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DADOS DE ODINRIGHT

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O que é política

Wolfgang Leo Maar

    
Copyright © by Wolfgang Leo Maar, 1982
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas
eletrônicos. fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

Primeira edição, 1982


16ª edição, 1994
29ª reimpressão, 2012
Primeira edição eBook, 2017

Diretoria Editorial: Maria Teresa Lima


Editor: Max Welcman
Revisão: Heloísa H. Lima
Caricatura: Emílio Damiani
Diagramação: Carlos Alexandre Miranda
eBook: Ana Clara Cornelio, Bruna Cecília Bueno, Giuli Romano, João Pedro
Rocha, José Eduardo Goés
Produção: Editora Hedra Ltda.

editora e livraria brasiliense


Rua Antônio de Barros, 1839 - Tatuapé, São Paulo - SP, 03401-001
www.editorabrasiliense.com.br
Sumário
Apresentação
A política e as políticas
O poeta e o libertador
Uma visão histórica
Atividade política de gregos e romanos
Maquiavel e o Estado
Marx e as classes
Atividade política, estado e cotidiano
O Estado e seus objetivos
Os meios da política: força e consenso
As condições da política: organização e mobilização
As bases da política: Movimentos sociais e cotidiano
Política e representação eleitoral
Política, cultura e ideologia
A cultura em sua função política
Política como missão civilizatória
Indicações para leitura
Sobre o autor
Apresentação
A política é uma referência permanente em todas as
dimensões do nosso cotidiano, na medida em que este se
desenvolve como vida em sociedade. Embora o termo
“política” seja muitas vezes utilizado de um modo bastante
vago, é possível precisar seu significado a partir das
experiências históricas em que aparece envolvido.

Em 1984, após vinte anos de presidentes impostos pelos


militares, milhões foram às ruas em comícios por todo o
país na memorável “Campanha das Diretas” para se
manifestarem pela eleição direta, secreta e universal do
Presidente da República. Como se sabe, este acabaria por
ser indicado por um colégio eleitoral pela via indireta,
porque a maioria dos congressistas eleitos foi contrária à
eleição direta. Em 1985, este mesmo Congresso Nacional
rejeitaria a proposta de convocação de uma Assembleia
Nacional Constituinte livre e soberana, desvinculada do
Congresso Nacional, anulando assim os esforços populares
para que os congressistas não agissem em benefício
próprio. No início de 1986 o governo decretou o “plano
cruzado”, promovendo uma reforma econômica em que se
anunciavam benefícios à população majoritária de baixa
renda, com o que conquistou amplo apoio nas eleições de
15 de novembro. Encerrado o pleito, o governo decretou
novas medidas altamente impopulares, levando as centrais
sindicais a convocar uma greve nacional de protesto contra
a política econômica do governo. Em alguns lugares o
exército foi às ruas para “garantir a ordem e as
instituições”, a exemplo do que fizera em 1964.

Não é preciso se estender mais. Este breve recorte de


alguns momentos da história recente do Brasil elucida
exemplarmente o significado da política através dos
movimentos que visam interferir na realidade social, a partir
da existência de conflitos que não podem ser resolvidos de
nenhuma outra forma.

A política surge junto com a própria história, com o


dinamismo de uma realidade em constante transformação
que continuamente se revela insuficiente e insatisfatória e
que não é fruto do acaso, mas resulta da atividade dos
próprios homens vivendo em sociedade. Homens que,
portanto, têm todas as condições de interferir, desfiar e
dominar o enredo da história. Entre o voto e a força das
armas está uma gama variada de formas de ação
desenvolvidas historicamente visando resolver conflitos de
interesses, configurando assim a atividade política em sua
questão fundamental: sua relação com o poder.

Afinal, a “política” serve para se atingir o poder? Ou então


seria a “política” simplesmente a própria atividade exercida
no plano deste poder? As eleições – ou as armas – servem
para confirmar ou para transformar?

Que referencial usar para encaminhar estas questões?

Parece que, de repente, a “política” aparece como naquela


memorável “Campanha das Diretas” em 1984. Mas de fato
ela não aparece “de repente”: já está lá, multifacetada,
sempre presente em suas relações com o Estado, com o
poder, com a representatividade e participação, com as
ideologias, com a violência, seja nos sindicatos, nos
tribunais, na escola, na igreja, na sala de jantar ou na
reunião partidária. É o que se verá a seguir.
A política e as políticas

Apesar da multiplicidade de facetas a que se aplica a


palavra “política”, uma delas goza de indiscutível
unanimidade: a referência ao poder político, à esfera da
política institucional. Um deputado ou um órgão de
administração pública são políticos para a totalidade das
pessoas. Todas as atividades associadas de algum modo à
esfera institucional política, e o espaço onde se realizam,
também são políticas. Um comício é uma reunião política e
um partido é uma associação política, um indivíduo que
questiona a ordem institucional pode ser um preso político;
as ações do governo, o discurso de um vereador, o voto de
um eleitor são políticos.

Mas há um outro conjunto em que a mesma palavra


manifesta-se claramente de um modo diverso. Quando se
fala da política da Igreja, isto não se refere apenas às
relações entre a Igreja e as instituições políticas, mas à
existência de uma política que se expressa na Igreja em
relação a certas questões como a miséria, a violência etc.
Do mesmo modo, a política dos sindicatos não se refere
unicamente à política sindical, desenvolvida pelo governo
para os sindicatos, mas às questões que dizem respeito à
própria atividade do sindicato em relação aos seus filiados e
ao restante da sociedade. A política feminista não se refere
apenas ao Estado, mas aos homens e às mulheres em geral.
As empresas têm políticas para realizarem determinadas
metas no relacionamento com outras empresas, ou com os
seus empregados. As pessoas, no seu relacionamento
cotidiano desenvolvem políticas para alcançar seus
objetivos nas relações de trabalho, de amor ou de lazer;
dizer “Você precisa ser mais político” é completamente
distinto de dizer “Você precisa se politizar mais”, isto é,
“precisa ocupar-se mais da esfera política institucional”.
Da mesma maneira, um músico que exclama: “eu sou um
artista, não entendo de política”, posicionando-se frente à
arte engajada, refere-se à política institucional. E pode
muito bem, sem incorrer em nenhuma incoerência,
continuar: “mas tudo que faço tem profundo sentido
político”. Ele está fazendo uma distinção entre o valor
político imediato de um comício pelas eleições diretas para
Presidente da República, que pretende interferir na
estrutura do Poder institucional, e o valor político não
diretamente institucional do movimento sindical, das
comunidades de base da igreja, de uma passeata de
estudantes, do movimento gay, de uma invasão de terras,
ou de um manifesto cultural.

Não resta dúvida, porém, de que este segundo significado é


muito mais vago e impreciso do que o primeiro. A evolução
histórica em direção ao gigantismo das Instituições Políticas
– o Estado onipresente – é acompanhada de uma politização
geral da sociedade em seus mínimos detalhes, por exigir
um posicionamento diário frente ao Poder. Mas ao mesmo
tempo traz consigo a imposição de normas com que balizar
a própria aplicação da palavra política; procurando
determinar o que é e o que não é “política”.

Dessa forma, oculta-se ao eleitor o seu ser político,


atribuindo-se esta qualidade apenas ao eleito. Ou então
atribui-se à pessoa um espaço e um tempo determinado
para que exerça uma atividade política, na hora das
eleições, quando está na tribuna da Câmara dos Deputados
depois de ter sido eleita, quando senta no palácio para
despachar com seus secretários mesmo sem ter sido eleita.
A própria delimitação rígida da política constitui, portanto,
um produto da história; e este é, sem dúvida, o principal
motivo pelo qual não basta ater-se a um significado geral da
política, que apagaria todas as figuras com que se
apresentou em sua gênese.
Esta delimitação operada pelo nível institucional traz
consigo alterações profundas na esfera de valores
associados à política. Uma conjuntura institucional
insatisfatória, pela corrupção ou pela violência, jamais
dissociadas, reflete-se numa desmoralização da atividade
política – politicagem – que pode reverter em apatia ou na
procura de alternativas extrainstitucionais como a luta
armada. Ao mesmo tempo, processa-se uma inversão na
valorização da atividade política na própria esfera
institucional, em que ela deixa de ser um direito, passando
a ser apenas um dever e uma responsabilidade. Em outras
palavras, à Instituição passa despercebido que a sua é
também uma política, assentada na sociedade com uma
proposta de participação, representação e direção. Por esta
carência de visão de relatividade, instaura-se um
normativismo absoluto, ocultando-se assim sua natureza
histórica.

Interessa perceber que, apesar de haver um significado


predominante, que se impõe em determinadas situações, e
que aparece como sendo “a” política, o que existe na
verdade são políticas.

É apenas aparente a incoerência de um líder sindical


afirmando que a ação do movimento social de inegável
expressão política que representa “não tem sentido
político”. Ele resguarda seus flancos em relação ao Estado
que lhe nega o direito de fazer política fora dos espaços
especificamente delimitados para tanto – os partidos oficiais
e legais. Mas, simultaneamente, procura recuperar o
significado amplo de uma política forte fora do âmbito em
que ela se desacreditou, por não ser representativa, por não
permitir a participação e não oferecer uma direção
socialmente valorizada.
Naquele movimento social, sem dúvida, pode-se não fazer a
política, mas certamente se faz uma política.

De modo análogo, a Igreja, mesmo não sendo uma


instituição política – prerrogativa do Estado secularizado –,
sempre sustenta a proposta de fazer política, oferecendo
um nível de atuação em que procura traduzir anseios e
interesses sociais. Ela não pretende o poder institucional – o
governo –, mas um poder político.

Existem, portanto, em um mesmo instante, várias políticas,


ou ao menos várias “propostas políticas” na sociedade. Em
decorrência, há uma situação dinâmica em que as diversas
propostas relacionam-se entre si e com a trama social a que
procuram conferir uma expressão política.

Situação dinâmica essa que implica dois tipos de questões


básicas. Em primeiro lugar, a focalização do movimento
histórico de interrelacionamento das diversas políticas, em
que se determina a preponderância de uma delas – a
chamada “política hegemônica” – ou a situação delicada –
que é o que se denomina de “crise política” – em que
nenhuma consegue impor-se. Ou então em que uma já
perdeu a sua sustentação, mas nenhuma outra possui
fundamentos suficientes para se tornar uma alternativa. Em
segundo lugar, cabe dedicar-se com especial carinho à
própria conjuntura em que se desenvolve uma política como
expressão de certas situações em sociedade. Em outras
palavras, como algo que não tem, passa a ter significado
político.

Essas duas questões se encontram. Basta examinar estes


agentes políticos por excelência da sociedade moderna que
são os partidos. É certo que fazem parte do nível político
institucional, e como tais se inserem na disputa pela
primazia no controle do governo e na ocupação do aparelho
estatal. Porém, também são partidos de alguma coisa, de
determinados interesses em relação aos quais têm com-
promissos. São esses compromissos justamente que Ihes
conferem significado, e em relação a estes devem traduzir
uma importância no jogo parlamentar. A política dos
partidos, portanto, tem duas faces: uma em relação à
sociedade e seus interesses; outra como política de disputa
do governo.

