queixar, mas tudo era, de certo modo, insatisfa- conservar a criança. Mas é um esforço tão grande que
tório. Então, do nada, ele entrou numa tremenda depres- praticamente não pode ser feito" . Com isso, o ginecologis-
são, que começou no dia imediato após o sonho seguinte, ta sai de novo. Há pacientes aguardando na sala de espe-
que ele não conseguia entender. Por isso marcou um horá- ra e o sonhador acha que não pode trabalhar; ele se sente
rio comigo, para que eu lhe explicasse seu sonho. mal demais. Sua esposa ri e sacode a cabeça, dizendo:

116 117
!,lema criativo. Freqüentemente presenciei que, em in-
" N nn, 11 11 11111 ho de limpar a minha prata, obrigada!" As-
11 1111 , 1d11 1-11• nl"n::; ta, desapontado, e acorda n uma profunda
1.rovertidos, o primeiro impulso rumo a uma idéia ou ati-
d 11 p111111-rno, que permanece daí em diante. vi dade criativa é despertado por algo que vem de fora;
vem da metade sombra da personalidade. É a primeira
11:vidcntemente, se uma mulher chama um ginecolo- 1-11spiração, por assim dizer. Neste caso, era muito claro:
g istn para o marido é porque ele está grávido; portanto, 11 autorização do governo para lidar com um certo proble-
11pcsar do fato de o sonho não dizê-lo, se ele precisa de um ma veio estritamente de fora, através de seu lado sombra
ginecologista, está muito claro que, de alguma maneira, ambicioso e extrovertido, mas que colocou em movimento
a anima grávida com quem ele, segundo o sonho, é secre- Lodo o processo criativo. Quando ele começou a tr~ba~har,
tamente idêntico, é o verdadeiro problema. Ele não preci- de repente se sentiu grávido com um monte de _id~ias a
saria de um ginecologista por outro motivo. No sonho, respeito do que podia ser feito. Pensou que devena m~es-
portanto, a conversa toda gira em torno de problemas de Ligar isto e aquilo, e ficou excitado mas, sendo preg~.n?~-
mulheres grávidas que querem e não querem fazer um so, rapidamente reprimiu a germinação dessas poss~bih-
aborto, o que naturalmente se refere à sua anima e indi- dades e tentou levar em frente sua vida no mesmo ntmo
retamente a ele. Mas o aspecto interessante é que o so-
normal.
nho não começa com a anima - sabemos, pelo mito da
mulher que cai do céu - pois a figura da anima é media- Podemos ver como a dualidade emerge, primeiro na
dora dos processos criativos. Vemos aqui, no breve apare- l"igura do americano e depois, na do ginecologis~a: A asso-
cimento do americano que estuda genética, primeiro a apa- ciação com esse último foi que era um col~ga med~co, u~a
rência de uma figura de sombra. O sonhador tinha rece- pessoa durona e extrovertida, aquele tipo de cirurgiao
bido do governo a oportunidade de pesquisar um certo "duro na queda" sem muitos sentimentos mas de alta efi-
problema médico de ordem psicossomáica. Quando come- ciência; portanto, novamente há o envolvimento da soi:n-
çara a trabalhar nisso, uma avalanche de idéias interes- bra. A sombra se queixa do problema dos abortos legais.
santes lhe ocorreu e ele rapidamente percebeu que, por Agora isso corresponde ao aspecto negativo da extroversão
intermédio desse trabalho, poderia descobrir muitas coi- desse homem; o aspecto n egativo da sua sombra , que qu~r
sas novas e interessantes. Mas, para o sonhador, esse tra- uma solução rápida, curta e grossa. O ginecologista diz
balho não tem nada a ver com genética; portanto, deve que, no caso de uma certa grávida, eles tiveram de dece-
ser entendido simbolicamente. Ele havia estudado os pro- par a cabeça do embrião com uma navalha, m~s que essa
cessos microfísicos e as mutações que levam à origem de criança continuou crescendo da mesma maneira. J?esco-
um ser humano e tinha feito um estudo especial do pro- brimos o que isso queria dizer: num momento de impa-
blema - agora tão difundido - de se desencadear muta- ciência, ele chega a pensar em fazer apenas o que o ~o-
ções com aplicação de raios-x nas células germinativas. verno pedira - em mais ou menos dez págin~s - ~nviar
a pesquisa e se livrar da coisa; então, não sena mais ten-
Esse é um problema de natureza extrovertida que
tado a ter idéias criativas a r espeito desse tema. Isso se-
diz respeito à origem da vida. Aparece na figura de som-
ria o mesmo que decepar a essência do embrião, cortar-
bra do americano extrovertido. Exatamente como com
lhe a cabeça e todas as idéias criativas; era só fazerº. que
Raposa de Prata e Coiote, você tem aquele momento em
que a sombra aparece mas não faz nada; ele só fica por ali estivesse mais à mão no momento, o que o governo tmha
um instante mas então, de repente, tem início todo o pro- mandado, sacrificando o resto.
119
118
O i;onho, todavia, relata que isso não adiantou nada, doença do homem, podemos concluir que o problema das
cn 1 queo embrião continuou a crescer; esse aborto rápi- 111ulheres grávidas é a doença do homem: sua anima está
do, racional, concluindo a tarefa e depois não tendo mais 1,trávida. Sua anima, seu lado feminino sensível, não é
idéias criativas a seu respeito, não tinha dado certo. Em-
rapaz de resolver se dará à luz o filho concebido em seu
bora o ginecologista cirurgião extrovertido seja uma figu-
intimo - ou seja suas idéias criativas - ou se vai jogá-
ra de sombra e quase destrutivo, porque ele também está las fora na cesta de lixo, assim abortando-as. Essa é a
perto de sugerir a supressão rápida e radical de um im-
s it uação dele como sonhador. E se expressa por meio de
pulso criativo, vê-se que é absolutamente necessário por-
11 ma mulher e é exemplificada por uma mulher porque,
que, de maneira luciferiana, acelera o problema interior!
cm última análise, não se trata de uma decisão intelec-
Nosso sonhador ficaria ruminando a dúvida, ou seja, se de-
tual mas, sim, de uma decisão que pertence ao âmbito
veria ou não escrever sobre as suas idéias, ou ficaria so-
dos sentimentos. Com seus sentimentos, ele terá de deci-
nhando com suas idéias criativas para sempre, se não fosse
dir se cultiva essas idéias criativas e se amorosamente
essa sombra brutal, primitiva, extrovertida, que de tempos
1hes dará vida, ou se não dá a mínima para elas e, porque
em tempos diz que devem remover uma coisa ou não.
das não têm a menor importância para ele, pode descartá-
Vemos assim como a sombra, ou o criador duplo, é 1as e pronto. É claro que sua ambição somente não é em si
necessário para produzir o trabalho. A conversa toda, em um impulso suficiente. Quando se trata de idéias criati-
vez de girar em torno da doença do homem, versa sobre a vas, é sempre assim. Quando as t entativas são feitas ape-
obstinação das mulheres grávidas: como elas realmente nas para realizar a criatividade, através da ambição, não
não sabem o que querem e, diríamos, estão cheias de opi- se consegue fazer muito. A ambição surte um efeito este-
niões de animus. Nosso sonhador apenas disse que eram rilizador sobre a criatividade. Assim, ser criativo por uma
obstinadas e cheias de idéias estúpidas. Isso se refere ao questão de ambição não dará em nada. É preciso amor, a
fato de que o inconsciente, e a anima como portadora da contribuição do lado sensível da pessoa. E a impressão é
personificação temporária dos impulsos inconscientes, que ele, e sua anima menos ainda, é incapaz de chegar ao
sempre tem essa tendência dual que quer, e ao mesmo ponto de fazer essa contribuição afetiva. Aparentemente,
tempo não quer produzir. Quer produzir uma idéia criati- porém, "algo" dentro dele quer conservar a criança.
~a; oferece-a com a mão direita e retira-a com a esquerda.
E aí que a consciência tem de intervir, ou trazer o peixe Para mim é uma questão a ser entendida objetiva-
para a orla, ou devolvê-lo à água. mente: sua clínica de médico geral pressiona-o bastante
pois é muito difícil para esse profissional ser criativo quan-
Essa estranha tendência dupla do inconsciente de do o telefone e a campainha da porta tocam sem parar e a
fazer algo emergir e depois não querer entregar esse con- sala de espera vive cheia de gente. Portanto, trata-se de
teúdo à consciência tem a ver também com o problema de um problema concreto, isto é, a tentação de escapar ao
que todo impulso criativo é duplo. Sempre existe um as- trabalho cotidiano. Depois vem outra tentação, a de fugir
pecto "sim" e um "não", um lado ativo e um lado passivo. pedindo à esposa que faça por ele a sua obrig~ção. Na
Aqui, os lados ativo e passivo se refletem na atitude dual r ealidade, ele lhe havia perguntado se ela poderia escre-
das mulheres grávidas que querem e não querem o filho. ver sobre o problema, entretanto ela não estava nem um
Como o ginecologista e o homem discutem o problema psi- pouco disposta a isso. No sonho, ela diz que tem de lim-
cológico das mulheres grávidas em vez de examinarem a par a própria prataria. Isso, no presente caso, também
120 121
deve ser entendido objetivamente, pois ela se encontrava l1'1rou possuído por uma mulher grávida e se sentiu como
com um problema pessoal no qual estava trabalhando e 1111,a mulher nos últimos meses da gestação. Portanto,
portan_to, não se sentia aberta à sugestão dele. o sonho pode-se dizer que, se a anima do homem se tornou criati-
conclui sem solução e, a ssim, desse momento em diante v11 , então ele se desvencilhou dessa anima grávida do jei-
ele_ se s_e1:te absolutamente exposto, numa depressã~ 1o certo e seguiu em frente com a criação; ou seja, por
muito sena, apenas se arrastando pela vida e se conside- 11xemplo anotou as idéias que estava tendo. Se, em vez de
~a:1:do um emproado idiota, insignificante, que não tinha , li' sentir doente e ficar caindo pelos cantos como u ma
ideia do que estava lhe acontecendo. 111ulher doente, ele tivesse indagado o que estava aconte-
t'<'ndo consigo e por que estava t endo aqu elas idéias, e o
. Fiquei impressionada porque o sonho mostra, resu-
qu e fazer com elas, então poderia ter consultado outros
mi~amente, em nível pessoal, todos os agentes dos quais
n1a teriais ou a liter atura sobre o tema etc. De certa ma-
estavamas falan~o, _e, n_un: nível mais arquetípico, ilus- ne ira, ele estaria então s e desvencilhando do e stado
tra a dupla tendencia criativa do inconsciente. No sonho
J.(rávido e isso teria sido o jeito certo de empurrar a ani-
a mulh_er grávida é o primeiro passo rumo a uma criaçã o:
e depois vem a doença do sonhador. Se vocês se recor-
'"ª no rumo da criação. A outra forma seria reprimir o
problema e não fazer nada e, nesse caso, o sujeito setor-
da m, nosso chefe iroquês sentiu-se muito mal e horrível
na idêntico ao estado em que está o inconsciente. Ele se
qua1;do a mulher engravido_u, mas muito melhor depois Lransforma tal qual a anima grávida, mas de forma desa-
de te-la empurra?º para baixo. Nosso sonhador procura 1-(radável, e eu diria, portanto, que ele se sentia como o
f~zer a mesma coisa: ele tenta empurrar a coisa de lado e
chefe antes de t er empurrado a mulher pelo buraco, ou
d~z que agora ~e sent~ melhor de novo, e que já se deci- seja, muito mal e piorando cada vez mais.
dm; Com ele na_o funcionou desse jeito porque O embriã o
esta em sua anima - quer dizer, em seu próprio íntimo Assim é que existem duas maneiras: a repressão ou
-: e , apesar de acéfala, continua simplesmente crescendo o desven cilhamento pela expressão. Há um outro aspec-
e mdo em frente feliz da vida. to. Se o indivíduo continua em aranhado no processo cria-
tivo pré-consciente, fica secretamente inflacionado. Os ho-
Se ,ª anima de um homem está grávida, ele pode mens criam então uma barriga parecida como a de uma
empurra-la de lado de duas maneiras. Nosso sonhador a mulher grávida, mas fisicamente, o que existe é uma in-
empurrou de lado do jeito errado, tentando desviar os flação. Por assim dizer , a gravidez é uma inflação. As pes-
o_lho_s e não fazer c~is~- alguma acerca de seu problema, soas às vezes resistem a se tornar criativas porqu e a pos-
~mgmdo que essas ideias nem existiam. O chefe ongwe sível criatividade de uma pessoa é sempr e muito mais im-
iroquês t~mbé~ empurrou a mulher grávida, mas de ou- pression a nte e importante do que o pequeno ovo que apa-
tra ma~e1,:a, pois ele a fez cair na terra, que é onde come- rece ao final, quando acontece o parto. Quando se está
ça~ cnaça_o. Sempre que existe uma constelação criativa repleto de idéias em potencial, então sentimos que pode-
no mconsciente, ou seJa, quando o inconscient e concebeu mos ir muito além de tudo que Jung t enha dito; é a sensa-
um filho , s~ n_ão o colocamos para fora na forma de um ção de que se vai parir uma idéia c~paz de revolucionar
tra~alho criativo,_ somos em vez disso possuídos por ele. toda a nossa era e assim por diante. E isso que se sente -
Voces_poden: ver isso no caso desse nosso sonhador, que, e muito legitimamente, diga-se de passagem - quando
p~r nao ter ido em frente e escrito sobre suas idéias ou se está grávido, porque o inconsciente inteiro est á conta-
feito algo criativo, adoeceu, como adoecem as grávidas. minado pela idéia criativa pré-consciente. Você carrega a
122 123
grande divindade em sua barriga, por assim dizer. Mas 11c•is anos é que a pessoa toma distância suficiente para
quando se senta e começa a árdua tarefa de exprimir as 11c•r capaz de examinar aquele fruto de sua criação como
idéias, vem uma terrível desilusão e o que é enfim produ- 11e• tivesse sido produzido por um terceiro. Na hora da cria-
zido geralmente não passa de um lamentável resquício ~11 0, ou a pessoa está excessivamente perto, ou distante
daquilo que você sentiu que seria, quando ainda estava cle·rnais, do seu próprio trabalho. Este é novo e inédito em
dentro de seu útero psicológico. Por dentro, parece uma cle·ínasia. É assim que essa enorme tensão entre opostos
coisa tremenda, mas quando você a traz para fora há sem- le ·rn origem e que esses são projetados, também nos mitos
pre uma certa redução. Parturiunt montes nascetur ridi- ele· criação.
culus mus, como diz o provérbio latino: parece o trabalho Às vezes, o problema está no fato de quanto você é
de parto de uma montanha e o que nasce é um camun- e 11paz de trazer à luz, e o quanto você precisará deixar
dongo ridículo. Esse estado é típico; todavia, a única coi- p11ra trás. Toda questão que você toca vem de centenas e
sa a fazer em tais circunstâncias é permitir ao camun- 111i lhares de problemas; você vai cada vez mais fundo e
dongo nascer, pois é possível que ele se revele mais que 1'111.ão tem de decidir o quanto vai expor e o quanto vai
isso. Certamente, às vezes também é só isso mesmo. Mas 11111itir e até que ponto irá prosseguir com as suas investi-
nunca se pode saber antes o que será. E a única forma de 1<11c;ões. Isso é talhar, deflacionar; sempre é uma decisão
comprovar se se trata de uma criança linda e viva ou de d11lorosa a ser tomada e as pessoas muitas vezes costu-
um aborto infeliz e deformado, é colocando para fora. Em 1111,m preferir passar anos a fio num estado de criativida-
nossa sociedade humana, não podemos nos desvencilhar de • potencial, com uma barriga enorme, e com todos os
das crianças deformadas, mas podemos descartar as idéias 1111,Lomas desagradáveis de uma irritação constante, que-
deficientes e lançá-las na cesta de lixo, caso não sirvam 11•11do vomitar, com inquietação e acessos de mau humor.
para nada. Ou, se o sujeito chegou nesse nível, tem de
dar à luz e então lidar com o que surgir. Mas o nascimen-
to é uma deflação porque enquanto você está carregando
em seu íntimo a idéia criativa, ela ainda está conectada
com a totalidade do inconsciente e, portanto, você se sente
repleto de idéias.
Esse entusiasmo que a pessoa sente, provavelmen-
te, tem seu lado positivo; mas, é claro, isso nem sempre
acontece. O estado oposto também pode ocorrer. Em mui-
tas situações, a condição da pessoa flutua entre o entu-
siasmo jubiloso e a depressão mórbida. Quer dizer, num
ponto a pessoa percebe que realmente alcançou uma coi-
sa grandiosa e, na outra, sente-se muito deprimida. Toda
pessoa criativa tem de passar por esse processo em al-
gum grau. Uma outra característica ainda é que, no mo-
mento da criação, a pessoa não tem como acessar o que
fez. Ela simplesmente não sabe o valor dessa criação. So-
mente depois de um período de mais ou menos cinco ou

124 125
Capítulo 5
11111 tipo de artista divino que moldou a montanha e escul-

DEUS FABER p111 o céu. Geralmente, é representado na companhia da


111 rtaruga primordial e de uma criatura semelhante à
111 11 ix. Estes simbolizam os elementos básicos do mundo.
N 11 qualidade de Deus criador, ele também era às vezes
, ,•presentado com u ma enxó, um martelo ou um cin zel.
Um Deus fab er da cosmogonia egípcia é o deus Ptah,
de · Mênfis. 29 Era tido como o criador do mundo todo e até
dos outros deu ses, moldando-os em sua roda de oleiro.
Mais tarde, pensava-se que habitava o coração e espe-
rnd mente a língua de todos os seres. Os egípcios conside-
rn vamo coração como a sede da alma e da consciência da
1u·ssoa. Por esse motivo, a linguagem e a consciência, as-
Um par de opostos muito proeminente no motivo do 1:i m como o que hoje chamaríamos de alma, eram enten-
criad~r duplo é o ativo/passivo, e a tendência a se tornar didas como originárias do coração. Na qualidade de deus
conscien_te deve ser entendida como a parte ativa. Esta cio mundo civilizado, Ptah est á assentado no coração e na
parte ativa r ecebe uma forma, especialmente no motivo l1ngua de todos os seres. Um texto elogiava Ptah da se-
do p eus faber. Deus fab er é um termo técnico que carac- f.: uinte maneira: ele se tornou a língua e o coração do deus
tenz_a D~us como o ~rtesão que, nos ofícios de arquiteto, i\Lum - o deus original - , o grande e poderoso P tah, que
carpmt~1ro ou ferreiro, cria o mundo em analogia com rr iou até os deuses e seu Ka. Thoth veio dele, Hórus tam-
algum tipo de arte ou habilidade manual. 1,ém. Ele é o deus cujo coração e cuja língua são podero-
Come?a.rei com ur.n criador chinês que é mestre em sos. Ele é o melhor que há em cada um, o melhor da boca
to?os o~ otic10s :manuais. Existe uma força cria tiva n esse el e todos os deuses e seres humanos, animais e serpentes.
mito chmes mais recente e o cria dor é chamado P'an Ku. l•'.le é aquele por meio do qual o coração vive e pensa; tudo
Pensava -se que, antes de existir o mundo, só houvesse o que ele deseja se realiza.
P'an Ku, na forma de um homem. Nas imagens ele é r e- Toda a corte dos deu ses de Atu m proveio de seus
presentado como uma cz;iatura de orelhas pontudas , co- potes e de seus dedos. Na roda do oleiro, ele criou potes
berta ~e fo}has verdes .. E uma espécie de figura cósmica dos quais se origina ram os deuses. Os deuses também são
de Adao. P an Ku era tido como o criador do mundo que os dent es e lábios de sua boca, pois ele anuncia todas as
ao mesmo tempo,_ se tornou o mundo; quando morreu, se~ coisas. Os olhos vêem, os ouvidos ouvem, o nariz respira
corpo se decompos e ~ransformou-se nas diferentes p ar- ar, e através de todos esses chega ao coração, mas é o
tes d_o mundo. Voltarei a esta idéia mais tarde, mas agora coração que toma todas as decisões e é a língua que repe-
deseJO apenas comentar sobre o aspecto ativo, onde ele é te o pensamento do coração. Assim foi que Ptah criou to-
representado como por~ado~ de um cinzel com O qual es- dos os deuses. Cada palavra divina é o pensamento de
culpe e talha o mundo mteiro. Este é um paradoxo, pois seu coração e veio de uma ordem dada por sua língua. Ele
ele ao n:i,esmo tempo ~az e se torna o mundo, de modo que,
na realidade, ele assim está formando a si mesmo. Ele é
29 Ver Roeder , Urkunden, p. 166.
126
127
nio u os espíritos da vida e os víveres e alimentos por toda \ l11111gem da tecelagem, portanto, é freqüentemente en-
11111-tc. E le criou o que as pessoas gostam e também o que 111111.rnda mais nas narrativas sobre deusas da natureza
detestam . Dá vida àqueles de.quem gosta e morte aos con- 1111 q 11c nos mitos de criação. Por exemplo, vocês se lem-
denados. Toda obra de arte realizada por mãos humanas 1,, 11 111 da deusa Nêmesis no Timeu de Platão. Ela é a deu-
foi feita por ele. As pernas e os braços se movimentam "" d11 lei natural. Senta-se no centro do cosmo e o eixo do
sob seu comando. 30 , 1111 1110 gira em torno de seu útero como uma roca.

Em outra parte do mesmo texto, onde é dito que Atum As atividades de fiar e tecer estão ligadas à idéia de
é o pai de todos os deuses, o próprio Atum admite que não é 11111.urcza. A deusa da natureza é o tear no qual Deus lan-
ele, mas sim Ptah de Mênfis, que criou todas as coisas. ~11 o f'uso para assim tecer o mundo. Um dos filósofos gre-
H"H pré-socráticos, Ferekydes, tem a mesma imagem: no
Podemos nos lembrar do conto africano, relatado no 11i1cio, h avia Zeus e Ctônia, a Deusa da Terra; o Deus Céu
capítulo anterior, em que os deuses criaram as coisas mol- 11 11 rasou com a Deusa da Terra e teceu o mundo todo como
dando-as em argila. Isso não é bem o mesmo que fazê-las 11111 grande manto, estendendo-o sobre um carvalho. O
na roda do oleiro mas se refere também a coisas que são 1111indo é, na realidade, um imenso casaco, umpharos (em
moldadas do barro. Essas tribos não tinham roda de olei- 1-( l't:go), estendido sobre uma imensa árvore mundial, o car-
ro; seus potes eram feitos à mão. Mwile e Kolombo mui v11 lho. Este contém o oceano, a terra e tudo o mais: a soma
fangi discutem sobre quem se fez primeiro. Nesse mito, loLal é a realidade. Por assim dizer, o mundo inteiro foi
Mwile pega um punhado de terra e forma um ser humano l1·cido pela divindade.
e depois Kolombo faz a mesma coisa; eles os comparam
para ver qual é melhor e depois destroem-nos de novo. Encontramos essa idéia do mundo como um imenso
Assim, também nos mitos africanos, Deus cria coisas do l.1·cido colorido novamente no conceito hindu do véu de
barro, como um oleiro. · Maya. Para a filosofia indiana, Maya é realmente a deu-
Hll do mundo das aparências que, até certo ponto, confec-
Outra arte manual às vezes mencionada em ligação r iona os dramas do mundo das exterioridades . Em siste-
com os mitos cosmogônicos é a tecelagem, por meio da mas posteriores de teor mais pessimista, ela é interpre-
qual Deus tece o mundo inteiro num tear. Isso é mencio- tada como a ilusão, em certa medida um ser fantástico
nado num comentário feito por Sayana, um estudioso que, com a ajuda da meditação, a pessoa pode dissolver.
hindu da era medieval que comentou o Rigveda. No ver- Ou é preciso se afastar dela, da mesma forma como se dá
so 10.82 do Rigueda é feita a indagação a respeito de as costas a alguma encenação en ganosa. Em sua forma
qual substância Deus criou o mundo. Sayana diz, em seu original, Maya era simplesmente a flamejante encenação
comentário, que Deus teceu a terra a partir da matéria de palco do drama mundial, que ela, como deusa, repre-
primordial. Tecer não é uma imagem usada com muita sentava numa dança dedicada ao Deus. O Deus masculi-
freqüência porque é naturalmente mais atribuída a uma no é pura luz e conhecimento, e sua Deusa, Maya, esten-
deusa; tecer sempre foi uma atividade mais feminina.ai dia o véu do mundo das aparências diante dele.

30 31 Franz Vonessen, "Deer Mythus vom Weltschleier", Mythische


Mircea Eliade, Die Schopfungsmythen (Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, 1977), pp. 134ss. Entwürfe (Stuttgart: Klett, 1975).

128 129
Os tecelões de tapete do oriente também têm essa Hlllo maniqueísta (séculos I e II d.C.), por exemplo, pen-
noção de tecer o tapete do mundo. Tecer tapetes é uma 1111va-se que Deus tinha criado o mundo como uma enor-
atividade de cunho profundamente religioso. Vonessen 1111' roldana com caçamba para que as almas perdidas na
escreve: "Tem sido dito que não há tapete persa isento de 1111curidão pudessem ser apanhadas e levadas de volta para
erro. Na realidade, os tecelões deliberadamente erram 11 t:éu. O pensamento por trás dessa imagem era que, em-
quando dão os nós para mostrar que não têm a intenção ltora a criação já tivesse ocorrido, era um caos sinistro.
de competir com a habilidade de tecer que é prerrogativa Portanto, para redimir o mundo e salvar a luz, ele tinha
dos criadores do mundo, mesmo que no contexto de um 1·onstruído o mundo na forma de um imenso caldeirão ata-
pequeno capacho". Encontramos o mesmo entre os chine- do à roldana, literalmente um tipo de máquina por meio
ses. Estes também eram da opinião de que nada na terra d11 qual aquelas partes da divindade que tinham despen-
deve ser perfeito, que em toda entidade deve haver um rndo nas trevas pudessem ser devolvidas à luz. 32 Esse tema
pequeno erro e que é por essa razão que sempre existe 11 parece com muita regularidade nos sonhos ou fantasias
algum defeito na fabricação de seus vasos artísticos anti- dn pessoas contemporâneas familiarizadas com máquinas.
gos. A perfeição é só para o divino e, portanto, é impró- As vezes, ele tem um leve tom negativo; nesse caso, seria
prio que alguma coisa fique perfeita. 11m mecanismo sem sentido que funciona sem nenhum
propósito. Mas, com mais freqüência, se examinamos de-
Tecer e fiar são freqüentemente expressões de uma tidamente o contexto, o tema pode ter um teor mais posi-
atividade de fantasia inconsciente. Também em sentido 1.i vo. Então, encontramos a noção subjacente de que a cria-
negativo, quando alguém diz em alemão que "er spinnt" ,·,1o ocorreu com um propósito, para a consecução de al-
(ele fia), indica-se que a raiz dessa palavra contém um ,-:-um objetivo, da mesma maneira que o homem inventou
elemento de fantasiar. A criatividade sempre envolve al- 11s máquinas para conseguir certas coisas. Esse pode ser
guma forma de atividade de fantasia que produz uma teia um motivo até mais raro, mas mesmo assim aparece.
de associações . Esta se desdobra como um trajeto que de Muito freqüente também é a imagem do ferreiro, da
repente sugere muitas conexões à pessoa; ela então per- terra que foi criada nas forjas do ferreiro. É assim que
cebe que uma idéia cabe aqui, que isto explica aquilo, e P'an Ku, em algumas representações chinesas, carrega
assim, de um momento para outro, se vê diante de uma um martelo; ele forjou ou ajuntou a terra às marteladas.
teia de pensamentos. Isso vale também para escultores e 8m alguns comentários ao Rigveda, Deus é caracterizado
pintores, que enxergam a imagem tornar-se progressiva- como um ferreiro que forja o mundo e lhe dá forma . A
mente enriquecida à medida que agregam mais idéias. imagem do ferreiro também é objeto de alusão no Enuma
Por isso é que em determinados pontos do trabalho, esses Elish , onde ocorre uma conexão interessante. O deus
artistas não têm idéia de como ir adiante com a obra. Isso Marduk molda o mundo a partir do cadáver de Tiamat.
comprova que a fantasia obedece leis próprias, estabele- Primeiro ele a mata e, depois, de seu corpo morto, cria o
ce sua própria rede de conexões e, de repente, produz um mundo. Ora, este cadáver da Deusa Mãe Tiamat assassi-
objeto inteiramente completo que, visto depois, dá a im- nada também é chamado de Ku-bu, e este t ermo técnico
pressão de incorporar uma totalidade abrangente.
Bem mais tarde na história surgiu a noção de que 32
Geo Widengren, Der Manichaismus (Darmstadt: Wissenschaftliche
Deus criou o mundo como um tipo de máquina. Na reli- Buchgesellschaft, 1977), p. 175.

130 131
quer dizer embrião ou barra de metal. Sendo assim, na o círculo na mão. Ele está sentado no trono acima do
arte da metalurgia temos Ku-bu, que era como trabalhar rnundo, fazendo o plano como um arquiteto que vai cons-
no cadáver de Tiamat. Este tema e todas as devidas refe- truir uma casa; assim, ele molda ou cria o mundo.
rências e comentários encontram-se no livro de Mircea O Deus que molda o mundo como um objeto morto é
Eliade, The Forge and the Crucible. 33 principalmente encontrado nas civilizações em que o as-
Um verso do Rigveda também faz elogios ao criador pecto técnico está mais desenvolvido. Também existe a
do mundo, um ferreiro, com as seguintes palavras: te ndência, nessas imagens do Deus faber, a usar apenas
como símile a idéia de criar o mundo como um carpinteiro
E também como um ferreiro o Senhor das Orações ou ferreiro, não como a noção concreta que aparece em
Forjou o universo num todo: outros mitos da criação. P en so que podemos concluir dis-
Nas mais antigas eras dos deuses so que os mitos de criação em que Deus aparece como ar-
Do que não era nasceu o que é. tesão refletem aquele estágio da consciência que j á se
desenvolveu em certa medida como uma força indepen-
Num outro verso do mesmo poema, o criador é cha- dente, separada do inconsciente. Assim, nessas imagens,
mado de carpinteiro. Uma das formas que nos é mais co- a divindade não é mais imanente ao mundo material mas
nhecida, porque em nossa arte medieval ela é geralmente existe fora dele e trata o mundo como seu objeto, como
artesão diante do material que usa. Para n ós isso parece
representada assim, é a idéia de que a divindade constrói
evidente por si, pois nossa tradição inteira nos treinou a
ou molda o mundo como um carpinteiro constrói uma casa. pensar sempre que Deus está fora do mundo e molda de
Ainda no Rigveda, no verso 10.81, lemos: "Diga-nos de alguma maneira seu material inerte. Mas, fazendo-se um
que matéria, de que árvore, foi que Deus moldou o céu e a apanhado geral dos mitos de criação, vemos que esse tipo
terra para que se mantivessem firmes e jovens para sem- de Deus retrata uma situação rara e específica. Reflete
pre, sem se partir em pedaços". O termo sânscrito para aquele estado da consciência que já se retirou de forma
madeira é o mesmo que o grego hyle, que significa tan- marcante, como entidade independente, do campo do in-
to madeira como matéria, inclusive a madeira usada em consciente e que, por isso, pode considerar o resto do ma-
construções. O vocábulo latino para matéria é também o terial como se fossem seus objetos inertes. Essa forma de
mesmo, ou seja, materia, que é igualmente material de consciência também exibe uma separação definitiva en-
construção, a madeira como material de construção, a tre sujeito e objeto: Deus é o sujeito da criação e do mun-
madeira que já está cortada e preparada para uso em cons- do e seu material são os objetos inertes com os quais ele
trução. Portanto, nas nossas línguas, a primeira maté- lida. Naturalmente, devemos corrigir essa visão colocan-
ria, o material do qual o mundo foi feito, desde os tempos do-a em seu devido contexto, a saber, que o artesão das
indo-germânicos até agora, tem sido a matéria-prima do sociedades primitivas nunca se imaginava ele mesmo fa-
carpinteiro, a madeira. Logo, é muito freqüente na arte zendo o trabalho. Hoje em dia, se você observar um car-
medieval Deus ser representado como um geômetra com pinteiro ou ferreiro, ele se encontra na condição de sentir-
se um ser humano com uma consciência independente,
que adquiriu com seu mestre o conhecimento de um ofício
33 Mircea E!iade, The Forge and the Crucible (Chicago: University of tradicional, com o qual trabalha a matéria inerte. Ele
Chicago Press, 1978), pp. 53ss. sente que sua habilidade é um bem inventado pelo ho-
132 133
mem, e que ele o possui. Se estudarmos o folclore e a mi- rnmo Deus criando o mundo, como se fora um artesão. Ao
tologia dos diferentes tipos de artesanato nas sociedades 1-riar o mundo através de uma arte manual, ele manifesta
mais primitivas, constataremos que estas têm uma visão 11 m segredo de sua misteriosa habilidade.
muito mais adequada a respeito. Todas elas ainda nar-
Há um mito africano no qual o termo usado para iden-
ram contos nos quais se diz que o homem nunca inventou
1.i ficar Deus é semelhante à habilidade e capacidade. A
os ofícios e habilidades, pois esses lhes foram revelados; divindade é definida como aquela coisa que aparece para
Deus é quem produz o conhecimento que o homem agora 11 homem como o mistério de uma habilidade ou capacida-
usa para seus propósitos práticos. de incomuns. É algo divino, uma centelha da divindade
Entre os aborígenes australianos há um conto mara- 11 cle, não sua posse ou conquista, mas um milagre.
vilhoso que diz que o arco e a flecha não foram inventa- Em virtude da relativa separação entre sujeito e obje-
dos pelo homem; mas sim que um Deus ancestral trans- 1.o nos mitos de criação, separação que caracteriza a cria-
formou-se no arco e sua esposa no fio , pois ela constan- ~:ii.o como uma moldagem que decorre de uma habilidade
temente estava com as mãos em torno do pescoço dele, manual, algumas pessoas têm pensado que isso extermi-
da mesma forma como o fio se enrola nas pontas do arco. na uma parte do aspecto da criação ao transformá-la (à
Assim, o casal desceu à terra e apareceu para um ho- parte) em objeto inerte. Quando colocamos a mão num
mem, revelando-se como o arco e o fio, e desse momento material qualquer, nós o tratamos em parte como mat erial
em diante o homem entendeu como construir um arco. O inanimado. Esse processo alcançou sua forma mais eleva-
ancestral arco e sua esposa então desapareceram de novo, da em nossa civilização, ao passo que em outras ainda há
dentro de um buraco no céu. Assim, o homem, como um resquícios de uma idéia segundo a qual os objetos têm vida
macaco, só copiou e não inventou, nem o arco nem a fle- própria. Temos a ilusão de que se trata de um objeto com-
cha. Da mesma forma, os ferreiros, como se pode depreen- pletamente inerte, que podemos manusear segundo nossa
der do argumento muito plausível defendido por Eliade, disposição de espírito. Para ilustrar a questionabilidade dessa
não acharam que tinham inventado a metalurgia; pelo atitude, quero apresentar-lhes um símile do filósofo cl].in ês
contrário, aprenderam a transformar metais com base no Chuang-Tzu, que criou um mito de criação oposto. E um
entendimento de como Deus tinha feito o mundo. texto relativamente r ecente, uma forma de protesto con-
tra a exagerada valorização da idéia de que é a habilidade
No fundo sempre há uma revelação divina, um ato humana que cria o mundo. Infelizmente, a tradução [para
divino, e o homem tem só a brilhante idéia de copiá-lo. o inglês] de que disponho é muito distante da tradução para
Essa é a maneira como todos os ofícios manuais começa- o alemão. 34 As explicações que lhe foram acrescentadas são
ram a existir e o motivo de todos terem um lastro místico. da autoria da sinóloga Dra. Ariane Rump.
Nas civilizações primitivas, as pessoas continuam cien-
É chamado de "A morte de -" e a palavra que vem,
tes disso, o que explica o fato de geralmente serem me- na tradução para o inglês é "caos"; já Richard Wilhelm a
lhores artesãos do que aqueles que já perderam de vista
essa percepção. Se pensarmos que toda habilidade ma-
nual, seja a de um carpinteiro, ou ferreiro, ou tecelão, foi 34 Chuang Tzu, Das wahre B uch vom südlichen Blütenland, trad. [para

o alemão] por Richard Wilhelm (Jena: Diederichs Verlag, 1923), p. 60.


uma revelação divina, então entenderemos melhor o pro- Trad. para o inglês: Burton Watson, Chuang Tzu Basic Writings (Nova
cesso místico que alguns mitos de criação caracterizam York e Londres: Columbia University Press, 1966), p. 95.

134 135
Ll'11du:1. como "o inconsciente" -
"A morte do caos-incons- torná-lo consciente. Ao tentar torná-lo consciente, gentil-
1·11111Lc". O Mestre do Mar do Sul era aquele de muitas 11u,nte o mataram! Esse é um mito de criação extraordi-
l'ucctas. Na tradução para o inglês é chamado de Breve. 1111riamente significativo, da autoria de Chuang-Tzu, que
Em alemão, é o Schillernde (iridescente). Se alguém é 1•ompensa fortemente a nossa perspectiva de um Deus
schillernd, isso significa que tem muitos estados de âni- 11wldando a matéria até lhe dar forma e beleza, a partir
mo, várias facetas em sua personalidade. Não possui uma do caos. Significa matar uma coisa, matar a vida específi-
só idéia ou um só propósito em mente. A impressão é que 1·11 desse material do mundo, destruí-lo de várias manei-
não é dotado de uma consciência capaz de refletir, com 111s. Sem dúvida dota-o de forma e consciência, mas ao
um único propósito definido em mente, mas sim uma per- 1110.smo tempo o destrói. Naturalmente, esse é um texto
sonalidade vaga com humores mutáveis - ora uma coi- l I picamente taoísta. A tendência da tradição taoísta é
sa, ora outra - razão pela qual a tradução em inglês o 1111 l"atizar o valor do inconsciente em oposição ao da cons-
chama de Breve. O Mestre do Mar do Norte era, na tra- 11/\ ncia. Penso que é certa a sua contra-ênfase aos nossos
dução em inglês, o Súbito, ao passo que em alemão é der 111iLos de um Deus que fabrica o mundo a partir de maté-
Zufahrende, aquele que agarra depressa. Se eu zufahre, 1m inerte, e reflete naturalmente os aspectos questioná-
sem pensar no que estou fazendo, então simplesmente me v,•is de nossa civilização com a sua exagerada valoriza-
aposso de alguma coisa; vocês podem assim entender o \'"º do fazer, da tecnologia, da con sciência.
que está caracterizado. Um é o que n ão tem um propósito Quero agora inserir breves definições de algumas
definido em mente, mas esvoaça por toda parte, com hu- p11lavras-chave do texto.
mores diferentes; o outro é o que se apodera das coisas
depressa demais, que interfere antes da hora. No meio Shu: há aqui duas explicações. (1) Desatento, afoba-
havia Hwun-tun, que é traduzido como o Caos, o Incons- do, súbito, breve; ou (2) sarapintado: iridescente, em
ciente; trata-se da totalidade pré-consciente, aquela coi-
tons d e verde, azul e preto.
sa vaga que você poderia também chamar de consciente,
inconsciente ou caos, ou ordem pré-consciente: é a coisa Hu: repentinamente, de forma inesp erada, descuida-
desconhecida no meio. damente, apressadamente.
Breve e Súbito costumavam se encontrar no espaço Hun: Obscuro ou torrencial, a totalidade de, completo.
intermediário do Caos-Inconsciente. Este sempre era Tun: Confuso. Portanto, hwun-tun significa aproxi-
amistoso para com eles. Breve e Súbito então se pergun-
madamente confuso, ininteligível, não claro, barren-
taram como poderiam recompensar a gentileza de Caos-
to - ainda não separado, mas numa união harmo-
Inconsciente. Disseram que todos os seres humanos ti-
niosa. Também é explicado como ser sem causa ou
nham sete orifícios e que eles podiam ver, ouvir, comer e
razão, impenetrável, raiz que não se pode ver. Os dois
respirar, todavia ele não possuía nada disso, razão pela
elementos do nome contêm uma implicação esclare-
qual, t entaram criar orifícios para Caos-Inconsciente.
cedora, ou seja, a água.
Todo dia cavavam um buraco nele e, no sétimo dia, ele
estava morto. Fim da história.
Um paralelo interessante ao motivo da pressa é en-
Portanto, vejam, quiseram ser gentis e moldar o Caos trado num t exto islâmico que comenta a criação de
1·011
numa coisa linda, capaz de ouvir e ver, o que significa Adão. O texto é assinado por Masudi que diz que, quando

136 137
Adão foi criado, ele ficou deitado no chão como um monte Vejamos um aspecto mais prático: pessoalmente,
de barro durante 80 anos. Depois, Alá deu-lhe forma hu- 1•l1q.{uei à constatação de que um dos maiores problemas
mana; entretanto, ainda lhe faltava a alma. Em seguida, 11111 qualquer tipo de criação é ser capaz de administrar
ele permaneceu deitado por outros 120 anos, após os quais 111h•q uadamente o tempo da ânsia criativa. Quando a gente
Alá inspirou o sopro da vida dentro dele. Mas o hálito 11c• sente nas malhas de um processo criativo, geralmente
divi~o ainda não tinha ocupado completamente o corpo 110s deixamos ser arrastados por isso e nos tornamos afo-
de Adão. Ele queria se levantar mas não era capaz de l,11dos, querendo despejar tudo para fora imediatamente.
fazê-lo e, portanto, caiu de costas. Assim está dito nos 11 {1 aquela avalanche interna de idéias e temos medo de
suras 17 e 21 do Corão: "O homem foi criado às pressas", 110 começar a escrever, não conseguir registrá-las rápido'
e só quando o hálito de Alá tinha penetrado completa- 11 s uficiente, a fim d e não perdê-las novamente de vista.
mente o corpo de Adão foi que ele pôde se colocar em pé e :-,e• a pessoa criativa é do tipo mais intuitivo, isso é parti-
agradecer a Alá. Podemos ver aqui a idéia de que existe c·1il a rmente difícil porque a mão que escreve ou pinta não
C'onsegue acompanhar o fluxo de idéias com a rapidez su-
um estranho tipo de imperfeição no ato da criação que,
lú.: iente. Isso não acontece só com a criação verbal; ames-
na China, é atribuído ao impulso afobado e que aqui vol-
111a coisa aparece também nas artes plásticas. Alguém vê
ta outra vez, no motivo islâmico da criação de Adão. 35
11 m quadro ou uma peça na pedra e o que ela deve pare-
Esses dois criadores descuidados e afobados que, na rer, quer tirá-la da pedra rapidamente, ou colocá-la no
realidade, tornam-se depois os assassinos de Hwun-tun, papel ou na tela, temendo perder a visão interior daquela
rapidamente nos trazem à mente uma cena do nosso pri- l'Ois a, pois se esfriar e perder o frescor, essa pessoa está
meiro mito esquimó: o momento em que Pai Corvo acorda perdida! Não pode trazê-la de volta à tona em sua mente
como ser humano nas trevas, e tateia à sua volta tornan- 11ma segunda vez. Logo, precisa forjá-la, criá-la, no mo~
do-se então consciente de si mesmo. Ali, ainda no céu, ele mcnto em que está quente, quando se encontra à sua fren -
primeiro fabrica uma figura de barro, que imediatamen- te, oferecendo-se a você. Ao mesmo tempo, é precisamente
te começa a cavar a terra em vários pontos; ou, como está üssa sensação do que deve ser feito, enquanto está insis-
dito no conto, "tinha um temperamento irascível e violen- tindo por dentro, que seduz muito facilmente a pessoa a
criar com afobação, seja escrevendo de qualquer jeito, ou
to, que não era como o do Pai Corvo". Este então faz um
achando às pressas alguma maneira de expressão artísti-
buraco no céu e deixa que aquela figura caia; com isso,
ca e, com isso, naturalmente, ela arruína completamente a
ele se torna o espírito mau. Essa parte do texto mostra
obra. Aí é preciso refazê-la duas ou três vezes, tirando os
que o espírito mau é a primeira criação de Pai Corvo-Deus
excessos, limpando, mas às vezes o estrago é de tal ordem
e que, realmente, é um ser de temperamento violento e que não é mais possível trazê-la de volta. Dessa maneira
impaciente. Ele seria um paralelo do Súbito de quem fa- essa sensação d e explosão precipitada é um dos perigos ~
lamos há pouco, a criatura descuidada que ao mesmo tem- dificuldades da maioria dos impulsos criativos.
po quer estragar as coisas. Claramente isto indica um as-
pecto da sombra da criatividade. No campo científico, existe o mesmo perigo, sob a for-
ma de se atirar a conclusões e generalizações. Um aspec-
to parece que se encaixa bem com as coisas e então você o
35 August Wünsche, Schopfung und Sündenfall des ersten Menschen- generaliza: tudo é a mesma idéia. Isso dá origem a teo-
paares (Leipzig: Eduard Pfeiffer, 1906), p. 7. rias muito monomaníacas nas quais uma idéia é martela-

138 139
da em cada objeto e, se o objeto não acolhe essa investida, 11 r riatividade sempre está muito perto de alguma coisa
então você força e engana, porque tem de encaixar. Isso é dl11bólica. Podemos ver isso hoje em dia de forma muito
uma criatividade afobada. Na história da ciência, por 1111<-diata, talvez, em nossas descobertas tecnológicas, que
exemplo, a maioria das idéias equivocadas nas quais a 1l11 Htram como o homem sempre tende a exagerar. Basta
humanidade já esteve emaranhada, algumas vezes por ,p1<! lembremos a extensão da destruição e da poluição que
séculos, foi causada por uma concepção (em si correta) 1·11 us amos ao meio ambiente como resultado desse exage-
que era tão apressadamente generalizada que, daí em , o afobado de nossas descobertas tecnológicas. Podemos
diante, bloqueou outras investigações. A pessoa fica tão di zer que o nosso progresso em termos de consciência
emocionalmente preenchida com uma nova descoberta que humana tem sido repetidamente caracterizado por exa-
esse perigo de matar tudo aplicando-o de forma muito 1{1:ros apressados e catastróficos. Nesse sentido, podemos
descuidada e apressada é um dos maiores riscos que cor- rnnsiderar também o que ocorreu no campo da psiquiatria
re a atividade criativa. E é muito difícil discipliná-la. Por ,. Lodos os pecados que foram cometidos aí, nos últimos cin-
exemplo, Jung escrevia seus livros muito devagar, à mão. qüenta anos. É impossível descrever as numerosas coisas
Se olharmos os manuscritos, veremos que são poucas as que foram experimentadas e altamente valorizadas até que,
correções. Ele não conseguia escrever mais que uma pá- dois ou três anos mais tarde, quando era comprovado que
gina ou duas por hora, porque tomava muito cuidado, pa- 11 mais recente inovação causava mais danos que benefí-
rando depois de cada sentença. Observei durante muitos 1:ios, eram descartadas - sempre mantendo a mesma ati-
anos esse procedimento, e jurei que faria o mesmo, pois tude de experimentar alguma outra novidade.
acho que é a única forma certa, mas não consegui até hoje Essa característica da pressa tem ligação direta com
assim agir. Para mim é uma luta de vida ou morte segu- a criatividade: não se pode ser criativo sem que uma cer-
rar Dona Pressa. Vocês podem rir de mim, não me impor- ta febre criativa se aposse da pessoa, sem que ela se sinta
to, mas tentem por si mesmos antes de rirem demais! O excitada e cheia de entusiasmo. Aliás, por um lado isso é
impulso criativo é tão poderoso e se apodera emocional- essencial. Por outro, se não desenvolvemos um grande
mente da pessoa com tanta força que ela tem, ao mesmo senso moral de responsabilidade, então tudo se desenro-
tempo, de conter suas emoções, o que, naturalmente, pode lará de forma negativa devido à afobação e à maneira
surtir o efeito oposto e impor um ritmo lento demais. Se descuidada de ser. Por isso, é que nos nossos mitos de
você contiver demais sua impaciência a idéia desaparece- criação tantas vezes deparamos com os duplos sentidos,
rá e perderá a flama da intuição original e morrerá. inclusive desde o início da narrativa. Por exemplo, no mito
Dessa forma , lidar apropriadamente com o tempo do da Pederneira, esta é uma figura também apressada e
processo criativo, para ser preciso, refletir conscientemente impaciente, como a história demonstra, quando os dois
e conscientizar-se de cada detalhe e, ao mesmo tempo, não irmãos discutem enquanto ainda estão dentro do útero,
matá-lo por segurá-lo em excesso é uma das maiores artes. nos últimos momentos antes de nascerem. Pederneira diz:
Depende disso, em grande medida, até onde a pessoa é ca- "Vejo luz, vamos agora por este lado". Mas o Deus Broto
paz de desenvolver a própria criatividade do jeito certo, sem de Bordo retruca, pensativamente: "Não, nós não quere-
matar o objeto (material) nem a revelação original. mos fazer isso porque não queremos matar a nossa mãe".
Com isso, coloca-se na posição normal que o embrião deve
Agora, essa Pressa e seu temperamento violento tem ter para poder nascer naturalmente. Mas Pederneira não
mais um significado muito importante. Em certo sentido, consegue esperar e dilacera a mãe, que então morre. Ele
140 141
é o apressado, aquele que não tem paciência e prefere pro- queria dizer. Se, por exemplo, ele tivesse sido meu pa-
curar atalhos, representando assim a faceta destrutiva. 1·icnte e tivesse me procurado com um conteúdo de sonho
Esse é o lado sombra da criatividade. qu e lhe dizia para fazer uma coisa daquelas, eu teria dito:
Há evidências concretas disso no fato de que muitas "Sim, está certo. Você continua se comportando como uma
pessoas criativas têm algo de demoníaco. Seus cônjuges 1-riancinha pequena e esse lado infantil em você tem de
teriam muito a dizer a esse respeito, pois uma pessoa cria- Hm morto". Isso teria significado que aquela voz era para
H(ff entendida como um desafio num nível interno, espiri-
tiva pode ser impiedosa e, até certo ponto, deve sê-lo, pois
precisa de toda a sua energia para o objeto de sua criati- tual. Em vez de fazer o que fez, esse homem teria sacrifi-
vidade e não tem vitalidade suficiente para dar conta de r ado a sua própria atitude infantil e ingênua diante da
todas as outras exigências da vida. Por exemplo, se pen- vida, não a criança real.
sarmos num explorador ou inventor que focaliza toda a Quando irrompe um impulso do inconsciente, ele sem-
sua concentração naquela coisa que está perseguindo, não pre é acompanhado pelo ímpeto de realizá-lo de maneira
podemos dizer que é um sujeito imparcial. Mas, por outro roncreta. Esta é uma verdade geral. Vemos isso, no mais
lado, está claro que pode haver um aspecto demoníaco pre- das vezes, por exemplo, quando os fenômenos da transfe-
sente quando a pessoa está criando. rência ocorrem durante um tratamento psicológico. Quan-
Há ainda um outro ponto que precisa ser analisado. do o paciente se apaixona pelo analista e sonha que faz
Quando sobe à tona um conteúdo do inconsciente, há a amor com ele, temos um sinal de que essa pessoa está pre-
tendência de esse conteúdo tentar emergir não no nível cisando experimentar mais proximidade humana, um con-
simbólico interior, mas sim no da realidade concreta. Para tato humano melhor. Todavia, mais freqüentemente, opa-
ilustrar o que estou dizendo, ocorre-me um exemplo ter- ciente dá a esse conteúdo uma interpretação mais concre-
rível de algo que efetivamente aconteceu. Num hospital ta e gostaria de vê-lo realizado imediatamente. Não se tra-
psiquiátrico, um paciente esquizofrênico se comportava ta de estupidez; pelo contrário, sabemos que em nós "isso"
de maneira tão pacífica e amistosa que lhe foi dada auto- nos está dirigindo. Cuida-se de uma determinada força
rização para trabalhar no jardim do diretor do hospital. diabólica que, entretanto, se foss e para ser realmente con-
Nessa atividade fez amizade com a filhinha do diretor. cretizada, o paciente seria o primeiro a se decepcionar. Ele,
Eles costumavam conversar e se tornaram bons amigos. porém, é incapaz de se conter e não percebe o que é para
Mas, um dia o homem entrou num estado de grande exci- ser entendido simbolicamente. É assim que acontece com
tação, tomou uma faca e decepou a cabeça da garotinha. a maioria dos conteúdos oriundos do inconsciente. Eles sem-
O caso não foi levado a julgamento porque sabia-se que pre são acompanhados por esse impulso apressado de pôr
ele era insano. Mas perguntaram-lhe por que tinha feito as coisas imediatamente em prática. Esse é o demônio. Isso
aquilo e ele disse que tinha ouvido uma voz, a voz do Es- quer dizer que a pessoa deve, antes de tudo, pensar sobre
pírito Santo, e ela lhe havia dito que o fizesse e, claro, ele o caso e dizer: "Espere um instante. Vamos aguardar, e
obedeceu, sem demonstrar o menor sinal de remorso. ver o que quer ser realmente concretizado".
Se analisarmos esse episódio psicologicamente, a voz, Numa carta, Jung chegou inclusive ao ponto de dizer:
em si, era absolutamente positiva e construtiva e poder- "Forças diabólicas são arquétipos num estágio inicial de
se-ia dizer que, de fato, era a voz do Espírito Santo. Mas, movimento rumo à consciência". Isso quer dizer que to-
então, se levantou a questão sobre o que realmente ela dos os arquétipos, quando começam a se mover na dire-

142 143
ção da consciência, contêm aspectos demoníacos. Somen- ( :ostumava sair de sua casa e às vezes ficava andando de
te depois que o limiar da consciência é transposto e o con- honde pela cidade inteira, o dia e a noite, olhando para
teúdo integrado, é que seu significado positivo se torna t.odas as mulheres . Era capaz de rir de si mesmo por cau-
claro. Isso também quer dizer que aquilo que é demonía- 111 1 disso e dizia: "Outra vez isso toma conta de mim". De-

co não é algo absoluto. Pelo contrário, é um estágio a ser po is que esse estado passava, era capaz de produzir coi-
superado por parte dos conteúdos inconscientes, em sua 11ns r ealmente lindas. Uma explicação para seu compor-

mobilização, até o campo da consciência. Isso explica t.11mento é que há uma certa carga energética que não pode
por que as pessoas criativas são expostas tão de perto ao u inda sair e encaixar-se no devido lugar e, por isso, sai
demoníaco, às forças diabólicas, pois nelas os conteúdos desviada, por atalhos e paralelas. Então, a pessoa tem de
arquetípicos estão atravessando limiares e tentando al- rnconhecer que há uma carga acumulada em seu íntimo e
cançar a consciência. Também essa é a razão pela qual q ue não deve deixá-la sair pelo caminho errado; precisa
com muita freqüência a pessoa vê que, antes de acontecer cont ê-la até que possa sair do jeito certo. Claro, porém,
a concretização criativa, há uma perturbação na criativi- que isso exige uma poderosa autodisciplina.
dade, aparecendo alguns impulsos demoníacos. Conheci
um homem criativo, certa vez, que, antes de poder dar
prosseguimento ao seu trabalho criativo, sofria de ata-
ques de malícia - não se pode dizê-lo de nenhuma outra
forma - nos quais ele agredia verbalmente todo e qual-
quer amigo que tinha. Como era um sujeito muito inteli-
gente, capaz de falar com muita precisão, conseguia ferir
com malícia cada um dos amigos quando os encontrava;
claro que o resultado disso era todos o abandonarem. Só
então, quando estava completamente sozinho e ninguém
mais se aproximava era que ele tentava manter contato
com eles. Mas, naturalmente, aí ninguém mais tinha tem-
po para ele. Então ele voltava para sua sala, é só nesse
instante é que se tornava capaz de fazer algo que valesse
a pena; quando se via absolutamente isolado, sem nin-
guém querendo nada dele, é que conseguia dar à luz.
Outras pessoas fazem a mesma coisa, mas para si mes-
mas, sozinhas entre suas quatro paredes. Passam por
depressões e sentem-se profundamente desencorajadas.
Sentem que não têm valor e nada tem sentido. E só en-
tão, quando estão inteiramente arrasadas, é que conse-
guem começar a trabalhar.
Conheci uma vez um artista, um extrovertido, que
trabalhava como designer gráfico. Em sua fase pré-criati-
va, era tomado por uma urgência sexual enlouquecida.

