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O CONTRATO SOCIAL DE ROUSSEAU

TOMÁS BASTIAN DE SOUZA


DOUTOR EM FILOSOFIA - USP

Para começar, faremos uma breve exposição do que chamamos de universo categorial
determinado pela troca de mercadorias. Estas categorias são comuns, em linhas gerais, ao
pensamento iluminista. O ponto central a ser ressaltado é que, no mundo baseado na relação de
troca, os indivíduos se contrapõem como proprietários de mercadorias, cada um com seus
interesses particulares opostos aos dos outros. Por conseguinte, o indivíduo aparece como indivíduo
isolado e independente − aquele que antes era mera parcela de um processo global, aparece agora
como instância autônoma, como um começo absoluto. É justamente este o ponto de partida da
filosofia moderna e, especificamente, do Iluminismo: o individualismo. Mas não se pode confundir o
termo "individualismo", aqui, com qualquer forma de egoísmo. Individualismo designa uma forma de
pensamento que toma como ponto de partida o homem enquanto indivíduo isolado e, portanto, como
um começo absoluto e autônomo.
Na filosofia moderna, o individualismo se manifesta nitidamente no fato de seu ponto de partida
ser o sujeito, ou seja, as representações do indivíduo enquanto ser autônomo, isolado dos demais.
Devido à transformação real que altera a posição do indivíduo no processo efetivo de produção da
vida humana − ou seja, à autonomização prática do indivíduo gerada pela troca como centro da
atividade humana −, não há mais nenhuma instância supra-individual que determine sua vida, como
a tradição, a religião etc. O indivíduo aparece, na realidade efetiva, na prática, como fonte autônoma
de suas próprias decisões. Daí o sujeito, a consciência do indivíduo, aparecer como ponto de partida
absoluto de toda a filosofia. Basta pensarmos nas Meditações e no Discurso do Método de
Descartes, que constróem todo o edifício do conhecimento a partir da primeira certeza do sujeito; ou
seja, a consciência individual fechada em si mesma é o começo absoluto de toda a filosofia. O
problema central do individualismo na teoria do conhecimento é bem formulado por Luc Ferry: "como
fundamentar a objetividade a partir das representações do sujeito?" (Homo Aestheticus, Ensaio, p.
37). Genericamente, o problema da modernidade, por partir do indivíduo como começo absoluto,
pode ser formulado da seguinte maneira: "como é possível fundamentar, na radical imanência dos
valores à subjetividade, a transcendência dos valores, para nós como para outrem" (Id., p. 32).
Mas este problema também aparece na filosofia política: "como fundamentar o coletivo nas
vontades particulares?" (p. 37). Se a sociedade foi dissolvida em seus átomos, os indivíduos, não é
mais possível fundamentar o poder político na vontade de Deus e, com isso, na hereditariedade. O
estado de natureza, presente na obra de todos os contratualistas, é justamente a dissolução da
sociedade no seu elemento último, o indivíduo, que é representado como indivíduo isolado,
autônomo e independente − um todo completo, fechado em si mesmo. Assim como na teoria do
conhecimento, o começo absoluto de todo o sistema político é o indivíduo isolado, portanto, ele ou
mais especificamente a sua vontade individual será o critério de legitimidade do poder. Agora, "a
autoridade política legítima não é a que imita uma ordem natural ou divina, mas sim a que se
fundamenta na vontade dos indivíduos, quer dizer, empregando o termo filosófico que convém: na
subjetividade" (Id., p. 35 − grifos do autor). Com isso, para os contratualistas, "a sociedade política
aparece de ponta a ponta, pelo menos quanto à questão da legitimidade, como a realização das
vontades individuais" (Id.). O sujeito político criado é o único elemento que permite fundamentar o
coletivo a partir do indivíduo, mas somente na medida em que obedece às mesmas determinações
do indivíduo isolado − não é senão um grande indivíduo moral. O coletivo só é legítimo na medida
em que se fundamenta nas vontades particulares e, por conseguinte, obedeça às determinações do
indivíduo isolado. O indivíduo − sempre concebido como ser isolado e fechado em si mesmo, como
um todo completo − emerge, portanto, como o modelo supremo de todo o pensamento moderno,
inclusive o político.
Mas, como vimos, a posição e as determinações do indivíduo no pensamento moderno são
fruto da posição e das determinações do indivíduo na realidade moderna. É só porque na prática
efetiva o indivíduo aparece como ser autônomo, devido a uma forma de vida social baseada na troca
de mercadorias, que o indivíduo pode ser representado como ser autônomo. E, independentemente
das intenções de cada autor em particular, esta forma de representação que toma o indivíduo como
ser isolado por natureza está diretamente comprometida com a atividade que faz do indivíduo um ser
isolado, a troca. O que significa que está comprometida com o grupo humano que tem a troca como
atividade central, ou, para ser radical, com a própria forma de produção da vida humana baseada na
troca de mercadorias − com o mundo do capital.
Porém, ser porta-voz deste mundo não significa necessariamente ser conservador. No caso de
Rousseau, por exemplo, tal posicionamento era extremamente progressista e revolucionário −
insisto, independentemente das intenções do autor. Rousseau se pôs como porta-voz do mundo
nascente, que naquela ocasião significava um progresso. Mais tarde, porém, o mesmo
posicionamento iria de encontro ao desenvolvimento humano, uma vez que afloraram nitidamente as
contradições próprias a esta forma de vida, principalmente com a Revolução Industrial. De modo que
apoiar a burguesia, neste momento histórico, significa o mesmo que apoiar uma forma de produção
da vida que nega o próprio homem e seu desenvolvimento. Porém, para superar esta posição, é
necessário superar também a concepção do indivíduo tal como ele aparece neste mundo, ou seja,
como indivíduo isolado − este o caso de Marx.
Rousseau criticou severamente o mundo em que viveu, mas, por não ter superado o universo
categorial da burguesia, ou seja, o individualismo filosófico − tal como foi aqui determinado − ,
esteve impossibilitado de propor uma superação radical do mundo em que viveu − se é que isto era
possível. O máximo a que poderia chegar, permanecendo no interior deste universo categorial, isto
é, nesta posição, era ao mais alto grau de liberdade humana no interior dos pressupostos do mundo
que tinha sob seus olhos, ou seja, a liberdade política. Mas, justamente por perceber certas
contradições, ainda que impossibilitado de compreendê-las corretamente, Rousseau foi obrigado a
encontrar a melhor solução possível sob os pressupostos do mundo baseado na troca de
mercadorias.
Mas o individualismo é, na verdade, somente a base do universo categorial a que nos referimos.
Agora, consideraremos algumas das categorias centrais deste universo, com o objetivo de mostrar
como elas correspondem à esfera real da troca de mercadorias, mais especificamente, à esfera da
circulação de mercadorias − que pode ser considerada como a aparência1 do modo de produção do

1Aparência não quer dizer falsidade, mas apenas a forma como realmente aparecem as coisas, na realidade mais imediata. A
aparência é um dos aspectos reais das coisas − o que se evidencia quando Marx emprega o termo "superfície" para designar a
mesma coisa.

