Você está na página 1de 17
Viadimir Safatle i QUANDO AS - RUAS edigsts MA Civ come imagem do mundo 6 de toda maneita uma deta insipid, Na verdade no basta dizer Viva © mito, grito de resto diff de emir. Nenhuma habiidade tpogrétca, lexical ou mesmo Sintética ser sufciente para fazé-lo ouvir E preciso fazero muliplo, nao aerescentando sempre uma ‘imensao superar, mas, a0 contri, da maneira ‘mais simples, com forga de sobiedade, no nivel das dimensies de que se cispde, sempre n-1 (€ somente assim que o uno faz parte da mito, estanda sempre subireiGo dele). Subtira tnico da mutiplicidade a ser constitu; eserever a= Giles Deleuze e Félix Guattar Ndi irma CORSO 1G o A] bs] oéfilha do rigor” (Georges Canguilhem) UANDO AS RUAS QUEIMAM: MANIFESTO PELA EMERGENCIA Haveria de chegar um tempo no qual as ruas comegariam a queimat. Desde 2008, elas queimam nos mais variados lugares. Em Tdnis, ‘em Sao Paulo, no Cairo, Istambul, Rio de Janeiro, Madri, Nova York, Santiago, Brasilia. Elas alnda queimardo em muitos outros ¢impre~ vistos lugares, recolocando o que é separado pelo espago em uma ‘sétie convergente no tempo. Na verdade, por mais que alguns procu- em se convencer do contrério, por mais que agora o fogo pareca ter momentaneamente se retraido, as tuas desde entao no pararam de queimar, elas 86 deslocaram suas intensidades. E importante lem- brat disso, pois hé algo que pode existir apenas quando as chames explodem em uma coreografa ncontolada deintensidades varéves. Porisso, diante de ras queimando nao ha de se corres, nao ha de se gitar, nd apenas de se perguntar: 0 que faa ofogo? 0 que se cz apenas sob a forma do fogo? (Quem ouve o ogo a queimar ruas percebera que cle cz sempre & mesma coisa: que 0 tempo acabou. Nao apenas que nao temos mais tempo, mas princinalmente que no hé mais como contar otemPo que esté a nascer como uma possiolidade mais uma vez presente Um tempo que ndo se conta mais, que nao se narra mais, que né0 se habita mais tal como até agora se habitou. Este tempo produairé suas narrativas e seus habitantes e queimaré o tempo no qual narravamos « habitévamos e contaré com nimeros que ndo conhecemos e ters tensdes que néo saberiamos como deduzire despossuiré e nao seré mais medido como instante ou durago e seré outro ao im e a0 cabo. ‘Quem ouve o fogo perceberd que ele também dizoutra coisa: que ‘no ha mais lugar. Em 2013, quando no Brasil as ruas comecaram ‘a queimar, uma jomalista entrevistou um manifestante. Ao final, ela perguntou seu nome: “Anota af, eu sou ninguém.” De fato, a frase no poderia ser mais clara. Como um Ulisses redivivo diante dos gigantes Polifemo que parecem vir atualmente de todos os lads, ele encon- trou na negagao de si a astiicia maior para conservar seu préprio destino. Por mais paradoxal que possa inicialmente parecer, “eu SO ringuém” é a mais forte de todas as armas politicas. Pois quem eon ‘rola o modo de visibilidade e nomeagao, controla o que iré sparecer e como se construirao circultos de afetos. Por isso, a negatividade sempre foi uma asticia daqueles que compreendem quealiberdade pela capacidade de destituir 0 Outro da forga da enunciagao dios regimes de visiblidade possiveis. “Eu sou ninguém” é, na veréade, ‘a forma contraida de: “Eu sou 0 que vocé no nomeia endo consegue representar.” Para existir, é necessério fazer a linguagem encontrar ‘seu ponto de colapso. Nés somos apenas é onde a linguagem encon- ‘ra seu ponto de colapso. Na verdade, exist é colocarem circulagao ‘um vazio que destitul, uma nomeag&o que quebra os nomes. Se me permitirem, é necessério ser um sujeito antipredicativo. Contra este tempo e este espago, 0 poder inventa todas as for- mas de urgéncias, de ataques teroristes, de crises econdmicas, de violencia estatal. Ele exige uma solidariedade & situacdo atual forjada no medo e no gozo. Poucos sao 0s que aderem a situagéo atual a per tirde uma étioa da convicgdo; a grande maioria adere simplesmente sem crenga. O que nao poderia ser diferente, j4 que o poder atual basela-se na mobilizagao continua da auséncia de safda, da ausén- cia de escolha. Sua légica é a légica do sufocamento. Esta é uma das mais miserdveis ironias de nosso tempo: um regime que prega a livre-escolha legitima-se através da insisténcia