144 145
Capítulo 6 1nx tos , segundo certos comentaristas, ele é identificado
10111 Vishnu, mas no texto principal ele é geralmente cha-
A PRIMEIRA VÍTIMA 11111110 apenas de Purusha - homem. O cosmo todo tem o
l11 rmato de Purusha, de um homem. Ele tem mil cabeças
" mil pés e se estende mais além da terra, cobrindo o
111undo todo. Mas o ato da criação é tratado como um rito
1111crificial, em que o primeiro homem, ou Purusha, foi a
vitima. Ele é retalhado e cada uma de suas partes se trans-
lorma numa parte do universo: a cabeça se torna o céu; o
11111bigo, o ar; os pés formam a terra; da mente nasce a lua
1• dos olhos, o sol; seu hálito origina o vento. Assim eles -
d(• repente há muito criadores, "eles" significa os deuses
criaram o mundo. Um texto diz que Purusha é o mun-
do t odo: o que é, o que foi e o que será. Um quarto dele é
Este último mito de criação de Chuang-Tzu nos leva a rn mposto por todas as criaturas, e três quatros são o mun-
um outro motivo que quero comentar aqui, a saber, o moti- do dos imortais no céu. Às vezes, den tro da filosofia
vo da primeira vítima. Como vimos, o pobre Hwun-tun, Caos Sn.nkhya de origem posterior, Purusha é a alma dentro
e Inconsciência, foi a primeira vítima. Não é possível criar da matéria, e em oposição a ela. Não quero entrar em de-
uma coisa sem destruir outra concomitantemente, e os chi- talhes agora; antes, desejo assinalar a idéia de que o ma-
neses, sobretudo os filósofos taoístas, que são tão conscien- terial do qual o mundo é criado é a vítima divina.
tes da questionabilidade da consciência humana, têm tido
portanto bastante razão ao acentuar na criação a presença Nosso deus chinês, P'an Ku, é ainda não só o artesão
d~ uma espécie de assassinato; o assassinato de um ser gentil q ue gerou o mundo como também a primeira vítima, pois
e mocente, porque Hwun-tun é caracterizado como uma cria- l'oi de seu cadáver, que o mundo foi criado. Quando P'an
tura especialmente gentil, amistosa e inocente. Ku chorou , diz um texto, o fluxo de suas lágrimas formou
as águas amarelas do rio Yangtse; quando ele respirou,
O motivo da primeira vítima também aparece em
Enuma Elish, em que caos, o monstro Deus Mãe Tiamat soprou o vento; ao falar, rugiu a tempestade; lançou os
é abatido por Marduk; do cadáver dela, é criado o mundo'. olhos ao seu redor e a luz emanou deles. O tempo ficava
Ela é a primeira vítima. Aqui, a vítima não é um deus, é bom quando P'an Ku estava de bom humor; quando se
uma deusa. A mesma idéia, mas em um aspecto diferen- encontrava mal-humorado, o tempo nublava, se demons-
te, está contida na cosmogonia hindu, mais antiga, em trava ruim. Quando morreu, seus restos mortais caíram
que o mundo é criado como um ato sacrificial. De acordo cm pedaços e formaram as cinco montanhas sagradas da
com cert_as cos_mogonias hindus, o primeiro ser foi um gi- China. Sua cabeça tornou-se a Montanha Ti a leste; seu
gante primordial chamado Purusha (essa palavra simples- corpo, a Montanha Sung, no centro; o braço direito criou
mente significa pessoa ou homem). 36 Em alguns outros a Montanha Heng ao norte e o esquerdo, a Montanha Heng
ao sul. Os dois pés tornaram-se as Montanhas Hua, a oes-
te. Os dois olhos foram transformados no Sol e na Lua, a
36
Cf. The Upanishads, trad. Max Müller (Londres: Oxford University gordura do seu corpo ao derreter formou rios e mares , e
Press, 1926), vol. 1, p. 238; vol. 2. pp. 73,247. [Em português, Os Upanixades] seu cabelo, enraizando-se, cobriu a terra de plantas. As-
146 147
Him, e mbora P'an Ku seja o artesão, em alguns mitos e No Voluspa, uma variação desse mito diz:
representações mitológicas, aqui ele é a vítima e o mate-
rial do qual o mundo é feito. Na manhã do tempo vivia Ymir,
O mesmo motivo é encontrado na antiga mitologia Quando não havia areia, nem mar ou ondas frias;
germânica em que Ymir é o gigante primordial. O nome Terra não tinha nenhuma, nem céu no alto,
Ymir significa o ruído borbulhante da água fervente num Só o abismo bocejante [Ginnunga-gap],
caldeirão, o som gorgolejante de algo fervendo e transbor- Nem grama em parte alguma.
dando em suas borbulhas. Em alemão, é geralmente tra-
duzido como Urgebraus, o ruído de uma tempestade no mar, Ginnunga tem parentesco com o vocábulo germânico
quando as ondas rugem e fazem o barulho de uma imensa gt.ihnen e com o termo em inglês yawn [bocejar]. É uma
massa borbulhando de fervura. Diz uma tradução:
t•spécie de fenda aberta, imensa, uma boca aberta, da
rn esma forma como a palavra chaos [caos] tem um_a raiz
Da carne de Ymir foi a terra moldada,
que significa bocejar - o abismo que boceja.
De seu sangue jorrando os mares,
Montanhas de seus ossos, árvores de seus cabelos,
O céu celestial de seu crânio. 37 Então os filhos de Borr [os três mencionados]
ergueram os discos
Assim, o mundo foi criado a partir dos pedaços de E moldaram a linda Midgard [a terra];
Ymir. Dos lados do sul o sol brilhou sobre as pedras da terra,
Sabemos que Wotan e dois irmãos, Vili e Veli, mata- E do chão brotaram os galhos do verde alho-poró.
ram Ymir, ou Odin o fez (Odin é o nome nórdico; em ale-
Diz um outro texto:
mão, é Wotan). Esses três irmãos eram filhos de Borr.
Ymir é um tipo de gigante. Esses três são os primeiros
que são deuses, não gigantes. Como os filhos de um gi- Da carne de Ymir foi feita a terra,
gante de repente se tornam deuses não é explicado, mas As montanhas, de seus ossos,
fica claro que, no mundo, são as forças mais poderosas O Céu do crânio do gigante de gelo,
que os gigantes. De acordo com Saxo-Grammaticus, ma- De seu sangue, o mar tempestuoso.
taram Ymir e, no sangue do morto, foram afogados todos
os outros gigantes de gelo. Então os três irmãos arrasta-
ram Ymir até o caos original - Ginnunga-gap - e for- Mais detalhes foram acrescentados posteriormen-
maram a terra com ele. Tomaram o crânio e confecciona- te, mas a respeito dessas fontes tardias não temos certe-
ram o céu, sustentado por quatro anões. Às vezes, por- za da extensão em que as lendas medievais sobre Adão
tanto, em charadas de origem posterior, o céu é chamado influenciaram as tradições germânicas. Desde bem cedo,
de o crânio que quatro anões sustentam. A poesia nórdica com a cristianização, foram difundidas muitas lendas
é repleta dessas alusões indiretas. acerca da figura bíblica do primeiro homem, Adão, que
no Midrash (lendas judaicas) e na cultura islâmica, é
37
Brian Branston, Gods of the North (Londres: Thames and Hudson),
descrito como uma espécie de gigante mundial. Há ver-
p. 41. sões em que seu corpo se estende de uma ponta do mun-

148 149
do 1\ ou Lra.38 Localizamos o início desse aspecto cósmico ' '" 1HLido, ou seja, 600.000. Lentamente, estas emanaram
du Adao nas lendas que dizem que Deus tomou do barro, d1d1•, mas originalmente cada ser humano estava contido
ou pó, para fazer o corpo de Adão dos quatros cantos do 1111 primeiro Adão. Constam inclusive detalhes pitorescos.
mundo. Não só ele tomou do pó dos quatro cantos do mun- N11 literatura rabínica, as almas ficavam penduradas à
do como este veio em quatro cores: vermelho, preto, bran- vult.a de seu corpo, algumas em seu cabelo e outras em
co e amarelo. (Observe que correspondem às quatro cores 111•11 nariz; desse ponto original eram trazidas à luz no
principais da alquimia. ) Do pó vermelho, ele fez o san- 111'11ndo. Nest a tradição, o primeiro ser humano gigantes-
gue; do preto, os intestinos; do branco, os olhos e vasos 1·0 não é assassinado, mas depois da Expulsão é reduzido
sangüíneos e, finalmente, do amarelo, formou o corpo. Deus ,. l.cm seu tamanho diminuído, o que é uma certa varia-
juntou todo esse pó para que, quer fosse do leste para o 1,'ilo do tema de matar o primeiro monstro.
oeste, ou do oeste para leste, ou se achasse algum outro Se fizermos um levantamento dessas primeiras víti-
lugar onde quisesse ficar, a Terra não poderia dizer: "Aqui 111as , veremos que elas pertencem principalmente à segun-
você não habita, pois não tem a minha substância". As- tl n das duas colunas de criadores, ou seja, ao lado passivo.
sim, a Terra não podia expulsá-lo de nenhum lugar. 11:Hsa idéia já está contida no termo vítima: aquele que é
Em algumas das antigas tradições judaicas, é dito 1· liminado da r ealidade, aquele que não continua a existir,
que o primeiro homem ia de um extremo do mundo ao 1nas que se retira, é reduzido ou retalhado. Ele pertence a
outro. Vemos aqui um motivo oposto: não só o material , 1m a parecimento anterior que agora desapareceu . Deve-
provém de cantos diferentes do mundo, mas o homem real- i nos, então, nos perguntar o que significa psicologicamen-
mente se estendia sobre o mundo inteiro, e só depois de l.1! esse motivo da destruição de uma forma human a gigan-
sua Expulsão, depois de haver pecado, é que Deus o tor- l.1•sca ou de uma criatura humanóide. Penso que esse sig-
nou pequeno, reduzindo-o ao seu tamanho atual. Nas tra- 11 ificado seja relativamente transparente: esse ser primor-
dições do Talmud e Midrash, contudo, Adão conserva-se di al representa um aspecto de uma totalidade pré-cons-
da mesma altura que tinha, antes da Expulsão. Essa idéia ciente, às vezes o aspecto completo, às vezes, como no mo-
também reaparece na Cabala. No Sefer Gigulim, um tex- t ivo de Tiamat, mais o lado passivo, que é destruído pelo
to da Cabala, está dito que a cabeça de Adão e sua gar- bem do progresso do desenvolvimento da consciência. Cada
ganta, à época da criação, estavam no meio do Jardim do passo adiante visando a construção de mais consciência
Éden, mas que seu corpo se espalhava por todas as partes destrói o equilíbrio vivo em vigor até então. Isso é verdade
do mundo. Em geral, ele é considerado como uma criatu- até mesmo no caso de uma neurose e é uma das r azões
ra andrógina, como o primeiro homem descrito no discur- pelas quais a pessoa é tão ligada à sua neurose, tão leal a
so de Aristófanes, no Simpósio de Platão. Segundo ou- ela, que acaba em geral passando por um grande tumulto
tros, ele não era andrógino mas possuía duas faces, e Deus para se separar de sua situação neurótica anterior. Uma
cortou-o ao meio; essa idéia reflete a influência da tradi- das maiores dificuldades terapêuticas é que existe uma
ção platônica. Na concepção cabalística, Adão não só era certa resistência instintiva a ser curada, porque n esse es-
tão grande quanto o mundo, como ainda continha em si tado perturbado de relativa inconsciência ou inadaptação
todas as almas de todos os seres humanos que já tinham a psique humana tende a estabelecer um certo equilíbrio,
uma certa harmonia. O sistema neurótico é uma compen-
sação. O desajustamento, por exemplo, é compensado por
38 Ver Wünsche, Schopfung und Sündenfall, pp. 8 ss. fantasias megalomaníacas. Mas sempre há uma certa dose

150 151
de equilíbrio e toda vez que se pretende o avanço ou a ex- do vento, a dilacera em pedaços. No caso de Purusha, é às
pansão da consciência, o equilíbrio anterior deve ser rompi- vc,zcs Vishnu e, outras, conforme a variação, são simples-
do. É por isso que em terapia falamos de crise de cura, e é 1111•nte "os deuses" em geral que destróem o gigante pri-
por isso, também, que tantas vezes as pessoas se queixam, 111ordial.
quando são analisadas e pioram gradativamente, alegando Provavelmente isso nos dá uma pista de por que a
que antes de entrarem em análise as coisas eram relativa- 1o talidade pré-consciente, uma forma anterior do Si-mes-
mente toleráveis e pioraram sensivelmente, a ponto de che- 1110, é destruída; e talvez também indique onde é que de-
garem a pensar que nunca deveriam ter se aproximado da v1•mos buscar a origem da consciência. Se você a vir do
psicologia. Além disso, no início de uma análise, os pais às 11onto de vista da evolução do homem, naturalmente s e
vezes aparecem e dizem que antes o filho, ou a filha, pelo torna uma questão de por que o homem é o único dentre
menos era suportável e que agora é absolutamente impossí- os mamíferos superiores a ter essa estranha qualida de
vel ficar com ele/a em casa. O equilíbrio neurótico foi per- d n consciência desenvolvida em gr au tão maior que nos
turbado pelo processo de configurar uma nova forma de outros seres todos que conhecemos neste plan eta. Se os
consciência, e é só quando essa nova forma ampliada de cons- deuses aniquilam esse ser primordial (poderíamos dizer
ciência se torna dominante que o conflito cede. que os deuses representa m conteúdos arquetípicos), isso
Cada pequeno avanço na consciência, cada processo poderia significar que um único conteúdo arquetípico, ou
criativo, cada ampliação e mudança da atitude conscien- um grupo, destrói o equilíbrio total original. Vendo esse
t e, primeiro destrói uma totalidade primitiva original e quadro na forma de um diagrama, teríamos de pensar a
um certo equilíbrio dentro do sistema como um todo. Uma totalidade pré-consciente como um continuum.
vez que consideramos a psique consciente-inconsciente
como um sistema relativamente fechado, auto-regulado, psique - tota lidade inconscie nte
é compreensível que esses processos sempre a fragmen-
tem. Você encontra esse motivo em forma diferente nova-
mente no mito do nobre selvagem - o ser humano equili-
conflito entre
brado e harmonioso de quem nos afastamos devido ao disposições
nosso desenvolvimento rumo a um nível mais elevado de arquetípicas
consciência (Rousseau). Em grande medida, provavelmen- O= disposições
arque típicas
te, isso é pura projeção.
Sempre que esse gigante primordial que representa
a totalidade é destruído, também existem - com uma Quando usamos o termo psique, pensamos nele como
única exceção - figuras de destruidores que são deuses. um continuum ao passo que, ao mesmo t empo, ele contém
Só no mito de P 'an Ku o texto diz: quando P'an Ku mor- - naturalmente - todos os arquétipos diferentes ou as
reu, sua cabeça se transformou nas Montanhas Ti etc. várias disposições arquetípicas que correspondem ao que,
Ele morreu por si, praticamente sem qualquer agente ex- no reino animal, os zoólogos chamam de padrões de com-
terno causador. Mas, no caso de Hwun-tun, é Breve e portamento. Ora, a totalidade dos padrões de comporta-
Súbito quem o destrói; no de Ymir, são os três deuses que mento dos animais e dos homens não é harmoniosa. Já no
o assassinam e, no de Tiamat, é Marduk que, com a ajuda nível animal vemos que diferentes padrões e disposições

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podem colidir e entrar em conflito. Em outras palavras , 111primidos só por um certo tempo e depois reaparecem,
até um animal sofre constantes conflitos; digamos que são 11111s naquele momento o sexual é t ão dominante que to-
conflitos inconscientes. Isso é muito fácil de ver. Por exem- dos os outros enfraquecem.
plo, se observarmos uma galinha chocando e nos aproxi- Não devemos, portanto, pensar que os mamíferos su-
marmos dela enquanto está sentada sobre seus ovos, logo 1w riores são seres harmoniosos em qualquer sentido, com
veremos que ela entra numa atitude dupla: o instinto 11111 conjunto harmônico de padrões instintivos. A harmo-
normal de fugir e atender sua autoprcservação, e o ins- 11 ia entre os padrões instintivos dos animais superiores é
tinto maternal, de chocar, que lhe diz que fique em cima 11penas muito relativa e, ocasionalmente, podem entrar
de seus ovos. Ela entra em tensão e olha fixamente para 11111 conflito. Provavelmente, nós não somos exceção a esse
você, e de repente voa em disparada emitindo um som r(•speito e também em nós as diferentes disposições ins-
muito estridente: o instinto de escapar sobrepujou o de 1.i ntivas podem colidir e comprometer o equilíbrio total
chocar. Ou pode ocorrer o contrário, ou seja, ela continuar do sistema. Ora, aquilo que em zoologia chamamos de
imóvel sem demonstrar mais nenhum receio; pode-se pndrão de comportamento são é que podemos observar de
cutucá-la e ver que o instinto de chocar venceu. Às vezes, fo ra , quer dizer, o comportamento propriamente dito: fu-
o conflito se sustenta por algum tempo e, se você conhece Kir, acasalar, alimentar, chocar e assim por diante. Se-
as manifestações dessa ave, pode observar como ela está f.(undo a definição de Jung, o arquétipo é o aspecto inter-
dividida entre dois instintos, um dos quais termina mos- 110 correspondente ao padrão de comportamento, ou seja,
trando que é mais forte; ocorre então uma reação do tipo 11s emoções e os sentimentos, assim como as representa-
isto/ou aquilo. Eis o fenômeno, o problema da reação des- t;ües internas, incluindo os conceitos abstratos; que são
locada que mencionei antes, quando falei dos dois pássa- 11s disposições arquetípicas e que colidem e lutam exata-
ros que queriam lutar mas que, por chegarem ao ponto da 111ente como os instintos ou os padrões de comportamen-
perfeita equivalência entre o medo e a agressividade, em 1.o. É por isso que em tantas mitologias descobrimos que
que nenhum dos dois instintos foi capaz de suplantar o os deuses estão em guerra, ou que os titãs entraram em
outro, manifestaram uma terceira reação e as duas aves l{uerra. Não ocorre absolutamente que o mundo celestial,
começaram a dormir. Nesse caso, dois padrões instinti- ou dos espíritos, esteja isento das guerras; pelo contrá-
vos conflitantes entraram em absoluto equilíbrio. Geral- rio, inúmeros mitos de todas as partes do mundo demons-
mente não é esse o caso pois, depois de algum tempo, nor- Lram que os deuses guerreiam entre si. Às vezes, há dois
malmente um ou outro vence e há uma reação. Outro pa- Lipos de deuses: os deuses que lutam com os titãs, ou os
drão conflitante muito conhecido é o do veado sexualmente deuses da luz que lutam contra os deuses das trevas, os
excitado que corre diretamente na direção do caçador. É ela primavera que combatem os do inverno e assim por
bem sabido que o homem com sua espingarda deve sair diante, num reflexo da desarmonia básica que existe até
do caminho pois já aconteceu mais de uma vez de o caça- mesmo nos padrões inconscientes arquetípicos do homem.
dor ser atropelado e derrubado por esse animal. Nesse Quando Heráclito diz, portanto, que a origem da existên-
caso, o animal perde seu instinto natural de autopreser- cia e o pai de todas as coisas é a guerra, ele está certo,
vação, pois um dos instintos, o sexual, supera todos os nesse sentido.
outros. Naturalmente, todos os demais padrões instinti- Quero citar a esse respeito um texto que, em sua ele-
vos - da autopreservação, fome e assim diante - são vada condição filosófica, é um pouco diferente dos primi-

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tivos, mas ainda assim muito esclarecedor, no que tange dn todos os seres que depois irão existir. Na linguagem
ao problema dos padrões intimamente antagônicos. Tra- lrnquesa, as Ongwe, que mencionei antes, são também os
ta-se do mito de criação de uma seita gnóstica cujos mem- prntótipos de tudo que irá existir posteriormente.
bros se autodenominavam sethianos. Ela existiu por vol- Vemos, então, que, na cosmogonia dos sethianos,
ta da época de Cristo. Tinham suas próprias escrituras n1-ilá dito claramente que os padrões arquetípicos da psi-
sagradas, chamadas de "Livro Santo", ou "Paráfrase de q11 e humana resultam da colisão de impulsos instinti-
Seth".39 Esse livro afirma que, originalmente, havia ocos- vos, ou energéticos, e que já consta da totalidade origi-
mo constituído a partir de três princípios entrelaçados 1111! uma massa de colisões que lentamente configura de-
que, novamente, abrangiam uma imensa quantidade de Lnrminados padrões. Isso me parece refletir o que sabe-
outros princípios. Um era o da luz acima, outro o da escu- 111os segundo a nossa perspectiva psicológica, ou seja, que
ridão abaixo e, entre ambos, o puro pneuma, uma força 11 colisão de diferentes padrões arquetípicos provavel-
puramente espiritual que se espalhava como um aroma 111e nte está na origem da consciência. Se falarmos de
balsâmico e delicioso até a zona das trevas. Em si, esta maneira antropomórfica, poderemos dizer que os mamí-
era semelhante a uma assustadora massa de água, mas 1'<: ros superiores, com seus padrões instintivos conflitan-
não desprovida de inteligência. A escuridão sabia muito 1.(:s, são seres só relativamente bem adaptados, porque
bem que se fosse separada da luz ficaria vazia, sem poder li ií afastamentos dessa adaptação perfeita que aconte-
e fraca, por isso ela sempre tentava alcançar a luz e con- r<'m na esteira de colisões entre os padrões. Dessa ma-
ter algumas de suas centelhas. (Estou pulando algumas 11nir a, é óbvio que a invenção de um "escritório central",
partes que não têm uma ligação direta com o nosso tema.) rom a incumbência de regulamentar os padrões confli-
Os três princípios continham um número infinito de ou- 1.nntes, teria grande valor.
tros poderes que eram razoáveis e capazes de pensar.
Na realidade, podemos dizer que foi isso o que se deu
Todos permaneciam em silêncio, como se descansassem
rom o homem: ele tem os primórdios de um Eu consciente
em si, todavia, assim que um dos princípios se aproxima- rnm o qual é capaz de regular as colisões. É isso que, sub-
va deles, então o desequilíbrio de sua ordem produzia um jetivamente, chamamos de o livre-arbítrio da personali-
certo movimento e uma certa quantidade de energia; esse dade consciente. Jung define livre-arbítrio como uma certa
movimento resultava numa colisão de poderes. Quando quantidade de energia que está à disposição do Eu. Se o
colidiam, davam a impressão de uma foca em cima da Eu tem uma certa quantidade de energia à sua disposi-
outra. Através dessa colisão de poderes, eram formadas ção, então está numa condição em que sente o que subje-
imagens. Por meio de um número infinito de poderes e Livamente chamamos de livre-arbítrio. Filosoficamen te,
colisões, eram produzidas imagens em quantidades infi- n existência de um livre-arbítrio não pode ser provada
nitas. Essas imagens são as idéias dos diferentes seres porque tudo o que fazemos, sentindo subjetivamente que
humanos. Aqui as idéias não têm o mesmo significado que é uma decisão tomada livremente, sempre pode ser atri-
adquirem no contexto filosófico moderno, mas sim o sig- buído, por um detrator, a padrões inconscientes que nos
nificado platônico das eidola, ou as imagens arquetípicas forçaram a esse sentimento. Assim, do ponto de vista filo-
sófico, não podemos argumentar a respeito do problema
39 Ver Leisegang, Die Gnosis, p. 174.
do livre-arbítrio: os prós e contras se igualam. Essa é uma

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questão que, de um ponto de vista intelectual, não pode 111111.udo, lembramos de ter tomado uma decisão num ins-
ser nem comprovada, nem contestada. Mas, como fenô- 111 11 t.e crucial. Portanto, livre-arbítrio é, nesse sentido, a
meno psicológico, podemos falar da vivência subjetiva de 11~ pNiência subjetiva de ter energia à nossa disposição.
se sentir livre e tomar livremente uma decisão.
Definimos Eu simplesmente como um complexo entre
Vejamos o caso da mãe cuja casa está pegando fogo. 11111.ros; esse Eu tem um certo montante de energia à sua
É a mesma situação da galinha com seus ovos: seu pri- d111posição que é dirigida para sustentar um ou outro im-
meiro movimento é sair correndo e salvar a própria vida, 111 1lso instintivo. Num certo momento, resolvemos apoiar este
contudo, depois ela se lembra de que tem o filho dormin- 1111.iquele impulso. O mínimo de energia que está à disposi-
do no quarto. Subjetivamente, ela sente que precisa vol- i;n11 do Eu decide e, dessa maneira, o Eu se torna o escritó-
tar e salvar o filho. O homem que não acredita em livre- 1111 central que interfere quando os padrões instintivos coli-
arbítrio diz que é só seu instinto maternal que dominou o d1· in e, às vezes, pode salvar a situação. Naturalmente, há
de autopreservação: ela não podia decidir nada nessa si- ornsiões em que o Eu usa erradamente o seu poder e, como
tuação; ela só achou que tinha decidido. Não podemos 1odos aqueles que se sentam nos escritórios, reprime coisas
provar nada, mas, como experiência subjetiva, somos ca- q111! não tem o direito de reprimir. A função real deveria ser
pazes de experimentar um conflito instintivo entre fugir 110 a de servir de escritório central de decisões para os casos
e salvar a criança. Freqüentemente, sentimos depois que d1• colisão. Todavia, naturalmente, ele ultrapassa o âmbi-
algo decidiu no derradeiro instante: "Não, isso é o que eu lo de suas atribuições e realiza toda espécie de trapaças,
vou fazer, não a outra coisa". 111Lerferindo em coisas ou processos que não são absoluta-
111cnte da sua conta, como os oficiais que metem o nariz no
Se você perguntar às pessoas que já passaram por si- q11e não são chamados. Aqui, o Eu é um espelho da doença
tuações críticas como a acima relatada, talvez elas admi- dn nossa civilização consciente. Mas vemos a razão pela qual
tam, honestamente, a decisão não partir delas, mas sim 11 natureza investiu na consciência humana, falando de modo
de algo exterior que as impeliu a voltar e salvar a criança. 11 ntropomórfico, e percebemos seu tremendo valor porque,
Dizem que não é seu mérito, mas que foi algo mais forte 1•m certos momentos de desarmonia em que os instintos co-
que as obrigou a tirar a criança de dentro da casa em cha- 1idem, a consciência pode proporcionar uma solução razoá-
mas. Mas outras dirão, com honestidade semelhante, que vel, valendo-se de sua capacidade de reflexão. Os padrões
num certo momento se deram conta da situação e decidi- instintivos em colisão e a guerra dos deuses são um motivo
ram o que fazer. Por isso, temos aqui de acreditar na ho- mitológico ao qual retornarei mais adiante, a respeito de
nestidade da pessoa, pois num certo caso, foi o instinto um outro aspecto. Por ora, quero usar esse motivo só para
maternal que impeliu a mãe a salvar a criança, e, em ou- apresentar evidências possíveis de explicar por que essa
tro, para ela teve a liberdade suficiente para escolher e totalidade original tinha de se fragmentar, e qual a razão
poderia ter deixado a criança ser queimada, mas conscien- de existir uma primeira vítima. Certos padrões instintivos
temente decidiu salvá-la. Às vezes, agimos de uma manei- i;e tornaram mais fortes que os outros e perturbaram a har-
ra completamente dominada; é o instinto que nos manda monia e, por isso, o equilíbrio original fragmentou-se para
agir e sentimos subjetivamente que é assim. Sabemos muito poder construir uma forma mais elevada de consciência.
. bem que não temos mérito algum naquilo que fizemos, pois
A origem do complexo do Eu é uma coisa extrema-
· um poder mais forte nos arrebatou; em outros momentos, mente misteriosa, a cujo respeito sabemos muito pouco.
158 159
Jung, na introdução de seu livro Aio~, oferece, uma des- 1;11 <intra em ação. Seria o caso, por exemplo, se os pais
crição básica do Eu, começando por _?1zer que e um fat~r d,da tivessem-na proibido terminantemente de pegar o
misterioso no ser humano e que nao sabemos o que e. d, ,1-1ejado chocolate. Mas imaginemos que a criança quer
Podemos defini-lo, apenas, como o centro do campo da 111 •gar o chocolate que está com a irmã menor, e aí ela não
consciência, no sentido de que todos os conteúdos asso- 111111 certeza de que os pais a proibiram de fazer isso. É
ciados ao Eu são conscientes; os que não o são, não são pussível, então, que a própria afeição genuína que a crian-
conscientes. Jung diz então que a origem do Eu é desco- 1;11 sente pela irmã menor, junto com o sentimento genuí-
nhecida que provavelmente ele se origina de colisões do 1111 de não querer tirar dela o chocolate, colidam com seu
'
corpo coro o mundo externo. 40 d, •scjo pessoal de comer o chocolate. Isso representa uma
Por exemplo, uma criança não é capaz de julgar dis- rnli são legítima entre o Eu e o mundo interior.
tâncias: ela vê alguma coisa e estende a mão, mas a coisa Lembro-me de um incidente inesquecível de minha
não vem até ela, então ela grita com todas as forças. Está pn'>pria infância, no qual colidi com o meu mundo interior.
em conflito! Sente uma dor intensa porque não consegue l•:11 tinha um temperamento violento e era excepcional-
pegar O brinquedo que está além de seu alcance. Assim, 1111•nte impaciente. Certa vez, quando eu tinha mais ou
lentamente, ela vai aprendendo até onde chega o seu cor- 1111~nos seis anos e meio, queria desenhar um cachorro,
po. Dá uma mordida em_si mesma e _depois !>er~e_b~ que se que se achava deitado numa espreguiçadeira, dormindo
mordeu. Todas essas colisões que existem sao, m1cialmen- profundamente. Coloquei-me numa boa posição e come-
te, de teor corporal. Através desses acontecimentos, vai 1·(•i a desenhá-lo quando, de repente, o "estúpido" cão se
se construindo o que os freudianos chamam de Eu corpo- 111cxeu. Claro que o desenho que eu tinha começado não
ral ou seja, a percepção consciente do corpo, de si mes- c·sLava mais certo, e por isso eu tive de começar tudo de
mo'. Até mesmo os adultos, quand? lhes perguntam, "quem 1111vo; fiz isso, e o ca.chorro continuou a dormir. Fiquei con-
é você?", tocam o próprio corpo. E um gesto genuíno para 1.c·nte e em paz de poder desenhá-lo nessa nova posição,
demonstrar o Eu; isto sou eu, e isto não sou eu. Depois, a quando outra vez, de repente, ele se mexeu. Esse proces-
mesma colisão ocorre com o mundo interno, mas esse é 1w se repetiu mais umas quatro vezes. Então fiquei em pé
um processo que acontece mais tarde, ou seja, aquilo que (' apliquei um sonoro tapa no cachorro. Ora, os cães em
já foi consolidado a partir das colisões físicas e que come- 11 ossa casa eram sempre tratados da maneira mais justa
ça então a colidir com fatores internos e é nesse ponto "afetiva; e por isso, em conseqüência do meu gesto, oca-
que chegamos ao problema da educação. c·horro ficou indignado e profundamente sentido. Não ti-
Gostaria de ilustrar este ponto com um exemplo. nha feito absolutamente nada errado. Sua consciência
Vamos imaginar que uma criança quer desesperadamen- t•stava limpa. Conseqüentemente, sentou-se e me olhou
te pegar um pedaço de chocolate, pois seu apetite a está com firmeza, mostrando sua indignação e reprovação. Ele
forçando a isso. No entanto, ela sabe que não pode fazer não era capaz de supor o que tinha acontecido e muito
isso ou nem quer fazê-lo. Está então em rumo de colisão claramente estava pensando: "mas essa é louca". Esse
com' seu próprio desejo. Muitas teorias psicológicas mo- olhar de reprovação do cachorro atingiu-me direto no co-
dernas afirmam que, nesse instante, o superego da crian- ração e senti-me horrivelmente envergonhada de mim
mesma. Para mim ficou muito claro que eu n ão tinha di-
reito algum de bater nele, pois ele só havia se mexido e 1

•o e. G. Jllng, Collected Works, vol. 9ii, § 9. mudado a cabeça um pouco de lugar. Esse momento foi 1

1
160 161
uma tal colisão com a minha própria impaciência e vio- usar um quepe vermelho e acenar para os trens pararem
lência de temperamento, como disse acima, que nunca 1, partirem etc. Todas essas figuras poderiam ser chama-
mais o esqueci. Prometi a mim mesma que nunca mais das de modelo de Eu ou, mais exatamente, modelos do
faria nada disso, e nunca mais fiz. Sem dúvida, todos já que será o próximo estágio no desenvolvimento do Eu. Por
passaram por experiências como essa na infância, em que c·xemplo, se o menino quer acenar para que os trens se
colidem e entram em conflito, não só com o mundo exter- 11proximem, essa é a forma seguinte; quer dizer, ele é ca-
no e as convenções da sociedade, mas também, por causa paz de comandar processos até então mecânicos em sua
de certos impulsos, com a própria natureza e a própria psique. Essa é uma típica idéia de Eu: agora ele é quem
moralidade, de maneira totalmente real. diz o que acontecerá e não mais Papai ou outras pessoas
rom autoridade. Analisando-se esse modelo de Eu a par-
Assim, a criança sabe que não deve pegar nem tocar 1.i r de suas amplificações arquetípicas mais gerais, é a
em alguma coisa; ela tem um desejo tremendo de fazê-lo, mesma coisa que o Si-mesmo. Os símbolos do Eu modelo
mas a educação treinou-a para que não o faça; ela, então, e· os símbolos do Si-mesmo são no início da infância - e
entra um conflito interior. Quer o chocolate e é proibido 11 a fase geral do desenvolvimento juvenil - a mesma coi-
pegá-lo; assim, o desejo de pegá-lo colide com a força sa. Por exemplo, a criança sonha com um líder do grupo
inibidora da consciência. Dá-se toda uma cadeia subseqüen- que ela admira, entretanto, no sonho, esse líder tem po-
te de colisões com o mundo interno, com desejos, impulsos, deres mágicos, ou é brilhante como um herói solar, ou algo
afetos etc., que batem como ondas contra a terra firme do do gênero, o que mostra que essa figura não é o líder que
Eu e são sempre repelidos. Isso é tudo que podemos dizer, l'la conhece, que está na escola com ela, mas também o Si-
dentro de uma certa plausibilidade, a respeito da forma- mesmo. Para ela, essa fig ura significa ao mesmo tempo o
ção do Eu. Através dessas colisões, lentamente, um com- Si-mesmo, porque tem qualidades sobrenaturais ou até
plexo que é mais forte que outro se constitui e forma aqui- mesmo divinas, além das qualidades egóicas. Assim, a iden-
lo que chamamos de Eu. Há uma famosa ilustração a res- 1.idade das figuras do Eu modelo, na juventude, com o que
peito da criança que primeiro fala de si mesma na terceira normalmente chamamos de figuras do Si-mesmo na mito-
pessoa, chamando-se de John, Billy, e de repente, mas só logia, indica que o impulso que principalmente constrói o
depois de algum tempo, começa a dizer "eu". Primeiro essa l~u é aquele centro que, em fase futura da vida, chama-
criança só se vê refletida no que os outros falam a seu res- mos de Si-mesmo. Na primeira metade da vida, ele age
peito, e em seguida essa sensação do "mim", do "eu", do como uma força que constrói o Eu .
"sou eu", começa devagar a se construir.
Esse processo de construção do Eu pode ser pertur-
Parece que a força que constrói o Eu é um complexo bado. Na esquizofrenia, como é bem sabido, o complexo
especial, a saber, o Si-mesmo, e não os outros arquétipos . do Eu não pode mais manter-se na função de chefe do
Se observarmos os sonhos das crianças, digamos entre escritório, por assim dizer, e é arrastado para o seio dos
quatro e doze anos, veremos que sua futura atitude cons- outros arquétipos que turbilhonam em suas colisões. O
ciente, o que se poderia dizer seu futuro Eu, surge como Eu se afoga no inconsciente coletivo, é dominado pelos
uma imagem projetada fora, geralmente na forma de um padrões arquetípicos. Depois, também ocorre uma desin-
irmão mais velho, ou de um líder de algum grupo - todas tegração da personalidade, e é nesse momento que a guer-
aquelas figuras que a criança diz que quer ser mais tar- ra dos deuses, a guerra dos titãs, começa de novo. Cons-
de. Quer ser um condutor de bonde, um chefe de estação e tatei muitas vezes que, ao fazer referência a mitos de cria-

162 163
ção e seus motivos, as pessoas qu~ não têm _experiên:ia 011vindo todas as palavras que eram ditas, sabendo que
psiquiátrica pensam que esses motivos dos mitos de cria- por fora eu dava a impressão de estar totalmente apaga-
çã o são estranhos e muitos distantes da realida~e, -~º ~as- cl11 ". Esse era o Eu submerso! Ainda estava lá, mas era
so que as pessoas familiarizadas com casos ps1qmatncos 111, uma potencialidade; tinha uma certa percepção do que
consideram-nos conhecidos. Isso é compreensível porque, ,,1-1 tava se passando, mas era incapaz de assumir seu pos-
se há uma chance de alguém sair de um episódio esquizo- 1.o e dominar o caos e os diferentes deuses. Isso explica
frênico, ele será localizado nos processos dos mitos de cria- por que também acontecem aquelas gigantescas mudan-
ção. Se um paciente sai de um episódio desses, su~ cons- ~·ns de humor. Num momento, há um deus positivo no
ciência se reconstrói e ele então tem sonhos com mitos de rnmando, uma Euforia, e no momento seguinte um titã
criação, ou pelo menos sonhos com motivos de mitos de cria- diabólico assume o poder; d epois, tentam matar e o Eu
ção, o que indica que a consciência está se construindo de r·egulador é uma coisa fraca e impotente que não pode
novo e com ela a percepção da r ealidade externa. Natural- 1nais se manifestar em meio ao caos. Está subjugado
mente, é importante compreender esses processos porque, pelos poderes arquetípicos.
então, pode-se apoiar essa consciência do Eu quando ela 1

ressurge e recria a função de realidade. Essa possibilidade de conflito, a possibilidade de que


n totalidade primordial possa se fragmentar, é provavel-
Se o complexo do Eu for arrastado pela guerra dos
mente um dos motivos para a construção do Eu como um
deuses, estará, por assim dizer, deitado impotente entre
poder controlador. O Eu tem aqui a função original de
os cadáveres estendidos pelo campo de batalha. Os titãs
contrabalançar o caos e a fragmentação em padrões con-
e os deuses pisoteiam-nos e chutam a s cabeças uns dos
flitantes e sem sentido. Essa é a sua função positiva e é
outros por sobre os corpos. Muitas vezes, quando as pes-
soas saem do episódio, dizem que estiveram presentes o por esse mot ivo que o ser humano consciente é melhor
tempo todo, mas não podiam se manifestar. Sei de pes- adaptado. Por exemplo, uma pessoa que não dissocia num
soas esquizofrênicas, por exemplo, que ficavam numa cela momento de conflito e não se deixa arrastar por afetos é
de paredes forradas e que, quando eram visitadas por seus uma personalidade superior e sempre ganha no fim. Po-
familiares , não exibiam sinais de reconhecimento, e por demos dizer que é a p essoa que sabe manter a cabeça no
isso essas visitas eram suspensas porque aparentemente lugar. Quando o navio afunda, essa é a pessoa que man-
o paciente não percebia que familiares como o pai, a mãe tém a calma e cujo Eu não foge de pronto, para salvar a
ou outros estavam lá. Mas, muitos anos depois, quando já própria vida, enquanto todos os outros se afogam, mas
tinham conseguido sair daquele surto, podiam dizer: "Sim, aquela que às vezes é capaz de salvar todos; já as pessoas
mamãe veio naquela vez, estava usando um vestido branco de Eu fraco, resvalam para algum dos outros padrões de
e este colar, e disse isto e aquilo". Sei de uma pessoa que, comportamento. Há quem se sente num canto chorando e
quando lhe perguntaram por que então, em nome de Deus, rezando, outros empurram quem estiver na frente e en-
não deu qualquer sinal de reconhecimento, respondeu: "Eu tram correndo no bote salva-vidas, e assim por diante.
não conseguia", e depois acrescentou um símile muito Como sabemos, Jung adotava um ponto de vista
apropriado: "Era como se eu estivesse no fundo do mar e finalista aos fatores psicológicos; ele considerava o fato
vendo tudo, mas eu não podia acenar para vocês. Não con- psicológico do ponto de vista causal e também do ponto de
seguia me fazer ouvir nem ver, e não podia mandar um vista teleológico. Por exemplo, entendemos que uma n eu-
sinal de que estava entendendo e vendo a minha família, rose é causada por cert as experiências de infância e junto

164 165
aos pais, no sentido freudiano, e depois a e_studamos adi- as pessoas têm estômago e ouvir uma prolongada expli-
cionalmente do ponto de vista de sua finalidade, pergun- cação, porém, se perguntarmos com que propósito as pes-
tando: "Qual o propósito disso?" Entendemos ~ue a _neuro- soas têm estômago isso faz mais sentido. Ao explicar a
se tem uma causa e uma finalidade, ~ esta e, muito fre- !"unção dos órgãos, a perspectiva finalista é útil para eluci-
qüentemente, produzir um esta~o :11a1s eleva~~ d: cons- dar e estabelecer conexões.
ciência. Conflitos causam amphaçao da co?-sc1encia. Ve- O problema do conflito também tem a ver com apren-
mos isso todas as vezes que tratamos alg?em. Vem o Sr. der e com a capacidade para aprender. Os comportamen-
Fulano que tem um conflito, mas se el_e sai ad~quadamen- 1.alistas que estudaram a capacidade de aprendizagem nos
te de seu conflito, estará no final mais con~c1ente d_o que animais superiores t êm dito que essa capacidade aumen-
no começo. Ele terá um ponto de vista consciente mais ele- ta quando os padrões de comportamento se tornam me-
vado e ter sofrido o conflito é o que desencadeará esse J?ro- nos mecânicos, quando têm uma certa plasticidade. Quan-
gresso. Ou você pode analisar o quadro do ponto de vista do um padrão de comportamento é muito mecânico, o ani-
finalista e dizer que o conflito foi criado p~ra fazer com mal não consegue aprender. Um exemplo muito bom da
que ele evoluísse para uma consciência mais elevada. c•stupidez de um padrão mecânico de comportamento é a
As duas perspectivas são relativamente plausíve~s. migração dos lemingues. Como muitos outros roedores,
A primeira, causal, é clara. Natural~ente todo conflito os lemingues têm, de tempos em tempos, o impulso de se
força a pessoa a atingir 1:1ma fo.:m,a ~ais elevada de cons- reunir e migrar em procissão, indo para um novo t erritó-
ciência. Mas o objetivo fmal nao e tao claro, a m enos que rio. Quando entram nesse estado de ânimo de migrar, fi-
você domine muito bem a arte de interpretar sonhos. Por ram completamente possuídos e se, por azar, chegam à
exemplo, pode acontecer de alguém estar e1? pa~, numa beira de um precipício, ou no mar, eles simplesmente vão
condição bem adaptada, em que tudo corre as mil mara- c•m frente e se atiram no abismo ou entram na água, e
vilhas entretanto, essa pessoa tem sonhos sobre um con- ocorre um suicídio em massa, e nem um só lemingue é ca-
flito ü~linente. É de se perguntar por ~uê. P~r _que, qu~n- paz de se perguntar o que está fazendo e dar meia-volta.
do tudo está em ordem, o diabo arr~nJa um Jeit~~e cnar 11'.l es simplesmente entram no mar e se afogam: não há a
um conflito? Por que se está entediado ou ? que. 1:- p~s- rnpacidade de aprender - eles parecem um r elógio com
soa tem um sonho mostrando-lhe um conflito, voe: o in- rorda e zum - em frente! Atualmente, existe o outro fato
terpreta e o analisando diz: "Mas nã~ ten?o ~onfhto ~1- de que entre certos animais há uma relativa plasticidade
gum! Estou ótimo!" Eu digo, "Espere . Dois dias depois, no padrão de seus comportamentos, respeitados certos li-
conflito chega ao ponto de se manif:star. Ele t~m l_lm mites, e existe a capacidade de aprender. 41
0
conflito então e o sonho o havia anunciado com doi~ dias O grande entomologista H enri Fabre afirmou que o
de antecedência. Nesse caso, temos uma ce~ta r~za~ em padrão de comportamento era completamente mecaniza-
analisar O conflito dentro de uma perspect~va ~mahsta, do. Ele observou um certo tipo de marimbondo que cons-
como se fosse um acordo com uma certa fmahd~de em trói seu ninho na areia, o marimbondo de areia. Esse in-
mente. Mas naturalmente esta é só um~ categoria par~
se enquadrar o processo. Nem a causa~idade, nem_ª fi:
nalidade, podem ser comprovadas objetivamente. Sao s~ "Ver de Tinbergen Study of Instincts, onde esses problemas são expli-
maneiras heuristicamente úteis de olhar os processos psi- , 11dos com grandes detalhes. Há também Das Tier als Sozialwesen de Adolf
quicos. Também na biologia podemos perguntar por que l'urtmann (O animal como ser social).

167
166
seto faz uma série de buracos na areia; depois, com uma 111cnos mecanizados, menos r igidamente organizados,
certa injeção venenosa, inserida num ponto específico, _ele 11rnior a capacidade de aprendizagem. Quando os padrões
paralisa uma lagarta, sem contudo, mat~-la. O marim- 111ccânicos ficam vagos e indistintos e não funcionam mais
bondo de areia deita uma lagarta paralisada em cada rnm a mesma potência, há plastícidade e surge a capaci-
buraco e depois põe os ovos neles. Quando as larvas saem, dade de aprender . Os macacos antropóides têm um pa-
elas primeiro se alimentam das lagartas que sã? lenta- cl r:1o indistinto de comportamento e, conseqüentemente,
mente comidas vivas - que atividade mais sádica - e 11 rna alta capacidade de adquirir experiências individuais.

depois a mãe marimbondo aliment'.'1 os filhotes. Às vezes, Nús, seres humanos, também pagamos por nossa capaci-
a lagarta recebe uma injeção mais forte que_ a conta e clnde de entendimento e consciência mais elevada, tendo
morre· como o cheiro é muito ruim, todas as criaturas da- p11drões instintivos relativamente indistintos e enfraque-
quele buraco morrem e, com isso, um dos ninhos está
ruinado· mas a mãe marimbondo é aparentemente tao
ª:- 1·1dos. Não se pode ao mesmo assobiar e chupar cana!
O livro de Arthur Koestler The Sleep Walkers é uma
idiota q~e continua mecanicamente levando comid3: para l11stória sobre os preconceitos que dominaram às vezes as
todos os buracos. Fabre, que observou esse procedimen- 1·1t1 ncias. Oferece muitas evidências sobre como um pre-
to dizia freqüentemente: "Aqui podemos ver o padrão 4'onceito, com relativa capacidade de convencer emocio-
m~canizado de comportamento, como um relógio com cor- 1111 l mente, pode ser copiado dura nte mil anos. Na década
da ' e ela não sabe o qu e está fazendo1 afinal de contas,
~ . ,,, ele• 1960, um congresso de médicos de viés materialista
plasticidade zero, comportamento tota mente mecamco. clPcidiu ex cathedra que a asma não tinha qualqu er com-
Essa observação tem sido reavaliada e vemos que papel_o ponente psicológico em sua etiologia nem tampouco qual-
preconceito desempenha na observaç~o da na_ture~a, pois q1wr implicação psicológica, tratando-se, apenas, de um
a teoria de Fabre foi obj eto de crédito e foi copiada, e 111 Lo estritamente físico, que devia ser tratado com vaci-
recopiada, porque adequava-se à imagem mec~nica vigen- 1111s de pó e coisas do gênero. A razão de existirem curas
te nessa época. Hoje se verificou que o marimbondo de 11Hl.ritamente psicoterapêuticas para a asma é absoluta-
a r eia alimenta mecanicamente todos os buracos quatro 11wnte ignorado. Por exemplo, posso dar o meu próprio
ou cinco vezes e que depois parte, uma só vez, n uma volta l1•Htemunho com base num caso que eu mesma t ratei, em
que é chamada de reconhecimento. Sem levar ne_nh~ma que sem qualquer interferência no plano físico, apenas
comida, ela passa observando cada burac~ e_ depo~s disso 1111nlisando os sonh os, a asma desapareceu completa e de-
só alimenta as larvas vivas. Portanto, a umca c01sa que l111ilivamente. Mas esses casos não são levados em conta.
ela não consegue é alimentar e observar, ao mesmo te~- 1> nnalisando não mudou seu modo de vida nem mais nada,
po. Bom, isso nós também não podemos em grande medi- 11 ~ entrou em psicoterapia, e sua asma desapareceu, com-
da fazer, me parece! pl<•La e definitivamente. Todavia, esse fato é simplesmente
Dessa forma, já no nível bem baixo do mari~bondo l1-1 11orado porque não corresponde com a visão de mundo
de areia existe uma cert a capacidade para aprendizagem, 1W,•ltanschauung] desses homens. Portanto, nossa capa-

para colher informações e adaptar o padrão de co1;11port~- , idade de aprender é muito, muito pequen a , e por isso é
mento a elas. Logo, bem no início da escala do remo ani- que: Jung cita sempre o ditado: "Les savants ne sont pas
mal já existe uma certa quantidade de plastici?ade n_o 1·11rieux" (Os cientistas não são curiosos).
padrão de comportamentos. Os comportamentahstas di-
zem que, em geral, quanto mais os padrões são soltos,

168 169
Capítulo 7 sobre como, do nada, por assim dizer, algo é criado de
modo inteiramente natural. Mas, de certa maneira, é
ESTADOS DE ÂNIMO SUBJETIVOS insatisfatória porque explicar a origem de um ser huma-
no dizendo: "Ah, bem, isso acontece pela união sexual de
DO CRIADOR um homem e uma mulher", não esclarece o que está real-
ment e se passando. É õ.ma explicação verbal que encobre
um m istério completo, ou seja, a verdadeira origem dos
seres humanos. Assim, todos os mitos de criação que atri-
buem a origem do mundo à união sexual de pai e mãe
saltam muito depressa por esse início e j á vão para o pas-
so seguinte. Portanto, é uma forma de explica r a criação
quando, por um motivo ou outro, não se quer entrar a
rundo na questão. É simplesmente um j eito fácil de expli-
rnr um milagre com outro: "Ah , bem, foi só por causa de
Este capítulo trata das reações, estados de ânimo e um pai e de uma mãe, e da mesma forma como a criança
pensamentos que levam à criação. Como vocês se l~Am- vem deles, o mundo vem de um pai e de uma mãe, não é
bram diz-se que os criadores, às vezes, tomam conscien- óbvio?" Esses mitos ger almente dão uma ênfase enorme
cia e 'que, em outros momentos, parecem entedi~dos e é nos passos subseqüent es da criação, e o começo é desaj ei-
então que conseguem criar. Raposa de Prata e ~oiote, p~r tada ou rapidamente deixado de lado com a imagem de
exemplo, criaram um bote porque pensaram nisso; movi- uma união sexual.
dos pelo t édio, eles imaginaram que estava n a hor_a de Citarei alguns exemplos. O mito sul-americano da
acontecer alguma coisa, por isso Raposa de Prata cnou o criação do mito dos índios Quiché narrado em seu famoso
mundo. Faremos, portanto um a panhado das variedades livro sagrado mitológico Popol Vuh, diz que no início não
de reações e estados de ânimo ou impulsos de pensamen- havia seres humanos, animais, aves, peixes, árvores, pe-
tos que, s egundo os mitos, levaram à criação do mundo. dras, plantas ou m adeira; só existia o céu. A face da terra
Por m ais estranho que possa parecer, aquele padrão que não era visível, só o m ar ocupava silenciosamente seu
se poderia considerar o mais simples não é o ~ais fre- espaço sob o céu. Apenas Tepeu Kukumatz, a construtora
qüente, ou sej a, a sexualidade, embora a ana~ogia do ho- do cosmo, pai e mãe, estava lá cercado de penas azuis e
mem e da mulher que criam juntos uma criança possa verdes. Seu nome era Kukumatz porque ela era um ser
naturalmente ser encontrada em mitos de criação. Por grande e sábio, e com ela estava o coração do céu. Nas
exemplo, o Céu Pai e a Mãe Terra, ou o Sol Pai e a Mãe trevas e à noite, Tepeu e Kukumatz se uniram e um falou
Lua concebem o mundo todo. Ou há um Grande Espírito com o outro. Dessa maneira, decidiram que fariam a cria-
e u~a mulher. Um mito de criação norte-americano diz ção, o crescimento d as árvores e cipós, o início da vida e a
que tiveram quatro filhos e que estes ta~b~m criaram, e criação do homem. Criaram animais que não podiam fa-
assim por diante, e com isso o mundo foi cnado. lar, mas, em contrapartida, queriam criar o homem a fim
Especialmente em muitas sociedades primitivas en- de que os deuses pudessem ser louvados. Assim, decidi-
contramos, como é de se esperar, o mito de criação do ram consultar o oráculo dos dois deuses mágicos para des-
mundo através do ato sexual. Essa é uma linda analogia cobrir como e onde poderiam tentar criar seres humanos

170 171
de novo. No início da profecia, o velho deus e a velha deu- perante a numinosidade da criação não é expresso; pode ser
sa disseram: "Deitem-se juntos, falem para que possamos sentido, mas não é dado a entender pelo mito. Os mitos que
ouvir, decidam se a madeira deve ser colhida para que o !'0meçam com um tema sexual, porém, dão uma forte ênfa-
criador e aquele que molda possam trabalhar co~ ela, _e se aos acontecimentos posteriores. Por exemplo, que o tipo
vejam se O que sai desse trabalho nos sustentara e ~h- t•rrado de humanidade é criado, depois destruído, e depois
mentará". O oráculo então falou e comunicou: "Suas cria- outro tipo é criado, então ocorrem lutas imensas, e assim
ções com madeira terão êxito, elas falarão e serão enten- por diante. Esses eventos são narrados delongadamente e
didas na face da terra". "Que assim seja", foi a resposta rom grande emoção, mas o início é resolvido sumariamente,
dada a esse comunicado. E imediatamen~e os s~res ?e t•m duas sentenças. Para mim, isso é insatisfatório. Gosto
madeira foram criados. Então ela e o coraçao do ceu cria- de me maravilhar e de expressar o meu maravilhamento,
ramjuntos tudo o mais. Esse casal criativo é ao_mesmo !em- por isso prefiro aqueles mitos que não eliminam o mistério
po idêntico ao céu e à superfície da água. J:ntao tamb~~ a das origens de forma tão breve.
Maya de Yacatán diz que, no ano e no dia da escuri?ªº• O passo seguinte, é até onde sei exclusivo, é dado no
quando não existiam dias nem anos, quando o mundo amda mito egípcio em que o deus original criou o quarteto sub-
estava mergulhado nas trevas e no ~aos e a terra era cober- seqüente de deuses, através da masturbação. Pelo menos
ta com água, e na superfície só h_avia barro e espuma, apa- isso é lógico, pois era sozinho e n ão tinha esposa. Há um
receu um dia O Deus Cervo que tmha o nome de Puma Ser- deus e não uma dualidade, no início, e por isso, n a ausên-
pente, e a linda Deusa Corça, que era chamada J agu~r r ia de uma esposa, a única maneira de ele criar o mundo
Serpente. Possuíam forma humana e grandes poderes ma- seria pela masturbação. Das águas originais, Nun, saiu o
gicos· uniram-se sexualmente e disto originou-se o mundo. Deus Sol. E le se masturbou e ejaculou dois Deuses - Shu
Há a'Serpente Jaguar e a Serpente Puma, mas eles são, na l' Tefnut - e esses criaram Geb e Nut.43 Em uma versão,
realidade, dois seres humanos que sao - d euses.42
de ejacula e forma o quarteto de deuses com o esperma e,
Nesses casos os dois seres, o pai e a mãe do mundo, t•m outra, ele se masturba e colhe o sêmen com as mãos e,
sempre estão "si~plesmente ali"; não é expli~ado ~e 01:de com ele, cria o quatérnio de deuses: Céu e Terra, Shu e
procedem; são dados ex nihilo [do n~da]. Depois é dit~, sim; 'L'efnut. O Deus original é chamado Atum, nesta versão.
plesmente, que geraram todas as coisa~; entret~nto, como Por um lado, h á a necessidade de que haja um ser no iní-
isso se dá não é descrito, e se criação foi concebida pel~ 1:1u- cio, e n ão um casal, mas também existe a propensão a
lher que então deu à luz, esse detalhe é total1?-ent~ omiti?º· explicar a origem do mundo por um ato sexual. Para os
Por isso é que afirmo que são extremamente msatisfa_tóri~s egípcios, a masturbação era uma imagem óbvia e adequa-
tais explicações. Nesses mitos de homem-mulher, nao sao da, oferecendo a solução para a manutenção de seu mo-
dados os detalhes do que realmente acontece. Pensam que, noteísmo: Deus cria todas as coisas pela masturbação.
dizendo que é um homem e uma mulher, já ~asta.? que se Quero agora voltar-me para tipos diferentes de emo-
perde é O deslumbramento! Essa é uma versao terrivelmen- <;ão que levam à criação. Uma possibilidade é que o deus
te abreviada em que todo o deslumbramento, o encanto, se sente incomodado, ou inquieto, como por exemplo em
alguns mitos indígenas norte-americanos. Há também o
,2 Popol Vuh, versão para o inglês de Delia Coetz e Sylvanus G. M_or~ey,
a partir de trad. para o espanhol de Adrian Recinos (Londres: William 43
Hodge and Company, 1951), p. 81ss. Eliade, Die Schiipfungsmythen, p. 70.

