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Em outra importante obra, publicada em 1912, As Formas Elementares da Vida Religiosa, E.

Durkheim propõe a elaboração de uma teoria


geral da religião fundamentada nas formas mais simples e primitivas das instituições religiosas. Durkheim acredita, assim, que se possa
apreender a essência de um fenômeno social observando suas formas mais elementares. Por isso parte do estudo do totemismo nas tribos
australianas, chegando à conclusão de que os homens adoram uma realidade que os ultrapassa, que sobrevive a eles, mas que esta
realidade é a própria sociedade sacralizada como força superior. Nem as forças naturais, nem os espíritos, nem as almas são sagradas por
si mesmas. Só a sociedade é uma realidade sagrada por si mesma. Pertence à ordem da natureza, mas a ultrapassa. É ao mesmo tempo
causa do fenômeno religioso e justificativa da distinção entre sagrado e profano. Para Durkheim, qualquer crença ou prática religiosa é
semelhante às práticas totêmicas.
Mas por que a própria sociedade torna-se objeto de crença e culto? Durkheim explica: "De maneira geral, não há dúvida de que uma
sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, unicamente pela ação que ele exerce sobre eles, a sensação do divino;
porque ela é para os seus membros o que um deus é para os seus fiéis. Um deus, com efeito, é antes de tudo um ser que o homem
imagina, em determinados aspectos, como superior a si mesmo e de quem acredita depender. Quer se trate de personalidade consciente,
como Zeus ou Javé, ou então de forças abstratas como as que estão presentes no totemismo, o fiel, tanto num caso como no outro,
acredita-se obrigado a determinadas maneiras de agir que lhe são impostas pela natureza do princípio sagrado com o qual se sente em
relação. Ora, a sociedade também alimenta em nós a sensação de contínua dependência. Como tem natureza que lhe é própria, diferente
da nossa natureza de indivíduo, ela visa a fins que lhe são igualmente especiais: mas, como só pode atingi-los por nosso intermédio,
reclama imperiosamente nosso concurso. Ela exige que, esquecidos de nossos interesses, nos tornemos seus servidores e nos impõe toda
espécie de incômodos, de privações e de sacrifícios sem os quais a vida social seria impossível. É por isso que a cada instante somos
obrigados a nos submeter a regras de comportamento e de pensamento que não fizemos nem quisemos, e que às vezes são até contrárias
às nossas tendências e aos nossos instintos fundamentais.
Todavia, se a sociedade só obtivesse de nós essas concessões e esses sacrifícios por imposição material, não poderia despertar em nós
senão a idéia de força física à qual devemos ceder por necessidade, e não a idéia de força moral do gênero das que as religiões adoram.
Mas na realidade, o domínio que ela exerce sobre as consciências vincula-se muito menos à supremacia física de que tem o privilégio do
que à autoridade moral de que está investida. Se nos submetemos às suas ordens, não é simplesmente porque está armada de maneira a
triunfar das nossas resistências, é, antes de tudo, porque constitui o objeto de autêntico respeito"i[18].
1. Malinowski - Método: o funcionalismo 
a. O funcionalismo: “A visão funcional da cultura :apóia-se no princípio de que em todo tipo de civilização, todo costume, objeto
material, idéia e crença preenchem alguma função vital, tem alguma tarefa a cumprir representa indispensável parte de um todo
em movimento 
b. sete necessidades básicas do homem: nutrição, reprodução, comodidades físicas, segurança, lazer, movimento e crescimento.
Estas necessidades individuais se satisfazen pelas instituições culturais e sociais.. 
c) Antropologia: sociologia compreensiva. Estudar entendendo o ponto de vista do outro a partir de pesquisa empírica e não de
pressupostos gerais e abstratos.
 
 As condições iniciais do Kula 
a) sociedade matrilinear. 
b) produção abundante voltada à ostentação. 
c) Sistema complexo de diferenciação social  
d) poder: comunidade sempre subordinada à autoridade de um chefe ou líder.
 
 3. Formas de alocação dos recursos sociais 
a. Variações nas diferentes sociedades: Polanyi. 
b. Aqui a base é o princípio da reciprocidade, que não se expressa formalmente no dinheiro e não tem medida objetiva (trabalho
ou utilidade)
4. Comparação com mercadoria.  
 
Medida de valor 
Reciprocidade 
Desencantamento 
Troca ritualizada 
Despersonalização das relações sociais 
Troca personalizada 
Mercadoria 
Kula
  
5. Encantamento do mundo 
a. Função social decisiva da magia. 
b. Sociedade tradicional 
c. Junção entre iniciativa econômica e ritual mágico. 
d. Caráter ritual das trocas é próprio de sociedades tradicionais, apenas? 
e. Crítica à visão tradicional do homem primitivo.
Bronisław Kasper Malinowski (Cracóvia, 7 de Abril de 1884 — New Haven, 16 de Maio de 1942) foi um antropólogo polaco. Ele é
considerado um dos fundadores da antropologia social, também conhecida como a escola funcionalista. Suas grandes influências incluiam
James Frazer e Ernst Mach.
Segundo o antropólogo Ernest Gellner, Malinowski tomou uma posição original em relação aos conflitos de idéias do seu tempo. Ele não
repudiou o nacionalismo, uma das ideologias nascentes e marcantes do século XIX. Mas ele fusionou o romantismo com o positivismo de
uma nova maneira, tornando possível investigar as velhas comunidades mas ao mesmo tempo recusando conferir autoridade ao passado.
Ele rejeitou a especulação evolucionista e a manipulação do passado para fins do presente, pecados vulgares do seu tempo.
Sem dúvida, a principal contribuição de Malinowski à antropologia foi o desenvolvimento de um novo método de investigação de campo,
cuja origem remonta à sua intensa experiência de pesquisa na Austrália, inicialmente com o povo Mailu (1915) e posteriormente com os
nativos das Ilhas Trobriand (1915-16, 1917-18).
O valor (moral) da troca
Reflexo de uma complexa demonstração social, a troca de presentes no Natal marca o vínculo entre amigos e familiares e a
importância dos rituais coletivos
A partir de novembro as vitrines decoradas das lojas nos avisam que o Natal está chegando. O sinal comercial está dado. Quanto mais se
aproxima a data dessa reunião familiar, mais evidente o frenesi de consumo. Somos tomados pela angústia de não concluir as compras a
tempo e de não escolher os presentes mais apropriados para cada pessoa. Por que esse estado de espírito acompanha um evento em que
deveriam coexistir o prazer de dar e o de receber?

De fato, esse período não é somente o de uma corrida aos presentes, mas, sobretudo, o momento em que se enunciam - explícita ou
implicitamente - os vínculos ou a ausência deles. A escolha de uma lembrança e o momento em que é oferecida participam de uma
complexa demonstração social por meio da qual ocorrem múltiplas formas de troca.
É isso que torna interessante o estudo deste momento particular para a compreensão das relações familiares e sociais.

Na troca de presentes reside o vínculo social, e nesse aspecto nossa sociedade não é diferente de outras. Os primeiros antropólogos
ficaram fascinados com as semelhanças observadas nos sistemas de trocas de distintas sociedades, e alguns chegaram até mesmo a
considerar a troca como fundamento de toda sociedade.

Duas das melhores descrições de formas de troca encontradas na literatura antropológica referem-se ao kula, estudado pelo etnólogo
polonês Bronislaw Malinowski, em 1922, e ao potlatch, observado pelo antropólogo alemão Franz Boas, em 1899.

O kula é um sistema intertribal de trocas praticado na Melanésia e existente ainda hoje, envolvendo transações locais e em todo o
arquipélago. Colares e braceletes de conchas, oferecidos com um certo intervalo de tempo, percorrem depois um mesmo circuito fechado,
mas em sentido inverso. Após certo período, os objetos recebidos são repostos em circulação; seu valor reside na continuidade da
transmissão. A posse provisória fornece prestígio e renome. Potlatch, por sua vez, significa dádiva ou dar e é parte do contexto cerimonial
das populações ameríndias da costa noroeste da América do Norte.

O termo designa manifestações organizadas  em casamentos e funerais, por exemplo, e em situações de rivalidade entre chefes que
tentam manter sua posição social. Bens de prestígio (principalmente tecidos) são entregues e refeições são oferecidas por um hóspede a
seus convidados; isso permite que um indivíduo adquira ou mantenha influência política e posição social. O donatário tem a obrigação de
retribuir ao doador o equivalente ao que foi recebido.

A primeira forma de troca mencionada, o kula, foi qualificada por Marcel Mauss, fundador da antropologia francesa, de "fenômeno social
total". O kula e o potlatch estiveram no centro da análise publicada por Mauss entre 1923 e 1925, intitulada Ensaio sobre a dádiva - Forma
e razão da troca nas sociedades arcaicas. Nessa obra, ele formulou a regra fundamental da troca: uma tripla obrigação que consiste em
dar, receber e retribuir. Essa norma permite, em todas as sociedades, o estabelecimento e a manutenção de relações sociais. Assim,
quando entramos em um sistema de trocas, somos inseridos em um ciclo do qual é difícil sair sem prejuízo social: renunciar à reciprocidade
pode levar à ruptura do vínculo. É claro que o presente é também um instrumento de poder, uma vez que pode ser impossível retribuir o
que recebemos. Nesse caso, assumimos o papel de eternos devedores, a menos que recusemos receber.

