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Isto não é Filosofia

CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 4 – Cap. 4 – Filosofia Moderna: humanismo
Prof. Vitor Lima

ENCONTRO 4
FILOSOFIA MODERNA: HUMANISMO

Sumário
1. Pensamento moderno ........................................................................................................... 2
1.1 Humanismo renascentista (séc. XV) ............................................................................ 3
1.1.1 A Escola de Atenas .................................................................................................. 5
1.1.2 A política renascentista............................................................................................ 5
1.2 Reforma Protestante (séc. XVI) ..................................................................................... 7
1.3 Revolução Científica (séc. XVII) .................................................................................... 8
1.3.1 Metodologia científica .............................................................................................. 9
3. A modernidade para Luc Ferry .......................................................................................... 11
3.1 Theoria: universo infinito e ordem construída do mundo ........................................ 12
3.2 Ética: dignidade humana .............................................................................................. 14
3.2.1 Rousseau: história, dignidade e inquietação moral .......................................... 14
3.2.2 Kant: boa vontade, ação desinteressada e universalidade dos valores ........ 15
3.2.3 Descartes: a construção da atitude moderna .................................................... 16
3.3 Salvação: espiritualidade política ................................................................................ 20
4. Guia de leitura para o Encontro 5...................................................................................... 21
Bibliografia ................................................................................................................................. 23

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Encontro 4 – Cap. 4 – Filosofia Moderna: humanismo
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1. Pensamento moderno

O conceito de modernidade está relacionado ao de mudança, transformação e


progresso. Etimologicamente, provém do advérbio latino “modo”, que significa agora
mesmo, neste instante. Assim, moderno é aquilo que é do tempo atual, traçando uma
linha que separa este tempo do tempo anterior.
Em História da Filosofia, comumente atribui-se o período moderno aos séc. XVII-
XIX. Tal periodização origina-se do filósofo alemão Hegel (1770-1831), que foi o
primeiro a conceber a história da filosofia não como um relato das doutrinas e correntes
no tempo, mas como seguindo um princípio unificador e com uma finalidade definida.
Em suas Lições de história da filosofia, empreende uma história desde uma
perspectiva filosófica e não meramente historiográfica1. Porém, do ponto de vista
cronológico, o uso do termo ‘moderno’ antecede o período compreendido pelo séc. XVII.
Nos primeiros séculos do cristianismo, a oposição antiqui e moderni já estava
posta. Os primeiros eram considerados aqueles que vieram antes de Cristo. Os
segundos, posteriores a Cristo – contemporâneos dos que utilizavam o termo, portanto.
O termo ‘moderno’ também era usado na Idade Média. Designava um movimento
na lógica a partir do séc. XII, logica modernorum (lógica nova), que se colocava em
oposição à tradição, chamada de logica vetus (lógica velha). Ockham e seus
seguidores serão conhecidos como defensores da via moderna em lógica.
Na últimas décadas do séc. XVII, os meios literários franceses passaram pela
querela dos antigos e dos modernos (les anciens et les modernes). De um lado,
adeptos da tradição clássica defendiam as referências greco-romanas. De outro,
adeptos da ideia de progresso nas artes e nas letras, bem como nas ciências. Nessa
controvérsia, enfatizou-se a superioridade do novo – em oposição ao velho – e rejeitou-
se a autoridade da tradição.
Todo esse movimento serviu para o uso que Hegel concede ao termo –
designando o atual, o presente, o que rompe com a tradição. Duas são as ideias
principais aqui: progresso e indivíduo. O novo passa a ser considerado mais avançado
que o antigo. A subjetividade passa ser encarada como o lugar da verdade, da origem
dos valores, em oposição ao saber adquirido na tradição e à autoridade externa. A
origem histórica da filosofia moderna pode ser desdobrada em três eventos:

• Humanismo renascentista (séc. XV)


• Reforma Protestante (séc. XVI)
• Revolução Científica (séc. XVII)

1
“É nessa obra, fundamentalmente, que Hegel estabelece a periodização que adotamos até hoje,
dividindo a história da filosofia em três período distintos, cada um com suas características específicas e
fazendo parte de um mesmo processo: o antigo, o medieval e, em suas palavras, ‘a filosofia do novo
tempo’ (Neuzeit), que, segundo ele, ‘consolidou-se apenas ao tempo da Guerra dos Trinta Anos (séc. XVII)
com Bacon, Jacob Boehme e Descartes’, dando especial ênfase a Descartes e à sua ‘filosofia do cogito’.”
(MARCONDES, 2017, p. 142)

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Encontro 4 – Cap. 4 – Filosofia Moderna: humanismo
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1.1 Humanismo renascentista (séc. XV)

A Filosofia do Renascimento rompe com a Escolástica Medieval, mas não se


confunde com a Filosofia Moderna. Seu traço mais característico é o humanismo2.
Partindo da valorização dos clássicos, foi tirar seu lema do sofista Protágoras: “o homem
é a medida de todas as coisas”3. Ruptura mais clara com o período medieval não poderia
haver4.
O movimento renascentista surge em uma das regiões mais ricas da Europa à
época, a cidade de Florença, no séc. XV. A cidade era uma república, administrada por
governantes e chanceleres, não raro, cultos e que se preocupavam com a reconstrução
da cidade e de uma nova identidade. Artesãos e banqueiros haviam construído sua
riqueza no século precedente, e parte dos frutos dessa acumulação se traduziu em
incentivo às artes plásticas, à literatura, à filosofia.
Trata-se de uma arte voltada ao homem comum – artesão, artífice, cidadão.
Retratam-se com certa frequência as cenas domésticas e os burgueses que
patrocinavam os artistas. O retrato mais famoso do período, a Mona Lisa, de Leonardo
da Vinci (c. 1503) não é inspirado numa deusa ou em qualquer figura mitológica, mas
na esposa do comerciante Giocondo, que o encomendou.
Na literatura, o maior nome é Francesco Petrarca (1304-74), precursor do
movimento. Poeta, foi um dos primeiros a escrever poemas em língua italiana e a
defender a retomada dos clássicos, sobretudo de Cícero, e a valorizar a retórica, a moral
e a política.

2
“humanismo (do lat. humanistas) Movimento intelectual que apareceu no Renascimento. Lutando
contra a esclerose da filosofia escolástica e aproveitando-se de um melhor conhecimento da civilização
greco-latina, os humanistas (Erasmo, Tomás Morus, etc.) se esforçaram por mostrar a dignidade do
espírito humano e inauguraram um movimento de confiança na razão e no espírito crítico. Por uma
espécie de deslocamento, o termo ‘humanismo’ tomou dois sentidos particulares: a) na filosofia, designa
toda doutrina que situa o homem no centro de sua reflexão e se propõe por objetivo procurar os meios
de sua realização; b) na linguagem universitária, designa a ideia segundo a qual toda formação sólida
repousa na cultura clássica (chamada de humanidades). Numa palavra, o humanismo é a atitude filosófica
que faz do homem o valor supremo e que vê nele a medida de todas as coisas. Herdeiro de Kant, o
humanismo contemporâneo, notadamente dos existencialistas e de certas correntes marxistas, define o
homem como o ser que é o criador de seu próprio ser, pois o humano, através de sua história, gera sua
própria natureza.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 123-4)
3
Ver Aula 03 – Sofistas e Sócrates do Curso de História da Filosofia, especialmente a sessão 1.1.
4
“É nesse contexto que o tema da dignitas hominis (‘dignidade do homem’) adquire um novo sentido,
opondo-se ao tema medieval da miséria hominis (‘a miséria do homem’), o ser caído descendente de
Adão, marcado pelo pecado original. Giannozzo Manetti foi autor (1452-53) de um dos primeiros tratados
sobre A dignidade e a excelência do homem. Nicolau de Cusa escreve em seu De conjecturis (1433): ‘O
homem é um Deus não em um sentido absoluto, porque é homem, mas é um Deus humano.’ E o
humanista Giovanni Pico dela Mirandola, provavelmente influenciado por Nicolau de Cusa, foi autor de
uma Oração sobre a dignidade do homem (1486). Essas obras, de caráter ético, valorizam a liberdade
humana, veem o homem como centro da Criação, e lhe atribuem uma dignidade natural, inerente à sua
própria natureza enquanto ser humano. O homem é um microcosmo, que reproduz em si a harmonia do
cosmo.” (MARCONDES, 2017, p. 144).

