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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO

SÉCULO XIX
PROF. DR. GUSTAVO FRANÇA
REITORIA:
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
PRÓ-REITORIA:
Prof a . Ma. Gisele Colombari Gomes
DIRETORIA DE ENSINO:
Prof a . Dra. Gisele Caroline Novakowski
EQUIPE DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS:
Diagramação
Revisão textual
Produção audiovisual
Gestão

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX

IDEALISMO ALEMÃO
PROF. DR. GUSTAVO FRANÇA

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................................4
1. FICHTE .......................................................................................................................................................................5
2. A “DOUTRINA DA CIÊNCIA”.....................................................................................................................................5
3. A AUTOCONSCIÊNCIA ............................................................................................................................................. 7
4. O PENSAMENTO DE FICHTE: UMA VISÃO GERAL ...............................................................................................9
5. SCHELLING .............................................................................................................................................................. 10
6. FILOSOFIA DA NATUREZA ...................................................................................................................................... 10
7. IDEALISMO ABSOLUTO ........................................................................................................................................... 11
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................................................... 14

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INTRODUÇÃO

Esta disciplina, como continuação da disciplina de “História da Filosofia Moderna”, trata


do desenvolvimento do pensamento filosófico no século XIX, deixada à parte por conter um
grande número de pensamentos complexos, dificuldades e contradições, cujos ecos se fazem
ainda sentir nos dias atuais.
Encerramos a disciplina de Filosofia Moderna com o pensamento de Kant, grande síntese
do filosofar na Modernidade até então. Agora, veremos o desenvolvimento da filosofia alemã em
sua posteridade, com o surgimento da escola denominada idealismo alemão, até seu apogeu em
Hegel e seu declínio na crítica posterior a tal filósofo.
Nesta primeira unidade, estudaremos a formação do idealismo alemão após a filosofia
kantiana, dedicando-nos aos dois grandes filósofos que se seguiram e puseram tal escola de
pé: Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e Friedrich Schelling (1775-1854). Acompanharemos,
na medida de nossas possibilidades, os contornos centrais da formação do sistema idealista em
cada um dos pensadores, observando o caminho percorrido desde Kant e que desembocará no

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edifício hegeliano.

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1. FICHTE
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) foi, provavelmente, o mais brilhante dos discípulos
de Kant. Acompanhou de perto a fase mais madura do pensamento do mestre de Königsberg e
chegou a ter uma de suas obras tomada equivocadamente por um escrito do próprio Kant.
A tarefa de todo o pensamento de Fichte é reorganizar as partes do sistema filosófico
kantiano. Kant havia tratado das distintas atividades da razão a partir de problemas singulares
que precisavam ser resolvidos (seja o problema da fundamentação das ciências, seja da
fundamentação da moral, e assim por diante). O projeto de Fichte é reconduzir cada uma dessas
atividades particulares da razão, descritas por Kant em sua mecânica e em seus limites, a um
único princípio fundamental.
Em outras palavras, a filosofia kantiana havia tratado de explicar as distintas partes da
organização da razão humana. Fichte buscar explicar a própria organização desde um princípio
unitário. Entretanto, a razão não pode se submeter a nenhum princípio fora de si. Ela é autônoma,
o que significa que todas as suas atividades singulares precisam remeter-se a uma ideia do todo.
Tal ideia, dessa forma, precisa necessariamente ser um princípio da razão pura.
Tal princípio racional absoluto só pode ser uma finalidade. O único meio de tornar

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inteligível a multiplicidade de funções intelectuais humanas é descrever a organização da razão
supondo tais funções como meios para o fim último de toda a atividade racional.
Eis como se ergue o sistema filosófico fichtiano: pela concepção da razão como uma grande
estrutura teleológica, em que todas as atividades intelectuais estão coordenadas à realização do
fim supremo da razão. Trata-se da plena realização da ideia desenvolvida por Kant do primado
da razão prática.
Vimos que Kant põe de relevo uma consciência da filosofia moderna (presente desde
Descartes) de que toda atividade intelectual é, no homem, uma ação, que deve ser responsabilizada
e julgada moralmente. Mesmo os atos mais teóricos são, ainda, atos, e o conhecimento só pode
ser adquirido a partir de uma decisão prática. Em Fichte, toda atividade singular da razão está
necessariamente subordinada a um fim, está teleologicamente dirigida a um objetivo, numa
estrutura essencialmente prática e ética (a direção a finalidades é a característica própria de uma
vontade, não do intelecto teórico).
A filosofia fichtiana é um desenvolvimento teleológico integral, em que todas as partes
singulares da razão humana estão destinadas a serem explicadas por esse fluxo teleológico
necessário, como meios necessários para a superação de problemas necessários. Trata-se de um
sistema de finalidade, inteiramente condicionado a um problema supremo fundamental.

2. A “DOUTRINA DA CIÊNCIA”
Em sua obra principal, a “Doutrina da Ciência”, Fichte constrói seu método. Para ele, o
conceito central da filosofia é o conceito de dever, que é aquele que expressa a relação entre o
fim último da razão e o funcionamento normal das atividades racionais particulares. Todas as
ações concretas da razão são meios para o fim último do sistema racional, o que significa que este
estabelece a norma, o ideal para aquelas. Toda atividade racional individual tende por dever-ser
ao telos da razão a que naturalmente se dirige.
Ora, o conceito de dever implica, por sua própria estrutura, uma contradição. Só se pode
falar em relação de dever quando há uma contradição entre a tarefa última da razão e sua atividade
efetiva na realidade concreta (se a atividade singular das funções racionais se identificasse com o
fim último, haveria uma relação de identidade, não de dever). Para Fichte, por causa disso, essa
contradição é a essência mesma da razão.

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Tal filósofo inaugura, portanto, um método dialético, que ficará de herança para todo
o desenvolvimento do idealismo alemão a partir daqui. Sua tese central é que da contradição
(insuficiência) entre uma primeira realização de uma atividade racional e a tarefa essencial da
razão surge a necessidade de uma segunda atividade racional, que ficará também aquém do fim
último, exigindo uma terceira atividade, e assim se podem deduzir num sistema teleológico todas
as funções intelectuais particulares como resultado necessário do próprio movimento dialético
da essência racional.
A “doutrina da ciência” é o nome que Fichte dá à Filosofia, reforçando a visão desta
como a disciplina fundamental que explica e fundamenta o estatuto de todos os conhecimentos
particulares. A Filosofia, pois, em Fichte, se distingue por possuir um problema particular e um
método próprio. Seu problema é a investigação em busca da tarefa fundamental da razão, que
unifica e justifica todas as demais atividades intelectuais do homem. Seu método é a dialética.
Fichte chama à sua própria filosofia idealismo, por contraste à posição filosófica que
nomeia dogmatismo. O dogmatismo busca explicar a consciência a partir das coisas, o sujeito a
partir do objeto, procedendo do ser à representação. No dogmatismo, há um ser originário que
causa as representações da consciência.
No idealismo, por outro lado, explicam-se as coisas a partir da consciência, procedendo-

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se da representação ao ser. O ser surge como predicado da representação, sendo esta o ente
originário que aparece como imediatamente real. Fichte crê que essa visão é a correta, porque a
posição metafísica das coisas em si mesmas é desconhecida. Não temos acesso direto às coisas,
mas somente por meio de representações. Por sua vez, a consciência é a coisa mais próxima de si
mesma, aquela cujo acesso é mais imediato e, portanto, a base segura para o filosofar. Somente a
consciência pode ser o fundamento de nossas representações das coisas.
Dessa forma, o princípio da Filosofia não pode ser buscado numa concordância das
representações com as coisas, mas precisa ser encontrado numa determinação imanente das
próprias representações. É preciso que seja um princípio que esteja determinado com uma
absoluta necessidade em si mesmo.
Tal princípio não pode ser um fato, nem a mera expressão do conhecimento de relações
extrínsecas, mas deve ser uma função, uma atividade originária da razão, que não pressuponha
nada e da qual tudo possa derivar. Trata-se de uma ação livre no sentido mais radical da palavra,
uma ação efetiva, plenamente universal e originária. Tal ação livre é o conhecimento de si mesmo,
a consciência por referência a si própria, que se expressa na enigmática ideia “Eu”. O “Eu” é a
autoconsciência pura – não a autoconsciência empírica do sujeito individual –, a atividade geral
e originária do pensamento racional, que serve de princípio à Filosofia.
“O Eu põe a si mesmo” é a máxima da filosofia fichtiana. A autoconsciência, aqui, não
é, como em Kant, um factum, uma realidade peculiar que se impõe em nosssa autoexperiência
íntima. Trata-se, antes, de uma função, de uma atividade que condiciona todo o pensamento. O
filosofar não se inicia com uma afirmação ou com uma constatação teórica, mas com um ato, com
uma decisão prática de recriar a atividade originária do pensamento puro. A Filosofia é inaugurada
por um postulado, por uma exigência: pensa-te a ti mesmo. Trata-se de um imperativo, de um
postulado prático, que cria a razão. A razão é produto desse ato originário fundante, antes do qual
o próprio pensamento é impossível.
Para Kant, a razão e suas formas eram uma organização dada no mundo dos fatos,
que a reflexão crítica constatava como um fato geral acerca da humanidade. Em Fichte, essa
organização é simplesmente a autoprodução da razão. A autonomia da razão adquire na doutrina
fichtiana um significado muito mais radical – a razão não é fora de seu próprio ato de pensar a si
mesmo. A razão é o ato autocriador, a ação que produz suas próprias formas fundamentais, num
movimento dialético necessário.

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Fichte crê que Kant havia caído em contradição por seu conceito realista da coisa em
si. Para ele, a ideia de uma coisa (o númeno) que seja a origem das nossas representações é
inconcebível. É impossível supor que as nossas representações venham das coisas. A causa das
representações tem que estar num ato representativo originário, que é, afinal, a autorrepresentação,
a autoconsciência pura, sem a qual nenhuma consciência é possível e, portanto, tampouco
qualquer ideia a respeito das coisas. Na visão de Fichte, esse era o autêntico desenvolvimento
coerente do criticismo kantiano.

Este é um ponto em que já podemos rememorar a distinção fundamental que


traçamos entre os dois métodos da Filosofia na disciplina de “História da filosofia
moderna”. A filosofia pode operar desde as realidades mais próximas até culminar
na reflexão metafísica sobre o fundamento de todas as coisas (método realista,
fundado na indução) ou partir de uma pré-concebida do absoluto e dela derivar
toda a realidade (método idealista, fundado na dedução).
Desde essa perspectiva, podemos ver que as “correções” feitas por Fichte

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ao criticismo kantiano, na verdade, subvertem completamente a sua estrutura
filosófica. O fenomenalismo de Kant é um fenomenalismo realista, em que as
representações se originam das coisas e em que passamos ao reino do ser por
uma autoconsciência factual, uma constatação a respeito de nossa condição
como seres intelectuais.
Ao quebrar a relação entre o fenômeno e as coisas, supondo uma
autoconsciência que fundamenta toda a realidade, inicia-se o afastamento do
idealismo alemão em relação a Kant. Pode-se dizer que, aqui, acontece o mesmo
processo que ocorreu no neoplatonismo. Ao eliminar a dialética socrática e partir
do Uno como base do filosofar, o neoplatonismo subverteu essencialmente Platão
a ponto de transformar uma filosofia realista em idealista. Trata-se agora de um
processo análogo: Kant nunca foi idealista – o idealismo alemão é, na verdade,
uma corrupção de seu sistema.

3. A AUTOCONSCIÊNCIA
Como agora começa a ficar claro, a filosofia fichtiana da autoconsciência se aparta das
teorias que havíamos visto sobre ela na Modernidade, desde Descartes (cf. WINDELBAND,
1951, p. 172). Em termos cartesianos, a autoconsciência é o atributo central de uma pré-existente
substância pensante. Para Fichte, por outro lado, a autoconsciência é uma ação que não pressupõe
uma substância pensante, mas, na verdade, cria-a ela própria. A substância pensante não é algo no
mundo e, em seguida, realiza um ato de pensar a si mesma. Em vez disso, ela própria é produzida
por esse ato originário inexplicável da autoconsciência.
O homem, como ser racional, nasce no momento em que pela primeira vez diz “Eu”.
O surgimento da misteriosa ideia “Eu” faz acontecer no homem a racionalidade. A condição
racional é, antes do que um fato, um evento originário, que ocorre de forma incausada, fazendo
do ser humano um participante na autoconsciência pura que é o próprio fulcro da realidade.

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Por isso, como já havíamos comentado, a Filosofia começa exortando a todos a


realizarem a atividade da autoconsciência. O despertar filosófico é, em termos kantianos,
um imperativo categórico, um comando incondicionado que conduz ao pensamento de si. A
seguir, o desenvolvimento da disciplina filosófica consiste na reflexão sobre aquilo que ocorre
nessa atividade primeira e sobre aquilo que aparece necessariamente vinculado a ela como
desenvolvimento posterior.
Para tanto, é necessário, em primeiro lugar, diferenciar tal ato originário de todo o demais,
ou seja, diferenciar o Eu do não Eu. Entretanto, pela própria lógica do pensamento fichtiano, o
não Eu é sempre uma representação e, portanto, existe verdadeiramente na consciência e por
causa dela. O Eu, como ato autocriador, realiza, na realidade, a integração do não Eu ao Eu.
Pelo ato fundante da autoconsciência, surge esse conteúdo duplo necessário: o Eu e o não
Eu. Ambos estão reunidos na unidade da consciência, limitando-se mutuamente ao mesmo tempo
em que participam da mesma realidade de fundo. Nenhum deles ocupa plenamente o conteúdo
da autoconsciência, e cada um só existe em relação com o outro. Eu e não Eu, sujeito e objeto, são
as duas representações originárias, os dois objetos necessários que estão primariamente contidos
no ato da autoconsciência e que existem sempre em vínculo ontológico recíproco.
Tais objetos, dessa forma, não podem ser pensados senão sob essa dupla relação necessária.

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Não existe sujeito sem objeto, nem objeto sem sujeito. Quando se separam, em divisão analítica
do pensamento, as duas relações contidas na autoconsciência originária, surgem as divisões da
Filosofia.
Há, por um lado, uma determinação do Eu pelo não Eu e, por outro, uma determinação
do não Eu pelo Eu. Quando o sujeito é determinado pelo objeto, há uma causalidade da ordem
das causas eficientes, e o Eu assume uma posição teórica. Quando o objeto é determinado pelo
sujeito, há uma causalidade da ordem das ações livres, uma causalidade prática, e o Eu assume
uma posição prática. Do primeiro tipo de determinação, surge a filosofia teórica; do segundo,
surge a filosofia prática.
A tarefa fundamental da filosofia teórica é o desenvolvimento daquelas atividades
necessárias, que se originam da determinação do Eu pelo não Eu. Ocorre que, como já está
suficientemente claro, quando o não Eu aparece como objeto da autoconsciência, ele só pode ser
produzido pelo Eu. Portanto, o problema da filosofia teórica está numa atividade do Eu que limita
a si mesmo por seu próprio conteúdo. Quer dizer, a atividade do Eu, intrinsecamente infinita
e ilimitada, limita a si própria a cada ato de consciência particular que gera um não Eu por
conteúdo. O não Eu limita o Eu, mas isso mesmo é uma função interna do Eu.
É assim que se constrói o que podemos chamar de sistema idealista de conhecimento.
Tudo o que a consciência ingênua considera como um mundo estranho de coisas em si (isto é, o
próprio mundo exterior) é, na verdade, também o produto de um ato representativo originário.
Essa primeira representação, que, pela primeira vez, obtém o Eu e o não Eu é, naturalmente, uma
representação inconsciente. Existe, pois, um ato representativo inconsciente, totalmente livre,
originário e do qual se originam todos os nossos atos representativos conscientes, que formam
nossa consciência empírica. Tudo aquilo de que, como sujeitos individuais, temos consciência
resulta de uma criação libérrima de uma representação fundante, que serve de base essencial a
todos os atos teóricos.
A conclusão de Fichte, em sua “Doutrina da ciência”, é que o Eu puro e absoluto é a
atividade infinita, dirigida somente a Si mesmo. Tal atividade infinita, porém, não é um fato,
mas um impulso infinito que se dirige interminavelmente à realização dessa infinitude. Por meio
desse impulso, o Eu puro, mediante atos livres, propõe a si mesmo objetos nos quais possa realizar
atividades particulares, criando, assim, o mundo objetivo.

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Isso significa que o mundo não está fundado numa causa factualmente necessária, mas
num fim que deve ser realizado por meio dele. Esse fim é atividade que deve existir por si mesma,
bastando-se sem referência nenhum fim ulterior. A atividade infinita é a tarefa que jamais se
cumpre plenamente, a causa pela qual existem todas as atividades particulares e, com ela, o mundo
objetivo. A atividade que é fim em si mesma é, enfim, a atividade autônoma, aquela que se realiza
segundo sua própria legalidade, que, como já havia demonstrado Kant, é a atividade moral.
Se a lei moral é a lei que se justifica por sua própria legalidade formal, ela pode ser
reformulada como a atividade que se dirige somente a si mesma como fim, o impulso de se manter
o ato de impulsionar, que é o impulso originário do Eu absoluto e, portanto, a razão da criação
e da subsistência do mundo. Aqui, demonstra-se cabalmente a nova face da primazia da razão
prática. Em Fichte, a razão teórica não é mais do que um produto da razão prática na medida em
que todo o mundo dos objetos é um constructo do sujeito transcendental infinitamente ativo.