O lugar central da dádiva nas sociedades tradicionais levou alguns antropólogos a opor as sociedades de dádiva às de mercadorias, ou
ainda, as tradicionais às industriais, sendo que nestas últimas as trocas de mercadorias por meio do dinheiro desempenham papel
fundamental. Essa oposição, que esquematiza as relações de troca, foi criticada. É difícil hoje sustentar essa diferença: dádiva e
mercadoria estão, em nossa sociedade, estreitamente ligadas, sem que a primeira possa ser considerada um vestígio arcaico. Elas podem
até mesmo ser intercambiáveis, como a moeda que é às vezes dom e outras, mercadoria. Da mesma forma, em nossas sociedades a
mercadoria pode ser posta a serviço do dom, como durante o Natal.
SINAL DE COMUNHÃO
Podemos considerar o Natal um ritual coletivo. Ainda que nem sempre se atente para seu teor religioso, a data é sagrada e tem referência
mítica. Segundo o fundador da sociologia francesa, Émile Durkheim, a experiência do sagrado é a de uma comunhão com o grupo. O grupo
pode ser a sociedade em que vivemos, mas também um meio mais restrito, como a família. Ao celebrarmos essa festa, exprimimos o fato
de pertencermos a uma comunidade, a uma família: aqueles que se recusam a participar são reprovados e qualificados de anti-sociais.
Nessa data, o isolamento e a solidão tornam-se mais insuportáveis. Além da sua dimensão coletiva, o conteúdo desse ritual está ligado a
um certo número de valores ideológicos, como a democracia e a igualdade; assim, são organizadas celebrações em todo o mundo,
integrando pessoas habitualmente marginalizadas, como moradores de rua, por exemplo.

O Natal celebra uma utopia familiar; é a sacralização de um modelo normativo, o da família nuclear. Todas as pessoas que não estão em
conformidade com esse modelo devem dissimular sua condição. Assim, os pais esforçam-se para reunir todos os filhos nessa ocasião. Os
solteiros se perguntam onde passarão a festa. E a distância entre utopia e realidade leva alguns a considerar esse dia como o mais horrível
do ano.
Também é preciso salientar a especificidade de nosso sistema de parentesco, que os antropólogos qualificam de indiferenciado. A
distinção entre os sistemas se exprime sobretudo nas regras de filiação, de herança e de residência. Contrariamente às sociedades
patrilineares (os gregos da Antigüidade, os toubous da Nigéria) ou às matrilineares (os ashantis de Gana ou os iroqueses da América do
Norte), nas quais não é possível a escolha de parentes, nossas sociedades apresentam um tecido familiar em que podemos privilegiar
certas relações.

Nós somos, por exemplo, levados a estabelecer relações com a família de nosso pai e com a de nossa mãe, mas podemos fortalecer
algumas dessas relações e não outras. A troca de presentes permite por vezes manter relação com membros de nossa família que vemos
apenas raramente, ou, ainda, compensar o fato de não podermos festejar a passagem de ano com eles. Assim, ao lado da obrigação do
ritual coletivo e da necessidade de manter vínculos mediante a troca de presentes, dispomos de certa liberdade nessa troca, que é própria
das sociedades individualistas.

Todo ano temos a possibilidade de reavaliar o lugar de cada um, inclusive o nosso, na rede familiar e de amigos. Mas essa liberdade gera
ansiedade e stress, uma vez que somos levados a reconsiderar o conjunto de nossos vínculos sociais. Às vezes tentamos escapar da
situação deixando a compra dos presentes para a última hora, no desejo vão de evitar a escolha de  parentes e amigos.

A troca de presentes nessa época é recíproca e, sobretudo, simultânea. Não há um prazo de reflexão para avaliar o valor do presente e
depois retribuí-lo com algo que teremos a certeza de ser equivalente. Isso gera incerteza e o temor de não realizarmos uma troca
respeitosa e equilibrada. Por isso nos perguntamos: "O que oferecer a fulano? É preciso que ele não me dê um presente muito caro em
relação àquele que vou dar". Então presentear não seria algo espontâneo. É certo que não pedimos às crianças que retribuam o regalo
natalino. Mas parece, entretanto, que o Natal é também para elas uma ocasião de aprendizagem. Ao ver a troca de presentes, elas se
tornam conscientes dessa prática e a reproduzirão na vida adulta. Elas descobrem, além disso, que os presentes têm um preço.
INTENSIDADE DO VÍNCULO
Tentamos compreender as lógicas dessa situação mediante entrevistas realizadas com pessoas que se exprimiram sobre os presentes
dados ou recebidos nessa época. Assim, pudemos mostrar que o valor econômico do presente é geralmente proporcional à intensidade do
vínculo com um parente ou, fora do círculo familiar, ao grau de amizade com a pessoa presenteada; o valor econômico serve de medida
racional.

Esse fato se manifesta particularmente no momento da entrega dos presentes, com a família reunida em torno da árvore para esse
momento mágico - ou trágico. Na França, a tradição recomenda que os presentes sejam abertos na frentes dos outros. O semblante alegre
ou decepcionado reflete mais ou menos discretamente o sentimento de quem foi presenteado. Ele agradece o gesto mas, no íntimo, avalia
o custo, estabelecendo uma proporção entre o valor afetivo e o valor de mercado. A frase "Não precisava..." remete a esse pequeno cálculo
mental. Foi difícil para as pessoas interrogadas revelar, durante a entrevista, esse cálculo, que punha em questão o princípio da natureza
gratuita do presente. Assim, a relação com o presente é hipócrita: ela se insere em uma simetria e numa reciprocidade que repousa em um
cálculo e em uma avaliação.

O encontro entre a sociedade do dom e a sociedade da mercadoria é ainda mais evidente no fenômeno do presente em dinheiro. Também
nesse caso, nossos estudos revelaram uma regra: só os pais ou os avós podem dar dinheiro às crianças da família. Os entrevistados
disseram jamais ter recebido um presente em dinheiro da parte de um estranho e confessaram experimentar uma sensação de
ambivalência perante esse tipo de donativo.
DANDO VIDA AO OBJETO
Por que o presente em dinheiro suscita um certo embaraço? Essa forma de presentear contradiz o princípio do dom gratuito ou, ao menos,
do dom que não tem um valor de mercado evidente. Notamos nas entrevistas que as pessoas presenteadas dessa forma compram, quase
sempre, um objeto, como se fosse necessário materializar esse dom para tornar visível o vínculo entre doador e donatário.

As pesquisas que realizamos com casais e solteiros revelaram outra característica, que diz respeito não ao modo de oferecer ou receber os
presentes, mas ao modo de "lhes dar vida". De fato, após ser oferecido, o regalo adquire vida. Um quadro ou objeto decorativo são
expostos na sala; um colar é usado em certas circunstâncias. O objeto é muitas vezes exibido para a pessoa que o presenteou.

Essa é uma forma de marcar a importância que damos ao presente e de reafirmar o vínculo mantido com quem o ofertou. Inversamente, os
indivíduos que vivem uma ruptura dramática colocam definitivamente de lado, ou até mesmo destroem, os presentes recebidos. Não é só
uma forma de "esquecer" a pessoa com a qual se rompeu, mas também de mostrar que se recusa o vínculo anteriormente estabelecido.

É certo que, em nossa sociedade, predominam as trocas comerciais. Entretanto, a mercadoria é freqüentemente posta a serviço do dom,
que contribui para a construção e a manutenção do vínculo social. A etnologia do dom permite constatar que os objetos trocados no Natal
ou em outras oca-siões nada têm de neutro. Constrangimentos são freqüentes, e um presente pouco apropriado corre o risco de ser
recebido como insulto. Gafes podem deixar marca duradoura em uma relação. Por isso o ser humano é tão sensível ao ato de presentear:
é a manifestação por excelência do vínculo social

costuma-se crer, o Trobriandês habitaria a antropologia ainda hoje. Por que Malinowski acreditava que este ritual o permitia compreender
a sociedade trobriandesa? Seria o conhecimento de seus traços formais? Ou, como ritual, seria o Kula uma espécie singular de processo
comunicativo que se deixa entrever, que se deixa tocar, mesmo por quem não domina o conjunto dos símbolos orquestrados?

No presente curso procuraremos percorrer certas reflexões de lingüistas, filósofos/lógicos e antropólogos que propuseram saídas para
controvérsias dessa ordem. Nosso objetivo ao final desse caminho é traçar um certo movimento etnográfico na antropologia de rituais em
que forma e conteúdo não necessariamente se dissociam1.  

Universais e variantes

A família sempre foi temática de interesse da Antropologia, desde nossos heróis fundadores (como Lévi-Strauss e Malinowski) até os
estudos de pesquisadores contemporâneos. Transformada em entidade revestida de uma espécie de aura mágica, é assunto que sempre
suscita discussões: sobre família, afinal, todo mundo acha que tem algo a dizer.

Malinowski e Radcliffe-Brown, dois importantes expoentes da Antropologia Social Britânica, tinham muitas similitudes mas também muitas
divergências em seu pensamento. Enquanto Malinowski enfatizava a cultura, Radcliffe-Brown tinha como preocupação fundamental o
social.

Segundo Radcliffe-Brown a manutenção da estrutura social era o ponto de convergência, o sentido e função das diferentes instituições,
pequenas engrenagens que permitiram o perfeito funcionamento do todo. A estrutura social não para ele uma abstração, mas a soma total
das relações sociais de todos os indivíduos em um momento dado do tempo, sendo possível observá-la como uma realidade. A
continuidade estrutural, assim, seria mantida através do jogo de relações de suas unidades componentes. Todos os costumes e crenças de
uma sociedade desempenhariam um papel determinado na vida social da comunidade, tal qual os órgãos do corpo vivo desempenham
alguma função na vida geral do organismo.

A família e as relações nela contidas teriam assim, para Radcliffe-Brown, esse caráter funcional, só existindo em direção ao fim de permitir
a continuidade da estrutura social. Sua função, assim, é a evitação do conflito, permitindo o ajustamento mútuo dos interesses dos
membros da sociedade. Esse ajustamento, entretanto, exige um regulamento dos comportamentos: é onde a cultura intervém, sendo criada
para manutenção e funcionamento da estrutura e da forma social.

