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Instituto Cultural Lux et Sapientia

Curso de Astrologia e Cosmologia Medieval

Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Aula 06

Tópicos da aula:

Como a astrologia funciona em geral? Qual o quadro filosófico que permite entender o funcionamento da
astrologia? A influência astrológica não exclui o livre-arbítrio: análise conceitual dos dois fenômenos.
Alguns elementos básicos de dialética que nos permitem acessar os conceitos fundamentais de
cosmologia. Substância, qualidade, quantidade, relação e ação/paixão. Espécie, gênero, acidente,
propriedade e diferença específica. Exemplos de operações racionais. As possibilidades de se existir
liberdade. A condição subjetiva para a liberdade é a percepção. A necessidade da múltipla escolha real
para a liberdade. A diferença específica da liberdade humana é a capacidade de conceber um propósito
geral das suas ações. A religião como catalisadora da moral. A capacidade de antecipar a escolha de uma
pessoa.

Transcrição da aula:

Gugu: Hoje iremos mudar um pouco o foco das aulas. Portanto, caso haja alguma dúvida em relação às
aulas passadas, esse é o momento de manifestá-la.

Aluno: Eu tenho uma dúvida. O que é a substância? É o princípio de coerção e frieza ou é a terra em si? A
substância é o princípio ou já é a manifestação concreta do princípio em si?

Gugu: Essa dúvida será, em parte, respondida pela mudança de foco que daremos. Hoje, em vez de
continuarmos comentando a técnica astrológica, falaremos um pouco dos conceitos filosóficos
subjacentes à técnica astrológica. E, nessa análise, também discorreremos sobre o conceito de substância.
Tentaremos explicar como a astrologia funciona em geral, bem como daremos o quadro filosófico em que
ela está inserida - o que nos permitirá entendê-la. Se conversarmos com uma pessoa relativamente
informada acerca da cultura atual, e falarmos a ela que a astrologia funciona, podemos prever dois tipos
de reação: ou ela rirá, ou, quando provarmos o que dissemos, alguns parafusos se soltarão da cabeça dela
imediatamente. Nesse último caso, ouviremos: “Como é possível que haja essa relação entre uma coisa e
outra?” Há também uma segunda questão envolvida nisso. Se somos capazes de dizer para um sujeito
quando ele se casará, ou então como será a relação dele com a esposa nesse casamento, como é possível
que se diga que há algo como o livre-arbítrio? Se estava tudo escrito nos planetas, como é que esse sujeito
pode ter alguma liberdade? Tentaremos dar um quadro geral do assunto para que o entendamos de
maneira mais fácil.

De modo geral, é muito difícil explicar o que queremos dizer quando afirmamos que os planetas
influenciam no comportamento das pessoas. O que é uma influência astrológica? De que tipo ela é? De
fato, existe influência astrológica. É possível, ao olharmos o mapa de uma pessoa qualquer, que digamos
algo sobre ela, sobre os relacionamentos dela e sobre os eventos que acontecem no curso da vida dela.
Mas isso de maneira nenhuma exclui o livre-arbítrio, porque estamos tratando de questões que estão em
planos distintos. As pessoas têm uma concepção muito inadequada do que é liberdade ou livre-arbítrio.
Para encararmos essa questão e entendermos o que é liberdade e livre arbítrio; para entendermos
realmente o que estamos a dizer quando falamos que alguém é livre e, portanto, responsável pelas
próprias ações; para compreendermos em que sentido as ações de alguém são determinadas por fatores
alheios à sua vontade; para podermos vir a definir o que é liberdade e o que é influência astrológica; para
isso, teremos que lidar com os princípios comuns a essas duas coisas. Um planeta é uma pedra gigantesca
voando no céu, e a nossa escolha é um processo mental interno a nós. Esses são dois eventos de naturezas
muito diferentes. Não só diferentes, como muito distantes no espaço. Um processo mental é uma coisa,
outra coisa é o movimento de um objeto físico. Um planeta está a milhões de quilômetros de distância da
nossa cabeça, que é onde supomos que as nossas decisões tomam lugar. Para entendermos a relação de
fenômenos tão diferentes um do outro, precisamos mudar o tipo de estudo que empregamos.

Por exemplo, se temos um elemento químico “a”, quando colocamos junto a ele o elemento químico “b”,
gera-se calor e ele esquenta; já quando colocamos o elemento químico “c”, perde-se calor e ele esfria.
Nesse caso, as três substâncias químicas com que estamos lidando são fenômenos da mesma ordem, isto
é, os três são elementos químicos. É fácil compararmos todos eles: pegamos um pouco de cada material,
colocamo-los juntos e vemos o que acontece. Não é preciso uma profunda análise conceitual para
enquadrar em nossa mente o que acontece nessa situação. Podemos não saber quais são as possíveis
reações geradas por um determinado elemento químico, mas o próprio conceito de elemento químico nos
dá a noção de que ele [o elemento químico] é uma substância física que pode reagir com outras. Uma
reação química ou física inesperada não implica uma reavaliação dos conceitos gerais de física e química.
Isso quer dizer que qualquer problema, em um laboratório de química, pode ser conceitualmente
integrado na nossa mente de uma maneira muito fácil. São precisos muito poucos conceitos para termos
uma idéia geral do que ocorre nesses eventos. A proximidade conceitual entre chumbo e oxigênio é muito
grande. Chumbo e oxigênio são duas coisas, de certo modo, do mesmo tipo. Porém, o movimento de um
planeta no céu e um processo mental são duas coisas de tipo muito diferentes, e, para entender a
correlação entre eles, temos que procurar quais são os conceitos comuns que ambos compartilham. A
distância conceitual entre esses dois elementos é tão grande, e o que conhecemos desses dois processos
vem de fontes tão diferentes, que, para entendermos uma relação entre eles, temos de entender os
conceitos mais gerais possíveis, como o conceito de universo, o conceito de cosmos, o conceito de coisa,
o conceito de fenômeno etc.

Na aula de hoje, tentaremos explicar alguns dos elementos básicos de dialética. Elementos esses que nos
permitirão acessar os conceitos fundamentais de cosmologia, e que permitirão também formular estes
conceitos de uma maneira mais clara. Em cosmologia, os primeiros conceitos com os quais teremos de
lidar são os conceitos de categorias de Aristóteles. Temos que entender o que são as categorias
formuladas por este filósofo. Ou pelo menos uma lista simplificada delas. Não precisamos analisá-las
extensivamente, mas temos de ter, no mínimo, a noção de cinco categorias diferentes. Quando falamos
em “uma coisa”, em “algo”, em “um fenômeno”, em um “objeto”, em “um existente”, temos que
entender, primeiro, se estamos nos referindo a algo que é objeto de percepção de um dos cinco sentidos
possíveis.

Comecemos então pelas categorias de “substância” e “acidente”. Todas as vezes que afirmamos que uma
coisa é algo, ou que uma coisa existe, reparem que, aquilo que existe no universo, pode existir de duas
maneiras. Por exemplo, podemos ter algo como uma mesa e podemos ter algo como a cor verde. A mesa
é algo que existe? Sim. A cor verde é algo que existe? Sim. Porém, qual a diferença entre esses dois
conceitos, esses dois objetos, esses dois seres? Podemos dizer que a mesa é um “substantivo” e a cor
verde um “adjetivo”? Isso nos indica uma direção a seguir, mas esses termos, assim empregados, não são
muito precisos. “Substantivo” e “adjetivo” são diferenças entre as palavras, são categorias de palavras. A
palavra “mesa” é um substantivo, mas o objeto real “mesa” não. Então, não é essa a diferença que
estamos procurando. Não procuramos a diferença na linguagem que podemos usar para nos referirmos às
coisas existentes, e sim a diferença nas próprias coisas existentes que estamos a nos referir. Essa diferença
estaria então no conteúdo do que pensamos? Quando pensamos numa mesa, pensamos em um objeto
palpável e concreto, e quando pensamos no verde, pensamos em uma cor. É esta a diferença que estamos
procurando? Não, também não procuramos a diferença entre esses objetos tais como eles são pensados.
Não queremos encontrar uma diferença nem na linguagem, nem na inteligência. Queremos uma diferença
na coisa pensada (ou coisa percebida). E a principal diferença na coisa pensada (ou coisa percebida) a que
nos referimos - isto é, a mesa de um lado e o verde do outro -, é que não podemos ver uma cor verde que
não seja nenhuma outra coisa além de verde ou que só tenha como característica o próprio verdor. Não há
nada que exista que só possua a característica de ser verde.

Exemplificando isso, podemos dizer que a alface é verde, que um lápis é verde ou que uma mesa é verde.
Mas por mais que entendamos o conteúdo intelectual da alface, do lápis e da mesa, isso não nos revela
nada acerca da noção da cor verde. A noção de alface não nos explica nada acerca da noção de verde, a
noção de lápis não nos explica nada acerca da noção de verde, e a noção de mesa não nos explica nada
acerca da noção de verde. Se entendermos perfeitamente o que é uma mesa, isso não aumenta a nossa
compreensão do que é o verde nem um pouquinho. Podemos entender perfeitamente o que é uma mesa e
ainda assim não teremos a menor idéia do que é o verde. No entanto, quando pensamos no verde,
percebemos que ele é uma coisa que, para existir, precisa existir em alguma outra coisa. Podemos falar
em uma mesa verde, em uma alface verde, em um lápis verde etc. Embora a definição de verde não inclua
a definição de alface, ou a definição de lápis, ou a definição de mesa, para explicarmos o que é o verde
não incluímos a explicação do que é a alface, nem a explicação do que é o lápis, e nem a explicação do
que é a mesa. Já para explicar o que é o verde, temos que incluir, ou ao menos indicar, a noção de algo
que não é verde e no qual o verde existe.