continua de que nao temos escolha, Nao hé outro camino, dizo mantra das economistas- -jomalistas, consultores de sistemas financeitos especializados em se salvar na base do assalto 20 dinheiro piblico, E s6 hd uma forma de levar as pessoas a acreditarem nao ter escolhas: hd de se gerire produzir continuamente o medo, gerirsituacbes de emergéncia que se tomam regra, criar um regime que se sustenta na contradiggo de ser, ao mesma ternpo, liberal e miltarsta, permissivo€ restritvo, que prega a liberdade incividual mas grampeia seu telefone. Um regime ue invade sua privacidade em nome de sua propria seguranga. Porisso, ele necessita fazer os ataques terroristas reverberarem ‘no mundo inteiro, com imagens se repetindo de forma obsessiva ‘comentadas por jomalistas com seu espanto ensalado, para afinal es com essa promessa tdcita de sucesso de ‘auidiéncia, para arrastar todos os que cairam sob a lgica do ressen- timento social a promessa de fim do enonimato e de protagonismo fencarnado no papel principal na cena mundial. 0 gosto macabro pela visiblidade de eventos de violéncia espetacular € apenas a prova da necessidade continua de catastrofes e de circulagao de inseguran- ‘¢a como pratica de governo. Como ja dizia Durkheim, e isto nossos govemos sabem bem, 0 crime no é uma patologia social, mas um ispositivo fundamental para o fortalecimento da coesao. Por isso, nunca houve e nunca haverd sociedade sem crime, Através do crime, a sociedade fortalece seu sentimento de unidade contra 0 dano so- ‘ido, ela volta & vida porter um rsco de desagregacao é espreita. Bia precisa do crime. Na governabilidade atval, o crime nao € algo que ~ ge combate, ele é algo que se getencia. Tudo fica mais fac quando 0 governo se reduz.a um gabinete de crise. Isso talveznos explique por {que nossa época passat & historia exatamente como o momento em que crise, em todas as suas formas, virou uma forma de governo. O ideal do neoliberalismo é transformar a pratica de governo na gesto de um gabinete infinito de crise. Isso & facilitado pelo fato de 0 neoliberalismo ser, mais do que ‘uma doutrina econémica, um discurso moral. Sua necessidade se impée a nés como uma injungéo moral, como uma moral baseada na coragem enquanto virtude. Coragem para assumir o risco de viver ‘em um mundo no qual s6 se sobreviveria através da inovaco, da fle- xibilidade e da criatividade, Assumirriscos no livre-mercado aparece atualmente como a expresso maior de maturidade vir, como saida da minoridade a que estariam submetidos aqueles pretensamente infantilizados pela demanda de amparo do estado-providencia, Esse ‘mantra leva os sujeitos a acreditarem que, se eles fracassaram econo- micamente, é por culpa absolutamente individual, por culpa da minha e deme “recicar” como uma garrafa pet. Enquanto essa moral do risco simulado era brandida em voz alta, dois economistas italianos (Guglielmo Barone e Sauro ‘Mocetti) civul- garam em 2016 um sintomatico estudo mostrando como 0 sobreno- me das pessoas ricas em Florenca séo, em larga medida, os mesmos de 1427 a 2011. Certamente, deve ser por mérito € pela capacidade destas familias em educar seus filhos para ter coragem diante do ris- 0. Até porque, podem ficartranquilos, pois na primeira crise 0 Estado iré salvé-los, como salvou Citibank, BNP/Paribas, Deutsche Bank e tantos outros durante séculos. 0 que se diz atualmente é: contra este patrimonialismo explicito travestido de “mérito”, contra este rentismo. ‘que se faz passar por “coragem” nao ha escolha. Hé dese ter clareza desse ponto para compreender um paradoxo aparente. Costumamos acreditar que de todo acontecimento emer- ‘g2 um novo sujeito politico, Mas nosso tempo tem mostrado como todo acontecimento produztambém méitiplossujltos que procuram, om todas as suas forgas, negar que o tempo acabou e que o lugar implodiu. Eles se servem da abertura produzida pelas chamas que ueimam nossas rvas para usar o fogo na caldeira que cozinha o fes- tim de sentimentos reativos com seus golpes brancos, suas fronteiras, suas bandeiras nacionais, sua ressurrei¢ao de arcaismos. Foram es- Se golpes e essas fronteiras e essas bandeiras e esses arcaismos ‘que nos fizeram perder até agora e inocular melancolia em alguns

Você também pode gostar