Em Malinowski a família também é vista como instituição. Para o autor, entretanto, as instituições são mais do que peças ou engrenagens
do todo da sociedade, elas são quase que modelos reduzidos dessa, núcleos e nódulos da cultura. Ele não vê a função da família fundada
na manutenção da estrutura maior, mas também vê nela uma função, qual seja, satisfazer as necessidades dos indivíduos que compõe a
cultura. As diferentes instituições teriam sido criadas assim em resposta as necessidades humanas.
Às primeiras necessidades básicas, como alimentação, abrigo e reprodução, teriam sido dadas as primeiras respostas culturais, a partir das
quais teriam se originado novas necessidades (agora culturais), complexificando o funcionamento da cultura. Malinowski tentou, assim,
inserir o indivíduo onde até bem pouco tempo só havia o social. Se antes as ações individuais convergiam para o todo maior da sociedade,
como marionetes atuando em um palco onde o que realmente importa é o enredo, Malinowski propõe que a cultura, essa sim, sirva aos
indivíduos, não o contrário. O grande perigo, no qual Malinowski acabou escorregando, é de puxar a coisa para o outro extremo, tornando a
cultura uma simples resposta à biologia e naturalizando seus sentidos.

A principal crítica feita à Malinowski (Collier, Rosaldo & Yanagisako, ) é de que esse teria feito da família uma instituição universal, já que
as necessidades básicas dos sujeitos diziam respeito a uma realidade biológica invariável que a família teria como função atender.
Alimentar as crianças e garantir sua sobrevivência seria assim função primordial da família, . Malinowski também defende a idéia da família
a família existe como conjunto de indivíduos composto por pai, mãe e filhos, reunidos em um lugar comum e seus (idéia de casa, lar), e
vinculado por estreitos laços afetivos.

Collier, Rosaldo e Yanagisako argumentam, entretanto, que além de ter naturalizado a família ao desempenho de funções centradas na
biologia, Malinowski teria partido do premissas que ele tinha a respeito dos ideais de família em sua época e em sua sociedade, ou seja,
teria visto nas sociedades não-ocidentais que estudou um reflexo de si mesmo, da sociedade inglesa do começo do século. É sabido, por
exemplo, que em diversas sociedades indivíduos que possuem laços consangüíneos não dividem necessariamente o mesmo espaço, não
vivem necessariamente juntos. Da mesma forma, ainda que a criança precise de cuidados de proteção e alimentação em seus primeiros
tempo de vida, não é unicamente a família (e por vezes não é em absoluto) que lhe provém de tais cuidados. Os sentimentos de amor e
afeição como universais entre os membros da família também são relativizados pelas autoras, "as pessoas pelo mundo não esperam
necessariamente que os membros de uma família amem-se uns aos outros"

Malinowski parecia tentar, fornecendo ao nativo as características da sociedade inglesa a qual ele pertencia (ou fora incorporado), reabilitar
sua condição de "humano" como os outros, fundamentada na própria idéia de natureza humana. Ele entretanto, manteve consigo os
preconceitos que parecia querer dissipar, já que para provar a humanidade do outro teve que recorrer à falácia de torná-lo igual a si.

Lévi-Strauss também faz uma crítica a tendência de seus antecessores em universalizar a instituição família (provida de certas
características gerais e ideais) e percebê-la sob as lentes do natural. Ele também, entretanto, afirma que é raro encontrar uma sociedade
onde não haja qualquer tipo de laço familiar. A família assim não é universal, mas quase. Não existe para ele, entretanto, lei natural alguma
que explique a existência da família em praticamente toda parte.

A diferença é que, para Lévi-Strauss, família representa a aliança, por isso não um fenômeno da ordem do natural. Ele propõe um modelo
ideal de família composto por quatro expoentes:

Esse modelo ideal seria composto assim, na verdade por duas famílias, através da aliança, por isso a presença do "irmão da mãe" no
diagrama, podendo ser substituído por outro membro da família da mãe. Ele diz que "para toda a humanidade o requisito absoluto para a
criação de uma família é a existência prévia de duas outras famílias, uma apta a proporcionar um homem, e outra uma mulher, os quais
mediante o casamento iniciarão uma terceira, e assim indefinidamente".

Toda sociedade têm portanto como universal a questão da aliança. Para que haja a aliança, entretanto, é necessário que haja a regra da
exogamia. Essa regra, universal para Lévi-Strauss, não se encontra fundada na natureza, por seu caráter de regra. Ela se encontra mais
precisamente na passagem da natureza para cultura. É a regra da proibição do incesto, e portanto da exogamia, que representa a
passagem do mundo natural para o mundo da cultura. Ela age sobre um fato da biologia, a procriação, que por seu caráter de relação
social (aliança entre indivíduos e grupos) encontra-se fundado na cultura. Assim, sob a ótica de Lévi-Strauss, se a família é universal
enquanto instituição, ela o é não por sua "naturalidade" (defendida por Malinowski), mas por seus pilares fundamentais terem sido
inventados com a cultura.

A família para Malinowski também estaria baseada em um princípio de divisão das tarefas, sendo algumas naturalmente designadas ao
sexo feminino, e outras ao masculino. Lévi-Strauss também dá importante papel às necessidades econômicas e a divisão sexual do
trabalho no que concerne o casamento. Segundo ele, o fato da divisão do trabalho entre os sexos é universal, sendo que o modo pelo qual
as diferentes tarefas seriam atribuídas aos diferentes sexos são definidos culturalmente. Mais uma vez Malinowski se funda na natureza
dos indivíduos (diferenciadas nos dois sexos), e explica através dela a distribuição de tarefas que parece permanecer sempre a mesma.
Lévi-Strauss encontra um princípio que, esse sim, é universal, mas atribui caráter cultural aos conteúdos que o preenchem.

Françoise Héritier, seguindo os passos de Lévi-Strauss, estabelece três pilares universais da cultura, quais sejam: a proibição do incesto, a
divisão sexual das tarefas e a diferente valência entre os sexos. Discutindo as novas tecnologias reprodutivas, ela procura provar que
nenhuma mudança que não afete o dado biológico incontornável da reprodução bi-sexuada trará mudanças significativas nos modos de
filiação. Enquanto não for possível a clonagem de células humanas, então, ainda será preciso um homem e uma mulher para a procriação.
A diferente valência entre os sexos é explicada por ela a partir do princípio da diferença anatômica entre homem e mulher. As questões
relacionadas a fecundidade e maternidade teriam instaurado na história da humanidade a diferença entre os sexos, impedindo que as
mulheres participassem de certas atividades devido a dificuldade de locomoção (tinham afinal que cuida e carregar os filhos), ficando mais
restritas ao âmbito da casa e das tarefas doméstica, bem como coleta, e cerâmica.

Pierre Bourdieu fala na diferença entre os sexos como uma instituição "inscrita há milênios na objetividade das estruturas sociais e na
subjetividade das estruturas mentais" (Bourdieu, 199?:133). A diferença aqui também significa oposição, e partindo do pressuposto de que
não existe oposição sem hierarquia, significa igualmente uma relação de dominação.

O fato de a dominação masculina perdurar desde tempos imemoráveis se explica, segundo Bourdieu, pela naturalização de esquemas de
pensamento que, socialmente construídos a partir de uma diferença anatômica entre os sexos, teriam encontrado onde se afirmar e
confirmar continuamente na História. Esses esquemas de pensamento se manifestariam de forma clara no princípio de divisão das coisas
do mundo em pares, quase sempre redutíveis a oposição entre feminino e masculino. Assim, a naturalização de um sistema de oposições
homólogas (arbitrário em sua gênese) entre alto/baixo, quente/frio, forte/forte, direita/esquerda, duro/macio, fora/dentro, seco/úmido,
homem/mulher, e outros pares de semelhantes na diferença, expresso em provérbios, ditados, cantos, representações gráficas, objetos
técnicos e práticas, e ao mesmo tempo confirmado por eles.

Esse princípio de divisão se faz presente então no mundo social em estado objetivado, e em estado incorporado nos habitus, onde ela
funciona como princípio gerador de categorias de percepção, pensamento e ação. O habitus é, segundo Bourdieu (Bourdieu:199?) um
sistema de disposições adquiridas pelo indivíduo durante seu processo de socialização. As disposições podem ser atitudes, inclinações a
perceber sentir, fazer e pensar, comportamentos e valores aprendidos e interiorizados.

Assim, o habitus orienta práticas e os gestos mais automáticos, como a forma de andar, mover o corpo, falar, alimentar-se ou sentar.

Bourdieu (Bourdieu:199?) fala em hexis corporal como um dos componentes do habitus, dizendo respeito ao complexo de gestos, posturas
corporais, palavras, ou seja, a fisionomia social do corpo. A diferença entre os sexos se inscreveria assim nos hexis corporais sob forma de
duas espécies opostas e complementares de posturas, maneiras de andar, de portes, de gestos, de formas de cuidar e usar o corpo. O
mundo social construiria o corpo por meio de um habitus sexuado e sexuante

Alfred Reginald Radcliffe-Brown (Birmingham, 17 de janeiro de 1881 — Londres, 24 de outubro de 1955) foi um cientista social britânico,
considerado um dos maiores expoentes da Antropologia, tendo desenvolvido a teoria do funcionalismo estrutural.

Funcionalismo

Doutrina que compara a sociedade a um organismo onde as diferentes parcelas da mesma exercem um determinado papel neessário pa
conjunto. Segundo as teses de Talcott Parsons a sociedade e a respectiva cultura formam um sistema integrado d'accomplis sement de fonct
Ao mesmo tempo que ocorria o choque da revolução behaviorista, desenrolava-se, nos domínios da ciência política, o processo de recepção
ideias de função, estrutura e de sistema, principalmente a partir das teorias gerais da antropologia e da sociologia.