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capital. "A esfera /…/ da circulação ou troca de mercadorias, dentro da qual se operam a compra e a
venda da força de trabalho, é realmente um verdadeiro paraíso dos direitos inatos do homem. Só
reinam aí liberdade, igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade pois o comprador e o vendedor
de uma mercadoria, a força de trabalho, por exemplo, são determinados pela sua vontade livre.
Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, a expressão
jurídica comum de suas vontades. Igualdade, pois estabelecem relações mútuas apenas como
possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um só
dispõe do que é seu. Bentham, pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. A única força que os
junta e os relaciona é a do proveito próprio, da vantagem individual, dos interesses privados" (MARX,
O Capital, Livro I, vol. I, Bertrand Brasil, 1996, p. 196).
Na relação de troca, ou seja, na superfície do sistema de produção, os indivíduos se opõem
mutuamente como proprietários de mercadorias; aparecem, portanto, como indivíduos isolados, cuja
única relação se dá no ato da troca. Esta relação, forma principal de relação inter-humana no mundo
capital, se apresenta como um contrato de compra e venda. "Não é surpreendente pois que os
pensadores individualistas e os filósofos iluministas em particular imaginassem a sociedade como
um produto de um contrato de um grande número de indivíduos reunidos em comunidade"
(GOLDMANN, Lucien, O Pensamento na Época das Luzes, tradução exclusiva para uso didático, p.
4).
Assim, vemos que é da esfera da circulação, ou seja, da superfície do mundo do capital, que
todo o pensamento político clássico extrai suas categorias básicas. Estas categorias, porém, formam
os chamados direitos naturais ou inatos do homem. Ocorre, portanto, uma naturalização de
categorias extraídas de uma forma particular de vida, que como qualquer outra é transitória.
Porém, cumpre aqui distinguir Rousseau dos demais contratualistas, que incluem desde Hobbes
e Locke até Grotius e Diderot. Como mostra Goldmann, "as outras teorias, seja porque refletiam a
atração da maioria dos filósofos pela monarquia, seja porque se referiam à situação do século XVII,
definiam o contrato social como um contrato de sujeição que era o próprio fundamento do Estado,
enquanto J.-J. Rousseau relacionou a teoria do contrato aos outros valores fundamentais da
ilustração e, sobretudo, à idéia de igualdade" (Ib.). Em outras palavras, devido à transformação da
realidade a que responde o pensamento, Rousseau, ao contrário do outros contratualistas, entende
que a legitimidade do contrato só é efetiva quando este respeita, preserva e confirma aquilo que
denomina de direitos naturais do homem − expressos nas categorias básicas acima referidas. Dessa
forma, um contrato de sujeição seria um atentado à liberdade natural do homem e, portanto, ao
próprio homem − como veremos adiante.
Marcada a distinção fundamental, retenhamos, contudo, aquilo que há de comum: o homem é
naturalmente isolado e a união em sociedade é sempre uma convenção estabelecida entre os
indivíduos. Portanto, o que os filósofos contratualistas tomam como natural, ou seja, o estado natural
de isolamento individual − ignoradas as particularidades − não é uma criação aberrante de sua louca
imaginação dobrada sobre si mesma, mas o reflexo naturalizante de relações humanas reais, mais
especificamente, do homem tal como existe efetivamente na esfera da troca de mercadorias − a
realidade mais imediata, a superfície do mundo do capital.

Mas o que move os indivíduos, naturalmente independentes entre si, a se associarem? Nas
palavras de Marx em sua ironia: Bentham, ou seja, a força do proveito próprio. Ou então nas

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próprias palavras de Rousseau, a preferência natural de cada um por si mesmo ou a conservação de
si − em resumo e sem dissimulações: o egoísmo natural. Diz Rousseau: "Suponhamos os homens
chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza
sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se neste
estado. Então, esse estado primitivo já não pode mais subsistir, e o gênero humano, se não
mudasse de modo de vida, pereceria" (Contrato Social, Pensadores, Abril Cultural, 1973, p. 37).
Os indivíduos isolados, num determinado momento, não são mais capazes de se manter com
suas próprias forças; se permanecem isolados, o gênero humano perece, pois cada um luta
naturalmente pela salvaguarda de seus interesses particulares, os quais, a partir deste suposto
momento, se tornam inevitavelmente opostos. O que move, portanto, cada indivíduo isolado a se
associar é precisamente, nas palavras de Rousseau, a primeira lei de zelar pela auto-conservação
ou pelos primeiros cuidados, aqueles que cada um deve a si mesmo.
Surge então o seu grande problema, que formula explicitamente, primeiro de maneira geral,
depois de maneira específica: "Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de
administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser" (Contrato
Social, ob. cit., p. 27). Mais à frente, é um pouco mais preciso: "O homem nasce livre e por toda a
parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que
eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder responder esta
questão" (Ib., p. 28).
Rousseau parte do estado social que tem sob seus olhos, isto é, no qual o homem é privado de
sua liberdade, é um escravo. No Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau descreveu
historicamente a passagem do estado de natureza para o estado da servidão civil. Não é mais este o
objeto de seu estudo: agora, trata-se de encontrar as condições que podem legitimar a vida em
sociedade. A passagem do estado natural para o estado civil se deu, na realidade, de forma
ilegítima, pois levou o homem da liberdade natural à servidão civil. A questão é, portanto, descobrir
as condições que tornam legítima a transição do estado de natureza para o estado civil. Rousseau
partirá, então, dos homens como são, ou seja, da natureza humana, do estado de natureza, e das
leis como podem ser: ou seja, deverá, no plano do dever-ser, adaptar as leis à natureza humana,
aos direitos naturais do homem. Como a própria colocação do objetivo nos indica, é justamente a
preservação destes direitos o que conferirá legitimidade ao estado civil. A legitimidade do estado
social é determinada, basicamente, pela garantia da liberdade natural do homem.
Antes de prosseguir, vale considerar o sentido do estado de natureza e dos princípios
estabelecidos no Contrato no interior do pensamento de Rousseau. No Discurso sobre a
Desigualdade, Rousseau mostra explicitamente que não há qualquer interesse histórico na descrição
do estado de natureza; ao contrário, este se apresenta como uma hipótese necessária para bem
julgar de nosso estado presente. Trata-se de um critério exterior ao estado civil corrompido de sua
época, a partir do qual este pode ser julgado corretamente. Mas, por quê? Porque o critério se
baseia na natureza humana. Assim, não se pode considerar como meramente metodológico o
recurso de Rousseau ao estado de natureza. Ainda que não importe sua realidade efetiva,
determinada no espaço e no tempo, a descrição do estado de natureza é a descrição da natureza
humana. O que é de suma importância, uma vez que, como vimos, este estado é a naturalização de
determinações reais, próprias à esfera da troca de mercadorias. E o maior esforço de Rousseau
consiste em demonstrar a independência e autonomia naturais do indivíduo.