A mesma coisa acontece quando se trata de números. O número dois, o número três ou o número vinte e
cinco não existem em lugar algum. Quando nos referimos a eles, a quê estamos querendo apontar? Dois o
quê? Três o quê? Vinte e cinco o quê? O que podemos dizer é que existem dois lápis, três mesas ou vinte
e cinco centavos. O lápis, a mesa e o centavo 1 não entram na definição do número dois, do número três e
do número vinte e cinco. Porém, a noção de quantidade indica a noção de outra coisa que existe naquela
quantidade. Nesse ponto, o número dois, o número três, o número vinte e cinco, a cor verde e também a
noção de doce, são muito diferentes, por exemplo, da noção de pedra ou de cavalo. Para entender o que é
uma pedra, o que é um cavalo ou o que é uma mesa, não precisamos fazer referência a um objeto que
existe fora dele mesmo, pois a simples análise daquilo que compõe esse objeto nos permite entendê-lo. Já
quando falamos da cor verde ou do número dois, então precisamos fazer uma referência a algo no qual a
cor verde ou o número dois existem. Podemos ver uma mesa ou um lápis que existem concretamente, mas
não podemos ver a cor verde sem que ela esteja ou em um lápis, ou em uma mesa, ou em um chão, ou em
qualquer coisa que seja verde. Num certo sentido, quando falamos da cor verde, da noção de doce, do
número dois ou do número vinte e cinco, estamos falando de um modo de existência que subtende outro
modo de existência prévia. Essa é a diferença entre a categoria da substância e a categoria dos acidentes.

Substância é aquilo que pode ser pensado independente de outras coisas; é aquilo que pode ser pensado
como existente de maneira independente de outras coisas. Quando pensamos na noção de pedra,
conseguimos conceber que uma pedra possa existir concretamente e que ela possa existir em si mesma. Já
a cor verde, será que é possível conceber que ela exista em si mesmo e em nada mais? Não. Podemos
conceber que exista um líquido verde ou uma pedra verde, porém a existência no mundo concreto de algo
como um verde exclusivo é algo inconcebível. E o mesmo vale para a noção de doce ou para a noção
espacial “em cima”. É possível que exista, no mundo concreto, um “em cima” dissociado de tudo o mais?
Não, pois a noção de “em cima” implica em uma coisa estar em cima de outra. Pensemos ainda na ação
andar. É possível que exista concretamente somente o ato andar sem a existência de alguma coisa que
ande? Também não. Os acidentes em geral só podem existir caso exista alguma substância da qual eles
são predicados. Por fim, lembremos de mais exemplo dado em uma das primeiras aulas. Foi feita a
pergunta: quem ou o quê late? O cachorro late. É concebível o ato de latir sem um cachorro que o
pratique? Não. O ato de latir é inconcebível sem um agente. Isso quer dizer que as ações também são
acidentes, e elas só podem existir caso haja uma substancia que seja o sujeito que as pratica. Se dissermos
“late”, a primeira pergunta que virá à nossa mente será: “O quê late?” Se dissermos “verde” a primeira
pergunta quem virá à nossa mente será: “O quê é verde?” Se dissermos “dois”, a primeira pergunta que
virá à nossa mente será: “Dois de quê?” Se dissermos “em cima” ou “à direita”, a primeira pergunta que
virá à nossa mente será: “O quê está em cima? O quê está à direita?”

Nesses quatro casos apresentados, demos o exemplo das principais categorias de acidentes: 1) a cor e a
doçura são qualidades; 2) “dois”, “três” e “vinte e cinco” são quantidades; 3) “em cima” e “à direita” são
relações; 4) latir e andar são ações. Dentre de cada uma dessas quatro categorias, a qualidade é sempre a
qualidade de algo, a quantidade é sempre a quantidade de algo, a relação é sempre a relação de algo e a
ação é sempre a ação de algo. Cada um desses conceitos faz referência a alguma coisa que não é definida
por esses conceitos. Cada um desses conceitos não pode ser concebido como algo que possa existir à
exclusão de toda e qualquer outra coisa. Já quando falamos de substancias – uma pedra, um cavalo, um
cachorro, um planeta -, cada uma dessas coisas pode ser concebida como algo independente a outras.

Das cinco categorias fundamentais com as quais lidaremos, a primeira é a categoria de substância. Uma
substância é aquilo que pode ser entendido sem referência a outra coisa; é aquilo que existe em si mesmo,
e não em outro. Por exemplo, um cavalo existe nele mesmo, e não em uma pedra; já o verde não existe
nele mesmo, ele existe ou na pedra, ou no lápis, ou no líquido etc. Podemos então dizer que essa é a
principal diferença entre a substância e os acidentes. A substância é aquilo que existe em si mesma.
Quando dizemos “existe em si mesma”, isso não significa que a substância foi causada por si mesma.
Nem todas as substâncias são eternas e imutáveis - ou necessárias. É evidente que uma substância pode
ser gerada por outra. Só que, uma vez que ela está gerada, ela existe nela mesma e não em outra. Já o
acidente, não; o ato de ser dele é em outro.
1
Nota do revisor: centavo, aqui, está se referindo à noção de moeda, e não de quantidade.
Aluno: Podemos exemplificar o que foi falado sobre a substância não ser gerada por si mesma se
pensarmos, por exemplo, no leite e na manteiga. O leite pode deixar de ser leite e passar a ser manteiga. O
leite é uma substância diferente da manteiga, mas esta não seria possível sem aquele. E mesmo o leite
também não seria possível se não houvesse uma vaca.

Gugu: Esse é um caso interessante, porque nos introduz a um outro par de conceitos. Se batermos o leite,
ele se transformará em manteiga. Então, tínhamos uma substância que era leite e que passou a ser
manteiga. Num certo sentido, podemos dizer que a manteiga existia no leite; no entanto, ela existia no
leite somente como um potencial, e não como uma substância real; ela existia somente como uma
possibilidade do leite. Quando a manteiga passa a existir efetivamente, ela não existe no leite, mas nela
mesma. Uma substância pode existir em potência em outra, mas não efetivamente. Efetivamente ela tem
de existir nela mesma.

A segunda categoria fundamental com a qual lidaremos é a da qualidade. Por exemplo, a cor verde, a
doçura, a agudez etc. É muito evidente que cada uma dessas coisas só pode existir em outra. A terceira
categoria é a da quantidade: um, dois, três, quatro etc. A quarta categoria é da relação: em cima, embaixo,
à direita, paternidade, sucessão, ordem. Todas essas são noções relativas, noções de relações. E, por
último, o par de categorias de ação e paixão. Esse é um par porque a toda ação corresponde uma paixão, e
a toda paixão corresponde uma ação. Paixão não é entendida aqui no sentido emocional, mas no sentido
apenas daquilo que passa por ou sofre algo. Ação e paixão são um par de conceitos correlatos também. A
diferença fundamental entre essas categorias é mais ou menos intuitiva. Todos sabemos a diferença entre
quantidade e qualidade. Se alguém disser “doce”, não entenderemos um número ou um tamanho; se
alguém falar “quatro”, não entenderemos uma qualidade, e sim uma quantidade.

E, embora possamos analisar e desdobrar um pouquinho as diferenças entre as diversas categorias, não
somos realmente capazes de defini-las. Não podemos definir uma categoria pelo simples fato de elas não
possuírem um gênero. Qualidade e quantidade – e todas as outras categorias - não são duas espécies da
mesma coisa. Por exemplo, o cachorro e o cavalo são espécies de animal. Já a quantidade e a qualidade
não são exatamente espécies da mesma coisa. E ainda que possamos ter um nome genérico para elas, esse
nome é, realmente, só um rótulo colocamos, e não é um qualificativo real. Desse modo, quando dizemos
que a quantidade é uma categoria ou um gênero máximo de entes, não estamos dando um predicado real
da quantidade ou da qualidade, e sim apenas um nome para essas noções; estamos dando somente um
nome geral, e não um predicado real. Quando dizemos, por exemplo: “Sócrates é um homem.” Homem,
aqui, é um predicado real de Sócrates. Quando dizemos: “A qualidade é uma categoria.” Categoria não é
um predicado real da qualidade, é só um nome para ela.

As cinco categorias são tipos de ser, são tipos de existência. As substâncias existem, as qualidades
existem, as quantidades existem, as relações existem, e as ações e paixões também existem. Todas essas
categorias são coisas que existem. Se elas são coisas que existem realmente, muitas vezes podemos usar
uma delas como predicado de outra, ou então uma como sujeito da outra (porém, atenção: sujeito apenas
no sentido gramatical). Por exemplo, podemos dizer: “A mesa é verde.” A mesa é uma substância e a cor
verde é um acidente. Nesse caso, o verde é um predicado real da substância mesa. Podemos dizer
também: “O cavalo é grande.” O cavalo é uma substância, ser grande é um acidente.

