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Pedagogia, Sujeito e Resistências:

Verdades do Poder e Poderes


da Verdade

Ana Godoy
Gláucia Figueiredo
Nildo Avelino
Organizadores

Coedição
Pedagogia, Sujeito e Resistências:
Verdades do Poder e Poderes
da Verdade

Ana Godoy
Gláucia Figueiredo
Nildo Avelino
Organizadores

Curiiba
2013
Coleção Filosofia e Educação
Diretora Científica:
Gláucia Figueiredo

Consultores Editoriais:
Ana Godoy (Universidade Estadual de Campinas – UNI-
CAMP e CCS – Centro de Cultura Social de São Paulo)
Elisete Tomazei – UFSM
Ester Heuser – UNIOESTE
Leonardo Maia - UFRJ
Nildo Avelino – UFPB
Pedro Pagni – UNESP
Renata Lima Aspis - UFMG
Rodrigo Gelamo – UNESP
Samuel Mendonça – PUCCamp
Silvio Gallo - Unicamp
Simone Gallina – UFSM
Walter Khoan - UERJ

Suplentes:
Alberinho Luiz Gallina (UFSM)
César Leite (UNESP)
Lucio Hammes (UNIPAMPA)
Remi Schorn (UNIOESTE)
Feudalismo Acadêmico
Nildo Avelino1

Introdução
Falar em “Feudalismo Acadêmico” pode provocar,
num primeiro momento, a impressão de um certo anacro-
nismo, na medida em que coloca em discussão uma noção
bastante arcaica. Ainal, sabe-se que o feudalismo foi um ipo
de relação social ou de sistema social que preponderou nas
sociedades, sobretudo européias, entre o século V e o sécu-
lo XIV. Daí ao ouvir-se a palavra feudalismo a primeira coisa
que vem ao espírito é uma realidade remota, longínqua e
obsoleta. Este desconforto advindo da imagem de uma coisa
aniquada evocado pela palavra feudalismo, é ainda nutrido
por uma espécie de sombra sobre ele projetada: é a som-
bra da barbárie, do que é primiivo, da estupidez e da cadu-
cidade. Não se pode esquecer que Augusto Comte (1973),
ao descrever o que ele chamou de marcha da civilização no
seu Curso de Filosoia Posiiva, caracterizou a época em que
exisiu a insituição feudal como um estágio “teológico e ic-
ício”; para Comte, trata-se de uma época cujo pensamento
pertenceu à infância do Homem, em que a Humanidade es-
teve mergulhada nas trevas da Idade Média.
Ao localizar a Idade Média na noite dos tempos,
Comte não fazia outra coisa que reproduzir o grande mito da

1 Professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da


Paraíba (UFPB), pesquisador associado ao Centre Max Weber da Université
de Lyon 2, pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), integrante do Centro de Cultura
Social. E-mail nildoavelino@gmail.com
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Renascença: o famoso esquema triparido através do qual a


história nos foi ensinada. Neste esquema, isto que nós cha-
mamos de razão, de pensamento racional, de racionalismo,
teria habitado o mundo grego-romano até o século V d.C,
desaparecendo em seguida repeninamente por um período
de mil anos para somente reaparecer por volta do século XIV
naquilo que é conhecido sob o nome de Renascença. Encon-
tra-se igurado neste esquema triparido do racionalismo:
1º) Razão: do séc. V a.C ao séc. IV d.C – Cultura grego-roma-
na; 2º) Ignorância: do séc. V ao séc. XIV d.C – Idade Média;
e inalmente, 3º) Razão: a parir do séc. XV – Renascimento,
(MURRAY, 2002). Nesta triparição histórica da Razão, a Ida-
de Média aparece como uma espécie de miolo vazio e sem
conteúdo, algo como uma mancha negra na alvura do racio-
nalismo ocidental. No interregno de aproximadamente mil
anos, localizado entre a cultura grego-romana e o Renasci-
mento, o mundo medieval foi situado e criada em torno dele
a alegoria do eclipse da razão, da noite do saber, do sono das
inteligências. Desde muito cedo aprendemos na escola que a
Idade Média, imersa na supersição teológica, foi a idade do
erro, a idade das trevas, a idade da ignorância.
Deste modo, aquilo que se pretende com o ítulo
“Feudalismo Acadêmico” é sustentar precisamente o contrá-
rio: penetrar nas trevas da Idade Média para procurar saber
qual valor heurísico pode ter a noção de feudalismo numa
discussão sobre a universidade. Enim, em que medida a no-
ção de feudalismo, com toda sua carga negaiva, pode ser
empregada como hipótese de trabalho num estudo sobre a
universidade e para quais inalidades? Porque colocar lado a
lado a “sombra” feudal, as “trevas” do feudalismo, e o “bri-
lho” acadêmico?
Existem algumas razões para falar em feudalismo
acadêmico. A primeira delas, certamente, é que foi no inte-
rior das trevas do feudalismo que a Universidade, tal como
a conhecemos, emerge, é gestada, vem a luz. Portanto, co-
mecemos por precisar um pouco a noção: feudalismo é o
nome que se dá a um conjunto de laços sociais que unem

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dentro de uma hierarquia os membros de uma sociedade.