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Para aqueles que ainda duvidam de que Rousseau parte do indivíduo isolado e, neste sentido,
se apresenta como um filósofo individualista, eis as próprias palavras do autor, que não poderiam
ser mais claras − tanto mais por se tratar da educação do jovem Emílio. Referindo-se ao estado de
natureza representado por Robinson Crusoe em sua ilha, Rousseau diz: "Este estado não é,
concordo, o do homem social; provavelmente não é o de Emílio, mas é através desse mesmo estado
que ele deve apreciar todos os outros. O meio mais seguro de nos elevarmos acima dos
preconceitos e ordenarmos nossos juízos de acordo com as verdadeiras relações entre as coisas é
colocarmo-nos no lugar de um homem isolado e julgarmos tudo como tal homem deve ele próprio
julgar, com relação à sua própria utilidade"2 (Emílio, Martins Fontes, Livro III, p. 233). Retenhamos,
portanto, o essencial: julgar corretamente é julgar a partir da natureza humana, e a natureza humana
não é senão o homem naturalmente isolado; da mesma forma, os direitos naturais do homem não
nada além dos direitos do homem naturalmente isolado.
Quanto ao sentido do Contrato Social, também é preciso dizer que não é um ideal social a ser
implantado na realidade. Trata-se de um dever-ser a partir do qual se pode julgar corretamente a
realidade; são princípios que se põem como um modelo para a compreensão do real, no caso, dos
governos reais. Novamente, é no Emílio que se encontra a delimitação do sentido específico dos
princípios de direito político apresentados no Contrato. Como uma preparação às viagens de Emílio
pelo mundo, diz Rousseau: "Antes de observar, é preciso estabelecer regras para as observações, é
preciso fabricar uma escala para nela marcar as medidas que se tiram. Nossos princípios de direito
político são essa escala. Nossas medidas são as leis políticas de cada país" (Ib., Livro V, p. 648).
Agora, temos dois pontos de referência a partir dos quais podemos compreender as verdadeiras
relações entre as coisas: o estado de natureza e o estado social do Contrato − ambos fictícios. Mas,
por que podem ambos servir de referência? Justamente por se basearem na natureza humana.
Então, o que é que faz o contrato se basear na natureza humana? A mesma pergunta seria: o que
garante a legitimidade do contrato social?
Rousseau formula o problema desta maneira − e esta é a formulação específica do objetivo do
contrato a que nos referimos acima: "Encontrar uma forma de associação que defenda a pessoa e
os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só
obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes". E, pouco mais adiante,
resume a uma só as cláusulas do contrato que solucionaria este problema: "a alienação total de
cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um
dando-se completamente, a condição é igual para todos" (Contrato Social, p. 38).
O objetivo da associação está claro: defesa dos bens e da pessoa de cada associado. Quer
dizer, o indivíduo isolado vê um único sentido na associação: a sua própria conservação individual.
Já no nascimento da associação está colado o egoísmo: cada um só se associa desde que isso
esteja conforme seus interesses privados, desde que lhe traga vantagens individuais. Diz Rousseau:
"se a oposição de interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o
acordo destes mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses vários

2 É impressionante a semelhança desta passagem com o caminho de Descartes nas Meditações e no Discurso do Método: para
poder duvidar dos preconceitos da tradição, é preciso partir da consciência do indivíduo isolado, do sujeito. É só a partir desta
posição, para o filósofo moderno, que se pode atingir a verdade. Rousseau, por sua vez, para poder questionar a legitimidade do
poder, precisa questionar a tradição, a hereditariedade, o que só é possível com a dissolução da sociedade em seus átomos, os
indivíduos, tomados isoladamente em um estado essencialmente pré-político. Este é o sentido do estado de natureza.