Aluno: Se dissermos: “Ele é o quinto colocado.” Ao mesmo tempo em que estamos dando a idéia de uma
relação, também podemos intuir que há, no mínimo, cinco pessoas disputando uma determinada coisa.
Então o acidente implícito, nesse caso, é a relação, e o acidente que está explícito é o número.

Gugu: Exatamente. De fato, podemos ter um acidente que é determinado por outro acidente. Se falamos
em “quinto colocado”, evidentemente que isso se trata de uma relação que subentende quatro posições
anteriores. “Anterior” e “posterior” são relações, mas relações determinadas pela quantidade. Não
conseguimos explicar o que é “quinto” sem incluir os conceitos de relação e de quantidade. Alguns
predicados podem envolver simultaneamente diversas categorias de acidentes.

Agora, observemos o seguinte. Quando afirmamos, por exemplo: “O cavalo é marrom.” Ou: “O cavalo
tem quatro patas.” Pois bem, o que é marrom? Podemos explicar que o marrom é uma qualidade, é uma
cor etc. Isso é muito bonito, muito interessante, e explica muito bem o que queremos dizer com marrom.
Esse é um caminho para entendermos a afirmação de o cavalo ser marrom. Se avançarmos nesse
caminho, explicamos muito acerca do que é marrom, porém muito pouco acerca do que é cavalo. O
primeiro passo para entendermos o que é o cavalo é justamente listar o que ele é: o cavalo é marrom, é
vivo, tem quatro patas, come capim etc. O segundo passo para entendermos o cavalo, entretanto, não
consiste em analisar cuidadosamente cada um dos predicados listados para ver em qual categoria eles se
encaixam. Isso não explica muito acerca do cavalo. O que devemos fazer é explicar de que modo cada um
desses predicados se relaciona com o sujeito “cavalo”. E será nessas diferenças que começaremos a
entender melhor o cavalo. Por exemplo, se dissermos: “O cavalo é marrom.” Correto, o marrom
realmente está no cavalo. Mas que sentido? É simples, basta perceber que aquele outro cavalo é branco, e
não marrom. Alguns cavalos são marrons, outros são brancos. Mas se falarmos: “O cavalo come.” Comer
é uma ação. Portanto, comer é uma categoria diferente da categoria da qualidade. E quando olhamos
vários cavalos, percebemos que o cavalo que não come não existe. Isso quer dizer que o ato de comer está
no cavalo de uma maneira diferente do que a cor do pêlo dele.

Aluno: O cavalo marrom também só pode existir se ele for marrom.

Gugu: É lógico! Se falamos que o cavalo é marrom, e se isso for de fato verdade, é lógico que o cavalo
marrom só pode ser marrom sendo marrom. Um cavalo marrom só existe quando ele é marrom. Mas
alguns cavalos não são marrons, e eles não deixam de ser cavalos por isso. Só que o cavalo que não é
capaz de comer, deixa de ser cavalo pelo ato mesmo de deixar de ser capaz de comer.

Aluno: Então há acidentes que fazem parte da definição da substância, enquanto outros não.

Gugu: Exatamente. Alguns acidentes são indispensáveis para explicar o que é a coisa, e outros são
perfeitamente dispensáveis. Isso quer dizer que, quando afirmamos que uma coisa é outra - por exemplo,
“o cavalo é marrom”, ou “a pedra é pesada” etc. -, nem todas essas afirmações estão em um mesmo nível
de significação. Por isso, o primeiro passo para se estudar um objeto é justamente listar as afirmações que
podemos fazer acerca dele. O segundo passo é pegar cada uma dessas afirmações e tentar analisar em que
sentido estamos afirmando uma coisa da outra. E isso não quer dizer que há muitos sentidos diferentes.
Na verdade, só existem cinco tipos de afirmações diferentes.

O primeiro tipo de afirmação - e o mais simples - é sobre a espécie da coisa. Por exemplo: “Sócrates é um
homem.” Homem é a espécie de Sócrates; Sócrates é um caso particular da espécie homem. Outro
exemplo: “Totó é um cachorro. Já isso é um cigarro.” Podemos afirmar a espécie, sinteticamente, dando
simplesmente o nome da espécie, ou, então, podemos afirmar a espécie dando a definição do objeto. Em
vez de dizer que “Sócrates é um homem”, podemos dizer que “Sócrates é um animal racional”. Dizer que
“Sócrates é um homem”, e dizer que “Sócrates é um animal racional”, é dizer, com mais ou menos
palavras, exatamente a mesma coisa.

O segundo tipo de afirmação é sobre os gêneros da coisa: “Sócrates é um ser vivo.” Ou: “Verde é uma
qualidade.” Qual a diferença entre dizer que “Sócrates é um homem” e dizer que “Sócrates é um ser
vivo”?

Aluno: A espécie “homem” está contida dentro do gênero “ser vivo”. Quando falamos de um ser vivo,
podemos estar nos referindo a um homem, a um cavalo, ou a uma lagosta.

Gugu: Realmente, “ser vivo” é mais amplo e mais geral do que “homem”. Mas poderíamos, então, usar
outra comparação. Qual a diferença entre falar que “Sócrates é um ser vivo” e falar que “Sócrates é uma
substância”? Atenção: estamos usando a palavra substância no mesmo sentido que usamos agora há
pouco. Pois então, qual é a diferença? Os dois são gêneros de Sócrates. Se dissermos que “Sócrates é um
homem”, que “Sócrates é um ser vivo”, e que “Sócrates é uma substância”, quais são as características
comuns a essas três afirmações?

A primeira característica comum é que cada um desses atributos pode ser aplicado a outros seres que não
Sócrates; nenhum desses atributos é sinônimo de Sócrates. Sócrates é um homem, e Platão também.
Sócrates é um ser vivo, e o cavalo também. Sócrates é uma substância, e a pedra também. Quando
dizemos que “Sócrates é um homem” e que “Platão é um homem”, a palavra “homem” inclui todas as
determinações essenciais tanto de Sócrates quanto de Platão. A diferença essencial entre Sócrates e Platão
não é uma diferença essencial entre homem e homem. Mas quando dizemos que “Sócrates é um ser vivo”
e que “a tartaruga é um ser vivo”, existem diferenças essenciais que não estão incluídas na noção ser vivo.
Isso quer dizer que as diferenças entre Sócrates e Platão não são diferenças de tipo universal; as
diferenças entre eles não são diferenças genéricas. Elas são apenas diferenças concretas que existem no
fato concreto que é Sócrates e Platão. Já quando estamos nos referindo às diferenças entre Sócrates e a
tartaruga, essas não são apenas diferenças concretas entre eles, pois existem diferenças universais nesse
caso. Há certas características que todas as tartarugas possuem, mas que Sócrates não. Então, quando
afirmamos da coisa a sua espécie, afirmamos dela todas as suas determinações essenciais. Já quando
afirmamos da coisa o seu gênero, afirmamos apenas algumas determinações essenciais, enquanto outras
ficam indeterminadas. Quando dizemos que “Sócrates é um homem”, afirmamos todas as características
essenciais que fazem parte do ser dele. Mas quando afirmamos que “Sócrates é um animal”, não
afirmamos todas as características essenciais que definem o ser dele. Esse é segundo tipo de afirmação.
Podemos afirmar o gênero da coisa, e afirmar o gênero da coisa é afirmar apenas algumas de suas
determinações essenciais, enquanto outras permanecem indeterminadas.

A espécie é o máximo de determinação essencial a que podemos chegar. Qualquer outra diferença entre
Sócrates e outros homens não é uma diferença essencial. A diferença entre Sócrates e outros homens não
acrescenta nada à noção de homem. Se dissermos que “Sócrates é feio”, “feio” não explica a noção de
homem. “Feio” explica um pouco melhor a noção de Sócrates, porém não explica nada acerca da noção
de homem. Ainda podemos dizer que “Sócrates é um animal”. E, nesse caso, se quisermos explicar um
pouco melhor a noção de animal, diremos: “Sócrates é um animal racional.” “Racional” determina a
noção de animal. Já quando dizemos que “Sócrates é um homem”, que tipo de homem é ele? Alguém
poderia responder: “Ah, ele é um cara legal.” Mais uma vez, devemos perceber que “cara legal” não
determina a noção de homem, determina a noção de Sócrates. No outro caso, “racional” é uma diferença
que se refere ao gênero animal. E, por se referir ao gênero animal, refere-se a este animal que pertence a
esta espécie (no caso, o homem). Quando dizemos “cara legal” ou “feio”, esses conceitos não determinam
a noção de homem, determinam apenas um ser concreto específico. No momento em que atribuímos a
alguma coisa o seu gênero, definimos algo que nela é essencial, enquanto outras coisas que fazem parte
da essência dela permanecem indeterminadas. “Animal” se refere à essência de Sócrates, mas refere-se de
maneira mais geral e indeterminada. Já “sábio” também se refere a Sócrates, porém não se refere a nada
que seja de sua essência; “sábio” é apenas uma característica individual de Sócrates.