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Em Filosofia5, sob a influência de Gemisto Pletão (1355-1452)6, cria-se em


Florença a Academia Platônica – ou Academia Florentina –, sob a direção a Marsílio
Ficino (1433-1499)7. Nela, reuniram-se os mais brilhantes pensadores, artistas e
políticos da época: de Lorenzo de Médici a Michelangelo. É nesse momento que se
traduz para o latim e se reedita as Vidas dos filósofos, de Diógenes Laércio8, abrindo
caminho para a retomada dos filósofos gregos – estoicos, epicuristas e céticos. A lógica
aristotélica, identificada com as sutilezas dos argumentos escolásticos e a defesa dos
dogmas cede lugar à gramática e às artes de falar em público em geral. Um Platão mais
ligado a seus dotes literários, estilísticos, dialéticos é enfatizado – principalmente aquele
já depurado pelo neoplatonismo.

5
“Um dos principais pontos de partida do humanismo foi o Grande Concílio Ecumênico que se realizou
em Florença em 1431, sob a inspiração de Cosme de Médici, seu governante, visando aproximar a Igreja
católica romana da Igreja ortodoxa grega, ou seja, o mundo europeu ocidental do Imperio Bizantino, o
grande herdeiro da Roma imperial e da cultura grega, agora decadente e ameaçada pelos turcos. O
imperador bizantino João Paleólogo compareceu pessoalmente levando consigo teólogos e filósofos
como Bessario e Gemisto. O concílio não foi bem-sucedido, mas intensificou o fluxo de especialistas
gregos para o Ocidente, o que se deu até a queda de Constantinopla (1453). Várias obras de Platão,
Aristóteles e de outros filósofos e poetas foram traduzidas para o latim, discutidas e reinterpretadas.
Cosme de Médici foi um grande colecionador de manuscritos e criou a Biblioteca de são Marcos para
conservá-los. A invenção da imprensa por Gutemberg, na Alemanha, tornou possível logo em seguida a
edição e divulgação de muitas dessas obras.” (MARCONDES, 2017, p. 145).
6
“Jorge Gemisto (cerca de 1355-1450), nascido em Constantinopla, que se fez denominar Pleton, [...]
considerou Zoroastro o autor dos Oráculos Caldeus e, indo para a Itália por ocasião do Concílio de
Florença, ministrou lições sobre Platão e sobre as doutrinas dos Oráculos, acreditando-os como expressão
do pensamento de Zoroastro e suscitando notável interesse pelos mesmos. Zoroastro foi, portanto,
considerado profeta (“priscus theologus”), e por vezes apresentado até como anterior a Hermes ou como
primeiro por cronologia e dignidade com ele. Na realidade, Zoroastro (=Zaratustra) foi reformador
religioso iraniano do século VII/VI a.C., que nada tem a ver com os Oráculos Caldeus. Esse [...] equívoco
[...] contribuiu grandemente para a difusão da mentalidade mágica da Renascença. (ANTISERI, REALE,
2004, p. 17)
7
“Marsílio Ficino (1433-1499) No plano das ideias, o filósofo e humanista Marsílio Ficino (nascido perto
de Florença, Itália) encontra-se na origem do movimento renascentista. Ao traduzir para o latim o Corpus
hermeticum e, pela primeira vez, as obras completas de Platão e do neoplatônico Plotino, tornou-os
acessíveis a um grande público. Em sua interpretação filosófica desses textos, Ficino insuflou vida nova
em vários de seus conceitos, notadamente no de ‘luz original’, que deu nascimento ao mundo e continua
a iluminar o universo. Ao inverter os valores neoplatônicos, Ficino torna a vida presente mais preciosa,
pois ela se ilumina de uma luz interior. Contudo, não aspiramos a essa ‘luz original’, pois seu reflexo se
torna mais importante, e se chama beleza. Preocupado ainda em ‘demonstrar’ a imortalidade da alma e
em estabelecer a harmonia entre razão e a fé revelada, Ficino parte em busca de uma ‘paz da fé’,
resultante de uma união das crenças cristãs com a tradição grega depurada de seus elementos estranhos.
Converte-se, assim, num defensor da unidade da religião através da variedade dos ritos religiosos. Sua
mensagem essencial consiste em dizer que tanto o sagrado quanto o sublime, o misterioso, o
incognoscível e o ‘para-além’ se revelam a nós na beleza deste mundo presente. Porque é a beleza que
nos dá testemunho da luz e nos revela este mundo regido por forças maravilhosas. A obra essencial de
Ficino consiste em 18 livros intitulados Theologia platonica (escritos entre 1469 e 1474)”. (JAPIASSÚ,
MARCONDES, 1990, p. 98-99)
8
“Diógenes Laércio Biógrafo grego do século III da era cristã; escreveu uma obra (em dez volumes) sobre
os filósofos gregos, conhecida sob o título de Vida, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, que é a
única fonte de informações sobre muitos dos filósofos ali mencionados.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990,
p. 73)

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1.1.1 A Escola de Atenas

Toda essa retomada clássica é acompanhada por uma alta dose de ecletismo.
Uma boa ilustração dessa situação é a valorização de dois personagens que
originalmente foram claramente antagônicos: Platão e Protágoras. Não defendem o
mesmo, em essência, mas no Renascimento são colocados em patamares
equivalentes, ao mesmo tempo que entra em declínio a figura de Aristóteles – associado
à filosofia Escolástica.
A redescoberta dos clássicos e sua interpretação diversa daquela feita
anteriormente é bem representada também pelo afresco de Rafael Sanzio, A Escola
de Atenas (1510), pintado no Vaticano para o Papa Júlio II. Nela, estão reunidos os
mais importantes filósofos gregos da Antiguidade.
No centro: Platão e Aristóteles. Platão aponta para o alto e segura o texto do
Timeu . As cores de suas vestimentas são alaranjadas e avermelhadas – cores que
9

remetem ao fogo e à simbologia daquilo que se direciona aos céus, que vai às alturas.
Aristóteles estende a mão aberta para o chão e segura a Ética. As cores de suas
vestimentas são azuladas, remetendo à água e aquilo que está próximo à terra, ao chão.
Os outros personagens vestem mais ou menos as mesmas cores das duas figuras
centrais.
Os demais pensadores se dividem em dois grupos. De um lado, a tendência à
abstração e à espiritualidade, Pitágoras e Parmênides próximos a Platão, acima do qual
está a estátua de Apolo.
De outro lado, a tendência a se interessar pelas coisas práticas e pelo
conhecimento que vem por meio dos cinco sentidos, Euclides e Ptolomeu, próximos a
Aristóteles, acima do qual se encontra a deusa Atena.

1.1.2 A política renascentista

O humanismo teve igualmente uma grande importância na política. A rejeição da


tradição escolástica – do saber adquirido, da autoridade imposta pelos costumes e pela
hierarquia do kósmos –, em favor de uma recuperação do que há de virtuoso e
espontâneo na natureza humana serviu de ponto de partida para uma nova ordem. Dois
autores expressam esse ideário, cada um a seu modo: Erasmo e Morus. Ambos
buscaram aplicar os princípios inspirados na moral estoica e epicurista no campo da
política – principalmente as réguas do equilíbrio e da moderação.
Erasmo de Rotterdam (1466-1533) é o autor de um manual, A educação de um
príncipe cristão (1516), dedicado ao futuro imperador Carlos V. Sua obra mais célebre,
porém, é O elogio da loucura (1511), em que, em estilo irônico, questiona a escolástica
aristotélica, defendendo uma sabedoria menos baseada em silogismos e
demonstrações.