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interesses forma o liame social e, se não houvesse um ponto em que todos concordassem,
nenhuma sociedade poderia existir" (p. 49). Este liame social, ou seja, o substrato comum entre os
diversos interesses particulares, é tão-somente o interesse egoísta pela conservação de si. Ainda
que a associação seja igualmente para todos os particulares a condição de sua conservação, ainda
assim o que há de comum é apenas a conservação de si, de modo que ninguém se associa com o
objetivo de conservar a vida alheia; se isto, após o pacto, se torna verdade, a explicação é evidente:
o outro é condição para minha existência, e é somente nesta medida que me interessa a sua
conservação. De qualquer maneira, o fundamental é que a sociedade é claramente apresentada
como meio para a conservação individual; cada um vê no outro um meio para a realização de si e,
somente por conseqüência, acaba por se tornar meio para a realização do outro.
Mas, para cumprir legitimamente o seu fim, a associação precisa ter, como condição e como
resultado, a liberdade e a igualdade entre todos os associados. Assim, para ser legítima, a
associação pressupõe, de um lado, a vontade naturalmente livre dos indivíduos isolados, uma vez
que é "a associação civil o mais voluntário dos atos deste mundo. Todo homem, tendo nascido livre
e senhor de si mesmo, ninguém pode, a qualquer pretexto imaginável, sujeitá-lo sem o seu
consentimento" (p. 126) − ou seja, o contrato deve ser a expressão comum de suas vontades livres
por natureza. De outro lado, a legitimidade se funda na igualdade de condições, ou seja, na
alienação total de cada um à comunidade toda, de modo que o contrato determina condições para
todos os contratantes indistintamente. Enfim, a condição é que contratem como pessoas livres e
iguais entre si. É gritante a semelhança deste contrato, o contrato social de Rousseau, com qualquer
contrato de compra e venda, tal como foi descrito por Marx.
Agora, é preciso considerar a liberdade e a igualdade como resultado da associação civil.
Primeiro, a igualdade. Com o pacto, "'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder
sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte
indivisível do todo. Imediatamente, este ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de
cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da
assembléia; e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade" (p. 37). Forma-se, pois, um corpo coletivo, uma pessoa moral, e por conseguinte cada
indivíduo só pode ser corretamente compreendido se tratado como membro do todo, isto é, como
parte indivisível do corpo. Esse corpo coletivo é chamado de soberano, quando ativo, Estado,
quando passivo, e seus membros, por sua vez, chamam-se cidadãos, enquanto partícipes da
autoridade soberana, e súdito, enquanto submetidos às leis do Estado. Essa pessoa pública possui
vontade própria, que é a vontade geral. A vontade geral nada mais é do que a vontade da pessoa
pública formada pelo pacto e, portanto, é a vontade de cada indivíduo enquanto cidadão, ou seja,
enquanto corpo, enquanto membro indivisível do corpo político; e exclusivamente nesta condição.
Todos os indivíduos se entregam à comunidade toda, e neste momento ocorre uma reação
química que dissolve os indivíduos particulares, fundindo-os num grande indivíduo moral. Este
indivíduo moral obedece às mesmas determinações do indivíduo particular, isolado, natural: possui
unidade e vontade própria, e diante dos outros indivíduos morais é também um mero particular, o
que fica claro quando Rousseau diz que "o Estado, perante seus membros, é senhor de todos os
seus bens pelos contrato social /…/, mas não é senhor daqueles bens perante as outras potências
senão pelo direito de primeiro ocupante, que tomou dos particulares" (p. 43). As potências − nome
do corpo político quando comparado a seus semelhantes − se relacionam entre si como os

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indivíduos particulares: em princípio, são completamente autônomas e isoladas; só por convenção
voluntariamente aceita é que estabelecem vínculos recíprocos.
Apesar de este assunto ser objeto de um projeto não concluído de Rousseau − as relações
externas do Estado3 −, o que nos importa é notar que o indivíduo isolado é o modelo do corpo
coletivo, e que esta é a única forma de legitimá-lo. Ou seja, é só obedecendo às determinações do
indivíduo isolado que o corpo coletivo adquire legitimidade, pois o problema da fundamentação do
coletivo a partir das vontades particulares é resolvido da forma mais simples: fazendo do coletivo um
indivíduo moral, um sujeito político que, enquanto tal, tem vontade própria, a vontade geral − geral
apenas em relação aos particulares, pois em relação às outras potências esta vontade não é nada
além de uma vontade particular, ao menos antes de qualquer convenção internacional.
Com essa vontade própria, o soberano pode se autodeterminar, de modo que não se submete a
ninguém a não ser à sua própria vontade. Por isso, se com o estado de natureza a questão da
legitimidade pode ser colocada, contra a tradição, de modo negativo, surgindo a dificuldade de
fundamentar o coletivo nas vontades particulares, "é com a invenção do povo como entidade capaz
de se autodeterminar livremente, portanto, com a invenção de um sujeito político, que a questão da
legitimidade do poder poderá ser positivamente resolvida" (Luc Ferry, ob. cit., pp. 34-35). Enfim, as
qualidades do corpo coletivo formado, e justamente o fato de o indivíduo particular ser dissolvido
num grande indivíduo moral, apenas manifestam nitidamente o individualismo do pensamento de
Rousseau, pois este tem no indivíduo isolado o modelo de legitimidade do corpo coletivo. Assim
como Descartes constrói o edifício do conhecimento a partir do sujeito, isto é, da consciência
individual, Rousseau constrói o edifício social a partir desse sujeito político, o soberano.
É por esse motivo que a sociedade aparece como realização de todas as vontades individuais.
Cada membro da sociedade é depositário da vontade geral, portanto, a realização desta aparece
imediatamente como a realização das vontades individuais. Pois o indivíduo, agora, é mero membro
do corpo coletivo e, enquanto tal, não possui vontade particular, mas apenas vontade geral. A rigor,
no corpo coletivo não existem indivíduos, mas somente membros, partes suas: com o pacto, os
indivíduos se dissolvem em um todo e, então, não são mais indivíduos, mas simplesmente partes
indivisíveis desse todo. A vontade geral só é sua enquanto corpo, não enquanto indivíduo − a
vontade geral é a vontade do indivíduo moral formado pelo pacto; logo, só faz sentido dizer que ela é
a vontade do indivíduo desde que se entenda por indivíduo uma simples parte indivisível desse
grande indivíduo moral. É a esta anulação da individualidade na esfera coletiva, isto é, política, que
Rousseau se refere quando diz que "Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve
sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada
indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de
certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-
la; substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma
existência parcial e moral. Em uma palavra, é preciso que destitua o homem de suas próprias forças
para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais não possa fazer uso sem socorro alheio". O
indivíduo se entregou totalmente à comunidade toda, junto com todas as suas forças: estas, agora,
não são suas a não ser enquanto corpo, ou seja, enquanto ser parcial − "se cada cidadão nada for,
nada poderá senão graças a todos os outros" (p. 63). Só o que nos importa, por enquanto, é esta

3 cf. Contrato Social, Livro IV, Cap. IX.