As palavras inglesas policy e politics, embora não traduzam


precisamente os dois níveis em questão, são elucidativas.
Um partido à testa do governo executa uma policy nas
relações com os outros países, ou no que diz respeito à
saúde, aos transportes, à educação; a palavra tem mais a
ver com a administração dos negócios públicos, com
realização de interesses sociais. Enquanto participa do
debate parlamentar, ou da disputa pelo governo
institucional, um partido está no terreno da politics.

A questão é complexa. Não resta a menor dúvida, porém, de


que na esquina da vertente institucional com a vertente
social encontra-se talvez o maior dos desafios políticos. Dois
exemplos poderão servir para situar o problema. Como
explicar – e isto vale sobretudo para os países chamados
capitalistas – que nas sociedades contemporâneas mais
estáveis e portanto não ameaçadas em sua
institucionalização política, em seu governo, não se
eliminem os bolsões de pobreza apesar de há muito se ter
atingido um nível de riqueza que objetivamente permitiria
fazê-lo? Rompem-se desta forma os compromissos das
instituições com a representação social, a cujos interesses
não atendem, embora pudessem fazê-lo.

Como explicar – e isto vale sobretudo para os países


chamados de socialistas – que em lugar algum onde se
tenham firmado políticas de cunho social – educação,
emprego, saúde, alimentação, transporte para todos – tenha
sido possível institucionalizar formas de governo que não se
sintam sempre ameaçadas, e que por isso mesmo limitem a
participação social? Se os interesses sociais são atendidos,
por que temer a mais ampla participação nas instituições
que deveriam representar a sociedade?
O poeta e o libertador

Ainda uma pequena digressão. Que seja apenas pela


tradição das próprias análises do tema, as questões
políticas têm sido quase sempre enfocadas num prisma que
privilegia unicamente o coletivo social. Não há por que
divergir da concepção segundo a qual o homem é um ser
social – razão de ser, aliás, da própria atividade política – e
que a existência individual apresenta-se como consequência
desta especificidade dos homens.

O que não basta, porém, para explicar a frequente sensação


de camisa-de-força com que a política é encarada pelas
pessoas em suas atividades individuais, quer na vida do
artista, do profissional competente ou do apaixonado no
banco de jardim, quer na do próprio sindicalista ou na do
“político”, que encerram seu expediente diário como se se
despissem de um pesado fardo.

A atividade política passa a ser uma espécie de mal


necessário, uma atividade social transformadora pela qual
se visa a realizar certos fins utilizando-se de determinados
meios. Enfim, um instrumento de que há precisão na vida
em sociedade.

Isto me parece correto, embora parcial. Transpira um certo


objetivismo de realização de metas maiores, relativas a
interesses sociais. Estes podem ir do bem-estar comum à
capacidade de oferecer segurança externa e concórdia
interna à sociedade, associadas à organização e controle
das atividades do conjunto da vida social, como funções
atribuídas comumente ao Estado e à vida política, para
justificar e explicar a sua existência. Ou então a perspectiva
de operar mudanças através do assalto ao poder político
seria um fim que justificaria qualquer meio, submetendo
hierarquicamente todas as atividades envolvidas à nobreza
da sua finalidade.

Por oposição a esta “objetividade” das tarefas políticas,


sugere-se a existência de instâncias e valores “subjetivos”
devidamente enclausurados à parte e subordinados à
política, cuja satisfação deve aguardar a realização da
utopia, ante o risco que significa o abandono das
prioridades sociais efetivas.

À atividade política caberia privilegiar o estudo e a


transformação das condições objetivas na sociedade que
permitissem renová-la estruturalmente, com novas relações
sociais e políticas, de modo a permitir então a plenitude da
vida individual.

Mas, com a água com que se pretende lavar os interesses


sublimes das suas impurezas profanas, joga-se a criança. A
esta, por mera referência à pretensão da objetividade,
acima assinalada, pode-se chamar de condições subjetivas.
Como realizar um sentido social-político, se há um fosso a
separá-lo do sentido individual-humano, cuja travessia
requer esforços nem sempre radicados na vida real no seu
desenrolar cotidiano?

Como conciliar, diria alguém, as minhas escolhas individuais


com as minhas escolhas políticas? E isto não vale só para a
relação entre os amigos e os companheiros de militância;
serve também para o trabalhador que quer melhorar o seu
salário e precisa ser mobilizado para uma luta política mais
ampla, cujas metas muitas vezes pouco significam ao seu
dia a dia. Como assentar as possibilidades da luta de
classes nas necessidades efetivas dos homens? Como casar
a necessidade de canalizar esforços em conjunto, com a
diversidade das possibilidades individuais?
014       

Em nome de quê sustentar uma vontade que pode implicar


no sacrifício do desejo? Talvez mostrando a falsidade desse
desejo, e acenando com a realização futura em maior
profundidade. Com o que claramente não se consegue
apagar o esforço consciente que faz do engajamento na
atividade política uma opção voluntária, acompanhada do
abandono de uma faceta substantiva da individualidade.

Certamente as condições objetivas determinam as


condições subjetivas. Marx mostra como o modo de
produção capitalista submete de um modo tão universal a
sociedade, que as próprias relações entre os homens
surgem como relações “coisificadas” entre o capital e a
força de trabalho. Em vez de as “coisas” servirem às
pessoas, estas acabam achando que servem às coisas. O
homem distancia-se, alheia-se em relação ao significado, ao
valor que as coisas, os outros homens e ele próprio têm
para si mesmo. Sua própria vontade e seu desejo
submetem-se ao mecanismo inexorável da reprodução
capitalista. Tornando-se um homem “alienado”, inconsciente
do fato de ser ele mesmo, homem, que produz as coisas e
as relações entre os homens, que produz a si mesmo.
Oculta-se o seu papel de elemento dinâmico principal, de
produ- tor da história. A própria atividade política aparece
como relação entre eleitor e eleito, entre Estado e cidadão,
e seu aspecto próprio de relação humana se perde. Embora
o sujeito da política seja o homem, a política é a política da
luta de classes. A moral que rege a vida individual acaba
submetendo-se ao capital – é preciso ganhar mais – ou às
regras do governo – isto é censurado, aquilo é proibido.

Para restaurar a verdade seria preciso uma transformação


prática, uma análise científica que revele estes fatos como
consequências de determinadas políticas que também
servem ao capital e não aos homens. Se o problema é
político, a política pode mudá-lo.

Mas as condições subjetivas não são apenas determinadas


pelas condições objetivas. Elas têm um componente real,
que não desaparece simplesmente ao jogá-lo mais adiante.
E, por este seu componente real, influenciam também as
próprias situações “objetivas”, que deste modo passam
também a ter uma existência apenas relativa. A social-
democracia, com o seu sindicalismo apenas reivindicativo,
realizava interesses efetivamente existentes, cuja satisfação
delegaria a um segundo plano o mundo das promessas. O
liberalismo capitalista satisfaz de fato a muitas aspirações
individuais, que não são apenas enganos ou desejos
impossíveis. Qualquer proposta política transformadora que
negasse a valorização do sentido humano da existência
individual, ou a submetesse a uma valorização exclusiva do
coletivo, que significasse um fardo para o indivíduo, só
conseguiria como adeptos os fanáticos. Para estes a leitura
dos manuais substituiria a felicidade real. À solução política
deve associar-se necessariamente uma solução civilizatória
voltada à realização de interesses humanos.

Seria isto utópico? Ou haveria a possibilidade de associar os


meios políticos – coletivos – a objetivos que valorizem no
homem a sua individualidade e a sua especificidade? Para
Marcuse, na relação dos meios com os fins é possível
encontrar uma nova ética, em que os valores não são
descartados apenas como meros hábitos impostos por um
modo de produção e sua política, nem submetem o
indivíduo ao isolamento das qualidades meramente
pessoais.

Platão, no Banquete, põe na boca de Sócrates a realização


do futuro eterno no amor presente pela paternidade. Sartre
lembra que, para a burguesia do século XVIII, o sentido da
vida estava em legar um capital a seus filhos. Para Sartre, o
sentido estaria em saber que as causas pelas quais lutava
continuariam a motivar os homens, que valorizariam o seu
papel como contribuição. Servir para nada no futuro tornaria
sem sentido humano o presente.

Deve também haver realizações já no cotidiano imperfeito


do presente, em uma política voltada à realização do
paraíso futuro. Há uma mediação entre o privilégio ora
atribuído à experiência da razão – que diz: não é possível –,
ora à imaginação do desejo – que diz: é possível. “Sonhar é
preciso, desde que realizemos o sonho meticulosamente e o
confrontemos passo a passo com a realidade”, disse Lênin.
Para Max Weber “a política consiste num esforço tenaz e
enérgico de furar tábuas duras de madeira. Este esforço
exige simultaneamente paixão e precisão... não se poderia
jamais esperar o possível se no mundo não houvesse
sempre a esperança no impossível... é preciso que as
pessoas se armem sempre da força da alma que lhes
permitirá ultrapassar todos os naufrágios das esperanças,
mas que o façam desde o presente, senão não serão
capazes de fazer o que é possível ser feito hoje. Aquele que
está convencido disto (...) possui a vocação da política!”.

A própria atividade política, longe de ser apenas voltada a


uma transformação do “mundo objetivo” com vistas ao
futuro, significa, também, o exercício de uma atividade
transformadora da consciência e das suas relações com o
mundo. Assim as próprias propostas políticas são
repensadas em cima do que elas tem a oferecer já, aqui e
agora. Em termos que lhes conferem um significado
humano imediato real, sem que isto signifique o abandono
de perspectivas mediatas para o futuro como metas
necessárias. “A política do corpo”, por exemplo, ao exigir a
valorização de algo tão individual como o corpo humano
enquanto fonte e condição de bem-estar e prazer, puxa
para o cotidiano finalidades frequentemente jogadas ao
além. Para ser feliz não é preciso antes construir o
socialismo. A meta por enquanto irrealizável já tem
componentes possíveis, que devem ser condições, e não
resultados. A medida com que estas “pequenas coisas” são
praticáveis, não deve mais ser estranha aos critérios de
avaliação de políticas menos imediatistas.

Manifestações como as de maio de 1968 em Paris – que


ocorreram também em praticamente todo o mundo –
tinham como razão de ser não a oposição pura a
determinadas instituições, nem a realização de projetos
alternativos futuros. Expressando o descontentamento
profundo e a imobilidade geral a que a maioria dos homens
foi condenada em face das amarras de um determinado tipo
de participação política institucionalizada, os manifestantes
procuravam um papel, no presente, que não limitasse
apenas ao futuro distante qualquer realização de
significados humanos, já tão espoliados pelas imposições do
esforço exigido pelas “condições objetivas”. Que pode
alguém fazer hoje, e como pode realizar algum significado
humano na sua atividade, num país onde os políticos se
revezam num poder aparentemente imóvel e inacessível,
onde o próprio emprego, quando acontece consegui-lo,
significa uma amarra para toda a vida, onde a ciência
apenas banaliza e castra a imaginação criativa e
transformadora, onde os valores morais submetem-se a
uma ética consumista, alienando as relações humanas em
seu conteúdo mais profundo?

