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Cultura

A primeira concepção de cultura remete a todos os aspectos de uma


realidade social; a segunda refere-se mais especificamente ao conhecimento,
às ideias e crenças de um povo.

José Luiz dos Santos

As várias maneiras de se entender o que é cultura derivam de um conjunto comum de preocupações que podemos
localizar em duas concepções básicas.
A primeira dessas concepções preocupa-se com todos os aspectos de uma realidade social. Assim, cultura diz
respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo ou nação, ou então, de grupos no interior
de uma sociedade. Podemos, assim, falar na cultura francesa ou na cultura xavante. Do mesmo modo falamos na
cultura camponesa ou então na cultura dos antigos aztecas. Nesses casos, cultura refere-se a realidades sociais
bem distintas. No entanto, o sentido que se fala de cultura é o mesmo: em cada caso dar conta das características
dos agrupamentos a que se refere, preocupando-se com a totalidade dessas características, digam elas respeito às
maneiras de conceber e organizar a vida social ou a seus aspectos materiais.
Embora essa concepção de cultura possa ser usada de modo genérico, ela é mais usual quando fala de povos e de
realidades sociais bem diferentes das nossas, com os quais partilhamos poucas características em comum, seja
na organização da sociedade, seja na forma de produzir o necessário para a sobrevivência, seja nas maneiras de
ver o mundo.
Vamos à segunda. Nesse caso, quando falamos em cultura, estamos nos referindo mais especificamente ao conhe-
cimento, às ideias e crenças, assim como às maneiras como eles existem na vida social. Observem que, mesmo
aqui, a referência à totalidade de características de uma realidade social está presente, já que não se pode falar
em conhecimento, ideias, crenças sem pensar na sociedade à qual se referem. O que ocorre é que se atribui ên-
fase especial ao conhecimento e dimensões associadas. Entendemos nesse caso que a cultura diz respeito a uma
esfera, a um domínio da vida social.
De acordo com essa segunda concepção, quando falarmos em cultura francesa, poderemos estar fazendo referên-
cia à língua francesa, à sua literatura, ao conhecimento filosófico, científico e artístico produzidos na França e às
instituições mais de perto associadas a eles. Outro exemplo comum dessa segunda concepção de cultura é a refe-
rência à cultura alternativa, compreendendo tendências de pensar a vida e a sociedade na qual a natureza e a re-
alização individual são enfatizadas, e que tem por temas principais a ecologia, a alimentação, o corpo, as relações
pessoais e a espiritualidade. Ao se falar em cultura alternativa incluem-se também as instituições associadas,
como lojas de produtos naturais e clínicas de medicina alternativa, e da mesma forma seus meios de divulgação.
(SANTOS, 1983) Divulgação.

E
ssas concepções levam muitas vezes a entender cultura como uma
realidade estanque e parada. As culturas humanas são dinâmicas.
De fato, a principal vantagem de estudá-las fundamenta-se na con-
tribuição que oferecem para o entendimento dos processos de transfor-
mação por que passam as sociedades contemporâneas. Esse é um ponto
muito importante. Como veremos a seguir, as próprias concepções de
cultura estão ligadas muito de perto a esses processos de transformação
ao longo de nossa história.

A performance de Morais Mo-


reira, um dos ícones da música
brasileira.
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Cultura

A construção pessoal da moral


A moral não se reduz à herança dos valores históricos e sociais recebidos
pela tradição. À medida que a criança se aproxima da adolescência, aprimorando
o pensamento abstrato e a reflexão crítica, ela tende a colocar em questão os va-
lores herdados. Algo semelhante acontece nas sociedades primitivas, quando os
grupos tribais abandonam a abrangência da consciência mítica e desenvolvem o
questionamento racional.
A ampliação do grau de consciência e de liberdade, e, portanto, de respon-
sabilidade pessoal no comportamento introduz um elemento contraditório que irá,
o tempo todo, angustiar o homem: a moral, ao mesmo tempo que é o conjunto de
regras que determina como deve ser o comportamento dos indivíduos do grupo, é
também a livre e consciente aceitação das normas.
Isso significa que o ato só é propriamente moral se passar pelo crivo da
aceitação pessoal da norma. A exterioridade da moral contrapõe-se à necessidade
da adesão mais íntima.
Portanto, o homem, ao mesmo tempo que é herdeiro, é criador de cultura,
e só terá vida autenticamente moral se, diante da moral constituída, for capaz de
propor a moral constituinte, aquela que é feita dolorosamente por meio das expe-
riências vividas.
Nessa perspectiva, a vida moral se funda numa ambiguidade fundamental,
justamente sobre aquela que determina o seu caráter histórico. Toda moral está
situada no tempo e reflete o mundo em que a nossa liberdade está situada. Diante
do passado que condiciona nossos atos, podemos nos colocar a distância para re-
assumi-lo ou recusá-lo. A historicidade do homem não está na mera continuidade
no tempo, mas constitui a consciência ativa do futuro, que torna possível a criação
original por meio de um projeto de ação que tudo muda.
Cada um sabe, por experiência pessoal, como isso é penoso, pois supõe a
descoberta de que as normas, adequadas em determinado momento, tornam-se
caducas e obsoletas em outro e devem ser mudadas. As contradições entre o velho
e o novo são vividas quando as relações estabelecidas entre os homens exigem um
novo código de conduta.
Mesmo quando queremos manter as antigas normas, há situações críticas
enfrentadas devido à especificidade de cada acontecimento. Por isso a cisão tam-
bém pode ocorrer a partir do enredo de cada drama pessoal: a singularidade do ato
moral nos coloca em situações originais em que só o indivíduo livre e responsável é
capaz de decidir. Há certas “situações-limite”, tão destacadas pelo existencialismo,
em que regra alguma é capaz de orientar a ação. Por isso é difícil, para as pessoas
que estão “do lado de fora”, fazer a avaliação do que deveria ou não ser feito.