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anulação da individualidade no corpo coletivo, esta indistinção entre particulares, esta ausência de
particularidade. Já aqui notamos a excludência entre indivíduo e sociedade: quando o indivíduo se
reúne em sociedade perde a sua qualidade de indivíduo; a rigor, já não é mais indivíduo, é mera
parte indistinta da sociedade.
Soberania é o exercício da vontade geral, e vontade geral é a vontade do corpo coletivo
formado, corpo em que os indivíduos estão dissolvidos, em que não são particulares. Portanto,
qualquer ato de soberania favorece igualmente, ou seja, sem distinções particulares, todos os
cidadãos. Em outras palavras, o soberano só conhece o corpo da nação e, por conseqüência, não
conhece os indivíduos em particular; logo, não favorece os indivíduos em particular de modo
eqüitativo, mas sim favorece o corpo coletivo e, por conseqüência, todos os seus membros
indistintamente, isto é, igualmente. Em síntese, "o pacto fundamental, em lugar de destruir a
igualdade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza
poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que, podendo ser desiguais na força ou no
gênio, todos se tornam iguais por convenção e direito" (p. 45). Embora retomemos este assunto mais
adiante, por enquanto basta assinalar, em primeiro lugar, que a igualdade como resultado do
contrato é convencional e de direito e, enquanto tal, pressupõe a abstração das particularidades
reais; e, em segundo lugar, que a igualdade convencional legitima o pacto na medida em que
apenas aprofunda e garante a igualdade natural, isto é, na medida em que está de acordo com a
natureza humana.
Consideremos agora a liberdade como resultado do pacto. A qualquer custo Rousseau quer
evitar a dependência pessoal, pois esta é sinônimo de escravidão. Liberdade é só obedecer à
própria vontade. Cada cidadão, ao obedecer à vontade geral, não obedece senão à sua própria
vontade, enquanto corpo − por isso, o indivíduo, na condição de súdito, só obedece às leis que ele
mesmo criou na condição de cidadão. Não há nenhum vestígio de dependência pessoal: os homens
continuam, por conseguinte, tão livres quanto antes, no estado natural: "É-se livre quando submetido
às leis, porém não quando se obedece a um homem, porque neste último caso obedeço à vontade
de outrem, enquanto obedecendo à lei não obedeço senão à vontade pública que tanto é minha
como de quem quer que seja" (Rousseau, Manuscrito de Neuchâtel, em nota de L. G. Machado, ob.
cit., p. 61).
A associação civil deve manter o homem livre, ou seja, deve garantir a sua obediência só a si
mesmo, a sua independência pessoal. Liberdade implica imediatamente independência pessoal,
autonomia individual. Se, com o pacto, a vida do indivíduo depende dos outros indivíduos, é apenas
no sentido de depender do corpo coletivo, do qual ele como qualquer outro é membro indistinto. A
dependência existe entre o indivíduo e o todo, ou seja, entre ele, enquanto particular, e ele mesmo,
enquanto corpo. Fato que, desde o momento do contrato, está confirmado: "cada um dando-se a
todos não se dá a ninguém" (p. 39). E, logo adiante, após a descrição do contrato, Rousseau é mais
claro: "Vê-se por essa fórmula, que o ato de associação compreende um compromisso recíproco
entre o público e os particulares, e que cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo
mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos
particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano" (p. 40). A rigor, portanto, o próprio
contrato não é um compromisso estabelecido entre os particulares: cada indivíduo, enquanto
particular, contrata consigo mesmo, enquanto pessoa pública. Ninguém se compromete com
ninguém, e todos se comprometem com todos. Cada um só obedece a si mesmo, e ninguém

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obedece a outro particular. A mesma questão se evidencia em outro momento do texto, já com o
pacto social consumado, quando Rousseau, a respeito da relação dos membros do Estado entre si
ou com o corpo inteiro, afirma que "essa relação deverá ser, no primeiro caso, tão pequena, e, no
segundo, tão grande quanto possível, de modo que cada cidadão se encontre em perfeita
independência de todos os outros e em uma excessiva dependência da polis" (p. 75).
Curiosamente, sendo o critério de legitimidade, neste caso, a garantia da independência pessoal
que está na natureza do homem, a associação civil se põe, desde logo, como uma associação
contraditória, que não deve ser uma associação, pois deve preservar sob uma nova forma o
isolamento natural. Isso porque a liberdade, em Rousseau, é indissociável da independência
pessoal, do isolamento e do egoísmo naturais ao homem. A associação civil tem como objetivo a
conservação dos particulares, este é o único liame social, ou seja, cada um só se interessa pela
associação na medida em que ela garante a conservação de sua pessoa e de seus bens, isto é, a
preferência natural que cada um tem por si mesmo − em uma palavra, o seu proveito próprio. O
egoísmo está colado na base da associação. Se agora os indivíduos não estão mais isolados,
entretanto, cada um continua desde a origem independente dos outros enquanto corpo coletivo.
Portanto, se sua ação beneficia os demais, isto só ocorre na medida em que beneficia o todo do qual
depende, ou seja, na medida em que, em primeiro lugar, beneficia a si mesmo, e só por
conseqüência aos demais. O critério de legitimidade se evidencia, pois, como a satisfação de todas
as vontades particulares, isto é, de todos os indivíduos: o ponto de partida absoluto é o indivíduo
autônomo. Cada um só pensa no todo em conseqüência de pensar em si mesmo. Nas palavras de
Rousseau, "Por que é sempre certa a vontade geral e por que desejam todos constantemente a
felicidade de cada um, senão por não haver ninguém que não se aproprie da expressão cada um e
não pense em si mesmo ao votar por todos? − eis a prova de que a igualdade de direito e a noção
de justiça, por aquela determinada, derivam da preferência que cada um tem por si mesmo, e,
consequentemente, da natureza do homem" (p. 55).

Mas como podemos falar de indivíduos independentes após o pacto? Como podemos falar de
uma associação que deve reproduzir a independência natural? Se, com o pacto, como vimos, ocorre
uma mudança na natureza humana, isto é, a transformação do indivíduo isolado e auto-suficiente em
parte de um todo maior, qual o sentido dessas perguntas? Ocorre que essa transformação na
natureza humana está mais próxima, não de uma transformação global, mas sim de um cisão na
vida humana. Há, sem dúvida, a transformação, ou seja, efetivamente o "ato de associação produz,
em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo" (p. 39); "Mas, além da
pessoa pública, temos de considerar as pessoas particulares que a compõem, e cuja vida e
liberdade naturalmente independem dela. Trata-se, pois, de distinguir os direitos respectivos dos
cidadãos e do soberano, e os deveres que os primeiros devem desempenhar na qualidade de
súditos, do direito natural de que devem gozar na qualidade de homens" (p. 54).
O indivíduo, após o pacto, adquire duas faces distintas: de um fado, ele é membro indivisível do
corpo político, cidadão, e enquanto tal é depositário da vontade geral; de outro, porém, permanece
como homem, ou seja, enquanto ser independente do corpo coletivo, como pessoa particular, e
nesta qualidade possui uma vontade particular. Mesmo após o pacto, portanto, permanece uma
parcela do indivíduo que não diz respeito à comunidade, que é naturalmente independente dela.
Existem, agora, dois seres de naturezas essencialmente distintas: a pessoa particular, ou seja, o