Por isto, nos movimentos sociais emergentes no Brasil,


muitas vezes não se procura só canalizar esforços comuns
para obter objetivos ainda não existentes – por exemplo:
alterações na política trabalhista do governo através do
movimento sindical. Na prática cotidiana, a ativi- dade
política assume a perspectiva de realizar dimensões
humanas mais profundas no relacionamento pessoal, com o
respeito à diversidade individual e a crítica a formas
predeterminadas de conduta. Sem isto, desvincula-se a
realidade do dia a dia do espaço de atuação política.

A democracia, longe de se esgotar nos fins, já precisa se


apresentar nos meios. A tão difundida ideia de que há
necessidade de juntar esforços, apagando diferenças, para
realizar metas em que a diversidade possa, enfim, se
desfraldar, no respeito aos interesses da individualidade,
adquire uma nova conformação. A reunião num coletivo de
individualidades diferentes precisa assentar no respeito à
diversidade dos interesses isolados. Cria-se assim uma nova
dimensão social, em que a diversidade apresenta-se numa
prática política que relativiza as arestas mais ásperas do
confronto de interesses, na medida em que as consciências
se transformam, e com elas os próprios objetivos
individuais. A democracia passa a se interiorizar como uma
conduta pessoal, de modo que as escolhas pessoais possam
encontrar-se com as escolhas políticas.

Isto pode parecer um novo ardil do Estado. A experiência do


poder totalitário de propostas políticas assentadas na
mobilização popular também sugere a necessidade de uma
transformação das consciências individuais. Sob o nazismo,
Hitler facilmente conseguia apoio majoritário, porque
acrescentava à sua proposta política uma proposta cultural
em que se interiorizavam na própria consciência individual
os moldes autoritários. Por outro lado, sabe-se que muitas
alternativas democráticas não se firmaram – e muitas ainda
têm dificuldade em se firmar –, transformando-se em
apêndices de instituições coercitivas, por não conseguirem
revelar o encontro de seu significado político com o seu
sentido humano. As garantias políticas coletivas não se
expressam com igual abrangência no cotidiano em que se
desenvolvem os interesses pessoais.
Isto revela o encontro profundo existente entre propostas
políticas e propostas culturais, para que se possa reunir a
história das transformações no “mundo objetivo” com a
história das transformações da consciência. Uma cultura
pode tornar-se predominante, institucionalizando-se e
refluindo sobre a sociedade com as viseiras impostas pelo
poder que se considera legal. Mas pode, também,
encontrar-se na sociedade, expressando seus significados
humanos, para condicionar as alternativas políticas. Aqui o
papel dos intelectuais é de grande relevância: em suas
mãos pode adquirir força política de direção para a
sociedade o complexo conjunto de manifestações culturais.

Preso às determinações do aparelho institucional político, ou


porta-voz das manifestações culturais sociais, cabe à figura
do intelectual a importante tarefa de ser mediador entre
interesses individuais e coletivos. Ele pode formular
propostas que permitam, já, a confluência de uma política
voltada a objetivos culturais no futuro e de uma cultura que
confira um sentido humano atual a esta política. Os
intelectuais são personagens a um termo políticos e
culturais, conferindo representação cultural à política, e
direção política à cultura. Talvez, como sugeriu Gramsci
muitas vezes, façam no futuro um papel semelhante ao
desempenhado pelos Partidos Políticos, os agentes da
mediação entre a expressão política e a sua demanda
social.

Falando sobre a crítica literária e seus critérios, Gramsci


formula com precisão este espaço de atuação:

“O político que pressiona para que a arte contemporânea


expresse explicitamente o mundo cultural, realiza atividade
política, não de crítica artística; se a sociedade cultural pela
qual se luta é algo latente e necessário, sua expansão será
irresistível e encontrará seus próprios artistas... por outro
lado, é necessário não esquecer que... o literato deve
necessariamente ter perspectivas menos precisas e
definidas do que o político, deve ser menos ‘sectário’, e ser
mesmo o ‘contrário’ disso. Para o político, toda imagem
‘fixada’ a priori é reacionária, pois considera todo
movimento em seu devenir. O artista, em troca, deve ter
imagens ‘fixas’ e situadas de forma definitiva. O político
considera o homem como é em seu momento e como deve
ser para alcançar determinado fim. Seu trabalho consiste
em fazer os homens marcharem em frente para sair da sua
existência atual e porem-se em condição de alcançar
coletivamente os fins propostos; ou seja, ‘adaptarem-se’ a
estes fins. O artista representa necessária e realisticamente
‘o que existe’ de individual, não conformista etc., em certo
momento. Por isto, do seu ponto de vista, o político sempre
achará o artista... à mercê dos tempos, anacrônico,
superado pelo devenir real”.Gramsci interroga no homem, a
um só tempo libertador e poeta, a ambiguidade profunda
com quese defronta em seu cotidiano. Sem propor uma
conciliação, formal e abstrata, provoca o tema gerado por
uma fragmentação concreta e real. Como encarar nosso
“tempo de partidos, tempo de homens partidos”, nas
palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade? A história
oferece algumas pistas que enriquecem o presente. Portas
abertas que não precisam mais ser arrombadas. Cada leito
trilhado é uma razão a mais para desafiar a imaginação,
como um novo leque de possibilidades abertas que, se não
conduz a linha a ser traçada, ao menos lhe ilumina o pano
de fundo.
Uma visão histórica
O que a política significa aqui e agora é resultado de um
longo processo histórico, durante o qual ela se firmou como
atividade na vida social dos homens. Seguindo as pegadas
deste trajeto é possível perceber as mudanças na sua
concepção, privilegiando ora um, ora outro de seus
aspectos, de acordo com cada situação.

Talvez mais importante do que isto seja a conclusão a que


aponta: a de que a atividade política continua em
movimento, aberta a novas transformações. Embora alguns
de seus ingredientes, algumas formas pelas quais a política
se apresenta como o Estado e os partidos – sejam
manifestações mais ou menos duradouras, nada impede
que modifiquem seu caráter ou até mesmo deem lugar a
outras formas, sempre que não correspondam mais aos
motivos que provocaram sua existência. A grande
desmoralização da “política oficial” no presente – em que
progressivamente se desacredita da capacidade de resolver
problemas institucionalmente – leva a atividade política, por
exemplo, a se refugiar cada vez mais fora da atuação das
instituições. Concentra-se no plano já usualmente
denominado de “política de base”, fora e dentro de casa,
nos locais de trabalho e no cotidiano. Esta constitui uma
aquisição relativamente recente, basicamente do século XX,
e será neste plano que deverão se manifestar as grandes
transformações para o futuro. Pensar a política atualmente
já não significa limitar-se ao estudo do Estado ou dos
partidos, como ainda acontecia no século XIX, mas repensar
as necessidades do passado que levaram a constituir estas
instituições. Os movimentos sociais e a política de base
passariam a adquirir importância decisiva, como agentes
políticos tão necessários como o próprio governo ou os
partidos. O que interessa mesmo é resguardar a atividade
política, sem preconceitos quanto a como, quando e onde
ela se apresenta.
Atividade política de gregos e romanos

Falar em Grécia é falar em democracia. Atenas, a


“Constituição” de Sólon, os grandes debates na ágora –
praça em grego –, a época de Péricles etc. De vez em
quando, lembra-se Esparta, o seu espírito bélico e o
ascetismo da sua vida cotidiana, “espartana”. Esta seria
uma espécie de “contraponto” da democracia ateniense.
Por vezes se menciona também o fato de a sociedade grega
basear-se no trabalho escravo, o que exigiria uma ordem
autoritária. Há ainda quem fale de Platão, que teria
postulado em sua República a censura às artes em nome da
saúde do Estado. Nada disto, porém, impede o prestígio dos
gregos como “precursores” da democracia.

Por quê? As causas disto devem ser procuradas mais no


significado que a atividade política assumia na Grécia, do
que nos méritos da opção por uma ou outra forma de
governo: tirania, monarquia, democracia. O termo “política”
foi cunhado a partir da atividade social desenvolvida pelos
homens da pólis, a “cidade-Estado” grega. Em outros locais,
como na Pérsia ou no Egito, a atividade política seria a do
governante, que comandava autocraticamente o coletivo
em direção a certos objetivos: as guerras, as edificações
públicas, a pacificação interna. Na Grécia, ao lado destas
atribuições do soberano, a atividade política desenvolver-se-
ia como cimento da própria vida social. O que a política
grega acrescenta aos outros Estados é a refe- rência à
cidade, ao coletivo da pólis, ao discurso, à cidadania, à
soberania, à lei.

Duas referências de Platão e Aristóteles, que não eram a


favor da forma democrática de governo, mas estavam
imbuídos deste significado da política, esclarecem a
questão. Para Platão, o político não se diferencia dos demais
homens por nenhuma qualidade – como a força – a não ser
por conhecer melhor os fins da pólis, oferecendo uma luz
que guie os homens entrevados nas sombras da caverna.
Para Aristóteles, na Ética a Nicômaco, como “a política
utiliza-se de todas as outras ciências, e todas elas
perseguem um determinado bem, o fim que ela persegue
pode englobar todos os outros fins, a ponto de este fim ser
o bem supremo dos homens”. Estas preocupações, de como
“oferecer uma luz” ou “o bem supremo” aos homens, e não
apenas agir em nome deles na direção dos negócios
públicos, constituem uma grande novidade. Através dela se
forma um espaço de presença da política no cotidiano e se
abre um terreno à participação política fora do âmbito
restrito do exercício do governo. Esta forma de entender a
atividade política como uma experiência que se reflete na
vida pessoal, harmonizando-a com o coletivo, faz da política
grega uma ética, um referencial para o comportamento
individual em face do coletivo social, da multipli- cidade da
pólis.

Sendo ética, a atividade política tem uma função


pedagógica, de transformação dos homens em cidadãos: a
Paideia. Por sua vez a atividade do soberano, do chefe,
passa a ser atividade de uma função definida pelos
cidadãos, os políticos: a soberania, cuja definição seria
estabelecida pelas leis. O espaço de participação, antes res-
trito à prática do soberano, amplia-se para a prática da
soberania exercida pelos cidadãos, sejam ou não governo.
Neste espaço se desenvolvem as discussões públicas, a
prática pública do discurso voltado ao convencimento, o
conflito entre as diversidades. Não somente o Estado, o
governante executivo, mas também a cidade, reunião de
cidadãos, adquire significado, participa politicamente. No
palco das relações entre ambos definir-se-ia a política grega
como um todo.
Roma é imperial. Não foi à toa que os nazistas copiaram a
saudação Ave César com o seu Heil Hitler; nem constitui
mero acaso que a marca do imperialismo ianque seja a
águia romana. Esta simbologia seria apenas reflexo da
influência de um modelo de atividade política centralizada e
exercida por um Estado forte e dominador.