Entre o caráter social e pessoal da moral


Como vimos, a análise dos fatos morais nos coloca diante de dois polos con-
traditórios: de um lado, o caráter social da moral; de outro, a intimidade do sujeito.
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Cultura

Se aceitarmos unicamente o caráter social da moral, sucumbimos ao dog-


matismo e ao legalismo, isto é, ao caracterizar o ato moral como aquele que se
adapta à norma estabelecida, privilegiamos os regulamentos, os valores dados e
não discutidos. Nessa perspectiva, a educação moral visa apenas a inculcar nas
pessoas o medo às consequências da não observância da lei.
Trata-se, no entanto, de vivência moral empobrecida, conhecida como fari-
saísmo: numa passagem bíblica, um fariseu (membro de uma seita religiosa) louva
o seu próprio comportamento, agradecendo a Deus por não ser “como os outros”
que transgridem as normas. Tal formalismo muitas vezes pode ser visto como
pretensão e hipocrisia.
Por outro lado, se aceitarmos como predominante a

Divulgação.
interrogação do indivíduo que põe em dúvida a regra, cor-
remos o risco de destruir a moral, pois, quando ela depende
exclusivamente da sanção pessoal, recai no individualismo,
na “tirania da intimidade” e, consequentemente, no amora-
lismo, na ausência de princípios. Ora, o homem não é um ser
solitário, um “Robinson Crusoé na ilha deserta”, mas con-
vive com pessoas, e qualquer ato seu compromete os que o
cercam. Carnaval de rua em Salvador (BA), animado
por trio elétrico, uma das grandes manifesta-
Portanto, é preciso considerar os dois polos ­contraditórios ções culturais do povo brasileiro.
do pessoal e do social numa relação dialética, ou seja, numa
­relação que estabeleça o tempo todo a implicação recíproca entre determinismo e li-
berdade, entre adaptação e desadaptação à norma, aceitação e recusa da interdição.
Para tanto, o aspecto social é considerado sob dois pontos de vista. Em
primeiro lugar, significa apenas a herança dos valores do grupo, mas, depois de
passar pelo crivo da dimensão pessoal, o social readquire a perspectiva humana
e madura que destaca a ênfase na intersubjetividade essencial da moral. Isto é,
quando criamos valores, não o fazemos para nós mesmos, mas para se relacionar
com os outros.
Essa questão é importante sobretudo nos tempos atuais, quando nos encon-
tramos no extremo oposto das sociedades primitivas ou tradicionais, nas quais
persiste a homogeneidade de pensamento e valores. Hoje, nas grandes cidades, há
múltiplas expressões de moralidade, e a sabedoria consiste na aceitação tolerante
dos valores dos diferentes grupos, evitando o moralismo, que é impor nosso ponto
de vista aos outros.
Isso não deve ser interpretado como defesa do extremo relativismo em que
todas as formas de conduta são aceitas indistintamente. O professor José Arthur
Gianotti assim se expressa:
Os direitos do homem, tais como em geral têm sido enunciados a partir do século XVIII,
estipulam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo, cada um não deixará
de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver com outras, reconhecer a
unilateralidade de seu ponto de vista. E com isso está obedecendo à sua própria moral de
uma maneira essencialíssima, tomando os imperativos categóricos dela como um momen-
to particular do exercício humano de julgar moralmente. Desse modo, a moral do bandido
e a do ladrão tornam-se repreensíveis do ponto de vista da moralidade pública, pois violam
o princípio da tolerância e atingem direitos humanos fundamentais. (GIANOTTI, 1992)

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Cultura

Uma pesquisa realizada em seis grandes capitais do país, publicada pela revista Superinte-
ressante, mostra que infelizmente os comportamentos de “levar vantagem” e “dar um jeitinho” são
reconhecidos como típicos dos brasileiros por uma parcela considerável da população (veja as por-
centagens na tabela).
No entanto, o jeitinho não é exclusivo do nosso povo nem de nosso tempo, conforme este texto
do jornalista Pedro Cavalcanti:
“Em Roma ela se chama bustarela; em Moscou, vzyatha; em Berlim, tink geld, e em Brasília
pode ser jeitinho, mas em qualquer lugar do mundo e a qualquer época será sempre corrupção, uma
prática tão antiga quanto a existência do homem. Sua arma predileta é disfarce, e seu instrumento
mais eficaz, o suborno, desde o mais célebre, o de Judas Iscariotes, ao do empresário que paga comis-
são ao homem público para aprovação de um negócio”.

Juízo de valor Porcentagem 100%


O brasileiro é bem-humorado 70

Cuida mal da natureza 68

Espera tudo do governo 67

Dá sempre um jeitinho 62

Não luta pelos seus direitos 58

Quer sempre levar vantagem 57

Tem bom coração 49

É cordial 43

É racista 39

1. Que situações evidenciam crises éticas?

2. Dê outros exemplos do jeitinho na nossa vida cotidiana.

3. A invasão cultural estadunidense no Brasil influenciou a cultura brasileira? Justifique.

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