4. O PENSAMENTO DE FICHTE: UMA VISÃO GERAL


À luz de tudo o que comentamos, podemos concluir que a doutrina da ciência fichtiana

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funde, enfim, as disciplinas da teoria do conhecimento e da metafísica. O drama da conflituosa
relação, na Modernidade, entre o conhecimento e o ser adquire, em Fichte, uma solução
inesperada.
Os primeiros princípios da doutrina da ciência, ao mesmo tempo em que são os primeiros
princípios do todo o pensamento, são também aqueles que regem as coisas como são em si
mesmas. Afinal de contas, não pode existir nada mais do que o pensamento e seus produtos. O
ser das coisas se esgota, em toda a sua intimidade, na ação criadora do pensamento. O idealismo
transcendental fichtiano propugna a absoluta identidade entre o ser e os atos necessários da razão
(cf. WINDELBAND, 1951, p. 178).
Quer dizer, em Fichte, há um conhecimento absoluto do mundo, porque, no Eu, criamos
o mundo. Por isso mesmo, há metafísica já que possuímos aquela intuição intelectual que Kant
negava aos homens, que produz pelo pensamento seus objetos. Todo o mundo, ao fim e ao cabo,
é a autointuição intelectual do Eu, cujo ser mesmo pertence ao domínio objetivo das funções
intelectuais do sujeito racional.
O Eu puro, por sua vez, que se posiciona no cume de todas as funções racionais que
constituem o reino da objetividade, não é um ser, mas uma atividade. Mais do que isso, em
realidade, ele é o dever de uma atividade. A causa última de toda a realidade é o dever moral,
uma meta prática infinita, à qual só é possível dirigir-se indefinidamente. Por isso, o Eu deve ser
infinitamente ativo.
Nessa atividade infinita é que ele produz o mundo de suas representações como objeto
dessa ação. A necessidade da ação não pode ser deduzida do mundo real – pois isso seria
heteronomia –, mas, ao contrário, é essa atividade intrinsecamente necessária que cria o mundo
real. A realidade, como a conhecemos, surge da contradição entre o impulso infinito do Eu puro
e a consciência da lei moral no eu empírico, que lhe mostra que ele deve ser Eu puro (infinita
autoatividade), e ainda não é.
Nessa linha, o sentido da natureza é simplesmente ser material de cumprimento do dever.
Todo o mundo material não possui outra função imanente que não a de servir à razão prática
na busca de seus objetivos supremos. Fichte não admite nenhuma causalidade ou finalidade
imanente na natureza. A natureza é um sistema teleológico, mas apenas na medida em que se
pode deduzir que ela deve ter sido criada para servir ao propósito do cumprimento do dever.

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Assim, Fichte soluciona as tensões que marcavam a construção do pensamento moderno


até a síntese kantiana: desaguando o ser no pensamento, o objeto no sujeito, a filosofia teórica na
prática, a natureza na moral.

5. SCHELLING
As doutrinas centrais que caracterizarão o desenvolvimento do idealismo alemão
encontram quase sua primeira origem na doutrina da ciência de Fichte. O filósofo que, de forma
mais duradoura e bem-acabada, prosseguiu com a construção de um tal sistema idealista foi
Friedrich Schelling (1775-1854).
Schelling está entre os filósofos mais difíceis de se ordenar para uma exposição breve e
sintética. Assim como Leibniz, ele não foi um filósofo sistemático. Foi um pensador de intensa
atividade, deixando uma obra gigantesca (catorze volumes compõem suas obras completas). Tal
obra não perfaz um sistema unitário construído metodicamente. Ao contrário, a trajetória de
Schelling é extremamente sinuosa, composta de várias mudanças de interesse e de enfoque.
Distinguem-se, normalmente, cinco fases no pensamento de Schelling: i) a filosofia da

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natureza; ii) o idealismo estético; iii) o idealismo absoluto; iv) a doutrina da liberdade ou teosofia;
e iv) a filosofia positiva (cf. WINDELBAND, 1951, p. 191). Não temos, aqui, nenhuma condição
de percorrer todo esse caminho intelectual e seus desvios. Desse modo, trataremos apenas da
primeira e da terceira fases, tentando trazer à luz os elementos mais essenciais para a continuidade
do idealismo alemão em Hegel.

6. FILOSOFIA DA NATUREZA
O primeiro ponto a que Schelling deseja se dedicar, uma vez debruçando-se sobre a
doutrina da ciência de Fichte, é aquele referente ao conhecimento da natureza. Fichte, como
acabamos de ver, havia considerado a natureza como mero meio para a realização do fim moral.
Schelling não pretende renunciar a essa tese geral, mas desenvolvê-la de modo a explicar
as formas particulares da natureza, tarefa não empreendida por Fichte. Este apenas deduziu
teleologicamente a natureza de modo geral, sem chegar a explicar nenhum fenômeno natural
específico. Schelling, por sua vez, deseja desenvolver a natureza como um grande sistema
teleológico emanado da razão.
Schelling se dá conta de que, se a natureza deve aparecer como um monumental sistema
teleológico, a finalidade que dá causa última à existência do sistema só pode ser buscada na
razão. Entretanto, tal finalidade não pode ser a própria ação moral, pois esta nunca se realiza pela
natureza, mas sempre pela liberdade. O fim da natureza, pois, só pode ser a realização de uma
condição, somente mediante a qual a ação moral é possível.
Tal condição é a inteligência consciente, o Eu teórico. Isso significa que a natureza tem
que ser tomada como um sistema de processos cujo fim é levar a cabo a produção da inteligência
consciente. A natureza deve ser vista como a forma inconsciente da vida racional, cuja tendência
inata é o surgimento da vida consciente. Todo o sistema natural é um grande caminho dirigido
ao despertar do espírito, que encontra a si mesmo no surgimento da vida racional, na qual pode
habitar e se desenvolver em sua fase última.
Dessa forma, a natureza, em Schelling, não pode ser vista como uma mera sucessão causal
de fenômenos, mas como um grande organismo vivo, cujas partes existem para o propósito único
de dar origem à vida consciente. A filosofia da natureza é a história do devir do espírito num
grande sistema orgânico.

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Para Schelling, as diversas formas de vida natural são os graus necessários de evolução
da vida inconsciente em direção ao surgimento da consciência, as formas necessárias por meio
das quais a razão busca elevar-se à sua forma espiritual definitiva. Por essa via, ocorre a extensão
do idealismo à tarefa de deduzir não só a natureza em geral, mas também as formas empíricas
singulares com vistas à formação do Eu.

7. IDEALISMO ABSOLUTO
Na Alemanha daquela época, a Filosofia passava a receber grande influência da estética e
das artes. Se retomarmos agora aquela distinção entre os métodos da filosofia que propusemos na
disciplina de “História da Filosofia Moderna”, torna-se mais fácil entender o porquê.
Como estamos percebendo, a filosofia alemã posterior a Kant assumiu uma violenta
guinada rumo ao método idealista (jogando fora todo o esforço do criticismo kantiano por
estabelecer uma filosofia a partir dos entes mais próximos), partindo da construção de uma ideia
do absoluto, a partir da qual se poderiam deduzir todas as realidades conhecidas.
O método idealista aproxima o ofício filosófico àquele do artista. O filósofo idealista

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constrói, com grande criatividade, um sistema explicativo do mundo, a partir de ideias pessoais
sobre o fundamento último. É natural que esse período histórico do pensamento na Alemanha
esteja associado ao nascimento do romantismo, o qual, por sua afinidade com a filosofia do
momento, impulsionou a noção de que as artes são um instrumento privilegiado do pensamento
sobre o mundo.
A filosofia e a literatura mantinham, assim, uma influência recíproca marcante, com
grandes nomes do pensamento alemão da época, sendo também associados às artes, como Schiller,
Novalis, Schlegel e Hölderlin. Schelling foi também parte desse movimento, tendo dedicado uma
parte de sua obra à reflexão estética antes de se voltar à preparação de seu sistema do idealismo
absoluto.

Esse movimento presente no romantismo alemão é interessante também porque


traz explícito algo que, de certa forma, é intrínseco à cultura humana. O modo de
os homens se manifestarem culturalmente sempre guarda alguma relação com a
unidade do intelecto – quer dizer, os homens se manifestam segundo um sistema
cultural de pensamento, que se reflete tanto em sua produção filosófica quanto
em sua criação artística.
Se as filosofias idealistas são mais “artísticas” por natureza, essa analogia
não deve ser buscada somente nelas, mas em todas as eras. O estudante de
Filosofia deve sempre recorrer à literatura encontrando também nela as pegadas
dos grandes sistemas filosóficos. O sistema tomista em Dante, o Renascimento
inglês, ainda em contato com a mística medieval, em Shakespeare, e assim por
diante.
Recomendamos a leitura dos grandes escritores alemães do romantismo,
também como exercício filosófico, desde Goethe à sua posteridade. Friedrich
Hölderlin (1770-1843), em particular, foi um dos grandes poetas líricos da história.

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Por razões estéticas, reclamava-se da Filosofia um sistema de unidade absoluta, que


sintetizasse e harmonizasse em si todas as divergências e contradições particulares encontradiças
no mundo cotidiano. Pretendia-se da Filosofia o concerto harmônico do mundo, um sistema que
primasse pela beleza de sua criação (cf. WINDELBAND, 1951, p. 222).
Na obra de Schelling, tal necessidade estético-filosófica se voltava ao deslinde do contraste
entre a filosofia da natureza e a filosofia transcendental. É verdade que os princípios da doutrina
da ciência traziam a dedução da relação mútua necessária entre essas duas partes da filosofia.
Ocorre, contudo, que a filosofia da natureza, conforme acabamos de ver, havia se desenvolvido
em seu próprio pensamento de modo tão detalhado e particular, que havia adquirido autonomia
com suas categorias em relação ao Eu, cujas funções eram deduzidas pela filosofia transcendental.
Era necessário, agora, encontrar uma motivação superior que seja capaz de unir as duas disciplinas
filosóficas numa origem comum.
Schelling já não falava, como Fichte, de um “Eu” absoluto, pois, em seu vocabulário, o eu
era, conforme mais próximo à linguagem comum, simplesmente a autoconsciência individual.
Ele se referia simplesmente ao Absoluto. E a esse mesmo Absoluto passou, em certo momento,
a dar o nome de Deus. Com isso, sua filosofia foi relacionada por alguns como uma forma de
neoespinozismo, remetendo-se ao sistema em que Deus é a substância absoluta que se diferencia

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nas formas particulares do mundo (cf. WINDELBAND, 1951, p. 223).
Em Schelling, a intuição intelectual originária, ponto de partida da ciência metafísica, já
não é, como em Fichte, a autointuição do Eu, mas a intuição do Absoluto. Tal intuição contém a
unidade plena entre sujeito e objeto. O Absoluto é isso mesmo, a unidade integral e indivisa entre
sujeito e objeto. O Absoluto não é nem uma coisa nem outra, mas a plena “indiferença” entre
ambos. O Absoluto não é ideal, nem real, nem natureza, nem espírito, mas a identidade absoluta,
a unidade na “indiferença” entre todas as determinações contraditórias.
O Absoluto é representado na imagem do ímã. O ímã, em sua totalidade, não é nem
magnetismo positivo, nem negativo, mas é a identidade de ambos e contém a “indiferença” entre
os polos em seu centro. Da mesma forma, o Absoluto contém em si a unidade a partir da qual
surgem todas as divisões antitéticas.
Dessa forma, no Absoluto, os contrários se eliminam reciprocamente numa plena
igualdade. Por outro lado, nas substâncias particulares, eles se encontram numa diferença, a
partir da qual uma delas prevalece (assim como no ímã, em cada ponto a distância entre o ponto
de diferença e o centro determina que atue a força positiva ou a negativa).
Isso quer dizer que a diversidade das coisas finitas consiste na diferença quantitativa do
elemento natural e do elemento espiritual contido em todas elas. Para Schelling, todas as coisas do
mundo são constituídas por matéria e espírito, diferenciando-se pela relação quantitativa entre
cada uma delas em seu interior. O Absoluto se desenvolve em duas séries distintas de fenômenos,
numa delas prevalecendo o elemento natural e em outra, o elemento espiritual. Cada uma dessas
séries evolui desde um polo, em que um dos elementos se encontra com maior autonomia em
relação ao outro até a proximidade do ponto de “indiferença”, em que a relação entre ambos é
cada vez mais perfeita. Assim, se forma o sistema do universo, abarcando desde a matéria mais
inanimada até os espíritos puros.
A “indiferença” do Absoluto, pois, se desenvolve em duas séries análogas de fenômenos.
Em nenhuma dessas séries, o Absoluto encontra sua plena realização. Mesmo nas substâncias
mais perfeitas e sublimes, há a predominância de um dos elementos sobre o outro.
A síntese última, a conter o perfeito equilíbrio na identidade entre o ideal e o real, o
perfeito desenvolvimento da razão absoluta não pode ser encontrado em nenhum fenômeno
particular. Ao mesmo tempo, é preciso encontrar tal síntese para que o sistema possa se fechar.

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Tal síntese última se encontra, pois, na própria totalidade do universo. O universo é


o perfeito autofenômeno do Absoluto, é o desenvolvimento final da razão, o ponto em que o
Absoluto reconstrói sua perfeita identidade na “indiferença” a partir da completude da série de
diferenciações. O universo, em seu sistema completo, é o ponto em que o ideal e o real, a natureza
e o espírito, se encontram e alcançam a unidade absoluta.
Assim, o sistema da identidade ou idealismo absoluto schellingiano é uma espécie de
“panteísmo estético” que busca na totalidade de fenômenos do mundo real a unidade entre o
sensual e o espiritual, unidade buscada em todas as obras de arte e encontrada pelo filósofo
alemão na grande obra de arte que é o organismo vivo que compõe o universo.
Em suma, o sistema da identidade de Schelling pretende ser um sistema integral capaz de
explicar dedutivamente todo o universo, nos seus mais díspares elementos, da matéria mais banal
ao espírito mais angelical, a partir da integração de um grande organismo vivo e teleologicamente
integrado a partir do Absoluto que em tudo jaz.
Schelling logo abandonou esse projeto de sistema para dedicar-se à teosofia e à filosofia
positiva, que representaram as duas últimas fases de sua obra. Seu idealismo absoluto, entretanto,
foi a construção que ficou de legado para Hegel, o filósofo que dará a forma final e mais poderosa
à tradição a que chamamos de idealismo alemão.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 1

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Começamos a ver, ao longo desta unidade, como se desenvolveu a filosofia alemã depois
da grandiosa síntese de Kant. Já podemos constatar – e pretendemos insistir nisso na próxima
unidade – que o chamado idealismo alemão, embora sempre muito vinculado a Kant como sua
mais próxima influência, representou uma forte ruptura com o legado kantiano, trilhando um
caminho que nos leva, na verdade, muito longe do espírito do projeto do mestre de Königsberg.
Embora Fichte pensasse que estava trazendo à tona a versão mais coerente da filosofia
crítica, sua “pequena correção” de atirar fora o realismo da coisa em si, supondo o fenômeno
não como uma representação das coisas, mas como um produto de um ato mental, subverte
inteiramente o pensamento kantiano.
Havíamos visto, em “História da filosofia moderna”, que Kant foi capaz de erguer um
sistema de método realista, partindo, por meio de uma humilde crítica das capacidades intelectuais
humanas, das coisas mais próximas e evidentes ao entendimento para terminar, numa reflexão

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 1


sobre o todo, na contemplação do fundamento último de todas as coisas.
Aqui, vemos, cada vez mais, sistemas idealistas construídos a partir de uma ideia do
Absoluto, a partir da qual se deduz a realidade. Em Fichte, o Eu não é simplesmente a porta
aberta, no espírito humano, para o transcendente, mas a própria origem de todas as coisas. Em
Schelling, o Eu se torna o Absoluto mesmo, Deus, um Deus que é a substância total, que se
desenvolve no universo como o grande organismo que vai se diferenciando em cada uma de suas
partes. Em tudo isso, veem-se muito mais Spinoza ou Leibniz do que Kant.
Fichte e Schelling estão movidos por uma tensão que muitas vezes nos incomoda
também: a diferenciação entre nosso conhecimento e a realidade. Existe, no homem, um anseio
por explicar nosso conhecimento como uma identidade com o real em seu sentido último. No
idealismo alemão, essa identidade é alcançada. A metafísica é uma ciência demonstrativa, porque
o real não é mais do que aquilo que se produz numa intuição intelectual originária, na qual
participamos da criação das ideias do intelecto absoluto.
Esteticamente, certamente os sistemas idealistas são muito belos, mas parecem distanciar-
se cada vez mais da realidade quanto mais tentam explicar tudo com base numa ideia de unidade
inventada a priori. Esses sistemas que agora delineamos chegarão à sua última e mais científica
versão naquele que foi o maior filósofo do século XIX, ao qual dedicaremos toda a Unidade 2:
Georg Hegel.

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

02
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX

HEGEL
PROF. DR. GUSTAVO FRANÇA

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................... 16
1. O SISTEMA HEGELIANO ......................................................................................................................................... 17
2. MÉTODO ................................................................................................................................................................... 18
3. A “FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO”.....................................................................................................................20
4. LÓGICA .....................................................................................................................................................................22
5. FILOSOFIA DA NATUREZA ......................................................................................................................................23
6. FILOSOFIA DO ESPÍRITO ........................................................................................................................................24
7. UMA VISÃO GERAL ..................................................................................................................................................26
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................................................................28

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INTRODUÇÃO

A evolução do idealismo alemão no período posterior a Kant nos leva ao ponto culminante
desta escola, com Georg Hegel (1770-1831), o pensador mais abrangente e influente do século
XIX.
Esta unidade será integralmente dedicada ao seu pensamento. Sobre as bases do idealismo
desenvolvido por Fichte e por Schelling, Hegel constrói um sistema detalhado e profundo, que
pretende desenvolver e explicar toda a realidade existente. Aqui, buscaremos, sempre dentro dos
nossos limites, esclarecer as linhas gerais de cada parte dessa obra monumental.
Iniciaremos descrevendo o método hegeliano para, em seguida, apresentar o projeto de
sua “Fenomenologia do espírito”. Enfrentaremos, ao longo da unidade, o esquema geral de cada
parcela desse longo sistema: a lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito.
Quando tivermos descrito todo o sistema filosófico hegeliano em sua versão extremada
do idealismo reinante na Alemanha daquele momento, poderemos constatar com melhor

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


conhecimento de causa a direção completamente particular tomada pelo desenvolvimento dessa
escola e seu afastamento radical daquilo que se havia estabelecido e anunciado pela síntese do
criticismo kantiano.
Ao mesmo tempo, veremos que o sistema hegeliano adentrou definitivamente a história
do pensamento e marcou boa parte das tentativas posteriores de se estabelecer uma cosmovisão
filosófica, seja pela mimetização de sua estrutura sistêmica com categorias diversas, seja pela
franca oposição a essa noção agora universalmente difundida de sistema.