O historiador Theodor Mommsen, em pleno auge do


imperialismo alemão no começo do século XX, afirmava que
a diferença entre Roma e Grécia estava em que os romanos
usavam sobrenome: os Gracos, os Antoninos, nomes de
famílias ou clãs. Contrariamente à dos gregos, a política dos
romanos seria voltada a objetivos manifestadamente
particulares: os interesses das gens originais, que
precisavam resguardar seu monopólio sobre as riquezas
saqueadas ou a exploração da terra. A palavra “pátria”
revela ainda esta origem familiar, a partir do pater famílias;
os nobres romanos seriam os “patrícios”, os proprietários.

Além destes, havia os escravos e os que só tinham sua


prole, os proletários.

Para Cícero, “O bom governante é como o tutor que zela


melhor pelos interesses dos seus pupilos do que pelos seus
próprios”. O Estado romano seria assim um administrador
que tutela interesses dos patrícios, impondo os objetivos
deste aos demais, seja pelos tributos – “impostos” –, seja
para aqueles servirem de instrumentos de saque, como
guerreiros. A atividade política, além desta dominação
exercida pelo Estado, diria respeito à relação entre tutor e
pupilos, e seria efetuada mediante um instrumento: o
direito romano. Por este se garantia a nãointerferência do
Estado na propriedade privada, nos interesses patrícios, a
não ingerência do público, coletivo, no particular.
O Estado moderno, superdimensionado, servindo para impor
interesses particulares e setoriais ao conjunto da sociedade,
mas que não mantém com esta nenhuma outra relação
como agente de realização do “bem comum” – como Tomás
de Aquino batizaria o “bem supremo” de Aristóteles –, tem
seu modelo em Roma. O significado que a atividade política
assume não teria a ver com as relações cidade-Estado – por
isto Roma não era uma pólis –, mas sobretudo com o jogo
entre tutores e pupilos – militares, burocratas e burguesia –
e as suas práticas de manipulação, corrupção e repressão.
Em Roma a atividade política concentra-se na disputa pelo
poder de tutela do Estado, como Instituição a serviço de
interesses privados.

A atividade política passa a se transferir das “coisas


públicas”, da República – res-publica, seu objetivo original –
para a instituição em que se realiza – “o estado das coisas
públicas”, expressão que aparece relatada com o jurista
Ulpiano no século III d .C.

A política institucionaliza-se numa esfera autônoma,


paralela à atividade social: no Estado.

Por que caiu o império romano? Esta é uma das grandes


questões da história política. Não havia nenhum outro, ele
era único; portanto, à primeira vista, deve ter caído porque
se tornara fraco, isto é, nele mesmo estariam as causas de
sua falência.

Este é o grande equívoco de uma visão de atividade política


exclusivamente baseada numa concepção institucional, em
que possui significado apenas a prática que diz respeito ao
Estado, no caso o único existente, o romano.

Por esta perspectiva, um governo só mudaria quando ele


mesmo não conseguisse se sustentar. É a estratégia dos
adeptos da “crise” do governo, que enxergam numa cisão
entre militares, na queda de um ministro ou numa disputa
entre burocratas motivo de regozijo.

Gramsci, examinando a queda de Roma, mostra como ela


se deu em parte devido a abalos e crises políticas do próprio
império. Mas, principalmente, porque outras forças fora do
seu alcance adquiriram um significado político que o
destruiu: os povos bárbaros, que não eram propriamente
adeptos da via institucional, do “debate parlamentar”.

O expansionismo do império baseado na dominação de


vencedores sobre vencidos – o clássico “Vim, vi e venci” de
César – deixava um grande espaço ao desenvolvimento de
formas de participação fora do plano institucional do Estado.
Brechas que seriam cobertas, em Roma, pela difusão da
atividade religiosa cristã. Esta não tardaria em adquirir
também significado político como cimento entre os
interesses cotidianos e os objetivos públicos,
institucionalizando-se ao lado do Estado como Igreja.

Durante a Idade Média, a atividade política, se apresentaria


nesta duplicidade de “poder político” – exercido pela
nobreza – e de “poder civil” exercido pelo clero religioso.
Configurar-se-iam duas funções específicas: a da
dominação, pela força; e a da direção, pela persuasão ou
convencimento. Para atender a estes papeis, a atividade
política exigiria uma nova forma: uma nova concepção de
Estado, a um tempo dominador e dirigente. Para
corresponder a esta nova forma seria necessário um novo
agente, que Maquiavel denominaria de “príncipe”, o
governo do Estado.
Maquiavel e o Estado

A política adquire maioridade quando se passa distinguir


Estado de governo. Esta seria a lição de Maquiavel (1469-
1527). Com razão o maquiavelismo sempre é lembrado
quando se tornam claras as artimanhas realizadas por um
governo que quer se manter a todo custo com o controle do
Estado. Pode fazê-lo pondo tanques na rua, realizando obras
faraônicas, procurando tornar-se simpático, adiando
eleições ou emitindo “pacotes” de decretos ou leis. Do
mesmo jeito, O Príncipe é livro de cabeceira para todos os
setores que não são governo, mas querem sê-lo, e dos que
são e querem continuar sendo.

O governo é o agente da atividade política de um Estado.


Sendo um agente da política, esta impõe as condições e as
exigências. Para ser governo, é preciso se subordinar à
lógica própria da atividade do Estado, em todos os seus
detalhes. Esta é autônoma em relação ao seu agente, que
precisa conhecê-la em detalhes, porque depende dela.
Através do seu agente, a atividade política do Estado
realiza-se concretamente, pelo exercício do poder do
governo. O acesso à atividade política, portanto, depende
da capacidade de se tornar agente. O nobre se torna nobre
na medida em que se torna agente de uma atividade nobre:
a política. O livro de Maquiavel é um conjunto de lições para
que se conquiste ou mantenha um principado.
Independente de se adquirir o principado por roubo, por
herança ou por mérito, a sua posse faz do seu agente um
príncipe. Não é o nobre que faz política, mas a política que
faz o nobre assim como a religião faz o monge, a guerra faz
o militar e o trabalho define o trabalhador.

Sangue se herda, virtude se adquire; e o que caracteriza o


príncipe é a virtude. Neste sentido as considerações de
Maquiavel fazem da política algo acessível a todos. A
política passa a ser a “arte do possível”. Abre-se a
perspectiva de ser governo a setores cuja atividade não tem
significado político, mas pode vir a tê-lo conforme a
eficiência que demonstrarem. Na verdade, a teoria política
de Maquiavel corresponde aos anseios de adquirir influência
por parte da burguesia mercantil, desprovida de significado
numa estrutura monárquica. Adquirida esta influência no
poder do Estado, pela ocupação do governo, seria possível
usar esta instituição para representar os interesses da
burguesia, submetendo-lhe toda a política da sociedade em
seu conjunto. Locke, o principal teórico da revolução
burguesa na Inglaterra, em que interesses burgueses
assumiram o governo sem destruir a forma do Estado
monárquico, afirma: “O que nos oferece o governo civil?
Fornece leis, fornece juízes, e nos fornece uma política”. Em
outras palavras, fornece instrumentos de poder que
permitem que “nossos” interesses se transformem numa
orientação política para a sociedade.

No entanto, mesmo servindo como uma luva


especificamente aos interesses da burguesia, as propostas
de Maquiavel pretendiam ter validade geral. Cervantes, em
seu Dom Quixote, procura levar ao extremo esta intenção,
quando mostra como até mesmo o desconjuntado escudeiro
Sancho Pança poderia desempenhar o papel de governador
de uma ilha. Bastaria que cumprisse alguns “conselhos”:
não arrotar e ensinar bons modos à mulher... O agente
político seria despersonalizado, e levaria adiante o processo
da atividade política independentemente, submetendo às
suas regras o destino pessoal de quem ocupasse o seu
cargo. O caso Wartergate, que resultou na queda do
governo Nixon, constitui um exemplo típico. Nixon seria o
Macbeth moderno, o herói trágico de Shakespeare que
assumiu o trono manchado pelo sangue do assassinato do
rei, para entrar numa escalada de terror de que não mais
conseguiria sair e que lhe custaria a própria vida.

O príncipe de Maquiavel não é nem bom, nem mau, ele é


virtuoso quando executa com eficiência seu papel político,
quando desempenha eficazmente o poder do Estado, seja
pela corrupção da riqueza ou do favor, seja pelo crime ou
pela coerção militar, seja por ser amado pelos súditos. A
virtude do príncipe estaria na força e na astúcia com que
governa, e não na justiça em relação aos governados.
Napoleão, referindo-se à conduta de um governante que
gerara impopularidade para o Estado que dirigia,
exclamaria: “isto é mais do que injusto; isto é um erro”.
Seus critérios são científicos, por isto sua ação dependeria
de um estudo minucioso da natureza da atividade política e
de seus instrumentos na instituição do Estado tal como se
apresentavam na época. Seria neste sentido que
Montesquieu elaboraria uma análise empírica dos famosos
três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário,
tornando seu funcionamento acessível à burguesia.

As condições de se ser virtuoso seriam a base que torna


possível ao príncipe assumir um significado político, ser uma
alternativa viável de governo. “Um príncipe sábio, amando
os homens como eles querem, e sendo por eles temido
como ele quer, deve basear-se sobre o que é seu e não
sobre o que é dos outros”. A burguesia dependia de sua
própria astúcia e força, e não podia contar com a fraqueza
dos outros setores. Analogamente, o proletariado precisaria
repousar na sua própria capacidade de organização e
mobilização, para se tornar um agente político. Mesmo
antes de se tornar governo, ele procuraria reunir sua força
em estruturas partidárias. Neste sentido, para Gramsci, o
príncipe moderno é o partido político cuja meta é ser
governo, assumir o poder do Estado. Qual seria esta base
em que se poderia manifestar a “virtude” necessária para
se tornar um agente político, um “príncipe”?

Seriam as classes sociais, como revelaria Marx.


Marx e as classes

Há uma unanimidade em afirmar que o Brasil é um país


capitalista; no entanto, quem está diretamente no governo
não são capitalistas ou burgueses, mas “políticos” e
burocratas e, até pouco tempo, militares. Como é isso? Qual
é a questão maior; que o país é capitalista ou que é
governado por militares? Ou ambas?

Marx (1818-1883) foi o primeiro a estudar este problema em


profundidade e resolver em definitivo seus aspectos
básicos: as relações entre política e classes. Com Maquiavel,
a questão do governo é deslocada para o Estado; com Marx,
a questão do Estado seria transferida para as classes.

O governo é de um Estado, portanto precisa se submeter à


lógica das atividades políticas exercidas nos moldes deste
Estado. A questão básica para Maquiavel seria a das
condições de ser governo, o que o levaria a estudar o
Estado. Para Marx, e esta seria sua grande novidade, o
Estado representa uma classe, e precisa submeter-se ao
comportamento e aos interesses manifestados nesta classe.
Nesse sentido, a preocupação fundamental estaria em
estudar as classes e as contradições entre elas.

O que isto tem a ver com a atividade política? O espaço


onde ela é realizada deixa de ser exclusivamente relativo ao
Estado, para ser ela também praticada no plano das
classes: na luta de classes.