Estes laços sociais próprios do feudalismo são consituídos
concretamente pelo beneício que o senhor feudal concede
ao seu vassalo em troca, obviamente, de um certo número
de serviços; mas em troca também – e este é o elemento
considerado signiicaivo nesta discussão – de um sermão de
idelidade. Assim, concretamente falando, o feudalismo era
consituído pelo feudo entendido como complexo de direi-
tos: terras, bens, rendas etc., e por práicas de reverência, de
veneração, de respeito, em suma, isto que icou conhecido
como relações de vassalagem (WEBER, 1999).
Práicas de veneração, reverência, respeito: estes são
os elementos básicos, concretos, que compõem o contrato
de vassalagem. Este contrato tomava a forma de um peque-
no ritual muito signiicaivo. Segundo Le Gof (2004:71), “o
vassalo coloca suas mãos unidas sob as de seu senhor, que as
envolve irmemente, e exprime sua vontade de entregar-se
ao senhor pronunciando a seguinte fórmula: ‘Senhor, torno-
-me vosso homem’”. Este curioso ritual do contrat vassali-
que selava a obediência do vassalo para com seu senhor.
Aqui é preciso mencionar, como foi assinalado por
Weber (1999:298 et seq.), o quanto a práica de submissão
da vassalagem é disinta do ipo de submissão própria ao
regime de dependência escravocrata. A vassalagem é uma
relação contratual “livre” e estranha ao ipo de subordina-
ção patrimonial do escravismo no qual o escravo é parte do
patrimônio do seu senhor. Precisamente essa relação con-
tratual livre exigiu que as relações de vassalagem fossem re-
gulamentadas por um senimento de dever extremamente
rigoroso organizado sob a forma de relações de idelidade
que são estritamente subjeivas e pessoais, e que eram ob-
jeivadas e ixadas num contrato de direitos e deveres. O
grande paradoxo do feudalismo é que o vassalo foi, em toda
parte, um homem livre.
Trata-se de um aspecto importante, sobre o qual é
preciso deter-se. A caracterísica fundamental que não so-
mente disingue, mas que opõe a dominação feudal à domi-

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nação patrimonial escravocrata, é que nesta úlima o siste-


ma da autoridade assume a forma geral de ordens objeivas
e de deveres administraivos claramente determinados. No
interior desse sistema o escravo era coagido por um conjun-
to prescriivo muito evidente de ordens e proibições diretas
estabelecidas pelo senhor. Em relação à dominação feudal,
o sistema da autoridade assume uma forma muito diferen-
te: a forma de deveres que são subjeivos. Na dominação
feudal existe uma relação de obediência que é pactuada: a
vassalagem assume a forma de uma união corporaiva e de
relações associaivas da qual resultou a dominação políica
mais perene e de extraordinária longevidade que se tem no-
ícia. União corporaiva e relação associaiva quer dizer, fun-
damentalmente, que as pessoas envolvidas estão sujeitas ao
mesmo estatuto ou regulamento. Vê-se, portanto, o quanto
o vassalo se diferenciava do escravo pelas formas da obedi-
ência muito disinta uma da outra: a obediência do escravo
assumia uma forma passiva, o escravo era o elemento passi-
vo na relação de obediência com seu senhor que o possuia
como um patrimônio; já a obediência do vassalo, ao contrá-
rio, assumia uma forma necessariamente aiva na qual ele
era o elemento aivo numa relação de obediência que ele
próprio escolheu, decidiu e declarou voluntariamente esta-
belecer com um senhor, e com o qual ele preserva seu esta-
tuto de homem livre.
Obediência coagida, obediência voluntária: foi esta
úlima que consituiu o alicerce do feudalismo e lhe conferiu
uma duração de aproximadamente mil anos: a longevidade
mais excepcional que uma dominação políica já conheceu.
Um jovem escritor francês, Éienne de La Boéie, admirado
com esta estranha forma de obediência voluntária, escreveu
por volta de 1540 um livro initulado Discurso sobre a Servi-
dão Voluntária. Neste discurso, se perguntava como era pos-
sível a servidão ser voluntária; o que faz alguém obedecer
voluntariamente: “que nome se deve dar a esta desgraça?
Que vício, que triste vício será este: um número ininito de
pessoas não só a obedecer mas a servir (...)? É estranho que

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dois, três ou quatro se deixem esmagar por um só, mas é


possível; poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo.
Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só, ainda
será possível dizer que não querem ou não se atrevem a de-
saia-lo? (...) Quando vemos não já cem, não já mil homens,
mas cem países, mil cidades e um milhão de homens sub-
meterem-se a um só (...) que nome é que isto merece?” (LA
BOéTIE, 1997:19-20) Não pode ser covardia, diz La Boéie,
pois até a covardia tem limite.
Me parece que a resposta à questão de La Boéie
deve ser procurada no fato da dominação feudal ter sido um
ipo de dominação que exerceu uma forte inluência no há-
bito das sociedades através da convicção moral que ela cria-
va. Em que medida seria permiido airmar que a servidão
voluntária foi possível, entre outras coisas, graças ao apelo à
honra e à idelidade pessoal tornadas praicas espontâneas,
moivos consituivos da ação e da conduta dos indivíduos
pelo feudalismo de vassalagem livre? O elemento da subjei-
vidade permite senão responder, ao menos resituar a ques-
tão de La Boéie: o fato de o feudalismo ter sido um sistema
que fez da “idelidade do vassalo” o centro de uma concep-
ção de vida, transformando-a em princípio de conduta que
orientou as mais diversas relações sociais; no feudalismo a
idelidade de vassalagem tornara-se o princípio que orientou
os mais variados aspectos da vida social.
Para se ter idéia da força desta convicção moral que
resultou da vassalagem como princípio de condução da vida,
tem-se o exemplo do guerreiro medieval. Como é sabido, na
Idade Média, neste período que compreende o feudalismo,
não exisiu exército como força armada consituída tal como
conhecidos hoje. O exército é uma invenção moderna, como
também foi uma invenção da modernidade o sujeito que o
integra: o soldado de proissão de quem é exigido um ipo
de obediência cega e mecânica. Na Idade Média o sujeito
encarregado da proteção do senhor feudal é ainda a igu-
ra do vassalo, mas o vassalo guerreiro. Assim, a idelidade
da vassalagem também implicava o dever do serviço militar