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1. O SISTEMA HEGELIANO
Como pudemos ver e insistir ao longo de toda a Unidade 1, a filosofia alemã que se
desenvolveu a partir de Kant está centrada numa obsessão pelo Absoluto como tema central
que move o espírito de seus principais autores. O idealismo é uma busca épica e incessante pelo
Absoluto, que se pretende intuir diretamente, como uma ideia fundamental capaz de fincar o
sustentáculo de um sistema de explicação do mundo como o conhecemos.
Consoante encerramos a unidade anterior comentando, os grandes sistemas idealistas
são, no fundo, grandes sistemas poéticos. Os filósofos dessa fase são notáveis artistas, criando
com grande liberdade de mente estruturas representativas da realidade como um todo e de seu
fundamento central. Estamos diante de narrativas – ora dramáticas, ora épicas, ora sagradas – da
grande origem de um mundo inteiramente pensado, com todos os seus conceitos e sua realidade
logicamente organizada.
Realmente, não foi por acaso que a doutrina da ciência de Fichte veio a desembocar
no romantismo. Um movimento estético-filosófico que unia as necessidades das artes e do
pensamento filosófico era o destino natural do idealismo alemão. Estamos diante de um filosofar
erguido pela intuição retumbante do gênio artístico, que, com sua criação, leva-nos pelos pilares

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


de um mundo não visto pelo olhar comum.
É nesse contexto que surge Georg Hegel (1770-1831). Hegel foi, certamente, o homem mais
erudito de seu tempo, apaixonado pela cultura grega e pela filosofia clássica (agora já largamente
difundidas na Alemanha, ao contrário do que ocorria no século anterior), com amplos estudos
científicos em boa parte das áreas do saber, das ciências à teoria política. Curiosamente, realizou
seus estudos e ocupou cátedra universitária na Faculdade de Teologia, impelindo-se à filosofia
por um senso propriamente religioso, que o levava a querer integrar a realidade como um todo ao
Espírito Divino. Ele próprio pretendia que sua filosofia fosse “a filosofia oficial da Igreja Luterana”
(não à toa, como veremos, ele será acusado por Feuerbach de fazer apologética com sua filosofia).
Seu projeto é dar forma última ao idealismo absoluto proposto por Schelling. Sua diferença
fundamental em relação à escola romântica é que Hegel pretende deixar de lado a intuição genial,
a percepção originariamente que capta de modo imediato e extraordinário a essência do Absoluto,
para se voltar à tarefa rigorosa do conceito.
Hegel herda o projeto artístico do idealismo alemão, mas quer lhe dar forma científica,
deixando de lado a linguagem poética e retomando a aridez da prosa didática. Hegel define o
filósofo como “o arquiteto do conceito”. É o conceito o instrumento da ciência filosófica para
explicitar a realidade desde seus princípios.
Para ele, a essência de todas as coisas é razão (corolário necessário da identificação entre
o pensamento e o ser, agora em voga). Por isso, o conhecimento racional é capaz de penetrar a
essência de todas as coisas com a necessidade típica da razão. Dessa forma, a missão hegeliana
é recolher tudo aquilo que havia sido percebido por intuições geniais e exposto em afirmações
injustificadas ou analógicas e derivar logicamente como um produto necessário do pensamento
racional. É preciso transformar os sistemas idealistas num novo e definitivo racionalismo. Por
isso, Hegel chamou a seu sistema “racionalização do romantismo”.

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2. MÉTODO
O mais imediato parentesco de Hegel é com a doutrina da ciência de Fichte e com o
desenvolvimento do método universal ali contido. Vimos na Unidade 1 que, desde esse filósofo,
houve esforços pela construção de um método dialético. É Hegel que logrará conceder contornos
definitivos a esse método, revelando-o formalmente em toda a sua radicalidade.
Segundo ele, as contradições constituem a própria essência da realidade, que, ao mesmo
tempo, contém em si também a sua conciliação. Todo conceito se transforma necessariamente
no seu contrário, mas da síntese dos opostos surge o conceito superior de sua união. Nesse novo
conceito originado ocorre o mesmo processo, que se desenvolve continuamente até a síntese final
e suprema.
Esse processo não é somente o do pensar filosófico, ou seja, um processo ocorrido no
interior de conceito como estruturas gramaticais da nossa mente. O espírito e o conceito, como
já sabemos, constituem a essência de todas as coisas. Por isso, trata-se do desenvolvimento real
por meio do qual o espírito produz em si o universo, chegando a si mesmo de volta no fim do
processo. O desenvolvimento dos conceitos é, ao mesmo tempo, lógico e metafísico – pois o
mundo do pensamento e o da realidade são agora o mesmo.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


As formas necessárias produzidas pelo espírito em sua dialética interior são as categorias
da realidade. Os inúmeros graus desse processo não são fenômenos subjetivos, mas objetivos.
As categorias da realidade não são apenas formas do pensar, mas as formas fundamentais das
coisas no mundo. A infinidade das coisas nessa sucessão dialética ordenada é o autofenômeno
do Espírito Absoluto, cuja natureza consiste em dividir-se e, em seguida, voltar à unidade plena.

A hipótese da dialética como essência da dinâmica da realidade pode parecer


arbitrária, mas é preciso não cair em críticas apressadas e rasas. Devemos lembrar
que a tese hegeliana é uma tese ontológica sobre a constituição abstrata dos
entes. O que Hegel percebe é que todo ser se diz por referência a um não ser. O ser
criado, o ser dos entes, que “são algo” (em linguagem tomista, que possuem uma
essência limitando e determinando seu ato de ser), só pode ser caracterizado por
oposição ao que se distingue dele. Todo ato de definir pressupõe implicitamente
a possibilidade do que não é aquele ente individuado.
Esse é o significado da dialética estrutural de que fala Hegel. Não é um conflito
existencial ou político, ou embate entre qualquer duplicidade de entes cósmicos,
mas uma constatação da estrutura lógica da realidade. Não é preciso assumir
o sistema hegeliano de desenvolvimento panteísta do Espírito Absoluto para
compreender o profundo sentido de sua dialética.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Hegel pretende, assim, erguer um sistema aristotélico de desenvolvimento do ser – um


modelo de organismo universal, de “Great chain of beings”, para usar a terminologia de Lovejoy,
que invocamos para explicar Leibniz em “História da filosofia moderna” – a partir do idealismo
fichtiano.
O Espírito Divino contém em suas categorias a possibilidade ideal de todas as coisas,
e todo o processo universal consiste na realização dessa possibilidade por meio das formas da
natureza e do espírito, de modo a tornar a ideia realidade. Tal realização é exatamente a própria
essência do Espírito Divino, que se define nessa atividade de autorrealização por meio de suas
próprias formas inatas.
Assim, Hegel pode apresentar a tripartição fundamental de seu sistema: i) Lógica (o
conhecimento do Espírito Absoluto, tal como é “em si”, em sua própria necessidade inerente); ii)
Filosofia da Natureza (o conhecimento do Espírito em seu “ser distinto”, tal como aparece como
“distinto”, “exterior”); e iii) Filosofia do Espírito (conhecimento das formas em que o Espírito
capta a “si mesmo”, como seu próprio desenvolvimento íntimo necessário).
Cada uma dessas partes se subdivide também segundo o princípio triádico da dialética.
Assim, ergue-se um sistema que se triparte indefinidamente, sempre na mesma estrutura tripla,
estrutura exposta por Hegel com grande elegância, nos últimos detalhes, de modo a não permitir

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


escapar nenhuma região do modelo dialético ensaiado.
Todo esse esquema, sendo fruto dessa arte pessoal, é de natureza essencialmente
construtiva. Hegel tem pouco apreço pelo saber empírico e somente o emprega como um elemento
esporádico de seu raciocínio dialético para auxiliar na exposição de algum movimento necessário
do Espírito.
É como se o método dialético criasse todo o conhecimento científico a que as ciências
particulares chegaram por seu método empírico, ideia que poderia tornar supérflua toda ciência
natural diante da nova filosofia. Para ser justo, como bem aponta Wilhelm Windelband (cf. 1951,
pp. 254-255), não era essa a pretensão expressa de Hegel. O sentido do método dialético não
é a criação de nenhum conhecimento empírico, mas, antes, a explicação de todo o arcabouço
de conhecimento trazido pelas ciências particulares, à luz de sua conexão lógica com o
desenvolvimento do Espírito como fundamento último de todo o universo.
O método dialético não é mais do que uma manifestação singular do ideal de todo o
saber humano: buscar compreender por que o mundo é assim tal como se apresenta a nós, tanto
resolver o problema com sua hipótese peculiar do mundo como desenvolvimento necessário do
Espírito Divino, desenvolvimento dentro do qual se pode encontrar uma posição específica para
cada parte que se apresenta a nós como uma das formas do universo.
Mesmo assim, não é mais do que natural que o sistema hegeliano tenha fracassado. A
explicação da realidade próxima e evidente com base numa dedução lógica de um princípio
absoluto proposto a priori não é uma tarefa possível à mente humana, como a história da filosofia
já largamente demonstrou.
O proceder do pensamento criativo à realidade – e não da realidade à contemplação
esclarecedora – sempre encontra a revolta da realidade, na instabilidade teórica de sua superfície
empírica, como não tardou a suceder com Hegel. Tornou-se anedótico o caso de seu texto
deduzindo por que necessariamente só poderiam existir sete planetas. Para sua infelicidade,
imediatamente após foi descoberto o oitavo, num exemplo chamativo da impotência radical do
método idealista em Filosofia.

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O sistema hegeliano, que agora começaremos a descrever, é, com justiça,


considerado um dos mais complexos e inacessíveis da história da filosofia. Como
uma boa introdução geral ampla, recomendamos a obra de “Hegel”, de Charles
Taylor, relacionada nas referências bibliográficas.

3. A “FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO”
A “Fenomenologia do espírito” é a obra escrita por Hegel para introduzir seu sistema
filosófico, dispondo o espírito para o exercício do pensamento metafísico. Trata-se de uma obra
dificílima, uma das mais obscuras já escritas em toda a história da Filosofia. A razão para isso
não se reduz ao estilo próprio de escrita do autor, cuja aridez se verifica também nas suas obras
principais.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


O percurso do raciocínio hegeliano aqui é multifacetado e labirintoso. Hegel pretende
conduzir-nos do pensamento ordinário ao pensamento filosófico. Para isso, trata de expor as
formas concretas do espírito absoluto nos distintos campos da experiência humana. Como
veremos, em Hegel, a evolução do intelecto individual constitui um processo análogo à evolução
da espécie e à evolução das formas sociais. Assim, na “Fenomenologia do espírito”, vemos Hegel
alternando, sem aviso, entre considerações sobre o intelecto humano individual, leis biológicas
e genéticas e considerações históricas sobre formas políticas e religiosas. É sempre um desafio
acompanhar o passo do filósofo nessa obra, e a confusão nos espera em cada parágrafo.
Eis, portanto, o projeto de Hegel. Trata-se de um prelúdio à sua filosofia, dedicado a
desenvolver o método dialético não como uma intuição genial, mas como um processo
científico ao alcance de qualquer intelecto. Entretanto, o pensamento filosófico, embora possa
ser desenvolvido por qualquer potência racional, se diferencia essencialmente do pensamento
ordinário. A “Fenomenologia do espírito” é, desse modo, um desenvolvimento da verdadeira
filosofia a partir do pensamento ordinário.
No sistema hegeliano, a transição da consciência comum para o pensamento filosófico
deve ser compreendida como um processo gnoseológico necessário no qual se desenvolvem os
motivos graduais pelos quais o pensamento individual evolui até encontrar sua realização final
na filosofia.
Para Hegel, porém, esse processo evolutivo, que é o processo psicológico percorrido por
todo intelecto individual, ainda que seja apenas uma manifestação imperfeitíssima do Espírito
Absoluto, é análogo ao desenvolvimento biogenético da espécie humana. Além disso, como toda
a vida espiritual é unitária, esse processo deve conter também o reflexo ideal do movimento
cultural geral e das diversas formas que assume em seu progresso histórico. A “Fenomenologia
do espírito”, pois, precisa incluir uma narrativa do desenvolvimento científico da espécie humana,
da história da Filosofia e das ciências particulares e, ainda, uma análise da formação das figuras
históricas exemplares dos estágios de desenvolvimento lógico do espírito.
Segundo Hegel, a reflexão mostra que, em cada grau de sua evolução, a consciência é, na
realidade, algo totalmente distinto do que crê ser. Em cada estágio, a consciência se torna plena
do estágio em que se encontrava no grau anterior, e esse processo segue até se concluir no ponto
em que a consciência se sabe idêntica a si mesma.

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Hegel identifica três graus nesse processo. Primeiro, o estado primitivo da consciência
objetiva, que começa com a certeza da sensação. Ela passa, pelo processo da percepção e da
compreensão, à compreensão das coisas por meio intelecto, chegando ao estágio final da
autoconsciência individual. Esta última atua em contraste com o mundo exterior, do qual separa
e o qual cria, do qual retira a sua liberdade, mas no qual termina desesperançoso e se submete à
autoridade histórica.
O grau superior da consciência, por sua vez, se desenvolve em três formas. Primeiro, a
autoconsciência racional, que, como razão objetiva, busca as leis do mundo objetivo. Segundo, o
Eu prático, que desfruta das coisas. Por fim, o espírito moral, que compreende que na ordem das
coisas reina o Espírito Supremo e se submete a ele, na comunidade racional.
Aqui, o homem evoluiu até a formação da comunidade moral, na qual o espírito se
desenvolve mais plenamente. Esse estágio da dialética é, pois, uma dialética entre o indivíduo
e a espécie. O indivíduo se subleva contra a generalidade, e a generalidade procurar tiranizar o
indivíduo com seu poder absoluto. Surge, nesse processo, a luta entre a cultura e a fé, e a Ilustração
é levada à barbárie. Da contradição entre a utilidade banal e a genialidade moral, surge a síntese
perfeita da religião.
A religião, segundo Hegel, é o estágio supremo da razão e se desenvolve também

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


triplamente como: i) religião da natureza; ii) religião da arte; iii) religião revelada.
No estágio superior da religião, surge a unidade de todas as coisas finitas com o espírito
infinito. A tarefa da filosofia é compreender com conceitos a necessidade dessa unidade, que na
religião é apenas representada.
Podemos ver, nesses breves traços que resumimos, que Hegel traz inúmeras figuras da
história universal, sem ordem e de forma alternada. Não há ordenação cronológica entre os
elementos por ele abordados, e constatamos claramente figuras antigas, medievais e modernas
misturadas numa teia de raciocínios confusos.
A intenção hegeliana é mostrar que o conhecimento filosófico deve demonstrar como
cada uma dessas figuras históricas são autocompreensões do Espírito Absoluto, que em cada uma
delas viveu plenamente cada fase de seu ser e desenvolveu a riqueza de sua interioridade.
Dessa forma, a missão da filosofia hegeliana é compreender tudo o que a história humana
já produziu, por meio de todas as atividades desenvolvidas em âmbito natural e cultural – desde
as instituições políticas até o pensamento religioso, desde as campanhas militares até os estilos
de vida –, e reuni-lo num sistema de conhecimento universal, que possa captar cada um desses
produtos singulares da humanidade como uma forma necessária do desenvolvimento do Espírito
Absoluto.
Trata-se, sem dúvida, do projeto mais amplamente ambicioso de toda a história do
pensamento humano. Hegel quer uma filosofia que explique todo o desenvolvimento do conjunto
histórico do espírito humano, sem deixar de fora um só aspecto ou detalhe. A autoconsciência
humana é o Espírito Universal que encontrou a si mesmo, e a essência de todas as coisas do
universo só pode ser entendida por meio do processo enfrentado pelo espírito humano para
compreender a sua própria organização e, nela, a organização do universo.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Robert Brandom é um dos mais reconhecidos filósofos em


atividade, um professor destacado por suas contribuições em
filosofia da mente e epistemologia. Especialista em Hegel, ele
possui uma longa série, de dezoito palestras, explicando, tema a
tema, a “Fenomenologia do espírito” e o sistema hegeliano.
Assista em https://www.youtube.com/watch?v=eK6kmLIixnI&list
=PLPENXSo4h-Gs0FN4ucLmi4fWs4ZEXoWjH.

4. LÓGICA
O próximo passo, pois, é detalharmos cada uma das três partes do sistema de Hegel. A
primeira delas é a lógica.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


O objetivo da lógica é desenvolver todo o sistema dos conceitos por meio do processo
dialético. Como já comentamos, as categorias, aqui, não são formas da atividade mental, mas as
formas objetivas da vida real. As leis da lógica são leis reais dos acontecimentos reais do universo.
Nos movimentos do pensamento abstrato, surgem os esquemas de toda a vida real, e as evoluções
dessa atividade conceitual são uma reprodução do processo evolutivo universal.
A lógica se divide em três partes. A primeira delas é a doutrina do ser. Tal doutrina parte
do ser ao nada (seu oposto) e encontra sua síntese naquilo que, a um só tempo, é e ainda não é – o
devir. A partir dessa síntese, Hegel chega, por meio das categorias da existência, da qualidade, da
finitude e da infinitude, da unidade e da multiplicidade, da quantidade e da medida, ao conceito
de essência, que constitui a segunda parte da lógica.
A doutrina da essência parte da contraposição entre essência e aparência, chegando aos
conceitos reflexivos por meio dos quais essa contradição é eliminada – a identidade, a diferença,
a contradição e a causa. Por fim, tais categorias levam ao Absoluto, pela relação entre fenômeno e
realidade e também entre necessidade e casualidade, que desemboca nas categorias da causalidade
e da ação recíproca.
A terceira e última parte da lógica é a chamada lógica subjetiva. Ela começa com as ideias
de conceito, juízo e silogismo e chega às categorias da objetividade – mecanismo, quimismo e
teleologia orgânica. Sobre tudo isso se eleva a ideia, cujas formas supremas são o conhecimento e
a moralidade, que se completam na ideia absoluta.
A única forma de tornar todo esse raciocínio mais claro seria reproduzir integralmente
as transposições conduzidas por Hegel em cada passo desse processo dialético que se acaba de
empregar. Entretanto, não temos condição de fazê-lo aqui, não só por todo o espaço que tomaria,
mas também porque resulta muito contestada e controversa – em todo caso, nada clara – a
necessidade conceitual que Hegel vislumbra em cada passo de seu raciocínio. Muitos veem em
todo esse esquema da lógica uma justaposição arbitrária de conceitos (cf. WINDELBAND, 1951,
p. 261).
Importa-nos, diante disso, compreender não os elementos específicos das subdivisões
da disciplina lógica, mas o lugar dessas reflexões no sistema geral do pensamento hegeliano.
Como devemos nos lembrar, a lógica, sendo o sistema dos conceitos do Espírito Absoluto “em
si mesmo”, deve conter já todo o conteúdo da filosofia, que será desenvolvido concretamente
nas manifestações fundamentais do Espírito, “externamente” (na filosofia da natureza) e em sua
própria interioridade (na filosofia do espírito).