Até agora, temos então três tipos de predicação: 1) podemos predicar da coisa a sua espécie ou a essência;
2) podemos predicar da coisa o seu gênero, que é algo que está contido na essência, porém é mais geral e
indeterminado; 3) e podemos predicar um acidente.

O acidente é algo que pode estar presente ou não em uma coisa. Ele é algo que caracteriza o indivíduo
concreto, mas não é uma determinação da sua essência. É algo que é verdadeiro quando afirmado de
indivíduo em particular, mas não é verdadeiro quando afirmado da espécie. Quando dizemos que
“Sócrates é sábio”, isso é verdadeiro acerca de Sócrates, mas não necessariamente é verdadeiro acerca do
homem em geral, pois nem todos os homens são sábios. Mais ainda, quando dizemos que “Sócrates é
sábio”, isso quer dizer que Sócrates foi sábio desde que nasceu? Quando ele era um bebê de dois meses,
já era ele sábio? Não, Sócrates tornou-se sábio. E ao se tornar sábio, ele não mudou de espécie de maneira
alguma. Ele já era um ser humano aos dois meses de idade e continuou um ser humano durante toda a sua
vida. Então, o acidente - a predicação acidental - é aquilo que, quando afirmado ou negado, não muda a
definição da espécie. Mas há um tipo de acidente que, embora não faça parte da essência, possui uma
relação mais direta com ela. Por exemplo: “O Fulano ri.” Ora, o ato de rir é um acidente que é
característico dos seres humanos. Se o sujeito nunca ri, ele não deixa de ser humano. Por algum período
da nossa biografia, é possível que sejamos definidos como alguém que não ri. E é provável que durante
alguns minutos, ou horas, ou dias (como os primeiros dias da sua vida), não rimos em nenhum momento.
No entanto, este não é um acidente como, por exemplo, ter peso. Ter peso não é característico do ser
humano, é característico dos entes corpóreos. A este tipo de acidente chamamos propriedade. Algo que é
próprio, característico, mas que não explica o que a coisa é.

Por último, temos a predicação da diferença específica. Da mesma forma que podemos dizer que
“Sócrates é um animal”, também podemos dizer que “Sócrates é racional”. “Racional” é uma
determinação da nossa essência, uma diferença da nossa essência; é o que nos diferencia dos outros
animais; é um atributo essencial. Portanto, “racional” é algo bem diferente do gênero. Devemos perceber
que, quando dizemos que “Sócrates é um animal”, a palavra “animal”, aqui, refere-se concretamente à
animalidade racional que existe no Sócrates. Não queremos dizer “animal” no mesmo sentido de quando
dizemos que o “cavalo é um animal” - a não ser que queiramos ofendê-lo, mas este já é um uso
secundário da palavra. O elemento “racional”, nesse caso, está indeterminado, pois não o explicitamos. E
é por isso que podemos usar o predicado “animal” de maneira ofensiva. Porém, quando dizemos
“racional”, não incluímos a referência à animalidade nem mesmo de maneira indeterminada. É de se notar
que a palavra “animal” já carrega em si um potencial de maior determinação. Quando dizemos “animal”
nos referindo ao cavalo, essa palavra já inclui algo mais; quando dizemos “animal” nos referindo a
Sócrates, essa palavra já indica algo mais, ainda que de maneira indeterminada. Já quando dizemos
“racional”, a noção de animal não está incluída nem de maneira indeterminada, nem de maneira implícita.
Se observarmos bem, quando predicamos de algo “animal” – por exemplo: “o cavalo é um animal” –, já
deixamos subentendido que existe alguma outra noção que complementa a noção de animal, e que, junto
a esta, pode explicar o que é um cavalo. Se juntarmos essa noção subentendida à noção de “animal”,
explicamos o que é um cavalo.

O mesmo se dá quando dizemos que o “Luiz Gonzaga é um animal”. Há, nesse caso, a idéia de que,
juntando alguma outra noção à noção de “animal”, explicamos o que é o Luiz Gonzaga. Já quando
dizemos que o “Luiz Gonzaga é racional”, não há nenhuma determinação do sentido da palavra
“racional” que, se acrescentada, explica o que é o Luiz Gonzaga. Por quê? Não poderíamos dizer que ele
é um “racional animal”? É claro que poderíamos; poderíamos dizer o que quiséssemos. Mas a verdade é
que “animal” não é uma determinação de “racional”. “Animal” não é um tipo de “racional”, não é um
modo de ser racional. Isso significa que, quando apontamos uma diferença, não apontamos um gênero de
uma maneira indeterminada, e sim apenas uma diferença formal última. Dizer que algo é racional não
subentende de maneira nenhuma que esse algo é um tipo de animal. Já quando dizemos “animal”, o
conceito de animal evoca a pergunta em nossa mente: “Que tipo de animal? O que caracteriza este
animal?” O gênero carrega, na sua conotação, a diferença de maneira indeterminada. O contrário não
ocorre; a diferença não carrega, em sua conotação, o gênero. Se um ser é racional, o fato de ele ser
racional, e a própria noção de racional, não traz consigo a possibilidade de diferenciação entre “animal” e
“não animal”. Se algo é um animal, esse algo não o é por ser racional; ser animal não é uma diferenciação
da sua racionalidade.

Imaginemos um passo a diante: tentemos conceber um “racional” que não é um “animal”. Um anjo
também é dotado de racionalidade e inteligência; porém o ser humano também é racional. A animalidade
(que é uma nota do ser humano) e a espiritualidade (que é uma nota do anjo) diferenciam a própria noção
de racionalidade? De maneira alguma. Uma demonstração de uma operação matemática – por exemplo:
dois mais dois é igual a quatro (2+2=4) - vale tanto para nós quanto para os anjos. Qualquer operação
racional vale tanto para nós quanto para os anjos, da mesma maneira e no mesmo sentido. Isso significa
que a “animalidade” não é uma modificadora da “racionalidade”. Somente o inverso - a “racionalidade”
como modificante da “animalidade” - é verdadeiro. Tudo o que se pode inferir por meio da razão e da
inteligência é válido, seja essa operação realizada por animais ou não. As leias da aritmética, por
exemplo, não mudarão quando morrermos e deixarmos de ser um animal, bem como nunca mudarão para
os anjos. Tudo o que deriva da racionalidade vale igualmente para os animais racionais e para os não-
animais racionais. Devemos perceber claramente que a “animalidade” não é modificadora da
“racionalidade”. Desse modo, quando dizemos que algo é um animal, podemos dizer muitas coisas sobre
aquele ser, justamente porque ele é um animal. Mas algumas das coisas do ato de ser animal não podem
ser ditas sobre esse algo enquanto não notarmos a sua diferença específica. Podemos descrever muitas
operações vitais dos animais, como, por exemplo, ter percepção sensorial, gostar ou desgostar, ter
simpatia ou antipatia etc. Porém, de repente, temos um animal como o homem. E por mais que possamos
dizer algo acerca do homem a partir da noção de animal, há algumas operações vitais dele que
determinam a sua animalidade concreta, e que só poderão ser explicadas quando incluirmos a noção de
racional. Mas não há nenhuma operação racional do homem que só pode ser explicada quando eu inclusa
a noção de animal.

Não estamos comparando, aqui, o homem com o anjo. Uma operação racional é necessariamente a
mesma para ambos. Por exemplo, dois mais dois é igual a quatro (2+2=4) tanto para o homem quanto
para o anjo. O resultado dessa soma, para o anjo, não será oito (8), ou menos quatro (-4), ou quatro e
pouco (uma fração). Uma operação racional é sempre a mesma para qualquer ser racional, seja esse ser
um arcanjo ou um homem de QI muito baixo. Desde Deus, passando pelos anjos, até o ser humano,
qualquer operação racional é universalmente válida e será sempre a mesma. Pelas mesmas operações,
pode-se alcançar os mesmos resultados. Isso não quer dizer que a percepção e a racionalidade de um anjo
estejam no mesmo grau da percepção e da racionalidade de um homem. Não é isso. Mesmo nos homens
elas não estão em graus iguais. Porém, a operação racional é a mesma para qualquer ser racional. Uma
demonstração que é válida para um homem, também é válida para Deus e para todos os seres no meio do
caminho.

Aluno: A diferença é que o anjo faz a conta de cabeça e o ser humano tem que fazer no papel!
Gugu: Mas essa não é uma diferença racional, e sim uma diferença da memória. É uma diferença do
referencial concreto. Toda vez que um anjo faz uma conta e acerta, e toda vez que um homem faz uma
conta e acerta, o resultado dessas operações é sempre o mesmo. Qualquer outra condição não modifica a
racionalidade, porque a racionalidade é uma diferença última. Ela [a racionalidade] é que é a
modificadora de outras condições. Poderíamos perguntar se, nesse caso, a racionalidade é um sinônimo de
lógica. E a resposta é não, a racionalidade não é um sinônimo de lógica. A racionalidade é a capacidade
de realizar operações intelectuais e abstratas. Isso inclui a lógica? Claro, mas inclui a ilógica também, e
inclui operações que são anteriores à lógica.