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para com o senhor ou para com o príncipe; a vassalagem


foi a forma ípica de garanir forças armadas, de recruta-
mento. A personagem do guerreiro medieval ilustra bem
até onde pôde chegar a força moral da idelidade da vassa-
lagem. Como observou Gros (2006), o guerreiro medieval
era alguém que estabelecia uma relação aiva com a morte,
alguém que arriscava deliberadamente sua própria vida e a
de um outro, aquele que, em suma, desprezava o próprio
insinto de sobrevivência. O que tornou possível ao guerreiro
suprimir o medo, o senimento de lassidão, o esgotamento,
diante da morte? Como é possível desprezar, esquecer, ultra-
passar, vencer a piedade, a repulsa e o temor da guerra e da
morte? Isso foi possível ao guerreiro medieval por meio de
uma excelência e postura moral.
Gros (2006) sugeriu que a idelidade da vassalagem
conferia ao guerreiro medieval uma moral da responsabi-
lidade que, segundo Nietzsche, faz do homem um animal
capaz de fazer promessas. O vassalo é um animal que pro-
mete idelidade ao senhor, e o faz contra o próprio futuro,
desaiando os acasos do desino e as circunstâncias impre-
visíveis, para declarar: eu, que estou falando hoje, prometo
que, daqui a três dias, daqui a três meses, daqui a três anos,
cumprirei com minha tarefa. O vassalo não deve responder
apenas por aquilo que ele é no presente, nem apenas por
aquilo que ele foi no passado, mas deve responder também
por aquilo que ele será no futuro. Neste ato, a responsa-
bilidade é a idelidade do vassalo projetada no futuro; ser
responsável é prometer para o futuro a mesma idelidade
prestada no presente. A idelidade projetada no futuro sob
a forma de responsabilidade, é isto que torna o vassalo um
homem coniável e iel. Por meio da promessa, a idelidade
foi gravada na sua memória e inteligência; foi ixada, tornada
onipresente e inesquecível no seu sistema nervoso e inte-
lectual (NIETZSCHE, 1988). De um tal modo e com uma for-
ça tamanha que possibilitou a existência desta personagem
disposta a morrer e a matar por seu senhor através de uma
promessa de obediência que suspende a própria incerteza

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do tempo.
Deste modo, não por acaso o feudalismo, e não a es-
cravidão, estava desinado a uma duração de aproximada-
mente mil anos no Ocidente: a força da sua perenidade foi
reirada da moral. Sua extensa longevidade deve-se ao fato
de que a dominação feudal, ao contrário da dominação es-
cravocrata, foi uma dominação cuja obediência passava pela
convicção e pelo consenimento; obediência na qual o vas-
salo não se coloca como sujeito passivo, tal como o escravo,
mas era uma obediência que o vassalo teve que efetuar so-
bre si mesmo de maneira aiva. Tratava-se, portanto, de uma
obediência terrivelmente voluntária e pessoal, encarnada no
senido mesmo de ser feita carne, feita corpo, feita homem.
Obediência que não poderia emanar de uma ordem exterior,
de um comando externo; obediência que emana de si mes-
mo.

As origens da Universidade
Foi neste mundo de “servidão voluntária” que a uni-
versidade emergiu. E como é sempre recomendável suspei-
tar das coincidências, seria preciso perceber como o princípio
da vassalagem, tomado como regra de conduta e princípio
condutor da vida em geral durante a Idade Média, funcionou
não nas relações entre senhor e vassalo, mas num outro ipo
de relação: nas relações entre aqueles que, na Idade Média,
eram chamados de magister e scholasicus, mestre e alunos.
A pergunta que é preciso colocar é a seguinte: se é verda-
de que a vassalagem tornara-se um princípio diretor das
relações sociais, como seria possível percebe-la no campo
da educação e do saber? Seria possível isolar o elemento da
vassalagem, considerado, bem entendido, como convicção
de idelidade, como ato de reverência, de veneração e de
respeito, para percebe-lo nas relações com o conhecimento?
Para responder a esta questão é necessário exami-
nar isto que alguns historiadores chamaram de Renascen-