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5. FILOSOFIA DA NATUREZA
Comparada ao restante de seu sistema, a filosofia da natureza de Hegel é sua parte menos
original. No essencial, nosso filósofo se atém ao esquema geral previamente estabelecido por
Schelling. Além disso, aqui, por seu desprezo às ciências empíricas e sua pouca familiaridade
com os métodos de investigação do campo da natureza física, Hegel procede, em suas deduções
categoriais, com uma arbitrariedade ainda maior (cf. WINDELBAND, 1951, p. 262).
A natureza, como já sabemos, é o espírito em seu “ser fora de si”. O caráter geral e as principais
formas desse ser, na visão de Hegel, podem ser deduzidos do conceito de espírito. Entretanto, na
natureza, existe sempre inevitavelmente algo estranho ao espírito, cuja característica não pode
ser deduzida. Quer dizer, o fato de que o espírito se transforme em natureza pela manifestação de
sua exterioridade é próprio de seu conceito, mas a maneira peculiar em que essa exterioridade se
constitui não se extrai da essência do espírito.
Eis o grande mistério aportado pela perspicácia de Hegel em sua filosofia da natureza
– cuja afirmação é muito mais digna de nota do que os elementos internos dessa doutrina. A
doutrina hegeliana, como estamos constatando, é uma fusão radical entre o real e o racional, de
modo a atribuir ao real, por seu próprio princípio, uma plena e imediata cognoscibilidade pelo

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


raciocínio lógico.
Contudo, essa mesma filosofia reconhece agora na natureza o limite de suas deduções.
Também no âmbito da natureza, o pensar filosófico deve desenvolver as formas e leis gerais,
desde a razão absoluta, mas sempre restará um resíduo de irracionalidade, que escapa a todo
processo lógico de derivação.
Para Hegel, a natureza é uma estrutura demasiadamente débil e impotente para receber as
determinações conceituais mais abstratas. Ela é, em suas palavras, o reino da casualidade. Hegel,
com seu intelecto genial, percebeu aquilo que estava presente na distinção categorial fundamental
entre o reino empírico e o reino metafísico, buscada por todos os filósofos modernos, delineada
em Descartes e em Leibniz e formalizada com perfeição em Kant: a instável circunstancialidade
da “superfície” da realidade – sua camada física, percebida empiricamente.
Hegel deu-se conta de que o reino da natureza é constitutivamente alheio ao da razão e
nele não se penetra por construções do pensamento puro, por mais belas e harmônicas que sejam.
A natureza segue um curso acidental, meramente aparente, o qual se constata pela experiência,
não se deduz por força lógica necessária. Naturalmente, é difícil imaginar como essa percepção
pode se compatibilizar com o princípio fundamental da filosofia hegeliana já que esta identifica
a realidade, em seu sentido mais absoluto, com o desenvolvimento do pensamento a partir do
Espírito Supremo. O fato é que Hegel, em seu esforço de busca pela verdade que jamais deixou
de ser sincero, capitula aqui ante a peculiaridade das contingências naturais, que não são mais do
que determinação acessória casual (e da qual sua própria filosofia foi vítima, como vimos antes).
Em qualquer caso, a natureza, em Hegel, já o sabemos, é pensada como um grande sistema
orgânico – no molde da “grande cadeia dos seres”, que é leibniziana e aristotélica – e, portanto,
sempre sob o ponto de vista teleológico. O fim da natureza, para o filósofo alemão, é realizar a
necessidade ideal, sem que, por sua própria dinâmica de casualidade, possa cumprir totalmente
sua finalidade. A exterioridade deve ser postulada pelo espírito a fim de que sua essência atinja
uma manifestação objetiva. As etapas desse processo, conforme a rigorosa divisão triádica
estrutural típica de Hegel, são deduzidas segundo o método lógico estipulado nos princípios
desta filosofia, mas ficamos o tempo todo conscientes de que há sempre algo que escapa a toda
essa estrutura, esse resíduo natural de casualidade plena.

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6. FILOSOFIA DO ESPÍRITO
A terceira parte do sistema hegeliano é a filosofia do espírito. Aqui, por sua maior
afinidade à capacidade especulativa do filósofo, a estrutura tripartite se encontra desenvolvida
de forma muito mais clara e bem justificada, com objetos que nos soam menos arbitrários e mais
bem relacionados à meditação filosófica a que estamos acostumados. É também a porção mais
ampla e desenvolvida do sistema de Hegel.
O espírito possui, naturalmente, três formas essenciais de seu desenvolvimento: i) o
espírito subjetivo ou individual; ii) o espírito objetivo ou geral; e iii) o Espírito Absoluto ou Divino.
À ciência que trata do espírito subjetivo Hegel chama de Psicologia. A Psicologia estuda
toda a vida psíquica do indivíduo, desde a manifestação mais elementar da alma como forma
orgânica de um corpo até o desenvolvimento da consciência de sua essência mais íntima como
parte do Espírito Universal. Seguindo as três partes da Psicologia, na antropologia, Hegel trata
da alma natural, de seus sentidos empíricos e do desenvolvimento da consciência, por meio da
qual chega à realidade em sentido pleno; na fenomenologia, trata do processo por meio do qual
a consciência se transforma em autoconsciência e em razão; e na psicologia em sentido estrito,
trata do desenvolvimento da razão em seus âmbitos teórico e prático para culminar na vontade

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


livre, autoconsciente e que se reconhece como a plena unidade das razões teórica e prática, numa
racionalidade natural e supraindividual que constitui o espírito objetivo.
O espírito objetivo, na definição hegeliana, é a razão na vida da humanidade. Hegel deu
ao estudo desse conceito o nome de Filosofia do Direito, mas, na verdade, ele engloba todas
as instituições da comunidade humana e todos os processos de desenvolvimento individual e
geral, que se dirigem à determinação da racionalidade na vida da espécie. À doutrina do espírito
objetivo pertence, portanto, todo o terreno daquilo que hoje chamamos de Sociologia.
Trata-se, aqui, da investigação acerca de todas as formas de desenvolvimento em que a
liberdade do espírito realiza na vida humana concreta. Este é o ponto em que Hegel resgata uma
marcada herança aristotélica contra toda forma de individualismo liberal. O desenvolvimento
natural e necessário do espírito humano é a passagem do indivíduo para a espécie. A espécie é o
estágio superior do sujeito individual e, portanto, a sociedade é a manifestação mais perfeita do
desenvolvimento do espírito. Para Hegel, a perfeição humana está na integração às instituições
comunitárias, que permitem a sua plena realização por meio do bem comum. No âmbito da
filosofia moral e política, Hegel é, certamente, um defensor moderno da sociabilidade natural, tão
cara aos antigos, e um precursor da posição que hoje chamamos de comunitarista, por oposição
ao liberalismo voltado à primazia dos direitos individuais.

O debate entre liberais e comunitários é o mais importante da filosofia política atual,


opondo, do lado liberal, aqueles autores que defendem uma justiça voltada para
a garantia mínima dos direitos individuais, “neutros” em relações às concepções
de bem que cada um pode adotar na sua vida (Rawls, Nozick, Habermas) àqueles
outros, da matriz comunitarista, que defendem a primazia das concepções
compartilhadas de bem humano (Sandel, MacIntyre, Taylor, Walzer).
Há ampla bibliografia sobre o tema, mas deixaremos aqui duas recomendações
de livros: “Justiça”, de Michael Sandel, e “Filosofia política contemporânea”, de Will
Kymlicka.

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Para tratar do desenvolvimento de sua Filosofia do Direito, Hegel resgata o contraste


kantiano entre legalidade e moralidade (na ética kantiana, o centro da moralidade está na adesão
da disposição interior ao conteúdo da lei moral, por oposição à mera legalidade, que é o simples
agir externamente conforme o dever moral, que basta para a satisfação do direito, mas não da
ética).
A legalidade considera as formas puramente exteriores do espírito objetivo, enquanto
a moralidade considera as interiores (os processos propriamente morais, pelos quais o espírito
subjetivo, já convertido em vontade em sua forma última, se submete ao espírito objetivo).
Também a ética, na visão comunitarista hegeliana, não pode ser tratada como um fenômeno
subjetivo, mas objetivo. Ao contrário de Kant, Hegel crê que o princípio da moral não deve ser
buscado no indivíduo, mas acima dele.
O conteúdo das leis morais não finca raízes no eu individual, mas, antes, na relação entre
o indivíduo e a razão universal da espécie. Ele só pode ser deduzido da razão da espécie e nunca
do espírito subjetivo, e o estudo moral se limita à investigação dos procedimentos interiores pelos
quais o indivíduo, uma vez consciente de sua submissão ao espírito objetivo, toma para si suas leis
como imperativos.
Dessa forma, a natureza do espírito objetivo só pode se completar na correspondência

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


entre as formas exteriores e interiores. A síntese da legalidade e da moralidade recebe o nome
de eticidade. A eticidade – e, pela primeira vez na história da Filosofia, se distinguem ética e
moral, expediente hoje comum no vocabulário filosófico – compreende todas as instituições
da vida humana que levam a razão da espécie à plena realização na convivência exterior, pelas
quais se sintetizam homogeneamente os fenômenos jurídicos e morais. Tais instituições são, ao
mesmo tempo, o direito mais valioso, que funda a convivência exterior entre os homens na mais
pura convicção moral e a moralidade perfeita, que erige o predomínio da razão da espécie em
princípio de sua organização exterior.
Exatamente daqui evolui a filosofia de Hegel para um longo caminho que nos levará a
uma teoria das instituições, da qual o Estado surgirá como síntese última das instituições éticas
anteriores (que principiam na família). A teoria do Estado de Hegel se conecta também com
sua filosofia da história, na qual vemos a evolução das formas políticas até o Estado moderno e
seu ideal pensado por nosso filósofo. Aqui, não poderemos nos dedicar com detalhe a todo esse
ramo fundamental do pensamento hegeliano, limitando-nos a apresentar os aspectos gerais da
doutrina do espírito objetivo, que resultará, como último passo da filosofia do espírito, na teoria
do Espírito Absoluto.
O Espírito Absoluto, igualmente, se desenvolve em três formas centrais: i) como intuição,
na arte; ii) como representação, na religião; e iii) como conceito, na Filosofia.
A vida estética, a vida religiosa e a vida filosófica são as três manifestações do Espírito
Absoluto. Hegel, aqui, retoma o modo de pensar típico dos românticos e lhe dá uma forma
conceitual elevada, em concordância com seu sistema. A arte surge como a intuição genial do ideal
absoluto, que adquire um exemplar concreto na beleza. Ele desenvolve uma história ordenada das
formas artísticas, desde a menor consciência de seu valor simbólico como analogia do Absoluto
até sua consciência mais clara entre os próprios românticos.
Também as religiões são ordenadas nesse processo de desenvolvimento conforme seus
diferentes graus de representação consciente do Absoluto. Por cima de toda manifestação
religiosa, ergue-se a Filosofia que já não representa simplesmente um ser percebido como externo,
mas pensa por conceitos esse Absoluto, que é ele próprio a razão pensante produtora de todo o
real, agora enfim consciente de si mesmo em sua forma final, que é a plena unidade atual, na
autoconsciência, entre o racional e o real, entre a ideia e o mundo, entre o Espírito e as formas
que dele advêm necessariamente.

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7. UMA VISÃO GERAL


Hegel é o ponto final do caminho iniciado por Fichte. É a síntese última e a realização
plena de um sistema idealista. Assim como, em Kant, se unificavam todos os anseios e esforços da
primeira fase da filosofia moderna, em Hegel deságua todo o espírito do pensamento do século
XIX, erguendo um novo patamar que, como ele sempre pretendeu, marcou definitivamente o
modo como aquela cultura oitocentista entendia seu papel na humanidade.
Em Hegel, o sistema ideal “quase” não conhece limites (usamos aqui o “quase” para que nos
lembremos de seu reconhecimento da natureza como esse resíduo inexpugnável de casualidade).
A produção do pensamento humano é capaz de abarcar em si toda a realidade. O racional e o real
estão completa e definitivamente fundidos, numa identidade ontológica plena. O pensamento é
capaz de expressar o real partindo de si mesmo, porque ele mesmo é a realidade, cria a realidade
em sua atividade natural.
Também por isso a filosofia – sua filosofia, a filosofia hegeliana, que é a verdadeira filosofia
em seu estado último, conforme o Espírito Absoluto – é a realização última da humanidade
e da totalidade da realidade. O pleno racionalismo – a capacidade de construir conceitos que
abarquem todo o sistema do real – é o estágio definitivo do pensamento, quando o pensamento,

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


conscientemente, vê o mundo e a si mesmo como enxergado pelo Espírito Absoluto. Toda forma
de visão acerca de Deus e do universo – mesma a religião – são formas embrionárias dessa filosofia
última que vem estabelecer a consciência do diretamente divino em nós.
Certamente, muito se pode extrair quando se olha a filosofia hegeliana desde um ponto
de vista amplo e sistemático – e várias coisas ainda serão ditas nas duas unidades posteriores.
Parece-nos importante destacar, para que conectemos o que agora estamos aprendendo com
nossa disciplina anterior de “História da Filosofia Moderna”, que, num ponto essencial, toda a
história do idealismo alemão é um distanciamento brutal de Kant.
Seria bom tornarmos a relembrar a distinção fundamental entre os métodos gerais da
Filosofia. Kant foi capaz de estabelecer, com as luzes vindas do pensamento construído desde
Descartes, um fenomenalismo baseado numa observação da realidade, permanentemente
consciente de seus limites de intelecção dessa realidade tão gigantesca e tão complexa. Aqui, a
crítica rigorosa dos poderes da razão foi substituída por um absoluto posto a priori pelo pensar –
mais do que isso, que é o próprio pensar como fundamento da totalidade da realidade.
O homem que, em Kant, tateava pelos limites de suas capacidades cognitivas para construir
uma interpretação conceitual da realidade, que pudesse unificar suas experiências e seus anseios
numa árdua reflexão sobre Deus, aqui é o próprio Deus, capaz de ver as coisas como Ele, de
colocar-se da perspectiva de um Criador frente à sua criação e, assim, imaginar a realidade. Sob
certo aspecto, é a plena e quase caricatural realização daquele dogmatismo que tanta repulsa
causava a Kant.

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Seria interessante pararmos agora para pensar se conseguimos perceber essa


distância radical entre os projetos filosóficos de Kant e de Hegel, muitas vezes
apresentados como uma linha de desenvolvimento contínuo. Kant propõe, ao modo
de Sócrates, um tribunal crítico ao qual devemos submeter nossas capacidades
cognitivas antes de emitir juízos e lhes atribuir certeza. Hegel propõe uma filosofia
que seria o modo como Deus vê o mundo antes de sua criação.
Você terá oportunidade de estudar mais profundamente os textos filosóficos
de ambos, cada um numa disciplina de “Leituras filosóficas”. Dê atenção a essa
comparação. Não poderíamos imaginar Hegel como o destinatário primordial da
“Crítica da razão pura”? Se Kant falava do “sono dogmático de Wolff”, que diria de
uma filosofia que explicitamente diz enxergar as coisas no lugar de Deus?

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos ver, sempre num esboço muito geral de algumas linhas fundamentais escolhidas
a dedo, os traços básicos da estrutura do sistema hegeliano. Com isso, fomos capazes de constatar
a realização final de tudo o que a intensa atividade intelectual alemã da era pós-Kant, entre
idealismo e romantismo, vinha produzindo em seu pensamento.
Hegel é a evolução natural do sistema idealista que começou a ser gestado na virada
operada por Fichte a partir de uma apreensão curiosa do sistema kantiano. Ao substituir o
realismo da coisa em si pelo Eu como autoconsciência criadora do conhecimento, Fichte fez a
filosofia enveredar por um caminho totalmente diferente daquele que lhe dera Kant.
Em Fichte, toda a experiência da realidade está sediada num Eu fundamental, que é pura
autoatividade; em Schelling essa ideia é expandida para um Absoluto que pode ser deduzido
pelo seu desdobramento nas formas da natureza e da consciência. Hegel fornece o acabamento
a essas ideias centrais, construindo um sistema central que é a própria identidade entre o real
e o racional, em que o filósofo se coloca no ponto de vista divino para revelar, pela dedução

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 2


lógica, como toda a realidade – em literalmente todas as suas facetas, desde as biológicas até as
históricas, políticas, religiosas, psicológicas – é um desdobramento racionalmente necessário e
cognoscível da essência do Espírito Absoluto. Como toda a realidade é um Eu espiritual, em
Hegel entendemos intelectualmente toda a realidade, porque, ao fim e ao cabo, entendemos Deus
e as leis pelas quais a Divindade opera.
Como agora insistimos, há muitos aspectos que poderiam gerar comentários e discussões
relevantíssimas nas inovações filosóficas de Hegel. Se é verdade que já fizemos uma crítica
fundamental a todo o idealismo, não devemos nos deixar levar pela fácil tentação de desprezar
com pilhéria o que nos pareça loucura no hegelismo.
Veremos agora, nas duas próximas unidades, que o marco do sistema hegeliano se tornou
o ponto de partida necessário para tudo o que se fez em Filosofia nas décadas posteriores. O
sistema hegeliano foi, para muitos, o modelo científico de compreensão da realidade a que a
humanidade deve aspirar (e nisso concordam muitos que também desprezam o sistema particular
de Hegel e suas peculiaridades). Para outros, é justamente essa ideia de sistema do pensar que
deve ser combatida se queremos acabar com as ilusões de uma razão impotente, que apenas
constrói um discurso ideológico sobre si mesma.
O fato, portanto, que não se pode elidir é que Hegel representou com maestria o espírito
epistêmico de uma época e de uma cultura. Devemos refletir como somos (ou deveríamos ser)
hoje conscientes de que enxergamos o mundo sempre sob um sistema conceitual e que tanto
melhor quanto mais formos conscientes de que somos herdeiros de algum sistema desse tipo, e
agimos e pensamos como homens culturalmente produzidos por um estágio da consciência da
humanidade.
Certamente, muito poucos aceitam que a filosofia hegeliana seja a encarnação
transcendente do “fim da história” da cultura humana, aquela que nunca será superada pelos
séculos sem fim. Entretanto, que as filosofias de cada período histórico encarnam concretamente
uma consciência das sociedades humanas sobre si mesmas, segundo conceitos determinados por
realidades temporais – e que é tarefa da Filosofia tornar-nos conceitualmente conscientes desse
fato –, é uma percepção que devemos a Hegel e que, a qualquer momento, podemos aprender
com ele.