Vimos nas aulas passadas que o ser humano tem a capacidade de, ao pensar, por exemplo, em um leão,
ele ser capaz de pensar abstratamente no leão, e não em um leão em particular ou em um leão que está
prestes a lhe causar algum mal. Essa também é uma capacidade racional. Podemos nos referir
mentalmente e verbalmente ao leão, independentemente da nossa circunstância concreta. Não precisamos
ouvir um rugido para pensarmos em leão. Isso não é lógica, mas é uma operação racional. A lógica é um
capítulo da racionalidade, e não o livro inteiro. E também é claro que há alguma diferença concreta entre
as operações que realizamos com a nossa racionalidade enquanto humanos e as operações que um arcanjo
realiza com a racionalidade dele enquanto arcanjo. Mas, como já dito, também há diferenças concretas
entre as operações racionais que um ser humano realiza em comparação a outros seres humanos. Portanto,
essas são diferenças de grau, são diferenças concretas, e não diferenças na própria racionalidade. Os
resultados, uma vez certos, têm de ser os mesmos. Os resultados racionais, derivados da inteligência, têm
de ser os mesmos nos seres humanos, nos arcanjos, e até em Deus. Se não fosse assim, não teria sentido
o homem relacionar-se com os anjos ou com Deus. A relação entre o homem e Deus seria sempre igual à
que existe entre o homem e os cachorros. No máximo, seria uma relação afetiva; haveria um elemento
unilateral nela. Mas todas as grandes religiões afirmam que a relação com Deus é completamente
bilateral. Isso não significa que o homem e Deus são iguais: nós morremos, e Deus não. Isso já é uma
grande diferença.

Tales: Podemos dar exemplos de operações racionais que não sejam a lógica ou a abstração? Quais
seriam os exemplos de outras operações racionais?

Gugu: As operações racionais pelas quais entendemos os princípios da lógica. A lógica é uma ciência
específica. Para que exista a lógica, é preciso que ela tenha princípios que não são explicados pela própria
lógica. Ora, esses princípios têm de ser entendidos, com a inteligência racional, antes da lógica. Por
exemplo, o princípio de não-contradição: algo não pode ser e não-ser sob o mesmo aspecto e ao mesmo
tempo. Não sabemos disso por meios lógicos. Pelo contrário, saber isso é que permite a existência de
instrumentos lógicos.

Aluno: A percepção intuitiva é uma forma de operação racional? E a percepção estimativa, é ela uma
forma de intuição?

Gugu: Sim, a intuição intelectual é um meio anterior à lógica, e ela é uma operação perfeitamente racional
e anterior à lógica.

Aluno: A intuição intelectual é um tipo específico de intuição? A percepção estimativa é também outro
tipo específico de intuição? Por exemplo, um animal pode, por meio da percepção estimativa, perceber
que não é capaz de pular um determinado obstáculo, e nem por isso o chamamos de animal racional.

Gugu: O resultado da avaliação estimativa não é intuição e nem algo intuitivo. A palavra “intuição” tem
dois sentidos. O primeiro é o sentido etimológico estrito. Intuição significa ir dentro, alcançar o interior
do outro, captar o que está dentro do outro. Intuir, no latim, é in tueor, que significa “ir para dentro”.
Nesse sentido, a percepção estimativa não é intuitiva de maneira nenhuma, porque a percepção estimativa
só é uma percepção de uma relação extrínseca. “Este bicho quer me atacar. O que é esse bicho? Não sei,
mas ele quer me atacar!”. Na estimativa não vamos de encontro ao íntimo do ser desse animal que está
prestes a nos atacar. Estamos olhando mais os dentes do bicho do que procurando entender o que ele é.
Portanto, no sentido estrito, isso não é intuitivo. O outro sentido da palavra “intuitivo” é ser algo que é
muito rápido, sem uma longa deliberação mental - algo que é percebido de uma maneira imediata, ou num
intervalo de tempo muito curto. Nesse sentido, uma avaliação estimativa pode ser intuitiva.

Tales: Explique melhor o que seria a intuição intelectual e o que é uma operação racional.
Gugu: A intuição intelectual consiste na apreensão imediata de uma relação essencial entre dois
conceitos. Por exemplo, duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si (em linguagem lógica: A =
C, B = C, logo A = B). É possível perguntar: “Isso não é uma operação lógica?” Não. Na verdade, isso é
um principio da lógica. Toda operação lógica implica em já saber isto. Note-se que a formulação desse
princípio que é lógica. Quando alguém diz que “duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si”,
podemos ter de pensar um pouco para entender o que foi dito, mas na hora em que entendemos as
palavras, percebemos que já concordávamos com isso antes mesmo de elas [as palavras] serem
enunciadas. Não é a partir do enunciado do princípio que passamos a concordar com ele, pois nós já
sabíamos o que passou a ser dito em palavras antes mesmo de elas serem pronunciadas. O discurso, aqui,
tem um valor meramente indicativo, e não demonstrativo. A percepção dessa igualdade não é lógica. Já
sabíamos isso antes de pensar nisso! Quando alguém enuncia que “duas coisas iguais a uma terceira são
iguais entre si”, pensamos: “Mas é lógico!” Só que “lógico”, nesse momento, tem o sentido de ser auto-
evidente, e, portanto, é algo pré-lógico. Para que pudéssemos raciocinar, e até para que pudéssemos
pensar nos termos dessas palavras, já precisávamos saber isso. Os princípios da identidade e da não-
contradição já estavam lá.

Então, o conhecimento desses princípios possui duas características da intuição. Primeiro, ele é imediato;
não demandou um tempo para existir; essa constatação é imediata. A constatação de que aquilo que foi
dito corresponde a esse princípio, esta sim é mediata. Segundo, a intuição tem por objeto uma relação
essencial. Não se trata de, apenas em um caso específico, duas coisas específicas serem iguais a uma
terceira coisa também específica e, portanto, de elas serem iguais entre si. Essa é uma relação válida para
todos os casos em que duas coisas forem iguais a uma terceira. Ela não é como a avaliação do cachorro
que quer nos morder. Essa é uma avaliação particular: “Esse cachorro aqui e agora quer me morder.” Não
é uma avaliação geral e essencial dos cachorros, senão ninguém teria cachorros, porque todos eles sempre
iriam querer morder todas as pessoas. Então, a avaliação estimativa não existe fora de uma circunstância
concreta. Já no princípio universal - independente de quais sejam as duas coisas e de qual seja a terceira
coisa -, essa relação estrutural é sempre válida. Basta que façamos a análise. Quando expressamos um
princípio, ou um axioma, talvez tenhamos de pensar um pouco para entender a sua formulação. Mas
quando a entendemos, percebemos que ela [a formulação do axioma] concorda com algo que já sabíamos
evidentemente. Ela não é uma nova intelecção. E sempre, em qualquer operação lógica, dependemos de
saber isso. Os primeiros esforços para aprendermos a linguagem já subentendiam sabermos isso.

[Intervalo.]

Gugu: Entenderam em que sentido a atribuição da diferença é diferente da atribuição do gênero? A


afirmação do gênero subentende uma indeterminação que só pode ser preenchida pela diferença, mas a
afirmação da diferença não subentende um gênero indeterminado. Não há algo a acrescentar à noção da
diferença para especificar o que ela é. Já quando falamos no gênero, há algo a acrescentar para explicar o
que ele é. A diferença é exatamente isso: uma diferença formal última. Não existem, por exemplo, dois
tipos de racionalidade - uma racionalidade dos animais e outra dos não-animais -, mas existem vários
tipos de animalidade. Tentemos, então, usar esses instrumentos chegarmos à definição de livre arbítrio
(ou liberdade humana). O queremos dizer quando dizemos que alguém é livre? Se conseguirmos
distinguir esse fenômeno de um lado, e distinguir o que são as influências astrológicas do outro,
poderemos entender como eles são compatíveis. Então, o que queremos dizer quando dizemos que
alguém é livre?

Aluno: Que este alguém é responsável pelas próprias escolhas?

Gugu: A responsabilidade é uma conseqüência da liberdade, e não uma causa dela. Somos responsáveis
porque somos livres, mas não somos livres porque somos responsáveis. A responsabilidade vem depois; a
liberdade vem primeiro. Nesse momento, por exemplo, o nosso corpo sente uma inclinação em direção à
cadeira ou ao chão. Temos aqui uma tendência de movimento muito clara. Os nossos corpos estão em
cima e tendem a descer para o chão. Se pularmos, caímos de volta no chão. Temos um movimento aqui, e
esse movimento tem um termo inicial, que é estar separado do chão, e um termo final, que é estar no
chão. Esse termo final é sempre um só. Isto é, o movimento do corpo em direção ao chão é sempre em
direção ao chão. A força que o impele para o chão sempre o impele para o chão. Mas, por exemplo, a
gazela às vezes vai em direção da grama, às vezes em direção à água. Nós às vezes ligamos a televisão, às
vezes não. A primeira condição para que haja algo a que possamos chamar de liberdade é a existência de
duas possibilidades mutuamente excludentes: ou ligamos a televisão, ou não ligamos; ou a gazela come a
grama, ou ela bebe água. Ambas as ações são possíveis, mas não ao mesmo tempo. Por serem ambas
possíveis, temos de escolher um término para o movimento. Se não existisse a possibilidade de um
mesmo movimento terminar numa ou noutra direção, não existiria liberdade de maneira alguma. Para que
exista liberdade, devem existir diferentes termos finais possíveis para um mesmo movimento. Voltando
ao exemplo da gazela: existe o desejo dela de obter satisfação. Um dos termos desse movimento possível
é o alimento, o outro termo é a água, o outro termo é o descanso etc. E, em cada momento, ela tem de
escolher entre um desses termos, porque não se pode dormir e comer ao mesmo tempo.