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ça do século XII, acontecimento que consisiu na “revolução


escolar” conhecida sob o nome de Escolásica. Todavia, um
problema inicial se coloca: quase toda tradição ilosóica do
Ocidente considerou a Escolásica submersa no reino da fé
oposto à razão, à verdade, à inteligência. A fé Escolásica,
aquilo que em laim chama-se ides, foi considerada pelo Ilu-
minismo como um tecido de supersições, preconceitos e er-
ros. Foi deste modo que Hegel (2005:374 et seq.) considerou
a Escolásica como a “impostura de um sacerdócio que leva
a termo sua vaidade ciumenta de permanecer só na posse
da inteligência (...) e que, ao mesmo tempo, conspira com o
despoismo. O despoismo é a unidade sintéica, carente-de-
-conceito, do reino real e desse reino ideal”. Em outras pala-
vras, para Hegel a Escolásica enquanto despoismo ideal e
irania das inteligências corresponde ao despoismo real e
políico que iraniza o povo. A Escolásica é o embotamento
da inteligência tanto quanto o poder eclesiásico foi o embo-
tamento da liberdade políica.
Esta equação ignorância-irania em Hegel remete
imediatamente as imagens negaivas da Escolásica, muito
divulgadas sob a forma da fogueira para à qual era condena-
do o pensamento heréico (Giordano Bruno, por exemplo),
ou mesmo sob a forma do famoso Index, o enorme “Índi-
ce de Livros Proibidos” pela Igreja considerados perniciosos
para a doutrina cristã. O belo ilme baseado na obra de Um-
berto Eco, “O nome da Rosa”, ilustra bem o que pode ter sido
este despoismo da inteligência ariculado com o tenebro-
so poder eclesiásico. O ilme narra a história de estranhos
assassinatos de monges ocorridos no ano de 1327 num ve-
lho Mosteiro Benediino italiano cujo acervo era o maior do
mundo. A morte de sete monges trazia em comum o fato de
que as víimas inham sempre os dedos e a língua roxos. E
em seguida descobre-se que as mortes iveram origem na bi-
blioteca e foram causadas pelo veneno colocado nas páginas
de uma obra icícia de Aristóteles sobre o riso, cuja leitura
havia sido proibida. Portanto, a vida era o preço pago pela
tentação do riso.

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Entretanto, meu argumento é que seria preciso se


desfazer desta imagem do despoismo iranizador da inteli-
gência, para fazer valer o mesmo quesionamento feito ante-
riormente ao feudalismo, ou seja: será mesmo que a cultura
Escolásica teria ido a duração de mil anos se ivesse unica-
mente como suporte a fogueira e os tribunais da Santa Inqui-
sição? Será que a extraordinária recepividade que a cultura
Escolásica obteve efeivamente não reirou sua força de ou-
tra parte que não do fogo e do sangue, quer dizer, do des-
poismo? A Escolásica, tal como a relação feudal, não teve
a necessidade de um ipo de obediência aiva como aquela
encontrada na vassalagem: uma obediência que não se es-
tabelece por meio do clarão das fogueiras nem do gemido
das torturas, mas uma obediência voluntária sob a forma da
subjeividade?
Desconio que a extraordinária sobrevivência da cul-
tura Escolásica exigiu muito mais que a quebra dos ossos
e o ardido da carne dos hereges: ela exigiu também uma
sujeição da vontade. Aqui, retomo a airmação de Espino-
sa (2003:86), segundo a qual um poder violento jamais se
agüentou por muito tempo e que, ao contrário, um poder
moderado é sempre duradouro. Espinosa airmou que a
obediência não é tanto uma ação exterior, mas uma ação
interior da vontade: “aquele que decide com pleno conseni-
mento obedecer a todas as ordens de um outro ica comple-
tamente a mando dele. Por conseguinte, o maior poder é o
daquele que reina sobre os ânimos dos súditos.” (Idem:252)
Daí a questão: como a cultura escolásica imprimiu nas inte-
ligências a obediência e a devoção? Por quais meios, além
da fogueira e da tortura, a Escolásica obteve a idelidade de
seus súditos, quero dizer, obteve a veneração, a reverência e
o respeito das verdades e dos saberes exigidos para manu-
tenção do seu reinado?
O surgimento do Renascimento teológico no século
XII responde a uma das mais importantes transformações
culturais já ocorridas no Ocidente (VERGER, 1999; ALESSIO,
2002). Até o século XI o mundo intelectual restringia-se ba-

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sicamente às escolas existentes no interior dos monastérios.


Com a intensiicação do comércio e o crescimento urbano
dos feudos, tem início a criação de novos centros escolares.
Uma nova demanda faz as escolas monásicas, desinadas
exclusivamente ao ensinamento dos monges, passarem para
um segundo plano e cederam lugar para a muliplicação de
escolas ligadas às catedrais e às abadias, fundadas geralmen-
te por clérigos isolados que atuavam como mestres individu-
ais sem o controle da Igreja.
A muliplicação das escolas no decorrer do século XII
não somente alterou profundamente as condições de funcio-
namento da cultura escolar, como diversiicou radicalmente
os ensinamentos prestados até então. Com a transforma-
ção urbana, a práica de ensino é obrigada a atender uma
demanda social em plena expansão. Assim, se nas escolas
monásicas a ênfase era dada as chamadas “artes liberais”
dos pedagogos da aniguidade (o ensino da gramáica, da re-
tórica e da dialéica), que deveriam servir para a leitura da
Sagrada Escritura, agora com o crescimento econômico e de-
mográico das cidades e, sobretudo, com o desenvolvimento
urbano dá-se não apenas um surto na rede de escolas, mas
uma renovação signiicaiva dos conteúdos e dos métodos
de ensino.
Renovação de conteúdos e de métodos. De um lado,
ocorre uma diversiicação dos conteúdos no qual, em vez
de ensinar apenas as artes liberais, a razão é subdividida de
acordo com as carreiras proissionais especializadas. Assim,
de acordo com a situação de rivalidade das proissões, a ra-
zão foi disinguida em razão superior (como a medicina) ou
em razão inferior (como as disciplinas “mecânicas” ou “lu-
craivas”), em razão contemplaiva, em razão práica, assim
por diante. Estes termos designavam sistemas racionais que
não obedeciam nada mais que o temperamento ilosóico
e uma certa racionalidade práica de seu uilizador, e nes-
te senido, estas diversas razões consituíam instrumentos
mais ou menos maleáveis, uilizados com certa margem de
liberdade e de acordo com os gostos, as inclinações e as pro-