Malinowski

Contudo, a aplicação do conceito de função no domínio das ciências sociais receberá um profundo incremento com o trabalho dos antropólo
evolucionistas como Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) que estão, respectivamente, na bas
funcionalismo absoluto, na teoria que pretende fornecer uma explicação completa e coerente de um dado objecto social, deduzindo-o
contribuições que esta dá para a satisfação de um certo número de necessidades sociais, e do funcionalismo estrutural, ou relativo, a teoria
utiliza o funcionalismo como mero paradigma formal que se propõe encarar os objectos sociais a partir das relações de contribuição que os li
entre si e elaborar, nesta base, um certo número de propostas explicativas que não são vistas como necessárias nem exaustivas.

A partir de então, dizer função passa a significar dizer satisfação de uma necessidade e o todo social é visto como uma totalidade orgânica, o
cada elemento tem uma tarefa a desempenhar dentro de uma aparelhagem instrumental, conforme as palavras de Malinowski, autor que enum
uma série de princípios gerais que unem os seres humanos, os chamados princípios de integração. Em primeiro lugar, surge a reprodução, gera
de instituições como a família e o clã; em segundo lugar, vem o território, a comunidade de interesses devido à propinquidade, contiguida
possibilidade de cooperação, gerando os grupos de vizinhança, entre os quais inclui os munícipios, a horda nómada, a aldeia e a cidade; em ter
lugar, o princípio da integração fisiológica, as distinções devidas a sexo, idade e estigmas ou sintomas corporais; em quarto, as associa
voluntárias; em quinto, o princípio da integração ocupacional e profissional, isto é, a organização de seres humanos por suas activid
especializadas para fim de interesse comum e mais plena execução de suas capacidades especiais; em sexto lugar, a classe ou cond
destacando nestas os estados medievais, as castas e as estratificações por etnia; em sétimo e último lugar coloca a assimilação, a integração
unidade de cultura ou por poder político, que tem a ver com a nação e o Estado, respectivamente. Refira-se que a tribo de Malinowski, segund
suas próprias palavras, consiste num grupo de pessoas que têm a mesma tradição, o mesmo direito consuetudinário e as mesmas técnic
igualmente a mesma organização de tipos menores, tais como a família, a municipalidade, a corporação ocupacional ou a equipa económica. Re
mesmo que o índice mais característico de unidade tribal lhe parece ser a comunhão de linguagem, pois uma tradição comum de habilidad
conhecimento, de costumes e crenças, apenas pode ser levada avante conjuntamente por pessoas que possuam a mesma língua.

Radcliffe-Brown

Já para A. R. Radcliffe-Brown, a função surge como o papel desempenhado na vida social total, a contribuição dada por um determinado elem
para a manutenção da estrutura. O sistema é entendido como mera unidade funcional e a estrutura, concebida como um simples acordo e
pessoas que têm entre si relações institucionalmente controladas e definidas. E da soma da ideia de sistema com a ideia de estrutura é que resu
ideia de processo da vida social que, em si mesmo, consiste num imenso número de acções e interacções de seres humanos agindo c
indivíduos ou em combinações ou grupos (...) Os componentes ou unidades da estrutura social são pessoas, e uma pessoa é um ser hum
considerado não como um organismo, mas ocupando uma posição na estrutura social.

Marcel Mauss (Épinal, 10 de Maio de 1872 — Paris, 10 de Fevereiro de 1950) foi um sociólogo e antropólogo francês, nascido quatorze
anos mais tarde e na mesma cidade que Émile Durkheim, de quem é sobrinho. Trabalhou a vida toda para distinguir uma ciência
propriamente social.

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Teoria

Ciência distinta, por exemplo, da psicologia cujos objetos são, segundo Mauss, as representações individuais, enquanto que na ciência
social os objetos são as representações coletivas de caráter autônomo e inconsciente ao próprio indivíduo que as tem em sua consciência.

Fatos sociais totais são fenômenos que, seja na sua estrutura própria, seja nas suas relações e determinações, possuem implicações
simultaneamente em vários níveis da realidade social e em diferentes dimensões dessa mesma realidade.

O potlatch é uma cerimônia praticada entre tribos índigenas da América do Norte, como os Haida, os Tlingit, os Salish e os Kwakiutl.
Também há um ritual semelhante na Melanésia.

Consiste num festejo religioso de homenagem, geralmente envolvendo um banquete de carne de foca ou salmão, seguido por uma
renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado – bens que devem ser entregues a parentes e amigos. A própria
palavra potlatch significa dar, caracterizando o ritual como de oferta de bens e de redistribuição da riqueza. A expectativa do homenageado
é receber presentes também daqueles para os quais deu seus bens, quando for a hora do potlatch destes.

O valor e a qualidade dos bens dados como presente são um sinal do prestígio do homenageado. Originalmente o potlatch acontecia
somente em certas ocasiões da vida dos indígenas, como o nascimento de um filho; mas com a interferência dos negociantes europeus, os
potlaches passaram a ser mais frequentes (pois haviam bens comprados para serem presenteados) e em algumas tribos surgiu uma
verdadeira guerra de forças baseada no potlatch. Em alguns casos, os bens eram simplesmente destruídos após a cerimônia.

Os governos canadense e estadunidense proibiram o potlach em fins do século XIX, por considerar o ritual uma perda "irracional" de
recursos. Com a compreensão do significado do potlatch, a proibição desapareceu em 1934 nos EUA e em 1954 no Canadá. Algumas
tribos praticam a cerimônia ainda hoje, e os presentes incluem dinheiro, taças, copos, mantas, etc

USP celebra "dádivas" de Marcel Mauss


Os leitores brasileiros de ciências sociais estão diante de uma "dádiva". Um breve seminário a ser realizado amanhã e quinta-feira em São
Paulo marca a reedição no país de um dos livros centrais das humanidades na segunda metade do século 20, "Sociologia e Antropologia",
de Marcel Mauss.

Trabalho publicado em 1950, postumamente, o catatau organizado pelo sociólogo francês George Gurvitch reúne um conjunto de ensaios
que o seu conterrâneo imprimira em revistas de ciências sociais a partir de 1902.

Primeiro livro de Mauss (1872-1950), o volume alargou o prestígio que o intelectual tinha nos círculos universitários franceses e o
consagrou como um dos fundadores da antropologia moderna.

Com temas tão distintos como a função da magia nas sociedades ditas "primitivas" ou o modo como nelas se lidava com o corpo (desde as
diferentes maneiras de andar até as posições sexuais), os ensaios de "Sociologia e Antropologia" ilustram a amplitude do pensamento
"maussiano".

Essa elasticidade ficará visível no ciclo "Leituras de Mauss", que a editora Cosac & Naify, responsável pela publicação, realiza na USP em
parceria com o departamento de antropologia e o programa de pós-graduação de antropologia social da universidade.

O primeiro dia do evento, amanhã, será dos professores de antropologia. Beatriz Perrone-Moisés, da USP, abre os trabalhos falando sobre
"a noção de pessoa".

"A grande lição desse texto", opina a professora, "é a idéia de que cada cultura tem uma noção própria do que é o ser humano". "A noção
de indivíduo, que costumamos considerar como universal, é recente e restrita ao ocidente", completa a tradutora de Lévi-Strauss (que
assina a introdução de "Sociologia e Antropologia").

O texto mais conhecido de Mauss, "Ensaio sobre a Dádiva", será o tema de João Dal Poz, professor da Universidade Federal de Mato
Grosso. Segundo a professora da USP Fernanda Peixoto, que organizou o evento com a antropóloga Florencia Ferrari (coordenadora
editorial do livro), o etnólogo falará sobre leituras contemporâneas do texto, no qual "Mauss define as sociedades não ocidentais como
fundamentadas na idéia de troca".

Em "Ensaio sobre a Dádiva", de 1924, que foi considerado um dos dez textos mais importantes da não-ficção no século 20 por júri do
caderno Mais! em 11/4/1999, Mauss descreve a obrigatoriedade de dar e retribuir presentes em sociedades "primitivas" (o que pode ser
alargado para todas as sociedades) como "fato social total".

Com esse segundo conceito, derivado das idéias de seu tio, Émile Durkheim (que faz parte do tripé elementar da sociologia, com Marx e
Max Weber), Mauss pretende mostrar como nas trocas (dar, receber e retribuir) exprimem-se as instituições religiosas, jurídicas, morais,
econômicas.

A terceira componente da mesa em "Leituras de Mauss" deixa um pouco esse universo de lado para concentrar-se no percurso mais
pessoal do pensador. Léa Freitas Perez, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, que está traduzindo biografia de Mauss feita
por Michel Fournier, vai falar sobre seu papel como mestre de nomes tão variados como Lévi-Strauss, Michel Leiris e George Bataille, entre
outros.

Bataille, ensaísta e romancista, e sua relação com Mauss serão tema ainda de palestra do segundo dia do evento, em intervenção da
professora de literatura da PUC-SP Eliane Robert Moraes.

Outros dois "estranhos no ninho" antropológico completam a mesa: Heloisa Pontes, da Unicamp, que vai discutir os ensaios de Mauss
sobre o corpo, e o artista Arthur Omar ("tudo o que faço é também uma certa antropologia", diz o autor do livro "Antropologia da Face
Gloriosa").

RESUMO

Este artigo analisa a obra clássica de M. Mauss, Ensaio sobre a dádiva, à luz de desenvolvimentos recentes da Antropologia. Salienta
como contribuição de Mauss o entendimento da dimensão política da troca de dádivas, assim como a sugestão de sua universalidade,
posteriormente demonstrada por Lévi-Strauss, constituir-se em princípio formal-abstrato, e não num fato empírico-concreto. A partir desse
princípio, avalia a tese segundo a qual a dádiva é fundamento de toda sociabilidade e comunicação humanas, assim como sua presença e
sua diferente institucionalização em várias sociedades analisadas por Mauss, capitalistas e não-capitalistas.

PALAVRAS-CHAVE: Marcel Mauss; teoria da troca; reciprocidade; hierarquia.