9
O Timeu tem caráter teológico e descreve uma cosmogonia, isto é, a criação do universo, envolvendo
também a criação do ser humano.

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Thomas Morus (1478-1535) escreveu A utopia (1516). Talvez uma das obras
mais célebres e influentes desse período, usa da ironia para formular a imagem de um
estado ideal, em que não há propriedade privada, defendendo a tolerância religiosa,
criticando o autoritarismo dos reis e da Igreja.
O pensador político mais original e conhecido dessa época, entretanto, é
Nicolau Maquiavel (1469-1527). Autor de O príncipe (1513, publicado em 1532),
Maquiavel foi membro da chancelaria de Florença, onde ganhou experiência política e
pode observar as práticas de seus contemporâneos. Dedicado a Lorenzo de Médici, o
livro é um manual na arte de assegurar e manter o poder político.
A metodologia do livro é eminentemente via contação de histórias, que servem
de exemplo para o que o autor quer provar. São investigadas diferentes situações em
que governantes chegaram ao poder – e ou o mantiveram ou o perderam. O objetivo é
separar a política do âmbito estrito da ética, isto é, apartar o que é a dinâmica de
obtenção e preservação do poder de o que deve ser essa prática.
Diante da inescapável Fortuna10, isto é, o acaso responsável por pelo menos
metade dos eventos com os quais nos deparamos, é preciso assumir uma postura ativa.
No caso dos governantes, tal postura ativa é praticar a virtú11. Esse conceito não se
confunde com a virtude cristã – piedade, humildade, caridade. Antes, aponta para a
habilidade de manter o poder: coragem, persistência adaptabilidade.
Os conselhos de Maquiavel em O príncipe não seguem necessariamente a moral
vigente. Por esse motivo, a obra causou escândalo, dando origem ao termo depreciativo
“maquiavelismo” e ao adjetivo “maquiavélico”. Contemporaneamente, essa
denominação tem sido reavaliada, principalmente devido ao pioneirismo de Maquiavel
em tratar assuntos da política de modo separado dos assuntos da ética. Muitos o
consideram, por isso, o precursor da Ciência Política, enquanto campo autônomo da
Filosofia política. Ao tratar a política como ela é, não como ela deve ser, o autor insere
um campo de estudos que hoje se denomina realismo político.

10
Fortuna é a deusa romana do acaso ou da sorte – a e sorte é tanto boa, quanto má, diferentemente do
que hoje comumente consideramos.
11
“A virtú, que ele evita traduzir para o italiano, para não a confundir com as virtudes cristãs, diz respeito
à capacidade do ator político de agir de maneira adequada no momento adequado. Essa maneira de
apresentar o conceito pode aproximá-lo perigosamente de um outro frequentemente usado pelos
autores da Antiguidade – o de prudência. Também nesse caso estamos diante da capacidade do ator
político de agir em conformidade com a situação, sem que para isso tenha-se de recorrer a um saber de
cunho estritamente teórico. A prudência, no entanto, para ficar com seu sentido mais próximo do
significado que lhe atribui Aristóteles, deve ser entendida no contexto de uma ética que coloca como
finalidade última de todas as ações a busca da felicidade. A virtú maquiaveliana não possui os mesmo
objetivos. Mais modestamente, nosso autor exige a habilidade de seus atores apenas para ganhar e
conservar o poder, mas não atribui a isso nenhuma finalidade que transcenda à própria busca de uma
posição de mando na sociedade.” (BIGNOTTO, 2003, p. 24-5)

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1.2 Reforma Protestante (séc. XVI)

O episódio em que Lutero prega suas noventa e cinco teses contra os teólogos
católicos da universidade contra o Papa Leão X (1517) nas portas da Igreja de Todos
os Santos em Wittenberg marca o início da Reforma Protestante. A ruptura provocada
por esse movimento é um dos propulsores da modernidade, porque inseriu a ideia de
que a fé é suficiente para que o indivíduo compreenda a mensagem divina nos textos
sagrados. Embora possa parecer algo restrito ao âmbito religioso, não se trata apenas
disso. A regra da fé, como ficou conhecida, preceitua a não necessidade da Igreja – e
com ela dos teólogos e dos concílios – para a adequada compreensão da mensagem
divina. Em outras palavras, trata-se de uma retomada da relação íntima do indivíduo
com a sua fé, independentemente de intermediação de uma autoridade externa. Nada
mais moderno – e agostiniano – em sua raiz.
Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Alemanha, estudou
Direito e entrou para a ordem dos agostinianos. Formou-se em Teologia em Wittenberg.
Conta a história que, revoltado com a corrupção que acontecia na sede da Igreja, em
Roma, passou a defender a necessidade de uma reforma na instituição. Tornou-se
radical aos poucos até ser identificado como o líder da Reforma e ser condenado por
Roma. Recebe, então, a proteção do imperador Frederico da Alemanha. Em 1522 inicia
sua Tradução da Bíblia para o alemão, obra que só é concluída em 1534. O objetivo era
tornar o texto sagrado acessível a um público maior que os clérigos que dominavam os
idiomas antigos.
O protestantismo se difunde. Ulrich Zwingli (1484-1531) na Suíça. Calvino
(1509-1564) em Genebra. Como reação, o imperador Carlos V combate o
protestantismo e condena Lutero na Dieta de Worms (1521)12. Muitos nobres,
entretanto, aderem à Reforma, fazendo com que o movimento ganhe cada vez mais
força e se consolide com o tempo e, em pouco menos de 50 anos, o panorama político
e religioso europeu altera-se profundamente. Em 1527, é criada a primeira universidade
protestante em Marburg. Em 1566, o Sínodo de Antuérpia estabelece a Igreja calvinista
como religião oficial da República da Holanda. Os protestantes franceses – os
huguenotes – tornam-se uma importante força política na França, participando de uma
guerra civil. A Igreja Anglicana é criada na Inglaterra (1534), e a Escócia se converte ao
calvinismo (1560).
Perante seu julgamento na Dieta de Worms, Lutero recusa retratar-se:
Vossa Majestade Imperial e Vossas Excelências exigem uma resposta simples. Aqui está ela
simples e sem adornos. A menos que eu seja convencido de estar errado pelo testemunho das
Escrituras (pois não confio na autoridade sem sustentação do papa e dos concílios, uma vez que
é óbvio que em muitas ocasiões eles erraram e se contradisseram) ou por um raciocínio manifesto
eu seja condenado pelas Escrituras a que faço meu apelo, e minha consciência se torne cativa da
palavra de Deus, eu não posso retratar-me e não me retratarei acerca de nada, já que agir contra

12
A Dieta de Worms (1521) foi uma assembleia do Sacro Império Romano Germânico realizada na cidade
de Worms. Tratou-se de um órgão deliberativo formal, com suas decisões valendo para o Império. Seu
Édito visou às ideias de Martinho Lutero e as consequências da Reforma Protestante.

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a própria consciência não é seguro para nós, nem depende de nós. Isto é o que sustento. Não
posso fazê-lo de outra forma. Que deus me ajude. Amém.13

A ênfase dada por Lutero à consciência certamente prenuncia a filosofia


moderna como um todo. O espírito crítico, que é a marca da modernidade, de certo
modo tem em Lutero um dos seus ícones na modernidade.