A existência das classes “sociais” e das relações de luta


entre elas não foi descoberta de Marx. Sua inovação foi
atribuir a estas classes “sociais” um significado político sem
transformá-las em “classes “políticas”, de suporte à
atividade política nos moldes do Estado; ao contrário,
levando a atividade política ao plano social, à sociedade.
Para Marx, a “política” é a atividade que resulta da luta
entre as classes “sociais”. Diz ele: “Que é a sociedade,
qualquer que seja a sua forma? O produto da ação recíproca
dos homens. Podem estes escolher livremente esta ou
aquela forma social? Nada disso. A determinadas fases de
desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo
correspondem determinadas formas de organização social,
uma determinada organização de família, das camadas
sociais ou das classes; em síntese: uma determinada
sociedade civil. A uma determinada sociedade civil
corresponde um determinado tipo de Estado político, que
não é mais do que a expressão oficial daquela”.

Se o Estado político, cujo agente é o governo, constitui uma


expressão da sociedade, das relações entre suas “classes
sociais”, então a questão básica de Maquiavel, “como os
governados podem tornar-se governantes”, passaria a ter
uma outra forma: “como as classes dominadas podem
tornar-se classes dominantes”?

A necessidade de estudar as relações entre governantes e


governados daria lugar, como cerne da própria atividade
política, à análise das relações entre classes dominantes e
classes dominadas, entre exploradores e explorados. O
estudo do funcionamento destas relações ocuparia a maior
parte da obra de Marx, desde O Manifesto Comunista até O
Capital. Seu resultado é que estas relações seriam
determinadas, na sociedade capitalista que examina, pela
propriedade ou não dos meios de produção material. O dono
da fábrica pertence a uma classe; aquele que precisa
trabalhar nela pertence a outra. O proprietário da fazenda é
de uma classe; o camponês, de outra. A atividade política
em Maquiavel precisaria levar em conta a lógica, as regras
próprias das relações entre governantes e governados. Da
mesma maneira, a atividade política em Marx precisaria
levar em conta as relações entre as classes, a lógica do
capital e da força de trabalho.

Levar em conta que o país é capitalista abre à atividade


política um espaço além daquele em que sua atuação
estaria restrita às relações governantesgovernados: o das
relações de classe social. Um espaço mais presente no
cotidiano da esfera do trabalho, em que este significado de
classe da política é exercido permanentemente, nos
sindicatos, nas associações classistas. Estas seriam as
primeiras formas de uma “política de base social”.

Por outro lado, como os interesses capitalistas são


garantidos pela própria estrutura do Estado de classes, o
governo, como agente deste Estado, não precisaria ser
necessariamente ocupado por capitalistas. Isto quer dizer
que há várias formas de governo possíveis para um Estado
capitalista. Estas podem oscilar entre as ditaduras militares,
o autoritarismo fascista e democracias mais liberais. Isto
abre um novo espaço à atividade política, enquanto ela teria
por meta imediata as formas de governo, e não a estrutura
de classes. É a questão fundamental da representação
política.

Lutar contra uma ditadura não significa lutar contra o


capitalismo; porém o combate ao capitalismo é
consequência de uma posição quanto às formas autoritárias
de governo.

A atividade política precisa ser adequada à lógica da luta de


classes, que aponta para o socialismo como solução para os
problemas do capitalismo (miséria, desemprego, recessão
etc.). Além desta, resta uma grande questão: realizar este
socialismo com uma forma democrática de governo. O
marxismo revela que o socialismo é necessário, pois
corresponde à lógica das relações de classe. E transfere o
problema político à vinculação entre questões sociais –
miséria – e formas de exercício do poder – violência,
representatividade, democracia.

O problema apontado por Marx conduziria a um novo


espaço para a atividade política. Se a opção de classe –
Estado capitalista ou socialista – é necessária, e se impõe
na sociedade pelas relações do mundo do trabalho, o campo
aberto à política seria o da vinculação destas posições de
classe com formas de governo. Como relacionar capitalismo
ou socialismo com autoritarismo ou democracia? A opção de
classe é autônoma, independe da vontade. Ninguém é
assalariado porque quer. O que isto implica quanto às
posições políticas? O que resta à atividade política, se ela é
determinada numa estrutura de classes? O socialismo é
necessário porque a democracia é o objetivo. Como fazer
com que um agente de classe como um partido político –
seja voltado à democracia? Ou será que ele não pode ser
democrático enquanto for um agente do socialismo que
existe num Estado capitalista? Que reflexos isto traz para a
própria concepção de agente político – seja ou não
partidário – limitado pela imposição da atividade
institucional de um Estado capitalista? Primeiro o
socialismo, depois a democracia? Ou vice-versa? Ou ambos
simultaneamente? Este é o problema básico, aqui e agora.
Atividade política, estado e cotidiano

O que significa a política na atualidade brasileira? Que papel


ela ocupa na vida das pessoas aqui e agora? Seria uma
atividade confinada ao mundo dos iniciados, os “políticos”,
reservada a situações especiais? Ou diz respeito à vida
prosaica dos homens “comuns”, no seu cotidiano?

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Primeiro porque há


muito se faz política, e alguns ensinamentos permanentes e
definitivos é possível tirar desta história, que precisam ser
levados em conta. O governo, a presença do Estado, as
eleições, os partidos estão aí, exigindo um mínimo de
posicionamento de cada um. Em segundo lugar, porém, o
mundo que cerca a política apresenta-se como uma
constante “caixa de surpresas”, não só aos menos
acostumados e mais distantes, mas inclusive para os que
dele se ocupam de modo “profissional”, frequentemente
pegos de calça curta. As revoluções, os golpes, as surpresas
eleitorais povoam os noticiários dos meios de comunicação.
Tudo leva a crer, inclusive, que esta imprevisibilidade torna
a política interessante, porque ela significa mudança,
transformação. Em suma: ação prática.

014                 

E a política é sobretudo uma atividade transformadora do


real, da história. Transformação que se apresenta, a um
tempo, como resultado científico, previsível e calculável, e
como fruto da imaginação criadora e ousada. Ciência e arte.
O golpe do movimento militar de 1964, o AI-5 em 1968, a
guerrilha, a vitória eleitoral das oposições em 1974, a
“Campanha das Diretas” em 1984, a revolução na
Nicarágua e a “guerra das Malvinas” são fatos que
adquiriram destaque justamente por serem “esperados” de
um lado, e por outro por provocarem espanto, por serem
“inesperados”. Sem dúvida, a história “aconteceu desta
forma”, embora exista a convicção de que poderia ter sido
“de outro modo”.

Existem, portanto, várias orientações possíveis para a


política, conforme atenda a esta ou àquela expectativa. No
entanto só uma delas se realiza na prática, como orientação
dominante. Como e por que isto acontece?

Por que, por exemplo, o governo opta por combater a


inflação reduzindo salários e provocando desemprego? Por
que investe em energia nuclear, e não em saúde ou
educação? Por que se prega tanto a unidade contra o
governo, e as oposições agrupam-se em vários partidos? Por
que tra- balhadores do mesmo local e da mesma categoria
filiamse a partidos diferentes? Por que há quem julgue a
política importante, mas não adota partido algum, como a
Igreja e muitos movimentos de base?

“Os homens fazem sua própria história”, diz Engels, “mas


não segundo condições que eles mesmos escolhem”.
Dependem de certas “condições objetivas” trazidas pelo
desenvolvimento histórico anterior para servirem de base à
sua atividade. Apenas quando atendidas estas condições, os
homens poderiam constituir agentes políticos para interferir
na história.

Os problemas, portanto, parecem ser dois: 1) a atividade


que se desenvolve quando existem condições para tanto; 2)
a atividade voltada à constituição destas condições. Ambas
são atividades dotadas de significado político. A política
resultante da atuação do Estado só existe porque tem
condições para tanto. Não que ele seja o único que possua
condições; só que no seu caso está provado que as tem.
Desta forma, o Estado pode revelar o objetivo da atividade
política e das suas instituições, que será o ponto de partida
desta análise.

Por simbolizar esta posição privilegiada, de quem já


comprovou as suas possibilidades, o Estado e seu agente, o
governo, são o objeto principal da disputa de todas as
orientações políticas, de todos os partidos, incluindo as
oposições e a situação, que tem como papel principal
manter-se onde está: no poder.

Para ocupar o Estado, porém, não é necessária a vida


partidária. Vide Brasil em 1964, Chile em 1973, Portugal em
1974, Irã em 1979... Mais importante do que as instituições
pelas quais se realiza a política – forças armadas, partidos,
organizações religiosas, sindicais etc. – e a atividade que se
realiza através delas para ocupar a direção do Estado. A
atividade política institucional do Estado é um conjunto de
respostas a necessidades da vida social desenvolvidas pelos
homens em sua história, como a organização da vida
coletiva e o atendimento de objetivos comuns. Esta
proeminência dos negócios públicos sobre os individuais é a
causa básica para o desenvolvimento de uma estrutura de
poder – a superestrutura do Estado que ordena a disciplina
a base social a que corresponde. A questão vital para esta
superestrutura está na sua relação com a sociedade. Para
Gramsci esta relação constitui “o primeiro momento” da
superestrutura, a questão central da política institucional.
Tão essencial que aparece reproduzida pela própria
atividade institucional, como relações entre governantes e
governados, representantes e representados, dominadores
e dominados, juízes e julgados, administradores e
contribuintes, deputados e eleitores, dirigentes e dirigidos,
“autoridades” e “população em geral”.
Não só os atos do governo, dos tribunais, do parlamento
possuem significado político, mas este se estende à relação
que estabelecem com a sociedade de governados. Das
peculiaridades desta relação se nutrem os meios da
atividade política, que ela põe em cena como vinculação
com sua base, e que precisam ser levados em conta para se
ocupar o governo. Este deverá ser o segundo ponto
enfocado.

Estes meios permitem a uma orientação política ser


dominante. Nas palavras de Maquiavel, possibilitam
“conquistar e manter principados”. Eles são a chave para se
tornar agente político. Para apreendêlos, nada melhor do
que observar o comportamento do Estado, um agente
comprovado.

Como ele se relaciona com a sociedade? Pelas armas ou


pelos votos. No primeiro caso, é um agente da dominação,
da coerção, da imposição; no segundo, um agente da
persuasão, do consenso. A dominação pela força e a direção
pelo convencimento são os meios da política. Eles são
chamados, respectivamente, de “coerção” e de
“hegemonia”.

Quando a política reprime uma passeata, ou usa a censura,


utiliza coerção. Um governo que faz propaganda de seus
atos, para ganhar eleições, está procurando uma
hegemonia, uma força de direção baseada no consenso, no
convencimento. Quando setores oposicionais procuram
galgar o governo pelas eleições, procuram apresentar-se
como alternativa hegemônica; se pegam em armas, optam
pela força da coerção. As invasões do Vietnã pelos EUA, ou
do Afeganistão pela URSS, foram atos de coerção. O
governo de Mitterrand na França e o de Reagan nos EUA
foram frutos da sua hegemonia. Nem sempre estes meios
apa- recem puros, embora um deles acabe sempre sendo
mais significativo. O movimento de 1964, no Brasil, apesar
de gozar de certo apoio social, foi predominantemente
coercitivo; as eleições de 1986, apesar das tentativas
coercitivas do governo – legislação partidária e de
propaganda eleitoral – deram-se sob a tônica da procura da
hegemonia pelo voto. Estes meios são tão característicos
que lhes cabe um espaço próprio no interior da própria
superestrutura de poder, conforme têm uma ou outra
função. Através de cada um destes momentos da atividade
política – coerção ou hegemonia – cria-se uma relação
específica com a sociedade. No primeiro caso, como
sociedade política; no segundo, como sociedade civil. Desta
forma, a própria sociedade adquire um duplo caráter,
conforme sua vinculação com a superestrutura. Na
sociedade política estão a administração pública, o
Judiciário e o conjunto de suas leis, a censura, a política e as
forças armadas, bem como sua presença no cotidiano etc.
Na sociedade civil estão os partidos, as instituições de
propaganda, como a Voz do Brasil, mas também as escolas,
as empresas, os sindicatos – patronais ou não –, as
associações, os movimentos sociais e populares, a Igreja
etc.