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indivíduo naturalmente isolado (homem) e a pessoa pública, ou seja, um grande indivíduo moral
(composto de cidadãos). O indivíduo leva, por conseguinte, uma dupla vida: uma em que é um ser
natural, isolado e auto-suficiente, onde só obedece à sua vontade particular, e outra, em que é um
ser comunitário, membro de um corpo coletivo, onde obedece à vontade geral. "Cada indivíduo, com
efeito, pode, como homem, ter uma vontade particular, contrária ou diversa da vontade geral que
tem como cidadão" (p. 41).
Mas como é que se dá a relação entre essas duas esferas distintas, a pública e a particular?
Com isso, entramos no que Rousseau chama de "limites do poder soberano". Vimos que o soberano
só considera o corpo coletivo, ou seja, a pessoa pública. Assim, seu poder só é competente na
esfera pública, no que diz respeito à comunidade toda. Sendo o indivíduo enquanto homem
independente da coletividade, segue-se que, nesta condição, não pode ser objeto do soberano. O
soberano desconhece o particular: ele só o considera na medida em que interfere no bem público,
mas então já não é mais particular, tornou-se assunto público. Nas palavras de Rousseau: "Vê-se
por aí que o poder soberano, por mais absoluto, sagrado e inviolável que seja, não passa nem pode
passar dos limites das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente do que lhe foi
deixado, por essas convenções, de seus bens e de sua liberdade, de sorte que o soberano jamais
tem o direito de onerar mais a um cidadão do que a outro, porque, então, tornando-se particular a
questão, seu poder não é mais competente" (pp. 56-57).
Aquilo que foi deixado pelo soberano transmigra para a esfera privada: aí o indivíduo pode
dispor plenamente do que é seu enquanto particular. No contrato, ele cede tudo, sua pessoa e seus
bens; mas o soberano só se apropria daquilo "cujo uso interessa à comunidade" (p. 54). O resto ele
pode aproveitar plenamente, é só seu, de mais ninguém. Porém, assim como o público não pode se
apropriar daquilo que não interfere no bem comum, também este é o limite do particular. Quer dizer,
o limite da liberdade particular é justamente a pessoa pública. Enquanto particular, sou
independente, logo, minha liberdade vai até o momento em que interfere na pessoa pública, ou seja,
na comunidade. Fora desta, sou homem, independente; portanto, o limite da minha liberdade
particular é exatamente o outro, a liberdade particular alheia. Rousseau é explícito e enfático a esse
respeito: "'Na república', diz o Marquês D'Argenson, 'cada um é perfeitamente livre, naquilo que não
prejudica aos outros'. Aí está o limite invariável; não se poderia colocá-lo mais exatamente" (p. 149,
nota 499).
Vê-se, com isso, que esses dois seres têm naturezas de tal modo diversas, que se opõem
excludentemente. Mesmo após o pacto, o indivíduo só pode ser considerado em comunidade com
outros enquanto cidadão, ou seja, enquanto pessoa pública. Esta pessoa pública, porém, por sua
natureza, não distingue os indivíduos em particular; o que é particular não ó objeto seu, só lhe cabe
o que é geral. Assim, o indivíduo só está em comunidade com outros quando tem sua particularidade
anulada, quando deixa de ser homem, ou seja, quando se descaracteriza enquanto pessoa
particular, individual, real. É através dessa abstração do seu ser particular que o indivíduo se torna
membro do todo, ou seja, está em comunidade com outros. A comunidade pressupõe a supressão
da particularidade: é somente o que há de comum entre os diferentes indivíduos particulares, ou
seja, o liame social que se define pela conservação de si. Por isso, ainda naquilo que se refere ao
indivíduo em comunidade, há separação − a comunidade é a comunidade do egoísmo, do proveito
próprio, e, só por conseqüência, do bem comum.

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Sociedade e indivíduo são, em Rousseau, categorias mutuamente excludentes, de modo que a
sociedade é exterior ao indivíduo. Primeiro, porque o indivíduo só se associa para conservar a sua
pessoa e seus bens, o que significa que cada um vê na sociedade um meio para a conservação de
si. Cada um só zela pelo todo pois este todo é a condição de sua sobrevivência. A sua existência
enquanto corpo é apenas um meio para a sua conservação enquanto particular. Assim como o
particular é estranho ao todo − como vimos nos limites do poder soberano −, assim também o todo é
estranho ao particular. Um e outro se opõem como coisas de natureza diversa, como coisas
reciprocamente exteriores, como coisas estranhas. É o que Rousseau explicita quando considera o
que o Legislador deve fazer para empreender a instituição de um povo − vale apenas rever a
passagem. Depois de falar explicitamente em uma mudança da natureza humana, resume o
problema: "Em uma palavra, é preciso que destitua o homem de suas próprias forças para lhe dar
outras que lhe são estranhas e das quais não possa fazer uso sem socorro alheio" (p. 63 − grifos
meus). As forças de cada particular são alienadas para a comunidade toda e, com efeito, cada
particular está destituído de suas próprias forças. Agora, as forças são do corpo coletivo, e por
conseguinte cada um só as possui enquanto corpo, ou seja, enquanto ser coletivo. Quer dizer, essas
novas forças, as do corpo, são exteriores ao particular, pois este já foi destituído de suas próprias
forças: inevitavelmente, as forças do corpo se opõem aos particulares como algo estranho, como
algo que não lhe pertence, como forças que não são suas próprias forças, mas forças estranhas. Isto
se deve à cisão interna ao indivíduo, para quem aquelas forças só lhe pertencem enquanto corpo,
não enquanto indivíduo particular.