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

03
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX

SISTEMAS HEGELIANOS
PROF. DR. GUSTAVO FRANÇA

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO ...............................................................................................................................................................30
1. CONTEXTO ................................................................................................................................................................ 31
2. FEUERBACH ............................................................................................................................................................. 31
3. MARX ........................................................................................................................................................................34
4. COMTE .....................................................................................................................................................................36
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................................................................39

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INTRODUÇÃO
Até este ponto, o modo de expor a história da Filosofia na Modernidade segue certo
rumo canônico, consagrado em praticamente todos os manuais. Inicia-se com Descartes, a partir
do qual a Filosofia moderna se desenvolve em dois ramos: o empirismo britânico, que culmina
em Hume; e o racionalismo, que dos discípulos de Descartes chega à Alemanha com Leibniz.
Ali mesmo, produz-se a síntese superadora de Kant, e seus sucessores dão origem ao idealismo
alemão, do qual Hegel é a forma final.
Depois de Hegel, não há qualquer consenso sobre o melhor caminho a se tomar para
ordenar a exposição de sua posteridade na porção final do século XIX. Diferentes autores
organizarão sua linha histórica segundo critérios muito diversos. O fato é que a fragmentação das
múltiplas escolas torna a disciplina histórica sensivelmente mais difícil a partir do momento em
que agora estamos.
O critério que elegemos para ordenar os temas a serem tratados nesta unidade e na
próxima foi a adesão à ideia hegeliana de sistema. Desse modo, exporemos primeiro aqueles

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


pensadores que buscaram construir sistemas integrais de pensamento para a interpretação da
realidade em sua plenitude, “ao modo de” Hegel, para, na Unidade 4, tratar dos filósofos que,
ao contrário, se moveram pela repulsa à própria noção de um sistema capaz de compreender
intelectualmente a realidade como um todo.
Serão três os filósofos tratados na presente unidade. Primeiro, falaremos de Ludwig
Feuerbach (1804-1872), preeminente nome da chamada “esquerda hegeliana”. Veremos como o
sistema de Feuerbach se utiliza da estrutura hegeliana para, contra Hegel, derivar um pensamento
completamente irracionalista. Em vez de um sistema que justifica ideias profundas sobre Deus e
a religião (como em Hegel), Feuerbach constrói uma filosofia que busca explicar como o homem
é levado a desenvolver tais ideias a partir de suas próprias estruturas mentais e seu contexto
cultural. A dialética feuerbachiana não justifica a filosofia idealista, mas, antes, a expõe como o
produto da imaginação inconsciente humana.
Em seguida, trataremos de Karl Marx (1818-1883), o discípulo mais famoso de Feuerbach
e, provavelmente, o rosto mais conhecido da filosofia recente por sua enorme influência política.
Na linha que já viemos adotando em nossas disciplinas, não poderemos discutir as ideias políticas
e sociológicas concretas de Marx. Veremos, em lugar disso, que sua ontologia é, no fundo, um
feuerbachismo aplicado às relações sociais. Marx radicaliza a crítica irracionalista de Feuerbach,
denunciando todo sistema filosófico idealista como determinado pelas condições econômicas de
cada classe social.
Para encerrar, falaremos de Auguste Comte (1798-1857). Veremos Comte estabelecer uma
evolução do saber humano estruturada num raciocínio formalmente semelhante ao de Hegel,
estabelecendo a chamada escola positivista. Comte pretendia fazer a humanidade passar para o
estágio positivo, em que seu conhecimento se restringirá à coleção científica de fatos, superando
toda religião e toda metafísica.
Em cada parte desta unidade, será importante estar atento aos ecos da mentalidade
estabelecida por Hegel e, ao mesmo tempo, às contradições a que seu idealismo radical nos leva,
que agora restarão evidenciadas.

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1. CONTEXTO
Retomando agora o que acabamos de dizer na introdução, demos a esta unidade o nome
curioso e, sem dúvida, polêmico de “Sistemas Hegelianos”. Certamente, há larga margem para
que se ponha em dúvida que algum desses filósofos de que agora trataremos são hegelianos.
Chamo assim não propriamente a eles, mas ao seu estilo de pensamento. Como
comentamos ao final da Unidade 2, a argúcia formal de Hegel na estruturação de seu sistema
marcou definitivamente a visão de ciência da geração posterior. Os filósofos que ora apresentaremos
propõem sistemas de pensamento integrais cujo arcabouço claramente se inspira no método
hegeliano – às vezes, em aspectos muito sutis.
Os sistemas que agora estudaremos, muitas vezes, se erigem até mesmo contra Hegel
no conteúdo do filosofar. Entretanto, são sistemas “ao modo de” Hegel, sistemas idealistas que
buscam explicar conceitualmente toda a dinâmica da realidade.

2. FEUERBACH

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


Não foi por acaso que, dos muitos ramos da árvore da escola hegeliana, o de Ludwig
Feuerbach (1804-1872) foi aquele que gerou frutos mais duradouros, indo redundar em toda
a larguíssima posteridade do pensamento marxista. Feuerbach, nas palavras de Windelband
(1951, p. 298), representou o ramo irracionalista do hegelismo, e seu desenvolvimento a partir do
sistema hegeliano foi, talvez, o mais arguto por mostrar o destino fatal do idealismo extremado
do grande mestre alemão.
Com efeito, Henri de Lubac (1896-1991), em sua famosa obra “O drama do humanismo
ateu”, ao dividi-la entre os grandes pilares da mentalidade que chama de humanismo ateu, dedica
uma parte do livro a Feuerbach, tratando de Marx apenas como um desdobramento a mais dentro
do volume dedicado àquele, na contramão do que a intuição ordinária pareceria indicar. Cremos
ter razão de Lubac: Marx merece grande atenção das disciplinas de Filosofia Política e de Ciências
Sociais, mas, numa história dos grandes sistemas metafísicos, os pressupostos estritamente
filosóficos do marxismo foram inovadoramente lançados pelo pensamento de Feuerbach.

O livro “O drama do humanismo ateu” está relacionado na bibliografia da nossa


disciplina e é uma recomendação para acompanhar e compreender o espírito
deste período tratado nas Unidades 3 e 4. Trata-se de uma muito erudita visita
à mentalidade dominante no fim do século XIX, tanto entre os autores de que
tratamos agora quanto entre aqueles de que vamos tratar na última unidade –
os três pilares do humanismo ateu, segundo a divisão de Lubac, são Feuerbach,
Nietzsche e Comte.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

O ponto central que leva à filosofia feuerbachiana é aquele “ponto cego” do pensamento
de Hegel: o limite da dedutibilidade da realidade pelo espírito, encontrado na casualidade da
natureza. Logicamente, para Hegel, a particularidade dos fenômenos naturais singulares que
escapava às deduções racionais se devia a uma inadequação da realidade ao conceito. A natureza
era a suma imperfeição do real, já que alheia ao ideal, ao pensamento fundante do espírito, que
confere toda verdadeira substância ao que existe.
Feuerbach, por sua vez, inverte a conclusão de Hegel e atribui a indedutibilidade da
natureza, ao contrário, à inadequação do conceito à realidade. Se os fenômenos naturais não
cabem na teoria de Hegel, esse é um defeito da filosofia, não da natureza.
Não teremos condição de nos alongar nos enormes debates que dividiram atrozmente os
discípulos da escola hegeliana. Basta assinalarmos que Feuerbach se encontrava entre aqueles que
constituíram o que se convencionou chamar de “esquerda hegeliana”. A posição que caracterizava
tal “lado” era a defesa de que o Espírito Absoluto de Hegel era, na verdade, simplesmente seu
espírito objetivo, isto é, a razão geral da espécie humana.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


As subdivisões da escola hegeliana, entre direita e esquerda, são tratados num
capítulo específico do manual de Sofia Vanni Rovighi, que recomendamos para
conhecimento do assunto.

Feuerbach, como vimos, encontra o problema central da filosofia hegeliana em sua


declarada impotência ante a complexidade da natureza, que só pode ser concebida como casual.
Para Feuerbach, porém, o casual é que é o essencial. A essência da natureza é justamente a
individuação, a cujo conhecimento o sistema hegeliano deve necessariamente renunciar. Portanto,
tal filosofia falha na concepção da raiz mesma da realidade – a individualidade por meio da qual
se manifestam os fenômenos concretos. É assim que, de discípulo, Feuerbach passa a contumaz
adversário de Hegel.
Feuerbach reprova Hegel por possuir uma filosofia de caráter eminentemente teológico e
que, por isso mesmo, afirma a realidade da ideia e casualidade da natureza. A filosofia de Hegel
é um espiritualismo afastado do real – atribui realidade ao próprio pensamento, enquanto se
confessa incapaz de penetrar a natureza física diante de seus olhos.
Para Feuerbach, Hegel é, no fundo, mais um escolástico. A ciência não pode ter aquilo
que ele chama de missão escolástica – de justificar apologeticamente a religião. Hegel, no fim
das contas (e, de fato, ele o admite orgulhosamente, como começamos a Unidade 2 narrando),
constrói uma filosofia para fundamentar sua doutrina religiosa. Antes, segundo Feuerbach, a
tarefa do pensamento científico é explicar o fenômeno religioso. E a única forma de explicá-lo é
atendo-se à natureza humana e ao desenvolvimento das funções psicológicas do homem.
Feuerbach pensa ter encontrado aqui o segredo da filosofia de Hegel: o homem possui
um conceito da própria espécie, e esse conceito serve de fundamento à sua vida religiosa. Isso
porque o homem não considera esse conceito como a essência mesma de sua humanidade, mas
como algo exterior, como um ser alheio a si mesmo, ao qual dá realidade, criando, dessa forma,
a ideia de Deus.
Assim, antropologicamente, podemos dizer que a religião é uma ilusão necessária,
por meio da qual o conceito de espécie humana é pensado como uma essência real, oposta ao
indivíduo. Os dogmas religiosos se constituem de uma inversão da realidade presente na mente
humana, considerando as características ideias do conceito de humanidade como algo divino.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

O homem deseja, por natureza, corresponder ao seu conceito da espécie e, por esse desejo,
termina por atribuir ao conceito a realidade de um ser supremo. O homem tende ao infinito por
inclinação de sua razão e coloca o infinito de frente para si mesmo como um ente separado, em
Deus. Deus é aquilo que o homem quer ser como humano pleno. A religião é uma necessidade
psicológica, um produto da atividade normal da razão individual em suas potências internas.
Se, ao menos a princípio, parecia que Feuerbach admitia, pelo menos, a realidade da
ideia de humanidade presente em nossa consciência, ao final de sua obra, ele nega até mesmo
a existência desse conceito, proposta agora como mera ilusão dos indivíduos. Feuerbach é um
nominalista, que, em sua crítica da filosofia de Hegel, convenceu-se de que a individualidade
jamais pode ser deduzida da ideia, mas é esta que sempre vem daquela (cf. WINDELBAND, 1951,
pp. 299-300).
Quer dizer, o universal, o conceito e a ideia constituem o espiritual, enquanto o individual
e o particular constituem o natural. O método dialético havia sido incapaz de penetrar o reino
natural; não podia conceber a natureza, porque considerava a ideia a realidade suprema. O
naturalismo de Feuerbach, por sua vez, considera que a natureza e o indivíduo devem ser tomados
como a realidade suprema.
A filosofia hegeliana, nessa perspectiva, inverte todas as coisas. O espírito e a universalidade

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


não são mais do que imagens da individualidade (que, no idealismo, era considerada um
produto dedutível do espírito). O real em sentido próprio é o natural, são os fenômenos sensíveis
particulares. O cristianismo, por isso, é perigoso para a inteligência – o que ele faz é hipostasiar o
interior da alma humana para um poder religioso exterior.
A filosofia de Feuerbach culmina na morte do espírito, precipitado inteiramente na
matéria. Ele é o suicídio do idealismo alemão. O sistema que se iniciou em Fichte, desviando
fundamentalmente (embora disfarçadamente) do realismo crítico kantiano, inflou-se
poderosamente em Hegel, mas agora encontrou seu abismo para o qual saltou por vontade própria.
O desdobramento do espiritualismo brutal de Hegel é a queda no mais vulgar materialismo.
A verdade é que, se formos fiéis à substância da crítica que fizemos à origem de todo
idealismo em Filosofia, seremos obrigados a dolorosamente reconhecer que Feuerbach tem razão.
O Deus de Hegel, seu Espírito Absoluto, de fato é uma construção mental sua, uma hipóstase das
ideias de seu próprio pensamento. Numa filosofia idealista, Deus é posto a priori pelo intelecto. Não
é uma realidade “vista” por trás do mundo conhecido, mas uma ideia criativamente desenvolvida.
Hegel, como era muito arguto e realmente um gênio, deixou confessada a porta que
desvendava o equívoco de seu filosofar. A admissão da indedutibilidade da natureza mostra o
problema fatal do hegelismo. De fato, não se pode deduzir nenhuma individualidade concreta da
ideia. Essa é a tarefa impossível do idealismo: extrair a realidade do pensamento, e não o contrário.
O “resíduo ilógico” é, na verdade, como adiantamos, uma contradição fulminante dentro das
premissas do sistema hegeliano e foi o que levou, em Feuerbach, a uma inversão absoluta de seu
pensamento, a forçar o absolutismo lógico a se converter em materialismo.
Por outro lado, deve-se destacar que o sistema materialista feuerbachiano ainda conserva
a estrutura dialética e, portanto, é ainda, num sentido fundamental, um sistema idealista. Ora,
conforme constatamos, o que ele faz não é mais do que inverter os termos de Hegel: o espírito é
a negação necessária da matéria, que, ao mesmo tempo, é um desdobramento dela (um produto
psicologicamente necessário do indivíduo). Quer dizer, aqui temos um desenvolvimento dialético
precisamente análogo ao hegeliano – a matéria é a realidade originária (o único absolutamente
real), e o espírito se desdobra a partir dela, como uma parte de sua essência que aparece
hipostasiada como um ente externo, ou seja, como um “eu separado de si”.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Em suma, acabamos percebendo que o idealismo alemão, inaugurado por Fichte, que
encontrou tão belas formas no romantismo e que alçou tão alto voo em Hegel, se encerrou
numa queda muito abaixo do que se poderia imaginar. O idealismo alemão se resolveu num
materialismo, e nesse materialismo o pensamento germânico irá chafurdar pelas gerações
posteriores, como seguiremos estudando agora.

3. MARX
Como adiantamos no tópico anterior, é justo considerar a filosofia de Karl Marx (1818-
1883) como uma espécie de feuerbachismo prático. A figura de Marx certamente invoca a chama
ardente da paixão política, e suas ideias socioeconômicas, por terem sido tão largamente aplicadas
ao longo do século XX, despertam imediata controvérsia num terreno histórico muito concreto.
Aqui, porém, tentaremos deixar tudo isso de lado por um momento a fim de tentarmos identificar
o objeto de nosso estudo – estamos, afinal, numa disciplina de História da Filosofia – a posição
peculiar de Marx numa história das ideias filosóficas, como sucessor da esquerda hegeliana de
Feuerbach e aprofundador principal do materialismo em que se dissolveu aquele que parecia o

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


mais espiritual dos sistemas.
Nessa linha, o ponto de partida de Marx é, essencialmente, o mesmo de seu antecessor: o
sistema filosófico tem vida própria, mas se encontra com uma realidade que não corresponde a
ele, que não se enquadra totalmente em suas categorias conceituais, gerando uma dilaceração no
pensamento. Surge, então, uma crise do enfrentamento entre o pensamento e realidade, entre um
pensamento que deveria abarcar tudo, mas não abarca, e uma realidade que teima em permanecer
irracional.
Dessa crise, nasce uma síntese, que é uma nova filosofia, uma filosofia renovada em seu
modo de conceber sua própria tarefa. Trata-se de uma filosofia que já não se limita a compreender o
mundo, mas que estabelece com ele uma relação prática. Trata-se do famoso princípio enunciado
na sua décima primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo
de diferentes modos: trata-se agora de transformá-lo”.
A crítica central de Marx a Hegel também é a mesma de Feuerbach. Hegel põe o ideal no
lugar do real, quando, na verdade, é o real o pressuposto do ideal, que nada mais é do que uma
realidade interior hipostasiada. No sistema hegeliano, em todas as suas partes, a ideia se torna
sujeito, e a ela são atribuídas atividades reais antropomórficas. Em política, argumenta Marx, a
família e a sociedade civil são os pressupostos do Estado, e apenas aquelas são verdadeiramente
ativas. Entretanto, na especulação hegeliana, as relações reais das famílias e da sociedade
civil, em suas circunstâncias reais e em seu poder real, são tomadas como momentos de um
desenvolvimento ideal do Estado, como uma realidade última e autônoma.
Na visão marxista, não é o Estado que determina a sociedade civil, mas esta que
determina aquele. E a sociedade civil não é mais do que a expressão de interesses econômicos. As
transformações do Estado e a sucessão das distintas formas políticas não podem ser explicadas,
como pretendia Hegel, por um desenvolvimento do espírito humano, mas, antes, resultam das
condições materiais da vida. Encontramo-nos, aqui, com o materialismo histórico, novo passo no
desenvolvimento do materialismo dialético de Feuerbach.
O que Hegel assume como ideia necessária de Estado é, na verdade, a manifestação
empírica das relações políticas nas condições materiais de seu tempo. O Estado de Hegel é, na
realidade, o Estado burguês. Nascido da dissolução do Estado medieval, a principal característica
do Estado burguês, na interpretação marxista, é a sociedade civil e a sociedade política.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Na Idade Média, havia uma identidade entre as classes sociais e as classes políticas. O
indivíduo participava do Estado na medida em que participava de uma corporação de ofício
e, assim, a classe econômica determinava a classe política. Como remédio para a contradição
gerada por essa separação na Modernidade, Hegel propõe a superação dessa separação. Ora,
critica Marx, mas isso seria retornar ao Estado medieval. Para ele, a transformação das classes
políticas em classes sociais, em que as diferenças socioeconômicas já não constituam diferenças
políticas, é um progresso.
Segundo a visão de Marx, todos os elementos para a crítica de um mundo alienado se
encontram na dialética de Hegel, mas obscurecidos por uma perspectiva espiritualista. Já devemos
ter percebido que o objetivo da filosofia de Marx é libertar as percepções geniais de Hegel da
realidade à nossa volta de sua abstrusa metafísica idealista, que impede a consciência daquilo que
foi percebido e sua importância.
Marx considera que o mais importante em Hegel é sua dialética da negatividade como
princípio motor e criador. Disso derivam a compreensão da autocriação do homem como
processo vital, a objetificação como perda do objeto, como alienação, a ser transcendida por um
processo de síntese e, por meio disso, a compreensão da essência do trabalho, na concepção do
homem objetivo (o homem verdadeiramente real) como produto de seu próprio trabalho.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