172 173
Maidu, em que está dito que Aquele Que Faz a Terra na- "" Uma certa tribo inca diz que o criador vive no céu, de
dava na água até que ficou ansioso: "Pergunto-me como, 1111dc ele nunca sai porque tem de manter tudo em ordem.
me pergunto onde, e me pergunto em que lugar podere- 11:11' criou o céu e a terra porque se sentia só e depois criou
mos encontrar terra neste mundo?" Aqui, a primeira rea- 1111xiliares que tinham a mesma atitude que ele, e estes
1 l'laram o resto do mundo. Novamente encontramos aqui
ção do criador é uma espécie de inquietação ansiosa: "Per-
gunto-me como e onde poderemos" fazer alguma coisa. 11 1ncsma motivação: Deus sentiu-se só.

Essa é uma reação bastante incomum que não se encon- Essa idéia ocorre também na Índia. No Brihada-
tra em muitos relatos.44 , 1111yaka Upanishad, é dito que o mundo é criado median-
Um sentimento mais freqüente, que dá início à cria- lc • o sacrifício do cavalo. Mencionei este aspecto quando
ção, é a solidão. Por exemplo, os Win~ebago, _um_a subdi- llllei do motivo da primeira vítima. Na quarta parte en-
visão dos índios Sioux, contam seu mito da cnaçao da se- rnntramos o seguinte mito de criação:
guinte maneira: O Grande Espírito sentiu-se só. Por isso
pegou uma parte de seu corpo, perto do coração, e tam- No princípio estava o Si-mesmo (Atman) sozinho, na
bém um pouco de terra, e com esses ingredientes fez o forma de uma pessoa. [O termo para pessoa é purusha,
primeiro homem. Depois, ele criou três outros homens e que significa um ser humano na forma de homem, ou
depois uma mulher, que é esta terra, a mãe de todos os pessoa. Müller traduz Atman como "o Si-mesmo", de
índios. Os quatro homens são os quatro ventos. No come- modo que podemos dizer que, no princípio, Atman
ço são muito irregulares e selvagens, mas depois se tor- estava só na forma de uma pessoa, ou na forma de
nam mais controlados. Então o Grande Espírito povoou a purusha.] Ele, ao olhar à sua volta, não viu nada
terra com animais e, em seguida, criou o homem e a mu- além de si mesmo. Primeiro disse: "Este sou eu"; por-
lher. O homem recebeu tabaco e a mulher, milho, e assim tanto, ele se tornou "eu" de nome. Assim, ainda hoje,
por diante. Há um longo processo mostrando_ que o Gran- se um homem é indagado, primeiro ele diz "este sou
de Espírito também é o instrutor da humanidade em to- eu" e depois pronuncia o outro nome que possa ter. E
dos os problemas da civilização. Mas a motivação primá- como antes de tudo isso ele (o Si-mesmo) queimou to-
ria é que Deus se sentia sozinho e por esse motivo criou o dos os demônios, ele era por conseguinte uma pessoa
mundo. 4 5 (purusha). [Este é um jogo de palavras porque ush
Esse mesmo tema reaparece em muitas versões. Os significa queimar até reduzir a cinzas e purusha é
índios Klamath, por exemplo, dizem a mesma coisa. Re- interpretado como aquele que incinera todo o mal.]
latam que primeiro havia um Deus, o único ser que tinha Na verdade, aquele que sabe disso incinera todos os
inteligência e pensava, e que criou tudo p elo seu pensa- que tentam estar diante dele. Ele temeu e, portanto,
mento e pela sua vontade, querendo coisas porque estava ninguém que é só, teme. Ele pensou: "Como não há
nada além de mim, por que eu deveria temer?" Então
seu medo sumiu. Pois, o que ele deveria ter temido?
44 Jndianermiirchen aus Nordamerika, p. 401. Paul Radin, The

Winn ebago Tribe (Lincoln: University of Nebraska Press, 1970), p. 302. Na verdade, o medo surge só de um segundo. Mas ele
Também, Paul Radin, Winnebago Culture as Descnbed by Themselues, não sentia prazer. Portanto, o homem que é só, não
pp. 9, 37, 64ss. sente prazer. Ele queria um segundo. Ele era do ta-
• 5 Paul Radin , The World of Primitiue Man (Nova Iorque: Henry
manho de um homem e uma mulher juntos. Então
Schuman, 1953), p. 320.

174 175
ele fez com que seu Si-_mesmo_ se partisse em dois (pa~) rno assim, apesar de tudo, estamos com medo. Na reali-
e daí erri diante, havia marido (pat) e esposa (patm) dade, vem do nosso inconsciente esse motivo para sentir
[~utro Jogo de pala~~as]. P_ortant?, Y~fnavalkya _[o medo.
sa' b w
· a quem ele esta instruindo] disse: Somos assim
h ,, Se você está sozinho, uma boa parte de sua energia
( d urri de nós) como a metade de uma cone a . vital, normalmente usada no relacionamento com as coi-
Lcag ªvazio que havia é preenchido pela esposa. E le
o O, 0 u e nasceram os homens. El a pensou: "C omo
sas de fora, pode-se dizer que toda a "energia social", fica
s ubitamente represada e não tem can al de saída. Portan-
a envo lve . d
, ele pode me envolver depois de m e haver pro u- Lo, reflui e volta a se constelar no inconsciente. É por isso
e que d ,, El que em todas as religiões o isolamento é um dos meios
zido a partir de si mesmo? Vou me escon er . a
então tornou-se uma vaca e o outro tornou-se um tou- pelos quais encontramos Deus, ou os fantasmas, ou os
,,, volveu, e depois disso nasceram <'spíritos, ou através do qual nos tornamos iniciados n es-
ro e a e'" _ as vacas. sa experiência interior. O primeiro passo para a maioria
Um tornou-se a égua e o outro o garanhao, um ~ as7:o
outro a jumenta. Ele a envolveu e depois dis- elas religiões, quer as experiências xamanistas, a vivência
mac ho, ram os animais de casco. U m tornou-se a nas casas de suor dos índios americanos, ou a busca da
sonaSce revelação dos índios norte-americanos no alto de uma
ca b ra, O outro, o bode· Um tornou-se a ovelha, o ou- montanha, quer as práticas dos primeiros monges egíp-
tro, 0 carneiro. Ele a en::olveu e_ en~olvendo-s~ um no
or toda a extensao da criaçao, produziram to- cios, sempre foi o impulso de se isolar porque, então, a ex-
ou t ro P . . 46 periência interior se acumula.
dos os tipos de animais e seres.
O receio da solidão está na raiz da fobia a prisões.
l•'icar aprisionado só, por um lon go tempo, é algo que a
Aqm· estamos nos concentrando no1· início da histó-
, · e a t emon- ·
· p
na: o uru v , si...a o ser primordial, está so itano .
maior parte das pessoas não consegue suportar porque
- sente prazer Novamente aparece o motivo do ameaça tirar-lhes o juízo. Essas são pessoas que não são
za d o, e nao · . - d capazes de deixar o inconsciente vir à tona como "uma
do mas está muito bem caracterizado. N ao é medo e
:i:u~a coisa, medo de um objeto: ele até argumenta a roisa" com a qual possam se relacionar. A única maneira
respeito e diz que não existe uma segu_nda ?essoa, por- de superar esse medo irracional é tentando visualizar o
e ter medo? Ele tenta racionalizar o medo inconsciente, ou deixar que ele fale como uma voz, e en-
t ano t por qu · Lão, ouvi-la, pois ela lhe dirá coisas; é aí que se torna pos-
. · a' lo tal como fazemos quando estamos assus-
para d ISsip - , . · 1 s ível superar o primeiro medo irracional de sentir que
, aquele medo profundo e irraciona que surge
t a d os. E · b' está enlouquecendo porque ouve vozes e coisas assim. Se
quando estamos sozinhos e que todos se11:t11:1os_ se, _su i-
imoveis e iso1a- n pessoa consegue agü entar o primeiro impacto, que pa-
Percebemos completamente
t ament e, nleOsmomento . rece intolerável à mente racional, então a fobia da prisão,
em que praticamente todos se sen-
d os, aque ~ e f ou de qualquer outra coisa, será facilmente superada. É
tem aterrorizados sem saber por que. omeçamos a an-
· e estamos sendo observados , e olhamos em vol- uma questão de agüentar o primeiro impacto. Mas, antes
t asiar qu . · b que o inconsciente atinja aquele montante de carga, a
ta. É um medo irracional, pois sabemos muito em que
ponto de irromper na forma de uma alucinação ou voz, ou
não tem cabimento, que não t emos medo de nada e, roes-
qualquer outra manifestação, geralmente primeiro ins-
Lala-se um estado de tensão terrível em que esse medo
irracional se apodera da pessoa.
4 s The Upanishads, vol. 1, p. 240.

177
176
Há muitos anos, eu mesma não conseguia fazer ima- mais sozinha, ela tem esse par interior com quem falar, e
ginação ativa e, depois de ler sobre os monges do desert_o sobre coisas muito envolventes, o dia todo. Pelo contrá-
do Egito, pensei que a única coisa a realizar era 1:1e ap_n - rio, fica-se muito ocupado com isso.
sionar completamente e tentar acumular a energia do in- Esse é o momento em que o "um se torna dois" (Nietz-
consciente como eles faziam. Confinei-me numa cabana
che), descrito quando o Atman-Purusha se reparte em
nas mont;nhas, na neve do inverno, mas fiquei tão
marido e esposa - nas duas metades. É o momento em que
introvertida que ir uma vez ao dia até a aldeia para com-
a pessoa tem de se dar conta de que essa coisa que teme
prar pão era extroversão suficiente para ~e sentir mara-
é objetiva. Aqui esse processo é descrito de uma forma lin-
vilhosa; portanto, o inconsciente não havia se represado
~a: a esposa preenche o vazio e depois envolve o Purusha.
o bastante. Trocar algumas palavras com a mulher da pa-
E o vazio que a pessoa teme, mas no momento em que
daria dizendo: "Sim, está um belo dia hoje, o vento está
mais 'morno [Fohnl, a neve está derretendo" era o sufici- ela permite ao inconsciente aparecer plenamente nova-
ente e dessa forma nenhuma experiência monástica quis zio e tornar-se um parceiro objetivo, a solidão e com ela
se a~unciar. Sendo assim, tive de arrumar comida enla- o medo irracional da solidão desaparecem. Então é só
tada e pão seco e deixar totalmente de sair, não indo nem uma questão de conversar com o parceiro interior. Tam-
até a padaria, e só assim foi que a energia se acum~lou: bém é por isso que Jung freqüentemente cita o famoso
Fiquei com uma terrível fobia de ladrões! Essa fanta_sia foi ditado dos alquimistas segundo o qual quem é solitário,
afastado da multidão e não consegu e se juntar às de-
piorando, especialmente à noite quando eu sempre tmha. a
idéia de que um ladrão viria até a cabana, que não se podia mais pessoas encontrará um amigo interno que ficará
trancar com segurança. Na terceira noite, tomada de um com ele e o guiará. Para os alquimistas era Hermes Mer-
medo medonho, dormi com um machado ao lado da cama - curius quem os ajudava em suas solitárias empreitadas
não tinha mais nada, afora esse machado para rachar a le- de buscar a pedra filosofal. Mas há um primeiro pré-es-
nha - e assim me deitei com o machado ao meu lado, ten- tágio antes que o inconsciente possa assumir essa forma
tando imaginar se eu teria coragem de atacar o ladrão na como um objeto real: é o estágio transicional em que a
cabeça se ele viesse! Isso se tornou inteira~ente_ intoler~vel pessoa tem, ou sofre de, um m edo irracional que, na rea-
- fiquei tão aterrorizada que não consegma mais _dormir - lidade , é o famoso medo de fantasmas, medo que todos
e então, de repente, pensei: "Mas, meu Deus, era isso o que os primitivos experimentam. Também é o medo de algo
eu queria!" E assim, visualizei o ladrão e comecei a falar com novo e do inesperado.
ele e o sentimento de medo se desfez por completo. Normalmente, o relacionamento de um ser vivo, in-
Fiquei duas semanas na cabana e não precisei mais clusive os animais superiores, com o mundo externo e o
trancar a porta; dormia o sono dos justos. Percebi que eu ambiente social, ou seja, com outras criaturas da mesma
tinha me enfiado ali para passar por essas experiências e espécie, é condicionado por padrões de comportamento.
que, quando vieram, me senti aterrorizad~, m~s depois Os animais, por exemplo, são condicionados por padrões
aprendi a conversar com esse ladrão. Eu o vi mmto clara- inatos de comportamento acionados para seus semelhan-
mente na minha imaginação. E é assim que, acho que as tes, inclusive as presas que têm de matar. O animal não
pessoas podem superar esse tipo de pâni~o_. E o truque de tem problemas de relacionamento pois tudo está regula-
deixar a coisa vir na forma que for, permitindo-lh e que se do pelos padrões instintivos de conduta social. Nós, seres
torne objetiva. E depois, principalmente, a pessoa não está animais tribais, até onde nos conhecemos atualmente (nas

178 179
escavações de sítios dos homens primitivos sempre apa- Às vezes, em análise, quando você tenta transmitir
recem formações tribais, tribos), também somos condicio- alg~ para um analisando e ele tem medo disso, em vez de
nados a nos relacionar não só com outros seres humanos ouvir, ele então despeja um sermão monumental e fala
mas também com objetos, com tudo, e o medo nos toma fala, fala, para não deixar a menor brecha na conversa'
quando não temos padrão de comportamento por meio do na qual você poderia colocar a informação terrível. El~
qual nos relacionar. Isso explica o medo do desconhecido, está aterrorizado com alguma coisa, e então tenta afu-
porque não sabemos o que fazer com ele. Se for um ser gentá-la falando. Este é inclusive um sintoma neurótico
humano que você conhece, você pode reagir deste ou da- pois algumas pessoas mobilizadas por uma ansiedade in~
quele jeito. Se for uma árvore, ou um animal, você tam-
consciente têm uma constante diarréia verbal. Elas pos-
bém pode reagir, está condicionado a todas essas coisas.
suem medo de alguma coisa e enchem constantemente 0
Mas se for algo desconhecido, então você sentirá um va-
zio por dentro, não saberá o que é, e portanto, não vai espaço :7~zi~ à sua v_olta com um monte de ar quente, por-
saber como reagir. Isso causa uma sensação de estranhe- que o s1lenc10 poderia revelar a coisa real, que é aterrori-
zante por ser desconhecida.
za, de estar perdido. Por assim dizer, a pessoa se sente
num espaço vaz10. Segundo o nosso mito indiano, contudo, o medo é a
A fantasia que se infiltrou em minha mente era mui- base ~a criatividade. Quem quer que não consiga agüen-
to óbvia e barata - o animus ladrão - mas era extrema- tar o impacto do desconhecido, naturalmente, não é ca-
mente adequada porque, em alemão, a palavra para la- paz de criar nada de novo, nem de deixar que aflore nada
drão é Einbrecher, aquele que invade, e aquele que invade é novo, ou, c~iativo: S~ essa pessoa não é capaz de suportar
o inconsciente. Portanto, o ladrão simboliza o inconscien- esse, est~g~o prehmmar de pânico ou medo, jamais setor-
te invasor, aquele que invade o território da consciência. nara criativa e esse é um dos bloqueios à criatividade.
Assim que se consegue visualizá-lo, ou ouvir uma voz, ou Algumas pessoas nunca conseguem encarar esse terrível
algo semelhante, percebe-se que o pior já passou, porque já mo~ento de ser dominado pelo desconhecido, e por esse
existem os padrões de comportamento e você pode se rela- motivo não conseguem entrar numa imaginação ativa e
cionar. Se, por exemplo, é um ladrão, então você tem todos conversar com o inconsciente. '
os padrões de relacionamento com um ser humano à sua
disposição. O inconsciente já tomou forma, tendo se trans- Chegamos agora a um tema intimamente relacionado
formado em algo com o qual você pode se relacionar. Mas co~ essa ansiedade e esse sentimento de solidão, e que é
antes, enquanto você ainda está no estado em que só existe mmtas vezes encontrado nos mitos, a saber, o motivo do
tensão, o represamento da energia está acontecendo, há um choro. O criador chora; sua primeira reação antes de criar
medo terrível. Na realidade, muitas pessoas, até mesmo ou enquanto está criando o mundo, é chorar. Um mit~
quem está em análise, jamais superam esse medo do incons- africa_no, ,um mito de criação dos Baluba, que de certa
ciente e tentam dissipá-lo com racionalizações. Nunca dei- ~arn~1ra e u1;1 tanto estranho porque todos os seres já es-
xam que o impacto do desconhecido se aproxime delas e usam t~o la, tambem evoca esse motivo do choro: no início, ha-
inclusive conceitos psicológicos, junguianos ou freudianos, via um~ grande planície vazia; não havia arbustos, gra-
para bloqueá-lo. Dizem: "Oh, é o meu animus", ou "Essa é a ma ou arvores. Todos os animais choravam: o antílope
minha sombra". Usam a mente como um mecanismo de de- chorava, as aves choravam, os leopardos choravam, todos
fesa, o que naturalmente é muito suspeito. choravam porque não havia onde pudessem se esconder.

180 181
Ora existia uma velha mulher que tinha olhos ramelen- começou a desejar. Desejou luz e fez-se a luz, desejou a
tos, 'malcheirosos, e que disse que era capaz de salvá-lo_s terra e a terra tornou-se real, e assim por diante. Dessa
se todos eles lambessem seus olhos e os curassem. Os ani- forma, ele cria tudo apenas desejando.47
mais concordaram em fazer isso, e então os antílopes vie- Cheguei efetivamente a presenciar, em análise, que
ram e lamberam seus olhos, os papagaios, os leopardos, às vezes as pessoas que têm como incumbência fazer algo
enfim todos vieram, até ela ficar curada. Então a mulher criativo primeiro têm acessos de choro. Elas não s abem
pegou uma cabaça com sementes e atirou as sementes pela por que estão chorando, ou o choro pode ser racionalizado
terra. Dessas sementes nasceu toda a vegetação e agora como algum acesso de autopiedade, mas elas se desman-
cada animal tinha um lugar para morar e, com isso, todos cham completamente em lágrimas e, então, de repente se
eles foram salvos pela velha. controlam e começam a produzir de forma criativa. Essa
é uma das maneiras para primeiro se dissolver a cons-
Este não é propriamente um mito de criação por- ciência e então chegar mais perto do inconsciente; esse é
que a terra e os animais já existia_m ª1:tes e somente um processo que desempenha um papel importante na
houve a criação da vegetação. Eu o mclm P?rq~e o mo- alquimia t ambém. Um dos estágios iniciais do trabalho
tivo do choro é essencial. Pelo choro dos ammais, a su- alquímico é muito freqüentemente a liquefactio, a lique-
perfície da terra é modificada, deixando de ser um de- fação para desfazer a prima materia, que muitas vezes
serto para se tornar um lugar habitável. O choro tam- está endurecida ou solidificada do jeito errado e, portan-
bém é encontrado comumente nos mitos de criação dos to, não pode ser empregada n a confecção da pedra filoso-
índios norte-americanos. Um desses vem de uma sub- fal. Os minerais precisam antes ser liqüefeitos. Natural-
divisão da tribo Algonquiana. Diz o seguinte: no início mente, imagem alquímica subjacent e é a extração de um
não havia nada além de água; não se via terra alguma. metal da matéria crua, através de um processo de derre-
Na água estava um bote e, no bote, um h~mem que ~ho- timento, mas a liquefactio freqüent emente inclui a cono-
rava porque não tinha noção de qual ser:ª se~ de~tmo. tação alquímica de dissolução da personalidade em lágri-
Então a rata Moshus saiu da água e disse: Avo, por mas e deses pero. O estado Liquefactio é mencionado no
que você está chorando?" Ela entã? pe_sco~ terra e deu-a início do trabalho como o derretimento dos metais e os
para ele. Essa é a famosa ma neira i~di~ena de !azer alquimistas dizem que, durante essa fase do trabalho, o
aflorar terra. Nessa n arrativa, a primeira reaçao do alquimista fica triste; s~nta-se em nigredo e tem pensa-
Deus criador é chorar de ansiedade diante do desconhe- mentos melancólicos. Ele está na afflictio animae, no es-
cido porque ele n ão sabe "qual será seu destino". tado subjetivo triste e desesperado que acompanha a dis-
solução da barra de metal. Isso esclarece o que significa
Há também o mito de criação Winnebago no qual é chorar, ou seja, ele opera um rebaixamento do nível men-
dito que não é certo que nosso pai se sentou quando to- tal por meio do qua l o conteúdo criativo do inconsciente
mou consciência mas que suas lágrimas começaram a pode aflorar. Isso acontece especialmente com as pessoas
correr; ele começ,ou a chorar e não viu nada. Não existia que tendem a t er uma atitude habitualmente consciente
nada e então suas lágrimas formaram a terra sob seus muito racional e consolidada e, portanto, precisam de um
pés. Em outras versões, ele tomou um pun?ado ~e terra e
formou a superfície da terra. Em outro mito Wmn~bago,
47 Paul Radin, Winnebago Culture as Described by Themselues, p. 9.
as lágrimas dele caíram e formaram os lagos. Depois, ele

182 183
processo de liquefação para poderem se aproximar daquela verdade, quando eu venero, aparece água". Novamente
camada em que o inconsciente pode vir à tona e falar com este é um jogo de palavras. Água se diz aka. "Certamente
~á água, ou prazer, para aquele que assim sabe por que a
elas.
Uma das outras reações é o desejo e, junto com ele, a~ua se chama aka, na verdade água é aka", e assim por
diante. Dessa maneira, então, o primeiro ser, Morte ou
aquilo que um texto hindu chama de fome. Pens_o que.ª
Fome, divide-se em três e com essa forma tríplice cria o
fome seja importante porque tem uma co~otaçao mais
ampla que desejo e, realmente, expressa mais exataI?-en- mundo t~do. Essa espécie de fome básica, existencial, como
te aquilo que, na minha experiência, o termo dese;o - se poderia rotulá-la, é aqui a raiz de toda a criação. Pen-
usado em outros textos - significa. Não se trata de dese- so que, antes de interpretar este material, deveríamos
jo por um objeto definido, como o desejo de um homem passar por alguns t extos gnósticos um pouco diferencia-
por uma mulher, ou o de uma pessoa desejando alguma dos, nos quais existe a mesma idéia.
coisa específica; é mais um querer sem saber realI?-ente o O grande fundador de uma seita gnóstica foi Simão
quê. É como uma boca aberta querendo alguma coisa se~ Magus, um dos rivais de São Pedro. Por um breve perío-
um objeto específico em mira, ou sequer u~a fantasia do, foram adversários. Na cosmogonia de Simão Magus
específica em mente. Na segunda _seção ~o Briha_dª!ª~:ª· - da qual só t~mos fragmentos - existe a idéia de que,
ka Upanishad encontra-se o segumte mito de cnaçao: No no começo, havia um poder absolutamente eterno e incor-
início não havia absolutamente nada [o tradutor acres- ruptível, externo a tudo, que não tinha nem se formado
centa'"a ser percebido"] por aqui, pois a morte havia real- ~uma ir~agem. Esse poder era chamado de fogo ou dese-
"
mente anulado tudo, pela 1ome, . a mort e e, fiome " .48
pois JO, por S1_mão Magus. É o princípio cósmico básico que cria
Naturalmente , essa é a maneira específica de os in- . e permeia tudo. Também é o Si-mesmo cósmico. Simão
dianos pensarem, ou seja, que pelo d~s~jo, voe~ co~o m- Magus diz que ele subdivide em acima e abaixo, cria a si
divíduo, cria o seu carma; passa a existir. Por isso e que IT.lesmo, aumenta a si mesmo, busca a si mesmo, acha a
Buda ensinou posteriormente que, sacrificando to~o tipo si 1;1e~mo, é ~eu próprio pai e mãe, seu próprio irmão, seu
de desejo, você pode deixar o mundo e retornar ao mrvana. pr~pno mand?, sua própr ia filha, seu próprio filho , pai-
O desejo, por assim dizer, é o início, a r~iz, de todo mal, a mae, um, a raiz de todas as coisas.49
raiz de toda existência. E essa existência no plano da ter-
ra e na realidade, vista da perspectiva espiritual do hindu, Dep~is,_Simão Magus prossegue: o fogo é a origem de
é a morte. Deixar-se perder na realidade, na vida e neste toda .ª criaçao, porque a origem de toda criação é o desejo
mundo, por meio do desejo, é, do ponto de vista do ho!fiem de criar, que vem em tudo que entra no plano da existência·
espiritual que se retirou dele, u!11a forma de 1:1-or_te; E _Pºr esse desejo de criar emana do fogo. Portanto, há primeir~
esse motivo que a fome, o deseJo e a morte sao ident1cos uma totalidade pré-consciente que contém o Eu e o incons-
segundo esse antigo texto hindu. A morte pensou: "Qu_e ciente e tudo em um, que é macho-fêmea, que é a coisa úni-
eu tenha um corpo". Vejam, ela quer de novo alguma coi- ca, que é antes, e que será depois, tudo em um. E dessa o
sa! Então ela se movimentou, e venerou. Da morte, em m?vim,ento _é iniciado pelo fogo, porque fogo é o desejo de
estado de veneração, foi produzida a água e ela disse: "Na criar. E por isso que o desejo de até mesmo criar algo tempo-

49
Leisegang, Die Gnosis, pp. 60ss.
•s The Upanishads, vol. 2, p. 74.

184 185
rale terreno é descrito como "ardendo em chamas". Quando
tar neste º, de_sejo de união com ela.) Então, ele se une
você se apaixona, começar a queimar. Ele faz um jogo de com sua propna grandeza, que é a Ennoia e dele do Pai
palavras e diz que até mesmo no uso mai~ comum do termo: vem Aletheia, a verdade, e Anthropos, o homem.' '
quando se apaixona e portanto ~uer cr~ar ?u, ~erar, voce
queima. Assim, o fogo ou .º deseJo-fogo e o 1~1c10 d~ tudo. . ~letheia, a verdade, que em grego é uma entidade
Continua Simão Magus dizendo que o fogo e, em s1, uma femmma, _e Anthropos, o homem, são os dois primeiros
unidade, mas que aparece sob duas formas. Novamente aqui, filhos e c:iam toda uma série de outros grupos de seres
a subdivisão numa dualidade, uma discriminação. No ho- machos-femeas. [Vou pular toda essa p arte pois quero me
mem ele se torna sangue, quente e vermelho como o fogo, e c~~centrar nesse primeiro imp?lso.J Em grego, Ennoia sig-
sême~; na mulher, leite; em ambos, promove a criação. Se- mfica um pensamento que amda não tomou forma em
gundo Simão Magus, o fogo é também a ?rige~ da consciên: palavras, que ainda não foi verbalizado.
eia, Logos. Como diz em um ponto mais adiante, Logos e . S_e você se obs~rvar enquanto pensa, irá perceber que
uma centelha pequena que aumenta incessantemente _até pnI?eiro tem um tipo de percepção repentina e penetran-
chegar a ser uma força tremenda, e depois se torna um Eon te, 1st~ é, a consciência de um pensamento, que é depois
inteiro, ou seja, uma força criativa divina. Em outro ponto, verbalizado. Por exemplo, se está pensando sozinho em
Simão Magus diz que há duas origens para o cosmo, asa- seu_ quarto,__ você geralmente fala, escreve ou diz coisas;
ber, o grande poder que é o espírito que tudo ordena e o assim, frequentemente, seus pensamentos já assumiram
grande pensamento, que é feminino, e dá tudo à luz nos uma forma que os gregos designariam como o Logos, o ver-
partos. Entre ambos, está o pneuma. bo. Mas, antes que um pensamento seja verbalizado já existe
Se resumirmos esse texto complexo, veremos que o uma percep~ão i?terior ?? mesmo. Por exemplo, e~ digo er-
er-er'. o que implica que Ja tenho em mente o pensamento e,
primeiro movimento que sai dessa totalidade pré-co~s-
depois, tenho _de faz~r a _traz:isição para verbalizá-lo. Em ge-
ciente harmoniosa assentada em si, vem do fogo do deseJo, ral, fazemos isso primeiro mteriormente. Os gregos estu-
ou o desejo tem u~a forma ígnea, que novamente possui dar~m esse processo de pensamento e observaram suas re-
dois aspectos. Um texto da escola de Valentinus, outro flexoes, prestando atenção no que acontecia quando pen-
autor gnóstico, diz o seguinte: no princípio, havia o Aut~- savam, e chegaram à conclusão de, que existe um tipo de
pater, quer dizer, o pai de si mesmo, o "autopai" no senti- ~ntel?ensa_mento, que é a Ennoia. E a primeira percepção
do de ser a entidade original e o pai de tudo, que ele mes- mtenor, silenciosa e consciente, de um pensamento.
mo não tem pai, sendo ele mesmo o pai de si próprio. Ele
contém o cosmo todo e repousa em si mesmo, sem cons- , Essa conscientização de um pensamento, ou do con-
ciência. Novamente aqui, o Deus inconsciente simboliza a teudo_ de _um pensamento, é um fenômeno de limiar de
totalidade pré-consciente. Ele, o que nunca envelhece, o consc1ê,ncia; é semiconsciente e semi-inconsciente. Por-
sempre jovem, macho-fêmea, envolvendo o cosmo, m~s ?ão tan~o,_e adequa_damente personificado por uma entidade
envolvido por ele, vive com sua Ennoia, o poder femmmo, femmma, Ennoia, a anima, porque é isso que a anima faz
em seu íntimo. Sua Ennoia queria romper os grilhões da num homem: ela é a entidade antepensamento. Por isso é
~ue ~ung_fala tantas vezes da anima como sendo la femme
eternidade e, portanto, despertou ou se tornou ativa de~-
~nsp~ratrice, a musa inspiradora, porque ela é O fator de
tro dele. Ele sentiu o desejo de envolvê-la. (A força femi-
m~p1_ração interior que provoca no homem pensamentos
nina, que está no íntimo do Si-mesmo/Pai, tenta desper-
criativos. Se for projetada, então ele naturalmente sente
186
187
que é a mulher, a mulher de carne e osso, que o inspira. . Na reali?ade, já fizemos a t ransição para um novo
Mas isso acontece porque ele projeta nela sua anima; en- m_otivo, ou seJa, passamos do desejo para o pensamento.
tão ela personifica essa Ennoia, esse estágio antepensa- V1m?s que En~o1a, o antepensamento, o pensamento que
mento. cont~nua ma_ntido dentro e ali nasceu, desperta no pai 0
deseJo d~ umr-se com ela e criar; sendo assim, existe uma
De acordo com Valentinus, a Ennoia também é cha-
certa umdade_ en~re o desejo sexual e o pensament o criati-
mada Charis, o que significa graça, e Sige, que quer dizer
v?, em sua, primeira existência ou em seu primeiro apare-
silêncio; essas duas palavras em grego são do gênero fe-
c1m_ento. _Ja_ e_studamos um mito indígena norte-americano
minino. Assim é Ennoia, a percepção do pensamento, a
graça, o silêncio. Nesse estágio, quando Ennoia aflora, mmto primitivo em que Coiote e Raposa de Prata criaram
a pessoa não fala, nem para fora nem dentro. A pessoa um ~ote apei:ias pensa_ndo nisso e depois Raposa de Prata
entra num tipo de silêncio meditativo e contemplativo no co?t1?-uou criando sozmha, mas o primeiro ato de criação
qual toma consciência de um pensamento criativo. fo1 ~eito pelo pensamento. A criação das coisas pelo pensar
se~a e~co~trada também em várias outras modalidades de
O texto segue em frente: essa Ennoia acende no Au- m!tos md~genas norte-americanos. Por exemplo h á um
topater (na figura paterna inconsciente) um desejo se- mito de criação dos zuni em que é dito: '
xual de envolvê-la e, a partir daí, criam a Verdade e o
primeiro homem. Essa é uma forma complicada de pro- No come~o _das coisas, Awonawilona estava só. [Ele
cessar aquilo que, nos mitos primitivos, foi definido de era ? mais importante dos grandes deuses dos índios
modo muito mais simples, mas que, em si, é igualmente z u7:i; era o criador e aquele que preserva todas as
fascinante e verdadeiro e, em certo senti.do, muito me- coisas.] Não havia nada com ele em todo O espaço do
lhor definido porque aí podemos verificar os processos temf!.º· Por toda_ parte, havia trevas negras e o vazio.
intermediários que se desenrolam entre inconsciente e Entao Awonawilona concebeu sozinho o pensamento,
consciente. e esse pensamento tomou forma e saiu pelo espaço e,
Uma outra versão do mesmo ensinamento dos valen- a~raves do espaço, penetrou no vazio, no espaço exte-
tinianos nos diz que, no princípio, havia o insondável Éon, rior, ,e ~estes vieram nebulosas de crescimento e né-
que existia antes de tudo, a origem primeira, o pai origi- voa umi_da, plenas da força de crescimento. Depois
nal, e Bythos, o abismo. Ele era invisível e nada podia que a nevoa e as nebulosas surgiram, Awonawilona
envolvê-lo ou apreendê-lo ou cercá-lo; ele era eterno, não se transformou através desse conhecimento em outra
gerado. Por um tempo imenso, repousou na mais profun- (orm<:' e tornou-se o sol, que é o nosso pai e que tudo
da imobilidade. Desde o início dos inícios, Ennoia estava ilumina e enche de luz, e as nebulosas condensaram-
com ele, ela que é também chamada de Charis e Sige - se ~ afundaram e se transformaram em água e fo i
assim que nasceu o mar. 50
Graça e Silêncio. De repente, Ennoia concebeu a idéia de
que alguém deveria produzir um broto de Bythos, algo
novo, um sperma, que ele deveria colocar em seu útero. Vemos_ aqui a idéia de um criador primeiro conce-
Depois de haver recebido essa semente e ter engravidado, bendo por s1 mesmo um pensamento, num processo muito
ela deu à luz Nous. Aqui, então, não a Aletheia, a verda-
de, mas Nous, a mente cósmica, é criada como força divi-
50
na. Daí em diante, tornou-se o pai de todas as coisas. lndianermarchen aus Nordamerika, pp. 31355 _

188 189
semelhante ao do mito gnóstico da Ennnoia; depois o pen-
samento é exteriorizado e provém dele um segundo ser que Esse ~rocesso é acentuadamente explorado no Orien-
enche o vazio escuro que o cerca. Então surge a oposição te, on_de vigor~ a idéia da criação através de tapas, como
dos princípios da consciência e do inconsciente, ou seja, o menc1,º1:ª 0 Rigved~. Tapas, que é usado, por exemplo,
sol e o mar, em que o sol é um símbolo do princípio da nas varias escolas diferentes de ioga, significa hoje, real-
consciência, não da consciência do Eu, mas da consciência mente, uma_ for~a especí~ca de meditação, mas original-
como um todo, e o mar é seu oposto. Mas, antes do sol da me~te q_ueria dizer ~onferir calor ao interno, cismar, por
consciência não há o mar do inconsciente. Mais uma vez, a assim dizer, sobr~ ~1 mesmo. Diríamos que é O processo
simultaneidade na qual realmente não há inconsciente ~e, ~e pr_ove~ d_e l~b1do. O Rigveda 10.29 afirma que, no
antes da consciência, e vice-versa. O inconsciente tem seu m1c10, so ex1st_1a agua e, na água, havia um germe vivo.
ser somente como oposição à consciência. Antes, só há essa Desse germe v1:o, nasceu tudo o mais, por meio de tapas.
1:otalidade oni-abrangente que contém ambos, ou. seja, Houve ~m deseJo amoros? e, desse primeiro pensamento,
a totalidade em si. É semelhante ao mito indiano em que ou deseJo amoroso, surgm a primeira semente. Inicial-
Purusha, com sua parceira, enche o vazio e depois se une a ~e~te_, as trevas eram cobertas por trevas, 0 universo era
ela, embora aqui não se trate de um enlace sexual que leva
1~d1stmto e fluido , o espaço vazio que ficava oculto pelo
à criação, mas a existência do sol numa forma e do mar,
vacuo, aquele_ Uno era engendrado pela força do calor _
em outra que, daí em diante, criam o resto do mundo.
tapas. _O deseJo, então, apareceu primeiro dentro· desejo
É digno de nota que a criação pelo pensamento seja que_ f~1 a mai~ antiga semente do espírito. (Aqu'ilo que
um motivo encontrado principalmente nos mitos gnósticos aqm e traduzido como "desejo", no texto é tapas.) o elo
de criação, nos mitos de criação dos índios norte-america- entre ser e não-ser foi descoberto pelos sábios quando
nos e em alguns mitos asiáticos de criação, o que para buscavam em seu ~oração a verdade com sabedoria. Quem
mim mostra que esse motivo existe predominantemente
o conhece verdadeiramente, quem pode aqui declará-lo?s1
no âmbito das civilizações introvertidas. Os gnósticos são
os pensadores introvertidos por excelência do início da . Esse texto_ realmente não é claro; é uma formulação
era cristã. São mais do tipo pensamento que a maioria mmto ~aga. Ha _uma massa aquática coberta por trevas .
dos outros movimentos cristãos iniciais e, com poucas Tapas as vezes e engendrado pelo desejo ou pela força do
exceções, definitivamente introvertidos. Os índios norte- cal~r; o u~o também é engendrado e esse uno é um germe.
americanos também constituíam civilizações relativamen- Mais adiante, em alguns comentários, ele é conside-
te introvertidas nas quais a ênfase recai nas potenciali- rado co1;10 ui:ria semente e, em outros, como um ovo. o
dades internas do homem. Na Ásia isso é evidente por si. termo san~c_nto é retas, a semente, ou O espírito_ a se-
Em todos esses âmbitos, predomina a tendência a descre- mente espiritual da qual provém toda a geração.
ver o mito de criação como um processo interno, um pro-
cesso de pensamento interior da divindade. Eles até ten- Tapas significa também suar por alguma coisa Em
tam investigar a própria mente e chegam a insights e re- certos exercícios de ioga, o praticante pode elevar a tem-
flexões, no sentido literal do termo, dobrando os pensa- peratura de seu corpo e produzir voluntariamente um
mentos para trás a fim de que se voltem para dentro na estado febril. Há interessantes relatos desse feito por
direção do fator subjetivo, para observar e descrever o pro-
cesso que precede a idéia ou o pensamento criativo. 51
Cf. The Upanishads, vol. 1, pp. 35 e esp. 238 _
190
191
Alexandra David-Néel, que, num mosteiro tibetano, real- tea, e assim por diante. Todos esses poderes são diferen-
mente presenciou uma competição de tapas pelos pupi- tes animais marinhos e, ao mesmo tempo em parte tam-
los, para ver quem conseguia secar mais cobertores úmi- bém estados de ânimo.52 '
dos com seu corpo nu. Essa degeneração em disputa es-
~emos u~ ~aralelo havaiano que leva tudo isto para
portiva é só um aspecto externo de outra coisa, a saber, um mvel sub3etivo. No Havaí, a mesma lista aparece da
que em muitas meditações do ioga tapas é usado como seguinte maneira:
forma de conservar toda a energia vital, não só aquecen-
do fisicamente o corpo mas também entrando numa dis- O primei~~ ser é chamado Te Ahanga - o inchaço de
posição de completa concentração de energia. Em certa um embriao no corpo; é o crescimento de um embrião.
medida, portanto, pode-se dizer que tapas é uma concen-
O segundo ser é Te Apongo - cobiça.
tração de toda a energia psíquica num único ponto, o que
portanto gera calor psicológico ou acúmulo energético, O terceiro: Te kune iti - a concepção interior uma
propiciando dessa maneira a criação. Isto é um incremento concepção que se dá dentro; '
do que já tínhamos nos textos gnósticos na noção de Te kune rahi - preparação;
Ennoia, ou seja, o ato introvertido de pensar que é um
tornar-se cônscio do pensamento que há na sua cabeça, Te kine hanga - o impulso de buscar;
sem exteriorizá-lo em palavras, conservando-o no íntimo Te ~anga h~utanga - ordenar, por exemplo a orde-
e meditando ou cismando sobre ele. naçao das celulas num corpo em crescimento·,
Até aqui examinamos a maioria dos estados de âni- Te iti - a menor coisa possível, o germe de um em-
mo que prevalece na criação e, para concluir, gostaria de brião;
apresentar uma seqüência Maori de criação, uma cosmo- Te kore - nada ainda·,
logia Maori, na qual constatamos uma estranha combi-
nação de todos esses fatores. Alguns mitos Maori simples- !_e kore te Whiwhia - sem ainda qualquer base mas
mente fazem uma lista dos primeiros seres, ou primeiras Ja com uma tendência a existir; .
coisas, que existiram, numa espécie de genealogia. Há Te kore ~e Raw:a - sem satisfação ainda; isso signifi-
uma série muito longa de poderes que existiram primeiro ca um ainda nao em que há uma espécie de frustração;
e só depois o relato da criação. Traduzir esses vagos con-
ceitos Maori é naturalmente muito difícil, mas há uma Pupu - acúmulo, como de água fervente;
lista que, em suma, é a seguinte: o primeiro ser para eles, Ta ua - afundado na tristeza, aprisionado num úte-
depois que céu e terra se separaram, copulou com Ru (este ro apertado demais;
é um poder mas não tenho como traduzi-lo), e primeiro
Tama-a-take - enraizar, criar raízes;
deram à luz a Kanapu (que é a luz do relâmpago) e a
Whatitiri (que é o trovejar do trovão, o ruído do trovão);
52
depois veio Hinenui te po (o poder da terra), e a seguir . Sir George Grey, Polynesian Mythology and Ancient Traditional
alguns outros filhos chamados Tawha-re-riku, Kukupara, llistory of_the New Ze°:lari:ders (Londres: Routledge and Sons, 1906), pp.
l ss. Tambem, E . S. Cra1gh1ll, Handy Polynesian Mythology (Kraus Reprint
Hawaiki (que é o termo do qual provém Hawaii), Wawaua- 1985), p. 14ss. '

192 193
psicológico da busca, o desejo, o germe de um pensamen-
Te kanoiie o te uka - a vulva; e to, o ainda-não que porém quer existir; todas essas ten-
. · h kura - reu- dências. É uma mistura completa de fatores internos e
Te kawiti witi / Te katoa toa I T L!_'ª wai e. O último externos, uma prova a mais de como o nascimento da rea-
t r como órgaos sexuais.
nidos pel o tra d u O , . , is de sangue ver- lidade não pode ser separado do nascimento de nossa cons-
termo aparece entre parenteses. o pen
ciência da realidade. Por conseguinte, a descrição esboça
melho; um processo simultâneo. As pré-formas da união sexual,
. h a - casado com Mahu-ika. assim como do pensamento criativo, são descritas com
Muri-ranga-w enu
grande sensibilidade e diferenciação.
. d tribo toda que carregam em
Esses são os ancestraids ta de uma interminável série É bem sabido que a sexualidade e a criatividade são
. t . como se en ro - muito intimamente relacionadas em cada pessoa e é co-
seu i~ enor, - es futuras. Taran ga entao se
de caixas, todas as_ geMraç~ tiki se casa com Hine rau mum vermos como que uma perturbação em uma dessas
casa com Ira-whak1, ª:1i po dimensões afeta a outra. Sexo e criatividade, especia lmen-
mau kaku, e assim por diante. te em homens - embora eu poderia dizer que também
t- o os nomes dos deuses de- em mulheres - são de alguma forma peculiar inter-rela-
A seguir aparec~m. e~ a resentar-lhes todos esses cionados. São dois aspectos de um único padrão. O sexo,
miurgos criativos; nao ire_i ap , a-o são importan-
d. ' rios pois para nos n no espectro cromático, seria o infravermelho e a criativi-
nomes extraor ina ' . t nte na minha opinião, dade espiritual, o extremo ultravioleta. Às vezes de uma
O , infinitamente impor a ' . .,
tes. que e . b . - e depois a cobiça, como Ja forma muito concreta, podemos ver que um homem que
é o início, o inchaço do em r~~o, Depois a "concepção in- não usa adequadamente a sua criatividade se torna im-
tivemos em tantos ~utros mi ~:- inteira~ente dentro - e potente, por motivos estritamente psicológicos, e que sua
terior" - a concepçao que -~e Ennoia Em seguida a impotência pode ser curada se sua criatividade for libe-
que seria um pouco p_a rec1 ªt com o A seg.uir o impulso rada. Se alguém se queixa de um sintoma como roer as
-
preparaçao, a1go inteiramen
. e vag ·
e vimos '
no outro .
mito: o unhas, por exemplo, ou impotência, ou coçar a testa, ou
de buscar; isso é a ansiedad~ q.u de ansiedade frustrada. qualquer outra coisa, apenas registro mentalmente essa
? Essa especie
que, ond e, comO . . . . . d com uma ordem, mas a or- observação. Não a levo muito a sério, porém; não é o tipo
Então acontece algo pareci o d. spõem sozinhas em de coisa na qual eu me concentre porque em geral é só um
d , 1 1 s onde algumas se i
dem as ce u a ' ma forma diferente, como por exe~- sintoma de algo que coincide com um problema mais pro-
círculos ou assumem u. . ·t· A coisa muito, mmto fundo. Em muitos casos nos quais a impotência foi o prin-
. tura muito pnmi iva.
plo numa ena b i·ão o ainda-não, mas com cipal problema que trouxe o indivíduo para análise, vi que
pequena, ~ e sperma
. de um.em r
da-não ' com sentimento
O
. da
os sonhos ignoravam completamente esse aspecto e insis-
uma ten~encia a o~!\'0~0:1:s outros. A seguir, também a tiam, pelo contrário, em mostrar que o analisando não
frustraçao, e dep d tos essenciais, o estar es- usava sua criatividade, ou o fazia da maneira errada. Se
depressão como um _os aspec
os sonhos não falam do sintoma, então eu digo a mim
premido pela depressao. .
. é linda porque é uma mistura mesma que ele não é o principal, que é só uma emanação
Essa lista hava~ana d . da biológica em si, com as do problema, e que é preciso se concentrar naquilo que o
muito estranha: a onge~ it/;odos os aspectos sexuais, o sonho trabalha. Em diversos casos houve a gratificante
células por exemplo, o pbe~- misturado a isso o aspecto experiência de ouvir o analisando dizer, algum tempo
crescimento de um em nao, e
195
194
depois: "Ah, e a propósito, a minha impotência t_ambém Resumindo, sentimentos de frustração, medo, soli-
desapareceu!" Pode-se não se concentrar nesse smtoma, dão e tédio são alguns dos motivos que encontramos com
mas ele também se cura "a propósito", enquanto o traba- bastante freqüência nos mitos de criação. Podemos dizer
lho principal consiste em fazer aflorar a criatividade ou que todos eles pertencem ao que os alquimistas chamam
oferecer-lhe um canal adequado. Então, de repen~e, a se- de afflictio animae, a depressão e a tristeza que prece-
xualidade funciona normalmente de novo. É muito com- dem um ato criativo. No caso individual isso é o que em
preensível porque se alguém tem um dom cri~tivo e ~ão o geral chamamos de abaissement du niveau mental [rebai-
traz à tona adequadamente, pode estar com isso cn~ndo xamento do nível mental], que tantas vezes acontece an-
um bloqueio das emoções que também pode se _mar:1fe~- tes que um conteúdo importante do inconsciente ultra-
tar no âmbito físico, pois sem as emoções a motivaçao fi- passe o limiar da consciência. Em parte, este é um fenô-
meno energético. Imagine que um conteúdo importante,
sica se desmorona. uma grande carga energética, está a caminho de trans-
Isto não é uma regra fixa; não devemos pensar que por o limiar e adentrar o campo da consciência. Quando
todos os casos de impotência têm essa causa; ne~ sem?re se aproxima do complexo do Eu, atrai libido dele porque,
0 motivo é esse, pois há mil outros. Mas ~ten~1 mu:tos como partículas de uma massa, surte um efeito sobre as
casos em que havia essa ligação e nos quais ~01 poss1vel demais partículas, a saber, os complexos. Estas se afe-
verificar aquilo que os havaianos sabem ~ui!º. bem, ou tam umas às outras como partículas - e esse conteúdo
seja, 0 quão profundamente a emoção da cnativ1?ade e a p_ortanto atrai libido e a retira do Eu, fazendo com que se
emoção do sexo estão interligadas e têm uma or:gem se- smta menor, cansado, inquieto e deprimido, até que o con-
melhante. Outra possibilidade de as duas e1??çoes ~s!a- teúdo aflore.
rem erradamente interligadas, como presenc1e1 em vanos
casos, ocorre quando o homem exagera em sua atividade O oposto de chorar - rir - foi o que constatei num
sexual para escapar à criatividade. Essa é uma outr~ pos- único exemplo, um texto do final da antigüidade, prova-
sibilidade. Vocês podem dizer que ele teve um acumulo velmente do Egito helenizado. Não podemos datá-lo e não
de energia supérflua e, por isso, sentiu-se _tenso e carre- sabemos sua origem exata; chegou até nós num papiro
gado; então, se não pôde colocar essa energia _p~ra f~ra no que hoje é conservado em Paris, contendo receitas mági-
nível criativo, exagerou no nível sexual. O su~e1:o nao fica cas, invocações e encantamentos. Mesclados a este mate-
feliz com isso e não se sente gratificado, pois e um sexo rial encontramos textos notáveis da filosofia hermética e
mecânico destinado a se livrar de uma tensão acumula- documentos religiosos sincréticos de data posterior.53
da, que novamente se acumula ~ ?ª qua_l ele ou:r_a vez se Esse texto, que começa com uma seqüência de no- .,
1

livr a criando com isso uma espec1e de circulo v1c10so, um mes de a njos e de invocações à divindade, diz: "O primei-
círcuÍo de tensão nervosa, porque a outra ;i~ de sa_íd~, ro anjo louva-te na linguagem das aves, ARAI, ARAI. O
mental ou artística, ou de alguma outra espec1e de cn~ti- Sol louva-te na sagrada linguagem LAILAM [hebraico]
vidade, não está aberta. Assim que sepbrir, a out~a sa1da com o mesmo nome: ANOK BIATHIARBARBERBIRSI-
pára ou é acionada de maneir~ norm~l - adquire uma
medida normal - mas esses dois padroes, o do compor~a-
mento sexual natural e compreensivelmente, e o da cria- 53 Karl Preisendanz, Papyri Graecae Magicae , vol 2 (Stuttgart: Teubner,