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issões.
De outro lado, ocorre ainda uma renovação nos mé-
todos de ensino também decorrente das transformações
urbanas; aqui, a situação foi um pouco semelhante ao que
ocorreu com os soistas na Grécia aniga. Os soistas foram
durante muito tempo considerados as maiores celebridades
do espírito grego (JAEGER, 2001). Hoje o termo soista de-
signa falsário, hipócrita, meniroso, mas na Grécia aniga os
soistas eram os hospedes prediletos das pessoas ricas e po-
derosas e exerceram uma enorme inluência nos rumos da
cidade. Considerados os fundadores da pedagogia, da Pai-
déia grega, os soistas supriam a ausência de uma educação
organizada na medida em que a sofísica, além de outras coi-
sas, foi uma aividade realizada por meio de contratos priva-
dos de ensino estabelecido entre mestre e aluno: os soistas
eram “intelectuais” privados.
Saindo da Grécia aniga, o que ocorre no início deste
século XII da nossa era, é algo semelhante: com a explosão
da rede escolar, o ensino foi centrado na igura do profes-
sor em direção ao qual corriam grandes quanidades de es-
tudantes vindos de toda a Europa para disputar os mestres
mais brilhantes, chegando a segui-los até mesmo quando es-
tes mestres mudavam de cidade. Todavia, o problema é que,
se nem mesmo Platão havia suportado a sofÄstica na Grécia
aniga, imagine-se a Igreja. Com efeito, a muliplicação e a
diversiicação das escolas causavam confusões intoleráveis
para a Igreja: as licenças de funcionamento eram outorgadas
sem o critério necessário; cada qual ensinava ou estudava ao
seu bel prazer misturando, muitas vezes, saberes sagrados
com saberes profanos, por exemplo, misturando direito civil
com direito canônico; e, o que é mais grave, na medida em
que aumentava a celebridade dos mestres privados aumen-
tava na mesma proporção a rivalidade entre as escolas e não
foi raro a ocorrência de conlitos abertos. Desta maneira, foi
preciso acabar com esta anarquia, e para isso surge a Univer-
sidade.
A Universidade surge para acabar com a farra dos

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saberes e para restabelecer a ortodoxia e a hierarquia das


disciplinas, garanias do primado da teologia. Sugeri que foi
necessário algo mais além de fogo e de sangue para o esta-
belecimento da obediência escolásica; este algo mais foi a
Universidade: aqueles que não morreram na fogueira nem
enlouqueceram nas torturas foram desinados a uma vida
obediente na Universidade. Consequentemente, se a foguei-
ra e a tortura foi o desino dos hereges e dos insubmissos, a
Universidade foi o desino dos obedientes. E se a Escolási-
ca conheceu a extraordinária aceitabilidade da maioria dos
intelectuais, foi porque a maioria preferiu uma vida de obe-
diência na Universidade, e não a morte dolorosa – algumas
vezes heróica – na fogueira e na tortura. Morrer insubmisso
ou viver obediente: foi esta a escolha que esteve em jogo na
Universidade.

Ortologia dos saberes


A Universidade, esta invenção que acolheu criaturas
obedientes subtraídas ao fogo e à roda, foi uma das gran-
des criações da Idade Média. Sua origem está relacionada
ao progresso urbano e ao boom escolar da época; neste
contexto, a Universidade emerge como insituição corpora-
iva para a práica do que hoje é chamado ensino superior.
A primeira Universidade surge em Paris, criada por volta de
1215, inicialmente como federação de escolas na qual cada
mestre exercia autoridade sobre seus alunos (VERGER, 1999;
2002). Mas bem rápido estas escolas foram agrupadas por
disciplinas em faculdades: faculdade de artes, de medicina,
de direito canônico, de teologia. Cabia a cada faculdade o
papel de organizar uniformemente os estudos e de zelar pela
ortodoxia do ensino, de modo que a Universidade é antes
de mais nada uma organização coorporaiva que sedentari-
za mestres e alunos, ixando-os e separando-os em espaços
especíicos. Estes espaços especíicos são as universidades:
corporações intelectuais no interior das quais a cultura Es-