Os limites de Hegel, nessa perspectiva, são: i) compreender apenas o aspecto positivo do
trabalho, e não o negativo; ii) considerar que a superação da alienação se realiza na autoconsciência.
Neste ponto, Marx partiu de sua crítica feuerbachiana a Hegel para o desenvolvimento
de seu próprio sistema materialista de compreensão do mundo. Em “A ideologia alemã”, sua obra
filosófica mais significativa, ele apresenta uma crítica radical a todos os filósofos da tradição
anterior que acreditaram poder mudar o mundo com suas ideias. Marx chama pejorativamente
de ideólogos a tais filósofos. Estes (como o próprio Feuerbach e a esquerda hegeliana) pensavam
que bastava libertar o homem de falsos dogmas para acabar com a escravidão a que estava
submetido. Ocorre que as teorias são meras expressões de condições sociais concretas, e somente
modificando estas é possível reverter aquelas.
A primeira subversão de Marx é afirmar que os filósofos ditos ideológicos erraram ao
partir de ideias como pressupostos. Segundo ele, os seus pressupostos, ao contrário, não são
ideias, mas a própria realidade tal como se apresenta. O primeiro pressuposto é a existência de
indivíduos humanos vivos. Segundo ele, humano é o indivíduo que não encontra já prontos
seus meios de subsistência, mas os produz ele próprio. Essa é a característica fundamental que
diferencia os homens dos animais, a capacidade de produzir a própria subsistência.
Dessa forma, o modo como os indivíduos produzem sua subsistência determina o seu
modo de vida. Marx, pois, identifica a essência humana como a atividade de produção da própria
subsistência, e todas as demais atividades humanas são tomadas como emanações daquela.
Todas as atividades no ramo das ideias, todas as representações da consciência, em seus distintos
desenvolvimentos culturais e metafísicos, estão fatalmente entrelaçadas à subsistência, e a única
linguagem da vida real é a sobrevivência material.
Desse modo, Marx descreve o processo humano em quatro etapas: i) para poder fazer
história, os homens precisam viver; ii) a satisfação de uma necessidade gera outras; iii) com a
multiplicação das necessidades, os homens começam a produzir outros homens, a se reproduzir,
gerando as relações familiares; a família também não basta, e o processo se repete, criando
novas relações sociais; e iv) por esse processo, um modo de produção determinado está sempre
vinculado a um Estado determinado.
Essa dialética do processo histórico sintetiza o arcabouço fundamental da filosofia de
Marx. Por isso, ele pode recriminar Feuerbach por considerar a natureza como algo já dado,
independente do homem. Na verdade, mesmo o ambiente físico em que vivemos já é algo
transformado pelo homem.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

No fundo, Feuerbach também considera o homem por sua essência, ainda que seja uma
essência estritamente material (trata-se, como vimos, de uma essência natural a partir da qual se
geram as ideias espirituais, por um processo meramente intelectual). Em Marx, dá-se mais um
passo: não há essência humana anteriormente à atividade produtora dos indivíduos. O que existe
realmente é apenas uma incessante atividade de satisfação das necessidades materiais, e dessa
atividade tudo deriva, inclusive o conteúdo daquilo que se considera a natureza humana.
Em suma, o materialismo feuerbachiano ganha um novo sabor na filosofia social de Marx.
Entretanto, as cores novas do materialismo histórico se mantêm vinculadas ao paradoxo curioso
que marcava a filosofia de seu antecessor: ao mesmo tempo em que se trata de uma ruptura
radical com o espiritualismo extremado de Hegel, ainda se sustenta como um sistema idealista
que abarca a realidade como um todo, construído ainda segundo o método e categorias essenciais
da dialética hegeliana, presente numa visão evolutiva necessária da história humana e num ideal
de ciência dedutiva capaz de compreender todo o processo da humanidade sobre a terra.

4. COMTE

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


Do materialismo da esquerda hegeliana, saltamos para uma escola bastante diferente em
seus ideais e em seu desenvolvimento: o positivismo, cuja fundação é atribuída a Auguste Comte
(1798-1857). Comte foi um homem obsessivo e desequilibrado, cheio de idiossincrasias que se
fazem notar em suas obras – tendo terminado a vida levando seu pensamento a um desvario
completo, quando tentou estabelecer a religião positiva por meio da igreja por ele liderada.
Apesar disso, foi muito influente nas gerações posteriores, e sua ideia de ciência, embora hoje
ultrapassada, representou com maestria o espírito intelectual da época, sabendo extrair de Hegel
justamente esse substrato de ciência total que fascinou todo um século.

Para um conhecimento mais amplo da trajetória intelectual de Comte até a loucura


de seus escritos finais, recomendamos o capítulo sobre ele na já citada obra “O
drama do humanismo ateu”, de Lubac.

A estrutura de seu pensamento é marcadamente hegeliana, num sentido semelhante ao


do materialismo alemão (ao menos, em Marx). Trata-se de um pensamento igualmente histórico,
e cuja filosofia da história enxerga um progresso do espírito humano. No caso de Comte, trata-
se de um progresso do saber, que se dá em três fases: i) a fase teológica ou fantástica; ii) a fase
metafísica ou abstrata; e iii) a fase científica ou positiva.
Na fase teológica, o espírito humano, orientando a investigação essencialmente para
as causas últimas e perscrutando a natureza interior dos entes, interpreta os fenômenos como
ação direta de entes sobrenaturais. Na fase metafísica, os agentes sobrenaturais são substituídos
por forças abstratas, mas se mantém a direção geral do espírito para a investigação das causas
últimas. Na fase positiva, o espírito humano, reconhecendo, enfim, a impossibilidade de se obter
um conhecimento absoluto, renuncia a indagar as causas e busca interminável pelo sentido e
o destino do universo e se dedica apenas às leis efetivas dos fenômenos, isto é, suas relações
necessárias de sucessão e semelhança.

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Para Comte, o progresso da ciência tende a reduzir os fatos gerais aos quais deve apelar.
O último passo do sistema teológico foi a substituição do politeísmo pelo monoteísmo. O do
sistema metafísico foi a redução de todas as entidades abstratas a uma única – a natureza. A
perfeição do sistema positivo, pois, seria reduzir todos os fenômenos a uma única lei.
O positivismo carrega sempre uma tensão (tensão essa que vimos já em Hume, quando o
estudamos em “História da Filosofia Moderna”). O conhecimento positivo não pode ser apenas
uma coleção de fatos. Não há verdadeiro conhecimento sem uma teoria que relacione os fatos
observados de modo orgânico. Não é possível renunciar absolutamente a todo tipo de explicação,
mas é preciso agora buscar uma explicação positiva, que não atribua à razão o poder de captar o
todo da realidade.
Comte também afirma que esse progresso do espírito humano, da infância das velhas
religiões à maturidade da ciência positiva, é sempre gradativo. Aquelas ciências que tinham um
objeto mais simples progrediram mais rapidamente: primeiro, a Astronomia; depois, a Física e
a Química; e, finalmente, a Fisiologia. Há, no entanto, uma esfera de fenômenos à qual o estudo
positivo ainda não chegou: a esfera dos fatos sociais. Essa é a tarefa fundamental que a filosofia
de Comte pretende realizar: conduzir o saber humano à construção de uma física social, última
lacuna a ser preenchida para o estabelecimento definitivo da ciência positiva.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


Temos aí, portanto, o objetivo especial do sistema comtiano. Previamente a esse, há
um objetivo geral: estabelecer uma filosofia positiva. Parece, à primeira vista, que a Filosofia
teria ficado para trás no estágio metafísico, e já não haveria lugar para ela no mundo da ciência
positiva. A isso Comte responde que a Filosofia não é a totalidade das ciências (as quais progridem
sempre em direção a uma maior especialização de seu objeto), mas um estudo das “generalidades
científicas”.
Trata-se de algo como uma metodologia das ciências, que consiste em descobrir o espírito
de cada uma delas, as relações entre seus objetos em resumir, sempre que possíveis, seus princípios
a um número mínimo. A Filosofia seria, assim, uma ciência lógica geral, voltada para as leis do
conhecimento humano, que permitem compreender o funcionamento de cada ciência e seu lugar
no sistema geral do saber positivo (cf. VANNI ROVIGHI, 2015b, pp. 127-128).
Há um duplo ponto de vista sob o qual se pode estudar a filosofia positiva: i) o dinâmico,
que estuda os procedimentos do espírito humano do modo como se refletem em cada ciência
particular; e ii) o estático, que estuda a raiz desses procedimentos na estrutura anatômica e
fisiológica do homem. Apesar de dispor assim, Comte desenvolve sua filosofia apenas desde o
ponto de vista dinâmico, construindo, assim, uma epistemologia das ciências, e não uma fisiologia
do conhecimento, que o obrigaria a mergulhar pelos meandros da Fisiologia e da Psicologia e a
erguer essas ciências a um patamar indesejado dentro das premissas de seu sistema (cf. VANNI
ROVIGHI, 2015b, p. 128).
Segundo Comte, a filosofia positiva possui quatro resultados. O primeiro é deduzir as
leis às quais obedecem nossas funções intelectuais, permitindo-nos aplicá-las conscientemente
na busca da verdade. O segundo é mostrar a unidade do saber, revelando as distintas ciências
como ramos do mesmo tronco. O terceiro é o de contribuir para os progressos de cada uma
das ciências particulares, pois a metodologia, ao fazer uma reflexão geral sobre a ciência e seu
estatuto, possibilita novos caminhos para a investigação. O quarto, enfim, é o de oferecer uma
base sólida para a organização social, segundo uma nova ciência positiva a ser estabelecida.
Comte estabelece uma ordem lógica das ciências, segundo a simplicidade de seu objeto:
Astronomia, Física, Química, Fisiologia e Física Social. Pelo critério definido, as cinco ciências
fundamentais do sistema comtiano estão dispostas desde aquela que tem o objeto mais simples
àquela que possui o mais objeto mais complexo.

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Essa ordem, insistimos, é, sobretudo, uma ordem lógica, segundo as próprias características
abstratas de cada ciência, mas Comte gosta de a ela justapor uma ordem histórica, segundo ele,
fundamental para a compreensão de como as ciências se constituem no mundo humano concreto.
Os objetos mais simples são também os mais gerais e, portanto, cabe às ciências de objeto mais
simples fornecer os princípios gerais àquelas de objeto mais complexo. Ao menos intuitivamente,
não parece que a Astronomia, nessa esteira, deveria vir antes da Física, mas Comte propõe que
os fenômenos astronômicos são os mais gerais, simples e abstratos e, por isso, suas leis influem
naquelas de todos os demais fenômenos, como é o caso da gravitação universal.
Para Comte, como vimos, a parte mais original de todo o seu sistema é a Física Social,
à qual dá também o nome de Sociologia (termo criado por ele). Segundo o pensador francês,
a organização social padece de tantos problemas ao longo da história e parecia recair, em seus
tempos, num estado de anarquia porque, como demonstra seu sistema, toda prática depende de
uma teoria sólida que a oriente. Dessa forma, a prática política, de organização das comunidades
humanas, exige uma teoria social. Entretanto, essa teoria ainda não existe já que, no âmbito
social, a humanidade segue na fase teológico-metafísica. A desordem no mundo pós-Revolução
Francesa, em sua interpretação, se deve ao vácuo causado pela crise final da política metafísica,
sem que já tenha surgido a ciência positiva da sociedade.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


Por essa via, o comtismo se volta para a missão da reforma social. Para fazê-lo, invoca uma
filosofia da história, por meio da qual pretende explicar todos os fenômenos sociais da história
política humana a partir de leis naturais descobertas. Conforme temos metodicamente procedido
em todos os autores que agora estudamos em nossas disciplinas, também aqui não teremos
ocasião de conferir detalhadamente as interpretações comtianas dos movimentos históricos e
das grandes eras e as categorias que ele pretende desenvolver para o estabelecimento de uma
definitiva política positiva, cientificamente apta a garantir a ordem social de forma estável e o
progresso do espírito humano de forma imorredoura.
Basta nos darmos conta de que essa conclusão do sistema comtiano guarda uma simétrica
analogia com a mentalidade geral estabelecida pela filosofia hegeliana. Assim como Hegel precisa
redundar sua filosofia do espírito numa interpretação dialética da história e do desenvolvimento
do espírito em formas políticas que caminham para a legitimação do Estado moderno e assim
como Marx reduz seu materialismo a essa mesma missão de interpretar a história humana de
forma a conhecer a síntese social última necessária, também o enciclopedismo positivista de
Comte culmina numa filosofia da história e numa interpretação da realidade política capaz
de levar a um projeto de reforma social, à qual se dá o encargo de realizar a etapa decisiva do
desenvolvimento do espírito humano.
O ideal de ciência positiva de Comte é de um conhecimento seguro e pleno – certamente,
não de um conhecimento do todo, do fundo da realidade (aí a razão humana não pode chegar, e
toda metafísica é ilusão), mas de um conhecimento irrevogável de todos os fatos que é possível
conhecer, logicamente conectados por princípios simples e definitivamente estabelecidos.
Trata-se, em suma, de uma ciência final, a ser desenvolvida como estágio último da história
do espírito humano. É mais do que claro que temos aqui mais um espécime “desencantado” do
sistema idealista hegeliano, no qual o espiritualismo fica substituído não propriamente por um
materialismo, mas por um empirismo positivista.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa divisão que escolhemos para orientar nossas aulas, acabamos de ver um dos “lados”
da posteridade de Hegel. Justamente, o lado hegeliano, ou seja, o daqueles que buscaram construir
sistemas inspirados pelo método hegeliano. Se o cenário pode parecer um tanto desolador, é
também bastante didática para que compreendamos a importância dos alertas que fizemos sobre
os inevitáveis descaminhos de um método idealista em Filosofia.
Como constatamos, a fatal confissão de Hegel da indedutibilidade dos fenômenos da
natureza expôs a fratura de seu sistema e conduziu à conclusão óbvia: se o “espírito” de Hegel não
é compatível com a realidade, o problema não pode ser da realidade, mas do suposto “espírito”, que
não é verdadeiro espírito, nem, no fundo, real. A denúncia feuerbachiana do espírito hegeliano
como produto da realidade material era o fim que podíamos antecipar de toda a ambição da
lógica totalizante do patrono alemão.
É impressionante conferirmos como, um a um, os sistemas hegelianos conservaram o

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 3


método dialético e modo de proceder sempre histórico e dedutivo, mas o utilizaram para rechaçar
completamente qualquer pretensão espiritual na vida humana, encontrando o desenvolvimento
último da humanidade na matéria, seja na natureza, seja na realização das perfeitas condições
sociais, seja no pleno conhecimento científico, capaz de legislar faticamente até mesmo sobre a
vida social.
O futuro dos sistemas idealistas é a pobreza metafísica mais absoluta. Cada vez mais, a
vida humana, tão cheia de espiritualidade e reflexão em Hegel, fica reduzida a instintos naturais,
a condições materiais e à frieza da ciência empírica.
Naturalmente, tal movimento “desencantador” não passa impune pela mente humana,
sempre tão ávida pela reflexão sobre o sentido. Tais sistemas idealistas encontrarão, de outro
igualmente largo time de filósofos, uma frontal oposição. A redução da vida humana a dimensões
unilaterais capazes de explicar o todo e de satisfazer todos os desejos encontrará, ainda no século
XIX, muitos inimigos, alguns dos quais estudaremos na última unidade.

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

04
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX

PENSAMENTO ANTISSISTÊMICO
PROF. DR. GUSTAVO FRANÇA

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................... 41
1. CONTEXTO ................................................................................................................................................................42
2. SCHOPENHAUER.....................................................................................................................................................42
3. KIERKEGAARD .........................................................................................................................................................45
4. NIETZSCHE ..............................................................................................................................................................48
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................52

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

Retomando o dito na introdução da unidade anterior, dividimos os autores da posteridade


de Hegel na porção final do século XIX por sua adesão à noção hegeliana de sistema. Tratamos,
assim, na unidade anterior daqueles que buscaram construir sistema “ao modo do” método
idealista hegeliano, propondo interpretações da realidade a partir de cânones unilaterais, ainda
que bastante distintos entre si.
Agora, dedicaremos esta última unidade da disciplina a estudar outro grupo de notáveis
pensadores que, ao exato contrário, moveram seu filosofar tendo por princípio basilar a repulsa à
própria ideia de sistema. O que possuem em comum os autores que agora estudaremos é a crítica
fundamental e fundante de suas reflexões à proposta de um sistema lógico capaz de interpretar a
realidade em sua integralidade (ou em sua integralidade cognoscível). Esses filósofos desdenham
da atribuição de poderes onicompreensivos à razão humana, orientando-se por um radical
pessimismo quanto aos progressos da humanidade tão exaltados pelos sistemas hegelianos.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 4


Também aqui, veremos três autores bastante distintos entre si. O primeiro será Arthur
Schopenhauer (1788-1860). Veremos aqui um filósofo alemão com grande domínio da tradição,
mas que percebeu os problemas da evolução tomada pela filosofia a partir de Kant. Schopenhauer
pretende desenvolver o sistema kantiano num sentido bastante diverso do que lhe deu o idealismo.
Em Schopenhauer, a separação entre o mundo teórico e o prático (entre vontade e representação)
levará a um irracionalismo da vontade alheia a todo fato do mundo, descambando num niilismo
profundo e de raízes duradouras.
Seguiremos conhecendo um pouco do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-
1855). Kierkegaard é o que resta de espiritualismo num mundo materialista pós-Hegel. Se o
cristianismo de Hegel o levava a afirmar o homem como receptáculo do Espírito Absoluto que
se desenvolve plenamente nele, o cristianismo de Kierkegaard o conduz a anunciar a fraqueza do
indivíduo perante o mundo e maldade e a necessidade da fé para a salvação. Para Kierkegaard, a
razão nada pode para elevar o homem, mas no abandono pré-racional à fé no Salvador em que o
homem verdadeiramente se encontra.
Encerraremos, enfim, com Friedrich Nietzsche (1844-1900), a face por excelência do
niilismo radical. Em Nietzsche, a atitude antissistêmica assume a forma de um ódio profundo
a todo tipo de logos. Nietzsche é o profeta positivo da irracionalidade, o defensor último e mais
coerente de que as pretensões universais da razão humana são mera bobagem, a serem destruídas
pelo caos da realidade natural.
Conforme comentado, cada um desses pensadores possui traços muito distintos e mesmo
radicalmente opostos, mas é interessante que sempre observemos sua reação original à mentalidade
de ciência totalizante que imperava desde os ecos do hegelismo.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1. CONTEXTO
Depois de estudarmos alguns dos mais famosos sistemas completos de interpretação
da realidade, a partir de princípios unilaterais, cabe-nos agora buscar compreender as justas
e esperadas reações a essa ideia, transformada em cultura mesmo, de estabelecimento de uma
ciência filosófica decisiva, capaz de estabelecer o progresso último da humanidade rumo a seu
estágio derradeiro (qualquer que seja a concepção que se tenha desse progresso).
Se a Unidade 3 foi marcada pelo intenso otimismo quanto às capacidades humanas de
evoluir continuamente na história rumo a um ideal apreensível de conhecimento e de sociedade,
esta unidade será tomada pelo mais violento e doloroso pessimismo quanto ao estado permanente
da humanidade. Aqui, a crença no progresso será alvo do mais mordaz deboche, e veremos o
homem sendo encarado como preso a uma condição frágil, vítima das intempéries de um mundo
muito maior que ele e cujas fatalidades superam, e muito, suas capacidades intelectuais e práticas.