I. SOBRE MARCEL MAUSS

O Ensaio sobre a dádiva, obra fundamental de Marcel Mauss, é um marco no desenvolvimento da sociologia durkheimiana. Esse
desenvolvimento é no sentido de uma Antropologia. Mauss avança, em relação a Durkheim, ao aprofundar uma postura crítica em relação
à filosofia, adotando a etnografia, abrindo-se para as sociedades não-ocidentais e assumindo cada vez mais a comparação. Talvez por isso
mesmo, a obra de Mauss se caracterize pela dispersão, como ele próprio reconhece1. Mauss interessava-se pelas manifestações dos
fenômenos humanos em quaisquer tempo e espaço do planeta e sua obra aborda uma "variedade vertiginosa de temas", para usar uma
expressão de Gomes Jr. (1999). O Ensaio sobre a dádiva reflete de modo evidente esses aspectos, presentes também em outros trabalhos
de Mauss. Inicia-se com menções a questões de língua norueguesa antiga e posteriormente aborda as mais variadas formas de
organização social, de grupos e regiões os mais diversos – celtas, Índia, China, Oceania, índios do noroeste americano.

A obra de Mauss tem recebido a mais favorável aceitação por antropólogos contemporâneos das mais diversas inclinações teóricas. Ela
presta-se, sem dúvida, a interpretações discrepantes, múltiplas e divergentes, dentro e fora da Antropologia.. A inspiração de Mauss é
aceita por sociólogos (de G. Gurvitch a P. Bourdieu, passando pelo grupo que se autodenomina "de vanguarda" do Collège de Sociologie –
cf. JAMIN, 1992, p. 457), escritores ou filósofos (R. Callois, G. Battaille, entre outros), historiadores (F. Braudel e a escola dos Annales) ou
mestres da Antropologia inglesa (A. R. Radcliffe-Brown, E. E. Evans-Pritchard, R. Firth). A aceitação de Mauss é geral: Guidieri (1984, p.
31) notou que Mauss recebe, de modo bastante freqüente, tratamento "hagiográfico".

Mais recentemente, a Antropologia norte-americana pós Clifford Geertz (seja lá como rotulemos suas diversas correntes – interpretativista,
pós-moderna, textualista etc.), preza em Mauss, de modo surpreendentemente geral, uma suposta aversão à noção de sistema, "confusão
inspirada" e "caráter boêmio" (GOMES JR., 1999). Em The predicament of culture, de 1988, James Clifford aproxima a obra de Mauss do
que chama de "etnografia surrealista", notando a presença constante de artistas surrealistas em suas aulas.

Seria possível argumentar que um desenvolvimento pleno da obra de Mauss foi feito por três de seus ex-alunos, que vêm a ser os pais
fundadores do estruturalismo francês em Antropologia: Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss e Louis Dumont. Mas isso seria assunto
para um outro trabalho: importa aqui realizar uma leitura do Ensaio sobre a dádiva. Para tanto, adotarei uma postura oposta à de alguns
apologistas contemporâneos de Mauss, como os citados pós-modernistas norte-americanos: não irei correlacionar um espírito não-
dogmático com a aversão à noção de sistema ou com o culto a uma "confusão inspirada". Afinal, o próprio Mauss (1983, p. 139) definia-se
como um cientista social "positivista".

Mauss pautou sua vida por um esforço para separar vida pessoal – na qual ele incluía suas atividades como militante socialista – e
acadêmica: "em Mauss, ciência e política não se confundem" (FOURNIER, 1993, p. 107). Mauss não deixará de publicar, entretanto, em
1924, uma "Apreciação sociológica do bolchevismo" na Revue de Métaphysique et de Morale e em 1925, na Revue Slave, o artigo
"Socialismo e bolchevismo". Mauss publica ainda em jornais textos que classifica como "políticos", o primeiro dos quais sendo "L'action
socialiste", em Le Mouvement Socialiste de 15 de outubro de 1899. Essa dualidade será discutida no decorrer deste artigo.

O leitor encontrará em Fournier (1993, entre outros) importante análise sobre a biografia e a postura pessoal de Mauss, que tanto marcou
seus alunos, como vários deles já comentaram (LÉVI-STRAUSS, 1944; DUMONT, 1986). Um interessante contraste poderia ser feito, a
este respeito, entre Mauss e o espírito extremamente metódico e rigoroso de Durkheim, já descrito como dogmático por Lévi-Strauss (1944)
ou "cartesiano" pelo próprio Mauss (1983, p. 140). Talvez a postura pessoal de cada um explique o sucesso maior que teve Mauss em
deixar "discípulos", cultuadores de sua memória, enquanto Durkheim nos deixa como legado menos uma memória que a impessoalidade
de "uma obra". Mas, cada qual ao seu modo, sobrinho e tio compartilhavam a mais completa dedicação aos trabalhos da escola sociológica
que fundavam.

A contribuição de Mauss se caracteriza ainda, como ele mesmo notou, por um certo "anonimato voluntário" (idem, p. 139) e "auto-sacrifício"
(idem, p. 140). Por exemplo, Mauss completou e publicou alguns estudos iniciados por companheiros do grupo que se unia em torno da
revista fundada por Durkheim, L'Année Sociologique, precocemente desaparecidos, como Henri Hubert, Robert Hertz (este durante a I
Guerra Mundial) e do próprio Durkheim. Após ter recusado um cargo de professor em Bordeaux em 1893, Mauss assume em 1901, em
Paris, a cadeira de "História da religião dos povos não-civilizados" da 5a seção da École Pratique des Hautes Études. Com a morte de
Durkheim em 1917, conta com a ajuda de C. Bouglé, G. Davy, P. Fauconnet e M. Halbwachs para retomar a publicação de L'Année
Sociologique.

Paralelamente, é intensa sua atividade como militante político. Com Léon Blum, a quem conhece desde a primeira década deste século, é
fiel ao socialismo de Jaurés. Mauss e Blum opõem-se, no período entre guerras, à criação do Partido Comunista Francês (cf. FOURNIER,
1993, p. 104). Em 1904, Mauss participa da fundação do L'Humanité, tornando-se posteriormente secretário de redação, mas é bastante
crítico em relação à revolução bolchevique2. Escreve ainda para Le Populaire a partir de 1920 (cf. JAMIN, 1992, p. 456). Simultaneamente,
funda em 1925 com L. Lévy-Bruhl e P. Rivet o Institut d'Ethnologie da Universidade de Paris, onde a sua carga de aulas se acumula com a
que tinha na École. Quase não tinha tempo para publicar seus próprios trabalhos, mas forma toda a primeira geração de antropólogos de
campo franceses (G. Devereux, G. Dieterlen, M. Griaule, A. G. Haudricourt, M. Leiris, A. Métraux, D. Paulme, A. Schaeffner, J. Soustelle,
entre outros). Chega ao Collège de France em 1931.

Como foi dito, Mauss (1983, p. 142) reconhece o caráter "descontínuo" de sua obra. A unidade desta deriva de um esforço "para organizar
não meramente idéias, mas antes de tudo fatos [...] tomados de civilizações [ainda] não categorizadas" (idem, p. 143). Ou melhor, seu
interesse não seria tanto pelos fatos em si, mas por "grupos geográficos de fatos"; nesta passagem, Mauss cita como exemplo de "grupos
geográficos de fatos" os "sistemas religiosos africanos – como [eles] se constituem" (MAUSS, 1983, p. 144). Avança ainda que se trata de
um "estudo global sobre a noção de civilização" (idem, p. 151). Mauss parece consciente de que não era isso o que o público francês
desejava, pois esse "público é ainda por demais apegado à metodologia sociológica e nossos estudantes e colegas por demais
entrincheirados em reflexões filosóficas" (idem, p. 150).

Ao contrário de Durkheim, Mauss diz "não ter sido nunca um militante da sociologia" (idem, p. 142). Por outro lado, não só militava no
Partido Socialista Francês, como doava a este parte de suas parcas economias (FOURNIER, 1993). Se Mauss separava sua atividade
intelectual de sua militância política, a interpretação que farei aqui do Ensaio sobre a dádiva não deixará de buscar entender essa aparente
ruptura. Mas repito que não analisarei a vida pessoal ou a militância política de Mauss; remeto novamente o leitor interessado nestas
últimas aos trabalhos de M. Fournier.

II. A TESE GERAL DO ENSAIO SOBRE A DÁDIVA

Se Mauss assume a descontinuidade de sua obra, ela também caracteriza o Ensaio sobre a dádiva. Um mesmo parágrafo do Ensaio
apresenta comparações entre várias regiões do globo. Publicado no tomo I do L'Année Sociologique (1923-24), um ano após Os
argonautas do Pacífico ocidental, neste trabalho Mauss teve de confrontar-se com o fato de, ao contrário de Malinowski, nunca ter feito
pesquisa de campo. Mauss não pôde aproveitar uma das principais possibilidades abertas por Malinowski: a realização de pesquisas que
buscassem uma maior contextualização dos dados, como propunha, na mesma época, também A.R. Radcliffe-Brown, cujo Andaman
islanders data igualmente de 1922. Mauss beneficia-se ainda, no Ensaio, das pesquisas de Franz Boas nos Estados Unidos, que também
demonstravam desde o início do século, a importância do trabalho de campo e da contextualização. Boas, Malinowski e Radcliffe-Brown
trabalhavam assim contra aquilo que este último denominou "história conjetural". Poder-se-ia mostrar que Mauss não se livrou totalmente
desta última. O Ensaio sobre a dádiva arrola uma quantidade impressionante de fatos, que só em um momento posterior seriam melhor
contextualizados pelas pesquisas de campo de inúmeros antropólogos, alguns dos quais alunos de Mauss.