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colásica reina plenamente sem ser perturbada. O próprio


nome universitas em laim tem o signiicado de corporação,
de conjunto, de todo. Assim, o que está em jogo na universi-
dade é ainda o mesmo ipo de união coorporaiva que nesta
mesma época une vassalo e senhor. Na universidade os di-
versos saberes foram agrupados em disciplinas, depois em
faculdades, e a Universidade é este conjunto de faculdades
e aquilo que dele resulta: um saber universitário fechado so-
bre si mesmo que se arroga o privilégio de resumir e sintei-
zar todos os “verdadeiros” saberes; um saber entrincheirado
atrás de seus próprios textos que despreza qualquer contri-
buição vinda de fora de seus muros e fronteiras. Este saber
autênico, o saber universitário, jamais poderá ser encontra-
do para além dos limites da sala de aula. A universidade, e
somente ela, detém a totalidade deste saber cuja autoridade
estende-se ao mundo inteiro.
O que é curioso é que a cultura escolásica, esta cul-
tura universitária fechada e especializada, organizada de
modo coorporaivo, hierarquizado e unitário, tenha sido
alvo de críicas desde sua origem. Alguns escolásicos diziam
que justapor saberes tão diferentes no seio de uma única
corporação e que fabricar um único corpo com partes de se-
res tão heterogêneos, era criar uma monstruosidade inte-
lectual. Assim, desde seu princípio o saber universitário foi
criicado por ser uma unidade não natural, uma reunião de
formas heterogêneas de saber. E isto nos mostra como essa
reivindicação e essa exigência, tornada obsessiva em nossos
dias, de Interdisciplinaridade, Pluridisciplinaridade, Mulidis-
ciplinaridade, Transdisciplinaridade, é no fundo uma velha
questão colocada desde o século XII. Mas é uma questão
absolutamente ingênua, uma vez que a universidade não é
simplesmente uma organização coorporaiva do saber, ela é
sobretudo uma operação no pensamento, um ipo de fun-
cionamento da razão, um ipo de práica especíica do saber.
Assim, o que importa não é tanto a organização mais ou me-
nos autoritária dos saberes, mas importa descobrir qual é,
no plano mesmo do saber, o nível mais elementar em que a

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obediência é exercida.
Se existe, como airmou Foucault (2001:805), “uma
lógica tanto nas insituições quanto na conduta dos indiví-
duos e nas relações políicas (...), uma racionalidade mes-
mo nas formas mais violentas. [E sendo] o mais perigoso na
violência a sua racionalidade.” Então, a forma efeivamente
perigosa da obediência não está na insituição, mas no pla-
no mesmo da lógica por meio da qual ela opera. Trata-se,
portanto, de estudar, além da insituição universitária, uma
outra unidade bem mais soisicada e bem mais impercepí-
vel elaborada pela cultura escolásica. Esta unidade residiu
inteiramente nas questões de método, ou seja, na invaria-
bilidade das regras e das técnicas que o escolásico deveria
obrigatoriamente observar quando ivesse que estabelecer
relações de conhecimento. Estas regras, a Escolásica as re-
irou da obra de Aristóteles initulada Organon, que signi-
ica instrumento e por isso mesmo deine bem o conceito
e a inalidade da lógica aristotélica, que era a de fornecer
os instrumentos mentais necessários para realizar qualquer
ipo de pesquisa. A lógica é a parte da ilosoia aristotélica
que considera a forma que deve ter qualquer ipo de dis-
curso que pretenda demonstrar algo; mostra como procede
o pensamento quando pensa, qual é a estrutura do raciocí-
nio, quais os seus elementos, como é possível fornecer de-
monstrações, que ipos e modos de demonstrações existem,
como e quando são possíveis (REALE, 2002).
Ao deinir desta forma a lógica, Aristóteles estabe-
leceu um princípio de subordinação no pensamento a par-
ir da separação entre discursos demonstraivos e discursos
não-demonstraivos, discursos lógicos e discursos ilógicos.
Deinindo o discurso lógico como sendo unicamente porta-
dor de um enunciado que exprime um julgamento e um juí-
zo, excluiu-se todos os demais discursos como ilógicos: todas
as frases que exprimem pedidos, invocações, exclamações,
foram colocadas fora da lógica, e esta massa de discursos
desituídos de lógica foi classiicada ou como discurso retóri-
co ou como discurso poéico.

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Todavia, o problema é que, historicamente falando, o