Percebe-se um nítido predomínio de atuação do governo na


sociedade política, e uma presença das oposições quase
exclusivamente na sociedade civil. Exatamente por isto a
expressão “sociedade civil” tem sido tão usada para
designar orientações políticas da sociedade divergente do
governo.

A história mostra como frequentemente governados e


governantes invertem seus papéis; dominados e dirigidos
passam a dominadores e dirigentes.

E como tal comprovam seu significado político institucional.


Como isto acontece? Para adquirir significado político
institucional, é preciso antes ter significado político. Não só
o governo ou os deputados são políticos, e suas relações
com os que governam e representam são políticas, mas
também os governados, os representados e suas atividades
possuem significado político. Como se manifesta este
significado político. Como se manifesta este significado e de
que meios ele se utiliza para poder assumir a forma das
relações utilizadas na disputa pelo poder institucional,
coerção e hegemonia? Que meios específicos se usa na
sociedade de governados, de dominados e dirigidos, para
vir a ser uma possibilidade de governo? Esta questão será
abordada em terceiro lugar.

Os agentes políticos constituem a sociedade por meio de


sua organização e mobilização em torno de interesses
sociais, que desta forma passam a se desenvolver com
objetivos políticos, voltados que estão para relações
políticas de coerção e hegemonia, para transformar em
direito as reivindicações.

Mas estes agentes representam interesses da sociedade, e


não respondem a demandas do Estado. Baseiam-se na sua
estrutura social para serem agentes, e não no que lhes
oferece a política institucional do Estado. São de certa forma
independentes do Estado, a não ser enquanto precisam
mostrar eficiência no desempenho das relações que o
próprio Estado mantém com a sociedade. Na disputa do
principado, precisam comportar-se também como príncipes.
E o príncipe sábio, nas palavras de Maquiavel, “é aquele
que se baseia sobre o que é seu e não sobre o que é dos
outros”. Os partidos que expressam claramente interesses
sociais, os sindicatos, as associações profissionais, os
movimentos sociais de base não tiram suas condições
objetivas de assumirem significado político na disputa pelo
governo – em que, no caso dos movimentos sociais,
sindicatos ou movimentos de base da Igreja, não estão
engajados. Repousam nas “condições subjetivas”,
cotidianas, de mobilização e organização de seus filiados ou
militantes. Desta forma levam, por seus interesses sociais,
um significado político aos agentes que constituem. Não é o
deputado que passa uma parte de seu significado para o
eleitor poder assumir uma atividade política; é o
representado, o dirigido, o governado que atribui ao
representante, ao dirigente, a função de representá-lo, de
dirigi-lo, de governá-lo. Não é o governo que dá significado
ao Congresso. É este que confere àquele o direito de tutelar
os interesses sociais que representa.

Os objetivos da política deixam o espaço confinado da


disputa institucional, para adquirirem embasamento social.
Não é o confronto com o Estado que está em primeiro plano,
mas a capacidade de representação de demandas sociais.
Por isto palavras de ordem, como “abaixo a ditadura” dão
lugar a manifestações contra a carestia e o arrocho salarial,
contra a legislação sindical e o desemprego, pelo
atendimento de serviços básicos como saúde, educação,
transporte, moradia etc.

Esta prática seria desenvolvida sobretudo nos movimentos


sociais, como atividade autônoma em relação a objetivos
institucionais de disputa pelo poder. Prática que assume um
significado político próprio, em pé de igualdade com o
significado oficial da política do Estado. De outra forma,
como explicar a importância de Dom Paulo, cardeal de São
Paulo, de Lula e dos sindicalistas, da CUT e da CGT, da OAB,
da ABI, da CNBB, da SBPC, da UNE, e mesmo da TFP? Sua
importância reside neles mesmos, e não porque se adaptam
a preceitos formulados à sua revelia, como referenciais para
a política enquanto prática oficializada em corredores
palacianos, oratórios parlamentares ou decisões de
tribunais. Eles serão o quarto e último tema.
O Estado e seus objetivos

Por que é possível escolher entre vários partidos ou


candidatos a cargos eletivos, e não é possível escolher entre
trabalhar ou não trabalhar para viver, a não ser para os
“ricos”?

Com esta questão atinge-se o cerne da política institucional


do Estado e de seus braços no governo – o Executivo, o
Judiciário, o parlamento, a polícia. Uma liberdade no
exercício da cidadania – o voto – e uma imposição no nível
da atividade produtiva – o trabalho.

A finalidade específica da política institucional, do prisma do


Estado, é a imposição de uma estrutura econômica à
sociedade. No caso atual, a imposição de uma estrutura
econômica baseada em classes sociais, as que são
obrigadas a viver da “venda” de sua força de trabalho e as
que podem “comprar” os produtos deste trabalho. O mundo
já produz alimentos para todos, mas quase metade da
população da Terra é desnutrida. Não são razões técnicas
que levam a isto. É a imposição política de uma estrutura
econômica baseada na perpetuação da miséria, para poder
explorar melhor o trabalho dos miseráveis pelos
capitalistas. Na mesma medida, o primeiro resultado
unanimemente reconhecido da política institucional dos
países socialistas sem polemizar sobre “que socialismo é
este” – é de socializar a riqueza em níveis condizentes com
as necessidades humanas básicas de comida, saúde,
escolaridade, educação etc.

Através da política institucional do Estado, os interesses de


uma classe são apresentados como objetivos políticos
gerais da sociedade. São vários estes objetivos, todos
apresentados como “interesses nacionais”: desde assegurar
a segurança externa contra outros Estados, passando pela
garantia da paz social interna, até a eficácia administrativa
e burocrática que permite o funcionamento conjunto dos
enormes complexos produtivos da sociedade
contemporânea.

O atual Estado brasileiro apresenta como sendo seus


“objetivos” a realização de reformas sociais – reforma
agrária, tributária, sindical, partidária, urbana etc. – para
atender principalmente aos contingentes populares e
assalariados da população. O governo pretenderia o “bem-
estar do povo”.

Ao mesmo tempo, porém, centenas de lavradores são


assassinados anualmente, as cidades se tornam inabitáveis
aos trabalhadores, greves são sufocadas, enquanto os
empresários paralisam a produção, a corrupção das fraudes
continua impune, a voracidade dos bancos não tem freio, os
torturadores não foram julgados. Esta é a verdadeira face
em que o Estado aparece, pela qual seu objetivo pode ficar
claro como imposição de interesses de exploração
econômica na sociedade. Porque a repressão não atinge
todos os cidadãos, mas usa certos critérios. Como à
primeira vista todos os cidadãos são politicamente iguais,
estes critérios não podem ser políticos. São sociais,
enquanto são “cidadãos” assalariados, ou são “cidadãos”
proprietários, enquanto pertencem a uma ou a outra classe.
O uso de critérios sociais só pode ser explicado se os
objetivos também são sociais, fora do Estado, na sociedade.
A relação governo-governado é apenas a aparência política
da relação social patrão-empregado em sua expressão de
classe na sociedade. A atividade política institucional se
volta, portanto, objetivamente, para uma relação com a
sociedade. Seria nesta relação que se manifestam os meios
utilizados pela própria atividade política do Estado. Para
este, eles assumem a forma de participação, representação
e direção dos “cidadãos” indistintamente. Na sociedade,
porém, apenas alguns destes “cidadãos” – conforme sua
situação de classe – são representados, participam e têm no
Estado quem dirija seus interesses como se fossem de
todos.

014                 
Os meios da política: força e consenso

“A arma é o voto do governo; o voto é a arma do cidadão.”


Nesta expressão de Millôr Fernandes encontram-se os
elementos da política quando vista do palco da atividade
institucional do Estado. No teatro das operações políticas,
porém, existe também a visão da plateia.

De um lado, o Estado forte, com a máquina administrativa,


a aplicação das leis, o poder de polícia. Do outro, a
sociedade com o direito de manifestar seu aplauso ou seu
repúdio pelo voto. O significado deste quadro transforma-se
quando visto do ângulo da sociedade. Para explorá-lo, Marx
colocou a situação de “ponta-cabeça”, invertendo o enfoque
que até então privilegiava o Estado, para mostrá-lo como
manifestação de sua base social. Manifestação essencial da
necessidade de organizar o conjunto da sociedade em torno
dos interesses de uma de suas classes.

Tudo se passaria como se as classes disputassem entre si o


direito de subirem ao palco, o Estado, transformando o resto
da sociedade em plateia que dança conforme os interesses
dos músicos. Muitas vezes, a plateia vaia, e a orquestra
precisaria impor energicamente a sua ordem. Outras vezes
esta conseguiria conquistar o público, seduzindo-o mesmo
quando isto não correspondesse exatamente ao gosto da
maioria. Aconteceria também de a orquestra ser expulsa
violentamente, como seria possível haver uma mudança no
público durante o espetáculo que o levasse a deixar de
atender aos acordes, exigindo outros, até que, por pressão
majoritária, se mudasse a música ou novos instrumentos
subissem ao palco.

A partir do Estado, a política institucional assumiria uma


forma “estática”, de posturas “eternas” cuja função é
garantir a permanência das próprias instituições – a
participação pelo voto, a representação no Congresso, a
direção do Executivo parecem “ter sido sempre assim”. Pela
perspectiva social, a complexidade do quadro apresentado
acima mostra a política realmente como “atividade”, um
movimento que constrói novas formas e adquire sentidos
diversos. Este dinamismo tem como arena principal a
disputa entre várias orientações pelo poder institucional –
pelo governo, a gestão do Estado –, para através dele
imprimir uma orientação conjunta à sociedade.

Maquiavel seria o primeiro a sistematizar esta disputa do


Estado, do “principado”, como ele diria. Para ele, as
“virtudes” que um príncipe – ou um partido, por exemplo –
precisaria manifestar para conquistar ou manter um
principado – para gerenciar o Estado, ser tutor da sociedade
através do governo – seriam a força e a astúcia. O estudo
destes meios específicos da atividade política e dos
instrumentos que eles põem em cena – instituições
partidárias, parlamentos, Executivo, Judiciário etc. –
resultaria no objeto particular de uma ciência política. Esta
procuraria mostrar como a atividade política se daria de
modo mais ou menos independente das condições sociais
que a movem, com regras próprias e uma lógica específica.