1.3 Revolução Científica (séc. XVII)

A revolução científica moderna tem seu ponto de partida na obra de Nicolau


Copérnico14 (1473-1543), Sobre a revolução dos orbes celestes (1543). Nesse livro, o
autor defende, por meio de cálculos dos movimentos dos corpos celestes, um modelo
de universo em que o sol é o centro – o famoso modelo heliocêntrico.
No mesmo período, o astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601),
porém, propõe um sistema um pouco diferente. O chamado sistema ticônico preceitua
que a Terra se localiza no centro do universo, o Sol gira ao seu redor, e os planetas
giram em torno do Sol.
Em 1609, o astrônomo alemão Johanes Kepler (1571-1630), discípulo de
Brahe, defende, na obra Nova astronomia ou física celeste, a ideia de que o universo é
regido por leis matemáticas, inspirado em uma concepção platônico-pitagórica.
Entretanto, é Galileu Galilei (1564-1642), cientista italiano, em seu livro O
ensaiador, quem afirma: “A natureza é um livro escrito em linguagem geométrica; para
compreendê-la é necessário apenas aprender a ler esta linguagem”. No século XVII,
demonstra empiricamente o modelo de Copérnico, em virtude do uso do telescópio.
Inicialmente usado para fins militares, Galileu aperfeiçoa o instrumento e o aponta para
os céus. Observa, então, as luas do planeta Júpiter, modelo em miniatura do sistema
solar, segundo pensava.
Porém, por que defender essa concepção heliocêntrica é algo revolucionário?
O esquema que tinha adesão majoritária antes era o de Cláudio Ptolomeu (90-
168). Segundo o filósofo grego, a Terra se encontra imóvel em lugar centralizado no
universo – o célebre esquema geocêntrico. Tal sistema é afim – embora não igual – ao

13
“Lutero diante da Dieta de Worms”, citado em Documents of the Christian Church, p. 285 apud
MARCONDES, 2017, p. 153.
14
“Copérnico, Nicolau (1473-1543) Considerado o fundador da moderna astronomia e um dos criadores
da nova concepção de universo desenvolvida pela ciência moderna, Copérnico nasceu na Polônia, tendo
estudado na Universidade de Cracóvia e depois na Itália. Criticou o sistema geocêntrico ptolomaico, então
universalmente aceito, desenvolvendo um sistema heliocêntrico inspirado no astrônomo grego Aristarco
de Samos (século III a.C.). Em sua obra principal, Sobre a revolução das órbitas celestes (1543), procurou
demonstrar matematicamente as hipóteses de que a Terra é redonda e gira em torno do Sol através de
um movimento uniforme. Suas teorias encontraram forte reação, sobretudo por parte da Igreja e das
doutrinas escolásticas, por abalarem a visão tradicional de mundo da Idade Média, principalmente ao
manter que a Terra não é o centro do universo, o que trazia graves e profundas consequências políticas e
religiosas para a ordem hierárquica então em vigor. A ‘revolução copernicana’ foi realizada por Galileu.”
(JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 59)

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do próprio Aristóteles e à concepção cristã, defendida durante toda a Idade Média.


Simbolicamente, tratava-se de um kósmos regulado por Deus, que tinha escolhido
justamente o lugar mais importante para abrigar suas criaturas mais especiais – os seres
materiais, viventes, animados, racionais, isto é, os homens na concepção tomístico-
aristotélica. Quando Copérnico defende que a Terra é apenas mais um planeta entre
vários que orbitam ao redor do sol, há uma ruptura não só com o geocentrismo. A quebra
acontece em relação à autoimagem cultivada tanto pelo homem antigo, quanto pelo
medieval.
É verdade que Ptolomeu já criticava a concepção aristotélica de kósmos,
segundo a qual o céu é constituído por esferas homocêntricas, isto é, de centro
comum. Segundo Ptolomeu e os astrônomos de Alexandria, o esquema aristotélico não
representava adequadamente aquilo que as observações astronômicas e os cálculos
matemáticos revelavam. A experiência indicava que um modelo que partisse de esferas
excêntricas, ou seja, com diferentes centros, melhor explicaria toda a dinâmica celeste.
Isso porque o modelo do Estagirita era eminentemente especulativo, baseado em sua
visão de uma hierarquia perfeita constituinte da totalidade das coisas. Mas o que
significa isso?
As esferas homocêntricas eram uma exigência de uma premissa: o kósmos é
estruturado e harmonioso. Os fenômenos podem fornecer indícios que servem para
compor uma teoria, porém, caso as evidências sensíveis contrariem a premissa original
– a da estruturação e harmonia intrínsecas ao universo –, então a prevalência será do
primeiro princípio não da observação. Eis o que significa partir de uma concepção
especulativa da natureza. Não significa ignorar os fenômenos, mas preteri-los, caso
ponham em risco a concepção mais abrangente de ordenação perfeita de tudo o que
há15.
A maior ilustração de como essa concepção poderia se traduzir em resistência
à mudança é a condenação da obra Copérnico pela Inquisição em 1616. Um dos
argumentos utilizados é que o personagem Josué pede a Jeová que faça o Sol parar no
céu até a derrota de seus inimigos (Josué, 10, 11-13).

1.3.1 Metodologia científica

A maior transformação da revolução científica foi inverter essa ordem de


prioridades. O que isso quer dizer? A ciência moderna insere a noção de que a
concepção experimental de natureza se sobrepõe à concepção especulativa de
natureza.
Obviamente, trata-se de algo que acontece durante um longo processo e não de
modo abrupto, semelhante ao que ocorreu na passagem do mythos ao lógos, que

15
“São Tomás de Aquino (Suma teológica I, questão 32, art. 1), por exemplo, defende Aristóteles contra
os astrônomos de Alexandria, sustentando que, enquanto esses astrônomos baseavam suas hipóteses em
observações e cálculos, a teoria aristotélica era deduzida de primeiros princípios, sendo, portanto, mais
verdadeira. [...] Segundo essa visão, é mais importante salvar a física aristotélica – e portanto seu sistema
como um todo, sua unidade e coerência interna – do que salvar os fenômenos.” (MARCONDES, 2017, p.
155).

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estudamos na Aula 01 – Os pré-socráticos. Vimos que os primeiros filósofos – e mesmo


Sócrates, Platão e Aristóteles – ainda faziam uso em larga escala da linguagem mítica,
seja como alegoria para ilustrar seus argumentos, seja como alicerce de onde partiam
para construir suas visões de mundo.
Para falar de modo abrangente e pouco rigoroso, o lógos especulativo era o
mais adotado pelos filósofos antigos – baseado em primeiros princípios a partir dos
quais se construíam suas teorias. O que acontece na modernidade é a troca – de modo
paulatino e não do dia para a noite16 – dessa concepção lógica por outra: o lógos
experimental passa a se consolidar cada vez mais como paradigma de racionalidade
a ser adotado.
O pensamento moderno – é importante que se diga – não constitui um todo
orgânico. As novas teorias científicas tiveram inspiração platônica, pitagórica e até
mesmo mística.
Kepler interessava-se por astrologia e fazia horóscopos.
Newton também se interessava por astrologia, bem como por alquimia.
Descartes era Rosa Cruz.
Paracelso (1493-1541), o grande alquimista, foi contemporâneo dos
renascentistas.
Hermes Trismegisto17 (viveu por volta de 1.330 a.C. no Egito), considerado uma
encarnação do deus egípcio Thot, teve seu nome tornado célebre nessa época, devido
a uma tradução do corpus hermeticum, por Marsílio Ficino. Trata-se de textos de
caráter místico com uma sabedoria que combina questões cosmológicas e teológicas