que é um discurso sem lógica? É um discurso absurdo, irra-
cional, contraditório, mágico, não cieníico, louco. E sabe-se
qual foi o desino destes discursos no Ocidente: seu desino
foi a perseguição e a morte de bruxas, adivinhos e alquimis-
tas na Idade Média; a segregação da loucura a parir da Ida-
de Clássica; o fuzilamento de poetas, aristas e anarquistas
nos regimes comunistas; o encarceramento de comunistas e
anarquistas nos regimes nazi-fascistas. Aristóteles certamen-
te não podia se dar conta das conseqüências políicas que
poderiam resultar da sua classiicação lógica dos discursos.
Mas o fato é que estas conseqüências se deram.
Para Aristóteles o discurso lógico é somente o dis-
curso que está ligado a uma tecnologia de demonstração, é
o discurso cieníico, o discurso universalmente válido. As-
sim, a Escolásica retoma os princípios da lógica aristotélica
e os generaliza, impondo-os a todos os outros campos do
saber: ao direito, à medicina, à teologia. Em cada um destes
campos de saber, a lógica vai subordinar e excluir o que não
lhe é conforme, excluir o que pode exisir no pensamento
de absurdo, de irracional, de contraditório, para só extrair
e consagrar como único discurso válido o discurso realmen-
te verdadeiro, ou seja, o discurso conforme a lógica. Desta
maneira, a lógica foi nomeada a polícia dos discursos pela
Escolásica, desempenhando a mesma função que a fogueira
e a tortura iveram para os corpos, todavia aplicadas no pla-
no do conhecimento. A lógica foi a fogueira da razão. é este
método, esta maneira de proceder, que consituiu a unidade
Escolásica, da qual herdamos inteiramente.
Esta polícia do pensamento desempenhada pela lógi-
ca é quase sempre considerada como simples técnica formal
de conhecimento, como aquilo que normalmente é chamado
de rigor cieníico. Quando na realidade o método, a lógica,
é bem mais que isto. A Escolásica fez da lógica o princípio
diretor, o princípio de autoridade que impõe práicas de sub-
missão, de respeito, de veneração, de reverência. Em outras
palavras, a lógica impõe práicas de vassalagem toda vez que

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se esiver frente a certos textos, a certos autores, a certos


discursos, a certas verdades por ela consagradas. E pouco
importa se as verdades servem à direita ou à esquerda, se as
verdades sejam as verdades do socialismo, do comunismo
ou do anarquismo: toda vez que a verdade esiver consagra-
da pela lógica, pelo método, seja quem for que a sustente, o
fará a parir de uma relação de vassalagem.
Depois de tudo, percebe-se como as chamas que
consumiram os corpos não teriam sido suicientemente ei-
cazes se os seus clarões não houvessem releido o brilho da
obediência no plano mesmo do pensamento. E este aspec-
to é reforçado pela curiosa história da famosa biblioteca de
Alexandria. Dizem os historiadores que no século VII d.C, o
governador muçulmano de Alexandria perguntou ao seu ca-
lifa Omar o que deveria ser feito da célebre biblioteca reple-
ta de papiros originais gregos, na época a maior biblioteca
do mundo. Como se sabe, Alexandria foi uma das cidades
mais importante do Império de Alexandre o Grande, dai seu
nome; foi por muito tempo a capital do Egito até ser con-
quistada pelos muçulmanos. Alexandre o Grande e alguns de
seus sucessores foram admiradores da ilosoia e da cultura
grega; o próprio Alexandre teve por mestre ninguém menos
que Aristóteles. Em todo caso, à pergunta do governador, o
califa Omar responde que os livros conidos na biblioteca de
Alexandria só poderiam ou conirmar o Alcorão, e portanto
são supérluos, ou contradizê-lo, neste caso são errôneos.
Devem, portanto, ser queimados. Foi desta forma que os for-
nos de Alexandria arderam ininterruptamente durante seis
meses, alimentados pelas obras da célebre biblioteca
Como bem observou Murray (2002), ao contrário do
califa, os Padres da Igreja não foram tão ingênuos. Em vez
de promoverem o fogo ininterrupto dos hereges, eles ari-
cularam as fogueiras da ortodoxia com uma práica de do-
minação bem mais soisicada e duradoura: promoveram
uma ortologia da razão (FOUCAULT, 1999). Até agora, a qua-
se absoluta maioria das críicas e das queixas, quase toda
atenção foi direcionada exclusivamente contra a ortodoxia,

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o dogmaismo e a intolerância do pensamento; assim, quase


ninguém ainda se ocupou do enorme processo ortológico ao
qual o pensamento foi submeido por mais de oito séculos.
Para precisar mais as coisas, digamos que, se por or-
tograia designa-se o conjunto das regras que estabelecem
a graia correta, então, digamos que a ortologia designa o
conjunto das regras que estabelecem a justa logia, o verda-
deiro logos, em suma, o pensamento e o discurso corretos:
orto, do grego orthós, designa reto, direito, correto, normal,
justo; designa também o princípio, a origem de algo, o sur-
gimento de um astro. Desta forma, o enorme processo orto-
lógico promovido pela Escolásica estabeleceu para o pen-
samento um padrão de similaridade das diferenças entre os
saberes. A ortologia é o processo que reduz a singularidade
das diferentes espécies de saberes numa única espécie ho-
móloga. Portanto, a ortologia é a ciência ou a arte de fazer o
pensamento pensar corretamente em obediência à lógica.
A ortologia dos saberes foi o que permiiu à Igreja
economizar petróleo. Por que sustentar indisintamente a
ortodoxia, a censura, a proibição de certos conteúdos de
saber, exigia frequentemente ações economicamente one-
rosas e poliicamente perigosas: as fogueiras não só inham
um alto custo aos cofres da Igreja, como também seu ritual
provocava, algumas vezes, a revolta popular toda vez que o
condenado sustentava uma postura corajosa frente os inqui-
sidores (Giordano Bruno, por exemplo). Assim, a práica da
ortodoxia coninha muitos inconvenientes e provocava mui-
tos atritos que minavam a própria autoridade da Igreja. Foi
por esta razão que, ao longo dos anos, a práica da ortodoxia
foi diminuindo paulainamente até chegar na sua abolição
formal na modernidade. Todavia, isso só foi possível graças
a esta outra práica sistemáica e constante de ortologização
dos saberes que consiste em não mais censurar, mas esta-
belecer um controle minucioso sobre os saberes para verii-
car se eles estão conformes a lógica e ao método justo. Não
mais proibir, mas, uma vez normalizados e disciplinados, fa-
zer o saber circular livremente, fazê-lo expressar-se, fazê-lo

