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Sobre a “Íntima Relação” entre Psicanálise e Economia Política

A lógica da crítica da economia política marxista é aquela em que o termo de


medida e estruturação de um sistema de valor encontra-se submetido às próprias
variações do sistema – o dinheiro que não preço, mas tem valor. Enquanto tal, é um
sistema que fundamentalmente é inconsistente exatamente por não ter exterioridade e a
crise o atesta. O mesmo ocorreria com a linguagem ou o sistema do significante, o falo
que não tem sentido mas garante o sentido, assegura a estabilidade do sistema, contudo,
ao entrar em crise – uma espécie de passagem de Φ para S(Ⱥ) –, um sistema linguístico
mal consegue garantir sentidos estáveis ou compartilháveis, realidade comum,
identidades reconhecíveis, homogeneização do gozo ou ideais coletivos. Diante da
transformação dos modos de sofrimento ou dos sintomas, da época de Freud para hoje, é
sugestiva a hipótese de que algo na estrutura

E Lacan mesmo atesta a situação de crise associando-a, além do capitalismo, ao


discurso da ciência, duas lógicas promovem esse desligamento (Lacan, sem 16, Lacan,
sem 20).

Mas, então, porque uma sociedade que atinge um acme de heterogeneidade não
simplesmente colapsa?

Marx observa que quanto menos força social possui um meio de troca, mais
estreitos serão os laços comunitários – “relação patriarcal, comunidade antiga,
feudalismo e sistema corporativo” (MARX, 2008, p. 106) – nesse contexto, o poder é
exercido diretamente, de pessoas sobre pessoas; além disso, também aponta que as
trocas de mercadoria começam na fronteira das comunidades, isto é, funciona como um
meio de relação entre estrangeiros. Assim, interponha-se entre as pessoas o dinheiro, um
meio de troca forte, e teremos um mediador que promove a dissolução dos laços sociais
fortes, desta sorte: “desenvolve-se o cosmopolitismo dos comerciantes, como um dogma
da razão prática, opostamente aos preconceitos hereditários, religiosos, nacionais e
todos os demais que criam obstáculos à circulação da matéria da humanidade” (MARX,
2008, p. 193). Ou ainda, “A mercadoria em si e por si é superior a qualquer barreira
religiosa, política e linguística. Sua língua universal é o preço e sua comunidade, o
dinheiro” (MARX, 2008, pp.192-193).

Foi necessário, desse modo, o fortalecimento do meio social de intercâmbio para


que o indivíduo fosse produzido:
Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso
também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como
membro de um todo maior: de início, e de maneira totalmente natural,
na família e na família ampliada em tribo; mais tarde, nas diversas
formas de comunidade resultantes do conflito e da fusão das tribos.
Somente no século XVIII, com a “sociedade burguesa”, as diversas
formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio
para seus fins privados, como necessidade exterior. Mas a época que
produz esse ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado, é
justamente a época das relações sociais (universais desde esse ponto
de vista) mais desenvolvidas até o presente. O ser humano é, no
sentido mais literal, um ξωον πολιτικόν [animal político], não apenas
um animal social, mas também um animal que somente pode isolar-se
em sociedade. A produção do singular isolado fora da sociedade – um
caso excepcional que decerto pode muito bem ocorrer a um civilizado,
já potencialmente dotado das capacidades da sociedade, por acaso
perdido na selva – é tão absurda quanto o desenvolvimento da
linguagem sem indivíduos vivendo juntos e falando uns com os outros
(MARX, 2008, p.40, grifo nosso).
Portanto, a máxima consistência do indivíduo, ou do eu, se articula em par a um mundo
se nos apresenta em isolamento, conforme Lacan, desamparo. Vale a pena o citarmos
novamente com o adendo suprimido anteriormente:

Não há nada diante do sujeito senão ele [o objeto a], o um-a-mais


entre tantos outros, e que de modo algum pode responder ao grito da
verdade, mas que é, muito precisamente, seu equivalente – o não-
gozo, a miséria, o desamparo, a solidão. Tal é a contrapartida do a,
que constitui a coerência do sujeito enquanto eu (LACAN, 2008, pp.
24-25, grifo nosso).
De um lado, o objeto consistindo na coerência do eu, de outro, o mais-de-gozar que
preda e empobrece a vida comum ou o simbólico.