16
Dois exemplos da permanência do lógos especulativo no nascente lógos experimental é a adoção de
uma concepção de kósmos fechado (tendo como limite a esfera das estrelas fixas, típico da visão antiga),
por Ptolomeu e de órbitas circulares, por Galileu. De fato, a ideia de um kósmos aberto tem origem numa
concepção mais especulativa que experimental, principalmente com Nicolau de Cusa, um cardeal alemão,
cuja obra de inspiração neoplatônica, Sobre a sábia ignorância (1440), introduz a ideia de universo sem
limites e sem centro de circunferência. Também influenciado pelo neoplatonismo, Giordano Bruno, em
sua obra Sobre o universo infinito (1583), corrobora a visão. Nenhum dos dois, porém, empreendeu
cálculos matemáticos, tampouco conduziu experimentos para avançar tal hipótese. Por outro lado, Kepler
para quem a matemática representava uma concepção formal de inspiração platônica e pitagórica, já
havia descrito as órbitas dos planetas como elípticas, como são aceitas hoje, enquanto Galileu não
renunciava às órbitas circulares, tipicamente aristotélico-tomistas.
17
“Hermes Trismegisto é figura mítica, que nunca existiu. Essa figura mítica indica o deus Thoth dos
antigos egípcios, considerado inventor das letras do alfabeto e da escrita, escriba dos deuses e, portanto,
revelador, profeta e intérprete da sabedoria divina e do logos divino. Quando tomaram conhecimento
desse deus egípcio, os gregos acharam que ele apresentava muitas analogias com seu deus Hermes (= o
deus Mercúrio dos romanos), intérprete e mensageiro dos deuses, qualificando-o então com o adjetivo
‘Trismegisto’, que significa ‘três vezes grande’. [...] Entre os numerosos escritos atribuídos a Hermes
Trismegisto, o grupo claramente mais interessante constitui-se de dezessete tratados (o primeiro dos
quais leva o título de Pimandro), mais um escrito que só chegou até nós apenas em uma versão latina
(que, no passado, era atribuído a Apuleio), intitulado Asclépio (talvez elaborado no séc. IV d.C.). É
precisamente esse grupo de escritos que se denomina Corpus Hermeticum (= corpo dos escritos postos
sob o nome de Hermes).” (ANTISERI, REALE, 2004, p. 16)

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em uma linguagem poética e oracular. A obra serviu de inspiração para a ruptura com
a escolástica. Em 1617, o erudito Isaac Casaubon (1559-1614) revelou serem textos
apócrifos, originados em um período bastante posterior, próximos ao cristianismo
nascente.

3. A modernidade para Luc Ferry


Resumo até agora

Theoria Ética Salvação


Adaptação ao
kósmos e lógos Voltar ao kósmos
lugar do kósmos
impessoal – atitude impessoal e desfazer-
Estoicos intelectiva diante da
correspondente a cada
se da própria
um, seguindo o lógos
realidade individualidade
que o rege
Praticar o amor em
lógos encarnado – Observação dos
Deus e o amor de Deus
Cristãos atitude humilde de fé mandamentos divinos
para alcançar a vida
diante de Deus inscritos na Bíblia
eterna pessoal
Universo infinito sem
Dignidade humana e Confusão com a ética e
kósmos e sem lógos
individualismo como engajamento em
encarnado – postura de
Modernos construção da
negação da natureza religiões seculares:
egoísta, rumo à revolução, nação e
realidade via cognição
princípios universais ciência
humana
Pós-modernos
Luc Ferry

A modernidade nasce com o i) desmoronamento da cosmologia antiga e com o


ii) nascimento de uma reavaliação das autoridades religiosas. As duas características
tem uma origem intelectual comum: a revolução científica do séc. XVII, que, em
bibliografia resumida, pode ser representada por 4 grandes livros e nomes:

• Sobre a revolução das Orbes Celestes (1543), de Copérnico


• Princípios de Filosofia (1644), de Descartes
• Diálogo sobre os dois principais sistemas de mundo (1632), de Galileu
• Principia Mathematica (1687), de Newton
A partir da descrição da natureza desses 4 grandes nomes, o kósmos, que antes
formava um quadro acabado, fechado, hierarquizado e harmonioso da realidade desde
a Antiguidade, passou a não poder mais ser encarado nesses moldes. A consequência
foi que o próprio homem passou a não mais poder ser concebido como possuindo um
lugar acabado, fechado, hierarquizado e harmonioso na existência cósmica.
Começou a haver, paulatinamente, incentivo a uma postura de dúvida
permanente e de espírito crítico, pouco compatível com o respeito às autoridades
religiosas. A crença na salvação cristã passa a ser enfraquecida.
Os homens dos séc. XVI e XVII passaram por um processo de desorientação,
isto é, a doutrina da salvação que tinha se consolidado durante 1000 anos passou a
entrar em descrença.

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No plano teórico, não encontrando mais no kósmos ou em Deus a resposta, os


homens passaram a se voltar para si próprios. Esse período em que o homem se
encontra só passa a ser identificado como humanismo.
No plano ético, não há mais modelo cósmico a ser imitado no plano moral.
No plano salvacional, em termos metafóricos, o mundo não pode mais ser
concebido como um casulo, como uma casa, como um castelo. Em suma, o mundo não
é mais habitável.

3.1 Theoria: universo infinito e ordem construída do mundo

Quanto à theoria, a modernidade se resume no título de dois livros:

• Alexandre Koiré, do mundo fechado ao universo infinito (1973)


• Crítica da Razão Pura (1781), de Kant
Para Koiré, a revolução científica dos séc. XVI e XVII está na origem da
“destruição da idéia de cosmos [...], da destruição do mundo concebido como um todo
acabado e bem ordenado, no qual a estrutura espacial encarnava a hierarquia dos
valores e de perfeição... e da substituição deste por um Universo indefinido, e mesmo
infinito, não comportando mais nenhuma hierarquia natural, e unido apenas pela
identidade das leis que o regem em todas as suas partes assim como pela de seus
componentes últimos situados todos no mesmo nível ontológico... Isso agora está
esquecido, mas os espíritos da época foram literalmente perturbados pela emergência
dessa nova visão de mundo, como dizem os célebres versos que John Donne escreveu
em 1611, depois de ter tomado conhecimento dos princípios da revolução copernicana:

A nova filosofia torna tudo incerto

O elemento do fogo está completamente extinto

O sol se perdeu, e a terra; e ninguém hoje

Pode mais nos dizer onde encontrá-la [...]

Tudo está em pedaços, toda coerência desaparecida.

Nenhuma relação justa, nada se ajusta mais”

Entre as causas complexas dessa situação, podem ser citados os progressos


técnicos, notadamente os instrumentos astronômicos como o telescópio. Houve a partir
de então a possibilidade de observações impossíveis de serem explicadas no contexto
da cosmologia antiga. Por exemplo, o descobrimento de novas estrelas e o
desaparecimento de estrelas já existentes não era compatível com a concepção de
imutabilidade celeste, típica da Física aristotélica, herdada pela Escolástica.
O livro que condensa o tratamento da modernidade sobre o segundo aspecto da
theoria, o conhecimento, é de autoria de Immanuel Kant. Com o filósofo e sua obra,
passa-se de uma atitude passiva de contemplação da realidade, para uma atitude ativa
de construção da realidade.
Em resumo, a concepção de Kant sobre o conhecimento em 5 pontos:

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• A realidade em si mesma considerada não é o mesmo que realidade


considerada por nós que a conhecemos. Em termos técnicos, númeno (a
realidade em si) é diferente de fenômeno (a realidade tal como aparece para
nós). Não podemos saber o que é o númeno, porque é inevitável que sobre
ele projetemos formas a priori de nossa sensibilidade e de nosso
entendimento. Você já entenderá o que quer dizer a priori.
• O modo de conhecer humano é composto de dois processos cognitivos que
acontecem de uma só vez, mas que podem ser examinados separadamente
para efeitos didáticos: sensibilidade e entendimento.
• A sensibilidade é a parte da cognição humana que possibilita haver
experiência. Experiência é a captação sensível da realidade, isto é, o modo
de captar o que nos vem pelos 5 sentidos. Tudo o que é sensível só é
concebido enquanto tal se estiver sob a forma espacial e temporal. Espaço
e tempo não são formas externas à sensibilidade, são suas formas internas.
Portanto, não dependem da experiência para ocorrer. Ao contrário, são eles
que permitem que a experiência ocorra – sem espaço e tempo, não haveria
o que chamamos de experiência. Em termos técnicos, o que depende da
experiência para ocorrer é chamado de a posteriori, e o que não depende da
experiência para ocorrer é chamado de a priori. Agora você entende o que é
“forma a priori da sensibilidade”. O que é então forma a priori do
entendimento?
• O entendimento é a parte da cognição humana que possibilita a experiência
espaço-temporal ser categorizada de modo conceitual. São 12 as categorias,
conceitos supremos que permitem as demais formas de categorização que
fazemos cotidianamente. Tais conceitos informam a realidade, não são por
ela informados. Tudo o que podemos dizer, segundo Kant, é que o modo
como concebemos a realidade passa por meio desses conceitos, não que a
realidade nela mesma tem esses conceitos. Quais são eles? Estes:

Esquema do processo de conhecimento para Kant


Sensibilidade Entendimento
Formas a priori Categorias a priori

Experiência Quantidade Qualidade Relação Modalidade


Multiplicidade

Possibilidade

Necessidade
Comunidade
Causalidade
Substância
Totalidade

Existência
Realidade

Limitação
Negação
Unidade
Espaço

Tempo

Intuição Conceitos e Juízos

Fenômeno

• Para Kant, não podemos saber se o númeno é múltiplo (categoria de


quantidade), limitado (categoria de qualidade), causal (categoria de relação),
necessário (categoria de modalidade). Tudo o que podemos dizer é que é

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desse modo que o concebemos enquanto fenômeno. Há uma construção


ativa do processo de conhecimento humano e não mais passiva, como era a
antiga concepção de theoria.