2. SCHOPENHAUER

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 4


Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um contemporâneo de Hegel na cátedra
universitária alemã e se converteu no seu mais fidagal adversário. Um pouco obscurecida durante
sua vida pelo enorme sucesso do pensamento hegeliano, sua obra filosófica adquiriu bastante
popularidade no final do século XIX.
Schopenhauer é um autor completamente envolvido no debate literário de sua época. Seu
ponto de partida é Kant, e ele pretende fazer um desenvolvimento do sistema kantiano bastante
consciente do caminho que vinha sendo tomado por Fichte e por Schelling. Seu arcabouço
conceitual é o mesmo da recepção kantiana realizada pelo idealismo alemão, mas realizará com
ele um giro que levará a filosofia por uma vereda muito distinta.
O título de sua obra principal, “O mundo como vontade e representação”, sintetiza
com rara maestria todo esse desenvolvimento filosófico que servia de base ao estado da arte do
pensamento alemão naquele momento. Schopenhauer enuncia aqui a divisão da realidade em
sua “dupla face”, tão brilhantemente esclarecida por Kant: a divisão entre o mundo teórico, o
mundo dos fenômenos, que é um mundo representado e o mundo prático, o mundo da vontade,
no qual reside a verdadeira essência das coisas.
Para Schopenhauer, o mundo dos fenômenos, longe de ser real no sentido mais intenso
do termo, é simplesmente um mundo representado, que nos engana ao disfarçar-se de realidade.
A fonte de todo engano é tomar o mundo dos fenômenos pela verdadeira natureza das coisas.
Schopenhauer considera a causalidade a única verdadeira categoria kantiana. É, segundo
ele, a função fundamental do intelecto, e é somente ela que, em interação com as formas puras da
sensibilidade (tempo e espaço), gera as representações dos objetos. Dessa forma, a causalidade é
o único fio condutor do conhecimento científico. Por isso mesmo, esse conhecimento está sempre
limitado ao reino dos fenômenos. O conhecimento teórico humano, por estar sempre vinculado a
uma cadeia causal como sua fôrma necessária, procede sempre do condicionado ao condicionado.
Ele não está jamais em condições de estabelecer uma causa primeira.
Contudo, consoante reconhece Schopenhauer, o homem tem a necessidade de dominar
o conjunto da experiência em sua unidade íntima, de ir além dos fenômenos particulares e
compreender a totalidade subjacente aos objetos. Segundo nosso filósofo, essa necessidade
metafísica se encontra na unidade absoluta do universo, suposta por trás dos fenômenos como
sua base ontológica necessária.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Quer dizer, o espaço e o tempo, formas puras da sensibilidade, são o princípio de


individuação e que geram a pluralidade dos entes particulares. Essa pluralidade particular,
porém, pertence apenas ao âmbito dos fenômenos, do mundo como representação. A coisa em
si é a unidade absoluta, que aparece velada pelas representações. Trata-se do substrato real que
permanece imutável por trás da pluralidade empírica, que esconde com seu eterno devir essa
estabilidade de fundo.
Por todo o agora explicado, não é possível um conhecimento causal da unidade absoluta.
Toda a missão da Filosofia é dirigida a satisfazer a necessidade metafísica do intelecto humano,
mas tal tarefa não pode ser realizada pelo método científico. A verdadeira essência numênica da
realidade é inacessível a toda ciência. Apenas por meio de uma intuição genial é possível fazer
o filosofar chegar ao seu objetivo, intuição essa na qual o filósofo “interpreta” a totalidade da
experiência (cf. WINDELBAND, 1951, p. 287).
Schopenhauer está, portanto, nas antípodas de Hegel. Ele se insurge ferozmente contra
toda concepção que pretende desenvolver a filosofia por meio de deduções a partir de um
método apriorístico. Nega, ainda, que algum filósofo alguma vez na história tenha chegado às
conclusões de sua filosofia por um método. Ao contrário, o que fazem os grandes pensadores
é criar genialmente seus postulados e, em seguida, construir um método para justificá-los. O

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 4


hegelismo era, de fato, seu inconciliável oposto, com sua condenável pretensão de transformar a
Filosofia numa ciência conceitual.
Assim, a filosofia schopenhaueriana caminha para uma curiosa mistura entre a visão
artística dos românticos, que equipara a reflexão filosófica à contemplação estética pela criação
genial, e o sistema kantiano. Para satisfazer a necessidade metafísica, Schopenhauer pretende
manter o conhecimento científico dentro dos limites impostos por Kant e, para isso, deve atribuir
ao homem uma intuição intelectual (sempre negada por Kant e afirmada pelo idealismo alemão).

Tome cuidado para não confundir os sentidos sutilmente distintos que o termo
intuição pode ter nas diversas filosofias.
Vimos em “História da filosofia moderna” que Kant usa intuição num sentido
diverso do sentido clássico. Na filosofia clássica, intuição é o conhecimento
imediato, que não passa pelo raciocínio. Em Kant, intuição é toda recepção de
objetos pelo nosso aparato cognitivo (a recepção dos dados dos sentidos é a
intuição empírica).
A intuição intelectual de Kant seria uma intuição em sentido clássico, a recepção
de um objeto diretamente pelo pensamento.
A intuição genial dos românticos se diz por oposição ao conhecimento científico
– também correspondendo, ao menos latamente, à intuição em sentido clássico.
A estratégia de Schopenhauer com sua intuição genial (da qual falaremos mais
a seguir) é concordar com Kant que o homem não tem a intuição intelectual de
que fala a “Crítica da razão pura” – a recepção de um objeto pelo pensamento que
fundamentaria uma ciência metafísica –, mas tem uma “intuição intelectual que é
uma intuição genial”, um acesso imediato, não científico a uma realidade.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A intuição genial de Schopenhauer é uma capacidade especialíssima, uma espécie de olhar


que domina toda a experiência num só golpe, capacidade essa que não pode ser conquistada com a
educação e o trabalho segundo o método científico, mas que é um dom de espíritos privilegiados.
A Filosofia é também um dom como os dotes artísticos, que depende uma capacidade inata de
olhar intuitivamente além da experiência sensível.
Essa intuição intelectual é a autointuição subjetiva, que mostra ao homem que a verdadeira
essência de sua personalidade, que está na base de toda representação da realidade, é a vontade.
Retomamos aqui a autoconsciência prática, tão fundamental para toda essa tradição alemã, pela
qual o homem descobre seu verdadeiro ser em seu eu prático, que domina sua consciência das
coisas.
Para Schopenhauer, a consideração metafísica deve supor que a vontade é a “coisa em si”,
que serve de fundamento a todos os fenômenos. Todas as forças e impulsos que são representados
nos fenômenos não são mais do que manifestações da única vontade infinita, que encontramos
em nosso interior. Essa vontade, estando manifestada em todos os objetos e seus movimentos,
não pode ser nossa intenção consciente subjetiva, mas, antes, é uma vontade inconsciente, uma
vontade meramente de força e impulso.
Na metafísica schopenhaueriana, a vontade não pode ser chamada de causa dos fenômenos.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 4


O mundo dos sentidos, em suas palavras, é a objetividade da vontade, isto é, o modo como a
coisa em si se manifesta como representação. Assim como em Kant, a coisa em si é causa dos
fenômenos, mas num sentido particular, que não é o de causa efetiva numa relação meramente
lógica, mas num sentido ideal ou metafísico. Em outras palavras, a coisa em si é a própria essência
das representações, manifestada de modo particular em formas diversas (usando a linguagem
clássica, poderíamos talvez dizer que não é causa eficiente, mas causa formal).
Por enquanto, talvez não tenhamos percebido qualquer originalidade forte em
Schopenhauer. Com efeito, até aqui, Schopenhauer, no essencial, concorda com Fichte: a coisa
em si é a vontade que se dirige somente a si mesma.
Entretanto, para Fichte, a “ação pura” da vontade é de natureza moral e se sublima
numa razão prática. Em Schopenhauer, por outro lado, trata-se de uma vontade absolutamente
inconsciente, que não quer mais do que o próprio querer, uma vontade totalmente despida de
conteúdo e, por isso, sumamente irracional. O schopenhauerismo é, enfim, o pleno irracionalismo:
a consciência, em todas as suas formas, não é mais do que mera aparência. Tudo o que se representa
nela é causado pela irracionalidade absolutamente de uma vontade que apenas quer sem direção.
Há um marcado constraste em Schopenhauer. Como forma fenomênica da vontade, o
mundo deve ser conforme a uma finalidade, isto é, deve ser um sistema orgânico e unitário que
manifeste uma origem comum oculta por trás das aparências. Portanto, deve ser racional. Ao
mesmo tempo, precisa carregar em si o selo da irracionalidade dessa vontade absoluta que é a sua
gênese. Schopenhauer funde, assim, uma concepção teleológica da natureza a um pessimismo.
Trata-se, poderíamos dizer seguindo Windelband (cf. 1951, pp. 289-290), de uma “teodiceia
inversa”: uma filosofia problemática que busca compaginar uma ordem teórica racional com sua
origem numa vontade absolutamente irracional, em perfeita analogia com o problema do mal
diante da criação de um Deus sumamente bom. Schopenhauer é mesmo um “Leibniz às avessas”,
postulando uma unidade orgânica de toda a natureza, sob a égide pessimista do caos absoluto.
A conclusão de Schopenhauer é que, como a vontade não quer mais do que querer, não
existe uma sabedoria na ordem do universo para redimir a miséria e a maldade existentes no
mundo (na verdade, a própria ordem do universo é resultado desse caos criador). A vontade não
pode ser satisfeita e, portanto, o mundo é feito inescapavelmente de dor.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A dor é inerente à vontade e só pode, pois, desaparecer mediante o desaparecimento da


vontade. O suicídio não é capaz de lograr isso, pois a vontade é uma coisa em si, indestrutível por
qualquer ação material. É preciso, antes, fugir ao nada. Por cima de toda e qualquer teoria moral,
levanta-se o quietismo da ausência de vontade, da renúncia ascética ao mundo, que é maior do
que qualquer amor de compaixão pelo próximo como princípio ativo.
A moral tradicional via na ética uma preparação para a beatitude, para a bem-aventurança
ou para a contemplação divina sobrenatural. Em Schopenhauer, a moral é também um paliativo
provisório para uma beatitude, mas essa beatitude é o nada, o aniquilamento absoluto, por meio
da eliminação total de toda a vida da vontade.
Naturalmente, a anulação absoluta da vontade traria também a anulação de todas as
formas fenomênicas, logo, o fim do mundo. Certamente, é difícil ver como isso poderia ser feito
por um homem. Trata-se de um horizonte, não totalmente alcançável neste mundo, da mesma
forma como a beatitude. A diferença é que essa aniquilação absoluta não é um fim, do qual
alguém possa aproximar-se infinitamente (mesmo diante da consciência da impossibilidade de
alcançá-lo plenamente pelas próprias forças).
Schopenhauer adota uma postura fatalmente negativa diante de qualquer proposta
filosófica de ação teórica no mundo. É preciso resignar-se à inefável maldade da realidade. O

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mundo é uma terna paralisia desprovida de sentido. Ele nega qualquer vestígio de razão que se
poderia encontrar na história humana. Não há progresso, nem sentido na história. O mundo é
plenamente estático, sem possibilidade de redenção.
E aqui encontramos a razão mais radical pela qual Schopenhauer se erige em inimigo
final de Hegel. A postura antissistêmica daquele é muito mais profunda do que uma questão de
método, de negação da possibilidade de proceder na filosofia como uma ciência conceitual. Trata-
se de um embate ontológico: Schopenhauer nega mesmo que exista qualquer ordem e sentido na
história humana e, portanto, qualquer espírito racional que possa ser postulado como a fonte da
entidade do cosmos.

3. KIERKEGAARD
O genial filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) é uma figura intrinsecamente
paradoxal. Ele é, ao mesmo tempo, um espécime típico da mentalidade intelectual reinante do
século XIX e seu brutal anátema. Kierkegaard é um filho da angústia existencial resultante da
explosão do balão inflado da espiritualidade científica de Hegel. Ele vive o mal-estar de uma
geração que já não acredita na razão e que luta contra o pessimismo de um mundo desordenado.
Porém, nessa realidade tão desconcertada, Kierkegaard desponta como um radical
apologeta da fé cristã. Do mesmo material orgânico oriundo da falência do idealismo hegeliano
que a ala esquerda de sua escola transformou em materialismo, Kierkegaard faz ressuscitar uma
nova espiritualidade. Do abismo em que Schopenhauer apelou para o quietismo do aniquilamento
(e em que Nietzsche abraçou muito mais apaixonadamente um nada absoluto, como veremos no
próximo tópico), Kierkegaard extraiu uma fé robusta e atormentada. Já não se trata de um espírito
coletado em conceitos de ciência dedutiva, mas de uma fé vibrante e pessoal que preenche o vazio
de uma razão aleijada. A fé científica de Hegel havia falhado, dando espaço ao retorno de uma fé
existencial e inefável.

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Em “O drama do humanismo ateu”, de Lubac trata brevemente de Kierkegaard


justamente como o filósofo que viveu o mesmo abismo dos demais, mas conseguiu
extrair dele uma fé viva. Para o teólogo francês, ele não foi bem-sucedido na
missão. Quem conseguiu ser verdadeiramente o antídoto para o humanismo ateu
vigente não foi um filósofo, mas um escritor: Fiódor Dostoiévski (1821-1881), a
quem é dedicada a parte final da obra.
Com efeito, a escrita de Dostoiévski é “kierkegaardismo literário”. Recomendamos
sem reservas a leitura de suas obras, gestadas exatamente nesse mundo
intelectual que agora estudamos.

Assim, se a esquerda hegeliana reagiu a Hegel em nome das exigências do homem


concreto e de suas necessidades práticas cotidianas, Kierkegaard reage em nome do indivíduo
como é, consciente de sua condição fraca e precária diante do mundo, que encontra sua radical

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO SÉCULO XIX | UNIDADE 4


contingência diante de Deus e se salva por meio dele. O projeto de Kierkegaard, no fundo, é uma
recuperação da religiosidade como dimensão central da existência humana e, nesse sentido, é um
grito surpreendentemente contrário a todo o cientificismo e materialismo e também a toda a já
secular tradição iluminista.
Kierkegaard é também um desses filósofos cuja breve exposição encontra muitos desafios.
Ele jamais expôs seu pensamento de forma sistemática, e os textos que escreveu, em gêneros
muito diferentes, podem gerar tensões internas cujas soluções intrigam enormemente a literatura
especializada. Procedeu assim mormente por manter uma marcante zombaria de toda ideia de
sistema que pretenda fazer a realidade caber numa exposição objetiva – como veremos, toda sua
filosofia é uma radical oposição a essa postura e uma defesa de uma verdade que só se encontra
numa experiência íntima inefável.
Com efeito, Kierkegaard defende a chamada noção de verdade como subjetividade. Ele
parte da definição escolástica de verdade como correspondência entre o intelecto e ser, mas
aponta a radical subjetividade que subjaz a essa fórmula. Com efeito, a inteligência não é uma
razão transcendental, e o ser não é um conceito a ser por ela apreendido. Trata-se, antes, do
encontro de um espírito individual existente com um ser que satisfaz sua paixão, sua sede íntima
de sentido. A verdade, portanto, é o encontro concreto de um sujeito concreto com sua realização
subjetiva como pessoa humana. A verdade é encontrar a si mesmo na existência.
O sujeito existente, para Kierkegaard, é o sujeito concreto, não o eu transcendental do
idealismo. Trata do sujeito individual, único, existente no mundo e infinitamente interessado na
existência, ao mesmo tempo em que percebe a imensa precariedade desse existir.
A verdade subjetiva é o modo pelo qual esse sujeito existente se põe em relação com o
Absoluto. A existência individual é insuficiente, pois não tem em si a razão de seu ser. É preciso
buscar na existência o sentido, que vem de fora das limitações do existir. É realmente um pôr-se
em relação, pois já não há uma relação previamente estabelecida. Trata-se de um ato do sujeito,
que vem de uma decisão íntima de sua vontade, ato esse que chamamos de fé.
Aqui, Kierkegaard mostra como sua filosofia do ato de fé é uma superação completa de
toda disciplina racional. Segundo ele, a ética nos ensina que devemos sempre estar insatisfeitos
com nós mesmos, que nunca em nossa vida somos completamente bons. Entretanto, essa
consciência de nossa insuficiência apenas nos paralisaria, rasgaria todas as nossas esperanças, se
não houvesse a fé na redenção, a fé no poder de Deus de anular o pecado e de perdoar.