1973), pp. llOss.


tividade, são intimamente interligados.
197
196
LATUBUPHRUMTROM". Em 36 letras, isso significa: eu
me coloco diante de ti, eu, o sol, e é através de ti que o intermediário entre o riso e a tristeza. Mas Hermes lutou
bote do sol sobe. com Moira e disse: "Eu sou o justo!" Enquanto estavam
?isc~tindo, Deus lhes disse: "De vocês dois aparecerá a
Do bote do sol sai o babuíno, que o cumprimenta na Justiça; tudo deverá ser-lhes s ubmetido". Então Moira
linguage m dos babuínos: "tu é~ o ~úmer.? do ano assumiu º. primeiro comando do mundo com um longo
ABRAXAS", e assim por diante. Mmha mtençao ~o lhes nome mágico que não consigo nem ler e que contém 49
apresentar este material, embora o i:nes~o _tenha impor- letras.
tância para nós, é para mostrar a disposiçao do texto, a
atmosfera na qual ele aparece. Agora poré~, vem o que Quando Deus riu pela sexta vez, estava profunda-
nos interessa. Um parágrafo diz: E o Deus nu sete vezes. mente contente e Cronos apareceu com seu cetro, o sinal
O termo grego aqui significa gargalhar; não se trata de do poder, e Deus disse a ele que ele teria a glória e a luz,
um mero sorriso. O Deus riu sete vezes: ha-ha-ha-ha-ha- o cetr~ do regente e que tudo, presente e futuro, se sub-
meteria a ele.
h a-ha. Deus riu e dessas sete risadas brotaram set e det:-
ses que envolveram todo o universo. Esses foram os pri- Então, ele riu pela sétima vez, tomando fôlego , e
meiros deuses. enquanto ele estava rindo chorou e, assim, a alma pas-
sou a existir. E Deus disse: "Tu moverás tudo, e tudo se
Quando o primeiro riu, a luz apareceu e seu esplen- tornará feliz por teu intermédio. Hermes te guiará".
dor brilhou por todo o universo. O Deus do cosmo e do Quando Deus disse isso, tudo foi posto em movimento e
fogo. Então, BESSEN BERITHEN BERIO, que são pala- ficou repleto de ar.
vras mágicas.
Quando ele viu a alma (qu em "ele" é não fica claro,
Ele riu pela segunda vez e tudo era água; a terra mas provavelmente é Deus), curvou-se para baixo na di-
ouviu o som e viu a luz e ficou estupefata e se mov~u e, reção da terra e assobiou poderosamente. Ouvindo isso, a
assim a umidade se dividiu em três e o Deus do abismo terra se abriu e deu à luz um ser que veio de suas entra-
apare~eu. O nome é ESCHAKLEO; tu és o OE, tu és o nhas. (Isso é interessante. Há sete criações de Deus mas
eterno BETHELLE! a oitava vem da terra.) Ela deu a luz a um ente saído' de si
Quando Deus quis rir pela t erceir~ vez, nas~eu a mesma, o dragão Pítia (qu e é o dragão que está enterrado
amargura em sua mente e em seu cora~ao e el_a fo~ cha- sob o oráculo de Delfos), que sabia tudo antes, por meio do
mada Hermes, por meio de quem o umverso mteiro ~e som da divindade. E Deus chamou-o de ILLILU ILLILU
torna manifesto. Mas o único, o outro Hermes, por meio ILLILU !THOR, o que brilha, PHOCHOPHOBOCH. Quan-
do qual o universo é ordenado, continua interior. Esse era do ele apareceu, a terra inchou e o poste ficou imóvel e
chamado SEMESILAMP. A primeira parte desse no~e quis explodir. E Deus viu o dragão e teve medo, e por cau-
tem a ver com Shemesh, o sol, mas o resto da palavra nao sa de seu medo surgiram Phobos (o terror), cheio de ar-
mas, e assim por diante.
é explicado.
Então Deus riu pela quinta vez e, enquanto estava Esse é o único mito de criação em que Deus ri. Mas,
rindo, ficou triste e Moira (o destino) apareceu,. seg':1-ra~- nos lugares mais importantes, a saber, quando Hermes, o
do as balanças na mão, mostrando que nela havia a Justi- guia da psique e a alma, a psique, vêm à luz, ele não só ri
ça. Vocês vêm assim que a justiça procede de um estado como também sente amargura em seu coração, ou chora.
É um estado duplo em que a divindade está dividida en-
198
199
tre rir e chorar. Os opostos sempre se atraem e tendem a escura. Estava. :7iva, e dela nasceu um povo negro, os
transformar-se um no outro pela enantiodromia. Também Kokowarra. AnJir ficou muito aliviado e foi para o sul
sabemos que, em nós, rir e chorar são estados muito simi- onde desapareceu e morreu. 54 '

lares e que é muito fácil passar de um para outro o~ sen-


tir ambos os impulsos ao mesmo tempo. Essa umao de A ponte que une os estados de ânimo aqui descritos
e as secreções e produtos físicos é o que chamamos de
opostos no estado emocional é a verdadeir_a origem da
emoção. Não devemos 110s esquecer do significado origi-
psique e de seu guia, Hermes. Poderíamos mterpretá-~a
nal do temo emoçã? - emovere, em latim-, a saber, aqui-
como a primeira pré-forma criativa de uma constata?ªº lo qu_e se m~ve samdo de alguma coisa, aquilo que leva
consciente, porque Hermes nessa época ~ra ente_n~~do ª:guem a agir. Em suma, a emoção parece ser o fator bá-
como o inspirador, aquele que dava e guiava_ as ~de1~s sico absolutamente essencial em todos os mitos de cria-
certas, a palavra certa no momento certo, a mspira?ªº ção, junto com seus sentimentos psicológicos e suas rea-
criativa. Ele também é o deus da inteligência, no sentido ções físicas concomitantes. A emoção é simbolizada em
mais amplo do termo. Portanto, poderíamos dizer que a geral p~l~ elemento fogo, um dos símbolos mais freqüen-
psique e a inteligência consciente v_ieram desses est_ados tes da libido, ou energia psíquica. Posso me r eferir aqui
mistos da divindade, em que esta n e chora concomitan- ~os Sí":bolos da Transformação no qual Jung am~lific;
temente. Se somarmos todos esses diferentes estados, ve- m~er_m_mavel~e~te a união de fogo com palavra, libido,
mos que praticamente todos os estado~ emocion~is im- c71ativ1dade, znsight e inteligência, num complexo asso-
portantes dos quais sofremos estão reumdos nos d_1versos c~ado de conteúdos que gira em torno do símbolo da ener-
mitos de criação. Em íntima ligação com as emoçoes e os gia emocional.55
estados de ânimo estão as reações físicas concomitantes
tais como cuspir, vomitar, verter lágrimas, ejacular. E~a- . Estar distante da própria base emocional sempre sig-
nar algum líquido de nosso corpo, que naturalmente _e a ?ifica, u~a completa esterilização. Quem não está ligado
as proprias emoções, sente-se, e está, estéril. Sem emo-
forma mais primitiva de produzir ou criar alguma coisa,
çã?, não há criatividade nem a realização essencial de
tem sido usado como símbolo ou analogia da criação. Nos
coISa alguma, psicologicamente. Assim, para indicar a
sonhos e nas fantasias modernas, assim como em mate-
e~oç~o'. a p~ique usa os símbolos do fogo e da luz, pois
rial esquizofrênico, o ato da defecação simboliza muito
n~o ha 1l~mmação ou novas percepções sem um pré-está-
freqüentemente a criação. Em Símbolos da Tra_nsfor:_m_a-
g10 emocional. Portanto, não nos surpreende que em al-
ção, Jung descreve a visão de um paciente esqmzofremco 1'
guns dos mitos de criação mais elaborados - poderíamos
em que Deus está defecando o mundo . mel~or chamá-los de teorias - o elemento fogo tenha sido
Os Kokowarra de Queensland narram o seguinte mito considerado como o verdadeiro fator criativo. Menciona-
de criação: havia um gigante negro, Anjir, que tinha ná- rei apenas um dos mais famosos, a saber, a cosmogonia
degas monumentais, mas não providas de uma abertura. d_o ~lósofo grego Heráclito, para quem o mundo todo con-
Enquanto Anjir dormia e sonhava, um ho~e!11 chamado SIStia em fogo. Tudo proveio do fogo e será transformado
Jalpan saiu do mato (esse é um caçador ~-esp1nto d_a mata,
divina e primordial). Ele achou que AnJir estava mcomo- 54
dado. Com um pedaço de qu artzo, furou uma abertura Mencionado pelo Prof. V. Maag em palestras sobre Religião Primiti-
va. Devo esta informação ao Dr. K. Wipf.
nas nádegas do gigante. Imediatamente, saiu uma massa 55 )'
C. G. Jung, Collected Works , vol. 5, pars. 237-40. 1

r
200
201 1

1
1 1
em fogo no fim do mundo, ou melhor, haverá muitos mun-
dos os quais em seqüências, ou ritmos, sempre surgirão
do fogo e, no final, serão incinerados totalmente numa ~;~;;:~ tr;:i;;!e;::~c~n":::~i C:::e'::t: ªsusai m e~-
pria 1.v1.ae seu p 6 · p . , pro-
imensa conflagração. Um dos fragmentos de que dispo- prio Marid r przo . ai, ~eu próprio Irmão, seu pró-
mos diz literalmente que tudo é um intercâmbio com fogo Mã . od, sua P_rópria Filha, seu próprio Filho Pai-
e que o fogo é a troca por tudo, da mesma forma como o e, a raiz o universo Do /o . ,
ção inteira, a origem d ; tudo ~o vdem ~ ordigem_ da__ cria-
ouro pode comprar qualquer tipo de mercadoria e que, o ese10 e criaçao. 56
por mercadorias, o ouro sempre pode ser obtido de novo.
Consta aqui um element . , d. .
Vocês já podem ver n essa associação que o ouro, o fogo e o tos Hindus que li- o d . o que Ja 1scut1mos nos t ex-
dinheiro apontam todos para a libido, o mais intercam- ções, um dos esta.dos : :~o ~om~ uma das ?Tandes motiva-
biável dos fatores básicos - a libido psíquica. Há duas
forças opostas que levam à origem de todas as coisas: guer-
r as e lutas. Elas levam a conflagrações e então de novo à
Magus há a mes ma coisi
de torna r-se a lgo e esse d . .
~:~r
que induzem-na a criar c10na1s que motiv~ a divinda de,
Nos_escrito~ de Simão
ge1? e o deseJo de criar,
paz; uma é a via ascendente e a outra, a via descendente. eseJo provem do fi " V ,
a con exão associativa entre fo d . ogo . emos a1
Quando o fogo se condensa, torna-se úmido e, se permane- é de forma óbvia um f.at . gol ~ . eseJo, que novamente
ce ainda condensado, torna-se água. Quando a água se con- o ps1co og1co sub· t ·
mos na linguagem cotidiana. F , ~ ~ ivo que usa-
den sa, torna-se terra. Essa é a via descendente. Se a terra ra, pa ra o a mor, ara a excita ~go e anal~gia para a cóle-
se dissolve de novo, no entanto, então se torna água e, se a desejo amoroso p po . çao, e especialmente para o
água evapora, torna-se ar e essa é a via ascendente. · E r isso que O <lese· d ,
so como "incendia r " O fi , JO e ger a r e expres-
Vemos aqui o aspecto não-físico e não-químico do fogo, de duas maneiras: n~ ho~;~ ec uma unidade que aparece
a saber, sua qualidade como a substância inteligente do o fogo, e também como ~ ' orno sangue vermelho como
. semen· e n a m lh
mundo, aquela que contém e promove a ordenação inteli- na leite. Então ele també ' Í- u er, o que se tor-
gente de todas as coisas. Heráclito identificou-o com seu ao mesmo tempo um ele : exp ica_ que esse fogo con tém
conceito de logos, e o logos é, nesse sentido, o pen samento Heráclito, inclui ainda um eenl to ract1ondal e est e, como em
. emen o e logos.
consciente e ordenador que pode ser expresso em pala- Aqm Simão Magus é diret a · .
vras - na realidade, logos significa "palavra". Nessa as- Heráclito. P osso t a mbe' d mente mfluenciado por
• m recor a r -lhes que d
sociação paralela, vemos que, para Heráclito, o fogo tam- nas cosmogônicas mais difund. d _uma ~s t eo-
bém é a inteligência mundial, a ordem racional em tudo. George Gamow. Ele não ex licav1 as e_ aceitas fo_1 a de
Nossa possibilidade de estabelecer conexões racionais é porque era modesto o s ufici:nt a a origem do umverso,
devida à qualidade logos da substância do mundo: o fogo. não podia fazer, mas dizia e p~r~ ?em t en~ar a lgo que
ro h avia uma nebulosa que no I?1c10 do umvers o intei-
Essa idéia influiu diretamente no trabalho do filóso- originou. Vemos assim ~:s;sa e ign_ea de onde t udo se
fo gnóstico Simão Magus, cuja cosmogonia diz o seguinte: sica ~uma hipótese de ~ma dr;:esma_ imagem ainda é bá -
no início havia a divindade; podemos chamá-la de uma nhec1das teorias cosmogo~ . sEma1s amplamente reco-
totalidade pré-consciente a cujo respeito é dito: m cas ssa n - , , ·
mencionei antes uma outra t . . d a o e a umca. Como
' eon a a voga o átomo primi-
Eu e Tu somos um, Tu antes de mim, Eu o Um que
vem depois de ti. Esse poder é uno, separa-se em para 6s L ·
e1segang, Die Gnosis, pp . 68ss e 79ss.
202
203
ver, é "não começo" sem reflexão, pois não há ênfase em
tivo do qual tudo o mais nasceu, u~ par de :1-ê~tr::~r:~ a lgum ponto inicial, ou nenhuma reflexão sobre um prin-
A . a nebulosa gasosa e ignea nao
cípio. Onde acontece alguma reflexão consciente também
:.:~!~ia ~~~;nal sobre a qual a física mode.:n~ cmogi:a~:i~~ há a formulação de um princípio. Isso concorda com os fa-
m portanto que nao l'0 0
uma delas. V oces vee '-
A A

'. · ·nda recorremos tos psicológicos mais óbvios, pois o inconsciente não tem
longe . Para essas questoes essenciais, ai d f a começo nem fim, exceto na consciência. Assim que pergun-
. ens ar uetípicas, embora as moldemos e orm
to quando começou, dá-se um ato de consciência e então eu
~i}:r:!te e asqcoliguemos de outra maneira aos fatos. de alguma maneira o estipulo, o que cria um começo. Ou,
Algumas outras teorias acreditam n~m tipo consta_n- olhando tudo em retrospecto, podemos dizer que há um
rocesso em que mais e mais maténa começa a ex1s- inconsciente; mas nenhum homem primitivo diria isso!
t~ de p ual há um processo criativo que se man- Primeiro, você tem de se tornar consciente e então ques-
~i,r, s::t::~a~~nto agora e que os teólo?os'. por exemplo, tionar a existência da consciência, antes de poder falar de
em . tio continua. Essa idéia aparece na um inconsciente. Até que tenham sido dados esses três

;Ef;'.f~~;::,:~ ~~fn~~t;~u~aª?~\:~~~:;f~~::!~~
f azem_ parte da. creatw
·Junguiano de s1ncronici
con in ,
. "d de pois esta poderia de certa
a , •
passos, não há inconsciente. Portanto, dizer agora que não
havia princípio seria o terceiro passo: primeiro, esquecemo-
nos de pensar a respeito; depois refletimos sobre isso e es-
tipulamos um princípio e, finalmente, desmontamos nova-
· .
r associada ei a teológica da creatw
com a 1•d,· mente os nossos pensamentos e dizemos que não poderia
mannt:~:: s~os mitos primitivos não enxe~g~ ~uitas ana- ter havido um princípio. Essa seria uma forma de pensa-
co • . . d d . s pnmitivas, as pes- mento diferenciado.
logias exceto que, nas socie a et m:i eu até diria acostu-
Muito intimamente conectada à teoria ígnea de Herá-
smº!~:t:~:e~s;~:;ae;:es ~r;;d:~ilagre é, em_certot se nu- clito e a de Simão Magus, que ainda é a imagem arquetípi-
, d. ue O Deus mais a 1 o, 0
:1;;
ti:,º•
0
c::t~~u:zno~:ei:ierfere e produz al~o q~e
a _e m . t· antes e que não tem causa natural, nao veio
ca por trás da hipótese de Gamow para a origem do mun-
do, também temos a teoria de Anaxágoras, o filósofo grego
nao exis ia ·, · t· s é uma para quem o mundo todo existia como uma mistura com-
desta ou daquela causa natural que Ja exis ia, ma pleta da matéria, em que todos os elementos materiais es-
coisa nova que surge no mundo. tavam interligados num só, e a cuja massa o espírito im-
Não conheço nenhum mito primitivo que consciente- pôs movimento e ordem. O espírito é uma espécie de movi-
mente não conceba um começo. Poderíamos a~rmar que sme mento rodopiante, ou o criador do movimento rodopiante,
, as pessoas nao pensara por meio do qual as partículas materiais originais se colo-
não existe um com~ço e pord':1e por exemplo: um dia o cam em ordem por si mesmas, criando os diferentes elemen-
nisso. Há certos mitos que izem . a ve- tos visíveis que hoje temos, embora em seu estado original
antílope chorou, ?utras crialthuorsª!~~:~:::•o\:~~l~i;e e os fossem o que era chamado homomoeriae, isto é, pequenas
lh t ra mãe veio e seus o . partículas dotadas todas do mesmo caráter, que só em vir-
a er . . s lamberam-lhe os olhos e ela cnou a terra.
outr?s ~mtmai m começo· o antílope e a velha terra cega tude da vontade de ordenação do espírito puderam tornar-
Aqm nao emos u · d ·r se as variadas substâncias visíveis. Essa é uma imagem cos-
. , stavam lá. Há muitos outros em que se po e presumi
Jªu: al uma coisa já se encontra presente e que, o começo mogônica que, de certa maneira, é compatível - em sua
q - '-' _g hum acontecimento especial. Isso porem, a meu base arquetípica - com a de Heráclito e Simão Magus.
nao 101 nen
205
204
A imagem do fogo, do mundo ígneo e do fogo que ao mente em suas manifest - · •
mesmo tempo tem as qualidades da ordenação e do pen- ceito hindu de ta ~_çoes e1:1oci?nais, temos o con-
duzido d , . p~s, que3a menc1one1 antes. Tapas é tra-
samento, pode ser igualmente vista nos mitos que não e varias 1ormas· mas no t t .
tratam diretamente da cosmogonia. Por exemplo, Hefesto, mais vezes o sentido de ~isma~ ~axe~/~1 em mglês, tem
deus da criação artística para os gregos, era um ferreiro e dução dos Upanishads [para oi~ r u e~, em s ua tra-
o mestre do fogo; em muitas sociedades primitivas eram de rodapé· "Trad · t g es. NT] diz, numa n ota
. u zi apas como 'c·s ' [b .
os ferreiros, os homens que mexiam com ferro e fogo, os que essa é a única palavra em . : mar ro~dmg] por-
grandes curandeiros. O livro de Mircea Eliade sobre significados, de calor e pen mgles que c?mbma os dois
xamanismo contém toda a documentação e literatura a admitem inclusive duas ra:z:~~;t~.uAutondad~s nativ~s
esse respeito. Em muitas tribos africanas e siberianas, mar; a outra meditar" A . l p. ma quer dizer quei-
há traços dessa tradição em que originalmente seus maio- plos para mo~trar as du.as qu~ e e enumera vários exem-
res magos, curandeiros e dirigentes espirituais eram os bível que exista só raizes, m as para mim é conce-
ferreiros que, por lidarem com o fogo, detinham o título "desde o início mes;:,,ª palavra tap,_ s~g_:1ificando tanto
de Mestres do Fogo. Vocês vêm, portanto, que é o fogo e em dois aspectos da pala'v~~~ ,ª s~~d1~1sao subseqüente
não o ferro o elemento principal; esse título demonstra plo no Mundaka Upanishad eª mui o~ ~gar~s, por exem-
que o fogo é o elemento fascinante. Ainda hoje há tribos incha quando cisma [por m '. ; que e dito:_ O Brahman
Bantu em que acontece uma luta constante de poder en- o motivo do inchaço que v ~10 e tatpas - ei_s novamente
- , imos an es no mito M ·1
tre o ferreiro da aldeia e o curandeiro. Esses dois ainda en t ao e produzida a mat , . . d aon ' e
disputam entre si a posse do poder e persiste a dúvida te, a verdade os mundo: na, essa nasce o hálito, a men -
sobre se a pessoa que teve sua vaca roubada deve ir se mens o imort~l'' e a . e d~s trabalhos feitos pelos ho-
aconselhar com o ferreiro ou com o curandeiro. O ferreiro ka Upanishad é, rel:::; ~oDr dian te. NoAit~reya-aranyaa-
o. eus esteve aqui e pen . "H,
detém igualmente o papel de curandeiro mais velho e, esses mundos; será que de d .- sou. a
portanto, continua sendo solicitado e , em parte, procura- dos?" E ele entã~ formou o:j; ma: ar guar_diaes dos mun-
do pelas pessoas que querem uma ajuda mágica. Algu- Deus cismou sobre ele (ou se~arus at,_extramdo-o da água.
J , pra 1cou tapas com l )
mas tribos subdividem as tarefas e então o roubo é cui- quan d o essa p essoa tinha sido s f" . t . e e e,
dado pelos ferreiros, enquanto que as doenças são atri- abriu-se-lhe uma boca como u u icien emente cismada,
buição do curandeiro etc., mas entre os Bantu continuam Da boca saiu a fala e d m ~vo que vem para fora .
ocorrendo lutas reais, pois a transição do ferreiro para o khanda).57 ' ª fala, agni, 0 fogo (4º adhyaya, 1º
curandeiro ainda não foi plenamente concretizada. O que
parece é que o ferreiro, como mestre do fogo, foi o primei-
ro líder espiritual da tribo. Eliade oferece uma documen-
tação muito vasta sobre a conexão entre o curandeiro, o
xamanismo e a atividade do ferreiro. Isso demonstra que
a idéia da criatividade, da produção e do fogo, e a ligação
do fogo com a inteligência superior, desempenharam um
papel enorme nesses campos da atividade humana.
Próximo à idéia do fogo, que naturalmente nós in-
57
terpretamos como libido, ou energia psíquica, especial- The Upanishads, p. 238.

206
207
chamado o hiranyagharba, que em geral é traduzido como
Capítulo 8
um germe de ouro, o germe dourado. Essa noção reapare-
ce muitas vezes nos textos de Jung, sempre mencionado
GERMES E OVOS como um símbolo do Si-mesmo. O ovo às vezes é identi-
fica do com o universo todo e, em outras oportunidades,
mais especialmente com o sol nascente. Por exemplo, no
Chandogya Upanishad 3.19, é dito:

No início isso era inexistente. Começou a existir, cres-


ceu. Tornou-se um ovo. O ovo ficou em repouso p elo
tempo de um ano. O ovo rompeu a casca. As duas
metades eram uma de prata, uma de ouro. A de pra-
ta se tornou a terra; a de ouro, o céu. A membrana
grossa [do branco], as montanhas; a membrana fina
[da gema], a névoa com as nuvens, as pequenas veias,
Coligado a tapas' chegamos a um no~~ tema, q:Ue é o os rios; o fluido, o mar.
motivo do germe ou ovo, sobre o qual a divmd~de cismou
roduziu o mundo em sua forma presente. esse res- Assim nasceu o sol.
e ~ . ti o muito bom escrito por Franz Lukas,
peito existe um ar g . h V t 11 ng" (O ovo como idéia Também na cosmogonia de Manu Samhita 15 é dito:
"Das Ei als kosmogomsc e ors e _u . d , fl
m ogônica).ss Já é um pouco antigo, mas am a ui .
cos . ·fi d O deus primordial se transformou num ovo dourado,
Em conexão com o cismar' tapas' que ~igm ica ar que brilhava como o sol e no qual ele mesmo, Brah-
1 . de uma concentração m editativa do pe~sa-
ca or por ~eio m do ovo ou germe surge como o obJeto man, o pai d e todos os deuses, nasceu. Ele repousou
mento, a imageessoa cisma. Isso aparece nos textos india- um ano nesse ovo e depois o repartiu em duas meta-
des com uma só palavra. Das duas cascas ele formou
~:~r~:~u :~~i~os. No Rigveda (10.82), por exempl~t_um o céu e a terra, no meio ele colocou o ar, e as direções
·z· "Que germe primordial as águas cu iva-
d os versos di · . · t [ em o do mundo, e a eterna morada da água.
ram no qual todos os deuses se viram JUn os :e~ar t'-
, contém todos os deuses juntos; eles am a es ao Assim, às vezes a divindade está mais fora, "chocan-
ge~me ·dade compacta) que está além da terra,
unidos numa uni ' b. d 1 deu - do" um ovo, e às vezes ela mesma entra no ovo e fica nele.
, d ,
a 1em o ceu, ale'm do misterioso lugar ha ita O pe os Sempre junto com essa imagem vem a idéia de partir em
ses poderosos?" metades. O ovo então é t a mbém identificado com o germe
.d,. do germe que é às vezes definitivamente dourado do Rigveda. Os textos que acabei de citar são
E ssa 1 eia ' • · d R· d
chamado de ovo, surge nobpoema c~~~ºJi~~~~ad~ cif::a ~
posteriores, mas foram recombinados com o motivo do
10.21, e nele o germe so re o qu hiranyagharba, o germe dourado, sobre o qual a divinda-
de original cismou.
A antiga cosmogonia fenícia continha o mesmo moti-
ss Franz Lukas, "Das Ei als kosmogonische Vorstellung"' em Zeitschrift vo. Os fenícios acreditavam que a substância básica do
des Vereins für Volskunde, 1894.
209
208
mundo era o éter, que pensavam ser a esfera mais leve e d11sejo de uma atividade criativa e, por isso, personificou-
reluzente do ar, o ar acima da poeira e das nuvens. O ar 1-w na figura do deus Toth, o Hermes egípcio, que começou
mais leve, por assim dizer, era o éter e a substância bási- 11 colocar tudo em ordem. Por meio de seus pensamentos
ca do mundo e, nele estava o vento como o princípio mó- passaram a existir quatro casais divinos, que formava~
vel preenchido pelo desejo de criar - eis aqui, novamen- o _pri1:11eiro grupo cosmogônico de oito: Nun e Nunet, que
te, o motivo do desejo. Ele produziu dois seres, Chusoros •"ªº vistos, então, após o evento, como a matéria criativa e
e o ovo. Chusoros quer dizer o artifex, o que abre. E ele, rnpaz de gerar; He e Hehet, que são a eternidade criativa
esse Chusoros, partiu o ovo e de suas duas metades fez o <' o princípio eros do pneuma; Tek e Teket, que personifi-
céu e a terra. Aqui, o ovo não é a primeira das origens, c_am a escuridão do espaço; e Nenu e Nenuet, que simbo-
mas novamente é a substância básica da qual um deus lizam o não-movimento, a imobilidade. Esses são os pais
criativo forma o cosmo. e mães de todas as coisas. O primeiro ato da criação co-
Observamos que, ao passar do oriente para o ociden- meçou então com um ovo enorme que estava nas mãos de
te , essa história se torna imediatamente mais ativa. Nes- Lle e Hehet, os quais representavam os aspectos eterno e
sa versão, é o deus que rompe o ovo, não há um deus den- criador do princípio do tempo. Até certo ponto, correspon-
tro do ovo. É uma atividade mais extrovertida do Deus dem ao deus helênico Aion, que também continha o as-
faber , que rompe o ovo e forma o céu e a terra a partir pecto criativo do princípio do tempo. Desse ovo surgiu o
dele. Num antigo texto persa, em geral datado a partir da Deus Sol Ra, que então se tornou a causa imediata de
época das dinastias sassanidas, por volta de 200 a 600 toda a vida da terra. Aqui, o ovo não é a primeira de todas
d.C., também é dito que o céu, a terra e a água, e tudo sob as essências do universo, mas é um passo essencial no
os céus, foram formados quando o ovo da ave começou a ato da criação: depois que os oito princípios divinos bro-
existir. Os céus ficam acima da terra, e a terra que lem- taram do princípio da água espiritualizada original, cria-
bra a gema do ovo foi formada por um ato criativo de Ahura ram o ovo e, do ovo, surgiu o sol. Novamente aqui, vemos
Mazda, e se encontra dentro dos céus. Essas tradições in- a associação do ovo com o sol.
diana, persa e fenícia provavelmente têm ligações histó- O mesmo motivo é encontrado também em alguns
ricas entre si. textos órficos. A origem das tradições e dos mistérios
Na Índia, o ovo é ligado ao sol que, em certos textos órficos não nos é clara historicamente. Precede o surgi-
posteriores, é chamado de o Filho do Ovo. O motivo do me?'to da filosofia grega e temos de datá-la, portanto, entre
ovo também é encontrado em alguns sistemas cosmogôni- o oitavo e o sexto séculos a.C. A comédia de Aristófanes
cos egípcios. De acordo com uma cosmogonia egípcia, a Os pássaros, zomba de uma dessas cosmogonias órficas:
primeira massa primordial de água era chamada Nun, e mas, com ela, podemos nos inteirar em parte dessa anti-
continha todos os germes macho e fêmea de todos os mun- ga tradição teológica. Primeiro havia Caos e a noite o
dos futuros. No princípio, o espírito original habitava abismo escuro e o segundo Tártaro, mas a terra, o ar e o céu
nessas águas e as penetrava o tempo todo; não podia ser ainda não existiam. Nos imensos precipícios de Erebos -
separado delas, era idêntico a elas. A água continha o qu er dizer, no abismo mais profundo - , a noite com suas
espírito criador do mundo. asas escuras deu à luz o ovo do vento. Deste nasceu de-
pois de algum tempo, o deus Eros que é aquele que 'des-
Na maioria dos sistemas egípcios, o espírito criador perta o desejo e tem asas douradas às costas. Ele era como
do mundo é identificado com Atum. Esse espírito sentiu o um rodamoinho.

210 211
Essa imagem é muito complexa; contém os motivos g-lande, que já contém a árvore inteira, ou a semente, ou
do desejo e do rodamoinho do vento que se move em círcu- mais freqüentemente, o ovo que só requer a adição de ca-
lo. Ele se uniu com o grande Tártaro e com o Caos notur- lor, pois em si já contém tudo. O mistério da semente da
no e produziu a primeira geraç~o de_de_uses. Ante~ de Er?s úrvore, ou da semente da flor, ou o ovo que contém tanto
uni-los, não havia deuses e nao existiam seres imortais, 11;i~tério inexplicado, é naturalmente uma imagem arque-
mas assim que foram unidos o céu e o oceano e a terra ~ a L1pica apropriada para expressar a totalidade pré-forma-
geração imortal dos deuses abençoados começaram ~ exis- da que contém tudo, mas cujos detalhes ainda não se
tir. Também sabemos, a partir de um relato posterior de man~festaram. Também temos o ovo como uma imagem
um Padre da Igreja, que, segundo as tradições órfica_s,_um do Si-mesmo, mas em sua forma ainda não manifesta. Por
dos primeiros deuses foi Caos, que gerou~ d~~s origmal nssim dizer, é só um germe, i. e., algo que existe em poten-
Cronos, aquele que nunca envelhece (o principio do tem- cial,_como uma possibilidade de realização, mas não como
po). Cronos produziu um ovo do qual brotou um deus her- n coisa propriamente dita.
mafrodita de asas douradas, que tinha dos lados uma ca- Assim que a imagem do ovo surge está associada com
beça de touro e acima da própria cabeça ~ma enorme ser- 11 idéia de concentração: tapas, cismar, o nascimento da
pente que lembrava a forma de todas as imagens. A teolo- inteligência. Portanto, vemos que quando esse motivo apa-
gia louvou o deus primogênito e chamou-o Zeus e o ord~- rece, ele não reflete um estado psicológico muito primiti-
nador de todas as coisas. Ele também era chamado Pa. vo, pois já é o resultado de uma certa dose de concentra-
Pã é, aqui, provavelmente uma interpreta_ção indevid~ ou ç_11o da atenção. Vi a mesma coisa, praticamente, na aná-
uma interpretação ou identificação ulterior. Na realida- 11:-;e, quando o motivo do ovo muitas vezes aflora num es-
de, esse deus monstruoso hermafrodita que nasce do ovo 1.nd_o em que se poderia dizer que o ser humano, pela pri-
segundo a cosmogonia órfica é, em geral, chamado Phanes, 111cira vez, teve a chance de refletir sobre si mesmo. As
o que brilha. Mais uma vez, a ligação _com o sol. O que pessoas são às vezes praticamente incapazes de refletir
vem do ovo é um ser brilhante, quer seJa o Sol ou o deus dl' verdade, o mínimo que seja, sobre si mesmas. No mais
órfico Phanes. Em edições posteriores, ele foi misturado l1 Lcral sentido dessa palavra, reflexão significa mandar
a Pã como o deus que significa todo o universo, que é o d< volta, e esse mandar de volta para si mesmo não é uma
1

que ~le representava no final da antigüidade, q:1ando não rnisa que se possa decidir que vai acontecer; ou, pelo me-
era mais só o demônio de pernas de bode habitante das nos, quando as pessoas decidem fazê-lo, apesar disso, não
matas. N<' acham capazes para tal. Na linguagem religiosa, di-
A imagem do germe dourado, ou ovo, talvez não seja 1·íamo_s que é um ato de graça alguém tornar-se capaz de
tão difícil de entender psicologicamente como algumas daH n.f1etir. De vez em quando observamos uma pessoa dis-
outras imagens, porque facilmente re~onhece~os nela o 1·11Lindo, ou desesperada por causa de um problema finan-
motivo da totalidade pré-consciente. E a totalidade psí- 1•1•iro ou amoroso. A pessoa fala, fala, fala, de psicologia,
quica concebida como aquilo que ve~o antes que_~ou~esso 111:-;cute sonhos e assim por diante, mas a impressão que
111·:1 é_ a de que a "mente louca" está de posse do problema
a consciência do Eu, ou qualquer tipo de consciencia ca-
11 o chscute desta ou daquela forma, e que no meio disso
paz de dividir. É uma idéia arquetípica que, na filosofia,
está na base do conceito aristotélico da enteléquia, o ger• 111do a pessoa acabará dizendo: "Oh, sim, deve ser uma
me que contém a coisa toda. Em Aristóteles e seguidoreR, pl'Ojcção da minha parte, estou certa de que a minha som-
vemos que usavam - à guisa de ilustração - a bolota ou 111·11 está trapaceando com isso!" Entretanto, isso não é

213
212
reflexão! Quando ocorre uma verdadeira reflexão, você sem- ~orta~to, o motivo do ovo muitas vezes está associa-
pre é capaz de detectá-la no minuto em que olha nos olhos do m1tolog1camente com os motivos da luz e da aurora ou
daquela pessoa, pois ela ficará quieta. Nesse minuto, a c·o~ o apa~ecimento de Phanes, o deus que brilha, por~ue
pessoa fica subitamente silenciosa e objetiva a seu próprio ,·sta ,combmado com a idéia da iluminação repentina. É
respeito, e realmente se acha disposta a examinar a questão. poss1vel o progresso da consciência e, por meio desse, o
Chamo esse momento de numinoso, e ninguém pode forçá- inundo todo ~ novo. Sabemos que, toda vez que um ser
lo a ocorrer. É uma coisa maravilhosa quando acontece para li u mano realiza um progresso real de consciência ele dá
alguém, esse repentino aquietamento, pois é o momento c·sse salto evolutivo para frente atingindo um nív~l mais
em que a pessoa se torna verdadeira e realmente "manda 11 ! ~o de consciênc~a e, com isso, o mundo todo para ele fica
de volta pela reflexão" o conteúdo das idéias, buscando em ddc~ente; os relac10namentos mudam, assim como sua pers-
si o fundo da sua verdade psicológica para localizar as difi- pcicti~a do mun?o externo e de seus próprios problemas
culdades. O momento da reflexão, da possibilidade de setor- 1ambem se modifica. O motivo do germe ou ovo dourados
nar consciente - porque só assim é que se torna possível 1
11ostra a constelação dessa possibilidade devido à enorme
progredir na consciência - é o momento do nascimento do rnncentração da energia nesse único ponto central.
sol a partir do ovo. Quando o ovo aparece num sonho, então
você sabe que esse momento está se aproximando, que ago-
ra o rico nascimento da consciência como ato de auto-refle-
xão é, pelo menos, possível; está constelado. A libido está
concentrada num ponto e agora pode vir à tona.
Não é por acaso que, no I Ching, um dos hexagramas
identifica a imagem do ovo com o signo para "Verdade
interior". No hexagrama 61, está dito que a imagem da
verdade interior é o ovo com uma pata de ave sobre ele, o
que significa que a ave está assentada sobre o ovo para
chocá-lo. Essa é a imagem visual para expressar o que os
chineses chamam de Verdade Interior. Ao se dar conta de
sua verdade interior, diz o hexagrama, a pessoa pode atra•
vessar todas as situações difíceis, pode influenciar até os
peixes e os porcos, o que significa que pode inclusive do-
minar os impulsos animais e inconscientes descontrolados,
encontrar o caminho de volta até esse germe básico da
personalidade; esse germe da verdade, quando se curva
de volta sobre si mesma e se observa. 59

59
The I Ching, trad. de Richard Wilhelm para o alemão como ba_se p~ra
a versão em inglês de Cary F. Baynes (Princeton: Princeton Umvers1ty
Press, Bollingen Series XIX, 1970), hexagrama 61. [Em português, I Ching,
O livro das mutações]

214 215
muitas versões desse mito, mas a que vem a seguir tem
Capítulo 9
um colorido especial. O autor reporta ter ouvido um ve-
lho contando esse mito de criação sobre a ilha:
A DIVISÃO DUPLA E QUÁDRUPLA
DO UNIVERSO A noite principiava a cair quando ele contou a se-
guinte história. Sua audiência toda estava dispersa,
exceto eu ... Taakeuta começou: "Senhor, lembro as
vozes dos meus pais. Ouço as palavras de Karongoa .. .
Naareau, o Mais Velho, foi o Primeiro de Todos. Não
era homem, nem besta, nem peixe, nada existia dian-
te dele. Ele não dormia, pois não havia sono; não co-
mia, pois não havia fome. Ele estava no vazio. Só
havia Naareau sentado no Vazio. Por muito tempo
ficou sentado e só ele existia ali.
t r o tema da divisão do ovo depois Então Naareau disse, em seu coração: "Farei uma
É c_omun: encon ra eral ele é dividido em d~as par-
de ter sido cnado, e e~ g outra a terra. Na India, a mulher". Vejam! Uma mulher brotou do Vazio: Nei
torna os ceus e a , . . Teakea. Ele disse d e novo: "Farei um homem". Ve-
tes. U~a.se d ta- a prata é um metal femmmo - e
terra e ieita e pra jam! Um homem brotou desse pensamento: Na Atibu,
05
céus, de ouro. a Rocha. E Na Atibu deitou-se com Nei Teakea. Ve-
. e , . Ch soros divide o ovo em jam! S eu filho, o belo Naareau, o Mais Jovem.
Para a cosmogoma iemcia, u - do
. , muito próximo desta separaçao E Naareau, o Mais Velho, disse para Naareau, o Mais
~
:~~-é ~~t~:~;ta~:o dos yai~ prim~;dt!~· : : ;;;;~! Jovem: "O conhecimento todo em ti é inteiro. Farei
rnitos cosmogônicos, o_s I?nmei;i~J;o ~um enlace contí- uma coisa para nela trabalhares". Então ele fez essa
Mãe, por exemplo, exis!:1~\Jer um ser hermafrodita por coisa no Vazio. Era chamada a Escuridão e a Fenda
::::u
nuo. Fori:iav~m, _P~r ta Nesse estado, nada podia
sua coabitaç8:o ~mn u/Céu Pai está tão em cima da
Juntas; o céu, a terra e o mar estavam lá dentro; mas
o céu e a terra se fenderam e a escuridão estava entre
corneçar a existi: Pº:q a o ara mais nada poder cres- os dois, pois ainda não havia separação.
Terra Mãe que naf ha es~ã~ Jão traz nada à luz porque E quando essa obra estava terminada, Naareau, o
cer entre ambos. erra . o O pri·meiro ato de criação, Mais Velho, disse: "Basta! Está pronto. Eu vou, para
_ · t spaço para iss .
nao exis e, e ão desse casal divino, o afastamento nunca mais voltar". E assim se foi, para jamais vol-
port~ntot, e atseepoa:~~is para que seja criado o espaço para tar, e homem algum sabe onde ele mora agora.
suficien e en_ r _
resto da cnaçao. Mas Naareau, o Mais Jovem, caminhou pelo outro
0
p dar uma idéia desse ato da sel?aração, quer_o lado do céu que se deita sobre a terra. O céu era ro-
. aramito de criação que vem de uma ilha ~os arqm- cha e, em alguns lugares, fincava-se no chão, mas,
c1tar um H'b ·das É narrado por Sir Arthur em outros, havia buracos entre eles. Um pensamento
'l
pe agos das Novas
1· e n
. t·tulado· A Pattern of Islan d s. Há entrou no coração de Naareau; então ele disse: ''Vou
Grirnble, no ivro m i
217
216
me enfiar aí por baixo". Procurou uma fenda por onde vazio: "Senhores, o que estão fazendo?" Ele disse em
pudesse se esgueirar; mas não havia nenhuma. Ele s~u coração: "Eles ainda não estão com a cabeça fun -
disse de novo: "Como é que vou entrar, então? Vou cionando direito, mas esperemos".
com um feitiço". Esse foi o Primeiro Feitiço. Ele se
ajoelhou no céu e começou a tamborilar nele com os Ele f~i até um lugar em meio a eles, e gritou: "An-
dedos, dizendo: de{?;. e eles andaram. El__e disse novamente: "Mexam-
se. E_les puseram as maos do lado debaixo do céu.
Bate... bate, no céu e suas moradas. É pedra. O que sai Ele disse :1-ovamente: "Mexam-se!" Eles se sentaram;
o céu subiu um pouco. Ele disse mais uma vez: "Me-
disto? Ecoai É pedra. O que sai disto? Ecoa! Abra, Se-
xam-se! Em pé!" Eles ficaram em pé. Ele ordenou en-
nhora Pedral Abra, Senhora Pedral Está aberta-a-a!
;1:f
tão.: ais alto!" M~s eles disseram: "Como subir
m_ais;, Ele fez u"'!' raio de madeira, dizendo: "Subam
E, na terceira batida, o céu se abriu sob seus dedos. nis~o . E e~;s o fizeram. Ele disse então: "Mais alto!
Ele disse: "Está pronto", e mirou o fundo daquele bu- Ma~s al__to! Mas eles responderam: "Não podemos
raco. Era preto total e seus ouvidos escutaram o baru- m~is, na_o podemos mais, pois o céu tem raízes na ter-
lho de respiração e ronco nas trevas. Com isso, ele se r~ . Assim,_ Naareau alteou a voz e gritou: "Aqui es-
colocou em pé e esfregou as pontas dos dedos. Vejam! tao a Enguia e a Tartaruga, o Poluo e o Grande Raio?"
A Primeira Criatura saiu deles - o belo Morcego que Os Tolos e Surdos-Mudos responderam: "Ai de nós!
ele chamou Tiku-tiku-toumouma. E ele falou para o Eles ~e esconderam do trabalho". [Até naqueles tem-
Morcego: "Tu não podes enxergar nas trevas. Vá na pos ~inha gente assim!} E por isso ele disse: "Descan-
minha frente e encontre o que encontrares". sem , e eles descansaram. E ele falou para aquele
O Morcego disse: "Vejo pessoas deitadas nesse lugar". d~7:t,:e todos que se chamava Naabawe: "Vá e chame
Ruki, o congro".
Naareau respondeu: "Como são?", e o Morcego disse:
"Não se mexem. Não falam nada. Estão todas dor- Quando J:laabawe foi até Riiki, ele estava enrodilha-
mindo". Naareau respondeu novamente: "É a Com- do, dormindo com a esposa, a enguia da cauda curta.
panhia dos Tolos e dos Surdos-Mudos. São uma Raça Naabawe chamou por ele: ele não respondeu, mas er-
de Escravos. Diga-me seus nomes". Então o Morcego gueu a cabeça e o mordeu. Naabawe voltou para Naa-
se postou na testa de cada um e disse para Naareau o reau, chorando: "Pobre de mim!, o congro me mordeu".
seu nome: "Este homem é Uka, o Que Sopra. Ali está L?go Na0;,reau fez um porrete com um laço de correr,
Naabawe, o Que Varre. Vejai Karitoro, o Que Enro- ~izendo: Vamos apanhá-lo com isto, se tivermos uma
la. Agora Kotekateka, o Que Senta. Kotei, o De Pé, isca p~ra atraí-lo". Então ele chamou o Poluo, para
agora - uma grande Multidão". que saisse de seu esconderijo; e o Polvo tinha dez bra-
ços. Ele arrancou dois braços e os pendurou no porrete
E, quando todos tinham sido nomeados, Naareau dis- para f!Ue serufs~em de isca. Portanto, o polvo até O dia
se: "Basta. Vou entrar". Então ele rastejou pela fenda de ho1e tem so oito braços. Foram até Riiki com a isca
e andou por debaixo do céu; e o Morcego foi seu guia e quando a ofereciam Naareau cantava: '
na escuridão. Ele se colocou entre os Tolos e os Sur-
dos-Mudos e gritou: "Senhores, o que estão fazendo?" Riiki de outrora, Riiki de outrora!
Ninguém respondeu; só a sua voz saía do fundo do Venha para fora, Riiki, 6 poderoso;
218
219
raízes do céu que o fincavam na terra. A Companhia
Deixa tua esposa, a enguia da cauda curta,
dos Tolos e Surdos-Mudos ficou no meio. Estes riam·
Pois tu desenterrarás o céu, empurrarás mais para . "Ele se move! Vejam como se move!" E o'
gritavam:
baixo as profundezas do abismo.
tempo todo, Naareau estava cantando e Riiki empur-
Apruma-te para o alto, Riiki, poderoso e extenso,
Mastro principal do telhado, empurra o céu e termina. rando. Ele empurrava para cima com a sua tromba
e, para baixo, com a cauda. As raízes do céu foram
Termina, pois o julgamento está julgado.
rasgadas e arrancadas da terra: soltaram-se! A Fen-
da Unida foi aberta em duas metades! Basta! Riiki
Quando Riiki ouviu esse feitiço, ergueu a cabeça e o endireitou o corpo; o céu se pôs no alto, a terra afun-
sono saiu dele. Vejam-no agora! Ele estende a trom- dou, e a Companhia dos Tolos e Surdos-Mudos ficou
ba. Morde a isca. Pobre dele! Elas apertam o laço, ele nadando no mar.
está bem preso. Elas o suspendem! Ele é arrastado
para longe da esposa, a enguia da cauda curta, e Mas Naareau olhou para o alto do céu e viu que ele
Naareau faz um grande estardalhaço e dança. Mas não tinha lados. Disse: "Somente eu, Naareau, sou
não tenham pena dele, pois o céu está pronto para ser capaz de trazer para baixo os lados do céu". E cantou:
suspenso. O dia da separação enfim chegou.
Riiki disse para Naareau: "O que devo fazer?" Naa - Vejam eu sou visto a Oeste, é Oeste!
reau respondeu: "Levante o céu com a tua tromba; Nunca há um fantasma, ou uma terra, ou um homem;
empurra a terra para baixo com a tua cauda". Mas, Existe somente a Raça da Primeira Mãe, e do Pri-
quando Riiki começou a suspender, o céu e a terra res- meiro Pai e do Primeiro Gerado·
mungaram e ele disse: "Talvez eles não queiram ser Existe somente a Primeira Nom;ação dos Nomes e a
separados". Por isso Naareau alteou a voz e cantou: Primeira Vez em que Que Se Deitam Juntos no Vazio·
Ouça, ouça como geme, a Fenda Unida de outrora! Existe somente o enlace de Na Atibu e N ei Teakea. '
Atravesse-a depressa, Grande Raio, corte-a ao meio. Fi somos atirados no fundo das águas do mar ocidental.
Arqueie tuas costas, Tartaruga, rompa-a em pedaços. E Oeste!
Lance os braços, Polvo, rasgue -a para todo lado.
Oeste, Leste, afastem-na~ para bem longe! Da mesma maneira ele cantou a leste, norte e sul.
Norte, Sul, afastem-nas para bem longe! Correu, saltou, voou, foi visto e novamente dado por
Suspenda, Riiki, mastro central do telhado, levante desaparecido, como os relâmpagos dos lados do céu·
o céu. e onde ficava, trazia para baixo os lados do céu par~
Ele brada, ele ruge! Ainda não, ainda não se separou que esse ficasse com a forma de uma cuia.
a Fenda Unida.
Qu~ndo isso estava pronto, ele olhou para a Compa-
nhia dos Tolos e Surdos-Mudos e viu que eles nada-
Quando o Grande Raio e a Tartaruga e o Polvo ouvi-
vam no mar. E disse em seu coração: "Que haja a
ram as palavras de Naareau, começaram a rasgar as
221
220
Primeira Terra". Ele os chamou: "Estendam as m~os, define o âmbito psíquico da consciência do Eu como um
eguem o que está embaixo-o-o! Agarrem com as maos. campo entre o âmbito material do corpo e o âmbito
P . I ,, 60 arquetípico do espírito. Esse modelo de psique correspon-
Tragam para cima os a l icerces. çem .
de exatamente a tais mitos de criação. A psique, dentro
Agora a terra é fisgada e t razida à tona, como vimos dessa perspectiva, é a triton eidos (Platão), entr e soma e
espírito.
também no mito iroquês.
Esse relato constitui uma impressão poética de _um A divisão em dois, portanto, precede toda percepção
d s muitos mitos diferentes sobre a separação entre ceu e consciente. Muitas vezes, antes também que um conteú-
tirra A implicação psicológica é fácil de co~preende~ s~ do inconsciente se torne consciente, quando alcança o li-
enc~ramos de forma barata, superficial, pois par~ nos e miar da consciência, tende a dividir-se em duas partes:
:vidente por si que todo processo psicológico se_b~~ern :1':1m em geral, esse é o passo imediatamente anterior à inten-
· r de opostos polares. Essa é, realmente, a ideia basica sificação do conteúdo que, em seguida, ultrapassa o limi-
~: Jung, a idéia nova que lhe permitiu ':1ltrapassar _as r~- ar e penetra no campo da consciência. Isto está ligado
ferências freudianas. Contém seu conceit~ ~e energi8: psi- com o fato de que nenhum processo psicológico é imagi-
uica que, como todos os processos energeti~os, basern-~e nável para nós sem uma dualidade ou polaridade implíci-
~uma polaridade ou pressupõe uma polar_idade de dois ta. Enquanto os opostos são um e se mantêm unidos, ne-
ostos. Já estamos tão acostumados Aco~ i~so dentr~ do nhum processo con sciente é possível.
0
~nsamento junguiano que nossa tendencia e subv_alo~1zar Esse ponto se relaciona facilmente com a visão orien-
p 'd'· a e não refletir mais sobre o que ela sigrnfica. tal em que a meta final é o retorno à condição que existia
essa i ei · - todos os
Mas, quando lemos esses mitos de cnaça? coi:n antes que houvesse essa divisão no par de opostos. Por
seus diversos pares de dualidades - os do:s criadores, a~ exemplo, a iluminação chamada bodhi nos ensinament os
duas metades de um ovo, a separação nas ~mag~ns de Pai e na filosofia budista, assim como a iluminação descrita
e Mãe _ vemos o quanto essa noçã_o era difundida ~ 9-ue, como satori pelo zen budismo japonês, são tentativas da
realidade, constitui uma das imagens arquetipicas consciência de retomar aquela espécie de lampejo intuiti-
na . s básicas subjacente à maioria dos processos cons- vo de entendimento oni-abrangente, que preexiste à ci-
mai '
·entes de discriminação: a d"iscnmmaçao
· · - entre. o Eu e o são em dois. É o estado do nirdvandva, o retorno ao está-
;~stante da psique, ou entre o s':1jeito e o obJeto, entre gio da totalidade pré-consciente e a evitação da distância
o dentro e o fora, e todos os demais opostos. entre sujeito e objeto que se pressupõe em cada um dos
No mito da separação dos pais, é frisado o fa~o ~e processos da consciência do Eu. A maioria das cosmogo-
é necessário espaço para que a totalidade da cnaçao nias, no entanto, descreve essa separação de opostos como
q~=sa começar a existir, entre o céu e a terra. _Em geral, 0 um ato criativo, positivo.
~éu simboliza mais o aspecto espiritual da psi_q u_e e a ter- O mesmo motivo da divisão em dois ocorre na tradi-
ra mais O aspecto material. Em um de seus u~timos tra- ção Maori, num mito intitulado "Os filhos dos céus e da
b;lhos sobre a estrutura e a dinâmica da psique, Jung terra". Ele diz o seguinte:

soSir Arthur Grimble, A Pattern of Islands (Londres: John Murray,


Os céus que estão acima de nós e a terra que está
1953), pp. 168ss.
embaixo foram os progenitores dos homens e a ori-

222 223
gem de todas as coisas, pois ant_es_ os céus estava": Levantou-se, também, Tangaroa para separar seus
colados na terra e tudo era escuridao. Eles nunca ti- pais, mas não o conseguiu.
nham sido separados e os filhos do céu e da terra
buscavam descobrir a diferença entre a luz e a escu- Tumatauenga tentou em seguida, mas foi igualmen-
te mal-sucedido.
ridão [isso é importante: os filhos ~~scavam de~co-
brir a diferença entre luz e escundao, entre dia e Finalmente, levantou-se Tane-Mahuta, o deus da flo-
noite] pois os homens tinham se tornado numerosos resta, para lutar contra o céu e a terra. Seus braços
mas ~s trevas permaneciam. [Segue-se ?-gor?- uma mostraram-se fracos demais; por isso, curvando a
observação de quem fez o registro de~s~, h:stóric:,, c~m cabeça e empurrando para cima com os pés, ele en-
referências às frases "d~rc:,nte a ~o,~te , a _pri_m_eira fim os afastou. Então gemeram os céus e exclamou a
noite", "da primeira à decima n~it~ , que sign:ficam terra: "De onde vem esse assassinato? Por que esse
que a escuridão não tinha tid~ limites_ até entao, qu~ grande pecado? Por que nos destruir? Por que nos
a luz ainda não existia.] Assim, os filhos de Rangi separar?" Mas Tane não se incomodou com os lamen-
[os céus] e de Papa [a terra] consulta~am-se uns a~s tos. Para o alto empurrou um e para baixo o outro;
.
outros e d isseram. . "Busquemos os meios pelos quais por isso, as palavras: "Tane empurrou e o Céu e a
conseguiremos destruir o céu e a terra, separando um Terra foram divididos". Foi ele quem separou a noite
do dia.
do outro". Então disse Tumatauenga [o deus da guer-
ra]: "Vamos destruir os dois". Imediatamente, com a separação entre céu e terra, as
Então Tane-Mahuta [o deus da floresta] disse: _"Isso pessoas tornaram-se visíveis, pois até então haviam
não· que se separem os dois; que uma vá para cima e ficado ocultas nos vãos dos peitos de seus pais.
se t~rne estranho para nós; que o outro permaneça Assim, agora, Tawhiri-Matea [o vento] pensou em
embaixo e seja nosso genitor". declarar guerra contra seus irmãos, porque eles ti-
Então os filhos do céu e da terra concordarr:m, e": nham separado seus pais, e só ele não havia consen-
separar seus pais. Tewhiri-Matea [o vento] foi o un~- tido em dividir a esposa e o marido. [Aqui, céu e ter-
co a sentir pena deles. Cinco concordaram em separa- ra são repentinamente chamados de marido e espo-
los; só um sentiu pena. sa.] Haviam sido seus irmãos que tinham resolvido
separá-los deixando apenas um deles, a terra, como
Assim, pela destruição dos pais, eles procuraram fa - genitor... 6 1
zer com que os homens aumentassem e f!rospe~,asse":
e para comemorar essas coisas, há os dizeres: A noi- Essa história revela as razões pelas quais os filhos
t~!, a noite!, o dia!, o dia!, a busca, a luta pela luz!, do céu e da terra os separaram: primeiro, tinham se tor-
pela luz!!" . _ nado muitos e, portanto, o espaço entre o céu e a terra
Por isso agora, Rongo-Matane [um dos filhos - nao tornara-se muito apertado; segundo, estavam tentando
estou in~luindo todas as explicações] se le~antou para descobrir as diferenças entre noite e dia, entre luz e escu-
separar o céu da terra, mas não conseguiu. ridão. Essa versão é a que mais claramente retrata os
Então, Haumia-Tikitiki testou a sua força, mas tam-
bém falhou. 61
Grey, Polynesian Mythology, pp. lss.