Mas há um fio condutor no Ensaio: a noção de "aliança". Como ficará evidente no trabalho de alunos de Mauss, a preocupação com a
aliança torna-se uma característica central da Antropologia francesa (DUMONT, 1971). Mauss demonstra no Ensaio como "toda
representação é relação – isto é, funda-se sobre a união de uma dualidade de contrários" (JAMIN, 1992, p. 456). Ora, o argumento central
do Ensaio é de que a dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas
sociais), religiosas (como nos sacrifícios, entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e
diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade). Posteriormente, as pesquisas de inúmeros antropólogos revelaram
a amplitude – já intuída por Mauss – das noções de dádiva e de aliança. Entre eles, Lévi-Strauss (1949) fez dessas noções o fundamento
das estruturas elementares do parentesco; P. Clastres (1978), da sociedade contra o Estado, e, muito modestamente, Lanna (1995) da
dívida divina, implícita em relações de compadrio e patronagem no Brasil.

Mas Mauss já definia a dádiva de modo amplo. Ela inclui não só presentes como também visitas, festas, comunhões, esmolas, heranças,
um sem número de "prestações" enfim – prestações que podem ser "totais" ou "agonísticas" (incluindo-se, neste último caso, como
veremos, o potlatch dos índios do noroeste americano – MAUSS, 1983, p. 147). Creio ser fundamental notar como Mauss entendia até
mesmo os tributos como uma forma de dádiva. Esta é uma de suas proposições que aguardam futuros desenvolvimentos.

Voltando à tese principal do Ensaio: nele se postula um entendimento da constituição da vida social por um constante dar-e-receber.
Mostra ainda como, universalmente, dar e retribuir são obrigações, mas organizadas de modo particular em cada caso. Daí a importância
de entendermos como as trocas são concebidas e praticadas nos diferentes tempos e lugares, de fato que elas podem tomar formas
variadas, da retribuição pessoal à redistribuição de tributos. Mauss dedicava especial atenção ao fato de algumas trocas serem
prerrogativas de chefias: receber tributo, por exemplo. Essas prerrogativas podem ser socialmente construídas de modo diferente, como
privilégios, obrigações etc. A isso Mauss associava o fato de que, freqüentemente, da chefia emanam valores que se extendem à
sociedade como um todo, generalizando-se (um pouco como Marx mostrara ter a moeda capacidade para generalizar-se como valor

i
capitalista). Como foi posteriormente desenvolvido por P. Clastres (1978), a dádiva de palavras ou objetos é freqüentemente um dever da
chefia, em um sentido ontológico: mais que condição necessária da sua existência, são manifestações particulares da chefia que se criam
por diferentes formas de troca. Citando o tomo II da Ethnographie de Madagascar de Grandidier, Mauss (1974, p. 66) nos lembra que "os
betsimisaraka nos contam que de dois chefes, um distribuía tudo o que estava em sua possessão e o outro não distribuía nada e guardava
tudo. Deus deu fortuna ao que era liberal e arruinou o avarento". Veremos a seguir como a chefia se define a partir de uma posição
privilegiada em relação às trocas, centralizando-as nos sistemas antigos de redistribuição, como o dos Incas, impérios africanos ou
asiáticos, ou no caso de sociedades socialistas.

Mas, evidentemente, o aspecto generativo ou criador de sociabilidade da dádiva não se limita à política. Já a epígrafe do Ensaio exprime
uma dialética inerente à dádiva: ao receber alguém estou me fazendo anfitrião, mas também crio, teórica e conceptualmente, a
possibilidade de vir a ser hóspede deste que hoje é meu hóspede. A mesma troca que me faz anfitrião, faz-me também um hóspede
potencial. Isto ocorre porque "dar e receber" implica não só uma troca material mas também uma troca espiritual, uma comunicação entre
almas. É nesse sentido que a Antropologia de Mauss é uma sociologia do símbolo, da comunicação; é ainda nesse sentido ontológico que
toda troca pressupõe, em maior ou menor grau, certa alienabilidade. Ao dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor
aceita algo do doador. Ele deixa, ainda que momentaneamente, de ser um outro; a dádiva aproxima-os, torna-os semelhantes. A etnografia
da troca dá ainda um novo sentido às etiquetas sociais. Por mais que estas variem, elas sempre reiteram que, para dar algo
adequadamente, devo colocar-me um pouco no lugar do outro (por exemplo, de meu hóspede), entender, em maior ou menor grau, como
este, recebendo algo de mim, recebe a mim mesmo (como seu anfitrião).

Tão próximo da ideologia da generosidade e do altruísmo, o ato de dar, mostra-nos Mauss, não é um ato desinteressado. Isso não se limita
à prática dos "chefes". O ato de dar pode assim se associar em maior ou menor grau a uma ideologia da generosidade, mas não existe a
dádiva sem a expectativa de retribuição. O free gift de Malinowski, este sim, é pura ideologia; o altruísmo puro é uma mistificação. Mauss,
escrevendo com Hubert o Ensaio sobre a natureza e função do sacrifício, já mostrara, em 1898, que "esta abnegação e essa submissão
não deixam de ter um lado egoísta". Para Mauss, a dádiva é um ato simultaneamente espontâneo e obrigatório. O estudo da dádiva
permitiria à sociologia a superação relativa de dualidades profundas do pensamento ocidental, entre espontaneidade e obrigatoriedade,
entre interesse e altruísmo, egoísmo e solidariedade, entre outras3. Este ponto é importante porque a conclusão do Ensaio irá criticar a
generalização da noção de interesse individual implícita na sociedade burguesa e no pensamento liberal, que irão opor radicalmente aquilo
que a dádiva une.

Um dos representantes do pensamento liberal no Brasil, Delfim Netto (1999), notou recentemente que tal preocupação em propor
alternativas à ética do mercado valeu o Prêmio Nobel de Economia de 1998 ao indiano Amartya Kumar Sen4. Talvez até porque conhece
"por dentro" uma "civilização da dádiva", como a indiana, pôde Sen reconhecer que o desejo egoísta do lucro não só é incapaz de fundar
qualquer sociedade, mas tende, justo ao contrário, a inviabilizá-las. Como Mauss, os estudos de Sen debruçam-se sobre "tragédias
distributivas" e recusam fundamentos como a noção de escassez. Entretanto, Sen parece estar muito aquém de Mauss, não chegando
nem mesmo a fazer uma crítica ao paradigma utilitarista. Isto é, seus trabalhos revelam uma incorporação da lógica da dádiva pelo
pensamento liberal, mais do que o contrário. Já Mauss foi o inspirador de um "Movimento anti-utilitarista nas Ciências Sociais", que publica
há mais de uma década importante periódico semestral, La Revue du M.A.U.S.S.. Menciono Sen para mostrar a atualidade do pensamento
de Mauss, cuja preocupação com instituições arcaicas jamais significaram a postulação de um retorno nostálgico a um passado pré-
moderno. Seu horizonte é o da defesa de um equilíbrio entre o individualismo e a moralidade, por um lado, e o direito da dádiva, por outro.
Mauss reconhecia o fato básico de que na modernidade "somos cidadãos e não santos [...]. O socialismo é para Mauss 'um espírito [...] um
novo sistema de valores', um 'novo sistema moral de castigos e recompensas'" (FOURNIER, 1993, p. 108).

Finalmente, eu salientaria como fundamental outra contribuição de Mauss, a de que a vida social não é só circulação de bens, mas também
de pessoas (mulheres concebidas como dádivas em praticamente todos os sistemas de parentesco conhecidos), nomes, palavras, visitas,
títulos, festas. Note-se que as trocas não são só materiais: a circulação pode implicar prestações de valores espirituais, assim como maior
ou menor alienabilidade do que é trocado. Por exemplo, os sobre-nomes na nossa sociedade são pouco alienáveis, circulam ainda menos
que os prenomes, mas sua circulação gera considerável valor. Há, entretanto, outras dádivas que devem necessariamente circular muito,
para gerar cada vez mais valor, como os objetos kula descritos por Malinowski. A relação entre maior ou menor alienabilidade e criação de
valor não é, assim, como veremos, simples e direta.