3.2 Ética: dignidade humana

O pensamento moderno localiza o homem no lugar e na posição do kósmos. É


sobre a ideia de humanidade que os filósofos modernos reconstroem a teoria, a ética
e a salvação de seu tempo.
O exemplo maior dessa fundamentação ética tendo o homem como centro é a
Declaração dos Direitos do Homem (1789). Em vez do kósmos e de Deus, é o próprio
homem que passa a ser o alicerce dos valores. O homem passa a instaurar como
direitos positivos e inalienáveis i) a dignidade humana e ii) a igualdade humana.
Mas o que há de tão especial no ser humano?
É a partir do debate sobre a diferença entre homens e animais que essa pergunta
será respondida na modernidade. Em outras palavras, se o homem pertence ao gênero
animal, qual seria sua diferença específica. Vale dizer, qual seria o predicado que
pertence somente à espécie humana que a distingue e a torna mais digna que as demais
espécies animais?

3.2.1 Rousseau: história, dignidade e inquietação moral

O livro básico é o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens


(1755), de Rousseau. Para entender sua proposta, antes uma breve explicação.
Dois critérios clássicos distinguiam animais de homens da Antiguidade à
Modernidade: inteligência, de um lado, e afetividade, de outro.
Aristóteles define o homem como animal racional. Seu gênero próximo é ser
animal. Sua diferença específica é a racionalidade. Esta última o distingue e o torna
mais digno que os demais.
Descartes mantém a definição aristotélica e acrescenta um critério: a
afetividade. Os animais são comparados a autômatos, e é um erro acreditar que
possuam afetividade. Só o homem expressa seus afetos.
Rousseau discorda de Aristóteles e Descartes: nem a racionalidade, nem a
afetividade são exclusividades humanas. Animais são capazes de raciocínios – ainda
que menos complexos que os humanos – e de expressão de afeto – por vezes até de
modo mais intenso e genuíno que seres humanos. O que difere o homem é são a
liberdade e a perfectibilidade.
Eis a passagem em que Rousseau expressa a liberdade:
“... a natureza faz tudo nas ações do animal, enquanto o homem concorre para as suas, na
qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade: o
que faz com que o animal não se afaste da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse
vantajoso fazê-lo, e que o homem se afaste frequentemente dela, em seu prejuízo. [...] É assim

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que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes provocam febre e morte porque o
espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala...”.

Liberdade acontece quando “a vontade fala ainda quando a natureza se cala”. O


homem pode se afastar das regras naturais e até criar uma cultura que se opõe a elas.
Não é preciso ir longe na imaginação para encontrar um exemplo. O direito à dignidade
da pessoa humana, que faz com que protejamos pessoas que nascem com graves
deficiências físicas e mentais, vai de encontro à estrita lei da seleção natural. Criamos
instituições – leis, hospitais, escolas – para não só preservar a vida, mas também
desenvolvê-la da melhor maneira, independentemente se ela for deficiente ou não.
Agora, eis a passagem em que Rousseau expressa a perfectibilidade:
“...há outra qualidade muito específica que os distingue, e sobre a qual não pode haver
contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com a ajuda de circunstâncias,
desenvolve sucessivamente todas as outras e reside em nós, tanto na espécie, quanto no
indivíduo... Por que o homem está sujeito a se tornar imbecil? Não é absolutamente porque retorna
assim a seu estado primitivo, ... perdendo com a velhice e outros acidentes tudo o que sua
perfectibilidade lhe havia feito adquirir, torna a cair mais baixo do que o próprio animal?”

Perfectibilidade é a capacidade de se aperfeiçoar ao longo da vida. Animais


desenvolvem apenas o que sua biologia lhes assegura. Ao contrário, o homem tem a
capacidade de ir além das limitações de sua biologia e, por isso, tem sua história
desenvolvida de modo não programado, indefinido.
É preciso notar, porém, que perfectibilidade não quer dizer uma finalidade rumo
à perfeição, em direção a uma melhoria constante. Quer dizer, sim, que o homem pode
tanto ascender em suas habilidades, quanto decair.
Aliado a essa característica, a liberdade humana faz com que a ação humana
possa realizar moralmente o que os animais seriam incapazes: a crueldade. Os animais
são capazes de dilacerar uns aos outros. Os homens, por sua vez, são capazes de
assim proceder planejando e executando um projeto e não simplesmente dando vasão
a seus instintos. O exemplo mais claro disso é a tortura – o ato de conscientemente –
e de modo requintado – fazer o mal a outra pessoa e ainda, por vezes, obter prazer com
isso. A liberdade, então, permite ao homem descer aos abismos da maldade.
Pode também fazer com que suba as montanhas da bondade, praticando atos
de generosidade, incapazes de serem vistos no reino animal. Mas isso só é uma
evidência de o quanto o homem – por sua liberdade – é antinatural.
Dessas duas características, Rousseau extrai 3 consequências:

• Dupla historicidade: história do indivíduo – educação; história da espécie


humana – cultura e política.
• Ausência de natureza humana: se o homem é livre, então se constitui em
sua existência, não em sua essência.
• Responsabilidade mora: o homem é separado da natureza, por isso
responde por seus atos em vez de meramente ser resultado de sua biologia.

3.2.2 Kant: boa vontade, ação desinteressada e universalidade dos valores

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Kant introduz a ideia de que a virtude reside na ação ao mesmo tempo


desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para o bem
comum e “universal”.
Primeiro, o desinteresse.
A liberdade, desde Rousseau, passa a ser vista como faculdade que liberta o
homem das tendências naturais, que são egoístas. A capacidade de resistir a essa
tendência é chamada por Kant de “boa vontade”. Eis o princípio de toda moralidade
verdadeira. É preciso poder agir livremente para aceder à esfera do desinteresse e da
generosidade voluntária.
Segundo, a universalidade.
O bem não é mais associado ao interesse particular, ao da família, ao da tribo.
Os interesses alheios, mesmo os da humanidade inteira, passam a ser considerados –
tal qual asseverado pela Declaração dos Direitos do Homem.
Nesse sentido, a ética moderna é meritocrática.
A tendência é buscar o interesse particular, o egoísmo, o particularismo. Lutar
contra essa corrente, isto é, voltar-se ao interesse universal, à ação desinteressada é
um esforço consciente e digno em si mesmo. Trata-se de um status moral que não
depende de talentos naturais e que pode ser alcançado com a boa vontade –
contrariamente aos ditames da ética aristocrática antiga.
O ser humano passa a ser tratado intrinsecamente como fim, jamais como meio
– o que aliás é uma das formulações do imperativo categórico kantiano. Passa a ter
valor intrínseco, independentemente de sua condição particular. Eis o imperativo ético
da modernidade: o valor humano como fundamento das ações.
No plano político, há três características derivadas dessa ideia: igualdade formal,
individualismo e valorização do trabalho.
Como a virtude não depende mais de talentos naturais, a igualdade formal
garantida por lei passa a ser uma evidência a ser garantida institucionalmente.
Como o kósmos não é mais referência de todo ao qual se deva espelhar, apenas
o indivíduo conta. Não se tem direito de sacrificar os indivíduos para proteger o Todo,
pois o Todo nada mais é que a soma dos indivíduos. O individualismo não se confundo
com o egoísmo, mas com a ideia de que o que vale é a boa vontade de cada um de se
desprender de suas tendências particularistas e se voltarem para o bem universal,
construindo um mundo ético comum.
O trabalho se torna o veículo de realização de si próprio, a atividade em que o
homem desenvolve suas capacidades, em vez de meramente ser algo que
obrigatoriamente precisa fazer para sobreviver de modo servil.