224
225
icológicos da divisão do universo, ou seja, que outro, mas não como ato interior. Naturalmente, essa
aspectos p~o significa um ato de discriminação, um ato ampliação também pode ser obtida, e com eficiência ain-
a separaça nte necessár io como passo na direção de uma da maior, no plano subjetivo, com o alargamento do cam-
ab so lutame . A . a ou seJ· a para que haJ· a a d·c i1erencia-· po da consciência pela discriminação.
. conscienci , , d
maior
- da cons ci•eAnci·a · Não só o primeiro, mas cada .um A . os, Existe essa mesma necessidade sempre que se faz
çao ubseqüentes para a ampliação da consciencia e necessário superar uma projeção. Jung diz que podemos
passos i1o por uma separação de opostos. As palavras falar de projeção toda vez que ocorre uma perturbação da
preced e rocesso de separação começam, em ~er~l, c~m identidade arcaica entre sujeito e objeto. Enquanto eu
p~ra ess p latim indica "em pedaços"): discriminaçao, mantenho opiniões a respeito de alguma coisa, seja sobre
d i S - (que em · , ·
l Esse fato aponta para o prmcipio segun
do
a essência da matéria ou o caráter do meu vizinho, ou
por exe~P ~~ pode r econhecer ou entender nada sem se- qualquer outra coisa, e elas parecem combinar com o com-
o qual nad? •di·r No mito isso está relacionado com a ne- portamento dessa coisa ou objeto, jamais serei capaz de
r e ivi . . . . ·
par~ ade de mais espaço para respirar e vi':'er. no prm- realmente enxergar a projeção, porque o comportamento
c~s~id ·unção de céu e terra não era negativa mas, aos do objeto parece coincidir com a minha visão do mesmo.
cip10, a Jf01. se tornando imprópria pois estava sufocando Somente quando começo a sentir uma inquietação no meu
poucos, .
.da que crescia. íntimo, a sensação de que aquilo que afirmo a respeito do
a v1 t" damente presenciamos a n ecessidade de uma objeto não está certo, quando fico com uma espécie de peso
~ep;o ida consciência. Uma perspe_cti_va que se torna na consciência por causa do que digo, é que desenvolvo
am?hª\ a e nítida é vivenciada, subJetivamente, como esse estado mental em que posso perguntar a mim mes-
mais la g abrem de rel;)ente e que novamente garan- mo: "Será uma projeção? O que aconteceria se o objeto
portas qu: ~:ra respirar. E a libertação de determinados fosse diferente?" Pode-se dizer, por conseguinte, que, no
tem espaç ·t ·s A i·nconsciência quando se torna obsole- inconsciente, já está presente uma nova idéia a respeito
ssos v1 ai . ' e .t
do objeto, um novo ponto de vista, que cresceu e empur-
proce ativos que não podemos saber), exerce um eiei o
ta (por~ obre a pessoa. Os jovens, por exemplo, fala~ rou para o la do o antigo. É como uma planta que começa
sufocan et_s em sufocados em casa. A participation mysti- com uma cobertura assim que brota da terra e que, se
d e se sen ir
articipação ·
mística] na família, a identi·d a d ~ mcons-
· você tentar arrancar antes da hora, terminará por des-
q~e [p mesma a princípio é uma grande noite, uma truir a planta. Mas, depois de algum tempo, elas se soltam
nte com a
c1e . d l' ui·do amniótico ' em que o emb nao. - na d a sem por si e surge o novo broto. Assim também se dá com a
, c1e e iq · d. 'd projeção: primeiro uma nova perspectiva do inconscien-
espe ue depois se torna sufocante e o m 1v1 uo
.
11m1 '·tes mas q ' ' · de te se configura, mas ainda não se mostra; num momento
Ça a sent ir · que não consegue respirar e. precisa
seguinte, a perspectiva antiga é descartada, como se fos-
come mai·or Às vezes as pessoas que vivem em pe-
espaço · ' ·b
um cidades e grupos pequenos, ou em tr_i º?• passam se uma casca velha por assim dizer, e é então que a pes-
quenas a experiência: de repente alguns md1v1duos se soa é capaz de , ou até mesmo deveria, conscientizar-se
pela mesmfocados . A asma de origem psicológica pode até da projeção. Não somos capazes de explicar por que es-
sentem sucomo sintoma nesses casos, indicando sempre sas projeções são superadas, por que os indivíduos e às
recer •A . A vezes até mesmo nações inteiras descartam suas proje-
apa ecessário, agora, a ampliação da consc1encia. n-
q_ue é :nte essa ampliação era em geral efetuada no pla- ções e desenvolvem novos pontos de vista. O único fato
t1gam ' fosse abandonando o grupo ou entrando em que podemos afirmar é que, num certo momento, emerge
no externo,
227
226
uma necessidade inconsciente que pode às vezes ser eia, tanto quanto, antes, a havia ajudado a progredir. É 0
antevista pelo acompanhamento dos sonhos e qu:, ap~s que acontece com a maioria das idéias arquetípicas usa-
um determinado intervalo, irrompe como uma situaçao das como hipóteses de trabalho. Se lhes damos uma ênfa-
consciente. se exager ada e nos apegamos emocionalmente às mesmas,
elas se to~nam uma prisão e, quan do isso começa a ocor-
Toda perspectiva a respeito da r~alidade, quer de
rer, ou seJa, quando rompemos as grades da gaiola que
natureza religiosa ou científica, é um s~ste;11a de, ordena-
e~~s ~rmaram, deparamo-nos como uma ampliação da cons-
ção e relacionamento co~ coisas. Todavia, e_provavel q~e,
~1enc1~ e a abertura de novas possibilidades de vida. Esse
justamente por ser um sistema de ordenaçao do caos cir-
e um tipo de processo básico, presente em cada passo dado
cundante tanto o caos interno como o externo, que o com-
para, frente_, em cada incremento da consciência. Eis por
plexo do Eu tem de confrontar, o pro~esso da º:denaçã_o
que e descrito como um dos primeiros e mais básicos even-
contenha limitações. Provavelmente, isso ta~b:m e~ph- tos de tantos mitos cosmogônicos.
ca por que, depois de algum tempo, _a ord~m e v1-:enciada
como uma prisão. Pode-se chegar mclus1ve a dizer que . Um outro problema que aparece junto com a neces-
toda hipótese científica é um instrument_o para o alarga- ~1dade ~e renovar a consciência reside no fato de que, no
mento do campo da consciência que, depois de algum tem- inconsciente coletivo, todos os arquétipos são contamina-
po, limita sua futura expansão. l!~ exe~plo: a ~onstru- dos uns pelos outros. Ao estudar qualquer arquétipo em
ção de cada evento num espaço tnd1mens1onal foi um ~e- profund_1dade, traçando todas as suas conexões, podemos
curso muito útil no início da mecânica e da geometna. descobrir que é possível trazer para fora todo o incons-
Nessa fase, a hipótese em vigor sust ent_ava que o esp~ço ciente coletiv_o! Lembro sempre dos chineses que falam
tinha três dimensões e que tudo devena ser cons~rmdo de um certo tipo de grama cujas raízes se espalh am a tal
geometricamente, nessas di~ensões. Iss_o garantia ~m ponto, que nunca se consegue arrancar toda. Os chineses
ponto de vista muito produtivo'. uma ga10la, por assim dizem qu~, s: você arrancar uma parte dessa grama, o
dizer, na qual uma certa quantidade de_ eventos_ macro- g_ramado mte1ro vem junto! Dá-se o mesmo com os arqué-
cósmicos poderia ser descrita de maneira conv11;-ce_nte. tipos, pois se você ficar puxando um deles para fora o tem-
Mas quando nos aproximamos de fenômenos subatom1cos, po todo, o ~ncon~ciente coletivo inteiro virá atrás! É por
essa teoria mostra-se insuficiente e a pessoa ~assa a ~- que, em psicologia, não se pode e não se deve abordar es-
car inquieta. Os fatos observados não se en:a1~am m~1s ses conteúdos apenas com a função pensamento. Para uma
no esquema. Se pudermos ad~itir que as tres d1mensoes adequada interpretação psicológica, necessitamos da fun-
formam uma hipótese operacional, mas que, neste ou na- ção sentimento que considera o tom afetivo de uma ima-
quele campo, essa hipótese não funciona mais, yodem_os gem arquetípica, assim como suas conexões lógicas com
abandoná-la e usar um outro esquema. Isso sena admis- outras imagens. A árvore, por exemplo, tem um símbolo
sível, mas, o que é deveras estranho é que a mente huma- uma conotação afetiva muito especial. Ela lhe transmit~
na tem a tendência a se apegar, custe o que custar, aos algo emocionalmente que não é idêntico ao sol, ou à gran-
velhos esquemas, chegando ao ponto inclusive de distorcer de Mãe Terra, à Fonte e assim por diante. Assim que você
os fatos. As pessoas se tornam emocionalmente apegadas estuda a árvore com o sentimento, percebe que embora
a suas hipóteses de trabalho, como se. elas fossem a ver- esses símbolos estejam contaminados, ou sejam coligados,
dade eterna e, então, naturalmente, _isso se transfo~:_11ª cada u~ tem um tom afetivo próprio. Por exemplo, você
numa prisão que bloqueia o desenvolvimento da consc1en- pode dizer que a terra é a mãe, que um símbolo de morte

228 229
é coligado à fonte, e assim por diante, mas Terra Mãe e Ár- Ao mencionar a função sentimento como a quarta fun-
vore Mãe, ou a Árvore da Vida, oferecem afetos diferentes.
É lógico que você pode identificá-los uns com os outros, mas
ção ?ª maio~ia dos cientistas, chegamos ao nosso próximo
motivo na discussão dos mitos de criação: a subdivisão do
diante dos sentimentos isso já não pode acontecer, e é jus- universo em quatro fatores. Após a grande divisão entre
tamente isso que incomoda muito os cientistas a tal ponto céu e terra, entre os quais apareceu à superfície a realida-
de eles dizerem que nós, psicanalistas, não somos científi- de terrestre, é muito freqüente que se desenrole na seqüên-
cos. Todavia, acontece o inverso, pois é justamente para se cia a divisão quádrupla dessa mesma realidade.
exercer a precisão e não para ficar girando em círculos no
inconsciente, que temos de usar os sentimentos. Somos cien- O motivo do criador duplo, a divisão e a separação
tíficos quando fazemos uso deles, e não somos científicos se dos pais primordiais, tem a ver com a polarização entre
não os utilizamos porque, sem sentimentos, começamos a c?nsciên~ia e inconscier.tte. Mas também há motivos que
nadar intelectualmente e a chamar cada coisa de tudo. citam tres ou quatro criadores, e nos dedicaremos agora
Nessa altura, atingimos o limite além do qual a função pen- um J?Ouco a esses. Estão ligados à tipologia de Jung, e
samento sozinha é insuficiente, e em que a pessoa intelec- considero que um conhecimento básico da mesma é ponto
tual deve se tornar consciente de seus sentimentos. Dada a pacífico neste contexto.
natureza dos conteúdos arquetípicos do inconsciente, não
podemos nos acercar dos mesmos apenas pela função pen- Os ín~ios pés negros, por exemplo, dizem-nos que o
samento. Grande Criador, o Segundo Criador e uma mulher esta-
Na maioria dos cientistas, a função sentimento é in- vam à deriva nas grandes águas, dentro de uma canoa
ferior. A função inferior é uma espécie de função que não discutindo como fazer a terra ficar sobre a água. Despa~
merece confiança; seja qual for a quarta função, ela tem charam quatro animais para a exploração. Três fracassa-
essa qualidade de ser ou muito boa ou muito aquém do ram, mas o rato almiscarado trouxe de volta um pouco de
necessário. Por isso, digo que o tipo pensamento deve lama, que então foi usada para criar o mundo.
mobilizar seus sentimentos, do jeito que eles são, e ten-
tar confiar neles, mas manter uma atitude relativamente Num mito Maidu, o Iniciado da Terra cria o mundo
crítica diante dos mesmos dizendo: "Estou projetando?", também fazendo com que um animal, a tartaruga, vá pe~
porque esse sujeito é mais propenso a projetar, dada que gar um pouco de terra. Ele a toma em suas mãos e come-
sua quarta função é a do sentimento. Mas ele não deveria ça a enrolar, até formar uma bola do tamanho de uma
dizer que, por ser a quarta, seguramente é distorcida. Ela pedra pequena, que então coloca em sua balsa. A todo
pode muito bem acertar no alvo! Não pensem que a fun- instante ele olha para a bola, entretanto, ela não cresce,
ção inferior é inferior no sentido de ser péssima pois, na até que, de repente, ele a observa pela quarta vez e per-
realidade, ela é muito boa, embora primitiva e inadaptada. cebe que ela está do tamanho do mundo. É dito repetida-
Funciona de forma autônoma e vigorosa, primitiva, não mente que por três vezes o animal tenta fisgar a terra e
de maneira culturalmente diferenciada. Entretanto, isso trazê-la para cima sem conseguir, até que na quarta dá
não quer dizer que um tipo pensante que confie em seus certo; ou que ele por três vezes olha para a bola de barro
sentimentos erra o alvo ou distorce a realidade: ele pode e ela não cresce, mas quando a vê pela quarta vez ela, de
muito bem t er o sentimento certo, mas deve lembrar que repente, se transforma. Temos aqui a quadruplicidade na
este é ingênuo e funciona em nível primitivo e, portanto, forma de uma divisão temporal, e a quarta vez é decidi-
pode cometer erros bastante grosseiros. damente diferente das três anteriores.

230 231
Essa mesma divisão no tempo é recorrente em con- um cachorro, um homem e uma mulher. Depois de uma
tos de fada do mundo todo; quase sempre há três ritmos e segunda inundação, só restam essas quatro coisas na ter-
então, de súbito, um quarto elemento decisivo. Nui:na fa- ra e eles criam o resto do mundo. Portanto, nessas cosmo-
mosa história russa, o herói sai em_ busca de Mana d_as gonias o motivo do quatro aparece constantemente.
Tranças Douradas, que dorme no Remo sob o Sol. Um dia, A tribo sulista Arapaho também tem um mito em que
ele encontra uma grande feiticeira, Baba Yaga, a quem a terra foi criada primeiro por Deus, mas com nada nela,
pergunta qual é o caminho; naquel~ noite, o herói pousa e o criador da terra disse que precisava de servos para
ali. Ela não pode revelar-lhe o cammho, mas manda qu~ moldá-la e dar-lhe forma. Por isso, criou Sol e Lua e ho-
ele vá falar com sua irmã e, depois de ir até ela, ele vai mem e mulher - novamehte, quatro. Neste mito são os
em busca de outra bruxa. A história, neste caso, é conta- servos do Criador.
da inclusive ritmicamente e exatamente da mesma ma-
Os Winnebago, uma subdivisão dos índios Sioux, nar-
neira. A terceira bruxa mostra-lhe o caminho e ele encon-
ram o seguinte mito da criação. O Grande Espírito se sen-
tra, como quarto elemento, Maria, a Dourada. tiu sozinho. Tomou uma parte de seu corpo, próxima do
Também há muitos contos de fada nos quais a moça coração, e um pouco de t erra e, com esses elementos, for-
está procurando pelo marido , ou em que o homem busca a mou o primeiro homem e depois mais três homens. A se-
bem-amada. Primeiro ele vai até o Sol, depois à Lua, e em guir, criou uma mulher, que é a terra, a avó de todos os
seguida busca nas estrelas ~ indicação do _caminho; ou índios. Os quatro homens eram os quatro ventos e, mais
primeiro indaga do Sol, depois da Lua, depois o Vento da uma vez, são os principais auxiliares. Na realidade, aqui
Noite. existem cinco, mas o quinto é um pouco diferente, é a ter-
Nas versões cristianizadas, o herói muitas vezes vai ra passiva, ao passo que os quatro homens se tornam os
até um velho sábio, um eremita, que o envia a outro ere- auxiliares do espírito criativo na moldagem da terra. Se-
mita, e é o último que lhe diz onde ir. Em geral, os_ estu- gundo uma outra variação winnebago, o que nosso Pai
diosos de mitos falam de três ritmos mas, na realidade, disse quando tomou consciência não sabemos, mas ele
se vocês examinarem mais de perto, verão que três vezes se começou a chorar. (Já contei essa parte do mito, antes.)
passa a mesma coisa e é na quarta que vem a mudança. Depois, ele formou a terra e mandou quatro homens, qua-
Nos mitos indianos de criação temos essa mesma conste- lro irmãos, e os colocou nos quatro postos do universo,
lação de fatores. para sustentar a humanidade. Existe uma outra varia-
ção em que é dito que O Que Fez a Terra criou quatro
Os índios pés negros narram um mito de criação no r-:cres que se pareciam com ele e os enviou para que aju-
qual o Sol criou o céu e a terra, mas nin~uém sabe como o dassem a humanidade; primeiro para criar e depois para
Sol começou a existir. A Lua teve uma criança e o Sol teve njudá-la. 62
uma criança. O filho da Lua é chamado Vel~o Homen: e o
As tribos Wichita têm um Deus superior chamado
do Sol é N api. O filho do Sol é chamado de Deus Apisto-
!Tomem Nunca Visto na Terra. Este é o tipo de Deus que,
toki". Essas quatro figuras começam a criar o mundo. Eles
d()pois da criação, se retira e nunca mais toma parte em
recebem quatro coisas: areia, pedra, água e a pel~ de um
11 nda. Esse Homem Nunca Visto na Terra criou Deuses
pescador, com as quais completam a criação. Depois, acon-
tece uma inundação e eles só conseguem salvar as quatro
coisas. Então, novamente, criam quatro coisas: um velho, "' Iin dianermiirchen aus Nordamerika, p. 401.

232 233
Estrelas diferentes e os quatro Deuses dos quatro países ~as isso não foi suficiente porque o mundo continuava a
do mundo. O índio que narra esse conto diz que, no telhado girar por todo lado como um louco e o criador não conse-
de uma tenda ou casa wichita (eles viviam em cabanas de guia pará-lo. Assim, ele criou os quatro cantos do mundo.
grama de formato cônico) há quatro postes: leste, oeste, Is~o novamente se revelou um fracasso e, dessa forma, 0
sul e norte, que representam os quatros Deuses dos qua- cn_ad~r po1:derou por um longo tempo. Depois, com as
tro países do mundo. No centro está o poste que apo1;1ta propnas maos, fez quatrp seres, espíritos da água, e colo-
para o céu, para o Homem Nunca Visto na Terra. Assim, c~u-os sob a terra; foram chamados Ancoradores da Ilha.
temos novamente aqui o desconhecido, que representa a Fmalmente, ele espalhou algumas criaturas femininas
totalidade pré-consciente, a coisa inteira, e então a sub- pela terra toda, e eis o quinto! Com criatura feminina
divisão dos quatros Deuses dos quatro países da _terra. A q~er-se dizer as pedras e rochas. Depois de tudo isso, 0
casa continua sendo construída da mesma maneira. c~iador ol~ou para o que havia criado e viu que a terra
Em outros mitos - infelizmente, não há menção da tmha, ~n~im, fica?º quieta; estava ancorada, com os qua-
tribo, só das situadas nas pradarias e nos platôs, em ge- tro ~spintos da agua segurando-a por baixo e um peso
ral - o Deus superior cria as estrelas do nordeste, no- femmmo, na forma de pedras e rochas, por cima.
roeste sudoeste e sudeste e lhes diz: "Vocês quatro deve- Na mitologia, o passo de um número básico para ou-
rão ca~regar o céu enquanto ele existir, essa ~erá a ~rin- tro pode ser dado de variadas maneiras. Podemos contar
cipal incumbência de vocês, mas eu lhes darei tambem o dois procedi~entos: a div~são da unidade, ou a adição de
poder de criar e ensinar os seres humanos". un_ia outra umdade para cnar duas. Mas assim que há duas,
Entre os aztecas, encontramos sob muitas formas a existe novamente o problema, pois podemos passar para 0
criação quádrupla. Por exemplo, eles ensinam que ho~ve três de duas maneiras: ou acrescentando uma outra uni-
quatro criações dos homens, cada uma delas destrmda dade, ou reconstruindo a primeira unidade ao cortá-la em
por uma inundação, até que os Deuses criaram ? mundo dua~ partes,? que então _~omaria três . O mesmo serve para
que existe hoje: quatro períodos mundiais, assim _com~ o tres: se ~oce tem um tnangulo, pode adicionar um quarto
quatro Deuses originais que criaram o mundo. O qumto e ou P?de dizer que o três é, de fato, uma unidade; assim, se
chamado Quatro Movimentos e é o dia do Quinto, o perí~- a um~ade do três é somada ao três, isso dá quatro. Ames-
do mundial atual. Há ainda o mito dos quatro Deuses ori- ma coISa se passa com o quatro: há quatro unidades e você
ginais que decidiram no ano "Um Coelho" criar quatro pode prosseguir adicionando uma unidade, o que poderá
maneiras de chegar ao centro da terra para suspender o ger~r um pentagrama, ou há o quatro e você pode recons-
céu. Para isso, eles criaram quatro homens, nomeados t~mr a uni~ad_e original que, então, chega na quintessên-
distintamente . Depois de terem criado esses quatro au- cra dos alquimistas. Quando adicionamos o número seguin-
xiliares, os Deuses Tetzcatlipoca e Quetzalcoatl transfor- te com? uma reconstrução da unidade original, não se tra-
mam-se em duas árvores e se retiram. ta efetivamente do número seguinte mas somente do um
Numa variação dos mitos Winnbeago, aparece ames- do número anterior. Em termos mitológicos, é simplesmen-
ma história dos quatro seres masculinos, irmãos, que fo- te o um do quatro e não é percebido como o quinto. Quando
ram criados e colocados nos quatro cantos do mundo. 63 ~emos textos alquímicos, é a quintessência que realmente
1
• um do quatro, ao passo que o quinto é visto como o núme-
1·0 _daAna~ureza, da deficiência, da imperfeição natural e da
Paul Radin, Winnebago Culture as Described by Themselves. 11
63
x1stencia corporal. Algumas especulações sobre o simbo-

234 235
lismo dos números dizem que é a natura '!-aturat~, a i~- Quando existe um número sagrado, o número seguin-
perfeição da natureza em si. Mas o outro tipo de cmco e a te é sempre um transgressor. Conosco, é o treze. Doze é o
quintessência, a maior perfeição - exatamente o oposto completamento porque três vezes quatro é especialmente
completo. Treze é um número transgressor, por isso ou
da natura naturata.
dá muita sorte ou muito azar. Ele viola o sentimento na-
Quando se trata, entretanto, de simbolismo dos nú-
tural de totalidade e agrupamento. Em termos de seu sig-
meros, sempre depende de que tipo de nú_mero terr_ios p~la nificado original, os números sempre têm uma qualidade
frente. Por exemplo em nossa especul~çao_ teológica ~~ o
grupal. Por exemplo - e essa é uma história muito pro-
problema do três na Trindade do Pai, Fil1:o e_ Espinto
funda, embora soe ingênua - , Jung fez um experimento
Santo. Mas Joaquim de Fiore falava da substancia comum
com alguns povos tribais: mostrou-lhes três fósforos e
de Pai, Filho e Espírito Santo, e_ algu_m~s de su~s pala-
vras foram condenadas pela IgreJa pois mt~oduzia~, se- perguntou quantos havia. A resposta foi três. Depois apre-
cretamente, uma Quaternidade, já que ~le I:ipostasiava a sentou m ais dois fósforos e perguntou quantos eram. A
substância comum do três como uma coISa mdependent e. resposta foi dois. Tirou em seguida um dos fósforos do
Na realidade, ele só via o um do três, que é difer~nte de primeiro trio e transferiu-o para o segundo conjunto, onde
se somar uma unidade, mas naturalmente uma coisa leva a ntes eram dois, e novamente perguntou quantos eram;
à outra e entendiam que ele estava somando um quarto disseram dois-dois fósforos e um fósforo três. Apontando
item, 0 que foi portanto co_n~enado. Quando co~tamos, para o outro grupo, ele perguntou quantos havia e ouviu
podemos dizer que o um ongmal forma urr_i contmuo, de dois-três. Com isso, observou que o conjunto original ha-
tal sorte que cada _número p~de ser ente1:1d1do como are- via transmitido uma qualidade trina ao seu grupo, que
presentação da unidade do nu_mero anterior, sob nov_:i for- era preservad a mesmo depois de um haver sido transferi-
ma. O dois é, na realidade, dois aspectos do ~ur~; o tres, de do, ao passo que os outros pertenciam à dupla original de
fato três aspectos do um original. O quatro_ e so os qua~ro fósforos.
aspectos do um que enfim se tornar~m m anif~st~s, e assim Essa transferência de qualidade tem a ver com o
por diante. Sendo ~ssi1!1, existe_u_m tipo associa9a? que con- modo como o inconsciente conta. Por exemplo, os pasto-
tinua subjacente a unidade ongmal, ao um ongmal. res primitivos podem contar o gado sem realmente conse-
Segundo meu entendime_nto, portanto? nesse mito guirem contar, pois em palavras eles só alcançam sete ou
azteca O quinto mundo não sena de fato o qumto, mas um dez, mas num minuto conseguem contar corretamente os
quinto fenômeno limítrofe. Podemos encontrar a mesma 63 carneiros que t êm. Trata -se de uma espécie de percep-
coisa na China. No ocidente, temos os quatro ele_mentos ção inconsciente do número como grupo e de uma capaci-
básicos, ao passo que na China são cinco ou seis. Mas dade de vê-lo diretamente pelo inconsciente, sem ser ca-
quando paramos para estudar esse aspecto, vemo_s q'!e paz de contar discursivamente, como nós fazemos. Essa
sempre aparecem na m esma ordem, de modo que nao sao consciência do número corresponderia à consciência de
efetivamente diferentes dos nossos quatro ~lement?s.' ex- um grupo como algo completo. É uma história muito mis-
ceto pelo fato de a unidade do quarto, a unidade ongmal, teriosa; neste momento, posso apenas chamar a atenção
ser enfatizada em separado. É por iss? que, se_ con~armos de vocês para isso, mas há vários aspectos nesse processo
superficialmente, diremos que os chmeses tem c~nco, e que a inda não elucidamos .
não quatro. Mas se examinarmos os dese1;1ho~ chmese~, Quero apresentar mais algumas referências sobre as
veremos que não há contradição com respeito a quaterni- divisões quádruplas da criação. Na tradição hindu, às ve-
dade, é apenas um outro tipo de contagem.
237
236
zes é dito sobre O ser original, Purusha, que u~a quarta sol que saía das águas. Neste caso, há um grupo de qua-
parte de sua pessoa é composta p_or tod~s as criatura~ e tro ou de oito seres que cultuam o primeiro aparecimento
que três quartos são o mundo dos imortais no c~u. Ele e a da luz.
totalidade mas subdividida em um quarto e tres quartos. O ato da criação quádrupla é encontrado numa for-
Também ~xiste a tendência a uma divisão quádrupla na ma muito mais diferenciada, em certos mitos gnósticos,
China, onde as tribos Miau ainda cultuam P'an Ku, º. ser por exemplo nos ensinamentos de Valentinus que, hoje,
original, junto com os três soberanos. N_ovamente aqui _te- conhecemos melhor através do Codex Jung. 64 De acordo
mos um grupo original de quatro e, mais um~ vez, a dife- com Valentinus, o primeiro ser, que ele chama de Auto-
renciação do três e do quatro. Eles não s~o. simplesmente pater, ou o Pai de Si Mesmo, o Autopai, ou seja, a totali-
quatro: três são soberanos e um é o ser ~ngmal~ Temos de dade autocriada, enlaçou o universo inteiro no princípio.
novo a unidade original, acrescida depois ao tres. Em si mesmo era inconsciente, sem nunca envelhecer,
eternamente jovem e hermafrodita . Continha em si
Na mitologia germânica, deparamos co1? .ª idéia ~e Ennoia, o Pensamento também chamado Sige, o Silêncio.
que O mundo é criado a partir do gigante origmal Ymir.
Uniram-se e trouxeram à luz o Homem (Anthropos) e a
Os Deuses pegaram seu crânio e o es~a~haram sobre a Verdade (Aletheia). Novamente, do primeiro casal é cria-
terra; em cima dele, fizeram o céu. O cramo era sustenta- do primeiro o grupo de quatros deuses: Deus e sua par-
do por quatro anões, postados nos quatro cantos da terra. ceira feminina interior, o Homem (mas não pensem ago-
Em poemas subseqüentes, portanto, o céu não _é cha~ado ra nesse Homem como a humanidade, pois o Anthropos é
céu, mas freqüentemente aparece sob ~ designaçao de o irmão mais velho divino da humanidade, para falar em
carga dos anões, ou carga dos quatro anoes. linguagem indiana; quero me reportar à idéia do Homem
Em certos mitos africanos, há um deus original que como um ser divino), e Aletheia, a Verdade, que, em gre-
desce até a terra onde encontra outros três seres que :le go, é um vocábulo do gênero feminino. Assim, há nessa
não tinha criado. Ele h avia criado tudo menos esses tres; fase dois casais que ele chama de o primeiro Tetras espi-
o trovão Ndorobo e o elefante. Não fica claro o ~ue e ritual que jamais envelhece, ou seja, um grupo com qua-
N dorobo'. mas parece ser uma espécie_ de Deus ~ria_dor tro. Esses então criam quatro outros, a saber, Anthropos,
secundário de cujo joelho inchado surgi_ram_ os primeiros Ecclesia, Logos e Zoe. Anthropos é a forma espiritual do
seres humanos. Novamente vemos aqui o ritmo do um e homem; Ecclesia, a personificação feminina da humani-
do três, mas O grupo original então faz com que tudo o dade, poderíamos dizer que é a igreja espiritual dos ho-
mais passe a existir em quatro. mens; Logos, o pensamento manifesto e expresso; e Zoe, a
vida. Em seguida, esses quatro produziram um outro
Os bena-lulua dizem que o criador s upremo foi Fidi quatérnio, que é o Espírito Santo e assim por diante; mas
Mukullu. Ele não criou diretamente o mundo, ~as teve vou poupá-los disto. Há inúmeras divindades diferentes
quatro filhos que enviou para a terra a fim de criarem o às quais retornarei depois, no capítulo dedicado ao pro-
mundo. blema das reações em cadeia, ou seja, os muitos e muitos
No Egito, há as águas originais de Nun, a pr_imeira deuses que foram criados. O importante é que, em alguns
água em que O espírito criativo do deus Atum habitou de
forrn.a invisível. Dessa saíram ou quatro macacos ou qua-
64
tro sapos, ou oito macacos e oito sapos, e eles adoraram o Tractatus Tripartitus (Berna: Francke, 1973), parte 1.

238 239
sistemas de Valentinus, há inícios quádruplos e, mesmo A diferença entre três deuses criando o mundo e as
depois o processo continua em quadru?lici,d~des, pro_va- divisões duplas e quádruplas é a seguinte: sempre que a
velmente influenciado pela filosofia pitagonca (os pita- ênfase recai na ação criativa, na atividade criativa, pode-
góricos cultuavam o Tetra como o mais sagrado de todos s e ter tanto três, como seis ou nove . Poderíamos dizer que
há agrupamentos triádicos de potências criativas. Sem-
os números). pre que no conto é dada ênfase ao estabelecimento de uma
Provavelmente dependente de Valentinus é a gnose orientação, ou ordenação, há quatro criadores: os quatro
de um homem chamado Markos, fundador de uma _outra pilares do mundo, as quatros direções do céu, os quatro aju-
seita gnóstica. Markos diz que, no princípio, havia um dantes da divindade etc. Portanto, podemos dizer que "gru-
primeiro ser que não tinha pai~ so?re q_uem não se p~de pos de três" enfatizam o fluxo criativo da ação, ao passo
pensar, que não possuía substancia, na_o era mascu~mo que "grupos de quatro" dão especial relevo ao estabeleci-
nem feminino, não podia ser compreendido. Este abnu ~ mento de uma ordem, o que corresponde à nossa idéia da
boca e produziu o Verbo, que era o mesmo que ele_, o ~1- estrutura consciente. Podemos afirmar, com base em nos-
lho, 0 Logos (vemos aqui a influência cristã), e a p:1m_e1ra sa experiência prática, que o número quatro sempre apon-
palavra pronunciada foi Arche - que, e~ grego, s1gmfica ta para uma totalidade e pá.ra uma orientação consciente
começo: A como o número 1, R como o numero 2, CH como total, ao passo que o número três aponta para um fluxo
número 3, e E como o número 4. Ele só falava ?ªlavras dinâmico de ação. Seria igualmente possível dizer que o
0 três é um fluxo criativo e que o quatro é o resultado desse
que consistiam em quatro letras e, ao pronunciar essas
íluxo quando se torna imóvel, visível e ordenado.
palavras criativas, ele criou o universo.
Naturalmente, para um psicólogo junguiano a tenta-
Analisando o simbolismo dos números nos mitos de ção é dizer que temos aqui as quatro funções da consciên-
criação, não devemos de forma nenhuma pensar que o dois, cia. Acho que fazer isso é posicionar a questão pelo lado
0
quatro, e o oito, são os únicos número~ relevantes_ (em- errado. Deveríamos dizer que temos aqui o padrão
bora eu só tenha selecionado aqueles mitos nos quais es- arquetípico sobre o qual se assenta a nossa idéia das qua-
ses números são especialmente relevantes, e te1_1ha fgn?- tro funções da consciência. Em outras palavras, a quadru-
rado um número considerável de outros nos quais_ ha tres plicidade arquetípica da realidade do mundo, de todo esta-
criadores). Por exemplo, dois criadores estão à denva num belecimento mitológico de uma ordem, é o símbolo mais
bote e a tartaruga vem ajudar, como terceiro elemento. básico e envolvente e a nossa idéia das quatro funções da
Um grupo de três deuses cria o mu~do nos_~itos sul-ame- consciência é um aspecto do mesmo. A quadruplicidade
ricanos e, nos mitos aztecas, mmto frequentemente há ela orientação da realidade é o conceito mais geral e a nos-
um grupo de três na forma de um~ figur~ p_ater~a, :111:a sa teoria das quatro funções é uma derivação do mesmo.
figura materna e um filho. Essa tnade cr~at1_va nao e tao l~ssa é a maneira como devemos nos situar, e não projetar
comum, ao que me consta, qu~nto o q~atermo, :°ª~ t;5m- ela frente para trás, dizendo que os quatro auxiliares, e
bém ocorre com alta freqüência nos mitos de cnaçao. 11ssim por diante, são as quatro funções.

ss Para maiores informações a respeito deste tema, ver Marie-Louise


von Franz, Number and Time, trad. Andrea Dykes (Evanston, Ili.:
Northwestem University Press, 1974).

241
240
Capítulo 10 desapareceram no mar. Embora não tenha sido dito ex-
pressamente, esses se tornaram as criaturas do mar, os
TENTATIVAS ABORTADAS peixes e enguias e outros. Portanto, em parte, os primei-
ros seres ineficientes são simplesmente idênticos às for-
DE CRIAÇÃO mas mais baixas de vida animal, especialmente as mari-
nhas. Por um inusitado caminho, isto se aproxima de nos-
sa própria teoria da evolução.
Segundo o mito samoano da criação, o deus supremo
Tangaloa cria o mundo atirando uma rocha nas águas, ou
fisgando-a de dentro dessas, e essa rocha também é cha-
mada Ika Maui, o peixe original de Maui, que se torna o
que hoje conhecemos como a Ilha do Norte na Nova
Zelândia. Essa rocha se recobriu de vida vegetativa, com
Quando digo tentativas abortadas de criação que- algumas plantas sagradas, e da massa putrefata desses
ro me referir ao seguinte. Muito freqüentemente, o deus vegetais começaram a existir certos vermes dos quais, por
tenta criar seres humanos e não consegue. O que ele cria fim, surgiram os ser es humanos. A aristocracia dessa ilha
são seres como os titãs, gigantescos, idiotas, incapazes de ficou muito enojada, posteriormente, com a idéia de ter
se movimentar adequadamente. De todo modo, não é uma vindo de vermes e, com isso, passaram a dizer que foram
empreitada bem-suceqida e, por isso, ele tem de destruí- criados diretamente pela divindade suprema e que só a
los e tentar de novo. As vezes, ocorrem inclusive várias plebe inferior resultava dos vermes que tinham se torna-
tentativas abortadas, até que a divindade ou o criador, o do seres humanos.
demiurgo, consiga produzir algo capaz de permanecer. Em
certas ocasiões, porém, essas tentativas canhestras so- No mito germânico da criação, tal como narrado no
brevivem e, então, formam ou demônios malignos, ou deu- Edda, os homens não foram criados em primeiro lugar.
ses de uma espécie superior e positivamente sobre-hu- Ant es dos deuses havia gigantes e depois vieram os deu-
mana. Traduzindo na linguagem da nossa civilização, os ses que criaram os anões e só depois de terem criado uma
resultados são ou demônios ou anjos, como se o deus às quantidade incontável de anões, que no Edda são todos
vezes produzisse algo que é um pouco bom demais e de- mencionados com nomes muito estranhos, é que criaram
pois tentasse fazer algo que é um pouco ruim demais e só a humanidade. Há diversos tipos de anões. Os originais
tivesse sucesso criando o homem como um ser interme- são chamados Anões Lobo, Anões Guardiães, da Manhã,
diário, do tipo que hoje feliz ou infelizmente é. do Meio-dia, da Meia-Noite e da Noite, da Nova Luz e da
No mito sobre a separação entre pai e mãe que citei Luz Fraca, Produtor de Névoa, Produtor da Noite, Esti-
no final do último capítulo, havia os surdos-mudos e os cador, Lambedor, Matador, Filho do Matador. Os Anões
tolos que não ajudaram o deus a destacar o céu da t erra da Terra são chamados o Ladrão Astuto, o Que Abocanha,
por serem mais preguiçosos ou ineficazes do que o n eces- o Que Entra Rapidamente em Discussões, o Que Ataca, o
sário. Depois que a divindade encontrou outros animais Que Sabe Disparar Flechas, o Que Está Sempre Pronto
para o ajudarem, os surdos-mudos e os tolos ou idiotas Para Discutir, o Esperto e o Violento, o Rápido, o Que

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Pensa Rápido, a Raposa, o De Cara Saudável, o Que Tem Todos esses significam súbitas invasões fugazes de
Idéias Rápidas, o Que Encontra Com Facilidade, e o Que impulsos do inconsciente, tanto de natureza emocional
Sempre Age no Calor do Momento. afetiva, como intelectual. Representam algo que se pode-
Há uma outra divisão chamada Produtores de Né- ria resumir em alemão no termo Einfall. Einfall é muito
voa, o Filho da Folha Morta, o Fogo. Vivem na Terra e difícil de traduzir para o inglês . É algo que cai sobre a
nas cavernas originais das montanhas. Um é o Ladrão sua cabeça: cai nela. Fali== cair, e ein == em; em-cair. Esse
das Montanhas e os outros são o Que Acha as Montanhas, é um termo maravilhoso para descrever algo que de re-
o Que Acha as Recompensas, o Que Recebe Elogios, o pente pipoca na consciência, salta do inconsciente como
Anterior, o Construtor, o Incinerador, o Que Pinta de um lampejo. Essas invasões ainda não são humanas, não
Marrom, o Que Esfria, o Que Esclarece, o Que Faz Baru- são a consciência humana, são os primeiros vislumbres
lhos de Queda, um outro que faz Barulhos de Pancada, o de algo que, ao se tornar d epois contínuo, chamamos de
Que Produz Faíscas, o Que Produz a Forja do Ferro, e consciência; são como luzes que piscam aqui e ali, mas
muitos outros. não são a lâmpada incandescente de luz contínua. São
Esses anões me parecem muito interessantes. O que pré-formas, as formas não-ainda da consciência humana.
são essas criaturas canhestras? O que são os gigantes? O Na Grécia, existe a mesma espécie de criação abor-
que são os anões? Serão tentativas mal-sucedidas de pro- tada da humanidade sob a forma dos titãs. Os titãs, os
duzir homens? Penso que os nomes desses anões são mui- seres mais antigos, foram criados pela Terra Mãe antes
to reveladores. Basicamente, representam impulsos úni- do homem. Eram inimigos dos deuses olímpicos e, de acordo
cos, impulsos conscientes ou semiconscientes únicos. Por com algumas versões mitológicas, foram queimados pelos
exemplo, o Que Tem Idéias Rápidas - ter idéias rápidas relâmpagos de Zeus; das cinzas dos titãs os seres huma-
quer dizer que quando algo lhe vem subitamente à men- nos foram criados depois. É por isso que'temos impulsos
te, você dá a resposta certa. Vocês sabem quantas vezes, titânicos em nosso íntimo, que fazem de nós uma espécie
quando alguém agride, vocês só ficam ali parados e ma- dúbia e revolucionária. Aqui, em contraste com os anões,
goados, e depois no meio da noite de repente pensam: os titãs lembram mais os gigantes da mitologia germâni-
"Eu devia ter dito isso! Teria sido muito espirituoso!" ca, os afetos emocionais avassaladores. É muito apropria-
Mas essa agilidade mental não lhe ocorreu quando você do que uns sejam pequenos e outros grandes, pois os afe-
quis. Muitos outros anões têm nomes de habilidades. Em tos tornam tudo enorme. Assim que a pessoa entra num
última análise, a invenção das artes manuais e da habi- afeto, tende a exagerar. Temos, por exemplo, o ditado
lidade para as mesmas depende de inspirações do incons- "tempestade em copo d'água", aplicado quando alguém faz
ciente. Outros têm os nomes das atitudes repentinas, im- um grande estardalhaço por causa de um detalhe sem
pulsivas, como Discutir Antes de Pensar - a atitude de importância. Bem, se alguém faz uma tempestade num
se atirar num bate-boca e depois pensar: "Oh, meu Deus, copo d'água, isso quer dizer que a pessoa foi atingida por
eu devia ter pensado antes de retrucar etc.". O Que Ata- esse copo, que fisgou um complexb pessoal e deixou à sol-
ca Rapidamente, e o Que Rouba Depressa, representam ta um afeto monumental. A capacidade que o afeto tem
não só quem agride logo, em resposta a um afeto, mas de amplificar tudo não é só uma qualidade negativa, é
aquele que vê algo e rapidamente embolsa o objeto, que também positiva, pois o afeto pode literalmente nos con-
pode também ser uma boa idéia, um impulso rápido e mo- ferir grandeza. Constatamos isso, por exemplo, no heroís-
mentâneo. mo que algumas pessoas demonstram em tempos de guerra.

244 245
Quando arrebatados por sentimento nacionalista ou pelo era necessário despejar na consciência. Isso demonstra
afeto do combate, os soldados às vezes realizam feitos como os gigantes não são apenas forças titânicas destru-
heróicos dos quais seriam incapazes em seu estado refle- tivas; podem ser muito construtivas.
xivo normal. É o afeto que os torna grandes. Por isso, te-
mos expressões como ódio sagrado, entre outras. Um ódio O sonho de Jung ilustra algo que se pode encontrar
sagrado é uma coisa e tanto! A Guerra Santa, declarar em inúmeras lendas medievais nas quais as mais belas
uma guerra santa, movido por um ódio sagrado, com um igrejas e catedrais, os mais lindos monumentos, foram
afeto sagrado! Outros grandes desempenhos criativos tam- construídos por gigantes; edifícios imensos que um santo
bém são muitas vezes realizados com a ajuda de afetos soubera convencê-los a erguer. Os santos não têm a força
monumentais. física necessária para empilhar as pedras que constróem
a catedral! Precisam de um gigante que os ajude. Assim,
Jung narra um sonho interessante que ele mesmo se o gigante for domado, se estiver sob controle, será en-
teve quando queria escrever Tipos Psicológicos. Ao longo tão um auxiliar de grande serventia em todo trabalho cria-
de muitos e muitos anos ele viera acumulando o material tivo. Se você conseguir que um gigante faça o trabalho
para o livro e aquilo já tinha formado muitas pilhas; che- por você, isso é maravilhoso! É só uma questão de tê-lo
gara então, o momento em que ele tinha de escrever o sob controle! Os gigantes e titãs - essas pré-formas de
livro. Como é que ele conseguiria reunir todo aquele ma- seres humanos - só são destrutivos na mitologia porque
terial e escrever sobre o que tinha a dizer a respeito dele? não estão sob controle, porque representam impulsos
Vocês sabem que esse é um dos passos mais difíceis do caóticos oriundos do inconsciente que ainda não estão con-
trabalho criativo. Ele queria escrever de forma racional, trolados pela forma civilizada e contínua de consciência,
refinada, para convencer os racionalistas do que tinha a representada talvez equivocadamente, mas simbolizada
dizer. Tentou e não deu muito certo. T eve então o seguin- mesmo assim, pelo homem.
te sonho: ele viu, num porto, um navio imenso carregado
de mercadorias que agora teriam de ser descarregadas. Já mencionei como os surdos-mudos, algumas nar-
Preso ao navio por uma corda estava um elegante cavalo rativas de Samoa e da Nova Zelândia, e os anões e gigan-
branco, absolutamente incapaz de puxar o navio que es- tes da mitologia alemã, assim como os titãs gregos de cujas
tava pesado demais! Nesse momento, surge da multidão, cinzas surgiu a humanidade deram ao homem sua quali-
de repente, um imenso gigante ruivo que empurrou todo dade titânica, origem de seus desejos e de seus impulsos
mundo para o lado, tomou um machado e matou o cavalo desgovernados. Nos mi tos indígen as norte-americanos,
branco, pegou a corda e, com ela, trouxe o navio até o por- existe uma idéia dual semelhante acerca da criação do
to. Depois disso, Jung acordava às três da manhã, todos homem.
os dias, e simplesmente escrevia tudo que sentia ser pre- Pela tradição bíblica, no Livro de Enoque, também
ciso registrar, num só impulso, mobilizado por um enor- se vê, quando há o confronto com os gigantes, que isso é o
me afeto de entusiasmo, como única possibilidade de reu- mesmo que lidar com a inflação. No Livro de Enoque está
nir todo aquele complicado material num conjunto só. dito que alguns anjos se apaixonaram por mulheres hu-
Aquilo precisava ser coligado a golpes de afeto! O cava- manas e tiveram relações sexuais com elas, do que decor-
lo branco estava relacionado ao seu plano de escrever reu que elas, mais tarde, deram à luz gigantes demonía-
um tratado formal e refinado, mas essa abordagem não cos que, aos poucos, destruíram o mundo. Esses gigantes,
era adequada para dar conta da torrente de material que contudo, também introduziram as artes e as ciências no

246 247
plano humano. Portanto, somos ~evados a compreender No mito de criação dos índios Joshua, havia dois cria-
que um desenvolvimento excessiv~1;1e~te acelera?º da dores, um que chamava Cholawasi e o outro, seu compa-
consciência, no homem, tem consequencias catastroficas. nheiro, que nessa versão não tem nome. Cholawasi e seu
Jung interpreta essa passagem do Livro de Enoqu~ em companheiro criaram o mundo juntos. Quando andaram
sua obra Resposta a Jó, classificando-a c?mo u~a mva- por ele, encontraram horrorizados os traços de um ser
são demasiado acelerada de conteúdos do mconsciente. O humano. Tentaram desesperadamente descobrir o que era,
inconsciente (anjos são mensageiros do além e, nessa mas não conseguiram. Então, Cholawasi tentou destruir
medida, representam o inconsciente) até certo ponto esses traços com cinco inundações. Exclamava, tomado
irrompeu depressa demais no mundo humano. ~orno r e: pelo terror: "Isso causará confusão" e , desde então, sem-
sultado, a expa;isão da consciência na hu~amdad~ f~i pre houve confusão no mundo. Cholawasi começou em
rápida demais. E somente quando_ ~m~ con~mua e criati- seguida a criar os animais. Ele também tentou formar
va ampliação do campo da consciencia vai acontece:1do homens, duas vezes, mas não teve sucesso. Então seu com-
aos poucos, dentro da tradição de uma c:ultura, que existe panheiro fumou durante três dias e, nesse tempo, apare-
a chance de ela não se mostrar destrutiva. ceu uma casa_e, dela, saiu uma linda mulher. O compa-
Hoje vivemos numa situação intensamente destruti- nheiro casou-se com essa mulher, que ele constelou fu-
va. Pode-se dizer que, com a enorme expansão de nossa cons- mando, e eles tiveram dezesseis filhos dos quais descen-
ciência e dos nossos conhecimentos (aquelas artes que os deram todas as diferentes tribos indígenas.
anjos apresentaram aos homens), por_exemplo nos campos Vemos aqui dois fracassos de criação e também uma
da física nuclear e da ciência e tecnologia em geral, que avan- sombra como companhia que, fumando em vez de criar
çaram numa velocidade espantosa? o resto da human~dade ativamente, constela indiretamente uma situação em que
não conseguiu acompanhar esse ritmo e houv~ uma mter-
o ser humano pôde começar a existir. Mas, ao mesmo tem-
rupção da continuidade. ~ão pudemos evolui: no mesm_o po, já havia em alguma parte um outro ser humano sobre
ritmo em termos da moralidade, nem com relaçao aos senti-
mentos nem no que se refere ao funcionamento mental. quem os dois deuses não conseguiram descobrir coisa al-
Certos ~ampos da ciência sofrem de delírio de grandeza; c~mo guma, e essa é causa de confusão.
por exemplo, quando lemos sobre pesquisas_ em que os cie~- Segundo a tradição dos esquimós, também há a idéia
tistas se vangloriam de que, em dez ou qumze anos, serao de um primeiro fracasso na criação dos seres humanos.
capazes de montar um ser humano segundo um catálogo Em um mito é relatado que a primeira terra que começou
escolhido, e coisas semelhantes. a existir não tinha mares ou montanhas, e era completa-
Quero agora retomar o motivo das criaturas abor- mente lisa. O Deus no alto não gostava dos seres huma-
tadas mudas pois elas representam um outro problema nos que estavam nela e, por isso, destruiu a terra. Ela
criativo. Desejo chamar a atenção de vocês para os seres explodiu e todos os seres humanos caíram na ravina e se
surdos e mudos que depois viraram peixes. E tamb~m tornaram os Ingnerssiut. Os Ingnerssiut eram os demô-
para aquele ponto do Popol Vuh, em que os deuses cria- nios malignos. A água cobriu tudo e, quando a terra reapa-
ram seres humanos que não podiam falar mas, como os receu, estava completamente coberta por gelo. Este desa-
deuses queriam ser louvado~, eles tentaram aind~ um_a pareceu lentamente, e depois dois seres humanos caíram
outra vez criar uma nova criatura humana e, entao, ti- do céu e povoaram a terra. Em toda parte, o gelo ainda
veram êxito. hoje está derretendo. Nessa narrativa, os primeiros seres