III. LENDO A INTRODUÇÃO DO ENSAIO SOBRE A DÁDIVA


C. Lefort (1979) notou que a questão "o que é uma sociedade" está sempre subentendida em toda a obra de
Mauss. Este fala em "contrato" para exprimir a sociabilidade criada pela dádiva. Para Mauss, a noção de contrato
seria universal, mas, ao contrário dos contratualistas anglo-saxões, concebe os contratos como não-individuais.
Não se trata assim de acordos entre indivíduos racionais mas de regras da organização social primitiva. Nela, "os
contratos fazem-se sob a forma de presentes" (MAUSS, 1974, p. 41). Mas se há momentos em que Mauss pensa
a troca como um contrato, há outros em que ele, funcionalisticamente, supõe a troca como reforçando realidades
pré-existentes, ou "também um meio de fortalecer o contrato" (idem, p. 40). Isso indica que, se seu próprio
trabalho permite a superação do funcionalismo e da chamada "razão prática"5, há momentos em que ele se
contamina por estes procedimentos, os quais critica. Esta passagem inicial da introdução do Ensaio já anuncia
como este texto é profundamente "descontínuo".
Para Mauss (1974, p. 41), "este trabalho é um fragmento de estudos mais vastos". A elaboração desse trabalho
exigiu o conhecimento de uma grande quantidade de fatos de várias civilizações. Como expressar a
universalidade de uma idéia, a importância da troca? Mauss opta por tratar da Polinésia no "Capítulo I", das Ilhas
Andaman, no Oceano Índico, Melanésia e do noroeste americano no "Capítulo II", das chamadas sociedades
antigas (Roma, Índia, povos germanos) no "Capítulo III" e da Europa moderna na "Conclusão".
As maiores contribuições do Ensaio talvez sejam:
1) mostrar que fatos – incluindo-se aqui tanto a prática da troca como a reflexão sobre ela – das mais diferentes
civilizações nos revelam que trocar é mesclar almas, permitindo a comunicação entre os homens, a inter-
subjetividade, a sociabilidade. A Antropologia é o estudo desta comunicação e das regras que a estabelecem;
2) essas regras manifestam-se simultaneamente na moral, na literatura, no direito, na religião, na economia, na
política, na organização do parentesco e na estética de uma sociedade qualquer. Podemos isolar o aspecto
econômico de uma troca, mas ela implica sempre também um aspecto religioso (que se evidencia nos sacrifícios,
nas dádivas de palavras das rezas etc.), político (que se evidencia nas trocas mal-sucedidas – que redundam em
guerra –, na troca de violência ou ainda no desequilíbrio entre o que é trocado6 e na assimetria temporal implícita
em qualquer redistribuição – cf. BORDIEU, 1996), ou mesmo estético (a confecção dos objetos, o modo de
oferecimento etc.). A troca é assim um fato social "total". Ela o é ainda no sentido de manifestar-se historicamente
em cada indivíduo7;
3) as trocas são simultaneamente voluntárias e obrigatórias, interessadas e desinteressadas, como eu dizia, mas
também simultaneamente úteis e simbólicas. Mauss enfraquece a dicotomia símbolo/morfologia presente na obra
de Durkheim. Desde Formas primitivas de classificação, publicado em 1903 e escrito em parceria com este último,
Mauss já nos mostrava como a morfologia social também é um fato simbólico;
4) Mauss propõe um método comparativo que pressupõe uma sociologia. Se não chega a realizar trabalho de
campo e por vezes reproduza generalizações típicas da chamada história conjectural, Mauss difere dos
evolucionistas da época, como James Frazer, em cuja comparação "tudo se confunde e na qual as instituições
perdem toda cor local e os documentos seu sabor" (MAUSS, 1974, p. 43). Por outro lado, ao contrário da
comparação anti-evolucionista de Radcliffe-Brown, o método de Mauss não exclui a história. Esta contribui e
enriquece suas comparações. Mauss indica no Ensaio, assim como no texto sobre a noção de pessoa, escrito 15
anos mais tarde, que faz "história social", sem distinguir esta da "sociologia teórica", nem das "conclusões de
moral [e] de prática política e econômica" (idem, p. 42-43).
Nesse momento do texto, Mauss pergunta-se qual a regra que estipula a retribuição, concluindo que cada
sociedade tem a sua. Posteriormente, Lévi-Strauss (1949), proporá haver algo de universal por trás da
diversidade no nível dos fatos, formalizando o "princípio de reciprocidade". Mauss entenderá a generalidade da
retribuição "por meio de um número de fatos", sua análise permanecendo assim no nível das instituições
particulares. Muitos dos críticos atuais da noção de troca de Lévi-Strauss "reduzem a troca a uma instituição"
(VIVEIROS DE CASTRO, 1998), o que revelaria que "eles se acham na mesma situação intelectual de um século
atrás" (LÉVI-STRAUSS, 1998).
Eu dizia que Mauss generaliza a noção de contrato ao mesmo tempo em que a reformula. Ele não a usa no
sentido de um contrato entre indivíduos, como faziam os filósofos dos séculos XVII e XVIII. É exatamente esse
contrato maussiano que Lévi-Strauss substituirá pelo princípio de reciprocidade. Mauss também generaliza a
noção de mercado – aliás, como outro grande estudioso das trocas arcaicas, da primeira metade deste século,
Karl Polanyi (1980). Ambos irão supor que o mercado sempre existiu, mas a atenção de Mauss recai na
diversidade das formas de troca, buscando uma comparação que procura "atingir uma dupla meta": entender "a
natureza das transações humanas" de um modo geral e traçar a gênese de noções como "interesse individual" e
do próprio sistema de mercado ocidental. Assim, se Mauss generaliza a noção de mercado, por outro lado ele tem
consciência da importância de se pensar a especificidade do mercado ocidental. Nisso há uma recuperação de
alguns dos objetivos de Karl Marx, que, apesar de evidente, tem sido pouco notada. Ainda como Polanyi, Mauss
assume como universais as noções de mercado e contrato, mas não o homo œconomicus ou as noções de
"economia natural" e de estado de natureza (MAUSS, 1974, p. 44).
Como notei, a Antropologia maussiana diferencia-se da dos economistas liberais à medida que, no primeiro caso,
"não são indivíduos mas coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam" (idem). Ou, por outra, as
pessoas que trocam são "pessoas morais", não indivíduos. Nessas trocas, os grupos podem ser representados
por seus chefes (idem, p. 45), mas apenas no capitalismo de mercado a troca é antes de mais nada entre
indivíduos, pois esses são as pessoas morais no sistema. A gênese desse fato distintivo da modernidade é uma
das preocupações de Mauss, posteriormente desenvolvida por L. Dumont.
Como vimos, para Mauss as trocas incluem bens mais ou menos alienáveis, assim como bens economicamente
úteis ou não. Elas podem incluir "serviços militares, danças, festas, gentilezas, banquetes, mulheres"; em resumo,
qualquer "circulação de riquezas" (incluindo-se aqui as mulheres) é apenas um momento "de um contrato mais
geral e muito mais permanente" (MAUSS, 1974, p. 65). Ou seja, o objeto do Ensaio não é a economia primitiva,
mas a circulação de valores como um momento do estabelecimento do contrato social.
Vimos ainda que Mauss chama essas prestações, esses diversos tipos de dádiva, de "totais". Uma forma, para
ele "evoluída" e "agonística" de "prestação total", seria o potlatch dos índios da costa noroeste da América do
Norte (kwakiutl, tsimshian, haida, tlingit, chinook etc.). Nesses casos, chefes, representando diferentes "linhagens"
(ou, mais propriamente, "casas", como demonstrou Lévi-Strauss (1979)), competem entre si, oferecendo-se
mutuamente quantidades cada vez maiores de bens, especialmente brasões de cobre esculpidos e peles de
animais (posteriormente substituídas por cobertores industrializados, dado que estes teriam mais "valor"–
SAHLINS, 1988). "Ganha" o chefe mais generoso. No potlatch, as posições políticas, na tribo e nas
confederações de tribos, são constituídas pela rivalidade entre "casas" (Mauss ainda usa o termo de Boas,
"linhagens"). A troca também pode aí assumir a forma de destruição de riquezas, os escudos brasonados de
cobre jogados ao mar. No potlatch, a troca de certo modo substitui a guerra, mas guardando um sentido de
rivalidade: vence quem dá ou destrói mais, a "luta dos nobres" é a luta dos grupos. Em certos potlatch, o chefe
deve gastar tudo o que possui e nada guardar.
Mauss (1974, p. 47) reserva ao potlatch a denominação "prestação total de tipo agonístico". Isto é, implica um
desenvolvimento da rivalidade, uma maior institucionalização da competição. Em outros lugares, as trocas
assumiriam uma "forma mais elementar de prestação total", sem tanta competição, que seria uma "forma mais
antiga da dádiva" e não seria o objeto de estudo do Ensaio (MAUSS, 1974, p. 98). Ao mesmo tempo em que sua
comparação é cuidadosa, Mauss por pouco não propõe uma tipologia evolucionista, dado que a prestação total
agonística deriva-se da prestação total simples. Digo "por pouco" porque o próprio Mauss não dá grande
importância a esta classificação (das classificações nativas), importância que nós tampouco devemos dar.
Fundamental nessa passagem da "Introdução" é a demonstração de como, nos potlatch, os fato da economia não
se dissociam dos do direito. Mauss especifica a intuição de Durkheim de que a economia é, em última análise,
regida pela religião, ou mais exatamente, por "mecanismos espirituais [...] regras e idéias" (MAUSS, 1974, p. 48) –
a mais forte das quais sendo a própria obrigação moral de retribuição.
 