Consideremos a relação entre pessoa particular e pública em um exemplo específico: a


propriedade. No momento do pacto, cada um se entrega completamente à comunidade toda, o que
inclui os bens que possui. No estado natural, porém, só existe a posse dos bens, garantida somente
pelo direito de primeiro ocupante; aquilo não é meu por nenhuma convenção, por nenhum direito
positivo. Isto só ocorre no estado civil, onde a posse se legitima, elevando-se ao direito de
propriedade. "O direito de primeiro ocupante, embora mais real que o do mais forte, só se torna um
verdadeiro direito depois de estabelecido o de propriedade" (p. 43).
Mas, quando Rousseau considera os limites do poder soberano, a questão se torna mais clara:
"Relativamente a quanto, pelo pacto social, cada um aliena de seu poder, de seus bens e da própria
liberdade, convém-se em que representa tão-só aquela parte de tudo isso cujo uso interessa à
comunidade. É preciso convir, também, que só o soberano pode julgar dessa importância" (p. 54).
Os indivíduos alienam todos os seus bens, mas recebem de volta tudo aquilo que não interessa à
comunidade. Em outra passagem, Rousseau é mais direto no assunto que nos interessa: "De
qualquer forma que se realize essa aquisição, o direito que cada particular tem sobre seus próprios
bens está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos" (p. 45). Mas, como o
soberano só se apropria daquela parte cujo uso interessa à comunidade, é preciso lembrar "que todo
homem pode dispor plenamente do que lhe foi deixado, por essas convenções, de seus bens e de
sua liberdade" (p. 56).
Por isso, é preciso notar que, sim, "Todo homem tem naturalmente direito a tudo quanto lhe for
necessário, mas o ato positivo, que o torna proprietário de qualquer bem, o afasta de tudo o mais.
Tomada a sua parte, deve a ela limitar-se, não gozando mais de direito algum à comunidade" (p. 43-
44). O direito de propriedade delimita a parte dos bens que pertence ao indivíduo em particular:

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assim como no caso da liberdade, o indivíduo encontra seu limite menos naquilo que pertence a
outrem, do que naquilo que não pertence a si mesmo (cf. p. 44). A liberdade dos indivíduos
particulares, assim como a propriedade, encontra seu limite na liberdade e na propriedade alheias.
Por isso, a associação garante a segurança dos bens dos associados: dando-se completamente, o
associado não faz propriamente uma renúncia, pois recebe devolta tudo o que deu e mais as forças
do corpo coletivo para a conservação de seus bens e de sua pessoa: "O singular dessa alienação é
que a comunidade, aceitando os bens dos particulares, longe de despojá-los, não faz senão
assegurar a posse legítima, cambiando a usurpação por um direito verdadeiro, e o gozo, pela
propriedade. Passando então os possuidores a serem considerados depositários do bem público,
estando respeitados seus direitos por todos os membros do Estado e sustentados por todas as suas
forças contra o estrangeiro, adquirem, por assim dizer, tudo o que deram por uma cessão vantajosa
ao público e mais ainda a eles mesmos" (pp. 44-45).

Vemos, portanto, que no pacto social cada um se dá completamente, mas a comunidade só


retém aquilo cujo uso lhe interessa; que, por conseguinte, daquilo que não interessa à comunidade,
cada um pode dispor plenamente dentro da sua esfera de liberdade; que, enfim, por todos se darem
completamente e pelo soberano não poder favorecer ou onerar os indivíduos em particular, mas
somente enquanto corpo, cria-se com o pacto uma igualdade convencional e de direito entre todos
os homens. Como dissemos anteriormente, essa igualdade pressupõe a abstração das
particularidades. E aqui surge um perigo, manifestado por Rousseau, e resolvido de um modo muito
ilustrativo de sua posição: "Sob maus governos, essa igualdade é somente ilusória, serve só para
manter o pobre em sua miséria e o rico na sua usurpação". Surge imediatamente, com isso, o
problema da relação entre igualdade e liberdade, mais especificamente, entre a propriedade e o
Estado ou a liberdade política. E o modo como Rousseau resolve esta tensão é muito simples, uma
vez que parte declaradamente da propriedade ou posse como elemento natural ao homem. Diz ele:
"Na realidade, as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm, donde se
segue que o estado social só é vantajoso aos homens quando todos eles têm alguma coisa e
nenhum tem demais" (p. 45, nota 87).
Explicitamente, Rousseau trata aqui da propriedade como base e fator condicionante da
liberdade política. As leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm. A
propriedade é pressuposto natural; parte-se da propriedade na medida em que se naturalizam as
condições particulares da relação de troca. Sendo natural, não faz sentido questioná-la: o objetivo é,
sob estas condições inevitáveis, naturais, atingir o máximo grau de liberdade política − e não poderia
ser outro mesmo. Por conseguinte, se Rousseau admite que a propriedade é determinante da
liberdade política − o que chama de liberdade civil, ou seja, a liberdade após o pacto −, a sua saída
é propor uma moderação da propriedade, ou seja, que todos tenham alguma coisa e ninguém tenha
demais. (Daí a tomada de posição, no interior do Terceiro Estado, pelo pequeno proprietário.)
A igualdade, agora, aparece como pressuposto para a liberdade. Acompanhemos Rousseau:
"Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a
finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetos
principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência pessoal
corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade
não pode subsistir sem ela" (p. 72 − o último grifo é meu). O fim último é sempre a liberdade, mas a