A segunda possibilidade da liberdade é que, dado certo fim, podem existir vários meios de obtê-lo. Por
exemplo, se um homem casado está com sede, ele pode pedir que a mulher dele pegue um copo d’água na
cozinha, ou então ele pode mover o próprio traseiro e ir até lá buscar. O resultado “beber água”, nesse
exemplo, é o mesmo, mas os meios pelos quais se chegam a ele são diferentes. Então, por existirem meios
diversos para se chegar a um resultado, é preciso que se escolha um dentre eles. Para que exista a
liberdade, é preciso que exista diversidade de opções. Porém, é bom notar que, se em uma determinada
condição concreta não existe diversidade de opções, isso não significa que o potencial de liberdade não
exista, significa apenas que a liberdade não existe concretamente naquele momento. Se um indivíduo
estiver na cadeia, ele deve comer a comida que o carcereiro traz, pois ou ele a come, ou ele morre de
fome. “Mas hoje eu não quero isso, eu quero pizza!” Ele não pode escolher entre um alimento ou outro.
Em todos os dias sentimos fome em algum momento. O que iremos comer? Possuímos uma certa
liberdade de escolha, porque há uma variedade de alimentos que podemos ou não comer ou naquele dia.
Isso significa que a condição subjetiva para a liberdade é a percepção. Se não formos capazes de
apreender e representar mentalmente o término do movimento antes de ele acontecer, não temos a
condição de exercer liberdade alguma. Esta é a primeira condição que diferencia o homem ou o animal da
pedra, pois a pedra é atraída em direção ao chão e acabou. Ela não percebe isso, então ela não tem escolha
alguma. A ausência de percepção elimina a liberdade. A segunda causa possível de eliminação da
liberdade é quando, fora do sujeito que percebe, não existem várias coisas a serem percebidas. Se o leão
está com fome e só há uma gazela disponível para que ele cace, das duas, uma: ou ele caça essa gazela, ou
morre de fome. O leão não pode escolher entre a gazela e outro alimento, porque não há outro alimento
presente para que ele perceba. Outro exemplo é o do sujeito na cadeia: ou ele come a comida que o
carcereiro traz, ou morre de fome. Não há que se falar nesse caso: “Eu quero pizza.” Nesse sentido - da
existência de alternativas e da existência da percepção das mesmas, antes do resultado -, os animais
também possuem liberdade. E é nisso que consiste a diferença entre nós e os vegetais.

No entanto, há um capítulo a mais aqui no livro sobre a liberdade humana. Os animais possuem um tipo
de liberdade que não é do mesmo tipo que a nossa. E qual seria a diferença entre a liberdade de um
cachorro e a nossa? No caso do cachorro, ele tem a escolha de urinar ou dentro de casa, ou fora. A partir
daí, podemos educá-lo para urinar fora de casa, punindo-o quando ele urinar dentro da mesma. Mas qual é
a diferença entre punir um cachorro que urina dentro de casa e punir um sujeito que comete um crime?
Qual é a diferença entre essa liberdade de escolha do animal e a liberdade de escolha do ser humano?
Em primeiro lugar, os animais não têm o senso de moralidade e justiça que o ser humano possui. Mas de
onde vem esse senso? O que torna possível a nós agir de maneira moral ou imoral? Não é possível para o
animal agir de maneira moral ou imoral. Por exemplo, quando corrigimos o cachorro para que ele não
urine dentro de casa, não há em nossa consciência um senso de reprovação do animal enquanto tal. A
reprovação é somente em relação à ação. Entendemos que, para ele, fomos nós que inventamos que a casa
não é o lugar apropriado para se urinar. Essa não é uma regra que surge da cabeça dele. Não o
reprovamos, porque sabemos que ele não é capaz de conceber algo como “casa” e “fora de casa”. Mais
uma vez, fomos nós que inventamos que a casa é o lugar onde não se pode urinar – à exceção do vaso
sanitário do banheiro -, e o animal não entende nada disso.

Agora, e se uma pessoa viesse nos visitar algum dia e urinasse no meio da sala? Sentiríamos a mesma
coisa que sentimos quando o cachorro faz a mesma coisa? Ficaremos com vontade de bater nesse sujeito.
Só que também podemos ficar com vontade de bater no cachorro. Então, qual é a diferença entre a
vontade de bater na pessoa que fizer isso e a vontade bater no cachorro? Como falamos antes, o cachorro
não urina dentro da sala porque ele tem a intenção de nos contrariar. E quem inventou essa coisa de “sala”
fomos nós, e não ele. Já o ser humano, pode até ser possível que ele esteja urinando dentro da sala sem a
intenção por ter um cérebro meio canino, mas é mais provável que ele esteja fazendo isso de sacanagem
mesmo. E isso, na teoria do delito, é o que se chama de dolo e culpa, isto é, o sujeito pode cometer um
crime com ou sem a intenção de praticá-lo. O cachorro pode urinar dentro de casa, mas o fará sem a
intenção de nos contrariar deliberadamente; já uma pessoa, é bem mais provável que o faça apenas de má
vontade.
Aluno: O ser humano tem o livre arbítrio determinado? Há um limite para o livre-arbítrio do homem?

Gugu: É evidente que liberdade é sempre determinada. Como já dissemos, em primeiro lugar, ela é
determinada objetivamente pela existência de alternativas. Se não existem duas alternativas, não existe
liberdade. Em segundo lugar, ela é determinada também pela consciência que temos das alternativas. Se
existem as alternativas, mas não somos capazes de percebê-las antes de elas se efetivarem, também não
temos escolha. Assim, é claro que o livre-arbítrio é determinado. Porém, não devemos achar que, por isso,
a nossa liberdade é mais restrita do que a do animal. Muito pelo contrário. Somos mais livres do que os
animais.

Aluno: É por isso que as Artes Liberais ampliam a nossa percepção? Para que se amplie o nosso universo
de escolhas e possamos ser mais livres?

Gugu: Elas são chamadas de Artes Liberais justamente por causa disso. Nós somos mais livres do que os
animais, porque temos mais modos de percepção do que eles. Para um animal, a desculpa de que ele não
sabia que não se podia urinar dentro de casa é válida. Para o homem, nem sempre. Pois podemos falar:
“Você não sabia, mas devia saber!” O animal não tem nenhuma escolha além das escolhas concretas.
Quando ele quer urinar, ele pensa: “Faço xixi aqui ou não? Já que eu não vou deitar aqui, mas vou deitar
ali, então faço xixi aqui e pronto. Tenho esse espaço para fazer o xixi, e ali um espaço para deitar”.
Suponhamos que alguém, na casa de outra pessoa, urina na sala desta: “Para mim é simples. Faço xixi ali
no canto e me deito no sofá.” Mesmo que esse alguém não estivesse informado de nada mais, a pessoa,
dona da casa, poderia dizer: “Se você não estava informado, deveria estar!” Com o animal, no máximo,
podemos dizer: “Poxa, ele estava mal informado acerca da situação. Pior para ele, pobre coitado.” Mas
não podemos dizer que ele devia estar mais informado. Está clara a diferença entre “podia estar mais
informado” e “devia estar mais informado”? Está claro que o animal não tem deveres intrínsecos? Os
deveres vêm sempre de fora, nunca de dentro. Então, se algum cachorro urina na sala, ninguém diz: “Esse
cachorro devia saber não fazer xixi na sala.” Caso aconteça de algum cachorro urinar na sala, dirão:
“Deviam treinar esse cachorro para que ele não faça mais xixi na sala.”

Tales: O Fulano disse que o ser humano também tem esse elemento de condicionamento na infância, pois
não é razoável exigir de uma criança que ela saiba dessas coisas. Então, por isso, a criança deve ser
educada do mesmo modo que um cachorro. Mas é bom notarmos que esse elemento, no ser humano, é
uma etapa provisória, ao passo que, no animal, é um estado definitivo. Rapidamente o ser humano passa
por essa fase; já o animal, é toda a vida dele.

Gugu: Sim, exatamente. Existem duas diferenças nesse caso. Primeiro, para nós, isso é um estagio
temporário, provisório, apenas para aprender o básico. Segundo, o aprendizado desse básico é para a
conveniência de quem está aprendendo, e não para a conveniência de quem está ensinando. É uma
diferença fundamental: o cachorro não poder fazer xixi na sala é inconveniente para ele, mas é
conveniente para o seu dono; já ensinar para criança, não fazer xixi na sala é conveniente para ela própria.
É a criança que terá a vantagem de viver separada da própria urina. Ensinar a criança a não urinar na sala
é educação, e não adestramento. É fornecer a ela novas possibilidades que melhorarão a vida dela. Tanto
que ela, normalmente, irá chegar ao ponto de entender que urinar na sala não é uma coisa boa nem para
ela e nem para os outros (e se ela não chegar a entender, devia chegar). Enquanto o cachorro vai entender,
no máximo, que fazer xixi na sala desagrada o dono dele.