POLINÉSIA
A Polinésia interessa especialmente a Mauss por causa da noção de mana, através da qual inicia seu estudo
sobre a obrigação de retribuir. A noção de mana é também importante em partes da Melanésia, mas em um
contexto de menor desenvolvimento da chefia como instância centralizadora da vida social. Essa noção permitiria
comparações não só entre essas regiões próximas, mas também entre outras sem uma história de contatos: o
potlatch da costa noroesta americana apresentaria noções semelhantes, implicando honra, prestígio e autoridade;
não retribuir implica perda do mana.
As dádivas perpassam e organizam diferentes esferas sociais. Mauss dá vários exemplos (ilhas Andaman, China,
Polinésia) de como o casamento pode ser entendido como a dádiva de uma mulher. Na verdade, o casamento
envolve uma série de dádivas entre grupos aliados, a dádiva da mulher sendo concebida como a "principal",
aquela que fundamenta a instituição (como o voto pode ser concebido em alguns lugares como a dádiva principal,
que fundamenta as eleições – cf. Lanna, 1995). No casamento, a dádiva da mulher freqüentemente é
acompanhada, como na nossa sociedade, de outras dádivas, feitas a um dos cônjuges (por exemplo, o dote, tão
importante na Europa ocidental do século IV até a revolução industrial – cf. Goody, 1983) ou à familía de um deles
(como no caso da riqueza da noiva, tão importante em toda a África sub-sahariana – cf. Goody, 1973). O
casamento pode ainda ser uma ocasião propícia para um potlatch (Mauss, 1974, p. 107), sendo neste caso a
prestação englobada (Sahlins, 1988), não a englobante.
Mauss repete observações de que as trocas de dádivas assumem múltiplas formas e conteúdos. Elas podem
levar à superação de um estado de guerra. Ou ainda, como entre os andamaneses, por exemplo, entre outras
sociedades, serem associadas não à aproximação mas à interdições, respeito, ritos de separação e evitação; isto
é, elas criam uma relação e ao mesmo tempo sacramentam uma distância entre os parceiros. As dádivas podem
ainda se relacionar ao contrário da evitação, às relações jocosas entre afins (Mauss, 1974, p. 70).
Após refletir sobre a noção de moeda, em geral, a partir do kula e do potlatch, Mauss salienta uma semelhança
entre essas duas formas de troca: ambas são "de ordem nobre" (Mauss, 1974, p. 73). Note-se que a comparação
não é tanto entre sociedades, isto é, não é aquela que propunham na mesma época Boas, Malinowski e Radcliffe-
Brown, cada qual ao seu modo. Não há um esforço para uma contextualização totalizadora da mesma ordem da
que encontramos naqueles grandes etnógrafos. Trata-se, no caso de Mauss, de comparar formas de troca, ou
manifestações específicas de instituições que se revelam fundamentais em diferentes sociedades.
O potlatch sugere a Mauss outros insights, como o de que o jogo e a aposta, mesmo entre nós, são formas de
potlatch: neles "empenha-se a honra e o crédito [e], não obstante faz-se circular a riqueza". Mauss supõe ainda
haver uma associação universal (evidentemente que institucionalizada diferentemente em cada caso) entre troca
e sacrifício (MAUSS, 1974, p. 99); o dar seria associado à vida e o receber à morte. Fica a impressão de que essa
"tendência" se enfraqueceria no capitalismo. No potlatch, muito claramente, é o receber e não o destruir que é
associado à morte. Destruir seria uma forma de dar, uma forma muito específica exatamente porque evita a
retribuição (idem, p. 100). Do ponto de vista do doador, "dar já é destruir", um sacrifício, logo um modo de dar
vida, de regeneração social. Ao se destruir, tira-se a vida do objeto, mas recria-se a vida do doador.
Freqüentemente, no noroeste da América a destruição pode ser pelo fogo (queimam-se casas do próprio grupo)
ou atiram-se os cobres ao mar. Alternativamente, quebram-se os cobres em pedaços (o que, por sinal, não
implica necessariamente que eles deixem de circular).
Ao analisar o potlatch Mauss nota ainda a associação entre troca e circulação de nomes11. Dá-se um potlatch
para ganhar, manter ou recuperar um nome, geralmente nome de linhagem. Ganha-se assim reputação.
Obviamente os insights de Mauss não se limitam ao potlatch. O estudo das trocas permitem-no relacionar o mana
polinésio e melanésio ao "homem largo" da costa noroeste da América e à autoridade romana. Nos três casos
trata-se da associação entre honra e magia, prestígio e riqueza. Mauss (1974, p. 102) nota que o mesmo ocorre
"nas tribos realmente primitivas, como as australianas".
Ao mesmo tempo, perder um potlatch pode gerar escravidão (idem, p. 105), ou ainda, dá-se um potlatch para se
"resgatar cativos" (idem, p. 107). Em resumo, o potlatch indica como a dádiva pode se ligar simultaneamente ao
sacrifício, ao nome e à escravidão. Isso implica, entre outras coisas, sua relevância para o entendimento das mais
variadas sociedades, dos indígenas amazônicos à Roma antiga. A autoridade é assim um conceito romano que
não apenas ou não fortuitamente lembra o de mana: há em torno de ambos semelhantes "arcabouços
institucionais". Assim, o nexum (idem, p. 112) é um conceito romano que lembra a "escravização por dívida" da
costa noroeste; em ambas "empenha-se o nome".
Mauss está consciente que apenas inicia comparações possíveis a partir da noção de dádiva. As comparações
que faz são bastante intuitivas mas também bastante ousadas. Sugere que o potlatch nos permite repensar o
feudalismo europeu. Há entre os tsimchian, por exemplo, dois tipos de potlatchs, o dos chefes e os de vassalos
(idem, p. 107, nota 170). Mas, mais comumente, o potlatch se liga à confederação de tribos, estabelecendo uma
hierarquia entre chefes. Eles têm entre si relações vassalo/suserano; perder um potlatch é tornar-se ora escravo,
ora vassalo. Em alguns casos, estabelece-se que para vencer um potlatch, tornar-se suserano, deve-se antes ter
perdido, ter sido vassalo, recebido bens que seriam futuramente dados (idem, p. 105). Por outro lado, o que um
chefe recebe no potlatch de outro chefe, é necessariamente por ele redistribuído internamente (idem, p. 107). O
chefe que perde um potlatch não perde totalmente sua autoridade, pois é um intermediário; ele está então em
condições de passar adiante algo da alma, da identidade, do ser do vencedor. O perdedor tem assim duas
possibilidades: a primeira seria, a partir dos valores que recebe e de outros que pode vir a acumular, tentar ganhar
outro potlatch no futuro; a segunda seria passar a ser um representante do vitorioso, ainda que tendo seu
prestígio diminuído em relação a este.
na "Conclusão" do Ensaio Mauss não pensa em um paralelismo entre dádiva e mercadoria. Sua idéia, cuja
importância, a meu ver, ainda não foi devidamente avaliada, é a de que, na modernidade, a dádiva está de certo
modo embutida na compra e venda. Isto é, essas lógicas não se excluem porque "as coisas vendidas tem uma
alma" (Mauss, 1974, p. 164). Neste momento do texto, Mauss faz uma defesa do socialismo. Haveria para ele um
resquício da moralidade da dádiva no fato de os trabalhadores –, denominados por ele "produtores" –, terem
"vontade de seguir a coisa que produziram" e "a sensação aguda de que seu trabalho é revendido sem que
tomem parte no lucro". Mas Mauss assume algo, a meu ver, falso e não demonstrado em momento algum do
Ensaio: que também os nativos das sociedades não capitalistas tenham esse "desejo" de seguir as dádivas que
fazem. Os inúmeros exemplos etnográficos do Ensaio mostram exatamente o contrário, a saber:
a) que os desejos não organizam nem a produção nem a distribuição não capitalista;
b) que, ao contrário do que ocorre no capitalismo, a produção pode ser determinada pela troca;
c) que o fato de o doador "ir", ele mesmo, com as dádivas que faz – mesmo que ele não as tenha produzido, mas
tenha sobre elas algum direito (é irmão da esposa do produtor, no caso do urigubu trobriandês, ou é o sobrinho
uterino do produtor, no caso fijiano etc.) – é algo profundamente diferente do argumento psicologizante segundo o
qual o trabalhador "quer seguir" as mercadorias que produz.
A sugestão da "Conclusão" do Ensaio é a de que o trabalho é sempre uma dádiva, em qualquer sociedade,
capitalista (onde ele é também uma mercadoria) ou não. Essa tese segue a tradição da escola de Durkheim de se
opor às análises de Marx da sociedade capitalista, pois, se verdadeira, implicaria a possibilidade de o operário ser
ele mesmo o agente – simultaneamente voluntário e involuntário (dada a brilhante e indiscutível caracterização da
dádiva pelo próprio Mauss) – da entrega de uma parte de si mesmo ao industrial. A posição marxista, quanto a
isso, seria a de que semelhante entrega não deixa de ocorrer, mas não se trataria de dádiva e sim de algum tipo
de apropriação, que talvez merecesse ser tida como extorsão.
Potlatch
Uma definição enciclopédica
1.
De origem índia, a palavra "potlatch" significa dom na linguagem nootka. Os etnólogos americanos descobriram-na e de
na largamente nos fins do século XIX, mas foi o sociólogo francês Marcel Mauss que deu sobre ela a teoria mais comp
"Essai sur le don. Forme et raison de l'échange dans les sociétés archaïques». Identificada na vida social das tribos
Nordeste americano, que forneceram o seu modelo mais notável, a prática do "potlatch" foi encontrada um pouco por t
nas tribos primitivas, sob formas variadas.
2.
O "potlatch" é uma cerimónia com carácter de festa, no decurso da qual um chefe oferece ostensivamente uma quantida
de riquezas a um rival. para o humilhar ou desafiar. Este último, para apagar a humilhação e contrariar o desafio t
satisfação à obrigação moral que reconheceu ao aceitar o dom. Assim, deve mais tarde ser organizado um novo "potl
importante que o primeiro, onde se mostrará mais generoso que o anterior dador. Por outras palavras, deve dar s
Praticado no decurso de uma iniciação, de um casamento, de funerais ou de ascensão ao poder, o "potlatch" mud
segundo as tribos e segundo a importância de quem o organiza.
3.
Os etnólogos que observaram o "potlatch" entre os Tlinguit, os Haida, os Tsimshian e os Kwakiutl puderam verificar que
constituía a sua forma exclusiva. O "potlatch" consiste muitas vezes numa destruição espectacular de enormes riquezas
da costa nordeste chegam a incendiar as suas aldeias, destruir as canoas ou lançar para o mar lingotes de cobre de gr
Neste caso, o "potlatch" evoca as formas religiosas e míticas do sacrifício.
4.
Excluindo qualquer regateio, o "potlatch" é ao mesmo tempo, paradoxalmente, perda e aquisição. O dom das riquezas
aquisição de prestígio, de poder. Destruir e dar resulta afinal numa afirmação do poder de destruir e de dar. Mas
operações só têm sentido se forem praticadas diante do outro. "O ideal", escreve Marcel Mauss, "seria oferecer um "po
não fosse pago na mesma moeda".
5.
É também uma forma primitiva de troca e de concorrência. Um meio de circulação de riquezas que se manifesta sob a
de uma demonstração de generosidade em que há um vencedor e um vencido.
6.
O "potlatch" parece ter atingido o seu apogeu na expressão do luxo, da ostentação e da exuberância entre os Kwakiutl, no
do século XX. Considerado por alguns como uma instituição característica das sociedades de transição entre o comunism
e uma espécie de feudalismo mercantil, o "potlatch" atraiu profundamente os surrealistas e as correntes da vanguar
revolucionária como negação da troca mercantil, fundamento das sociedades modernas, e como expressão do dom desi
que propicia o estabelecimento de relações humanas livres.

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