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Há uma fábula, a ouvi quando criança na escola: havia um incêndio na floresta, um

beija-flor se ocupada incansável de ir ao ribeirão pegar um pequeno esguicho de água


com o bico e jogar no fogo. Um urso, ou qualquer outro bicho grande se aproxima e diz
algo como: “não vês que teu gesto não adianta? Não é efetivo para controlar o controlar
o incêndio”. O beija-flor torna com alguma lição de moral, diz algo como “pelo menos
estou fazendo minha parte” ou “se todos fizessem como eu poderíamos conter o
incêndio”...

Essa fábula diz muito sobre os nossos dias, desde que façamos pequenas modificações.
Como no mundo do beija-flor e do urso, o nosso está em destruição, está quente, a nossa
floresta realmente está superaquecida. Como no mundo do beija-flor e do urso, a
catástrofe é inevitável; ainda que o urso se dispusesse a buscar água no ribeirão, ainda
que o urso fosse um elefante, o incêndio não seria detido, ainda que a lição de moral
dada pelo beija-flor convencesse o urso, eles teriam que convencer tantos outros
animais que acabariam num impasse entre militar e jogar água ao fogo, uma atitude
exclui a outra. A modificação nessa pequena fábula, e pertencendo, nós, a uma época
em que Kafka já viveu, seria que, diante do caráter realista da reprovação do urso, o
beija-flor simplesmente seguiria em sua cruzada de um homem só. O fim
contemporâneo dessa fábula não poderia trazer consigo uma lição de moral.

Bem sabemos que em nossos tempos uma lição de moral seria inócua, vivemos em
tempos cínicos e individualistas, não porque somos cínicos e individualistas, é uma
questão de mundo. O cinismo, desde Sloterdjik, é uma atitude saudável, razoável ou
sobrevivencialista diante de um mal inevitável. Postos nessa atmosfera de mal inevitável
– atmosfera deve ser tomado no sentido literal e metafórico – podemos deprimir e
panicar, a menos que consigamos fazer a opção pelo cinismo, que é uma defesa contra o
pânico e a depressão de fundo, os quais, por sua vez, são respostas derivadas da
impotência diante de um mal inevitável ou difuso. Impotência, esta, decorrente do
individualismo. O individualismo, por sua vez, não é uma disposição individual a ser
individualista, pelo contrário, encontramo-nos todos ou a grande maioria a ajudar os
outros, eventualmente, a cometer pequenos sacrifícios em benefício de amigos ou até
desconhecidos. O individualismo é: primeiro, a não-conexão ou conexão fraca com o
entorno – por conexão fraca entendo vínculos fortuitos decorrentes do dinheiro ou da
imagem, por não-conexão é toda a multidão anônima que não é eu mas coabita o espaço
do eu. Segundo, a competição por recursos escassos, são só dois: dinheiro e emprego,
embora pudesse ser só o dinheiro, se o recurso é escasso e não tem pra todo mundo, a
sabedoria popular nos diz “farinha pouca, meu pirão primeiro”; embora sejamos
altruístas, a generosidade vai até um limite, o limite da competição por recursos
escassos, o que opera como uma espécie de contraforça ao coletivismo.

O beija-flor, sabendo que não pode ou não deveria tornar ao urso com uma lição de
moral – não deveria porque, ainda que a lição de moral funcionasse, é justo convocar o
outro pra uma tarefa de morte sem nenhuma recompensa? Alguém aí, todos
alimentados, tem coragem de convocar um mendigo para uma militância climática ou
socialista? (isso não é uma pergunta retórica) – responderia com o silêncio, o silêncio
que seria de compadecimento, de orgulho, de indiferença... não sei ao certo qual o afeto
seria associado ao silêncio, possivelmente todos os anteriores e mais alguns, mas, como
quer que o urso entendesse ou silêncio do beija-flor, um ruído de fundo seria ouvido ou
expresso, a angústia. O beija-flor sabe que o urso é cínico e o beija-flor sabe, também,
que o urso está correto e sabe, de novo, que ambos dão respostas inócuas para o mesmo
problema.

A diferença entre o beija-flor e o urso é que o primeiro tem mais clareza da pergunta
que estrutura nosso mundo: “o que é viver nesse tempo?”, “o que significa viver no fim
do mundo?”, “qual pode ser o sentido da vida se não se nega que nada pode ser feito?”
O beija-flor é um que tem alguma dimensão dessa pergunta, enquanto o urso tem
somente o sentimento dessa pergunta. Se o cinismo não é nada mais que um tipo de
negação ou escamoteação do sentimento do mundo, o contrário do cinismo não age
sobre a matéria do mundo e não

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