Tales: Aliás, é por isso que essa noção de ressocialização de presos, com base numa política de quase
adestramento, chega a ser desumana.

Gugu: Tecnicamente falando, não é possível realmente adestrar uma pessoa; é possível reduzi-la a uma
condição em que o adestramento funcione. E isso é evidentemente imoral. É completamente diferente do
que educá-lo, nem que seja na base da paulada. É possível que se eduque na base dos castigos físicos, é
claro. Se o sujeito sair ganhando, isso é ótimo. Adestramento é uma coisa, educação é outra. Só que, para
os animais, também existe educação: quando um grupo de leões ensina seus filhotes a caçarem, eles estão
os educando, pois são os filhotes que levarão vantagem quando aprenderem a caçar. Mas essa é uma
educação muito mais limitada. Quando o filhote de leão não aprende, ele é só um coitado e não um
culpado. Pode-se usar, aqui, a palavra “treinamento” também. No entanto, não isso não se trata de um
adestramento, esse treinamento é de fato um processo educacional. Os leões que ensinam seus filhotes a
caçarem, os elevam a estatura de leões adultos. O leão não ensina os seus filhotes apenas para que não
tenha mais de caçar para eles. E isso é diferente do adestramento, que sempre visa beneficiar o adestrador,
e não o adestrado. Só os seres humanos são capazes de adestrar alguma coisa, já os animais nunca fazem
isso. Nenhum cachorro treina outro para caçar para ele, mesmo porque, se o outro cachorro aprendeu a
caçar, ele automaticamente tornou-se capaz de caçar para si mesmo.

A grande diferença entre a liberdade humana e a liberdade animal é que, quando animal não escolhe a
melhor opção, ele não é culpável. Por que ele não é culpável? Porque ele não é capaz de conceber um
propósito geral das ações; ele não tem esse tipo de percepção. Ele somente tem a percepção da ação no
seu contexto concreto. Ou ele acerta e vive bem, ou erra e vive mal. O homem, não. Além de perceber o
contexto concreto da ação, o ser humano também percebe a ação no contexto geral da sua existência - a
relação entre a ação e a forma humana. A natureza humana é a mesma em todos os seres humanos, ao
contrário da situação concreta, que nunca é a mesma entre dois entes diversos. O que é válido para um
leão numa situação concreta, pode não ser válido para o leão logo ao lado dele. Para os animais, em geral,
tudo é avaliado caso a caso. Por exemplo: se o leão sai para caçar a gazela e a gazela escapa, então ele se
dá mal. Mas ele não pode ser processado pela leoa por não levar comida para os leõezinhos que ele gerou.
Por que ela não pode tem o direito de processá-lo (fora o fato de que ela não é capaz de conceber essas
coisas)? Ela não pode fazer isso porque o leão não é capaz de conceber essas coisas; não está na natureza
dele. Quando se reprova um ser humano, mede-se a ação dele com a forma humana em geral, e não
somente com a circunstância concreta.

Aluno: Para educar o aluno, o professor faz com que ele adquira consciência da situação de todo ser
humano; o professor faz com que ele transcenda a situação concreta dele, chegando a um contexto
universal. Então, um professor que queira adestrar o aluno, procura limitá-lo à situação concreta
momentânea e distanciá-lo desta percepção geral do ser humano.

Gugu: A diferença entre educação e adestramento é simples: na educação, quer-se dar ao educando as
mesmas possibilidades que o educador tem; no adestramento, não se quer dar novas possibilidades para o
adestrado, apenas o adestrador procura fazer uso das possibilidades do outro para benefício próprio. E aí
poderiam perguntar: “Pode-se dizer que a educação brasileira seria basicamente um adestramento?” Isso
não é novidade. O sujeito não quer ensinar algo que ele saiba. O adestramento sempre envolve um
elemento de ocultação. E o que caracteriza a liberdade humana – e a educação humana - é o fato dessa
liberdade ser medida por dois eixos diferentes. No caso do animal, a liberdade dele é medida somente no
eixo da circunstância concreta e necessidades internas. O animal, opera desse modo: “Eu preciso de
comida, e há aquela gazela ali.” Se ele conseguir resolver essa equação – a necessidade de comida e a
disponibilidade da gazela que está ali -, terá sucesso; se não, fracassará. No caso do ser humano, não é só
isso, há também outro eixo: além das necessidades internas e a circunstância concreta 2 existe o panorama
da existência humana.3 Se o leão roubar a gazela caçada por outro leão, ele não é um canalha. Mas se um
homem roubar a presa de outra pessoa, há algo de errado.

O que há de errado? Um homem é - ou ao menos deveria ser - perfeitamente capaz de calcular que caçar a
gazela demanda tempo e esforço. E tempo e esforço são recursos que não possuímos de maneira
ilimitada. Uma vez gastos tempo e esforço para caçar uma gazela, não é possível que alguém os recupere.
Quando alguém tem a gazela conquistada roubada, esses recursos são tirados da vítima. É por isso que o
roubo é um pecado tão grave, pois rouba-se o tempo e o esforço do outro; não é nem tanto pelo objeto
roubado. As pessoas têm recursos e meios de ação limitados, e com o roubo é tirado delas esses meios.
Rouba-se um pedaço da vida das pessoas. Todo o tempo dedicado para que se conseguisse aquela gazela
acaba sendo tirado daquela pessoa que a caçou, sem a possibilidade de ser devolvido. Se alguém trabalha
o mês todo, ela acaba ocupando um terço do mês trabalhando, e quem rouba o salário dele, rouba dez dias
da vida dele. É, de certa forma, um assassinato em menor escala. Por isso sempre foi um pecado e um
crime graves. Não é algo pequeno como se costuma dizer: “Só roubou, mas não matou.” É um passo na
direção do matar.

Aluno: Em que medida o ser humano tem essa capacidade moral de perceber o que é errado
intuitivamente? E quando perceber o que é errado só possível através da educação? O quanto se pode
atribuir de responsabilidade ao indivíduo?

Gugu: Em que medida podemos atribuir culpa ao sujeito concreto, independentemente da educação que
ele teve? É simples. Claro que isso varia bastante caso a caso, porque teríamos que levar em conta todos
2
Podemos chamar esse eixo de eixo horizontal.
3
E esse eixo podemos chamar de eixo vertical.
os fatores. Mas, em princípio, é concebível que o indivíduo saiba que aquela conduta específica é errada,
independentemente de uma educação prévia? Em segundo lugar, ele possui alguma experiência análoga?
Se é concebível e ele possui experiência análoga, então ele é culpável. Por exemplo: é concebível para o
homem que obter alimento é trabalhoso. Em algum momento da vida, qualquer pessoa passou por uma
experiência de, no mínimo, levantar do sofá e ir até a cozinha buscar um sanduíche. Todo mundo, alguma
vez na vida, pediu um sanduíche para a mãe ela disse: “Não, você já está muito grande para eu ficar
fazendo sanduíche para você. Vai lá e faça você mesmo. Largue mão de ser folgado.” Mesmo que essa
mãe não tivesse um propósito educacional ou pedagógico, todos passaram pela experiência de ter de se
esforçar para obter esse alimento. Portanto, é concebível que a obtenção de alimento demanda esforço.
Sabemos disso pois passamos por essa situação. Então, automaticamente devemos aplicar ao outro o
mesmo raciocínio. Até que se prove o contrário, o outro também deve se esforçar para obter o próprio
alimento.

Isso também explica porque a esmola é um ato tão meritório. Damos um pedaço das nossas vidas. Mesmo
que seja um pedaço muito pequeno naquele momento, o damos para o outro. Se uma pessoa precisa de
ajuda, não adianta falar para ela trabalhar durante uma semana para comprar comida, pois ela está com
fome ali naquela hora. O princípio da misericórdia, da esmola, da caridade, é fantástico, porque ele faz de
um pequeno mal, um grande bem. A misericórdia é um negócio lucrativo em termos morais: “Poxa, eu
perdi dois reais, mas aquela pessoa ganhou mais um dia de vida.” Uma operação justa simplesmente nos
impede de cair no vermelho. Se alguém não rouba a carteira de outra pessoa, a conta fica zerada. É bom
que não se roube a carteira dos outros, mas ninguém sai lucrando com isso. A carteira do outro já existia,
na vida dele, como um bem. Quando se dá uma esmola, aumenta-se a quantidade de bem e objetivamente
diminuiu-se a quantidade de mal. A moralidade, a justiça e as virtudes existem porque o homem é capaz
de perceber o panorama da sua existência humana, enquanto o leão não é capaz de conceber o panorama
da existência leonina. O leão é incapaz de conceber o que acabamos de dizer sobre a caridade. O leão,
quando chega à idade adulta, depõe os leões velhos e os expulsa do bando. Ele também não hesitará em
matar os filhotes dos outros leões. Por quê? Porque ele não percebe que os outros leões se reproduzem
pelo mesmo motivo que ele; ele não percebe que não tem mais direitos do que os outros leões. Para o leão
não existe isso, pois ele não sente os desejos do outro e não vê o outro como um sujeito integral, apenas
como sujeito fragmentário. O leão vê o outro leão como uma parte do seu próprio universo. Um ser
humano assim é um sociopata.