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liberdade não pode subsistir sem a igualdade − suas palavras são claras. Sobre a liberdade civil, a
ausência de dependência pessoal, já tratamos, e sobre a igualdade política também. Agora,
inevitavelmente, Rousseau é obrigado a considerar a igualdade real, fora do âmbito do Estado:
"quanto à igualdade, não se deve entender por essa palavra que sejam absolutamente os mesmo
graus de poder e riqueza". Neste primeiro momento, Rousseau marca a seu distanciamento em
relação aos ilustrados extremistas, que buscavam a igualdade absoluta entre os homens às custas
da limitação da liberdade. Positivamente, na seqüência, diz que "quanto ao poder, que esteja
distanciado de qualquer violência e nunca se exerça senão em virtude do posto e das leis e, quanto
à riqueza, que nenhum cidadão seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e não
haja nenhum tão pobre que se veja constrangido a vender-se; o que supõe, nos grandes, moderação
de bens e de crédito e, nos pequenos, moderação da avareza e da cupidez" (pp. 72-73 − grifos
meus). E, em nota, ainda acrescenta: "Quereis dar consistência ao Estado? − aproximai tanto
quanto possível os graus extremos, não suportai nem os opulentos nem os mendigos. Esses dois
estados, naturalmente inseparáveis, são igualmente funestos ao bem comum − de um saem os
fautores da tirania e de outro os tiranos. É sempre entre eles que se faz o tráfico da liberdade
pública; um a compra e outro a vende" (Ib., nota 203).
Por que, enfim, a igualdade, entendida como moderação, é pressuposto para a liberdade?
Porque, se alguém for rico demais, poderá comprar outro e, se alguém for pobre demais, será
obrigado a vender-se para sobreviver. O homem, nestas condições, se tornaria escravo. A questão
é, pois, a moderação da riqueza; é o máximo a que Rousseau consegue chegar, partindo da troca
como atributo necessário à vida social, ou seja, partindo do indivíduo isolado. Diante da contradição
entre liberdade de possuir e igualdade, Rousseau não opta radicalmente por nenhuma. Vê a
igualdade como pressuposto da liberdade e opta por uma moderação tanto na liberdade,
representada pela regulamentação do abuso da riqueza, quanto na igualdade, por recusar, de um
lado, os mesmo graus de riqueza e poder e, de outro, a profunda discrepância entre opulentos e
mendigos.
O Estado, por mais que pretenda estar de acordo com a natureza humana, não pertence a ela e,
portanto, apresenta seus inconvenientes. Como é possível garantir esta moderação de riqueza? "Tal
igualdade, dizem, é uma quimera do espírito especulativo, que não pode existir na prática. Mas, se o
abuso é inevitável, segue-se que não precisemos pelo menos regulamentá-lo? Precisamente por
sempre tender a força das coisas a destruir a igualdade, a força da legislação deve sempre tender a
mantê-la" (p. 73). Aqui, fica mais do que evidente que é inevitável a destruição da igualdade; está na
força das coisas. Por isso mesmo, a legislação deve conter esta força, regulamentar o abuso: é
impotente para transformar a natureza das coisas, pode apenas contê-la, regulamentá-la. A
legislação, portanto, deve aproximar as coisas como são das coisas como deveriam ser: mas é
impotente para alterar a sua natureza. Quando fala sobre Esparta, que só podia garantir a liberdade
do cidadão às custas da escravidão, Rousseau sintetiza esse problema: "Quê! a liberdade só se
mantém com o apoio da servidão? Talvez. Os dois excessos se tocam. Tudo o que, de qualquer
modo, não está na natureza, apresenta seus inconvenientes; a sociedade civil mais do que todo o
resto" (p. 115).
Se Rousseau percebeu certas contradições próprias à liberdade política, só foi capaz de resolvê-
las no interior do universo categorial da troca. Em nenhum momento aparece questionada a
liberdade política. Pelo contrário, este é o objetivo último a ser atingido. Partindo do indivíduo isolado

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tal como Rousseau o concebe, torna-se impossível dissociar a sociabilidade tanto da troca de
mercadorias como do Estado político. Trinômio que, não por acaso, coincide com a estrutura da vida
humana nascente à época − ao menos com a superfície desta, como vimos. Tomando como
condição natural do homem o isolamento, a politicidade e a troca só podem aparecer como atributos
necessários e eternos da sociabilidade − da mesma forma como aparecem na realidade mesma. E,
uma vez identificada a troca como pressuposto necessário da sociabilidade, a questão só pode
mesmo se limitar ao maior aperfeiçoamento possível da esfera da política, do Estado. É o que já
está presente desde a primeira página do Contrato, quando Rousseau se propõe a descobrir as
condições legítimas da vida em sociedade tomando os homens como são e as leis como podem ser.
Quer dizer, pressupõe o isolamento e a troca e, por conseguinte, toda a possibilidade de
transformação está relegada à esfera da política, ao aperfeiçoamento dos governos e de suas leis.
Se não fosse assim, o problema da discrepância entre ricos e pobres não seria visto como algo
próprio à força das coisas e que, por isto, só resta ser regulamentado pela força da legislação. Não
há sentido, no interior dessa posição filosófica, na qual se insere Rousseau, em questionar a troca e
a politicidade como atributos necessários à vida em sociedade, tomando-os então como
contingentes e, por isso, como superáveis praticamente. Isto só é possível desde que se transcenda
essa posição, superando o universo categorial da troca.
Permanecer, pois, na posição de Rousseau − ainda que esta tenha sido, para a sua época, uma
posição revolucionária, como efetivamente foi − significa imediatamente naturalizar e eternizar uma
forma particular e transitória de sociedade, aquela que se baseia na troca. O que é fundamental se
quisermos apreender o pensamento de forma correta, ou seja, não como um ser que possui uma
história própria, independente da história real, mas sim como um atributo de um ser e, portanto,
como uma das manifestações da vida desse ser, o ser humano. E, desta forma, é imprescindível
atingir as raízes reais do pensamento para respeitarmos a sua dimensão própria. Sim, a análise
imanente é o ponto de partida e condição fundamental de qualquer aproximação aos textos. Mas, se
tomamos o texto como uma formação autônoma e independente, então desrespeitamos a sua
qualidade fundamental de produto social, ou seja, descartamos as suas raízes reais, acabando por
cair na abstração mais vazia, própria ao idealismo mais atroz. Mas existem níveis diferenciados de
aproximação, do mais abstrato ao mais concreto − o que não invalida de modo algum a análise
imanente, inclusive se o texto é concebido como formação autônoma, desde que tal análise tenha de
fato captado os nexos intrínsecos ao texto em questão.
Apenas como fechamento, para provar a inserção radical de Rousseau no universo categorial da
troca e o atual conservadorismo que significaria adotar essa posição, ouçamos as palavras honestas
e cristalinas do próprio Rousseau, que são tanto mais sinceras por se tratar da formação do jovem
Emílio e que sintetizam a base de tudo o que vimos até então:

"Nenhuma sociedade pode existir sem troca, nenhuma troca sem medida
comum, e nenhuma medida comum sem igualdade. Assim, toda sociedade tem
por primeira lei alguma igualdade convencional, quer entre os homens, quer
entre as coisas.
A igualdade convencional entre os homens, muito diferente da igualdade
natural, torna necessário o direito positivo, isto é, o governo e as leis. Os
conhecimentos políticos de uma criança devem ser nítidos e limitados; ela deve

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conhecer do governo em geral apenas o que se relaciona com o direito de
propriedade, de que já tem alguma idéia.
A igualdade convencional entre as coisas fez com que se inventasse a
moeda, pois a moeda é apenas um termo de comparação para o valor das
coisas de diferentes espécies. Neste sentido, a moeda é o verdadeiro laço da
sociedade" (Emílio, ob. cit., Livro III, p. 240).

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