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humanos parecem ser um fracasso; não são bons e o mun- dição esquimó que o primeiro homem foi criado no céu,
do em que vivem não é bom, então a divindade destruiu mas resultou num tipo apressado, mal-humorado e impa-
todos e estes se tornaram demônios. Mais adiante, vocês ciente de criatura, que é descartada e se torna um demô-
verão que é uma idéia arquetípica muito freqüente a de nio, que serve de base para todos os demais que vieram a
que os primeiros seres humanos, os fracassos, tornaram- surgir depois.
se demônios ou poderes fantasmagóricos ocultos.
Em outra história bastante semelhante a essa - tam-
Há um mito indígena norte-americano no qual os bém esquimó - é dito que, no começo, não havia muita
seres humanos pareciam-se demais com o criador; eram diferença entre os seres humanos e os animais. Estes po-
grandes, pesados e só podiam se movimentar muito len- diam tornar-se humanos e vice-versa; os seres humanos
tamente. Assim, quando veio uma inundação, todos mor- andavam sobre as mãos, engatinhavam de quatro, e só
reram. Então tudo morreu, e a terra foi fisgada de novo, mais tarde foi que aprenderam a ficar em pé. Quer dizer,
depois disso então foi que Deus decidiu que iria criar se- a esse tipo de ser humano desajeitado é associado, de vez
res humanos novamente. Assim que estes estavam pron- em quando, o tema da proximidade com a vida animal,
tos, percebeu outra vez que eram parecidos demais com como se pode verificar por esse exemplo. Temos a mesma
ele e, portanto, muito poderosos. Ele ficou assustado e os coisa nos mitos dos incas. Exemplificando: diz uma histó-
destruiu a todos; depois, criou um homem que se parece ria que havia dois criadores. O primeiro era chamado Con
com o ser humano atual e disse: "Por que é que eu ainda e criava seres humanos normais, mas depois Pachacamac,
não me sinto à vontade com isso?" Então, criou uma mu- que também era filho do sol e cujo nome quer dizer cria-
lher e a colocou ao lado do homem; o homem disse: "Bom, dor, afugentou Cone transformou os seres humanos que
você sabia que eu ainda não me sentia satisfeito, que al- ele havia criado em gatos de focinho preto. Uma nota de
guma coisa estava faltando, mas agora podemos caminhar rodapé a esse relato diz que, em outras versões, ele os
juntos pela terra". transformou em macacos, e que depois criou os seres hu-
Também Adão, segundo certos Midrashim, era pesa- manos masculinos e femininos com a aparência que têm
do e desajeitado e não tinha em si pneuma para muito hoje, dando-lhes todas as coisas, sendo por isso que os
tempo e só era capaz de rastejar como uma minhoca. Aqui, seres humanos escolheram Pachacamac como seu Deus.
num contexto completamente diferente, temos o mesmo Aqui temos duas gerações, a primeira de um criador, Con,
motivo, segundo o qual as primeiras tentativas de cria- cujas criaturas tornaram-se ou macacos ou gatos de foci-
ção resultaram em algo canhestro, sem vida e _se~ espí!i- nho preto, e só depois entra em ação o segundo criador,
to. Vocês também haverão de se lembrar do primeiro mito que produz os seres humanos que existem hoje.
de criação que narrei, no qual Pai Corvo no Céu criou um A idéia arquetípica de que a criação de todos os se-
ser humano que se parecia um pouco com ele, mas que, res, especialmente os humanos, fracassou, sobrevive na
no mesmo instante, começou a cavar a terra com as pró- filosofia grega no sistema de Empédocles. Segundo o mes-
prias mãos. Completamente inquieto, ele cavou para todo mo, o primeiro ser foi o deus esférico Sphairos, cuja uni-
lado tomado por um acesso de veemência, e Pai Corvo dade é conservada pelo princípio Eros. Quando Eros preva-
não ~ostou dele e o lançou na goela do abismo. Essa cria- lece, o mundo é uma só unidade, mas quando predomina
tura, dizem, tornou-se Tornaq, o espírito mau. Dele origi- Neikos (que significa "disputa"), o mundo se fragmenta.
nam-se todos os maus espíritos. Também pertence à tra- Sempre há esses dois princípios adversários, N eikos e

250 251
Eros; este, lutando para reconstituir a unidade original e Isso também foi um grande fracasso, ou melhor, um
aquele, tentando desfazê-la. Então diz Empéd?cles, todos fracasso continuado, pois não foi uma criação. As vezes,
os membros de Deus rodopiaram a esmo e depois se encon- esses fracassos nos seres humanos ocorrem muito próxi-
traram como que por acaso, e por isso no começo havia mos dos animais, que são muito inferiores, desajeitados,
criações' completamente monstruosas.66 N o prmc1pio,
· , · os não conseguem falar, andam de quatro, e não são bons de
animais e as plantas não eram absolutamen!e completos, jeito nenhum. As vezes são exatamente o oposto, e são
só havia partes separadas. No segundo estágio, essas ~ar- excessivamente bons, e os deuses se sentem ameaçados,
tes se fundiram em formações muito monstruosas, e foi so- achando que aqueles são poderosos demais e devem ser
mente no terceiro estágio que determinados corpos come- um pouco diminuídos porque senão a rivalidade será
çaram a existir. Só depois d? q1;1arto é que ,se tornaram muito grande, tirando-lhes o sossego. Por exemplo, os titãs
formações realmente belas. Pnme1ramente, sairam d~ ~e~ra gregos desfecharam um ataque maciço contra os deuses
muitas cabeças sem pescoço, braços andavam_sohtanos olímpicos. A famosa titanomaquia t eve de ser derrotada
sem ombros para cá e para lá, e olhos vagavam sozinhos, sem por Zeus com seus raios e trovões e, desde então, subju-
testas (um panorama realmente esquizofrênico do mundo). gados e conquistados, os titãs vivem sob a terra mas ain-
Elementos azedos atraíam-se uns aos outros, e os elemen- da produzem terremotos e toda sorte de contratempos.
tos quentes vertiam-se sobre os quentes, e havia um caos Portanto, também a li esse primeiro fracasso da criação
terrível no qual eventos aleatórios foram acon~ecendo, até foi, em certo sentido, extremamente poderoso e por isso
que tudo começou a entrar em formações mais ou menos perigoso para a ordem divina; é o que os gregos chamam
razoáveis. de hybris, ou hubris, a presunção megalomaníaca.
Este é um apanhado superficial do_ m aterial, com _o Podemos verificar todos esses pré-estágios do proces-
intuito de dar uma idéia do que quero dizer com tentati- so criativo também no plano individual. As formações gi-
vas abortadas, canhestras, de criação. Como vocês podem gantescas e os titãs corresponderiam aos afetos e às exci-
ver não se referem tanto ao mundo cósmico, à terra e tações terríveis e, às vezes, também aos estados de ânimo
su;s plantas e árvores, m~s principalmente gira em tor- inflacionados em que a pessoa entra quando é constelado
no da criação do homem. E aqui que há t~ntos fra~assos, um progresso da consciência ou alguma coisa criativa.
como se a criação do homem fosse um capitulo ?ªr:icular- Freqüentemente passamos por esse estado quando temos
mente difícil para Deus, em seu trabalho de cn~çao, ~ ele uma boa idéia, um plano criativo; ficamos emocionalmente
tivesse tentado várias vezes antes de consegmr efetivar muito ocupados por esse conteúdo e nos deixamos arre-
de forma aproximada o que tinha em mente. Há tamb~m a batar por um entusiasmo enorme, que nos leva a super-
noção relativamente difundida de que ess~s tentativas valorizá-lo. Em geral, a pessoa também se supervaloriza
abortadas não foram destruídas, mas sobreviveram, como e fica inflacionada, e depois, quando arregaça as mangas
animais ou gatos de focinho preto e macacos, o_u c,omo de- para iniciar o laborioso esforço de concretizar os próprios
mônios do mesmo tipo, como nas versões esqmmo e tam- impulsos criativos, obtém um r esultado muito mais me-
bém na mitologia grega, em que os titãs e os anões são díocre em comparação com a visão interior original. É por
poderes demoníacos que ainda sobrevivem ao lado de se- isso que podemos dizer que toda criação é um empobreci-
res humanos criados posteriormente. mento e um fracasso, comparada com a glória e o fascínio
da primeira intuição. Quando conversamos com artistas,
66 Wilhelm Capelle, Die Vorsokratiker (Leipzig: Krêiner, 1935), p. 189.
muito raramente eles estão satisfeitos com o que produ-

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zem; na melhor das hipóteses, dizem que agora podem Junto com o élan vital da criatividade surge natu-
deixar um pouco de lado o pincel ou a caneta, achando ralmente, muitas vezes, a hybris grega, no sentido titânico
que o que fizeram está mais ou menos aceitável, mas essa desse termo: a supervalorização do próprio poder e a ati-
é a máxima satisfação que em geral eles sentem. Costu- tude megalomaníaca e inflacionada. Numa escala menor,
ma persistir um tipo de tristeza insistente, porque, ao é inevitável e até mesmo necessário ter esse tipo de esta-
comparar com a visão interior, a realização é sempre me- do de ânimo porque, caso contrário, a pessoa não conse-
nos gloriosa. Mesmo que você tente por exemplo pintar, guiria realizar o esforço extra de criar alguma coisa; é
numa escala até muito modesta e simples, o que você viu preciso que ela se deixe levar pelo entusiasmo de um gran-
num sonho, o resultado desse esforço é péssimo no papel de objetivo, senão poderia desistir e preferir em vez disso
diante do que você viu dentro de si. levar uma vida apenas confortável. Nunca devemos es-
quecer que a maior paixão do homem, maior que qual-
As pessoas em estágio pré-criativo costumam estar quer outra, é provavelmente a preguiça e que, para supe-
inflacionadas; são idênticas à sua concepção interior e re- rar essa paixão pela preguiça, é preciso de muita energia,
pleta dessa glória e dessa beleza com toda a carga de ener- caracterizada pelas formas do gigante e do titã.
gia que contém. Mas, em geral, quando o trabalho está con- As figuras dos anões têm mais a ver com pequenos e
cluído, em vez de se sentirem felizes, elas ficam deflacio- débeis impulsos de caráter mais lúdico e até mesmo en-
nadas e tristes. Muitas vezes as mulheres choram depois graçado ou vulgar. A maioria das pessoas criativas, como
do parto, como se estivessem infelizes com a criança que vocês provavelmente já sabem, têm a tendência de brin-
deram à luz. Dá-se o mesmo fenômeno com algum nasci- car. Mesmo nas horas de ócio, elas surgem com pequenas
mento espiritual. A pessoa chora, mobilizada por uma idéias engraçadas e toda espécie de brincadeiras e graças.
mescla de exaustão e deflação. Essa reação também tem a
ver com a tremenda carga energética com a qual o impulso Os nomes desses anões alemães indicam o que são:
criativo a havia preenchido. Esse é um motivo pelo qual Rápida Idéia Espirituosa para Fazer Alguma Coisa, por
algumas pessoas nunca se dedicam concretamente a fazer exemplo. Geralmente as palavras estão ligadas a uma
algo criativo, especialmente os homens do tipo puer aeter- reação repentina, como aquelas pequenas idéias geniais
que temos às vezes e que dependem completamente do
nus e as mulheres puellae aeternae. Essas pessoas nunca
inconsciente. Por exemplo, alguém lhe faz um convite que
realizam coisas criativas porque sentem, vagamente, ou
você não tem vontade de aceitar. Você depende completa-
intuitivamente prevêem que, se produzirem aquilo que têm mente do inconsciente para oferecer uma boa desculpa,
em mente, o resultado estará muito aquém do que o que para mentir do melhor jeito possível. Às vezes nos senti-
conceberam no plano interno. Elas não querem passar pelo mos extremamente orgulhosos porque demos a resposta
processo da deflação criativa, preferindo permanecer a vida certa! E dizemos: "Não foi ótimo? Aquilo me veio sem mais
toda na condição de quase artistas, quase gênios, viven- nem menos! " E você se safa da encrenca toda! Em outro
ciando-se numa escala muito mais grandiosa do que aque- momento você enrubesce e diz "sim" e "não" e, na outra
les que produzem coisas simples e numa escala muito mais ponta do fio do telefone, a pessoa sabe que você está men-
humilde. Poderiam dizer os biógrafos dessas pessoas: "Até tindo - o inconsciente simplesmente não quer lhe pres-
os quarenta, não houve sintomas de genialidade - mais tar ajuda com uma boa idéia! Ou alguém agride você e
tarde também não". você quer devolver o troco com presença de espírito e sim-

254 255
plesmente não lhe ocorre absolutamente o que dizer; você _Isso é mais ou menos o anão. A pessoa que tem esses
se comporta de forma desajeitada e depois, no meio da palpites levará uma vida muito mais confortável e em ge-
madrugada, acorda e sabe o que deveria ter dito! Se você ~al se poupará de muito trabalho e dor de cabeça - que é
consegue dar o troco no momento certo, isso é o anão - Justamente o motivo pelo qual inventamos as coisas!
aquele tipo de Einfall súbito que vem do inconsciente e Muitas histórias dizem que os anões fazem o traba-
que, de forma jocosa, simplesmente lhe ocorre prontamen- lho por nós. Alguém que tem um bom relacionamento com
te, no momento certo, e é claro que você deve ser rápido os anões, ou Heinzelmannchen, ou fadas, só tem de colo-
para falar aquilo, senão se perde de novo. c~r a vasilha de leite à porta, todas as noites, ou algo do
Os anões são tudo o que tem a ver com uma boa idéia, genero, que os anões farão o trabalho por ele. Isso é lite-
numa escala menor. Se você visita uma fazenda no inte- ralmente verdadeiro, pois esses pequenos expedientes po-
rior, percebe uma série de pequenas providências muito dem poupar-lhe de uma imensa quantidade de aborreci-
engenhosas: como o sujeito tira sua eletricidade e a leva mentos e mão-de-obra.
até os estábulos, como impede que a água invada espaços A grande dificuldade com os anões, ou seja, comes-
indevidos etc. Os fazendeiros e a maioria das pessoas sim- sas boas idéias e impulsos do inconsciente, é que são pe-
ples não contam com especialistas que os ajudem com suas quenos, e, portanto facilmente ignorados. Se você se ob-
dificuldades práticas, aquelas que a natureza sempre está serva:, e se esl?ecialmente for uma pessoa racional, per-
propondo e por isso inventam suas próprias soluções, que cebe:ª que mmtas vezes tem uma boa idéia, mas pensa
aliás funcionam muito bem. Eles podem estar preocu pa- qu~ e bobagem e segue em frente com o plano racional; só
dos com a umidade nos estábulos, ou com alguma outra mais tarde é que irá descobrir que aquela teria sido uma
coisa, e então, um belo dia, têm uma boa idéia sobre o que boa idéia, e que, lamentavelmente, você a deixou de lado
pode ser feito, e geralmente por si mesmos, porque de ou a desconsiderou. Você a reprimiu e não a acatou amo-
outra maneira seria caro demais. Naturalmente, há pes- ro~a?1ente, e agora fica se remoendo, lembrando que teve
soas mais e menos talentosas quanto a isso. Por exemplo, a ideia e que não a colocou em prática. O anão deu-lhe a
perto da minha casa de férias tenho um vizinho que é boa idéi_a mas, po~rque era pequena e não insistiu para
simplesmente fantástico a esse respeito, e que sempre tem ser realizada, voce não a acolheu. Isso aborrece tremen-
a idéia certa; por isso, todos do local dizem para pergun- damente os anões . Se alguém tem por hábito não aceitar
tar ao Fulano o que fazer. E le é um intuitivo extroverti- as sugestões dos anões, acaba se enfiando em maus len-
do, e sempre que alguém fica em apuros é só chamar por ~óis. Eles são como vozinhas, pequenas idéias fugazes, ou
1ma~ens que ocorrem, e em geral a tendência maior da pes-
ele que ele aparece com o seu barrigão e seus olhos in- soa e achar que não são importantes. Em acentuado con-
quietos, parecendo que fareja o ar e depois diz: "Oh, você traste com a imensa carga emocional dos gigantes e titãs,
podia fazer isto!" Geralmente é uma idéia muito boa. Sei os anões são muito discretos e é preciso um certo treino
que todos os outros habitantes do local pensam o mesmo par~ não deixar escapar essas idéias. Como vocês sabem,
e recorrem a ele se precisam de uma boa idéia para con- assim como a maioria dos fantasmas os anões costumam
seguir que a água flua para algum lugar ou para instalar usar chapéus ?e tipo pontudo. Até mesmo hoje em dia, em
uma torneira, e assim por diante. As idéias proveitosas, algumas publicações, os fantasmas são apresentados em
necessariamente, não precisam ocorrer em grande esca- lençóis pontudos na cabeça. O chapéu pontudo provavel-
la, elas podem ser apenas pequenas soluções práticas para mente t em ligação com o fato de eles representarem im-
um problema. pulsos inconscientes dotados de uma certa carga dinâmi-

256 257
ca própria que aponta para ou se encaminha até a cons- inteiramente caótico e ilegível, a tal ponto de alguém só
ciência. É como uma planta quando sai da terra: o broto é conseguir achar um caminho depois de muitos e muitos
pontudo para furar a superfície da terra e rasgar cami- 11nos. Ele jamais explica seus termos e empregará ames-
nhos até o ar. Assim, esses chapéus pontudos se referem ma palavra, às vezes com um sentido, às vezes com outro.
em geral a conteúdos do inconsciente que não têm de ser (,; preciso decifrar um caminho em meio a esse trabalho
escavados mas que têm uma força própria: eles apontam l'nzendo comparações, sinopses, releituras sucessivas,
literalmente para o limiar da consciência. Assim que uma para depois, lentamente atingir as idéias interessantes e
criatura inconsciente surge com um chapéu desses, um importantes que ele tentou produzir.
píleo, você pode ficar certo d_e não precisar se_ e~forçar Uma vez testemunhei essa dramática necessidade de
muito: apenas ouça com humildade, e ela lhe dira o que uxpressão na análise de uma mulher pertencente a uma
quer, porque por sua própria energia está rumando para ramada muito simples da população. Não tinha quase
a consciência. t•scolaridade, tendo freqüentado apenas uns poucos anos
Os brutos surdos-mudos e aquelas criaturas pesadas da escola primária. Fora tomada por uma avalanche de
que rastejam sem rumo, de alguma forma, estão mais pró- conteúdos inconscientes, basicamente de teor religioso,
ximos dos gigantes. Têm a ver com o momento em que se visões tremendas, e que a princípio tentou falar disso para
tem uma idéia e uma espécie de emoção confusa por den- mim, porém, desistiu , e depois teve um surto psicótico,
tro, e não se sabe como expressá-la. Você quer dizer uma que só durou poucos dias, mas nesse período ela teve um
coisa mas não consegue pô-la para fora: não sabe como :.;onho no qual índios norte-americanos eram expostos em
formulá-la. Digamos que você está fazendo um curso e praça pública: eles haviam tido uma visão de uma roda
que o professor faz uma pergunta. Dentro de você alguma dourada que os havia deixado mudos. Uma voz dizia que,
coisa se movimenta parecida com uma resposta mas não :.;e não aprendessem a falar e não aprendessem a superar
lhe é possível traduzir isso em palavras: você sente a coi- :.;cu mutismo, seriam arrastados para toda parte, em lo-
sa no seu plexo solar mas não consegue fazer com que cais públicos, e expostos a todos. Mais tarde, ela associou
isso saia, pois não adquire uma forma pictórica ou racio- t•sse sonho ao fato de que, no hospício em que tinha sido
nal suficiente para permitir-lhe esse movimento. Há pes- internada, era levada para exibição diante de todos os
soas mais talentosas a esse respeito do que outras, e é médicos e alunos, o que detestava profundamente. Ob-
uma tragédia que o ser humano fique repleto de visões :.;crvem, portanto, ela sabia que se ela, ou seu lado pri-
e descobertas inconscientes tremendas, ~rrebatadoras, e mitivo, não conseguisse encontrar uma forma d e se ex-
sofra de uma relativa incapacidade para formular esses pressar, seria exibida em toda parte como um caso clás-
conteúdos. Isso pode chegar inclusive a causar um surto Hico de esquizofrenia: seria mostrada aos alunos nas clí-
esquizofrênico. nicas e exposta a todos os tratamentos clínicos se aque-
Um caso limítrofe dessa espécie é, por exemplo, o les índios (que representam um animus primitivo, trans-
famoso místico alemão Jakob Boehme. Ele foi arrebatado missor das camadas mais profundas do inconsciente) não
por uma visão em que enxergou a divindade e todas as nchassem uma forma de se expressar. Ela então come-
conexões do mundo, o sistema inteiro, mas, como pobre ~:ou a anotar suas visões e a trabalhar nesses textos; em
sapateiro e filho de camponeses, não tinh_a qualquer refe- pouco tempo, tornou-se razoável e normal e teve alta,
rência histórica em seu campo de conhecimento e em sua Haindo da clínica.
memória e prática zero quanto a formular pensamentos. Jung chegou inclusive a dizer que se podem curar
Foi por i~so que vomitou o que tinha a dizer num alemão osquizofrênicos na mesma medida em que se consegue

258 259
ajudá-los a formatar algum meio de expressão para seu distinguir uma fantasia inteligente de uma estúpi-
mundo interno. É por esse motivo que em praticamente da. Um bom critério de julgamento é sua originali-
todas as clínicas atualmente os pacientes têm a oportuni- dade, consistência, intensidade e sutileza de estrutu-
dade de pintar, fazer música, ter acesso a outros meios de
ra como fantasia, bem como sua possibilidade laten-
expressão. Portanto, um progresso substancial foi feito a
tal respeito e, na minha opinião, com um pouco mais de te de realizaçã?. Deve-se também considerar até que
compreensão, pode-se - quando não curar - ao menos ponto a fantasia se estende na vida real da criança,
melhorar significativamente a condição do paciente. por exemplo na forma de hobbies que ela cultiva sis-
temati_camente, e outros interesses. Uma outra impor-
Segundo Jung, pode-se distinguir entre uma fanta-
tante indicação é o grau e a qualidade de seus inte-
sia "estúpida" e uma fantasia criativa, primeiro por sua
resses em geral. 67
sutileza e depois por sua consistência, ou seja, se é coe-
rente ou revela falhas em sua estrutura; finalmente, por
sua continuidade histórica. Por trás de toda inovação cria- • Co_m ~ase ne_sses quatro fatores - originalidade, con-
A

tiva, sempre existe um arquétipo muito arcaico, que pri- s1s tencia, mtens1dade e sutileza - , percebemos a dife-
meiro precisa ter sua forma modernizada. r:nça :nt_re alguém com fantasias criativas e alguém que
Dar forma ou molde ao que surge do inconsciente é de so esta fiando a própria fabulação neurótica absurda.
importância vital. Quero lembrá-los do que Jung diz acerca Poder-se-ia dizer que a continuidade da devoção que a
da educação em O desenvolvimento da personalidade. No pessoa é capaz_de doar à sua fantasia é muito importante
capítulo intitulado "A criança dotada", ele narra que a crian- e comp_rova ~ d1_ferença entre alguém que tem talento para
ça dotada desde bem cedo na infância é geralmente captu- f~nt~sias cnat1vas e alguém aprisionado por um mate-
rada pelas malhas de suas fantasias interiores; muitas ve- rial mconsciente e estéril.
zes, ela finge ou parece externamente que é muito boba, . Essa diferença tem sido assinalada por muitos cien-
idiota e distraída. Mas ela age assim com a intenção de pro- tistas que escreveram sobre o problema do impulso criati-
teger suas fantasias de influências externas, a fim de se vo. Por exemplo, o matemático francês Poincaré diz que
tornar apta a levá-las adiante. E depois Jung comenta:
algumas fórmulas matemáticas altamente complexas lhe
Sem dúvida, a mera existência de fantasias intensas foram reveladas pelo inconsciente. Mas, acrescenta que
ou interesses peculiares não é prova de dons espe- se ele não houvesse trabalhado durante tantos meses a fi~
ciais, uma vez que a mesma predominância de fanta- até o ponto do esgotamento, e se não estivesse inteirado
sias sem propósito e de interesses anormais também antes do que poderia conscientemente ser conhecido sobre
pode ser encontrada na história pregressa de neuró- matemática, não poderia ter aproveitado a inspiração.
ticos e psicóticos. É pn~ciso uma espécie de trabalho preparatório dedi-
cado, realizado no plano da consciência, que funcione como
Se a criança está muito perdida, suas fantasias po- uma :ede capaz de pescar os peixes que vão subir do in-
dem muito bem ser o prenúncio de uma futura neurose
consciente_, Não podemos simplesme~te sentar e esperar
ou psicose. Jung prossegue:
que Deus Jogue tudo em nosso colo. As vezes ele faz isso
'
O que porém revela o talento é a natureza dessas fan-
tasias. Para tanto, é preciso que sejamos capazes de 67
C. G. Jung, Collected Works, vol. 17, par. 237.

260 261
mas é raro. A importância está na força da consciência, na m im aquilo não era nada! Achava que num piscar de olhos
devoção e na continuidade dessa devoção, que transforma teria feito tudo. Mas aquela menina conseguia ficar cinco
macacos, gatos, gigantes e anões em algo humano. h oras em cima das palavras e não gostar nem um pouco
Os anões só são negativos, mitologicamente falando, dessas cinco horas. Pegava o livro, lia a primeira sentença,
se forem desrespeitados ou feridos; pois se você só os abor- repetia e depois dizia: "O que será que Tom está fazen-
rece, eles nada fazem de mal, apenas desaparecem e não do?" Era o irmão dela. Olhava pela janela. Eu a chamava
ajudam mais. Por exemplo, digamos que as fadas sempre de volta para a tarefa, ela começava de novo, depois er-
terminam a malha que uma mulher está tricotando, ou guia os olhos e dizia: "A propósito ... ", e eu emendava: "Não,
que os estábulos de um lavrador estão protegidos e seu a propósito não, continue!" Assim, a coisa durava cinco
feno sempre é colhido do dia para a noite. Se ele parar de horas. Ela era uma menina altamente inteligente; sim-
fazer o que os anões esperam dele, ou não lhes der mais plesmente não conseguia se concentrar. Levava uma boa
leite, ou se pedirem ao lavrador um favor que não for aten- vida com vários irmãos e era muito mimada. Era quase
dido, então desaparecem e não o ajudam mais, e com isso preciso chegar a matá-la para conseguir que ela fizesse
ele perde valiosos espíritos prestativos. Às vezes eles se seu trabalho! Esses são os impulsos infantis desviantes.
vingam, se você realmente os desrespeitou, pois então Naturalmente podem tornar-se destrutivos se dist raem a
acontece uma inundação, ou todas as vacas ficam doen- pessoa e a impedem de alcançar seu principal objetivo.
tes, e coisas do gênero. Mas, em geral, eles têm bom tem- Ora, isso é típico de jovens; não conseguem afugentares-
peramento e é preciso realmente que aconteça muita coi- ses impulsos da mesma forma que uma consciência adul-
sa ruim para que os anões se tornem negativos, em con- ta consegue. Se estou concentrada fazendo alguma coisa,
traste com os gigantes que precisam de muita coisa para então simplesmente elimino esses impulsos. Mas t ambém
serem acalmados a fim de se conseguir que se comportem tenho de me treinar para ouvir um pouco, pois no meio
minimamente com decência. deles de vez em quando t em um bom anão! Portanto, po-
Se a postura da igreja é que anões são maluquice demos dizer que em geral, quando anões, poltergeists e
pura e superstição, e não deveriam existir, isso natural- congêneres distraem muito uma pessoa, trata-se de uma
mente os magoa tremendamente. Eu disse que só 85% consciência que ainda não é capaz de se concentrar, é
dos anões são positivos. Sem dúvida há os maldosos e puerilidade. Tem a ver com o aspecto destrutivo do infan-
negativos, não porque foram importunados, mas porque tilismo, com uma atitude e uma visão infantil de mundo,
gostam de pregar peças. Raramente são destrutivos mas com um Eu fraco.
adoram fazer diabruras. Penso que representam impul- O caso de Schreber foi um grande estudo a esse res-
sos infantis dissociativos, desprovidos de caráter criati- peito. Ele era um esquizofrênico capaz de escrever sobre
vo, ou seja, aquilo que o professor da escola primária tem suas próprias vivências na forma de uma autobiografia, e
de combater o tempo todo. afirmava que sempre que queria fazer uma coisa útil ou
Enquanto estudava, eu me sustentava com aulas criativa, as vozes dos espíritos lhe sopravam ao ouvido:
particulares, ensinando as crianças que não conseguiam "Nós já escrevemos isso!" Elas tornavam-lhe absolutamen-
acompanhar o latim na escola. Certa vez tive uma aluna te impossível escrever.
cujos pais me convidaram a passar as férias com eles, com Temos de distinguir as coisas no que sobe do incons-
a condição de que eu fizesse sua filha aprender uma pági- ciente: se contém um impulso destrutivo ou construtivo,
na com palavras em latim todas as manhãs. Ora, para se é uma fantasia inteligente ou algo que distrai a aten-

262 263
ção e tem efeito desviante, se é um conteúdo pueril. Isso é Capítulo 11
um processo de discriminação e precisa passar pelo crivo
de uma função sentimento diferenciada. ENCADEAMENTOS
Uma coisa intermediária entre ser surdo e mudo e
desajeitado é gaguejar, mas não estou dizendo que essa é a
única razão psicogênica para a gagueira. No caso de crian-
ças e jovens, costuma muitas vezes estar associada a emo-
ções terríveis que foram se acumulando e eles não as pu-
deram expressar. Gaguejar ainda é um grande problema
para muitos adultos mas, freqüentemente, na época da
puberdade ou um pouco mais tarde está superado e, em
geral, porque a pessoa aprendeu a se expressar de uma
maneira mais compatível com suas próprias necessidades,
Neste capítulo gostaria de tratar do tema dos longos
e quando a sua vida emocional se tornou mais fluente.
encadeamentos de: a) gerações; b) partículas; e c) núme-
Conheci dois sujeitos que gaguejavam, na escola, e que ros. Pode parecer estranho, mas encon traremos pontos
pararam de gaguejar assim que escolheram sua profissão. comuns de analogia entre os três elementos.
Quando começaram a trabalhar na profissão que cada qual
sempre sonhara em seguir, a gagueira desapareceu. Vi Primeiro, o longo encadeamento das gerações nos
outras pessoas que pararam de gaguejar quando viveram mitos de criação. Podem ser gerações de deuses, poderes
sua primeira experiência amorosa positiva. Isso significa mundiais, seres ancestrais. Já citei um pouco de mate-
que quando algum fluxo da vida é liberado, depois de ter rial da Nova Zelândia e outros mitos de criação em que
ficado retido, a gagueira ao mesmo tempo desaparece ou é há longas listas de nomes ou números antes que alguma
superada. Devemos sempre pesquisar para ver se não há coisa comece a existir. No texto a seguir, não estarei in-
algum problema emocional contido em alguma parte, pois t erpretando os diferentes passos, mas quero transmitir
isso oferece uma solução mais direta do que realizar inter- uma impressão dessa espécie de cosmogonia. Trata-se
mináveis exercícios fonéticos . Esses também são úteis, mas de uma narrativa de Samoa.
o problema principal, às vezes, é uma emoção retida. Os
gagos, poderíamos dizer, têm um nó emocional por dentro; O deus Tangaloa vivia nos espaços distantes. Ele
o sobe-desce contínuo desse complexo emocional autôno- criou todas as coisas. Estava sozinho, e não havia céu
mo faz com que gaguejem. Esse complexo contém algo nem terra. Ele estava sozinho e vagava pelo espaço.
impronunciável que ainda não encontrou a maneira de se Não havia mar nem terra, mas onde ele ficava havia
expressar, por isso se manifesta como uma inibição da fala. uma rocha: Tangaloa-faa-tutupu-nuu. Todas as coi-
É o mesmo processo que afeta as pessoas e as impede de sas são criadas a partir dessa rocha, mas todas as
coisas ainda não tinham sido criadas. O céu, tam-
falar quando ficam emocionalmente abaladas.
bém, ainda não tinha sido criado, mas a rocha apa-
receu onde o deus ficava.

264 265
Então, Tangaloa disse para a rocha: Abra-te ao meio. Hanua ka po - nascido na noite.
Dela saíram Papa-tao-to e Papa-soso-lo; depois, Papa- Da noite nasceu Kumulipo [o abismo} como uma coi-
lau-a-au, depois Papa-ano-ano, depois Papa-~le, de- sa masculina.
pois Papa-tu e depois Papa amu-amu e seus filhos. Da noite nasceu Poele [a escuridão} como uma coisa
E Tangaloa ali ficou e olhou para o oeste e falou com feminina.
a rocha: e bateu na rocha com a sua mão direita e ela Nasceram as minhocas em montes rastejantes.
se partiu novamente e de dentro dela saíram os pais Nasceram os micuins, pequenos vermes que revolvem
de todas as nações da terra, e também veio o mar. E o a terra.
mar cobriu Papa-soso-lo, e Papa-tao-to disse para Nasceram os que revolvem na sujeira, em fileiras
Papa-soso-lo: Você é abençoado porque possui o mar...
movimentadas.
Então Tangaloa se virou para a direita e a água bro- Nasceram os ovos no mar sem-número, nasceram seus
tou. E novamente Tangaloa falou com a rocha e o céu filhos listados.
foi criado. Ele falou de novo com a r_oc~a- e ~ui-te~-
langi apareceu. E então veio Ilu, que significa imensi- Nasceram Hawae, o ovo branco do mar, e Wana [uma
dão, e Mamao, que significa espaço, vieram ao mesmo espécie de ovo do mar do tamanho e do formato de
tempo, em forma feminina. E depois apareceu Niuao. um nabo} com seus filhos Keiki e Haukeuke [um pe-
Tangaloa então falou de novo com a rocha e Luao, queno animal marinho} e Pioeoe [uma espécie de me-
um menino, apareceu. Tangaloa falou de novo com a xilhão ou de pequeno marisco}, então veio Pipi [os
rocha e Lua-vai, uma menina, veio para fora. Tan- espirulídeos}, Papua [ostras}, e Olepe [ainda outro
galoa colocou esses dois na ilha de Saa-tua-langi. tipo de caramujo} etc.
E mais uma vez Tangaloa falou e Da-vali, um meni- E os machos inchados com o poder criativo e as fê-
no, nasceu, e depois Ngao.-ngao-le-tei, uma menina. meas aptas a conceber.
Então o h omem apareceu e depois veio o espírito Nasceram todas as plantas do mar.
(Anga-nga), depois o coração (loto), depois a vontade
Nasceram todas as algas do mar, e assim por diante.
(fingalo) e finalmente o pensamento (masalo). 68
Essas são as canções sagradas, sempre repetidas da
E esse foi o final da criação de Tangaloa. Essas lis-
mesma maneira. O sacerdote que canta conhece essa lon-
tas surgem em muitas outras cosmogonias da Poli~~sia e
ga série de animais de cor e seria um grande pecado ou
Nova Zelândia. Há listas imensas de poderes, d1vmda-
blasfêmia omitir uma só linha . Essa é toda a série de ge-
des, poderes primordiais, que aparecem nesses encadea-
rações sagradas que começaram a existir antes que o
mentos de nomes. mundo fosse criado, no início da criação. Só ao final dessa
A seguir, um excerto de uma cosmogonia hav_aian~. série imensamente longa é que o ser humano foi criado, e
Primeiro, há uma canção introdutória que não vou mclmr daí em diante a canção prossegue com uma outra lista
aqui, e a seguir vem Po wale ho-i, que significa "noite igualmente longa dos grandes ancestrais dos reis e com
quieta reina por toda parte". as grandes famílias da nobreza do Havaí.
Existe o mesmo padrão arquetípico nos mitos de cria-
68 Grey, Polynesian Mythology. ção dos japoneses. Refiro-me à publicação de Post Wheeler,

266 267
autor consciencioso e diplomata do livro The Sacred Ora, enquanto o solo da Jovem Terra que fez os terri-
Scriptures ofthe Japanese. Recomendo essa obra por sua tórios boiava a esmo como óleo flutuante, como uma
excelência. Trata-se de uma narrativa em que todas as água-viva brincando na superfície da água, ou como
várias lendas japonesas são coordenadas e em que existe uma nuvem boiando sobre o mar sem nenhuma raiz
uma lista das divindades que aparecem. Não vou inter- ou vínculo, uma coisa clara e brilhante como cristal
pretar a essência. Incluo-o apenas para oferecer uma brotou como chifre, como um broto de bambu que aca-
idéia dele. ba de espetar a lama. Esta se transformou no Kami
da forma humana, e apareceram dois outros Kami dos
Nos tempos antigos, o Céu e a Terra ainda não ti- brotos desse ramo de bambu, chamados Agradável-
nham sido afastados um do outro, e nem os princí- Príncipe-Ancião-do-Broto-de-Bambu e Eterno-em-
pios feminino e masculino tinham sido separados. Era Pé-no-Céu. [Dizem alguns que o último precedeu o
tudo uma massa, sem forma e parecida com um ovo, primeiro. Outros também consideram o Mestre-do-
cuja extensão é desconhecida, e que continha o prin- Céu -Intermediário e o A g radável-Príncipe-Ancião-
cípio da vida. Dessa massa uma essência tênue mais do-Broto-de -Bambu como Companheiros-Nascidos-
pura que ascendeu gradualmente formou mais tarde Kami.J Também esses nasceram sem progenitores e
o Céu, e a porção mais pesada afundou e se tornou a mais tarde ocultaram seus corpos. Os Três-Criado-
Terra. O elemento mais leve se fundiu rapidamente, res-Kami e esses dois são chamados Kami-do-Céu.
mas o mais pesado foi unido com dificuldade. Assim, O Agradável-Príncipe-Ancião-Broto-de-Bambu foi
o Céu foi formado antes e a Terra depois, e em segui- um homem divino.
da Kami foram produzidos no espaço entre os dois Depois vieram as Sete Gerações do Céu.
[Kami são os seres divinos].
Em seguida apareceram, espontaneamente, por meio
Quando o Céu e a Terra começaram, havia uma coi- da ação do Princípio do Céu, os seguintes Compa-
sa bem no meio do vazio cujo formato não pode ser nheiros-Kami masculinos, que mais tarde esconde-
descrito. No começo, apareceu uma coisa semelhante ram seus corpos: Eterno-em-Pé-na-Terra, Solo-da-
a uma nuvem branca, e essa flutuou entre o Céu e a Terra, e Charneca-Prolífica-em-Formas.
Terra; dela começaram a existir três Kami que fica-
Eterno-em-Pé-na-Terra e Charneca-Prolífica-em-For-
ram no Alto Planalto do Céu. Esses três Kami, que
mas eram Companheiros-Nascidos-Kami. Desses úl-
apareceram antes de tudo, nasceram sem progenito-
timos foi produzido o Kami Descido-do-Oitavo -Céu.
res e posteriormente ocultaram seus corpos. Eram
Mestre-do-Céu-Intermediário, Alto-Produtor e Divi-
Depois desses, apareceram os seguintes pares de
no-Produtor. Depois, o Alto-Produtor produziu o Kami:
Kami Divino-em-Pé-no-Céu.
Senhor-Lama-Terra Senhora-Lama-Terra
Esses Kami, de acordo com as notas de rodapé, tam-
bém são ancestrais de certas famílias nobres no Japão. Germe-Integrador Vida-! ntegradora
Por exemplo, o Divino-em-Pé-no-Céu é o ancestral dos Ancião-Grande-Lugar Anciã-Grande-Lugar
governadores de Kuga, em Yamashiro. Assim, vocês po- Face-Perfeita Senhora-Medonha
dem ver que eles são deuses e ancestrais de certos clãs. Aquele-Que-Convida Aquela-Que-Convida

268 269
Quanto a esses cinco pares, dizem alguns que Ger- Um certo tempo depois, enquanto Aquele-Que-Convi-
me-Integrador e Vida-Integradora precederam Senhor- da dormia, sua ponte caiu e hoje é o grande cabo ro-
Lama-Terra e Senhora-Lama-Terra. Outros ainda dizem choso a noroeste da cidade de Guke, em Yosa, na Pro-
que Aquele-Que-Convida foi produzido mais tarde, pelo víncia Tango. Sua parte superior foi chamada de
Kami Espuma-Calma. Praia Assombrosa ... 69

Senhor-Lama-Terra e Senhora-Lama-Terra, sua irmã Então produziram um Deus chamado Sanguessuga


mais jovem (esposa), produziram juntos o Kami Céu- e um deus chamado Ave-Rocha-Cânfora-Árvore-Bote, e
Encontro. esses criaram todas as várias ilhas, dentre as quais a
Germe-Integrador e Vida-Intergradora, sua irmã Ilha-Minha-Vergonha, a Ilha-Duplo-Nome, e assim por
mais jovem (esposa), produziram juntos o Kami Des- diante, infinitamente. Essas listas aparecem praticamen-
cido-do-Terceiro-Céu. te no livro inteiro, e configuram uma descida muitíssi-
Ancião-Grande-Lugar e Anciã-Grande-Lugar, sua mo lenta das deidades mais celestiais que se tornam dei-
irmã mais jovem (esposa), produziram juntos o Kami dades ancestrais, deidades geográficas das várias ilhas
Céu-Oitocentos-Dias. espalhadas do império japonês e, finalmente, se trans-
formam em seres humanos. É uma linha de descida muito
Face-Perfeita e Senhora-Medonha, sua irmã mais
jovem (esposa), produziram juntos o Kami Jóia-Oi- longa .
tenta-Miríades-do-Céu. No início há o Caos, depois a separação de céu e ter-
Os dois Kami Nascidos-Companheiros e as cinco ge- ra, o aparecimento das deidades primordiais, o surgimento
rações de pares de Kami são chamados Sete-Gerações- das deidades secundárias, o aparecimento do pai divino
da-Era-da-Divindade. (Há, porém, quem comece a criador, a formação da primeira terra pelo par criador, a
contagem com o Mestre-do-Céu-Intermediário.) primeira casa, o primeiro casamento, a coabitação, o jul-
Os próximos a aparecer foram os dois Kami Sacode- gamento, o nascimento. Então vêm a terra, o nascimento
Jóia e Jóia-Dez-Mil. dos territórios, das deidades elementais das deidades e do
alimento, as árvores, as montanhas, os rios, o nascimen-
O primeiro produziu os dois Kami Jóia-Sorte e Águia-
to da deidade do fogo, a primeira morte, o primeiro assas-
Em Pé-no-Céu, e o segundo produziu o Kami solitá-
sinato. Depois vem o mundo inferior, o primeiro divórcio,
rio Rio-Bravo-do-Céu.
a criação de deidades fálicas, a criação das três deidades
Agora, todos os Kami Celestes (alguns dizem Alto- regentes: a Deidade do Sol, a Deidade da Lua, a Deidade
Produtor) consentiram em solicitar para Aquele-Que- Rebelde . Então vem a terra, a distribuição acima de To-
Convida e para Aquela-Que-Convida que fizessem e das as Regras, o retiro do primeiro criador, a morte da
consolidassem a terra à deriva, dizendo: "Há a Pla- deidade das frutas. A seguir, os combates entre diferen-
nície-Prolífica-de-Bambu-de-Arroz -Novo-dos-Mil- tes deidades, e assim por diante.
Outonos. Vão e coloquem-na em ordem". Assim, com
uma Lança-Jóia-Celeste cujo cajado de coral lhes fora
dado, o casal se instalou na Ponte-Céu-Flutuante (ou, 69 Post Wheeler, The S acred Scriptures of the J apanese (Nova Iorque:

como dizem alguns, no meio da Névoa-do-Céu). Henry Schuman, 1952), pp.3ss.

270 271
Termina com o início daquilo que chamamos histó- A fim de introduzir o material em ordem cronológi-
ria. Na terra aparece o primeiro imperador terrestre, as- ca, primeiro eu teria de citar aqueles textos sobre partí-
sim o resultado final é o início da história japonesa, com culas dos quais nasceu o conceito do átomo; depois, os tex-
seu ainda muito lendário primeiro imperador. tos sobre números. Em seguida , o modo como esse mate-
Esses mitos de criação - esbocei apenas brevemen- rial está apresentado na filosofia de Pitágoras e Demócri-
te sua estrutura - são muito típicos de civilizações pri- to e, por fim, nos textos gnósticos. Apesar disso, pretendo
mitivas ou semiprimitivas, que nunca se desintegraram. começar pelo material gnóstico porque está mais próxi-
A civilização japonesa certamente não é o que chamaría- mo do japonês e do primitivo. É como se na filosofia gre-
mos de uma civilização primitiva, mas ela nunca foi se- ga racional certos conceitos intuitivos pré-científicos hou-
parada de suas raízes primitivas originais; sempre man- vessem se desenvolvido com algum tipo de sabor racional
teve a própria continuidade. Os povos primitivos e as ci- científico e, nas especulações gnósticas, esses tivessem
vilizações que conservaram a sua continuidade tendem a sido historicamente vinculados de novo a idéias mais pri-
produzir esse tipo de cosmogonia, na qual existem listas mitivas, como se esses conceitos, até certo ponto, tives-
inumeráveis de seres ancestrais divinos, semidivinos e sem regredido para uma forma de expressão mais primi-
reais. O catálogo da teogonia de Hesíodo na Grécia é um tiva, pictórica.
exemplo paralelo, e provavelmente nos é mais conhecido No sistema do gnóstico Valentinus,70 a primeira fi-
do que esse tipo de material. Nos muitos e muitos enca- gura é o Autopater, o pai de si mesmo, o pai autoconcebido
deamentos de deidades, nesta multiplicidade de gerações, ou autogerado, que repousa inconscientemente em si mes-
percebemos nitidamente que há uma espécie de tendência mo, eterno, hermafrodita, que nunca envelhece e contém
secreta final em operação: tudo termina na história huma- o universo inteiro, e não é contido por nada. Em seu ínti-
na, no nascimento do homem, de modo que, em vez de pa- mo estão Ennoia, o Pensamento, que outros chamam de
recer caótico, contém em seu bojo um desenvolvimento se- Silêncio ou Graça, e todos os outros tesouros que ele con-
creto. Por exemplo, nesse procedimento japonês vemos cla- tém. Contudo, o Pensamento, Ennoia, quis unir-se ao Au-
ramente que as primeiras deidades são completamente topater, com quem se casou; esse é um casamento total-
vagas, parecem névoa, e a cada passo até a deidade se- mente interior porque é o pensamento dele que ele despo-
guinte essas figuras se tornam mais definidas, mais espe- sa em si próprio. Juntos produzem Aletheia (a Verdade) e
cíficas. Primeiro, transformam-se num ancestral específi- Anthropos (o Homem).
co de uma família específica, e depois talvez uma ilha es-
pecífica, em seguJda em obje~os isolados, col'?-o uma figuei- Ora, esses conceitos, Aletheia e Anthropos, são con-
ra, e assim por diante. Com isso, podemos dizer que a evo- cebidos de forma totalmente arquetípica. É o homem, o
lução parte de um campo vago oni-abrangente e chega à homem eterno, como imagem divina, e Aletheia é um ser
criação de unidades cada vez mais definidas. feminino, uma espécie de personificação divina da Ver-
dade. Então, Aletheia também quis se casar e por isso
Antes de considerarmos o que isso quer dizer psico-
uniu-se a seu pai, Autopater, em união eterna. Eles pro-
logicamente, gostaria de acrescentar a este um outro
duziram um quatérnio espiritual, que foi uma repetição
material sobre partículas e números. Vocês verão que tudo
está interligado e que a combinação de todos esses enca-
deamentos nos permitirá compreender o assunto melhor 70
Leisegang, Die Gnosis, pp.281ss, e James M. Robinson, The Nag
e de um ângulo mais rico. Hammadi Library, ed. E. J. Brill (Nova Iorque: Leiden, 1988), pp. 60ss.

272 273
do primeiro quatérnio. Esse primeiro quatérnio _era com- tão se condensando, como uma substância química que é
posto por Autopater, Ennoia, Anthropos e Aletheia; o novo precipitada, agregando-se lentamente para constituir a
possui Anthropos, Ecclesia, Logos e Zoe - outra vez~ Ho- realidade concreta, tornando-se assim mais múltipla por
mem, a Igreja, mas a Igreja como Deusa, uma pers?mfic~- um lado e mais distinta e menos eterna por outro, menos
ção feminina, e Logos e Zoe, a Vida, outra persomficaçao poderosa conforme se torna mais diferenciada e, ao m es-
feminina. Novamente um quatérnio com duas figuras mas- mo tempo, mais variada. Primeiro há um, depois um gru-
culinas e duas femininas. Então o Autopater e Anthropos po de quatro, depois doze, depois vinte e quatro, e assim
e Ecclesia produziram doze outros deuses, seis dos quais por diante. É uma operação de multiplicação que prosse-
masculinos , chamados Parakletos (o Espírito Santo), gue infinitamente e, em certos sistemas, expande-se a 36
Patrikos (o espírito do pai), Metrikos (o espírito da mãe), Aeons e às vezes alcança números da ordem de 600 ou
Aeinous (o espírito eterno), Theletos (o completamento, que mais, que podem inclusive se expandir ilimitadamente.
é a Luz), Ekklesiastikos (o espírito da Igreja); e seis pode- Embora certos elementos abstratos estejam envolvidos,
res femininos que são chamados Pistis (fé), Elpis (esp~- pois os nomes desses Aeons são conceitos definitivamen-
rança), Agape (amor), Synesis (compreensão), Makana te teológicos e religiosos, e também o que hoje chamaría-
(bem-aventurança), e Sofia (sabedoria). mos de conceitos científicos (a saber, a idéia dos núme-
ros), vocês vêm que o padrão predominante é ainda o
A seguir vem um outro grupo de poderes divinos, que
mesmo que o dos mitos muito primitivos que citei antes,
aumenta com o acréscimo de outros oito. No sistema de com a idéia dos poderes divinos que lentamente se
Valentinus, esse procedimento se mantém sempre o mes- condensam nos planos inferiores e, multiplicando-se, ter-
mo com os grupos de poderes divinos, chamados_ Aeons, minam por se tornar os elementos básicos da realidade.
que quer dizer poderes divinos. Nossa noção ~e 1ma~em
arquetípica é, na realidade, a melhor traduçao poss1vel Provavelmente baseados nos mesmos padrões arque-
do conceito grego. Existem muitas outras idéias semelhan- típicos encontram-se certos r epresentantes da filosofia
tes em mais sistemas gnósticos que dependem de Valen- grega clássica, especialmente as teorias atomísticas. Os
tinus e são parcialmente influenciados por ele, entretan- criadores do conceito do átomo são Leucipo e seu pupilo
to em alguns os Aeons não foram concebidos como pode- ainda mais famoso, Demócrito. Leucipo é difícil de recons-
res divinos personificados dotados de nomes teológicos de- truir, enquanto personalidade, porque não temos fragmen-
finidos, mas parcialmente como números e como le~ras tos originais de seus textos, ou praticamente não possuí-
do alfabeto. As especulações alfanuméricas, nas quais a mos nada, e em r elatos posteriores só lemos que "Leucipo
maior parte da magia atual se baseia, surgem aqui. e Demócrito dizem ... ". Não nos é possível discernir se ha-
via diferenças entre suas teorias, ou qual é um e qual é o
O fato notável é que, antes de qualquer criação ocor- outro. Portanto, temos de considerá-las uma só. Mas, em
rer constatamos o motivo dos encadeamentos e mais en- geral, atribuímos a teoria toda mais a Demócrito. 71
cadeamentos de gerações desses poderes arquetípicos di- Para Demócrito, a r ealidade consistia em partículas
vinos, uma gerando a outra, até que finalmente descemos diferentes, que ele chamava de átomos, unidades indivi-
ao nível da criação da realidade tal como é agora. Uso a síveis, componentes básicos da realidade. Ele foi o pri-
expressão "descemos" deliberadamente, porque a sensa-
ção que dá a leitura desses textos é a de q.ue for~as todo-
poderosas e eternas e, ao mesmo tempo mdefimdas, es- 71 Capelle, Die Vorsokratiker, p. 392.

274 275
meiro materialista, pois afirmava que a alma também t ão sofrerão distúrbios causados por elas, durante o sono.
era composta de partículas materiais de formato arredon- No outono tornamo-nos especialmente propensos a ficar
dado. Outras partículas materiais eram como as pirâmides, deprimidos porque as tempestades, o vento e a chuva ati-
ou tinham formas diversas, o que explica a diferença entre çam as imagens mais do que em outras épocas do ano, e é
os elementos. Essas partículas têm arestas que se en- quando sentimo-las com maior profundidade.
gancham umas nas outras. Assim, constituem encadea-
O que continua obscuro é como Demócrito relacio-
mentos de conexões e foi dessa maneira que começaram
a existir os diferentes fenômenos materiais, as diferen- nou essas imagens aos átomos. Em certo sentido, seu es-
quema é a princípio completamente materialista, e até a
tes partículas materiais. Como a partícula que acende a
alma é um átomo concreto, mas então ele também apre-
alma é redonda, a alma pode se espalhar pelo corpo todo
senta essas eidola (em grego; em latim, simulacra), que
e penetrar em tudo, porque as coisas redondas sem ares-
voam para cá e para lá, por entre os átomos. Infelizmen-
tas que engancham podem rolar sobre as outras par-
te, como os ensinamentos de Demócrito nos foram trans-
tículas, sendo essa a razão pela qual a alma se espalha
mitidos só em passagens soltas e citações isoladas, não
pelo corpo todo.
sabemos de que maneira ele relacionou as duas concep-
Vemos aqui uma forma muito primitiva do conceito ções, e se ele pensou que as imagens também são, de al-
moderno do átomo, mas um passo de tremenda importân- guma maneira, materiais. Mas o conjunto completo da rea-
cia, realmente, para a história da mente ocidental. Esses lidade é um mixtum compositum enormemente confuso
corpos básicos, os átomos, só podem ser concebidos pelo de átomos e suas combinações, incluindo os átomos da
pensamento - quero dizer que não podemos provar sua alma e as imagens, com as quais ele definitivamente iden-
existência e não podemos observá-los na realidade. tifica os espíritos bons e maus do folclore. Ele diz que os
espíritos bons e maus, os demônios e deuses menores, do
Demócrito também presumia que a realidade consis- folclore são, na realidade, só imagens que rodopiam a
tia num número infinito de mundos diferentes, todos cons- esmo. Não são eternos mas podem durar duzentos, tre-
tituídos da mesma maneira e a partir da mesma estrutu- zentos ou quatrocentos anos antes que se decomponham
ra. Está ligada a esta, e ninguém sabe como, uma outra ou mudem. A realidade contém um número infinito de-
teoria também de Demócrito, a saber, que rodopiando em les, assim como existe um número sem-fim de mundos.
torno dessa nuvem de átomos em que nos movemos há
certas imagens. Ele disse que a atmosfera em que vive- Temos um outro fragmento que diz que Demócrito
mos é cheia de imagens invisíveis, não completamente afirmava que até as pedras tinham alma (isso explica
eternas, mas de longuíssima duração, com uma sobrevi- por que elas formam cristais, e assim por diante), mas
da muito maior que a de qualquer ser humano. Imagens não fica claro se essa alma significa uma imagem ou um
positivas e negativas voam por entre os átomos e pene- átomo ígneo. Quando os elementos da alma têm a com-
tram no nosso corpo durante o sono, e é assim que os so- posição certa, a alma então produz o tipo certo de pensa-
nhos existem. Elas nos possuem quando são negativas e mento; quando ela está perturbada, produz o tipo erra-
têm efeitos diabólicos, e quando são positivas surtem re- do. Mas as imagens nos tocam de fora, fluem até nós vin-
sultados favoráveis em nossa personalidade. As pessoas das de fora e entram em nós em determinados momen-
más, diríamos que os magos negros, podem emanar ima- tos. Pensar é, em parte, a combinação certa ou errada
gens más e enviá-las para alguém que detestem, que en- dessas imagens.