Temos, então, a condição de conhecer a condição geral da existência humana. Tanto somos capazes de
perceber esse panorama, que a moral fundamental de todos os povos, durante toda a história do planeta
Terra, sempre foi exatamente a mesma. Todo mundo ensinava sempre a mesma coisa. Por quê? Porque
esse era um conhecimento que todos possuíam. Por exemplo: “Ame o próximo como a ti mesmo. Faça ao
próximo aquilo que desejas que façam a ti. Não faça ao próximo aquilo não desejas que façam a ti.” Essas
regras fundamentais sempre existiram para todos, e também as derivações básicas dela, como as
restrições ao homicídio, ao roubo, ao adultério etc.; todas essas coisas são sempre iguais em todos os
povos. E todos aqueles que falaram “vale-tudo”, extinguiram-se e deixaram de ser povos.

Aluno: O fio condutor dessa unidade dos povos é a religião? Ou existiu algum povo ateu, ou que
desconhecia a existência de Deus, mas que possuía a capacidade de fazer esse discernimento?

Gugu: A unidade que sempre manteve todo povo coeso, sempre foi a religião, que pregava essa moral
fundamental. E todo povo que não teve isso, não durou muito tempo. A religião é, em certo sentido, a
catalisadora da existência humana. Em princípio, pode-se derivar essa moral fundamental da própria
experiência. Para isso, basta que reflitamos, pois essa moral está baseada na estrutura mesma da
inteligência humana. Mas como ter o poder de nos lembrarmos todos os dias da moral concreta? É nesse
ponto que a religião entra em jogo. Ela é, digamos, o despertador que nos permite acordar na hora do
trabalho. Sabemos que é necessário acordar todos os dias em uma determinada hora para irmos trabalhar,
e para isso não precisamos de um despertador. Porém, precisamos do despertador para acordar. A moral,
enquanto estrutura essencial, não é derivada da religião, mas a religião é o alimento fundamental da
consciência moral concreta. A religião não sobrepõe algo à natureza humana; ela é algo para que o ser
humano possa tirar proveito de sua natureza; ela existe para que se possa tirar o máximo proveito dessa
natureza. Toda religião tem um fundador que está claramente no topo da inteligência, da virtude, da
sabedoria. Esse é o primeiro instrumento pelo qual a religião é catalisadora da moral. Ela dá uma
ilustração de até onde a natureza humana pode chegar. Em segundo lugar, ela dá uma série de meios para
que esse limite fique impregnado na mente dos seus adeptos. A relação entre as duas coisas é como a
diferença entre uma pessoa que estuda um tratado de teoria musical, sem nunca tentar aprender a tocar um
instrumento. Isso é evanescente, evidentemente. Pode parecer que aquilo tudo é só uma coisa mental. A
moral sem religião tende a se dissolver nesse sentido. Ela não se torna necessariamente inválida ou
errônea, porém fica frágil. Um ateu pode inferir os mesmos princípios morais que um não-ateu, mas a
moralidade dele tende a ser frágil, no sentido de ser apenas um conteúdo mental.

Mas o ponto é perceber que, no caso do ser humano, a liberdade vai um pouco além. Por quê? Pois além
de conceber a circunstância concreta, ele é capaz de perceber o panorama geral da existência, coisa que
um animal não pode fazer. O leão não pode perceber o panorama geral da existência leonina, apenas as
instâncias concretas em que a existência dele se desenvolve. Essa concepção geral se manifesta na mente
humana na medida em que se tem a experiência concreta. Ainda que seja concebível, por exemplo, que
obter alimento dê trabalho, essa concepção permanece como um conteúdo mental até o momento em que
é experimentado o esforço para se obter algum alimento. Isso quer dizer que, o senso concreto do esforço
que o alimento demanda, pode variar imensamente de um ser humano para o outro. Há vidas em que o
alimento demanda pouquíssimo esforço em relação ao conjunto total da existência, e outras em que esse
esforço demanda a maior parte do tempo. Esse senso pode variar muito; pode variar até mesmo de um dia
para o outro. Há dias em que a pessoa não se importaria em passar fome por estar interessada em alguma
outra coisa. O foco do interesse dá um direcionamento para a liberdade. Ao mudar o cenário, muda-se a
disposição, a inclinação e a escolha do indivíduo.

Suponhamos que alguém necessite, para livrar-se de uma doença, de uma cirurgia que custa cinqüenta mil
reais; ou que essa pessoa esteja juntando cinqüenta mil reais para comprar um carro. No processo que ela
está juntando o dinheiro para fazer a cirurgia, quais as possibilidades reais de surgir algo que a faça gastar
esse dinheiro em alguma outra coisa? Se surgir algum indivíduo e oferecer um o carro dos sonhos dela
por trinta mil reais – dinheiro esse que ela estava juntado para a cirurgia -, essa pessoa compraria o carro
ou continuaria juntando dinheiro para salvar a própria vida? Já no processo de juntar dinheiro para
comprar um carro, pode acontecer que se encontre outra coisa de trinta mil reais que seja mais
interessante do que ele. Isso quer dizer que, diante de determinados cenários, a tendência real efetiva de
mudarmos de rumo é muito pequena. Nesses cenários, é necessário que surjam motivos muito fortes para
que mudemos de direção. Enquanto que em outras escolhas, não; é muito fácil que mudemos nossos
caminhos. Dependendo das possibilidades que o cenário concreto nos oferece, existem certas escolhas
possíveis. Mais ainda, dependendo de qual o término possível, a inclinação para esse término é mais forte
ou mais fraca. Muita força é necessária para que se tire alguém de um rumo que, por exemplo, seja uma
questão de vida ou morte. Porém, a maior parte das questões não chegam a ser questões de vida ou morte.
Tratam-se apenas de obter um certo lucro, de perder algo para ganhar outra coisa. Isso quer dizer que,
embora o sujeito seja efetivamente livre em cada momento para escolher qualquer curso de ação possível
(pois, por definição, ninguém escolhe o impossível, a não ser que não se saiba que a escolha é
impossível), caso se tenha uma boa descrição do cenário e das inclinações dele, é possível que se diga o
que esse indivíduo escolherá. Por exemplo, de vez em quando aparece uma criança que, entre sorvete e
brócolis, escolhe o brócolis. Mas em noventa por cento dos casos, as crianças escolherão o sorvete. Então,
dadas as informações suficientes, é possível que antecipemos a maior parte das ações de qualquer pessoa.
Porém, isso não quer dizer que elas não sejam livres. Ela só não seria livre, se a ela não fossem dadas as
alternativas antes de escolher.

Aluno: Isso quer dizer que a pessoa não é livre de suas inclinações pessoais, mas é livre em tomar as
decisões de acordo com as inclinações que possui?

Gugu: Não exatamente, porque a pessoa pode mudar as preferências dela deliberadamente. As pessoas
podem se educar para ter um gosto ou desejos diferentes. O que constitui a liberdade não é a
imprevisibilidade da escolha. Ainda que a escolha seja perfeitamente previsível, ela foi uma escolha do
sujeito. Mesmo que noventa por cento das crianças escolham o sorvete, são elas que fazem essa escolha!
O fato de que somos capazes de prever o que a pessoa escolherá, não altera a escolha dela. Previsibilidade
não coincide com necessidade. Poderíamos dizer: “Todo mundo, em algum momento de hoje, irá deitar
em alguma cama parar dormir.” Dizer isso não muda o fato de que, na hora em que deitamos em nossas
camas, fomos nós que escolhemos deitar e dormir. Ninguém fez essa escolha por nós. Ao prevermos uma
escolha ou uma decisão de outra pessoa, não estamos determinando aquela escolha ou decisão. Nem
sequer há uma sugestão para que as pessoas durmam. Não há nenhuma relação que modifique ou
influencie nesse resultado. Prever não modifica em nada, não tem nenhuma força causal sobre a decisão, e
não acrescenta informação ao cenário. Temos o poder de influenciar na decisão do outro quando
acrescentamos informações ao cenário, e não quando prevemos o que ele escolherá. Quando dizemos a
alguém que, caso ela escolha “x”, acontecerá “y”, então estamos acrescentando informações ao cenário.
Porém, nesse caso não estamos prevendo a escolha dessa pessoa, mas o efeito necessário que se seguirá
de uma determinada escolha. A escolha de um sujeito só pode ser determinada por aquilo que ele mesmo
pode prever dela. Em última análise, prever que o sujeito escolherá “x” em vez de “y” e prever que se ele
pular o seu corpo cairá no chão é a mesma coisa. Isso não altera o fenômeno de maneira nenhuma.

Retomamos esse assunto na próxima aula. Até a próxima!

Transcrição: Carlos Augusto G. Nascimento, João Neves, Paulo Henrique B. Ribeiro, Rafael V. Vanni
Revisão: Danilo Roberto Fernandes

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