3.2.3 Descartes: a construção da atitude moderna

Com o argumento do cogito, Descarte inaugura uma atitude de pensamento


tipicamente moderna.

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Descartes é considerado o pai da Filosofia Moderna, porque empreendeu uma


virada no pensamento filosófico, principalmente devido à crítica que elaborou à herança
epistemológica da tradição. Desde então, o discurso filosófico passou não mais a ser
centrado no ser – isto é, na Ontologia típica da Filosofia Antiga – ou em Deus – ou seja,
na Teologia associada à Filosofia Medieval –, mas na racionalidade humana – vale
dizer, na Epistemologia que caracterizará a Filosofia Moderna.
Descartes utiliza o procedimento da dúvida para mostrar que não se pode
duvidar de tudo. Trata-se de um método procedimental a fim de alcançar o que pretende:
uma certeza indubitável contra a qual cético algum possa oferecer objeção. Se o cético
é aquele que sempre põe todas as afirmações em dúvida, a única maneira de lhe fazer
frente é mostrar que, nesse caminho, é obrigatório e racional parar em algumas
verdades incontestáveis, claras e distintas.
Por isso, o início do procedimento cartesiano nas Meditações é o que se conhece
como dúvida metódica. Esse método consiste em Duvidar de cada coisa e tratar como
falso tudo o que puder ser posto em dúvida a fim de encontrar algo em relação ao qual
a dúvida seja incabível. Será possível encontrar algo dessa natureza?
Descartes percorre três passos argumentativos para provar seu ponto: o
argumento contra a ilusão dos sentidos, o argumento do sonho e o argumento do deus
enganador ou gênio maligno.
No primeiro momento, Descartes diz:
“Tudo o que recebi até o presente como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos
sentidos; ora, algumas vezes experimentei que tais sentidos eram enganadores, e é de prudência
jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez nos enganaram.” (Meditações metafísicas,
Primeira Meditação, §318)

No segundo, o filósofo afirma:


“Todavia tenho de considerar aqui que sou homem e, por conseguinte, que costumo dormir e
representar em meus sonhos as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que
aqueles insensatos quando estão em vigília. Quantas vezes aconteceu-me sonhar à noite que
estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse todo nu em
minha cama?” (Meditações metafísicas, Primeira Meditação, §5)

No terceiro, diz as Meditações:


“Suporei, pois, que não há um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte de verdade, mas certo
gênio maligno, não menos astuto e enganador que poderoso, que empregou toda sua indústria em
enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas
exteriores que vemos não passam de ilusões e enganos de que se serve para surpreender minha
credulidade.” (Meditações metafísicas, Primeira Meditação, §12)

Dessa maneira, restaria algo para duvidar? Continua Descartes:


“[...] Não há dúvida, então, de que sou, se ele me engana; e que me engane o quanto quiser,
jamais poderá fazer com que eu não seja nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa. [...] é preciso
enfim concluir e ter por constante que esta proposição, Eu sou, eu existo, é necessariamente
verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito.” (Meditações
metafísicas, Segunda Meditação, §4)

18
Todas as notas serão tiradas de DESCARTES, 2016.

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De modo esquemático, o argumento poderia ser assim apresentado:


1. Argumento contra a ilusão dos sentidos: suspeição do conhecimento que se
origina em experiências empíricas. Porém, permanece a convicção de que
verdades empíricas evidentes são certas – por exemplo, a verdade de que estou
aqui escrevendo esta apostila.
2. Argumento do sonho: suspeição de verdades empíricas evidentes. Contudo,
permanece a convicção de que há verdades claras e distintas – por exemplo,
ponto, reta, 2 + 2 = 4 etc. –, bem como que há um mundo externo a que a
imaginação onírica se refere.
3. Argumento do gênio maligno: suspeição de qualquer convicção. Caso haja um
ser bastante poderoso e bastante maligno para me enganar, então tudo é
passível de dúvida. É possível dizer que permanece algo de que não se pode
duvidar?
4. Permanência da dúvida: o estado de suspeição implica, sistematicamente,
estar em dúvida.
5. Dúvida implica pensamento: o ato de duvidar é um ato mental, portanto requer
que haja pensamento.
6. Pensamento implica existência: o ato de pensar requer que haja alguém
pensando, portanto não é possível haver pensamento sem que haja alguém.
A conclusão dessa cadeia de afirmações é só uma: penso (duvido), existo. Eu
penso, eu existo (ou, em sua versão em latim: cogito, ergo sum). Não há como duvidar
dessa afirmação, dado que colocá-la em suspeição pressupõe sua verdade. Isso ocorre
porque, para duvidar, é preciso existir, logo duvidar da própria existência é confirmar a
própria existência.
Mas qual a natureza dessa existência?
Descartes formula uma ontologia (uma descrição dos tipos fundamentais de coisas
que há) bastante econômica. Para ele, a realidade é formada fundamentalmente de dois
campos, em que se movimentam dois tipos de substâncias: a res cogitans e a res
extensa.
A natureza do ser pensante é a de ser algo que pensa, daí nome res cogitans.
Trata-se de algo de natureza não corpórea, sem dimensões portanto. A realidade
pensante não apresenta qualquer separação entre pensamento e ato. O pensamento é
um ato e uma realidade independente.
A natureza do restante da realidade é a de ser corpórea, dimensional, daí o nome
res extensa. Trata-se de algo que é caracterizado pela quantidade, comprimento,
largura, profundidade e movimento.
Só existiriam esses dois tipos de substâncias na realidade. Até agora, porém,
Descartes só chegou à conclusão da existência da primeira – afinal, o cogito é
incorpóreo.
O cético parece ter sido respondido: há pelo menos uma certeza: o cogito.
Porém, essa verdade diz respeito apenas ao pensamento subjetivo de quem pensa.
Resta saber qual a relação entre essa realidade subjetiva e a realidade objetiva, isto é,
fora do pensamento – composta tanto por res cogitans diferentes do sujeito individual,