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falar através da educação escolar e universitária. Percebe-se


que se na ortodoxia a obediência imposta é exterior ao su-
jeito do conhecimento, na ortologia a obediência é exercida
pelo próprio sujeito do conhecimento: é o próprio sujeito de
conhecimento que, na medida que pensa e fala, estabelece
sua própria obediência às regras da lógica e do método; é o
próprio sujeito que é e que exerce a polícia de seu próprio
conhecimento; em obediência à lógica, ele segrega, ele ex-
clui e nega o que pode exisir de ilógico e de absurdo em
seu próprio pensamento. Com isso, se a ortodoxia foi a disci-
plinarização dos corpos, a ortologia é a disciplinarização e a
normalização dos saberes. Portanto, não foi o Iluminismo do
século XVIII quem jogou a úlima cartada contra o dogmais-
mo: sua abolição já estava dada em germe desde o século XII
pela ortologia dos saberes.
As sociedades liberais e democráicas vangloriam-se
de haver vencido a ortodoxia da Igreja, os dogmas religiosos
que torturavam a razão, enim, de terem vencido a intole-
rância do pensamento eclesiásico. Sustentam com orgulho
o mito renascenista e a alegoria iluminista da dissipação das
trevas pelas luzes da Razão, do banimento do obscuranis-
mo pela marcha da ciência. Com esta alegoria, as sociedades
liberais fazem crer que graças a sua forma políica não hou-
ve somente um liberalismo econômico, mas exisiu também
um liberalismo epistemológico, um liberalismo do conheci-
mento que é complementar e correspondente ao liberalis-
mo econômico. O contrário também é verdadeiro: dizem os
liberais que toda vez que regimes autoritários interferiram
no liberalismo econômico, na liberdade de comércio, na livre
circulação, enim, no mercado, neste momento foi igualmen-
te revivida a velha ortodoxia da igreja e novamente a velha
sombra do pensamento dogmáico asixiou uma vez mais
a liberdade de pensamento. Veja-se, dizem, os campos de
concentração como lugar desinado aos livres pensadores e
os livros queimados em praça pública.
Mas o que faria o liberalismo, guardião do livre mer-
cado e do pensamento supostamente liberto das amarras

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da ortodoxia, se suas verdades fossem quesionadas em sua


própria lógica? O que fariam os liberais quando a maioria das
pessoas não mais extraíssem as suas razões de viver das ver-
dades do liberalismo? O que fariam quando, enim, o poder
da verdade liberal perdesse sua eicácia no pensamento?
Neste momento, eles farão valer a verdade do poder. Como
escreveu um historiador da ciência, Paul Feyerabend (1993),
na história, toda vez que velhas formas de argumentação se
revelaram demasiado fracas, os defensores do status quo fo-
ram obrigados a recorrer a meios mais fortes e mais “irracio-
nais”. É então que, diz Feyerabend, até o mais puritano dos
racionalistas é forçado a deixar de raciocinar para uilizar a
coerção toda vez que suas razões perdem as condições psi-
cológicas, ou melhor, perdem a força de obediência que as
torna eicazes e capazes de exercer inluência sobre os ho-
mens.
Na sua luta acirrada contra a ortodoxia, o liberalismo
conservou zelosamente o regime de ortologia dos saberes. E
se o fez foi porque é precisamente a ortologia o que confe-
re hegemonia ao seu pensamento e garante duração ao seu
poder, do mesmo modo como foi a ortologia o que garaniu
a duração milenar da dominação eclesiásica. Esta mesma
ortologia, herdada do século XII e cultuada pelo liberalismo,
é ela ainda o que faz com que hoje a práica universitária seja
uma práica de vassalagem em relação à verdade, tornando
os universitários seus principais vassalos.
Esta airmação aparentemente paradoxal, pode
ser perfeitamente plausível. No seu romance initulado Os
Demônios, Dostoievisk uilizou o termo lacaiagem do pen-
samento para descrever a ilosoia de cão de guarda, para
descrever a reverência fervorosa que os niilistas russos pres-
tavam ao pensamento: ao se fazerem defensores ardorosos
de suas razões, os niilistas tornaram-se os lacaios de seu pró-
prio pensamento (cf. MONTEIRO, 2010). Pois bem, porque
então, em menor ou maior grau, não seria possível dizer que
a cultura escolar e universitária de nossos dias não estabele-
ce com o pensamento uma relação de vassalagem por meio

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da ortologia dos saberes? Trata-se de uma questão que tem


o efeito de colocar sob suspeita certo número de ações bas-
tante nobres realizadas no interior da Universidade. Assim,
ao anarquismo existente na universidade, às iniciaivas de
universidade e escola livre ou libertária, às iniciaivas de re-
formas no ensino, a tudo isso seria preciso colocar a seguinte
questão: qual é o regime ortológico no interior do qual vocês
falam e no interior do qual lhes é unicamente permiido fa-
lar? É esta a questão que é preciso colocar para estas prái-
cas nobres e honradas no interior da academia.

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