276 277
Apresentei esse esboço da teoria atômica porque, se tornar-se consciente da realidade externa. Portanto, é o
vocês a analisarem mais de perto, de um ponto de vista que também confere existência física a todas as coisas.
psicológico, verão que os Aeons, os números e as letras E possível enxergar a verdadeira natureza do número e
não são essencialmente diferentes desse tipo de partícu- seu poder não só nos trabalhos dos deuses mas também
la e imagem; são simplesmente uma variação do mesmo em todas as obras e conversas dos homens, e no âmbito
conceito arquetípico de ter uma multiplicidade de elemen- de todas as suas atividades técnicas e na música. A natu-
tos eternos, indivisíveis, básicos que, em suas diversas reza do número não admite erro e só permite harmonia.
combinações, criam a realidade. Não temos um relato O terror e o ciúme não existem no reino dos números. 72
definitivo sobre Demócrito, mas ele parece ter pensado Aqui, então, começa a haver um desvio no rumo de es-
que esses elementos básicos existem desde o início do tem- tranhos fatos psicológicos.
po e não geraram uns aos outros, como os Aeons. Um fragmento pitagórico anônimo mais antigo (cita-
Uma outra idéia dessa multiplicidade de elementos do por Aristóteles) assevera que os pitagóricos dedicaram-
se primeiro à matemática porque estavam convencidos
básicos pode ser encontrada nas especulações de Pitágo-
de que os princípios de todas as coisas reais eram os nú-
ras, embora aí não se trate de átomos, partículas mate-
meros, pois estes eram os símbolos de tudo o que existia e
riais, ou imagens, mas sim de números. Os números na-
acontecia, mais do que o fogo, a terra e a água, que os
turais um, dois, três, quatro ... (i. e., a série dos números
outros pensavam ser os elementos básicos do mundo. Eles
naturais) eram, para os pitagóricos, não-gerados, ou seja, constataram também todos os relacionamentos e todas
acreditavam que eles sempre existiram, como poderes as leis, por exemplo, da harmonia musical, que baseavam-
formativos divinos que produziam e ordenavam o univer- se em números; até mesmo a totalidade da natureza pa-
so inteiro. Na realidade, devemos corrigir essa afirmação recia-lhes estar baseada nos números como os princípios
de que os pitagóricos consideravam os números como a básicos da natureza e os elementos básicos do cosmo.
base do universo, pois eles já eram sábios o suficiente para
perceber que a realidade, em si, não pode ser descrita, Ora, qual é o denominador comum de tudo isso? Para
que jamais sabemos o que ela é em si, e que tudo o que descobrir mais a respeito, temos primeiro de retornar às
jamais podemos perceber conscientemente como realida- cosmogonias primitivas que citei antes. Lá vimos que, no
de é constatado como um número. começo, havia os poderes divinos que, lentamente, torna-
ram-se menos importantes e menos divinos e adquiriram,
Um fragmento do famoso Philolaos pitagórico, por cada vez mais, as características das almas ancestrais de
exemplo, diz que tudo que pode ser reconhecido como real certos clãs. Esse é o caso das cosmogonias havaiana e ja-
são os números, porque é impossível em nosso pensamen- ponesa, em que alguns desses deuses menores, quando já
to tomarmos consciência de qualquer coisa sem o número. tinham sofrido uma diminuição em sua glória e desenvol-
O número tem duas formas específicas de aparecimento, vido tendências que os levavam a descer para o plano da
pares e ímpares, e um terceiro tipo é uma mescla desses terra, tornaram-se as almas ancestrais de certos clãs.
dois; destes derivam todas as formas de coisas existentes. Esse é um aspecto típico dos textos cosmogônicos. O
Ninguém jamais poderia dizer coisa alguma a respeito de Enuma Elish, por exemplo, também conclui apresentan-
alguma realidade externa, nem estabelecer qualquer re-
lação entre as coisas, ou entre si mesmo e as coisas, se
não houvesse o número; o número é que permite à alma 72
Ibid., pp. 474 e 475ss.

278 279
do uma longa lista de reis primordiais. O mesmo fenôme- O complexo do Eu seria aquela luminosidade de que
no também é encontrado no Egito, onde o rei, sempre que a pessoa tem consciência e, depois, existem todos os ou-
sai em procissão, é seguido por suas últimas catorze Kas, tros complexos que, em seu conjunto, formam uma espé-
quer dizer, almas ancestrais. Quando o rei passava, por cie de bloco, o sistema relativamente fechado da persona-
exemplo, na grande procissão do festival de Sed, atrás lidade total. Durante a análise, a pessoa vai lentamente
dele eram carregadas catorze hastes encimadas pelas es- travando conhecimento com os diferentes complexos que,
tátuas de suas catorze Kas. O povo acreditava que ele ti- aos poucos, entram em conexões associativas com o Eu.
nha um grande número de Kas atrás de si , mas que as Alguns são completamente integrados e outros só se co-
últimas catorze eram as mais distintas e assim possuía nectam com o complexo do Eu em termos limitados. Isso
mais consciência dessas. Se estudarmos o nascimento de significa que, se eu trabalhar bastante num complexo, ele
Jesus na Bíblia - e acredito que haja uma conexão histó- se dissolve no complexo do Eu e então praticamente de-
rica com esse material egípcio -, ele tem sua própria lis- saparece, no sentido de que não se destaca mais como um
ta de ancestrais que definitivamente aparecem agrupa- complexo autônomo.
dos de catorze em catorze; logo, ele também tem seu s gru-
Há outros dos quais a pessoa não está inconsciente;
pos de catorze Kas atrás de seus passos.
ela os conhece, mas mesmo assim eles desenvolvem efei-
Esses catálogos ancestrais divinos, semidivinos e tos autônomos. Alguém pode dizer: "Oh, eu sei que tenho
reais parecem ter uma grande importância. Talvez deva- um complexo materno positivo e é por isso que tenho re-
mos atacar o problema a partir daqui e perguntar o que ações desse tipo!" Essa pessoa está parcialmente ciente
essas catorze Kas significam, o que são esses catálogos de seu complexo materno positivo, mas ainda assim exis-
ancestrais que encontramos em toda parte nas escrituras tirão projeções na realidade, reações emocionais diante
sagradas e em alguns mitos cosmogônicos. A primeira de determinados fatos, que todas as vezes lhe ocorrerão e
hipótese que se pode formular é que devem ter alguma que só depois do acontecido é que ela poderá dizer: "Ah,
ligação com o que denominamos de complexos. Sabemos foi outra vez o meu complexo materno". Assim, esse é um
que um ser humano tem um complexo do Eu do qual ele complexo que denominamos de semiconsciente; temos
normalmente é ciente e com o qual costuma se identifi- consciência de alguns de seus aspectos e de outros, não.
car; ele também é rodeado por uma "nuvem" do que cha- Esse complexo, em grande medida, ainda é autônomo; só
mamos de complexos autônomos. Para nós, a personali- está parcialmente integrado.
dade quando não analisada seria aproximadamente o que
O objetivo do trabalho analítico é tentar levar o Eu a
é mostrado no diagrama seguinte.
um estado de maior conscientização possível da economia
total de complexos, porque essa é a única proteção contra
ego cercado
o o o por outros
O X- - --·· ego complexos
ºo o o separados
o o ego com complexos
conectados

280 281
efeitos dissociativos repentinos. Se você está relativamente no mais amplo sentido desse termo. Por mais impor-
ciente da família total de complexos com os quais deve viver tante que seja dar atenção ao que é prático e útil, e
em sua casa interior, você pode, por assim dizer, permane- levar em conta o futuro, esse olhar retrospectivo para
cer numa certa posição tranqüila porque nada realmente o passado é igualmente importante. Cultura signifi-
inesperado pode acontecer. A consciência dos complexos, ca continuidade, não a perda do contato com as raízes
portanto, é de importância essencial: é a única proteção re- em nome do "progresso"... Da mesma maneira como o
lativa contra a constante dissociação emocional interna. Com embrião em desenvolvimento recapitula, em certo sen-
isso, você então descobre que essa economia total do lar é tido, a nossa história filogenética, também da mes-
regida por um outro centro, ou seja, o Si-mesmo. Isso quer ma forma a psique-criança revive "as lições da hu-
dizer que não é o Eu que tem o mando ou que ordena todos manidade anterior", como a chamou Nietzche. A
os outros complexos; isso ele não consegue fazer. Há uma criança vive num mundo pré-racional e, acima de
regulamentação secreta de todo o sistema que emana do tudo, pré-científico, o mundo dos homens que existi-
principal complexo inconsciente da personalidade, o Si-mes- ram antes de nós. Nossas raízes estão fincadas nesse
mo. Portanto, se o Eu conseguir encontrar uma ponte, uma mundo e toda criança brota dessas raízes. A maturi-
ligação relativamente sólida com o Si-mesmo, estará indi- dade afasta-a delas e a imaturidade a deixa presa
retamente também ciente de todos os outros complexos, por- ali. O conhecimento [essa é a sentença essencial para
que alcançou aquele centro a partir do qual a economia in- nós] das origens universais constrói a ponte entre o
teira da personalidade é organizada e orientada. Portanto, mundo perdido e abandonado do passado e o mundo
é imperativo que a pessoa esteja de acordo e em harmonia ainda em grande medida inconcebível do futuro.
com a própria estrutura inconsciente, com uma estrutura Como entender o futuro, como assimilá-lo, a menos
total inconsciente herdada, o mais absolutamente que pu- que estejamos de posse da experiência humana que o
der, para poder obter a máxima eficiência de sua consciên- passado nos legou? Sem a posse do passado, não te-
cia, de Mana, que é a intensidade da personalidade. E, quan- mos raízes e não possuímos perspectiva, somos meros
do você vê essas imagens, ou procissões, nas quais o rei egíp- tolos indefesos diante de quaisquer novidades que o
cio anda na frente e atrás dele vêm todos aqueles sacerdo- futuro nos possa trazer. Uma educação puramente
tes carregando suas Kas, vocês estão diante de mais do que técnica e prática não é salvaguarda contra ilusões e
é significado: por assim dizer, ele não está agindo como um não conta com nenhum recurso para opor às falsifi-
indivíduo, movido por suas opiniões egóicas arbitrárias, mas cações. Falta-lhe a cultura, cuja lei mais essencial é
é o portador de toda a tradição que tem por trás e que o a continuidade da história, a longa procissão da cons-
sustenta, e que é o que lhe confere o poder e a autoridade de ciência humana mais que individual. Essa continui-
que necessita para reger seu país. dade, que reconcilia todos os opostos, também sana
Contar com as almas ancestrais por trás dando apoio, os conflitos que ameaçam a criança dotada. 73
em vez de se distanciar delas, é de uma importância absolu-
tamente essencial. Jung expressou condensadamente essa Aqui vocês vêm, embora abordado de um ângulo com-
verdade em seu ensaio "A criança dotada", onde lemos: pletamente diferente, por que é t ão importante estar vin-
culado à continuidade histórica, ou seja, internamente à
... parece-me particularmente importante que toda
cultura de amplas bases tenha respeito pela história, 73
C. G. Jung, Collected Works, vol. 17, § 250.

282 283
própria alma ancestral, estar ligado aos fundamentos ar- partículas da própria alma e dos diferentes complexos
quetípicos da psique. Trata-se da única proteção contra ser autônomos para poder prevenir a dissociação. O que acon-
levado de roldão pelas ilusões das novidades. Até que pon- tece nesse exercício chinês de meditação é uma espécie
to isso pode ser destrutivo vemos, por exemplo, no caso da de dissociação induzida conscientemente, igual à que fa-
tribo primitiva que é distanciada de sua continuidade an- zemos, por exemplo, na meditação que chamamos de ima-
cestral através de algum tipo de influência espiritual ex- ginação ativa, pois aí também falamos com todos os nos-
terna, pois essas tribos em geral depois decaem e perdem, sos diferentes complexos autônomos. Permitimos que apa-
em pouco tempo, toda a sua vontade e energia para viver. reçam, deixamos que passem a existir, e então damos iní-
Esses indivíduos perderam sua continuidade, seu passado cio a um diálogo consciente, a umAuseinandersetzung com
histórico, sua dignidade humana. Não contam mais com o eles. Se a pessoa não faz isso conscientemente, como prá-
apoio de todas as Kas andando atrás deles e dando susten- tica de meditação, então acontece de forma involuntária
tação ao sujeito contemporâneo de carne e osso. A leitura e sob o impacto de determinados choques, e aí surte o efei-
a memorização de catálogos tão longos de reis ancestrais e to oposto ao da meditação, ou seja, dissocia e destrói a
deuses, portanto, provavelmente tem a ver com o fato de personalidade toda. Para dizê-lo em poucas palavras, ins-
ser uma ação ritual sagrada por meio da qual o homem se tala-se uma dissociação esquizofrênica, uma "fragmenta-
vincula com a continuidade do passado. Essa é a contra- ção" da personalidade. Num estado avançado de esquizo-
magia que previne a dissociação. frenia, pode-se efetivamente ver como o ser humano foi
No texto chinês O Segredo da Flor de Ouro, é dito dissolvido e se tornou uma nuvem, um bloco de comple-
que a meditação alcança um estágio no qual a consciên- xos autônomos, que não têm mais organização. Os esqui-
cia é dissolvida. 74 Esse estado, que a pessoa em medita- zofrênicos se queixam de que vozes diferentes tomam con-
ção segundo essa prática chinesa do ioga tem buscado, é ta deles e que seu Eu se afoga nelas.
uma espécie de dissociação consciente. A imagem que Lembro de uma moça esquizofrênica que tinha fica-
acompanha esse texto é a de um homem sentado na posi- do internada por muito tempo e que, quando seus paren-
ção de lótus e de cuja cabeça sai um buda atrás do outro; tes a visitavam, dava a impressão de que não reconhecia
com isso ele tem uma verdadeira legião de budas e cada n inguém; por isso desistiram das visitas achando que
um criando mais dois, e assim sucessivamente. Há uma eram inúteis. Mais tarde, quando se encontrava curada,
multiplicação infinita de budas diferentes, todos senta- ela se lembrava de tudo que havia acontecido, ao ponto
dos na posição de lótus. Depois desse estado de dissocia- de saber até a cor da blusa que a mãe usara e o que disse-
ção conscientemente obtido, o passo seguinte consiste em
ra numa determinada visita. Ela estivera consciente de
reintegrar todos os budas tomando consciência da assim cada detalhe, mas dizia que todos os diabos e demônios
chamada rotação da luz. haviam-na impedido de demonstrar qualquer sinal de re-
Em seu comentário sobre essa parte do livro, Jung conhecimento. Usando ainda um outro símile, disse que
fala da necessidade de se tornar consciente de todas as era como se estivesse embaixo do mar e pudesse ver os
outros, sem conseguir, contudo, acenar a mão, não poden-
do mostrar que os estava vendo. Aqui vocês vêm como o
74 The Secret of the Golden Flower, trad. Richard Wilhelm com comen-
tário de C. G. Jung (Nova York: Causeway Books, 1975), p. 63. [Em portu-
complexo do Eu é sobrepujado pela confusão dos outros com-
guês, O segredo da flor de ouro] plexos e não tem mais a força suficiente sequer para co-

284 285
mandar o corpo ou se manifestar de outras maneiras. material mostrando que a pessoa morta, segundo a cren-
Continua lá, mas numa posição de excessiva fraqueza: é ça de muitas nações diferentes, muda de caráter. Isso sig-
só mais um entre tantos. nifica que um pai, uma tia, uma mãe, um membro da fa-
Depois, há também o caso famoso de Schreber, que mília que morreu, não permanece o tio ou a tia depois da
ofereceu um estudo muito interessante de sua esquizo- morte, assustando as pessoas nessa forma, mas tende len-
frenia, dizendo que era constantemente importunado por tamente a mudar de caráter, tornando-se uma figura mais
seus demônios e vozes . Por exemplo, como citei antes, se numinosa e poderosa. Alguns mortos aos poucos se tor-
ele queria escrever alguma coisa, os espíritos lhe diziam nam demônios maus enquanto outros se tornam espíritos
que já estava feito e ele então largava o lápis e ficava protetores positivos - numina. Estes perdem suas carac-
incapaz de escrever o que fosse. Eles interferiam cons- terísticas individuais cada vez mais e se tornam fatores
tantemente, e essa é a queixa mais comum dos pacientes mais gerais e poderosos. Dessa maneira, a imagem dos
no início de uma esquizofrenia. Dizem que podem querer ancestrais mortos se mistura, como se pode ver claramente
ir até a cozinha e pegar sopa, mas que os demônios dizem no material recolhido por Van der Leeuw, com os arquéti-
algum coisa e eles não conseguem mais fazer isso. Uma pos. Em nossa linguagem, diríamos que o pai morto len-
servente me disse que queria fazer uma peregrinação até tamente se torna algo como um pai arquetípico dentro do
Einsiedeln; entretanto, ao chegar na porta da igreja, as sistema psíquico do filho vivo. A conexão com o Sr. Fula-
vozes e gritos dos diabos impediram-na de entrar e eram no pessoal se dissolve, e se desmancha a memória de sua
tão altos que pareciam uma nuvem de demônios a ponto personalidade individual. Em vez disso, o filho sente a
de ela ter de voltar para casa sem conseguir concluir s ua presença protetora do arquétipo paterno, ou o efeito de
peregrinação. Os complexos autônomos dominam o com- um arquétipo de pai negativo, por trás.
plexo do Eu de maneira caótica.
Essas trágicas dissociações demonstram claramente Certos filósofos neoplatônicos tiveram a mesma idéia.
por que os primitivos tomam tanto cuidado em fazer com Disseram que, depois da morte, as almas sobreviventes
que suas almas ancestrais, as Kas, marchem atrás do seu das pessoas se combinavam com as numina, ou seja, com
complexo do Eu. A procissão do rei egípcio com as catorze seres divinos. Apuleio, por exemplo, seguindo a tradição
Kas atrás é um símbolo de sua personalidade integrada. de Plutarco, dizia que as pessoas que deram atenção a
Provavelmente pelo mesmo motivo é que esse procedimento suas psiques , tendo cuidado e desenvolvido seu psiquismo
aparece na genealogia ancestral de Cristo: é uma alusão a durante a vida através da meditação e de exercícios reli-
sua personalidade régia. Novamente, ele é um símbolo da giosos, seriam, após sua morte, um numen especialmente
personalidade integrada que tem todo o desenvolvimento poderoso, sobrevivendo nessa condição. Essa é a mesma
do passado, por assim dizer, às suas costas, como se esse idéia da mistura entre o que chamamos de figuras arque-
período anterior apontasse todo para a sua realidade. típicas e as almas ancestrais.
Na obra Religion in Essence and Manifestation, de Este processo também pode ter bases fisiológicas. O
Van der Leeuw, podemos encontrar ainda um outro as- problema de como os padrões de comportamento são h er-
pecto disto. 75 O autor coletou uma quantidade enorme de dados na vida animal (e, neste sentido, os nossos não são
naturalmente diferentes em nada) ainda é um grande
75 Gerardus van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation (Lon- enigma, mas parece ter alguma ligação com os genes.
dres: George Allen & Unwin, 1938). Konrad Lorenz conseguiu realizar um experimento mui-

286 287
to significativo a respeito. Localizou dois tipos de patos números, as letras do alfabeto, os simulacros de Demó-
tão distantes um do outro que definitivamente apresen- crito, ou o que chamamos de representações arquetípi-
tavam padrões de comportamento também distintos um cas, por um lado e, por outro, o problema da herança física.
do outro - por exemplo, uma dança diferente de sedução Os dois correm em paralelo mas não sabemos ainda, exa-
para acasalamento; no entanto, mantinham a proximida- tamente, como se interligam. Certamente, porém, a im-
de necessária para permitir que cruzassem entre si. Ele portância dessas genealogias e encadeamentos de deuses
fez com que se cruzassem e o que decorreu foi que o filho- tem a ver com a grande importância de estarmos ligados
te não só apresentava uma mistura física das caracterís- aos nossos próprios instintos básicos e a não sermos ar-
ticas de ambas as raças como também os dois padrões de rastados pelas novas mutações de nossa vida mental.
dança de acasalamento! Um dos tipos afundava a cabeça Há mais um elemento que quero mencionar breve-
duas vezes na água e abanava a cauda quatro vezes, e o mente. Nas cosmogonias havaiana e japonesa que citei,
outro fazia isso três vezes. O filhote do cruzamento das num certo ponto foram criadas rochas ou ilhas. Alguns
duas raças combinava esses dois padrões. O padrão de deuses que vieram na seqüência de uma longa cadeia de
comportamento como um todo não parece ser herdado por outros deuses eram idênticos a certas ilhas do arquipéla-
meio de um só gene, mas elementos do mesmo se recom- go. Naturalmente, nos países em que existem essas for-
binam no novo indivíduo, de forma nova, por exemplo con- mações insulares de terreno, esse é um meio óbvio para
figurando um novo tipo de dança de acasalamento. Por projetar arquétipos. Mas nós os encontramos também em
conseguinte, poderíamos dizer que se o experimento de povos que não têm ilhas em seu território e, nesses casos,
Lorenz se comprovar válido num sentido mais amplo (um os deuses num determinado ponto da evolução se tornam
só experimento naturalmente não é válido o suficiente montanhas, rios e outros pontos geográficos de destaque.
para solucionar todos os problemas), isso significaria que Portanto, podemos dizer que o denominador comum é um
nossos padrões arquetípicos de comportamento também ponto geograficamente relevante, quer seja uma velha
consistem em diferentes fragmentos ancestrais que se árvore isolada, uma colina, uma montanha, uma rocha,
reúnem novamente num novo padrão comportamental. uma ilha. Os detalhes naturalmente dependem do local
Sendo assim, haveria um elemento concreto de herança e de onde procedem esses povos.
de continuidade também no seio desses padrões psíqui- Nesses pontos geográficos destacados, o deus se as-
cos, o que justificaria ainda mais a importância desses senta ao se concretizar após sua descida das névoas ce-
catálogos ancestrais. É como se aquelas primitivas genea- lestes. Ele se torna idêntico a certos aspectos geográficos
logias ancestrais fossem insights intuitivos das leis des- e, por isso, em muitos sistemas primitivos de religião e
sa espécie de continuidade. pensamento, há toda uma geografia psíquica. Em geral,
Se hoje em dia quebramos a cabeça tentando enten- podemos ver uma montanha que se destaca nas imedia-
der como os elementos do padrão de comportamento se ções de onde vive a tribo; esse é o lugar do relacionamen-
relacionam com os genes, ainda estamos às voltas com o to com deus, é aí que os grandes homens recebem seus
mesmo problema de Demócrito, a saber, como é que as sonhos, suas revelações, em que os curandeiros vão para
imagens, os simulacros, se relacionam com os átomos. Esse jejuar e de onde voltam com seus contatos. Também te-
relacionamento ainda é para nós um grande problema. mos o Monte Sinai e o Tabor, em nossa religião. Geral-
Agora vocês entendem por que eu introduzi, de forma mente há um lugar em que o deus negro, ou o deus do mal
tão inusitada, os números divinos e as letras do alfabeto. é projetado; pode ser um abismo escuro, uma fenda escu~
Os elementos básicos dos processos mentais seriam os ra, um precipício, a cratera de um vulcão, qualquer local

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adequado para a projeção do as~o,mbr?so, do escuro, da coisa gonias primitivas, há essa estranha ligação dos deuses
ruim, o lugar aonde não se vai a noite etc. Certos luga~es tornando-se rochas, ilhas, montes ou locais em que dois
têm um caráter sugestivo. Se alguém pensa em planeJar rios se cruzam. É aí que o deus "aterrissa" na realidade.
um assassinato, a fantasia de sua execução pode m~l~or No caso dos povos modernos, quando alguma coisa
ser elaborada pelo provável assassino quando ele se dirige está se aproximando do campo da consciência via proje-
a um certo lugar escuro no mato. Jung, por exempl?, sem- ção ou diretamente, em geral os sonhos mostram que al-
pre citava o assassinato de Erzherzog Johann, q~e foi morto guma coisa desceu em algum ponto da terra. Lembro-me
num riacho sombrio, e o assassino o persegum sa?endo de ter tido uma vez um sonho que me divertiu até mais
desde o início da manhã que iria matá-lo qua_ndo estiv_esse não poder. Sonhei que o arcanjo São Miguel tinha ater-
afastado. Ao chegar a essa passagem sombria, ele gritou: rissado na Suíça, numa colina próxima a Berna, mas que
"Esse porco não vai viver mais um só instante", e o perfu- o governo tinha ficado tão assustado que instalou um cor-
rou com uma lança pelas costas. Foi ~quele local _qu~ dão militar de isolamento em volta dele. Berna é a capital;
catalizou sua decisão de cometer o assassinato. ~ambem e isso quer dizer o centro da psique, um símbolo do centro,
interessante em criminologia, que certos locais escuros e que ali um importante conteúdo tinha descido à terra,
servem repetidamente de cenário para vário~ ~stupros _e mas que a consciência convencional ficara muito amedron-
crimes, pontos específicos de certas matas proximas_ ~ ci- tada com a captação desse conteúdo. Esse sonho prece-
dades. Pode-se realmente sentir como se maus espintos deu em aproximadamente três semanas uma constatação
estivessem chamando as pessoas para aquele loc_al e q1:e mental muito importante que, então, entr ou no campo da
alguém, já à beira de cometer o crime, tenha sua mtençao consciência. Na época do sonho, a minha consciência es-
catalizada quando chega lá. tava bastante sossegada e não sentia medo de arcanjos e
Assim ainda existe uma geografia psicológica e ain- nem de nada do tipo. Mas essa foi a anunciação de que
da acontec~ como se certas constelações do panorama fí- agora um conteúdo arquetípico iria se acercar do campo
sico constelassem também nosso estado psíquico. São lo- da consciência: a figura divina aterrissando num ponto
cais compatíveis com a realização de certos ~tos, fanta- geográfico significativo precedeu essa percepção.
sias e idéias. Na mitologia primitiva, vemos isso aconte- Novamente, sempre que um povo precisa tomar uma
cendo numa extensão ainda maior. Se lermo~ os ~o~e_s decisão muito importante, ou dar um tremendo passo do
do mapa de um território ocupado por u~a tnbo pr~miti- qual pode-se dizer que depende todo o seu futuro, aconte-
va temos de fato o mapa de seu inconsciente coletivo: o cem sonhos como esse em que surge a assembléia dos an-
1oda1 em que o deus positivo se manifesta, onde o mal apa- cestrais ou a assembléia dos mortos. Lembro-me de uma
rece, onde as crianças são concebidas. Se vo_cê e_stu~ar ~ vez, quando precisava tomar uma importante decisão que
simbologia dos nomes, o inconsciente cole~ivo i_nteiro e iria afetar a minha vida inteira, em que sonhei na noite ante-
idêntico ao terreno geográfico em que a tnbo vive. Isso rior à tomada da decisão que todos os mortos do céu que esta-
comprova que a área ambiental em que vive um~ pess_oa vam jogando Halma (uma espécie de jogo com peões) para-
serve para catalizar a projeção de certos co_:1teudos ii:- ram e foram até a janela do céu para olhar para baixo, como
conscientes. Nascemos com todos esses padroes arqueti- se fossem participar da decisão. Embora não se preocupem
picos herdados de repres_entações, e quando ent~amos na nem um pouco com o que estão fazendo estes piolhos cá em-
situação ou local apropriados, esse ~onto geo~rafico ser- baixo na terra, pois encontram-se na eterna bem-aventu-
ve de estímulo e o conteúdo arquetípico se proJeta naque- rança e jogam Halma, quando um ser humano toma uma
le local. Provavelmente por isso é que, em tantas cosmo- decisão crucial eles param de jogar e olham pela janela.

290 291
Ouvi muitos outros sonhos dessa espécie. Eles em me procissão de camponeses em trajes dominicais medie-
geral ocorrem quando a pessoa realmente tem de concen- vais chegando - e eram realmente espíritos. Eles vieram
trar toda a sua personalidade potencial para dar o passo me visitar, e eu pensava que queria tanto ficar sozinha
seguinte, um passo decisivo do qual depende todo o res- naquele lugar e que não iria abrir a porta, mas depois vi
tante de seu processo de individuação. Esses passos são também que era um casamento entre um noivo campo-
tão aterrorizantes que o Eu frágil não consegue dá-los; nês e sua noiva, e então pensei que eu devia fazer alguma
por isso é que esses processos de concentração acontecem coisa e corri até a adega para pegar uma garrafa de vi-
e aparecem no sonho, porque o Eu não consegue concen- nho, e aí acordei. Jung interpretou esse sonho como o
trar suas forças. Esse é um evento espontâneo, como se acúmulo, a concentração das almas ancestrais, aprovan-
toda a constituição vital da personalidade se concentras- do positivamente o passo que eu havia dado. Num sonho
se nele. Naturalmente, esse tipo de sonho ou vivência con- posterior, alguns meses mais tarde, até os macacos apa-
fere uma vigorosa sensação de certeza, firmeza, coragem; receram; primeiro espíritos, novamente camponeses usan-
a pessoa tem a sensação de que o passado ficou todo para do máscaras de espíritos, visitaram-me e depois de algum
trás, dando-lhe apoio, e que agora ela pode arriscar fazer tempo transformaram-se em macacos cinza prateado lin-
coisas que não teria tido a coragem de executar em suas dos que se divertiam em volta da casa. Foi uma experiên-
condições normais de reflexão. Por isso é que, toda vez cia muito agradável. Acordei com uma sensação de pra-
que os primitivos têm de tomar uma decisão importante, zer e felicidade, tendo assistido pela janela como os ma-
eles primeiro dançam ou se identificam com seus ances- cacos dançavam em torno da casa, saltando de galho em
trais e, usando as máscaras deles, tornando-se seus espí- galho, com movimentos elegantes. Praticamente, isso sig-
ritos ancestrais, fundindo-se a eles, adquirem a força ne- nificava não só a integração da alma ancestral mas tam-
cessária para dar aquele difícil passo em sua vida. bém a dos ancestrais animais. Naturalmente, se você vive
Portanto, o motivo dos deuses que lentamente des- num casa de campo em que não existe luz elétrica, onde
cem em condensação e se tornam os espíritos ancestrais, praticamente não há como lavar coisas, e só se pode cozi-
por um lado, e o motivo dos mortos que lentamente as- nhar num fogareiro, o macaco em você se sente infinita-
cendem a um outro nível de poderes arquetípicos, devem mente mais feliz do que se você o aprisiona num aparta-
realmente ser vistos em ligação um com o outro. Tudo mento com todos os seus dispositivos elétricos, pois nesse
isso significa o restabelecimento da base arquetípica an- lugar o macaco vai ficar imensamente infeliz. Assim, in-
cestral da personalidade, a conscientização dessa base terpretada subjetivamente, a alma animal, o macaco, sen-
como um apoio necessário à frágil e breve existência do tia-se vivo com esse modo de vida; ele se recuperou e isso
Eu individual. Ocorre o mesmo por trás de todas as cren- naturalmente é experimentado pela pessoa como um
ças populares nos espíritos dos mortos que vagueiam em apoio, pois ele tem a sustentação de suas raízes ances-
bando, como por exemplo a crença alemã da caçada selva- trais, e até mesmo dos espíritos animais. Dessa forma,
gem de Wotan, em que os espíritos atravessam a mata em muitos rituais primitivos eles não só se identificam
com seus ancestrais mitológicos em suas danças como tam-
carregando suas cabeças sob o braço. Costumam ser be-
bém com seus animais ancestrais e se tornam esses ani-
nevolentes com aqueles que os tratam bem e malévolos
mais , comportando-se no papel deles. Uma tribo primiti-
para com aqueles que os maltratam. va está sempre correndo o perigo de perder a sua ligação
Na primeira noite em que dormi na minha casa de com a vida animal interior e, inclusive nesse nível, deve
férias no campo, depois de pronta, sonhei com uma enor- constantemente refazer sua ligação com ela.

292 293
Em muitas comunidades agrícolas as pessoas ainda ele chama de conhecimento absoluto. Aquilo sobre o que
acreditam que os mortos vão para o campo e abençoam e estou falando agora é uma temerária incursão por terri-
visitam certas pessoas que têm uma visão especial, pois tório essencialmente inexplorado, por isso por favor acei-
conseguem ver e falar com os mortos. Não fazia mais que tem o que eu lhes disser: esse é um dos campos limítrofes
quinze dias que eu estava na minha casa quando uma do nosso conhecimento, no qual nós praticamente tatea-
camponesa das redondezas me visitou e, com uma expres- mos no escuro.
são muito ansiosa, passou-me um longo sermão sobre o
Como vocês sabem, quando ocorrem fenômenos sin-
fato de as almas dos mortos viverem e perambularem, e crônicos, não podemos evitar a conclusão de que em algum
sobre a necessidade de serem tratadas com decência para lugar "as coisas são sabidas", coisas que externamente
poderem proteger a casa e impedir que pegue fogo ou seja parecem coincidir por acaso mas que coincidem de manei-
invadida por ladrões etc. Ela evidentemente presumia que ra significativa. Se por exemplo você abre o I Ching, a im-
eu era uma cosmopolita urbana e que era preciso apre- pressão é que "ele", o inconsciente constelado, sabia de fa-
sentar-me os costumes da região. Quando consegui con- tos que ainda não tinham ocorrido. A maioria dos métodos
vencê-la de que eu acreditava 100% naquilo tudo, ela me divinatórios baseia-se nisso, e se aceitarmos a hipótese de
olhou um pouco desconcertada e até um pouco desapon- que uma coincidência significativa é uma forma pela qual
tada, porque seu sermão acabava de perder toda razão de um arquétipo se manifesta, então temos de presumir que,
ser. Em seguida dei-me conta de que ela mesma duvida- com esse arquétipo, uma certa luminosidade ou semicons-
va do que havia dito e, depois de mais um tempo, sentiu- ciência é constelada. No capítulo em que Jung fala dos pre-
se agradavelmente tranqüilizada. Faleceu dentro de seis cursores de suas idéias sobre a sincronicidade, ele cita o
meses, inesperadamente, após uma operação. Teve um famoso Agrippa von Nettesheim, que fala do fato de que
ataque de apendicite e, depois disso, alguma outra coisa nos oráculos, em êxtases e nos fenômenos proféticos o ser
dera errado. Sua preocupação também tinha sido uma humano pode prever o futuro . Jung prossegue dizendo em
premonição de sua morte e, por isso, ela estava tão deci- seu "Estrutura e Dinâmica da Psique":
dida a me convencer, ou melhor, convencer a si mesma,
da sobrevivência das almas ancestrais que vagavam pelo Agrippa está sugerindo, portanto, que existe um "co-
mato. Ela se sentiu muito bem quando eu a assegurei de nhecimento" ou uma "percepção" inata, nos organis-
que não tinha absolutamente a menor dificuldade em acre- mos vivos, uma idéia que reaparece em nossos dias
ditar no que ela me dizia. Por aí vocês vêm até que ponto, em Hans Driesch. Quer gostemos disso ou não, en-
inclusive em nossa sociedade, esta crença continua com- contramo-nos nessa constrangedora posição assim
pletamente viva, mas é necessário que as pessoas tenham que começamos a refletir seriamente sobre os proces-
confiança suficiente para falar disso com você, pois nem sos teleológicos da biologia, ou a investigar a função
sempre elas se abrem a respeito. compensatória do inconsciente, para não falar da ten-
tativa de explicar o fenômeno da sincronicidade. Cau-
O motivo das genealogias do passado - deuses e
sas finais, por mais que consigamos distorcê-las, pos-
ancestrais - tem, a meu ver, uma outra implicação ain-
tulam algum tipo de conhecimento prévio. 76
da, que não contradiz aquela que já citei e até se relacio-
na com ela. Em seu artigo intitulado "Sincronicidade: Um
princípio de ligação acausal", Jung fala de um fator que 76
C. G. Jung, Collected Works, vol. 8, § 931.

294 295
Em termos mais simples, podemos afirmar que toda absoluto e de todas as possibilidades de antever o futuro
vez que um processo tem um aspecto final, move-se na de saber, de alguma maneira pelo inconsciente, o que está
direção de algum objetivo, postulando que esse objetivo prestes a acontecer e de como acontecerá.
já é antecipadamente conhecido, pelo menos vagamente.
Portanto, toda explicação final de fatores pressupõe a exis- Especialmente, então, para o povo primitivo que tem
tência de algum tipo de conhecimento prévio. de viver em condições nas quais o inesperado ocorre cons-
tantemente e que está muito exposto à natureza, é que 0
Certamente não é um conhecimento que poderia es- conhecimento divinatório, ou seja, o contato com o conhe-
tar vinculado ao Eu e, portanto, não é um conheci- cimento absoluto, é essencial. Racionalmente, você não
mento consciente como o conhecemos, mas sim um co- pode saber que, ao entrar num caminho de rinoceronte
nhecimento "inconsciente" que subsiste por si, e que em 10 minutos ele topará com você. Através de cálculo~
eu prefiro designar por "conhecimento absoluto". [Esse conscientes isso é impossível de se saber, entretanto, pelo
é o ponto importante ao qual estou me dirigindo.] Não conhecimento absoluto, é possível, pois ele é sincrônico
se trata de cognição mas, como Leibniz tão excelente- com toda a constelação da sua vida. Você pode até saber
mente o chama, de uma "percepção" que consiste - quando acorda de manhã, que hoje t erá pela frente o en~
ou, para ser mais cauteloso, parece consistir - em contro com um rinoceronte - aquilo sabe; você não tem
imagens, em "simulacros" sem tema. Essas imagens como saber!
postuladas são, presumivelmente, as mesmas que os
Sintonizar, portanto, a fonte do conhecimento abso-
meus arquétipos, que se pode mostrar serem fatores
luto constelado no inconsciente coletivo é de importância
formais dos produtos espontâneos da fantasia. Em
vital para o primitivo e podemos dizer que, para nós, tem
termos modernos, o microcosmo que contém "as ima-
gens de toda a criação" seria expresso pelas palavras igualmente a mesma importância. Nós também nos en-
contramos constantemente em situações nas quais uma
"inconsciente coletivo". 77
avaliação racional dos fatos é insuficiente. Ainda esta-
Assim, a importância que tem para o primitivo man- mos expostos a um número enorme d e eventos inespera-
ter sua ligação com os elementos ancestrais também se dos e, se temos algum método ou possibilidade de sintoni-
deve a que essa é a única maneira pela qual ele pode al- zar em nós o assim chamado conhecimento absoluto do
cançar esse conhecimento absoluto do inconsciente cole- inconsciente coletivo, naturalmente nos colocamos em
tivo. Se você se separa das bases instintivas de sua per- posição muito melhor do que se perdemos esse conheci-
sonalidade, também se separa de toda a possibilidade de mento. Por conseguinte, acredito que esse esforço terrí-
experimentar esse "conhecimento absoluto", o que signi- vel colocado por tantos sistemas religiosos e mitológicos
fica que sua possibilidade de reconhecer a realidade fica sobre continuidade ancestral também é em parte justifi-
reduzida ao que você absorve através da personalidade cado pela própria necessidade de se manter a ligação com
egóica. Você se priva da ligação com esse conhecimento o conhecimento absoluto do inconsciente.
Neste capítulo cabe também discutir o papel dos nú-
77 Ibid. meros. Sabemos que 80% ou mais de todos os métodos

296 297
mânticos ou divinatórios baseiam-se nos números naturais. das aparências em ordem. Esse é o instrumento pre-
Podemos fazer uma previsão, por exemplo, lendo o nome da destinado para criar ordem ou para apreender o já
pessoa: substituímos cada letra desse nome pelo número existente, mas ainda desconhecido, arranjo regular ou
correspondente. Essa tradição cabalística ainda é às vezes, "ordenabilidade". 78
utilizada, hoje em dia. A partir da combinação numérica,
você faz a sua previsão. Assim como o texto chinês I Ching, Isso significaria, em termos mais simples, que o in-
o lançamento de ossos, como fazem os africanos, e outras consciente coletivo consiste em simulacra, eidola no sen-
práticas similares, que também se baseiam em previsões tido de Demócrito, ou imagens, sem ligação lógica. Essas
numéricas. O número natural tem um papel essencial na imagens incluem uma ce•ta ordem ou ordenabilidade, uma
maioria desses procedimentos. No mesmo artigo, antes ci- ordem própria. O número é o instrumento mais simples e
primitivo de se pôr em ordem as coisas. A primeira provi-
tado, Jung comenta:
dência que tomo quando quero pôr alguma coisa em or-
dem é contar objetos; depois segue-se um processo de maior
Há algo de peculiar, poder-se-ia dizer até mesmo mis-
diferenciação - defino os objetos ou as suas posições, mas
terioso, nos números. Nunca foram inteiramente pri-
isso já é mais complicado. Se você quer ter ordem com os
vados de sua aura numinosa. Se, como nos diz um ma- seus carneiros, primeiro você conta as cabeças, para de-
nual de matemática, um grupo de objetos é privado de pois separar machos e fêmeas, colocando alguns nos está-
cada uma de suas propriedades ou características, bulos e outros não, mas a maneira mais primitiva é contá-
ainda resta, ao fim, seu número, o que parece indicar los - se quer dominá-los mentalmente. Portanto, o nú-
que número é algo irredutível. (Aqui não estou me con- mero é o instrumento mais primitivo de levar uma per-
centrando na lógica desse argumento matemático, só cepção inconsciente à ordem do campo da consciência; é
com sua psicologia!). A seqüência dos números natu- pelo número que melhor se pode sintonizar uma conste-
rais termina se revelando, inesperadamente, mais do lação inconsciente. Provavelmente, é por isso que o nú-
que um mero enfileirar de unidades idênticas: contém mero é utilizado na maioria dos métodos mânticos. Exis-
toda a matemática e tudo que ainda resta a ser desco- tem muito mais coisas misteriosas; entretanto, foi esta
berto nesse campo. Portanto, o número é, num senti- em que Jung se deteve, insistindo com veemência sobre a
do, uma entidade imprevisível. Embora eu não me dis- enormidade de coisas que esse campo ainda contém à es-
ponha a tentar dizer qualquer coisa reveladora acerca pera de descobertas . Tudo isso está ligado ao problema
da relação interna entre duas coisas aparentemente das genealogias nos mitos cosmogônicos porque, em cer-
tão incomensuráveis como número e sincronicidade, tas cosmogonias gnósticas e neoplatônicas, os encadea-
não posso abster-me de frisar que não só elas foram mentos arquetípicos são substituídos por números. A cria-
sempre interligadas como ainda as duas possuem como ção, por assim dizer, procede quando o dois se desenvolve
características comuns o mistério e a numinosidade. a partir do um, e o três do dois etc. Ou, inversamente, a
O número tem sido invariavelmente usado para ca- série dos números naturais reflete a lei da organização
racterizar um objeto numinoso, e todos os números do subjacente a todo ato de criação.
1 ao 9 são "sagrados". [.. .] A qualidade mais elemen-
tar de um objeto é ele ser uno ou múltiplo. O número
ajuda mais que qualquer outra coisa a colocar o caos 78
Ibid., § 870.

298 299
Capítulo 12 'Elas se realizaram!
Eu sou o Alfa e o Ômega,
CRIAÇÃO RENOVADA E INVERTIDA O Princípio e o Fim;
e a quem tem sede eu darei gratuitamente da fonte de
água viva".

A idéia de que, após uma catástrofe apocalíptica, o


mundo será recriado ou que alguns processos cósmicos
criativos serão renovados, não se encontra apenas na Bí-
blia; ela também está, por exemplo, na mitologia germâ-
nica, onde depois da Gõtterdammerung, o crepúsculo dos
deuses, e da imensa luta final entre os antigos deuses
germânicos e os demônios do abismo e do inferno, na qual
No Apocalipse de São João (21,1-6), depois da imensa a maioria dos deuses perecerá, um novo mundo subita-
destruição do mundo, encontramos a seguinte passagem*: mente desabrochará das profundezas. Na relva, os novos
deuses encontrarão as tábuas de ouro com a sabedoria do
"Vi então um céu novo e uma nova terra - pois o passado, e Baldur e alguns outros deuses ressuscitados
primeiro céu e a primeira terra se foram, e o mar já viverão nesse novo mundo. Também existe a idéia, em
não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, diferentes sistemas mitológicos hindus, nos quais ela se
a Cidade santa, uma Jerusalém nova, pronta como acha ainda mais expandida, de que o cosmo sempre será
uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisto criado num kalpa (éon), destruído em outro, recriado no
ouvi uma voz forte que, do trono, dizia: seguinte e depois novamente destruído, ao longo de imen-
sos intervalos de tempo. Os conceitos germânico e hindu
'Eis a tenda de Deus com os homens. apontam para um processo cíclico, a saber, o de um ritmo
Ele habitará com eles; constante de criações e destruições sucessivas. Nada r e-
eles serão o seu povo, almente mudará muito: o início será sempre maravilho-
e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. so, e por volta do fim esse mundo decairá lentamente,
Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos,
enquanto o mal e as forças da decadência aos poucos irão
Pois nunca mais haverá morte,
nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. predominando até que sobrevenha a catástrofe final, e
Sim! As coisas antigas se foram!' depois tudo emerja de novo na beleza primaveril de uma
nova possibilidade de vida.
E o que está sentado no trono declarou então: 'Eis
Em contraste com isto, como sempre foi assinalado
que eu faço novas todas as coisas'. E continuou: 'Es-
creve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras'. pelos teólogos cristãos, a nova criação em nossa civiliza-
Disse-me ainda: ção é um evento incomparável. Não se imagina que nessa
kaine ktisis, a nova criação depois do Juízo Final, haverá
o reinício de tudo tal como era antes e que, depois de al-
* Conforme "A Bíblia de Jerusalém", São Paulo: Paulus, 1993. (NT) gum tempo, o diabo de novo fará suas maldades e a coisa

300 301
toda recomeçará, e assim será, por todo o sempre. A idéia é palavras, a idéia da pedra filosofal dos alquimistas é idên-
mais a de que uma nova criação é algo básica ou substan- tica à idéia do corpo glorificado. Isto nos proporciona uma
cialmente diferente da anterior. A diferença fundamental abordagem arquetípica de algumas idéias orientais, por-
está em que a nova criação é identificada com a Jerusalém que em variadas práticas orientais do ioga e da medita-
celestial, a cidade celestial, que, como sabemos com base ção o objetivo é produzir no íntimo do indivíduo o assim
em outras passagens do Apocalipse, é definitivamente con- chamado corpo diamantino, ou seja, o núcleo imortal da
cebida como uma mandala. Ao mesmo tempo, é igualada a personalidade.
uma mulher "enfeitada para o marido", e é uma realidade Há muito tempo existia no budismo tibetano, india-
essencialmente mais espiritual do que a realidade mate- no e em parte no chinês a noção de que a prática religiosa
rial em que vivemos . Além disso, se nos comportarmos bem da meditação serve ao propósito de produzir no seio do
o bastante para sermos admitidos nesse local, viveremos corpo moral em vida o corpo diamantino, para o qual, por
nessa Jerusalém celestial, não com os nossos corpos mas assim dizer, o indivíduo se muda. Já nesta existência, você
com o assim denominado "corpo glorificado". usa seu corpo diamantino cada vez mais como local de
Essa idéia incomodou muitíssimo os povos medievais, moradia, de tal modo que, no momento de sua morte, o
pois eles ficavam pensando o que aconteceria, caso hou- corpo mortal se desfaz, cai, como a casca de uma fruta, e
vesse a ressurreição do corpo, com alguém que tivesse uma o corpo glorificado - ou o corpo diamantino, na lingua-
perna de madeira ou alguma outra deficiência: será que a gem oriental - já está ali. O corpo glorificado, uma espé-
pessoa novamente nasceria com o corpo aleijado? A res- cie de substância imortal que contém a personalidade in-
posta teológica é que deveremos ter um corpo glorificado dividual, já é produzido pela prática religiosa ao longo da
que, em termos vagos, não será exatamente idêntico ao existência da pessoa. Essa mesma noção, estranha aos
corpo material e, em termos igualmente vagos e obscu- ensinamentos cristãos oficiais, apresenta-se n itidamente
ros, a Jerusalém celestial também não será a mesma que na filosofia alquímica. Os alquimistas também se esfor-
a esfera deficiente da realidade em que temos de viver çavam desde o início para produzir esse corpo diamantino
agora. A mesma idéia se aplica a ambos, ao corpo indivi- ou glorificado, e os alquimistas cristãos o identificaram
dual do sujeito e à criação como um todo. Na doutrina desde o começo com o corpo glorificado. Para construí-lo,
cristã oficial, essa renovação da criação ocorrerá num para confeccionar a chamada pedra filosofal, deve-se re-
momento preciso do futuro. A recriação de nossos corpos petir todo o processo da criação.
individuais como corpos glorificados também está proje- Um dos tratados alquímicos mais antigos é "O filóso-
tada num futuro estado do mundo, que é tido como um fo e alto sacerdote Komarios ensina a Cleópatra a sagra-
evento certo de acont ecer. da e divina arte da pedra filosofal". 79 Komarios provavel-
mente origina-se do termo sírio Komar,e quer dizer sa-
Existe uma variação muito interessante disto na al- cerdote. Também existe uma substância alquímica, mís-
quimia. Os alquimistas, mesmo nos textos mais antigos tica, chamada komaris, que é entendida como a prima
que conhecemos, o que significa aqueles que remontam materia, a matéria básica do processo todo. Portanto, tal-
ao século I d.C., e até o século I a.C., alimentavam a no-
ção de que o trabalho alquímico na retorta e a confecção
da pedra filosofal são uma repetição da criação e, ao mes- 79
Marcellin Berthelot, Collection des anciens Alchemistes grecs, vol. 1,
mo tempo, a fabricação do corpo glorificado. Em outras t rad. M. L. von Franz (Paris, 1887), p. 289.

302 303
vez esse termo faça alusão a esse material básico. Isso mundo é dividida em quatro elementos. Quan do vocô OH
não seria uma contradição pois, provavelmente, o termo unifica novamente pela aplicação de um processo circu 111
komaris deriva da idéia do segredo do sacerdote, da ma- tório, e~ vez de quatro obtém o um básico, do q unl OH
téria que é o segredo do sacerdote. Nessa época, no Egito, quatro tmham originalmente vindo. E st es, porta n to, Ml'lo
na Síria e em todos os demais lugares em que a alquimia novamente reduzidos à sua prima materia, a o sou oi<.
era praticada, ela ainda era o segredo guardado pelo Sumo mento uno, e temos então a Mônada Tota l, o oni-ab!'lln-
Sacerdote e, em geral, não era divulgada às pessoas co- ge_nte, a ~ônada presente em tudo e/ou, como os a lqui -
muns. Originalmente, no Egito, as diferentes classes de mistas latmos a chamaram muito mais t a rde, a quinltt
sacerdotes detinham o monopólio sobre certas técnicas. essentia, a quintessência que, na realida de , n ão é qu intn
Por exemplo, o embalsamamento, a esmaltagem, e outras, mas, por assim dizer, o sumo e produto con densado cl<
eram todas artes secretas de determinadas classes de sa- todos os outros quatro elementos.
cerdotes, prática essa que sobreviveu por mais algum t em-
po também na tradição alquímica, pois a alquimia pr oce- O texto prossegue:
de principa lmente de fontes egípcias helenizadas. O t ex-
to começa da seguinte forma : A terra coagula acima das águas e as águas estão aci
ma das montanhas. Toma, ó Cleópatra, a terra que <'Hl á
Este tratado é o escrito de ouro e prata que o sacerdo- acima da água e produze com ela um corpo esp iritual
te e filósofo Komarios narrou para a sábia Cleópatra, para servir, ou para, o espírito do alum (alúmen). R.~l,•
a respeito da criação. Ele ensina para Cleópatra a então será similar ao fogo no que concerne à quenlum,,
filosofia mística sentado num trono e m encionando a e lembrará, no que tange à secura, o ar, e as águas qw•
filosofia secreta. Ele tem a gnose mística que pode estão acima das montanhas e são semelhantes ao ar 1

ensinar àqueles que sabem, e ele a exibiu inclusive no que diz respeito à sua frialdade, e as ág uas são 111•
em suas mãos, ou seja, a Mônada Total*, que pratica melhantes à umidade...
com os quatro elementos.
Segue-se agora uma lacuna no texto que não pod •
Essa é uma afirmação bastante estranha, mas, como mos reconstruir. A idéia aqui é que misturemos n ão A6
veremos mais adiante no texto, a idéia é que há quatro os quatro elemen~os mas, ao mesmo tempo, t ambém, nH
elementos - Terra, Água, Fogo e Ar - e que esse proces- su_as quatr?~qu_ahdades. Na fase final da an tigüid ud
so é uma espécie de circulação pelos quatro elementos até (vmdo, da c1encia natural dos gregos), ocorre a idéia d<
que estes produzam um corpo sutil que contém em um só q~e ha quatro elementos e quatro qualidades, às vozuA
os quatro elementos. Isto aponta na direção de uma idéia oito _qualidades, que se unem. Por exemplo, a t erra é socn
completamente central e básica das várias tradições e _fna; a água tem a mesma frialdade, m as é úmidn o
alquímicas através das eras, a saber, que a totalidade do fna; o ar reparte o calor com o fogo mas t em outra con -
sist~ncia. Assim, existem muitos tipos de combinaçõ tt
de oito e quatro qualidades.
* Essa palavra é, na realidade, monas. Refere-se a um dos mais antigos
textos alquímicos que ainda temos e, por ele, depreende-se que realmente
trata do segredo da criação. O autor Komarios, no texto inteiro, está de Veja como de uma pérola, e de outra, ó Cleóp atra,
fato apontando para certa mônada. todo phármakon, toda cor, é produzida. Cleópatra CIL•

304 3015
tão tomou esse escrito de Komarios e começou a co- somente - nigredo, albedo, citrinitas e rubedo - , ou os
,rientar a respeito da divisão em quatro apresenta- quatro estágios, mas entre esses os da mumificação, da
da pela bela filosofia, ou seja, a respeito da subs- fusão do ouro, da subdivisão em dois e (isso não está cla-
tância básica de todas as naturezas. Ela explicou e ro, pois o autor salta para o comentário de que o objetivo
descobriu a forma [em grego, ideam] de todas as ope- é um vaso com seios) todas as partes que se tornam uma
rações e suas diferenças e, dessa maneira, perceber- só. Por isso, em vez de chegar ao quarto e ao reinício, há
,rios que a filosofia em tudo separa a substância bá- um súbito movimento rumo ao centro. Aqui há novamen-
sica da natureza em quatro, e é assim que primeiro te um curioso documento sobre o problema do três e do
temos o Nigrego ou Negrume, depois o Albedo, em quatro. Cleópatra realmente começa querendo quatro
terceiro Citrinitas ou Amarelamento e, em quarto, estágios, chega só até o terceiro e depois, ao se encami-
flubedo, ou Avermelhamento das substâncias. Po- nhar para o quarto, em vez de dizer que entre o rubedo e
demos também subdividir esses elementos básicos o nigredo existe um quarto estágio, ela volta ao centro.
n,um meio elemento similar, ou num meio passo, e Subitamente, o objetivo da coisa toda é fazer um vaso
assim temos entre o Nigredo e o Albedo a mumifica- com seios.
ção e a lavagem da forma; entre o Albedo e o amarela- O vaso com seios é um tipo interessante de vaso al-
,riento o derretimento do ouro, e entre o amarelamen- químico que provavelmente foi inventado no Egito. É se-
tD e o avermelhamento há a divisão em dois do pro- melhante ao que depois foi chamado de o pelicano. No
duto todo. O objetivo final desse procedimento intei- manuscrito original, há desenhos do vaso de modo a per-
ro é um vaso com seios e todas as partes tornando-se cebermos exatamente a sua aparência. Ele funciona como
n,uma só. coador de café. Há fogo sob o vaso e a substância subli-
mada é condensada e precipitada como umidade pelas
Jt preciso um grande teor de conhecimentos prévios duas laterais, do mesmo modo que o leite nos seios das
mulheres, o que explica o nome desse objeto. Existe um
para entender, pelo menos em parte, o que o autor está
outro tipo desse vaso que, em vez de liberar o líquido
querendo alcançar. O que vemos são duas coisas: uma (como no tipo 1) e dar prosseguimento ao processo alquí-
identidade entre filosofia e natureza, e isso significa que mico, deixa que reflua, o que sugere o pelicano. Esse vaso
a subdivisão da natureza em quatro é idêntica à subdivi- é para a circulação na qual a substância fica em cons-
são dl:l "filosofia" em quatro partes. A filosofia (que nesse tante cozimento e é precipitada de volta para mais puri-
caso significa a teoria alquímica, ou a abordagem teórica ficação ou clareamento.
dos alquimistas) é responsável pelo fato de qu e tudo na
Diz-se que esse vaso foi inventado por Maria Profe-
natureza é dividido em quatro. Depois o autor, falando tisa, irmã de Moisés, figura inteiramente lendária. Ela
através de Cleópatra, salta disso para o fato de que há também é considerada profetisa em certos textos gnósti-
quatro estágios na matéria, a saber, o preto, o branco, o cos. Ainda usamos na cozinha o "banho-Maria", ou seja,
amarelo e o vermelho, a famosa teoria que sobreviveu até um recipiente com água em ebulição recebe outro, com a
0 fim da própria alquimia, a saber, o século XVII. Essas substância que se quer preparar. Assim, quando se está
teorüis realmente duraram 1700 anos, sem mudar. Entre aquecendo uma lata de sopa de aspargos está-se utili-
esses estados, ela então inclui meios processos. Temos zando da grande invenção de Maria Profetisa, sem nem
assim, de novo, uma mandala: não os quatro elementos saber disso!