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quanto pelo mundo corpóreo que compõe a res extensa. Só assim, o conhecimento
estará garantido contra as dúvidas do ceticismo radical. Resta a certificação de que o
gênio maligno não engana sistematicamente o ser pensante individual.
Em relação a essa questão, Descartes encaminha sua argumentação por uma
análise das ideias – uma entre os vários objetos do pensamento, entre os quais se
incluem vontade, emoção, dor, prazer, sensações etc. As ideias são “Entre os meus
pensamentos, [...] imagens das coisas [...]: como quando me represento um homem, ou
uma quimera, ou o céu, ou um anjo, ou mesmo Deus.” (Meditações metafísicas, Terceira
Meditação, §5). Entre elas, identifica três tipos: adventícias, factícias e inatas.
Ideias adventícias são aquelas que vem de fora – por exemplo, a ideia de sol.
Ideias fictícias são aquelas inventadas pela mente humana – por exemplo, a
ideia que um astrônomo do séc. IV a.C faz do sol ou simplesmente a ideia de algo
completamente imaginário como um Saci Pererê.
Ideias inatas são as inerentes ao pensamento – por exemplo, a ideia de coisa,
de verdade, de pensamento etc.
As ideias fictícias são facilmente descartadas como candidatas a corresponder
à realidade objetiva – afinal podem ser simplesmente inventadas. A questão está com
as ideias adventícias. E para salvar tais ideias, Descartes parte de uma ideia inata em
particular: a ideia de Deus19.
Descartes descreve o pensamento (cogito) como algo finito, afinal a dúvida é
marca da finitude, isto é, da incompletude. Porém, propõe que algo finito como o cogito
não pode ter gerado por si mesmo a ideia de algo infinito. Se existe a ideia de infinitude
no pensamento – e, de fato, ela existe –, então sua causa não pode ter sido o próprio
cogito. só algo infinito teria a capacidade de gerar algo infinito. Se a ideia de infinito
existe no cogito e se sua causa não pode ser o próprio cogito, então sua causa existe
fora da mente. (1º argumento)
Se cogito tivesse a capacidade de gerar ideias infinitas, então o pensamento ter-
se-ia feito infinito. Essa, porém, não é a realidade. Então o cogito não é capaz de gerar
uma ideia infinita. (2º argumento)
Além disso, a ideia de Deus é tal que envolve os conteúdos de infinitude,
eternidade, imutabilidade, independência, onisciência, onipotência, benevolência,
capacidade de criação irrestrita. Tudo isso implica perfeição máxima. Para Descartes,
tal perfeição pressupõe realidade, pois é impossível dissociar realidade de algo
maximamente perfeito. (3º argumento)
Sendo deus benevolente, seria razoável de supor algo como o gênio maligno?
Não, segundo Descartes. Está descartado, então, o engano sistemático a respeito de
todas as coisas – e mais importante, do mundo externo. Deus aparece, então, como
aquele que garante o conhecimento, a verdade da realidade objetiva.

19
A apresentação didática dos argumentos de Descartes é de REALE, ANTISERI, 2018, p. 296-7.

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O esquema reduzido dessa etapa do raciocínio poderia ser assim representado


para efeitos didáticos:
1. Eu penso, eu existo.
2. Penso em uma ideia infinita.
3. Ideias infinitas não podem ser produzidas por seres finitos.
4. A ideia infinita que penso foi produzida por um ser infinito.
5. Deus é um ser infinito.
6. Deus produziu a ideia infinita que penso.
7. Deus é um ser perfeito.
8. Seres perfeitos existem de modo independente de quem os pensa.
9. Deus é benevolente e, por isso, não me enganaria como um gênio maligno.
10. Não sou sistematicamente enganado sobre as coisas do mundo
11. Posso conhecer as coisas do mundo.
Essa atitude pode ser desdobrada em três vertentes: certeza como critério de
verdade, negação da tradição (ideologia revolucionária) e rejeição dos argumentos de
autoridade.
O critério para a verdade passa a não mais ser mera correspondência à
realidade, mas a certeza. E a certeza é um estado psicológico.
A tradição passa a ser vista com suspeita e algo de que duvidar, não confiar sem
reservas. Trata-se da construção de uma ideologia revolucionária, segundo a qual se
deve ignorar o passado – tradições, preconceitos, crenças infundadas – e confiar
apenas naquilo que puder ser construído por nós mesmos.
Nesse sentido, também é preciso rejeitar todos os argumentos de autoridade
– cujas figuras centrais são família, professores, sacerdotes etc. Descartes inventa o
pensamento crítico moderno.

3.3 Salvação: espiritualidade política

Sem kósmos (ordenação modelo da realidade), nem Deus (princípio ordenador


da realidade), a salvação ora confunde-se com a ética, ora confunde-se com a política.
A ética é necessária para a vida, mas não é suficiente. O princípio ético
moderno, segundo o qual o indivíduo deve negar sua natureza egoísta e guiar-se com
base no princípio da dignidade humana garante uma vida comunitária pacífica. Porém,
não assegura resposta para outra série de questões profundas sobre a existência
humana:

• Velhice: como lidar com as rugas, com os cabelos brancos, com a


impotência do corpo e do raciocínio à medida que o tempo passa?
• Doenças: como lidar com as dores do corpo, com as incapacidades físicas,
com as limitações aleatórias da fisiologia humana?
• Separações: como lidar com os términos de relacionamentos amorosos e
de amizade? Como atravessar ciclos de desamparo emocional?
• Mortes: como lidar com a finitude humana?

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• Educação: como escolher sobre o que aprender, com o que se ocupar, em


que se aprofundar, a que devotar atenção?
• Tédio: como lidar com a banalidade da vida cotidiana?
A política aparece como salvação na figura de três “religiões de salvação
terrestre”: cientificismo, nacionalismo e comunismo.
As três são ideologias que – por vezes, até professando ateísmo radical –
agarram-se a ideais capazes de dar um sentido à existência humana e de justificar que
se morra por elas. Todas indicam uma causa superior: a revolução, a valores étnicos,
linguísticos, territoriais e a ciência. Todas oferecem meios de fazer a vida valer a
pena e de fazer a morte não ser tão dolorosa. Todas prometem a imortalidade por meio
da construção de um ideal.
O ideal comunista afirma que morrer pela revolução é entrar para a
eternidade:
Eis um trecho do hino de Cuba, que é comunista:
¡Al combate corred Bayameses!
Que la patria os contempla orgullosa
No temáis una muerte gloriosa
Que morir por la patria es vivir
O ideal nacionalista também vai no mesmo caminho, como diz o hino comunista
cubano. Mas não precisa ser comunista para ser um nacionalista, isto é, defender a
ideia de que vale a pena dar a vida pela nação de que se é membro – seus valores, sua
língua, seu território, sua etnia.
O ideal cientificista incentiva que fazer uma grande descoberta, inventar uma
nova máquina, explorar uma nova tecnologia é imortalizar o próprio nome. O exemplo
da Igreja Positivista é ilustrativo.
A Igreja Positivista do Brasil foi fundada no dia 11 de maio de 1881 por Miguel
de Lemos na atual rua Benjamin Constant, n. 74, no bairro da Glória, na zona sul da
cidade do Rio de Janeiro. Sua sede é o Templo da Humanidade, onde ocorre a
celebração da Religião da Humanidade, ou Positivismo, doutrina criada
pelo, filósofo francês Auguste Comte (1798–1857).
Na falta de princípios cósmicos e divinos, é a própria humanidade –
revolucionária, nacionalista e científica – que se sacraliza.

4. Guia de leitura para o Encontro 5

Leia o Cap. 5 “A pós-modernidade: o caso Nietzsche”, tentando responder às


perguntas abaixo. Escreva-as em seu caderno de anotações.
1. O que Nietzsche quer combater quando ataca os “ídolos da razão”?

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2. Em que sentido a “genealogia” proposta por Nietzsche se distingue da


Teoria do Conhecimento tradicional?
3. O que são as “forças reativas” e como se exprimem?
4. O que são as “forças ativas” e como se exprimem?
5. O que Nietzsche quer dizer com “vontade de poder” e “grande estilo”?
6. Como entender a doutrina do “amor fati” e do “eterno retorno”?

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Bibliografia

CASTAGNOLA, Luis, PADOVANI, Umberto. História da Filosofia. 15º ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1990.
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Introdução e notas de Homero
Santiago. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. Tradução dos textos
introdutórios de Homero Santiago. 4ª ed. São Pulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016.
JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 2ª ed. rev., ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Coleção Pensamento Humano. Tradução e
notas de Fernando Costa Mattos. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2015.
KENNY, Anthony. Uma nova História da Filosofia Ocidental (vol. 3) - Filosofia
Moderna. 2ª ed. Tradução de Edson Bini. Revisão de Marcelo Perine. São Paulo:
Edições Loyola, 2012.
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dário. História da Filosofia (vol. 3) – do Humanismo a
Descartes. Coleção História da Filosofia. Tradução de Ivo Storniolo. 1ª ed. [2004]. 5ª
reimpressão [2018]. São Paulo: Paulus, 2018.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. Tradução
de Eduardo Brandão. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Cia das Letras, 2017.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes. Coleção logos. São Paulo: Moderna, 1993.

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