Esta autonomia efetivamente existe. Como explicar as


tiranias ou os governos impopulares? Como explicar a
vitória do pequenino Vietnã sobre os EUA, infinitamente
superiores em termos materiais? E o sucesso da revolução
soviética em 1917, com o pequeno partido bolchevique?
Como explicar a fantástica ascensão dos inicialmente pouco
numerosos nazistas na Alemanha, com uma sociedade tão
desenvolvida?

Ao mesmo tempo, nem sempre os dominantes representam


os interesses sociais predominantes, seja em termos de
maioria, seja em termos de força. Ocorrem fatos que à
primeira vista pareceriam impossíveis, como a vitória de
Davi sobre o gigante Golias. Isto não quer dizer que a
disputa política não seja uma competição de forças, mas
que o próprio conceito de força deve ser relativizado em
novas bases. Senão, como entender que um governo forte,
apoiado nas forças armadas, veja-se impelido a convocar
eleições que o intranquilizam, como no caso recente da
Argentina? E como explicar que uma tirania considerada tão
sólida como a do Xá do Irã ou do ditador Salazar fosse
derrubada?

A política envolve justamente este possível mas não


necessário, o plano de incertezas envolvido na passagem
dos interesses sociais aos objetivos políticos e seus agentes.
O interesse pela política nasce precisamente da não
existência de determinações materiais e sociais exclusivas,
do mesmo jeito que uma guerra não se decide só pelo
número de soldados e mísseis.

O uso puro e simples da força sempre existe. Mas é


contrabalançado por um outro elemento que também tem
força, e que joga um papel decisivo. Quando Clausewitz, o
grande teórico da arte militar, afirma que a guerra é a
continuação da política por outros meios, chama a atenção
simultaneamente a uma continuidade entre guerra e
política – o uso da força, a coerção – e uma diferença entre
ambas, em que à política cabem meios próprios e portanto
distintos da coerção.

Sobre a coerção não há muito o que dizer: sua apreensão é


imediata. O Estado e seu gerente, o governo, a utilizam à
exaustão: polícia, leis, decretos, censura, impostos,
obrigações. Ela constitui efetivamente o atributo
fundamental do poder, mediante o qual se mantém a
relação entre dominantes e dominados.
A própria coerção, no entanto, não é exercida somente no
amparo da força. Basta pensar na autoridade de um
professor que coage os alunos a prestarem exames. De
onde tira seu poder? Em outras palavras, de onde o Estado
tira a sua autoridade?

Para o sociólogo alemão Max Weber esta questão, que ele


apresenta como legitimidade do poder, tem três respostas:
1) a eficácia, ou legitimidade racional; 2) a tradição; 3) o
carisma.

A eficácia pode ser a eficiência administrativa na condução


dos negócios públicos, do bem comum da população: a luta
contra a inflação, a abertura de estradas e de “projetos-
impacto”, a descoberta de petróleo, o domínio sobre a
tecnologia nuclear, a oferta de empregos e de serviços
públicos etc. A tradição legitimaria um poder pela sua
continuidade, assentada em hábitos já valorizados na
história. Pelo carisma associar-se-ia a presença pessoal dos
governantes à legitimidade de sua autoridade como
intérprete de anseios da sociedade; presença em grande
parte dependente do uso dos meios de comunicação.

Por estas três formas de legitimidade, a autoridade do poder


adquiriria um caráter de representatividade social, que
tornaria fluidas as relações entre comando e obediência. A
ordem seria transformada em disciplina, a imposição em
convencimento, o legal em legítimo, a coerção em
consenso. Gramsci, sentado na plateia, tem uma ótica
diversa do mesmo problema. Para ele não se trataria de
procurar uma legitimidade para o poder, mas de procurar
um poder para a legitimidade. Passar do convencimento e
da persuasão à imposição do seu resultado consensual,
fazer da disciplina uma ordem. Para ele o Estado não seria
um aparelho coercitivo à procura do consenso; mas, ao
contrário, uma manifestação consensual escorada na força
de se impor, de se tornar dominante. Em suas palavras, “a
realização de uma hegemonia apoiada na coerção”. Ele não
pensa o poder como ponto de partida para refletir sobre a
sua legitimidade ou representatividade, mas como ponto de
chegada. Passaria a enfocar o Estado e a sua gestão pelo
governo como objeto da atividade política, e não seu sujeito
ou seu agente.

Neste sentido, já haveria um significado político numa


atividade ainda distante do poder institucional do Estado e
do governo, como representação de interesses assentados
na sociedade. Esta seria a atividade política própria à
“sociedade civil”, onde se procuraria um consenso quanto à
direção da sociedade; direção que, levada à “sociedade
política” se tornaria por seu intermédio uma imposição, uma
direção dominante. Na sociedade se discutiria, por exemplo,
como reorientar a economia do país para acabar com o
desemprego, a alta do custo de vida ou a baixa qualidade
dos serviços públicos. Adquirida uma posição majoritária
sobre isto, um consenso, este seria levado a ser governo, a
gerenciar o Estado, tornando-se uma imposição

para todos. Isto aconteceu com a eleição do presidente


Mitterand, em 1981: a posição que defendia tornar-se-ia
majoritária na sociedade, consenso que, transformado em
voto, o conduziria ao governo.

Para exercer esta atividade política, a sociedade civil tem


suas próprias instituições, onde procura desenvolver
direções políticas para serem levadas ao Estado, a
“instituição das instituições”. Os partidos políticos seriam a
principal destas instituições, em que já se praticam todos os
elementos da atividade política – inclusive as decisões por
votação. Com exceção de uma: a coerção, “monopólio do
Estado”, como queria Max Weber. O Estado é o único agente
cuja violência é legal, amparada em lei. Não seria por outro
motivo que existem armas privativas da polícia e das forças
armadas.

Mas, além dos partidos, existiriam outras instituições na


sociedade civil – uma das mais importantes seria a Igreja,
ao lado dos sindicatos, das associações, organismos
comunitários, movimentos sociais em geral. Elas se
diferenciariam dos partidos por não terem como objetivo a
gerência do Estado, a ocupação do governo. Sua atividade
política estaria concentrada no exercício de um poder de
direção consensual. É preciso ressaltar que “sociedade civil”
não significa oposição: os sindicatos patronais, as
federações da indústria, do comércio, da agricultura, dos
bancos, o Rotary, são instituições que não divergem da
orientação de classe do governo, necessariamente.

Para a atividade política colocam-se duas tarefas:

1. obter um consenso da sociedade civil, pela organização


e mobilização em torno de direções a serem adotadas
pela sociedade; 2) transformar o resultado deste
consenso em poder de direção hegemônica na
“sociedade política”, através da qual se transformará
em direção dominante, amparada nos seus
instrumentos de coerção legal. Uma revolução nada
mais é do que a imposição de uma direção da
“sociedade civil” de modo violento à “sociedade
política”, pelos argumentos da força das armas. Já um
processo eleitoral pressupõe o entendimento da
“sociedade política” como prolongamento da
“sociedade civil” e a aceitação das suas formas de
prática do consenso e da passagem da legitimidade à
legalidade.

Em ambas as situações, resta uma grande questão: como


adquirir um significado político na “sociedade civil”? Que
condições exigem as possibilidades de se usar

os meios da força ou do consenso para influenciar o Estado


e impor uma direção à sociedade como um todo?
As condições da política: organização e mobilização

Até 1964, no Brasil, para se ocupar os postos do governo


era necessário participar da disputa eleitoral. Em 1964 um
golpe instalaria os militares no poder sem que eles
participassem de uma luta partidária. De 1976 para cá,
movimentos sociais, sindicatos, CUT, CGT, DAB, ABI, SBPC,
UNE, Igreja, CNBB, comunidades de base participariam de
modo crescente da vida política. Influenciariam os próprios
partidos constituídos a partir de 1979, disputando em pé de
igualdade com eles como expressões da “sociedade civil”
dotadas de significado político, no movimento pelas
“diretas” e pela convocação de uma Constituinte livre e
soberana. Como estas manifestações sociais adquiriam
significado político?

Entre todas, esta é a questão mais controversa. Aqui a


teoria vale pouco; pode, quando muito, sistematizar
experiências e apontar algumas diretrizes básicas.

Afirmar, por exemplo, que a sociedade é estruturada em


classes e que isto precisa ser levado em conta como
“condição objetiva” é certo, porém vale muito pouco. E
quando estas classes se expressam na realidade palpável
num mundo de ricos e pobres, de empresários e
assalariados, de militares e padres, de estudantes e donas-
de-casa, de homens e mulheres? Reduzir tudo isto às
relações entre capitalistas e proletários?

A aquisição de significado político pode ser observada


diariamente. Quando um movimento salarial de
trabalhadores consegue transformar suas reivindicações, ou
parte delas, em aumentos efetivos, em um direito
institucional regulamentado legalmente, revela um
significado político. Transformou seu interesse social num
objetivo político, pois interferiu nas atribuições do Estado –
a lei salarial. Quando o governo usa um pelego para refrear
estas mesmas reivindicações, esta é uma atividade de
significado político, embora não seja efetuada diretamente
pelas mãos do Estado. Com ela se evita que reivindicações
salariais se tornem conquistas políticas. As mulheres que
lutam contra a sua discriminação no trabalho, no voto ou
em qualquer outra atividade social ou individual conferem
significado político à sua atuação, pois lutam por direitos a
serem institucionalizados pelo Estado. Da mesma forma
acontece com o padre ou o leigo que se engaja na luta
“pelos pobres”; com o movimento social que luta por
saneamento; o estudante que reivindica verbas, o popular
que combate aumentos de preço, o professor que quer
eleger o reitor de sua universidade etc.

O que todos estes exemplos têm em comum é que a grande


diferença entre interesses sociais e objetivos políticos reside
em que os primeiros são singulares, específicos, enquanto
os últimos assumem validade geral. Os aumentos valerão
para todos, mesmo para os que não pediram; os direitos das
mulheres não se aplicarão apenas às feministas etc. O
momento decisivo na aquisição de significado polí- tico por
um movimento social residiria na capacidade de dirigir
coletivamente os interesses sociais específicos como
objetivos políticos amplos. Um significado político exige da
sociedade civil a sua função dirigente. Desta forma,
diferentemente da atividade no âmbito da sociedade
política, do Estado, que divide a sociedade entre
dominantes e dominados, a atividade política da sociedade
civil produz dirigentes e dirigidos.

Todas as instituições da sociedade civil reproduzem, sem


exceção, esta relação: sindicatos, partidos, associações,
organizações comunitárias. Ao contrário da relação
dominante-dominado, baseada na coerção sob a tutela do
Estado, a relação dirigente-dirigido fundamenta-se no
consenso, na persuasão, no convencimento público para
adquirir força.

A aquisição de influência política, portanto, transfere-se a


esta outra: como se tornar força dirigente?