Lacan (s/d) dirá no Seminário 14 que a fantasia é uma construção feita a partir
de restos não inscritos na ordem simbólica ou permeados de gozo, sendo assim, uma
ordem simbólica

––

. Nessa mesma linha, dirá Lacan no Seminário 6:

[A fantasia,] ela só pode ser concebida após ter sido ordenada segundo
uma economia inconsciente, que subjaz a ela como perversa [i.e.
embebida de gozo]. Embora pareça como a amarração do desejo, seu
derradeiro termo, seu enigma, ela só pode ser compreendida em
função de um circuito inconsciente que, por sua vez, se articula
através de uma cadeia significante profundamente diferente daquela
que o sujeito comanda, s(A)→A (Lacan, 2016, p. 332-333).

O capitalismo seria, então um arranjo social que promove o ligamento de um


campo desligado e heterogêneo. Essa heterogeneidade

O que é, portanto, compartilhado pelos agentes e que só pode se realizar


coletivamente é o trieb, impulso de enriquecimento em Marx ou imperativo de gozo em
Lacan, o qual funciona como chave de todo o sistema.

Considerações Finais
Para Jameson, é somente no momento em que o capitalismo, de fato, ganhou
todo o mundo, a globalização, que entramos integralmente na lógica marxista articulada
no sec. XIX, só agora temos a

mais pura forma de capital que jamais existiu, uma prodigiosa


expansão do capital que atinge áreas até então fora do mercado.
Assim, esse capitalismo mais puro de nosso tempo elimina os
enclaves de organização pré-capitalista que ele até agora tinha
tolerado e explorado de modo tributário. Nesse sentido, somos
tentados a falar de algo novo e historicamente original: a penetração e
colonização do Inconsciente e da Natureza, ou seja, a destruição da
agricultura pré-capitalista do Terceiro Mundo pela Revolução Verde e
a ascensão das mídias e da indústria da propaganda (JAMESON,
2007, p. 61).
A “tentação” à qual se refere Jameson nos é sugestiva, hoje já não se vê muitos
neuróticos freudianos em nossos consultórios, nos deparamos, no mais das vezes, com
modos de sofrimento articulados na forma de vícios, depressão, ansiedade... Nesse
sentido, recuperar a lógica do objeto na psicanálise em conformidade com o capital seria
um passo útil para visar os dilemas presentes na clínica atual. Por fim, compartilhamos
da tese de Tomsic (ANO) referente a um Inconsciente Capitalista, mas tomamos outro
caminho.

Nossa tese é de que o capital funciona como uma espécie de metapsicologia,


mas isso não é simplesmente um chute, é porque ele que permite que vivamos nossas
vidas de maneira individual, com um inconsciente ou fantasias que se relacionam
apenas fortuitamente com os outros.

Foi revelado ali o “segredo da forma”, o qual sabemos ser a própria forma.
Sendo assim, crise econômica e cultural ou do sistema da linguagem, compartilhariam
de uma íntima relação.

As referências a Marx ao longo do ensino de Lacan, conforme vimos, não são


fortuitas e sugerem que o objeto da psicanálise comparte da mesma infraestrutura da
mercadoria.

Quando na hiperinflação da República de Weimar, 29,5 mil por cento ao mês, podia se
ver um carrinho de mão abarrotado de Marcos para se comprar um pão, nesse momento
via-se o dinheiro disfuncional quanto a engendrar o processo de troca (há foto de gente
varrendo uma rua abarrotada de Marcos). Seguindo essa linha, colapso da fantasia

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