306 307
CÉU lidade, adquirido, construído, tanto pelos que eles cha-
mavam de "a filosofia", que para eles era uma coisa mate-
rial, quanto pelos que em muitos outros textos aparece
tipo 1
como "a alma", tal como se pode comprovar no capítulo de
Jung sobre o vaso. Trata-se, na realidade, de um símbolo

--
,~
chuva
umidade
e
sobre a psique humana como um todo, um microcosmo,
um vaso dentro do qual todos os processos macrocósmicos
são capturados e, ao mesmo tempo, apreendidos e conce-
bidos. Em toda a alquimia, uma vez que os processos
mentais são completamente projetados em operações
materiais, não há diferença entre a retorta concreta e
aquilo que chamaríamos de psique.
A parte seguinte desse texto, que é o mais antigo
Vaso com Seios Pelicano
documento alquímico que temos por extenso, diz:

Na alquimia, esse vaso era considerado uma repre- Vocês também, ó Amigos, se querem aproximar-sedes-
sentação do universo todo. Pensava-se (como ainda acham sa maravilhosa arte da alquimia, devem proceder da
certos astrônomos) que o universo era um sistema fecha- mesma maneira. Observem agora as plantas, de onde
do: o vaso era uma réplica do universo com seu formato; a elas vêm, descem das montanhas ou crescem da ter-
terra embaixo, o céu em cima, e isso explica as referên- ra. Depois, vejam como é preciso acercar-se delas, ou
cias às nuvens que se condensam e à chuva que cai. Esse seja, a pessoa deve colhê-las no momento certo e no
processo todo na retorta é uma espécie de processo cósmi- dia apropriado, e ver como o ar as serve e a terra as
co - de acordo com o que na época se pensava que fosse o circunda, para que não morram. Pois são todas de
cosmo. Assim, sob a terra está o fogo, como o inferno em- uma só substância.
baixo da superfície da terra, e acima se encontram o ar e
o céu. Esse vaso tornou-se um conceito místico na alqui- Aqui, Cleópatra compara o processo central com o
mia. Pode-se ler um capítulo inteiro sobre isso no Psicolo- crescimento de uma planta. Psicologicamente, existe uma
gia e Alquimia de Jung, onde ele arrola um número imenso ligação. Primeiro ela girou em torno de quatro ou do qua-
de citações alquímicas sobre a natureza do vaso. Desse se oito estágios (sete e meio), e depois saltou para o pro-
material se depreende, com clareza, que na alquimia esse blema central do vaso. Agora, lida com a idéia de uma
objeto não era considerado como uma retorta banal, como planta em crescimento, que reúne material do ar, da água
seríamos propensos a pensar, mas significava um conceito e da terra - de todo lado. Por conseguinte, vemos que a
místico.80 Esse conceito místico se resume ao fato de que, planta em crescimento é um símile para a mesma coisa,
para os alquimistas, o vaso representava algo como a para aquele centro místico em cuja direção os alquimis-
possibilidade de um conceito psíquico unitário sobre a rea- tas concentravam toda a sua atenção. Agora, ela utilizou
o símile: da mesma forma como a planta usa elementos
•° C. G. Jung, Collected Works, vol 12, § 338. minerais, a água e o ar - todos os elementos - e os con-

308 309
densa num novo ser, ou seja a planta, também a nossa celestial foi descrita com as p alav rnH "o n f'o it,n cl 111·0111111111111
arte produz uma só substância que é extraída de todas as noiva para seu marido", de modo que llu11u rn 111 o ►IUMl'll
substâncias circundantes. do da nova criação foi equiparado a uma figura\ f'o ni l 11 l 11 11
que se move na direção do ato da coniunctio. No Apoc11-
Agora Ostanes e seus amigos respondem a Cleópatra. lipse, essa "noiva enfeitada para seu marido" foi identifi -
Vejam, Komarios e Cleópatra estão dialogando com toda
cada com a famosa mulher que tem a coroa de doze estre-
uma assembléia de alquimistas.
las na cabeça e que dá à luz o novo Salvador.
Em você [significando Cleópatra] oculta-se um segre- Em seguida, o texto salta para o fato de que todos os
do terrível e maravilhoso. Por favor, explique melhor elementos, o mais alto, o mais baixo, e assim por diante,
os elementos: como o que está acima desce, e o que unem-se no meio; ou seja, todos os elementos são trazidos
está embaixo sobe, e como o meio se aproxima do mais para o centro onde se integram, e esse é o segredo. A se-
alto e do mais baixo e como tudo se torna um no cen- guir, o texto salta novamente para outra idéia, a de que
tro, e diga-nos o que são esses elementos e como as simultaneamente com essa condensação de todos os ele-
águas abençoadas descem e olham para os mortos no mentos dispersos, com esse tremendo ato de condensação,
mundo inferior que estão algemados lá e infelizes, e a água da vida penetra no mundo inferior onde se encon-
veja como o elixir da vida entra neles e como são des- tram os mortos e os ressuscita. Assim, a condensação coin-
pertados a ponto de saírem de seus leitos. E quando cide com a ressurreição dos mortos, e aqui voltamos ao
as águas entram na parte alta de seus leitos então a motivo do corpo glorificado.
luz vem e a nuvem leva-a para cima, a nuvem vem do
mar e a água sobe e os filósofos podem ver o que é E Cleópatra lhes disse: as águas entram e despertam
visível e se enchem de uma grande felicidade. os corpos e os espíritos enfraquecidos dentro deles,
pois que devem sofrer no mundo inferior por um lon-
O primeiro é um comentário interessante porque a go tempo, e então eles saem do mundo inferior e so-
assembléia dos filósofos diz para a professora, Cleópatra, bem e se vestem com cores lindas como as flores da
que nela, ou seja, na alquimista, oculta-se um terrível Primavera e a própria Primavera se regozija com a
segredo. A projeção é clara, ou seja, mostra que o segredo beleza que lhes dá. Para vocês que me entendem, di-
da criação e o segredo da restauração esconde-se dentro rei que, quando vocês erguem as plantas e os elemen-
de uma figura feminina, neste caso, a sábia Cleópatra. Se tos e as pedras de seus lugares originais, elas pare-
vocês bem se lembram, em muitos mitos de criação que cem lindas, mas não o são. Todavia, depois de terem
eu citei havia, no começo uma figura feminina grávida sido testadas com o fogo, adquirem então uma cor
que continha o mundo todo. Esse motivo apareceu por linda e uma glória ainda mais linda, ou seja, a gló-
extenso no mito iroquês em que a criação inteira estava ria oculta que por tanto tempo desejou a beleza, e tudo
contida no útero da mulher que despencou do céu na ter- isso se passa quando a matéria é transformada pelo
ra. Novamente aqui, na alquimia, vemos a mesma idéia, fogo numa substância divina.
a de que no íntimo de uma figura feminina mística está
contido primeiro todo o segredo da arte da criação; entre- A idéia é que você tome os corpos originais, quer se-
tanto, ele possui uma nuança mais espiritual, no sentido jam pedras ou plantas, a matéria em sua forma original
de que é o conhecimento de um segredo. A Jerusalém - que pode parecer linda mas não é - e a queime até

310 311
que se transformem em cinzas. Isso significa que você a uma criança que ou é o bebê Mercúrio ou uma criança
submete ao teste do fogo. Depois você produz alguma coi- divina, ou a pedra filosofal e, ao mesmo tempo, simples-
sa que contém uma glória espiritual oculta e que esse texto mente a renovação da filosofia alquímica.
chama inclusive de divina. Assim, o que você produz Omito aqui uma parte do texto e prossigo com o capí-
condensando os diversos materiais é um corpo divino. Esse tulo 13:
mudou e assumiu uma natureza divina.
Vejam o mistério paradoxal, ó Irmãos, a verdade com-
Nossa arte sagrada é apenas como uma criança que, pletamente desconhecida que lhes revelarei. Observem
tal como um embrião, é alimentado pelo útero da que vocês nutrem sua própria terra e que nutrem seus
mãe e cresce devagar. Primeiro, as ondas do mar próprios germes para depois poderem colher lindos fru-
ferem o cadáver e as ondas do mundo inferior o des- tos. Ouçam e pensem no que digo: Tomem dos quatro
tróem em seu túmulo; mas, quando você abre o tú- elementos, o mais alto e o mais baixo dos masculinos,
mulo, aquilo que até então tinha sido um cadáver o branco e o vermelho, na mesma proporção, masculi-
agora vive, agora sai dali como uma criança sai do no e feminino, para que possam se unir, e da mesma
útero de sua mãe. E quando os filósofos atestam a forma que a ave choca com calor e completa seu ovo
beleza eles ficam muito felizes e, assim como a mãe com quentura, vocês também devem derreter os dois e
amorosa que alimenta seu bebê recém-nascido, tam- colocá-los em locais onde bata muito sol, assando-os
bém eles tentam nutrir seu cadáver que agora se tor- num fogo brando com leite de virgem e fumaça. E quan-
nou uma criança, não com leite, mas com água, pois do houverem se tornado um [i. e., quando alma e espí-
a arte toda [significando a alquimia] é a imagem de rito tiverem se unido] e forem um, então projete-os den-
uma criança, porque assume a forma de uma crian- tro do corpo de prata e assim terão o ouro que todas as
ça e em todos esses pontos é completa e esse é o mis- casas do tesouro dos reis não têm.
tério secreto inviolável.
Vocês devem se lembrar que o pensamento alquími-
Detectamos aqui um motivo interessante, ou seja, a co nunca procede em linha reta; é circular e sempre gira
destruição do cadáver dentro do túmulo. Disso procede, em torno de um motivo central. Aqui, o mesmo motivo
de maneira secreta, a ressurreição de uma criança que central, que primeiramente foi descrito como a fabrica-
sai do túmulo, e essa criança é a arte da alquimia e é um ção de um vaso e igualado a plantas, ou imitando o cresci-
mistério que é apresentado aos demais pelos esforços dos mento da planta, agora é equiparado a uma coniunctio
filósofos. Esse texto antigo, Komarios para Cleopatra, entre macho e fêmea, e igualado à idéia da ave que choca
possui todas as idéias mais essenciais que são encontra- seu ovo, até que alma e espírito se tornem um só, uma
das em textos alquímicos subseqüentes. Várias vezes a unificação interna entre alma e espírito que, então, ad-
pedra filosofal também foi entendida como uma criança quire o corpo de prata e com isso se torna um ouro que
divina nascida da arte da alquimia, usando o símile da não se pode achar nem mesmo nas casas do tesouro dos
morte e da ressurreição. O nigredo, estado de escuridão reis. Portanto, é uma unificação entre uma alma, um es-
total, é sempre igualado ao estado da morte, em que o pírito e um corpo, chamado corpo de prata, um corpo fe-
cadáver é destruído no túmulo; o albedo é a lavagem do minino, e esses três juntos constituem um quarto, o ouro.
morto e a remoção do odor fétido da cova. E depois nasce Evidentemente, como é acrescentado, esse ouro não pode

312 313
ser encontrado nas casas do tesouro dos reis, o que sig- ela habita nele. Ela se vestiu com a luz divina e eles se
nifica que não é o ouro habitu al, não é o metal que ve- tornaram um só. As trevas desapareceram e eles se
mos e que era muito conhecido naqueles tempos, mas converteram em um só no amor, corpo, alma e espíri-
um ouro místico. Os alquimistas tentaram criar uma to. Todos são um e esse mistério está oculto e, no fat o
substância que chamaram de ouro. Ele, porém, não ti- de terem se reunido e unido um com o outro, o mistério
nha nada a ver com o metal em si. E les queriam dizer se completa; agora a casa está selada e a estátua re-
alguma coisa divina, incorruptível, que não pode ser quei- pleta de luz e a divindade está erguida. O fogo tornou-os
mada pelo fogo, um corpo imortal, por assim dizer. Esse um e transmutado, e ele proveio do útero maternal.
ouro, que em textos posteriores é chamado freqüentemente
de a pedra filosofal, é o corpo imortal que surge quando Decidi apresentar essa passagem por extenso por-
se dá a união dos opostos e que não se sujeita mais à de- que nela vocês percebem nitidamente como a descrição
cadência neste mundo. completa do processo alquímico se transforma na lingua-
gem de um hino religioso, louvando uma experiência de
Esse é o mistério dos filósofos e eles fizeram o jura- ressurreição depois da morte e o ingresso na imortalida-
mento d e nunca revelá-lo ou profaná-lo, porque é divi- de. Este texto retrata melhor que muitos outros de data
no. É divino porque está unido com a divindade e traz posterior a meta final de todo o esforço dos alquimistas, a
cada substância até seu divino completamento e é um saber, produzir corpos glorificados com seus próprios co-
mistério no qual o espírito encarna, os mortos recebem nhecimentos, nesta vida, sem esperar que isso venha a
uma alma e recebem o espírito e depois superam um acontecer no final dos tempos . É claro que o alquimista
ao outro. Também existe um espírito obscuro, cheio de representa a corrente su bterrânea introvertida da dou-
insensatez e desestímulo que primeiro governa os cor- trina cristã oficial, porque a doutrina oficial era mais in-
pos para que não possam se tornar brancos e receber a fluenciada, especialmente nos primeiros tempos, pelos
cor do criador. Eles são enfràquecidos por esse pneuma extrovertidos e por isso permaneceu projetada na forma,
escuro. Mas quando o odor fétido desse espírito obscu- no sentido de que não podemos fazer nada por nós, mas
ro já desapareceu, o cadáver se enche de luz, e alma, devemos apodrecer nas covas e então sermos ressuscita-
espírito e corpo se regozijam. E então a alma clama ao dos por Deus no final dos tempos. A tendência introvertida
corpo iluminado: "Desperte do mundo inferior, saia tentou dar suporte ao trabalho de Deus, por assim dizer,
do túmulo, erga-se das trevas, vista-se com a espiri- através de uma atividade de meditação, construindo e
tualização e a deificação porque a voz da ressurreição produzindo ou realizando esse fato como evento místico
alcançou você e o elixir da vida penetrou em seu ser". interno, que os extrovertidos esperavam que ocorresse de
O espírito então se regozija mais uma vez por estar no fora, em algum momento futuro. Portanto, de certa ma-
corpo e na alma e também se alegra por estar onde ela neira, exceto por esse contraste tipológico, a alquimia
vive e ela abraça o marido em júbilo porque as trevas nunca foi an ticristã; ela simplesmente foi uma corrente
desapareceram e tudo está pleno de luz e não pode mais subterrânea que dava a toda representação cristã um fei-
ser separado da luz, e a alma se regozija em sua casa tio mais interiorizado, psíquico, místico, e com isso a apro-
[ou seja, o corpo] porque primeiro ele era escuro mas ximou das doutrinas do Extremo Oriente. Fatores negli-
agora ela o encontra cheio de luz e se torna uma só genciados, como o corpo glorificado, portanto, tornaram-
com ele porque ele [a casa ou corpo] agora é divino e se para a alquimia seu principal foco de atenção.

314 315
Quero agora citar alguns outros textos alquímicos. cípios), decorre que um pouco deve ser dito sobre a
O próximo provavelmente data do século XII ou XIII, de terra e o céu, pois a terra é o princípio e a mãe dos
modo que implica num salto de "apenas" 1100 anos em outros elementos, tal como o Profeta deu testemunho:
relação ao que acabamos de estudar. Vocês se surpreen- No princípio, ó Senhor, tu fundaste a terra e os céus
derão ao verificar o quanto os alquimistas são conserva- são obra das tuas mãos, ou seja, a água, o ar e o fogo.
dores e até que ponto as idéias continuam similares. Pois da terra os elementos são separados ao morrer,
e a ele regressam pela aceleração, pois daquilo que a
Trata-se do texto intitulado Aurora Consurgens, atri- coisa é composta àquilo ela deve ser resumida, como
buído a Santo Tomás de Aquino. Até o momento a impu- o atesta tuas sagradas palavras: O homem é pó e ao
tação dessa autoria só serviu para causar riso; nunca foi pó voltará. Esse pó foi ordenado pelos filósofos e mis-
levada a sério, mas fiz uma tentativa no sentido de discu- turado com a água permanente, que é o fermento do
tir essa alegação. Como porém, aqui, não se trata do pon- ouro, e seu ouro é o corpo, isto é, a terra, que Aristóte-
to mais importante, simplesmente veremos o texto tal les chamou de coagulante, pois que coagula a água.
como se apresenta, ou seja, uma peça literária da alqui- É o pó da Terra Prometida, na qual Hermes ordenou
mia medieval. que seu filho semeasse ouro, para que as chuvas vi-
Nos primeiros capítulos, o autor descreve de forma ventes dela subissem, e água que a aquecesse, como
extática como uma mulher desce do céu e se encaminha disse Senior'·".· E quando desejavam extrair essa água
em sua direção, e ele a chama de Sofia, a Sabedoria de divina, que é fogo, aqueciam-na com seu fogo, que é
Deus. De acordo com sua concepção, ela também é o conhe- água, e que haviam medido até o fim e escondido, em
cimento místico da alquimia. No capítulo anterior, o déci- virtude da estupidez dos tolos. E sobre isso todos os
mo primeiro, a pedra filosofal é descrita como idêntica à filósofos juraram que nunca iriam escrever de forma
Jerusalém celestial. Assim, temos aqui a mesma idéia que clara, em parte alguma, mas que deixariam que Deus
recorre no Apocalipse, a de uma Jerusalém celestial, como glorioso o revelasse a quem quisesse, e ocultasse de
uma espécie de figura divina feminina personificada como quem desejasse, pois ele tem grande perspicácia e todo
Sapientia Dei, que é idêntica à alquimia e ao produto des- o segredo da sabedoria. E quando o calor do fogo atin-
ta: é a Jerusalém celestial e a pedra filosofal. O autor en- ge a própria terra, a terra se dissolve e se torna uma
tão segue com a descrição da pedra filosofal como idêntica fervura que é água evaporada, e depois reverte à sua
à Jerusalém celestial numa parábola intitulada "A pará- forma terrestre anterior. Portanto, é pela água que a
b9la do céu e da terra e a organização dos elementos". Essa terra se movimenta e os céus vertem sobre ela, e flui
narrativa é uma coletânea de citações do Gênesis e outras como mel por todo o mundo, falando de sua glória.
partes da Bíblia, todas referindo-se à criação. O ponto que Pois essa glória só a conhece aquele que tem o enten-
ainda estou querendo frisar é que o opus alquímico é uma dimento de como terra e céus foram feitos, e por isso
repetição dos nossos mitos de criação. a terra permanece para sempre e os céus são funda-
dos sobre ela, como o Profeta testemunhou: Pois tu
Aquele que é da terra, da terra falou, aquele que vem
do céu está acima de tudo. Como aqui a terra tam-
* Senior - ou E l Shaykh em árabe - foi um famoso autor árabe cujo
bém está representada como o princípio dos elemen- nome real era Muhammad ibn Umail; nos textos em latim, seu nome sem-
tos, mas os céus representam os três mais altos (prin- pre foi traduzido por Senior, pois n ão sabiam seu nome em árabe.

316 317
fundaste a terra sobre as bases dela, e ela não se mo- (agora) abunda ainda mais. Pois, assim como em
verá por todo o sempre. Quanto mais fundo for seu Adão tudo morre, em Cristo também todos (os ho-
revestimento, acima dele haverão água, ar, fogo e a mens) serão ressuscitados. Pois para um homem d e
aves do ar devem morar aí, aguando-a com os ele- fato veio a morte, e por (Jesus) ele mesmo a ressur-
mentos mais altos, para que possa ser enchida com o reição dos mortos. Pois o primeiro Adão e seus fi-
fruto de seus trabalhos, porque no centro da terra os lhos tiveram seu princípio nos elementos corruptí-
sete planetas assenta,:am raízes e lá deixaram suas veis e portanto era preciso que o composto devesse
virtudes, do que decorre que ría terra a água está ger- ser corrupto, mas o segundo Adão, que é chamado
minando variados tipos de cores e frutos e produzin- de o homem filosófico, pelos puros elementos, entrou
do pão e vinho que alegram o coração do/ homem, e na eternidade. Portanto, o que é composto da essên-
também brotando relva para o gado e erv'as que ser- cia simples e pura permaneceu por todo o sempre.
vem ao homem. Essa terra, digo, fez a luz em suas Como disse Senior: Existe uma coisa que nunca
fases, depois o sol subiu, muito cedo na manhã do morre, pois ela continua em crescimento perpétuo,
primeiro dia da semana, depois das trevas, que tu quando o corpo for glorificado na ressurreição final
providenciaste para que ali estivessem antes do ama- dos mortos, razão pela qual o Credo deu testemu-
nhecer, e é (noite). Pois nela todas os animais da flo- nho da ressurreição da carne e da vida eterna após
resta perambulam, pois tu ditaste um limite que elas a morte. Então disse o segundo Adão ao primeiro e
não devem ultrapassar até o alvejamento, mas em sua aos filhos deste: Venham, vocês abençoados do meu
ordem (os dias) prosseguem normalmente até o Pai, que possuem a sabedoria eterna preparada para
avermelhamento, pois todas as coisas servem à terra, vocês desde o início da Obra, e comam do meu pão e
e os dias de seus anos são tríplices e dez anos passa- bebam do meu vinho que eu preparei para vocês [em
ram-se depois, porque continha todas as coisas por vez de "desde o início da criação" ele coloca "desde o
ordem de sua divindade, como no Turba philosopho- início da Obra", dizendo literalmente com estas pa-
rum [famoso texto clássico da alquimia] está escrito:
lavras que o opus alquímico e a criação são idênti-
A terra, por ser pesada, contém todas as coisas, pois cos], pois todas as coisas estão preparadas para
vocês. Aquele que tem ouvidos para ouvir que ouça o
é o alicerce do céu inteiro, porque apareceu seco quan-
que o espírito da doutrina disse para os filhos da
do da separação dos elementos. Portanto, no Mar Ver-
disciplina relativa ao Adão terrestre e celestial, de
melho havia um caminho sem obstáculos, pois esse
que os filósofos tratam nesses termos: Quando tive-
grande e vasto mar caiu sobre as rochas e as águas
res água vinda da terra, ar vindo da água, fogo vin-
(metálicas) refluíram. Então os rios desapareceram do do ar e terra vinda do fogo, então tu possuirás
na terra seca, o que deixou em júbilo a cidade de Deus;
plena e perfeitamente a [nossa] arte [etc.)). 81
quando este mortal puder vestir-se de imortalidade,
e a corrupção do vivente revestir-se de incorrupção,
então sucederão aquelas coisas todas que estão escri- 81 Este livro apareceu em alemão como o terceiro volume da obra de

Jung Mysterium Coniunctionis, mas separadamente em inglês: Marie-


tas, e a Morte será tragada na vitória. Ó morte, onde Louise von Franz, Aurora Consurgens (Princeton: Princeton University
está tua vitória? Onde teu pecado abundava, a graça Press, Bollingen Series LXXVII, 1966), pp. 121-31.

318 319
Aqui, de novo, vocês têm resumidamente a mesma idéia não-alquímica da alquimia. Estou pessoalmente con-
idéia, ou seja, a de que a produção de uma coisa a partir vencida de que, qualquer que tenha sido o autor deste
dos quatro elementos num opus, repete o processo com- texto, ele certamente não era mais um químico mexendo
pleto da criação, e que isso está ao mesmo tempo trazen- em retortas, mas sim alguém que usou a linguagem quí-
do à luz ou construindo o segundo Adão, interior, contra mica para descrever uma experiência pessoal mística in-
ou em lugar do primeiro Adão, o corruptível. E então há terior. Por meio de um desenvolvimento cada vez maior
esse maravilhoso discurso feito pelo segundo Adão, em do aspecto químico da alquimia, e através da descoberta
quem todos ressuscitam, dirigido aos filhos do primeiro de que o peso atômico desempenha um importante papel
Adão corrupto, que é destruído. Nesse discurso, inclusi- na mistura dos elementos, bem como outros fatores dessa
ve, consta a idéia da produção de um corpo imortal pela natureza, a química lentamente evoluiu da alquimia e esta
produção - através de um processo interior - da ressur- doutrina espiritual foi, correspondentemente, tornando-
reição final dos mortos dentro da pedra filosofal. Para esse se cada vez mais rala e racional. No Psicologia e Alqui-
autor, a pedra filosofal era idêntica à experiência psíqui- mia de Jung, há um texto do século XVIII que denuncia
ca interior do que ele chamava de Cristo, e que nós cha- essa intelectualização e liqüefação da experiência origi-
maríamos, psicologicamente, de uma vivência do Si-mes- nal. Como diz Jung, esse texto não é antigo de jeito ne-
mo, o que naturalmente seria chamado de Cristo pelo nhum e apresenta todos os indícios de pertencer ao perío-
místico medieval. Mas é o Cristo interior que ele experi- do decadente. É o seguinte:
menta e que é, ao mesmo tempo, sua própria im.ortalida-
de, pois a ressurreição ocorre em Cristo, e, para o alqui- Recolha água da chuva, uma boa quantidade, p elo
mista, por essa via, na pedra filosofal. menos dez quartos, guarde-a bem fechada em garra-
fas de vidro durante pelo menos dez dias, e então
Existe só mais um capítulo no Aurora e que é intitu- matéria sólida e fezes ficarão depositadas no fundo.
lado "A sétima parábola da conversa entre o amante e a Derrame o líquido limpo e coloque-o num recipiente
bem-amada", que é uma paráfrase do Cântico dos Cânticos de madeira, de formato redondo como uma bola, re-
de Salomão, e consiste numa canção de amor sobre a parta-o ao meio e encha o recipiente até em cima uma
coniunctio. Assim, vemos que na ressurreição, ou depois terceira vez, e coloque ao sol do meio-dia em local se-
dela, exatamente no mesmo padrão que no antigo texto creto ou um esconderijo. Quando isso houver sido fei-
de Komarios, após a produção do corpo imortal vem a to, pegue uma gota do vinho tinto consagrado e deixe
unificação de todas as substâncias numa coniunctio. Mas que caia na água, e nesse instante você perceberá uma
o que no Apocalipse (onde a Jerusalém celestial também névoa e uma escuridão densa na superfície da água,
é uma noiva enfeitada para seu marido) só é insinuado assim como deve ter sido na primeira criação. [Ve-
numa única palavra, aqui é expandido pelos alquimistas jam, agora é só um símile, não é uma identidade.]
como um processo completo. Agora, adicione duas gotas e você verá a luz rompen-
Devido ao fato de as idéias e obras de certos autores do daquela escuridão; daí em diante, pouco a pouco,
alquimistas medievais terem se tornado imbuídas das acrescente em todas as metades de cada quarto de
experiências místicas cristãs, o trabalho alquímico se hora, primeiro três, depois quatro, depois cinco, d e-
transformou mais clara e expressamente numa experiên- pois seis gotas, e nada mais, e você verá com seus pró-
cia religiosa interna, e aqui já temos os primórdios de uma prios olhos uma coisa aparecendo depois da outra,

320 321
em sucessão, à tona d'água, assim como Deus criou to de outro texto alquímico de período tardio, cujo autor é
todas as coisas em seis dias e como tudo aconteceu, e Gerardus Dorneus, que o que o alquimista fazia, nessa
esses segredos não são para serem pronunciados em fase tardia, era realmente imaginação ativa com substân-
voz alta e eu também não tenho o poder de revelá-los. cias químicas. Já neste texto do século XVIII, o experi-
Que seus olhos julguem por si, pois assim foi o mun- mento químico é simplesmente empregado como base para
do criado. Que tudo fique como é, e uma hora e meia isso. Naturalmente, podemos utilizar dança, pintura ou
depois de haver começado, desaparecerá. poesia, ou qualquer coisa de que se goste, para fazer ima-
Dessa maneira, você verá claramente os segredos de ginação ativa do modo como a entendemos; tais pessoas
Deus, que no momento presente estão escondidos de empregavam substâncias químicas.
você como de uma criança. Você entenderá o que Podemos dizer assim que, do século XVIII em dian-
Moisés escreveu a respeito da criação; verá que tipo te, o conteúdo arquetípico essencial, ou a filosofia alquí-
de corpo Adão e Eva tiveram antes de serem expul- mica, desceu para um plano subterrâneo e é uma das gran-
sos, o que era a serpente, o que era a árvore, e que des realizações de Jung ele a ter trazido novamente à tona,
tipo de frutos comiam; onde e o que era o Paraíso, e tendo-a tornado compreensível a nós como fenômeno psí-
em que corpos os justos serão ressuscitados; não nes- quico inconsciente. Antes de seu trabalho, só havia o modo
te corpo que receberam de Adão, mas naquele que ob- "ou isso, ou aquilo" de entendê-lo: ou é material e quimi-
temos através do Espírito Santo, ou seja, naquele cor- camente verdadeiro, o que obviamente não é, ou é uma
po que o nosso Salvador trouxe do céu. 82 alegoria intelectual para um conteúdo de fé. Agora, pode-
mos constatar que não é nem quimicamente verdacle'iro,
Comparando com a experiência mística extática que nem é um símile intelectual para algum conteúdo de nos-
é descrita no Aurora Consurgens, este homem simples- so credo, e sim que é uma referência a uma experiência
mente misturou certas substâncias químicas e as compa- genuína e original de uma constelação inconsciente psí-
rou como uma alegoria, ou símile, à criação. Como não é quica e arquetípica e que, por isso, tem uma realidade
mais um mistério, ele faz grande alarde de sua qualidade própria. Nesse sentido, a alquimia é realmente uma cor-
secreta - só porque não o é mais. Para este autor, evi- rente não oficial do cristianísmo que se aproxima das pers-
dentemente, isso é só brincar com substâncias, fantasiar pectivas orientais, que de longa data já sabiam que a res-
e igualar os processos na retorta ao ato da criação. As- surreição é um fator interno, uma experiência íntima, e
sim, o que antes fora uma identidade arcaica original, que a produção do corpo diamantino, ou corpo imortal, é
agora se tornou uma estéril alegoria intelectual, da fase operada, feita, produzida pela transformação da psique
decadente da arte alquímica.
do próprio indivíduo. Em paralelo à meditação oriental
O que nitidamente ficou perdido e desapareceu sob o está a descoberta de Jung da técnica da imaginação ati-
chão nesse texto do século XVIII foi o que chamaríamos va, por meio da qual, desde que usada adequadamente,
de a experiência emocional, psicológica, mística. Jung diz, pode-se produzir o opus da alquimia em outra dimensão.
num comentário do Mysterium Coniunctionis, 83 a respei-
Menciono estas coisas porque, como observamos nos
textos, há paralelos realmente notáveis entre o opus al-
82
C. G. Jung, Collected Works, vol. 12, § 347. químico, a produção da pedra filosofal e o corpo diaman-
83
Ibid., vol. 14, §§ 686ss. tino, e os mitos de criação que vimos anteriormente. Al-

322 323
guns alquimistas sabiam disso, naturalmente e até assi- Primeiramente encontramos os animais, depois vêm as
nalavam a similaridade entre ambos os processos, de- plantas e por último o ouro inorgânico. Portanto, pode-
monstrando que compreendiam o opus alquímico como um mos entender o opus alquímico como uma inversão, no
tipo de repetição psíquica da cosmogonia externa. Aquilo plano psíquico, de nossa evolução biológica no plano ex-
que em todas as civilizações antigas era um ensinamento terior. É como se o que acontece enquanto processo de
relativo à criação externa do cosmo retomou agora lenta- expansão no nível físico sofresse uma inversão rio nível
mente seu caminho de entrada no plano do indivíduo, com psíquico e fosse internalizado em ordem inversa.
a ajuda da filosofia alquímica, plano no seio do qual teve
sua origem inconsciente. Esse processo foi enfim inclusi- Podemos dizer apenas que a análise normalmente se-
ve compreendido como um processo de crescimento da gue mais ou menos o mesmo padrão que o opus alquímico.
consciência dentro do ser humano individual e, depois Ao analisarmos uma pessoa, primeiro encontramos os ape-
desse evento, podemos chamar todos os mitos de criação tites selvagens, os complexos autônomos, os impulsos de sexo
de projeção desse processo psíquico originalmente inte- e poder, e esses conteúdos geralmente vêm simbolizados por
rior no mundo externo. leões, cães que acasalam, e imagens congêneres. Dentro do
ser humano deparamos com toda a tonitroante vida selva-
Há mais um ponto importante a ser ressaltado. Na gem. Depois dela surgem os símbolos da vida vegetal, que já
repetida criação que transcorre dentro do indivíduo, que exibem uma certa unificação e o crescimento da personali-
é conscientemente acionada como esforço para uma cons- dade, refletindo uma consolidação do vínculo entre o incons-
cientização mais abrangente, o processo da criação, como ciente e a consciência; a pessoa deixa de ser governada ape-
por exemplo o descreve o Gênese, é invertido. Aqui, infe-
nas pelos desejos e apetites. Mais tarde há o aparecimento
lizmente, vocês terão de acreditar em mim porque não
do simbolismo da mandala e da pedra filosofal. Estes com-
posso exibir um a um todos os documentos relevantes que
provam como a experiência interior já é sólida e como está
servem de evidência. No processo alquímico, o que geral-
mente vem antes, como o nigredo, são os animais selva- firme a ligação entre o Eu e o Si-mesmo e, assim, com a
gens - leões, dragões, ursos, lobos e assim por diante; o personalidade como um todo.
reino animal. Depois disso, geralmente, há símiles da vida Desse modo, em certo sentido, o processo alquímico
vegetal, e a confecção da pedra filosofal é comparada a se (na projeção) e o processo da individuação segundo Jung
plantar uma árvore que produz frutos de ouro e dar-lhe são ambos criações ao inverso que contêm todo o simbo-
água. Descrevem todo o processo de crescimento da árvo- lismo dos mitos de criação em ordem invertida. Da mes-
re dentro da retorta e dentro do ser humano. O objetivo ma maneira, no início da criação, tínhamos muitas vezes
final é um símbolo de metal ou pedra, um cristal, ou um o acasalamento do feminino com o deus masculino e de-
mineral, o que chamaríamos hoje de um símbolo de maté- pois uma gravidez. Esse motivo, portanto, se repete como
ria inorgânica. a coniunctio do opus alquímico, ao final do processo, quan-
Vemos que isso inverte, estranhamente, a nossa idéia do está estabelecido o estado unificado. Se tivéssemos tem-
de evolução. Pensamos que, da matéria inorgânica, pri- po, poderíamos agora retroceder e analisar todos os sím-
meiro surgiu a vida vegetal, depois a animal e, finalmen- bolos da totalidade pré-consciente, e descobriríamos que
te, a espécie humana; mas no processo alquímico há uma todos eles também estão contidos nas imagens desse ob-
inversão total de nossa concepção da evolução biológica. jetivo final.

324 325
Isto é cristalino num certo texto alquímico da filoso- meiro temos de cortá-lo em partes, depois jogar fora o que
fia de Gerardus Dorneus. Ele foi instruído por Paracelso. não serve, como se fosse um carro que pegamos peça a
Dorneus descreve o opus alquímico de acordo com as anti- peça e construímos de novo depois de tê-lo limpado de to-
gas tradições medievais que ainda sobreviviam em seu tem- das as partículas; agora, portanto, chegou a hora de encos-
po: o ser humano consiste em corpo, psique e espírito (ou a tar e ser feliz, agora o ser humano inteiro se tornou um só
alma racional). No ato da meditação, é preciso primeiro dentro do corpo glorificado. Não! Dorneus é um gênio e
separar a psique e o espírito do corpo. É isso que os mon- adiciona um passo mais, a saber, a união com o unus
ges fazem nos monastérios; significa desapegar-se dos pró- mundus, o mundo único, o cosmo único. Isso significa que
a unificação da pessoa, ao final do processo, não acontece
prios impulsos e apetites físicos, do domínio do sexo e de apenas no seu íntimo, mas que espírito, psique e corpo
todos os elementos sombrios ligados ao corpo. Depois dis- estão finalmente unidos com o cosmo.
so, separa-se a psique do espírito e esclarece-se o que é o
espírito, o que é a psique e o que é o corpo. Tendo feito essas O unus mundus é um conceito teológico medieval se-
diferenciações, e essa etapa só pertence à parte analítica do gundo o qual, quando Deus criou o mundo, ele naturalmente
trabalho alquímico, ele descreve como reunir espírito e psi- primeiro tinha um plano, como um bom arquiteto, um mo-
delo do cosmo. Ele o fez dentro da Sabedoria de Deus - ela
que. Ele narra essa etapa basicamente em termos de tex- é aquele unus mundus, a anima criativa de Deus dentro
tos de coniunctio, porém, depois dá mais um passo adian- da qual ele confecciona o modelo do mundo - ou, às vezes,
te, um só passo, que não encontramos em nenhum texto da ela é identificada com o Logos preexistente, ou seja, com o
Idade Média: ele sente pena do corpo por ter sido descarta- Cristo antes de nascer na terra. Esse unus mundus não é o
do, e diz que o corpo não pode simplesmente ser jogado na cosmo que existe agora, mas uma idéia na psique ou na
lixeira, mas que também ele deve ser redimido pela unifica- mente de Deus, o plano que Deus se dispõe a realizar, tal
ção interior, alcançando a já existente unia mentalis. como o arquiteto que segue suas plantas para a construção
Por meio de um processo de meditação, o corpo tem de uma casa. Quando a pessoa atingiu esse estágio de cons-
de ser reunido ao resto, e ele descreve esse processo como cientização e unificação consigo mesma, não se une ao cos-
unia corporalis. Trata-se da produção do corpo imortal mo que existe concretamente e que, segundo a doutrina
cristã, é corruptível e está sujeito à morte, mas sim ao unus
dentro do corpo mortal, da produção de um corpus glorifi-
mundus, àquele mundo-modelo mental na mente de Deus,
cationis com o qual, por assim dizer, é redimido o aspecto ou na Sabedoria de Deus. Ele se torna uno com, entra em
básico da constituição física. A seguir vem um passo in- coniunctio com, acasala-se, une-se no ato amoroso com a,
teressante. Pensamos: bom, agora ficou tudo certo! Pri- Sapientia Dei, que é idêntica a esse unus mundus e seme-
lhante à experiência dos eventos sincrônicos.
Espírito
Os eventos sincrônicos indicam-nos o fato de que as
constelações arquetípicas do inconsciente coletivo de uma

8
(alma racional)
unio mentalis pessoa também podem aparecer nos eventos cósmicos ex-
Psique unio corpora/is
ternos. Naturalmente, se a pessoa vivencia esses eventos
+ cosmo sincrônicos e pensa da mesma maneira medieval ingênua,
vai concluir que a psique, de algum modo, é idêntica à rea-
Corpo
lidade cósmica. Essa é uma forma causal de explicar fatos,
-.ounus
mundus e Jung a evita usando o termo sincronicidade. Se não fosse
assim, seríamos obrigados a acreditar que o inconsciente é

326 327
uma coisa que está presente em tudo, estendendo-se até os
derradeiros limites do cosmo. Isso não pode ser provado, e
ÍNDICE ANALÍTICO
parece suspeito de um ponto de vista científico. Por isso,
Jung introduz o conceito da sincronicidade.
O pensamento medieval, como não podia contar com
o conceito da sincronicidade, concebia uma espécie de
união mágica entre a psique individual e o cosmo todo.
Para separá-la do cosmo como o entendemos, Dorneus
criou a idéia muito engenhosa de que a união não ocorre
com a realidade concreta mas com esse unus mundus, a
realidade que existe na mente, de Deus, ou a Sapientia
Dei, a Sabedoria de Deus, que aparece na Bíblia como
personagem feminino.
A moderna Mariologia interpreta a Sabedoria de
Deus como o modelo preexistente da Virgem Maria terre- Acidentes, processo criativo e, 40-41 chorar, 45-233
na: Cristo existiu antes de sua vida encarnada na terra Adão, 112-322 Choro, 31-183
Alá, 138 nascimento espiritual e, 254
como o Logos, o Verbo, e portanto Maria existia antes. Além, o, 30-248 Chuang-tzu, 135-146
Sua existência como a Sapientia Dei desde o início dos Alquimistas, 179-324 Cleópatra, 303-311
tempos, portanto, seria aquilo que chamamos de o aspec- análise e, 180 Cobiça, 193-194
Carl Jung e, 179-328
to psíquico da matéria. Com base nisto, vocês provavel- renovação e, 302
Coiote, 92-189
mente verão por que Jung gritou de alegria quando o Papa Comportamento, 25-288
âmbito psíquico da consciência do
padrões arquetípicos de, 157-290
Pio XII declarou o dogma da Assunção de Maria! Isso re- Eu, 223
padrões, 9-290
almente foi um tapa na cara do mundo materialista por- Amor, 5-320
Anima, mulher que inspira, 74-327 Concepção. Ver Gravidez, 15-324
que significou reconhecer o aspecto psíquico da matéria. Animus, salteador, 21-259 Conflito, 107-167
Na verdade, se a pessoa conhece o suficiente a história Antepensamento, 187-189 desenvolvimento d a consciência
das religiões para entender, esse edito papal teve a inten- Aprendizagem, conflito e, 167-169 e, 110-228
Aristóteles, 212-317 Eu, 14-325
ção de ser um tapa na doutrina materialista. O próprio aprendizagem e, 167-169
Arquétipos, 16-229
Papa Pio entendia a ligação que estava fazendo com seu poderes demoníacos e , 252 inconsciente, 107-327
ato. Para nós, ele coincide com o que Jung já tinha visto instintos e, 66-289 Confucionismo, 107
há muito tempo, a saber, que aquilo que chamamos de Ongwe, 43-157 Conheciment o absoluto, 295-297
psique e aquilo que denominamos de matéria são, na rea- projeções e, 227 Consciência!, 12-325
psique e, 25-328 consolidação da, 94
lidade, apenas dois aspectos de um único fenômeno vivo psicóide, 63-64 criat ividade e, 142-196
que, quando é observado pelo prisma extrovertido, atra- desconhecido e, 48-299 desenvolviment o da, muito rápi-
vés de métodos extrovertidos, dá resultados descritos pe- Átomos. Ver Part ículas, 275-288 do, 107-260
los físicos, enquanto que, ao ser descrito introspectiva- dualidade da, 95-223
mente pela via interior, redunda em fenômenos que, nes- Baumann, Hermann, 98-101 mal e, 122-301
Boehme, Jakob, 83-258 equilíbrio vivo e, 151
te último capítulo, busquei descrever. Trata-se de uma eu pré-consciente e, 151-325
criação invertida, que realmente é o reflexo oposto de to- Catástrofe apocalíptica, 301 inconsciente e, 9-327
das as teorias cosmológicas externas. Chandogya Upanishad, 209 rede de associações e, 60

328 3-29
Corpo diamantino, 303-323 sonho e, 13-293 medo de, 25-291 Freud, Sigmund, sonhos e, 55
Cosmo, psique individual e, 9-328 medo e, 25-291 Enantiodromia, 68-200 funções, sentimento versus pen-
Criação. Ver também Criatividade; febre e, 95-141 Encadeamentos, 265-299 samento, 32-241
Mitos, 9-328 quatro fatores, fantasias e, 231- geração, 6-212 Fracasso, 249-253
261 pontos geográficos e, 289 função psíquica, 64
abortada, 6-50
apressada, 140-141 material gnóstico e, 273 Função psíquica, aspecto superior,
vinda de cima, vinda de baixo, 69
pré-estágios da, 253 números e, 274-278 inferior, da, 64
acidental, 30-50 sexualidade e, 170-196
choro e, 31-183 partículas e, 31-327
dois tipos de, 95-288 Ennoia, 186-274
morte e, 19-327 inconsciente e, 9-327 Geografia psicológica, 290
por defecação (sonho), 200 Esquizofrenia, 21-286 Gnósticos, -cismo, 31-307
Cristo/Anticristo, 91~107 mitos de criação e, 9-325
depressão e, 42-197 cadeias e, 31
criatividade e, 26-255 Gravidez, 49-325
desejo e, 20-248 Dança, primitiva, decisões e, 129- dissociação e, 29-285 inflação e, 70-24 7
emoções e, 82-264 323 construção do Eu e, 163-165
fracassos, 249-253 Decisões, sonhos e, 127-159 homem e , 38-233
mutismo e, 259
fogo e, 31-319 Demócrito, 273-299 Guggenbühl-Craig, Adolf, 167
recuperação de, 295
primeira vítima e, 31-175 Desenvolvimento psicológico, 23 Eu, 14-325
quatro elementos e, 237-320 Deuses, deusas, 12-301 trabalho analítico e, 281 Hubble, Edwin, 15
quádrupla, 216-239 Atum, 127-238 conflito e, 107-167
fome e , 154-217 participação humana e, 76 definido, 51-188 Identidade arcaica, 11-322
no céu, 37-251 Ku-bu, 131-132 freudianos e, 160-180 Identidade, 11-322
por masturbação, 173 Marduk, 131-152
modelo de, 163-223 Imaginação ativa, 40-323
assassinato e, 146-290 Maya, 129-172
origem do, 13-205 inconsciente, 9-327
simbolismo dos números e, 235- Ptah de Mênfis, 128
raio de luz e, 67 Inconsciente, 9-327
240 corvo, 34-250
Sedna, 50 esquizofrenia e, 21-286 criatividade e, 142-196
civilizações primitivas e, 134-272 inconsciente e, 9-327 atividade de fantasia e, 130
o ferreiro e, 206
renovação da, 302-313 Eventos sincrônicos, 204-327 medo do, 180
Tiamat, 131-152
réplica e, 51-308 traquinas, 93-95 Evolução, alquimistas e, 243-325 impulsos e, 26-326
sacrifício e, 175 dois tipos de, 95-288 Experiências místicas, 83-320 motivos e, 9-231
esquizofrênica, recuperação e, Divisão. Ver Separação, 316-306 Extroversão, 74-178 realidade do, 241
21-285 Dois criadores, 31-251 Inconsciente coletivo, 51-327
separação e, 12-318 inimizade entre, 98 Fabre, Henri, 167-168 Indivíduo, 23-324
sexualidade e, 170-196 criador oculto e, 101 Fantasias, megalomaníacas, 151 psique, cosmo e , 25-328
súbita, autônoma, 14-89 motivo, 10-325 Fantasmas, 177-257 Individuação, 30-325
dois criadores e, 31-251 opostos e, 61-314 Fenômeno psíquico, 62-323 processo alquímico e , 307-325
mundo como um objeto morto e, Dorneus, Gerardus, 323-328 Fenômenos sincrônicos, 295 Inflação, 70-247
133 Dualidade, definida, 95-223 Fiar, 129-130 criatividade e, 142-196
criador inconsciente, 39 Filosofia hermética, 197 Instinto, 26-158
Criadores. Ver também Deuses, Eagle's Gift, The (Rasmussen), 33 Fobias, prisão, 177-178 colisão de, 156-157
Deusas, 31-275 Einfall, 245-256 Fogo, 31-319 harmonia, desarmonia e , 151-
duplos, 101-141 Elementos, 10-326 criação e, 22-310 282
ocultos, 250 Eliade, Mircea, 7-206 cabeça de pederneira, 111 Introversão, 108
dois, 31-328 The Forge and the Crucible, 132 Forge and the Crucible, The (Elia-
inconscientes, 13-290 The Myth ofthe Eternal Return, de), 132 Jung, C. G., 179-328
Criatividade. Ver também Criação, 7-52 mitos de criação quádrupla, 234- Aion, 160-211
26-255 Embrião, 117-312 239 R esposta a Jó, 95-248
acidental, 30-50 Emoções, 82-264 quarta dimensão, 113-114 identidade arcaica, 12-322
motivos dos mitos de criação e, criação e, 9-304 livre-arbítrio, 15 7-159 arquétipos, 16-229
21-164 definição de, 11-155 versus instinto, 26-158 personalidade criativa, 24-94

330 331
Desenvolvimento da personalida- Sul-americanos, 97-240 opostos, 61-314 Repressão, 123
de, O, 260 Taoístas-chineses, 110-137 Opostos, 61-314 Resistência, terapia e, 151
vida após a morte, 18-76 Winnebago, 40-234 processos psicológicos e, 20 Riso, 31-316
Mysterium Coniunctionis, 319- Zuni, 189 Rump, Dra. Ariane, 135
322 Morte, 19-327 palavras, 28-319
Logos, 31-328 criação e, 9-304 Partículas, 31-327
Lorenz, Konrad, 65-288 filósofos neopla tônicos e os, 287 Partículas gêmeas, 115 Sacred Scriptures of the Japanese,
Lukas, F ranz, 208 a lmas dos, 294 Passado, ligação com, 70-307 The (Wheelwright), 8-271
Motivos, 9-231 Pauli, Wolfgang, 114 Schmidt, Max, 101
Matéria, psique e, 10-328 bolota, 212 Pedra, motivo crescente, 27-325 Segredo da Flor de Ouro, O, 284
mito de criacão, 9-325 Pensamentos, 39-258 Separação, 12-318
Medicina psicossomática, 62
Medo, 25-291 choro, 31-183 Pensamento autônomo, 50 constatação consciente da, 200
criatividade e, 142-196 desejo, 20-248 Percepção consciente, realidade e, criação e, 9-304
do inconsciente, 180 destruição, conserto da forma 13-223 discriminação e, 186-264
do desconhecido , 180 h umana, 20-312 Perfeição, 130-236 simbolismo dos números e, 235-
Mitos. Ver também Criação; Mitos criador duplo, 91-231 Poincar é, Henri, 83-261 240
de criação, 9-328 Deus faber, 31-210 Polaridade, processo psicológico e, motivo da divisão dupla e, 170-
compensação e, 55-151 medo, 25-291 222-223 196
símbolos de reconstrução e, 21 germe, ovo, 21-270 Papal Vuh, 171-248 Seres originais, dois, 39
repetição de, 28-324 criador oculto, 101 Prisão, 177-229 Sexualidade, mitos de criação e,
Mitos de criação, 9-325 forma humana do prime iro ser fobia, 177-178 170-196
Achomavi, 92-96 criativo, 39 Processo místico, habilidades ma- Simbolismo dos números, 235-240
opus alquímico, 316-326 m iragem, 48-57 nuais e, 134 Símbolos de r econstrução, 21
Aborígenes austral ianos, 134 pensamento, 33-328 Processos psicológicos, opostos e, 20 Si-mesmo, sonhos e, 153-325
Baluba, 100-181 gêm eo, 90-112 Profecia, 172 "Sincronicidade", 7 4-328
Basonge, 98-99 dois criadores, 31-251 Proj eção, 11-325 Sintomas psicossomáticos, 71
Chineses, 130-236 inconsciente e, 9-327 arquétipos e, 16-296 Sonhos, 13-293
Egípcios, 76-210 uróboro, 10 distúrbios e, 277 ancestrais e, 34-296
Esquimós, 20-249 Motivo da miragem, 57 Psicologia e Alquimia, 308-321 de conflito, 165
Das Ilhas Fidji, 28 Motivo do ovo, 210-215 Psique, 25-328 problema criativo e, 116-248
Alemães, 255 em sonhos, 21 continuum da, 115-153 decisões e, 127-159
Gnósticos, 31-307 Deus faber e, 31-210 cosmo e, 9-328 desenvolvimento do eu e, 163
Gregos, 32-305 sol, filho, 58-321 matéria e, 10-328 de ovos, 26-100
Havaianos, 196 Mumificação, 76-307 Freud e, 55
do Egito h eleni zado, 197 Mutismo, esquizofrênicos e, 259 Rasmussen, Knud (The Eagle's Gift), pontos geográficos e, 289
Hindus, 146-301 Myth ofthe Eternal Return, The (Elia- 8-33 motivos e, 32
Iroqueses, 43-79 de), 7-52 Reação deslocada, 65-154 preparatórios, 24-25
tradições judaicas e, 150 Realidade, 10-328 Superego, 160
índios joshua, 249 Nascimento, gêmeos, 30-280 percepção consciente da, 13-223
Kadifukke, 100-116 Nauajo Creation Myths, The (Wheel- formas de, 41-278 Tartaruga, 48-240
Maidu, 96-231 wright), 8-59 quarta dimensão, 113 Tapas (cismar), 191-213
Maori, 192-223 Neurose, 19-260 imediata, 113-211 Tawiskaron, 91-111
Masai, 100-101 equilíbrio e, 65-159 ordenação, relação com a, 193- tecer, 128-130
mitos, versus outro, 9-328 compensação e, 55-151 241 Tipos Psicológicos, 11-246
Navajo, 7-60 falar e, 12-295 o Além e, 82-85 Titãs, 155-257
Odjibwai, 96 números, 236-299 transcendental, 52-113 Totalidade pré-consciente, 102-325
F enícios, 209 Reflexão, 72-292 Transferência, 21-237
Esquizofrênicos e, 259-285 Ongwe, 43-157 Renovação, 302-313 Traquinas, 93-95

332 333

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