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A fé é, portanto, um salto além do ético. Quer dizer, trata-se de uma passagem a outra
esfera da vida, alheia àquela dos padrões racionais e conceituais. O modelo da fé, diz Kierkegaard,
é Abraão, que aceita o aparentemente absurdo sacrifício de seu filho, acreditando contra toda
lógica, esperando contra toda esperança. A fé é contrária a toda razão. Enquanto o ético é a
racionalidade universal, a fé é particularíssima, é a posição do indivíduo diante de Deus, é a
resposta pessoal daquele indivíduo concreto que estabelece uma relação única com Deus.
Kierkegaard critica Sócrates e sua concepção de verdade como alétheia. Na visão socrática,
o mestre simplesmente induz o discípulo a se lembrar de uma verdade conhecida e esquecida.
O mestre, por isso, é apenas um maiêuta, um parteiro, que traz à luz a verdade já latente nos
corações e nas coisas.
Kierkegaard crê que essa solução suprime a decisão da vontade, o ato de livre, o ato de
conhecer, de buscar conscientemente a verdade. O discípulo, aquele que busca a verdade, deve
estar num estado de não verdade e deve ser consciente disso. O mestre é aquele que conduz o
discípulo a um novo estado, de compreensão da verdade.
O estado de não verdade em que estamos é uma situação em que nos pusemos por culpa
própria: o pecado. O homem não pode livrar-se do pecado por conta própria, porque justamente
no pecado alienou a sua liberdade e se fez prisioneiro. O homem deve ser posto por Deus em

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condição de libertar-se, de deixar a não verdade.
A unidade entre o Mestre e o discípulo, portanto, se dá por uma elevação. O conhecimento
da verdade é a elevação do discípulo a uma nova condição, por uma generosidade gratuita do
Mestre. Essa elevação, entretanto, não pode gerar no discípulo a ilusão da igualdade com o Mestre
uma vez que só pode chegar à condição do Mestre por esse ato voluntário e gracioso de Sua divina
benevolência. Por isso, o discípulo deve permanecer sempre consciente de dever tudo ao Mestre.
A verdade, portanto, é um puro milagre. Trata-se da nossa elevação a Deus, que se opera
pelo rebaixamento de Deus a nossa condição (o milagre central do cristianismo professado por
Kierkegaard). A verdade, por isso, não é uma operação intelectual, mas, antes, é a derrota da
inteligência. Segundo Kierkegaard, a inteligência racional não pode demonstrar a existência de
Deus nem a realidade de tal milagre. Trata-se de um paradoxo, de um absurdo em consequência
da eliminação da natureza, na qual o homem se faz divino, por meio de um Deus que se faz
humano. Diante de tal paradoxo, há duas atitudes possíveis: podemos aceitá-lo num ato de fé ou
rejeitá-lo. É uma escolha, uma decisão fundamental.
A tese de Kierkegaard é essa mesma: no encontro com a verdade, o homem participa da
consciência eterna. Ocorre que a consciência eterna não pode ser fundamentada num pressuposto
histórico, numa intelecção limitada. A bem-aventurança eterna não pode ser justificada por um
conhecimento histórico. Por isso, no homem, a verdade deve fazer todo conhecimento teórico
cessar, pois ela é de outra ordem, alheia à nossa consciência temporal e concreta.
Para Sócrates, insiste Kierkegaard, o homem já participa da verdade eterna, pois sua alma
pertence ao mundo das ideias. Entretanto, a consciência eterna não pode ter base histórica. Trata-
se de um salto da vontade, alheio a qualquer doutrina. Não se trata de demonstrar a verdade
teórica do cristianismo, pois isso é impossível, mas de satisfazer uma paixão infinita que arde no
interior do indivíduo. Trata-se de um ato pessoal, de reconhecer, num salto além de toda lógica,
que existe uma bem-aventurança eterna que satisfaz todos os infinitos desejos que nos consomem
e nos causam tanta dor neste mundo e de buscar aquela doutrina que pode nos levar a ela.
Kierkegaard se opõe com toda a violência contra toda tentativa especulativa de justificação
filosófica do cristianismo. É nesse sentido que sua polêmica se volta com fúria essencial contra
Hegel. Nada lhe pode ser mais alheio do que pretender resolver o cristianismo na história, num
desenvolvimento imanente captado por conceitos, ou ainda passar desse desenvolvimento
histórico material à especulação objetiva sobre a verdade da fé.

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Em Kierkegaard, o cristianismo nunca pode ser histórico ou encontrar sua essência numa
forma externa, social. O cristianismo é sempre uma experiência interior, sempre particular. A fé é
sempre, nesse sentido, subjetiva, uma relação personalíssima entre um sujeito único e irrepetível
e um Deus que vem ao encontro de sua alma para satisfazê-la e elevá-la.
Em suma, a saída de Kierkegaard diante da profunda angústia instalada pelo pessimismo
ante os grandes sistemas da razão que naufragaram na posteridade de Hegel é bastante
surpreendente. Kierkegaard foi, de fato, um pensador único e original, que rechaçou todo
racionalismo extremado pelo anúncio de uma fé que salva ou aniquila a inteligência, ao passo
que rechaçou todo cientificismo social por uma volta radical à interioridade, tão esquecida pelos
pensamentos materialistas.

4. NIETZSCHE
Encerraremos nossa disciplina estudando Friedrich Nietzsche (1844-1900), certamente
um dos nomes mais polêmicos da filosofia, associado imediatamente ao niilismo e às ideias
destruidoras. Um homem que viveu quase sempre à margem, excluído da universidade e buscando

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uma vida dolorosamente consequente com aquilo que anunciava em seu pensamento.
De todos os pensadores antissistêmicos que agora estamos conferindo, podemos dizer que
Nietzsche foi o que melhor encarnou o caos, a radical e decidida ausência de ordem teórica. Ele
é famoso por sua filosofia aforismática, em boa parte alheia a textos doutrinários coesos. Trata-
se de uma filosofia dispersa por suas obras, sem uma ideia clara de conjunto, cuja reconstrução,
naturalmente, só poderemos fazer aqui de um modo superficial e dificultoso.
Para Nietzsche, nunca é demais insistir, isso é uma atitude existencial. Nietzsche se
revolta contra todo tipo de logos. Toda teoria, para ele, é uma prisão. Sua aspiração é fazer-se
independente de qualquer racionalidade, de qualquer lógica, despir-se totalmente de qualquer
sistema conceitual que pretenda engaiolar a mente humana em esquemas.
Dessa forma, seu objetivo declarado é despir toda a metafísica, toda a cultura, para
encontrar apenas o homem só consigo mesmo. É isso que lhe interessa: o homem em sua sagrada
solidão, liberto de toda a parafernália conceitual que esconde sua natureza. O homem, conforme
ele acredita, é uma entidade histórica, em puro devir. Por isso, não se pode falar de essências
eternas, imutáveis ou de verdades absolutas.
O homem deve abandonar a metafísica como ciência e retroceder à realidade histórica, tal
como se apresenta longe de máscaras discursivas, dominada pela irracionalidade, pela injustiça e
pelo erro. O erro e o desespero trazido a reboque levaram o homem a inventar a metafísica e as
religiões.
Segundo Nietzsche, a ilogicidade é parte inevitável da condição humana, e dela flui para
o homem uma grande quantidade de bem. Mesmo o mais racional dos homens precisa, vez por
outra, retornar à natureza, a seu estado original de ilogicidade. Nesse retorno ao irracional, o
homem perde todo o seu significado objetivo e se desespera, mas só assim ele pode participar
plenamente do mistério da vida.
Se o homem, de fato, puder participar efetivamente da realidade do universo, perceberá
definitivamente que a humanidade como um todo não tem qualquer propósito e que o único
que pode ser encontrado no universo é desespero. Tal homem se veria obrigado a perder toda
esperança na humanidade e com toda a humanidade ver-se condenado a uma vida de desespero
e sem sentido. Entretanto, participar do desespero de toda a humanidade, encontrando-se, enfim,
com a natureza compartilhada da espécie, é o mais elevado dos sentimentos.

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Nietzsche pretende submeter o homem à análise da psicologia científica. Tal análise, para
ele, revela o mais desolador dos fatos: o homem não tem liberdade alguma de querer nem é
responsável pelos efeitos de suas ações. Portanto, o bem e o mal são ideias sem fundamento das
quais devemos nos livrar.
Nietzsche explica que a ideia de liberdade tem uma gênese empírica. Inicialmente, julga-
se se é bom ou mau o efeito de uma ação. Em seguida, se transfere o predicado para a própria
ação, depois, para o motivo da ação e, por fim, para o próprio autor. Nesse processo, torna-se o
homem responsável pelos efeitos de suas ações, a seguir por suas ações, por seus motivos, por
sua intenção e, por fim, por seu próprio ser. Ocorre que o homem não pode ser responsável por
nada, pois tudo nele, todos os seus efeitos e objetos, é mera consequência necessária de elementos
históricos, de um passado determinado e de um presente em constante devir. A história da moral,
por isso, é a história de um erro, da falsa atribuição de responsabilidade, que vem da ilusão da
liberdade da vontade.
A dor de perceber isso é, certamente, a dor mais profunda que se é capaz de sentir, e
seguramente muito poucos serão capazes de senti-la e, portanto, de olhar para a realidade a olho
nu. Entretanto, essa dor necessária para a passagem da humanidade moral para humanidade
sábia.

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A religião é também um produto da mente de seres que não perceberam a necessidade fatal
que governa o universo. A humanidade sábia precisa prescindir de toda religião. O cristianismo
é incompatível com o saber. É preciso eliminar toda ideia de Deus, com a qual o homem se
compara, e de tal comparação nasce nele toda a culpa e a opressão.
Para Nietzsche, o binômio bem/mal deve ser substituído pelo binômio potência/medo.
A moralidade é mera obediência aos costumes, a um modo tradicional de se agir e de se julgar.
O homem livre é imoral porque faz tudo depender de si mesmo, e nunca de uma tradição ou
de uma autoridade externa a si – ele é a fonte de seus valores, de suas ações e de seus juízos.
A tradição e a autoridade são o medo, o medo de uma inteligência de uma potência, de uma
inteligência superior que tudo ordena e de uma potência incompreensível capaz de esmagar com
suas determinações. Tais medos são mera superstição.
Nietzsche reconhece que os homens não são capazes de uma vida inteiramente liberta
do medo. Sua prescrição, então, é que se deve assumi-lo, deve-se reconhecer explicitamente o
medo como verdadeira dinâmica de domínio da vida humana. Os homens fortes (aqueles que
conseguem viver sem medo, em autêntica liberdade) devem tomar o caminho da potência,
subjugando os fracos. Aos homens fortes cabe a potência, e aos fracos, o sofrimento de uma vida
de opressão pela superstição da autoridade, um sofrimento no qual se julgam felizes, pois não
têm condições de superar tal vida medíocre.
O filosofar nietzschiano culmina na sua famosa afirmação de que Deus está morto. O tão
citado enunciado “Deus está morto, mas seu cadáver permanece insepulto” é, nesse ponto, trazido
à luz não como uma defesa normativa de um ateísmo radical, mas, antes, como uma constatação.
Nietzsche afirma que, no coração do homem, Deus já está morto. Nietzsche olha para o mundo
desencantado e materialista à sua volta, perdido na angústia das ilusões perdidas do Iluminismo,
e apenas descreve o que vê: o homem matou Deus, livrou-se de Sua presença na vida.
Interessantíssima é sua justificativa para a parte final dessa trágica afirmação. Por que o
cadáver de Deus permanece insepulto? Porque, responde Nietzsche, o homem já não acredita
em Deus, mas ainda acredita na gramática. Nietzsche se refere aqui à lógica do pensamento e da
linguagem. Quer dizer, o homem ainda acredita na razão. Ainda acredita numa ordem do mundo.
Por isso, continua fiando-se da ciência, e daí os tantos pensamentos cientificistas, projetos de
sistemas materialistas de explicação da natureza e de reforma social que agora pululavam.

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Para Nietzsche, quem acredita na ciência, quem acredita na lógica, quem acredita numa
ética social e num projeto político que não sejam a nua e crua dominação dos fortes pela potência,
no fundo, ainda acredita em Deus. O ateísmo de Nietzsche é o mais consequente e consciente
daquilo que está negando que já houve em toda a história. Não pode ser confundido com o
ingênuo ateísmo do racionalista, que pretende uma razão capaz de explicar tudo por seu método.
Nietzsche sabe que, em toda a nossa tradição, Deus, como Logos, é o fundamento da expressão da
razão presente e enxergada em todas as coisas. Nietzsche não separa a fé da razão – antes, como
os escolásticos, ele reconhece a perfeita unidade entre ambos e compreende que jogar fora Deus
é jogar fora toda racionalidade.

Como certamente você viu nas disciplinas de filosofia antiga e filosofia medieval,
o pensamento cristão nasce de uma síntese entre a fé judaica e a filosofia de
Platão e Aristóteles. Foi São João, no prólogo de seu Evangelho, quem antecipou
essa síntese, ao identificar Jesus Cristo com o Logos de Heráclito, a razão eterna
por trás de todas as coisas. Cessou, assim, a distinção entre o Deus dos filósofos

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e os deuses das religiões. O cristianismo põe nos altares o Deus que era pensado
na filosofia como o fundamento último do universo.
Nietzsche reconhece essa estrutura metafísica como fundante de tudo o que hoje
chamamos de pensamento. Nesse sentido, ele é um “tomista” em plena era do
humanismo ateu. Ele não aceita uma razão sem fé, ou uma fé não fincada na
racionalidade, mas sente a necessidade de ferir mortalmente os pilares desse
edifício.

Assim, no coração do homem, Deus está morto. E, com Deus, morre também a
humanidade. Toda essência imutável, toda verdade eterna que caracterizava o que considerávamos
nossa humanidade está agora morta junto com Deus. O homem acabou e deve ser superado pelo
super-homem. O super-homem é aquele que conhece o mundo em sua falta de sentido, que se
identifica com a irracionalidade completa e brutal da natureza.
O super-homem é aquele que sabe que a vida se conclui no tempo. É preciso desfrutar
da terra, sem nenhuma esperança ultraterrena. Eis o todo, a realidade em sua forma absoluta: é
preciso aprender a ser completamente e sem reservas aqui e agora.
O mundo de Nietzsche, em suma, é o mundo do ateísmo radical. Nietzsche vem
anunciar-nos um cosmos vazio, onde uma humanidade fabril renuncia a todo sonho celeste e se
dedica completamente apenas às relações utilitaristas de bem-estar. Talvez possamos caracterizar
os escritos de Nietzsche, em sua forma tão peculiar, como a reação de sua alma ante toda essa
tragédia do esvaziamento radical. A filosofia nietzschiana é a triste expressão da agonia de um
espírito diante dessa descoberta arrasadora, tão profunda e enlouquecedora quanto maior foi no
indivíduo a compreensão do que anunciava (cf. PUPI, in: VANNI ROVIGHI, 2015b, p. 291).
A conclusão de toda a filosofia de Nietzsche é uma crítica radical a toda a Modernidade,
em todas as suas instituições basilares. Todas as ciências, artes e todas as instituições políticas
modernas são duramente atacadas como expressão desse vão e ridículo sonho de racionalizar
a vida, de expressar a existência humana em códigos teóricos. Todas as crenças modernas de
“objetividade”, “ética universal”, “sentido histórico”, “cientificidade” são as mais vazias superstições,
agora desnudadas pela denúncia nietzschiana.

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A própria filosofia já não pode permanecer de pé. A velha definição da filosofia como
busca da verdade deve desaparecer, dando lugar à pura vontade de potência que preenche o
instinto da vida. A racionalidade é um rastejar por máscaras ideológicas animalescas, que se
recusam a aceitar a não verdade como condição da vida plena e autenticamente natural. A vida
totalmente humana é a vida sem valor, sem sentido, sem objetivos, sem respeito e sem compaixão.
Nessa dissipação de tudo que ainda estava de pé encerra-se o pensamento nietzschiano
e, com ele, a filosofia do século XIX. Esse século tão turbulento e cheio de contrastes nos alçou
aos voos mais altos e nos atirou às quedas mais profundas. Se sonhamos com o tudo em Hegel,
a construção paulatina daquele edifício foi também paulatinamente destruída até ficarmos com
o nada. De tudo ao nada, do Espírito Absoluto à matéria mais desencantada, do ateísmo mais
virulento à fé mais sentida, a todas essas viagens nos levou este estudo da Filosofia oitocentista.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encerramos nossa disciplina acerca das ideias filosóficas do século XIX com um excurso
pelo outro lado da moeda da recepção hegeliana. Se as tentativas de sistemas científicos de
compreensão da realidade pareciam cada mais vez mais estéreis e simplistas, era natural que se
levantassem aquelas vozes a perceber na própria noção de um sistema construído a partir de
poucos princípios apto a dar conta do comando da existência humana o verdadeiro problema,
contra o qual deviam se insurgir.
Assim, o fim do século XIX, tanto quanto a era de um racionalismo científico e socialmente
reformista, foi também a época de uma “ressaca” desse racionalismo que em Hegel atingiu sua
potência máxima. Pairava no ar uma desconfiança quanto aos poderes do intelecto humano e, a
reboque, quanto à própria racionalidade intrínseca do mundo tal como é.
Os filósofos que agora estudamos são filhos do mesmo abismo, paridos pelo mesmo
mal-estar com um mundo de ilusões que se desfazem. Depois de um tão grande inchaço da

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racionalidade pelos revolucionários ventos iluministas, era chegada a hora do angustiante acerto
de contas com uma realidade que sepultou os sonhos antigos. Cada um dos autores reagiu de uma
forma a esse abismo em que a humanidade mergulhara, mas todos buscavam soluções à mesma
percepção existencial.
O fundamental a ser notado é que o caráter “antissistêmico” desses pensadores, como
chegamos a comentar durante a unidade, não se reduz a uma diferença de método com o
idealismo hegeliano. Trata-se de uma postura ontológica. O que Schopenhauer afirma é que o
mundo é fruto da desordem e do caos. A razão falha, porque ela própria é uma criação de uma
irrazão subjacente.
Esse abismo com tanto tremor vislumbrado é o mesmo que animava Kierkegaard e
Nietzsche. Esses pensadores aparentemente tão antagônicos, um niilista furibundo e um fervoroso
apologeta da fé, viviam a mesma angústia e encontraram a mesma raiz para ela. Kierkegaard,
contudo, encontrou na fé personalíssima a superação dos paradoxos da racionalidade, enquanto
Nietzsche, por uma curiosa ironia, foi o mais “escolástico” dos oitocentistas: cioso da história da
tradição cristã e do vínculo inescapável entre o Logos e o Deus dos cristãos, julgou que era preciso
abandonar tudo, toda fé e toda razão, toda religião e toda metafísica.
Não foi possível esgotar, aqui, toda a imensidão de possibilidade e correntes que surgiram
dispersamente na filosofia do século XIX. Se a história central desse período foi o surgimento
e queda de um idealismo, houve também alguns tímidos projetos de continuidade do realismo
crítico kantiano. O fim do século XIX viu surgir a escola neokantiana, paralelamente ao
pensamento de Franz Brentano (1838-1917), precursor da fenomenologia. São essas luzes que
permitirão um novo renascer da filosofia no século XX, agora sim dando uma continuidade que
muito mais justiça faz à poderosa síntese operada por Kant.

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REFERÊNCIAS
DE LUBAC, H. O drama do humanismo ateu. Tradução de Christian Lesage. Campinas:
Ecclesia, 2022.

HEGEL, G. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses, com col. Karl-Heinz Efken.
9. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

HEGEL, G. Linhas fundamentais da filosofia do direito. Tradução de Paulo Meneses et al. São
Leopoldo: Unisinos, 2010.

KENNY, A. Uma nova história da filosofia ocidental. Filosofia no mundo moderno. Tradução
de Carlos Alberto Bárbaro. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. v. 4.

KENNY, A. Uma nova história da filosofia ocidental. O despertar da filosofia moderna.


Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. v. 3.

TAYLOR, C. Hegel: Sistema, método e estrutura. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: É
Realizações, 2014.

VANNI ROVIGHI, S. História da filosofia contemporânea: do século XIX à neoescolástica.


Tradução de Ana Pareschi Capovilla. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

VANNI ROVIGHI, S. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. Tradução


de Marcos Bagno e Silvana Cobucci Leite. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

WINDELBAND, W. Historia de la Filosofía Moderna: en su relación com la cultura general y las


ciencias particulares. Tomo II. Tradução de Elsa Tabering. Buenos Aires: Editorial Nova, 1951.

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