Isto explicaria, por exemplo, por que o governo precisa de


eleições: para poder, através da representação consensual
do sufrágio, aparecer como dirigente da sociedade que
tutela. Nesse sentido, o Estado, a instituição das
instituições, comporta-se como qualquer instituição da
sociedade civil. Precisa usar os mesmos meios destas como
condição para adquirir significado político em sua atividade.
Meios que, vistos do ângulo das instituições civis,
apresentam-se como organização e mobilização social.
Estes constituem os elementos básicos da atividade das
instituições no âmbito da sociedade civil, assim como
coerção e hegemonia, imposição e persuasão, são os
elementos da atividade política da instituição estatal em
relação à sociedade.

Em cima deste paralelo com a atuação das instituições


públicas do Estado, estabelecem-se também divergências
na concepção das condições básicas da atividade política na
sociedade civil. Conforme esta é vista a partir do plano
institucional, ocupado pelos dirigentes, ela aparece como
constituída principalmente de organização, como estru- tura
cuja atuação depende prioritariamente de uma certa ordem
e disciplina. Enxergada da plateia de dirigidos, a atividade
política da “sociedade civil” aparece basicamente como
mobilização, que permite transformar interesses sociais em
objetivos politicamente alcançáveis. Estas duas
perspectivas dividem as concepções da prioridade na atu-
ação da “sociedade civil”. Por exemplo: a ideia do partido
restrito, mas muito organizado; que conduz atrás de si a
mobilização, nos moldes leninistas, é frequentemente
oposta à ideia do partido de mobilização ampla, que puxa
consigo sua própria organização.

Esta é uma discussão aberta, que depende mais de


situações conjunturais do que de bases teóricas. Mas a
experiência histórica mostra que o privilégio da organização
tem conduzido com maior frequência à preponderância da
coerção sobre o consenso no embate político pelo poder
público. Exemplos são os golpes militares, de uma
instituição – as forças armadas – que prima pela
organização, que primeiro ocupa o poder para depois
legitimá-lo, criando partidos como o PDS. Por outro lado, as
mobilizações em torno de objetivos eleitorais têm a
necessidade de se sustentarem organizativamente, pelas
próprias exi- gências da ocupação do Estado, uma
instituição cuja eficácia requer alto grau de organização e
ordem.

Certo é que organização e mobilização constituem ambas


elementos essenciais, como o são a força e o consenso. Do
mesmo modo que o poder do Estado seria resultante de um
consenso legítimo amparado na força da legalidade, o poder
político dirigente das instituições da sociedade civil
consistiria uma mobilização amparada em organização.
As bases da política: movimentos sociais e cotidiano

Como entender uma atividade política cuja meta explícita


não é a disputa pelo poder institucional do governo? Que
papel ocupa a política nos sindicatos, nas comunidades de
base, nos organismo feministas, nas associações
profissionais ou de bairros?

S 014                 

Seu objetivo não é a ocupação do Estado. Apesar disto,


porém, a atividade que desenvolvem adquire um significado
político peculiar, comumente de política de base, por ser
executada a partir de movimentos de base da sociedade.

Sem dúvida trata-se do plano em que a criatividade


manifesta-se com maior riqueza. Nos movimentos sociais, a
políticas revela seu maior potencial dinâmico, pelo
constante desenvolvimento de novas formas derivadas de
situações cotidianas e da necessidade de sua
transformação. É neste espaço que todos são políticos
fazendo jus àquela característica fundamental dos homens
que os leva “a pôr o dedo entre os raios da roda da
história”, como queria Max Weber em A Política como
Vocação.

A atividade desenvolvida nos movimentos sociais, pela


presença que neles ocupam as questões cotidianas,
encarrega-se de conferir um novo sentido a uma política
progressivamente desmoralizada pela atuação das
instituições públicas e da disputa governamental. Isto não é
de estranhar, porque, fora dos momentos eleitorais, a
atividade institucional do Estado não oferece espaço à
participação das pessoas nas decisões políticas, e aparece
apenas como restrição ou imposição de normas legais.
Mesmo enquanto sistema representativo, a política
governamental comporta-se como tutor paternalista dos
interesses públicos. Depois de escolhidos, os representantes
tornam-se autônomos, e conduzem os negócios do país – no
caso do governo – ou de setores dele – no caso dos partidos
– à revelia da interferência dos cidadãos ou dos filiados e
militantes. Estes perdem até mesmo a possibilidade de
voltar atrás nas suas escolhas, quando estas não
correspondem mais aos seus interesses, e precisam esperar
até que se esgotem os prazos da tutela – os mandatos – que
os governantes têm em relação aos governados, os
dirigentes em relação aos dirigidos.

“De que adianta votar? Vai tudo continuar na mesma.” Esta


seria a questão fundamental a que se procuraria responder.
Sem dúvida, o descrédito e o desalento contidos na sua
formulação são os principais responsáveis pelo crescimento
significativo dos movimentos sociais nos últimos tempos.
Enquanto na política institucional fala-se pelo e para o povo,
nos movimentos sociais é o povo quem fala e está presente
cotidianamente.

O “povo” – os dominados e dirigidos, que podem vir a ser


dominantes e dirigentes – fala por si. A história está
recheada pela sua ilimitada capacidade de responder de
modo inventivo e inovador aos problemas das próprias
relações de dominação e direção políticas que estabelece.
Mas discorrer sobre a prática dos movimentos sociais
enfrenta o grave risco de normativizá-los, padronizá-los,
tolhendo-os precisamente no que têm de mais frutífero; sua
qualidade maior é o dinamismo que rompe com as
estruturas pré-fabricadas de participação, representação e
direção.

Não é possível dizer como é a atividade política nos


movimentos sociais em geral. Pode-se descrevê-la em
determinadas situações específicas em que este “como”
está sendo continuamente elaborado. Quem diria, alguns
anos atrás, que os sindicatos, os estudantes, as mulheres,
os bairros, os camponeses, as comunidades eclesiais de
base, as organizações civis e de profissionais adquiririam a
forma atual?

Esta mobilidade extrema não implica, porém, ausência de


direção e objetivos nítidos. Estes se tornam mais claros
quando contrapostos à política em sua concepção
institucional. Quanto mais insatisfatória esta se torna,
quanto mais suas decisões se distanciam do cotidiano, tanto
mais crescem os movimentos sociais como último espaço
em que os homens, vivendo em sociedade, desenvolvem
seus interesses.

Existe um sentido da atividade política que se perde quando


esta se dá exclusivamente nos moldes institucionais. Que
sentido é esse?

A atividade institucional promove uma divisão na sociedade


entre governantes e governados, dominantes e dominados,
dirigentes e dirigidos. Para abrandar esta separação, as
instituições desenvolvem a função da “cidadania” cuja
participação na direção dos negócios públicos resume-se à
escolha de uma representação política pelo exercício do
voto.

As eleições não só são limitadas por se realizarem de


tempos em tempos – entre nós cada vez mais distanciados –
em cujo intervalo a participação é extremamente afetada.
São limitadoras porque restringem o objeto da escolha.
Vota-se num cargo eletivo – governador, deputado, e às
vezes até presidente da República. Não se vota, por
exemplo, o que fazer com a economia do país, que política
salarial adotar, ou se deve ou não haver produção de
energia nuclear, o que fazer com a educação etc. Isto passa
a ser responsabilidade exclusiva dos tutores eleitos; é certo
que estes muitas vezes são eleitos com base em programas
de governo ou de atuação. Mas mesmo que não os
cumpram, não há legalmente nada a fazer, a não ser
esperar uma nova oportunidade de participação eleitoral.
Enquanto isto não acontece, os tutores estão de posse
exclusiva dos instrumentos de dominação e direção políticas
que a lei faculta para, em nome do país, decidirem
conforme sua própria vontade.

“O sufrágio universal”, diz Sartre, “é uma instituição que


atomiza os homens concretos e se dirige a entidades
abstratas, os ‘cidadãos’... O Estado cria cidadãos, dando-
lhes o direito de votar uma vez a cada quatro anos sob a
condição de que respondam a condições muito gerais. Por
exemplo, serem brasileiros e terem mais de dezoito anos.
Deste ponto de vista todos são iguais, sejam eles
empresários ou assalariados, gaúchos ou nordestinos. “Eles
são perfeitamente idênticos, como o são os soldados nas
Forças Armadas: ninguém se interessa pelos seus
problemas concretos, que nascem nas suas famílias, ou nas
relações sociais ou profissionais.” Não existe qualquer
referência ao cotidiano real das pessoas e de sua vida.

Na atividade política de base, como nos movimentos


sociais, não se dispensa a utilização do voto. No entanto, o
sentido que se atribui a este instrumento de participação e
representação é completamente diverso. Isto pode ser
observado nitidamente num instrumento utilizado pela
totalidade dos movimentos sociais, sem exceção: as
assembleias ou seus congêneres. Nestas a tônica é a
consulta não só para a escolha de dirigentes – muitas vezes
também eleitos em urna –, mas para a delimitação das
funções destes dirigentes, e dos objetivos cuja realização
devem dirigir. Vota-se o aumento salarial a ser reivindi- cado
em conjunto, o acordo a ser formulado, a rua a ser
asfaltada, os investimentos a serem feitos, as prioridades a
serem enfocadas no dia a dia, a solução para os problemas
entre dirigentes e dirigidos, os homens e mulheres a serem
procurados etc. Vista desta forma a consulta visaria
basicamente a atingir, como finalidade da política, a maior
representatividade possível, permitindo a mais ampla
participação nas decisões. A democracia seria um objetivo
já presente nos movimentos de base. Todos os
participantes, garantidas as diversidades de seus interesses
e respeitada a sua livre expressão, sentem que aquele
movimento é efetivamente seu e que ele tira a sua força
coletiva da participação e representação que confere a cada
um em particular. Esta estrutura seria a fonte do seu poder
político.

A força dos movimentos sociais provém deles próprios, do


seu compromisso como instrumentos da coletividade, das
comunidades, das associações. O exercício da sua prática
interna já expressa no seu interior o objetivo político da
democracia a que se voltam no exterior. Por se assentarem
exclusivamente em si mesmos, os movimen- tos sociais não
devem explicações à política institucional, gozam de
autonomia e podem dispensar as suas regras. Mesmo
assim, quando esta sua força de estrutura social torna-se
uma orientação de base que influencia diretamente a
disputa pelo poder institucional, os movimentos sociais
comportam-se também como agentes políticos
institucionais. Desta forma, muitos dentre eles passariam a
ser poderosos instrumentos de base para partidos políticos.
Assim surgem os partidos políticos classistas, cuja base
seria a estrutura das relações de classe, tanto burguesas
como de trabalhadores, de latifundiários ou camponeses. O
Estado, como instrumento de uma classe, procuraria
normativizar a atuação dos movimentos de base das outras
classes. No caso dos sindicatos, por exemplo, institui-se a
legislação sindical que atrela este movimento às diretrizes
legais, regulamentando seu funcionamento, os seus
mecanismos de decisão, enfim, a sua autonomia.

Ao mesmo tempo em que as restrições institucionais


chegam aos movimentos de base, procurando contê-los em
determinadas formas, também ocorre o contrário. Isto é, os
movimentos sociais levam sua autonomia em relação ao
Estado do interior dos próprios partidos. Aqueles partidos
que valorizam a representação, participação e direção dos
movimentos ·sociais, tiram a sua força desta expressão
social existente em seu interior. Os movimentos sociais já
têm um poder, proveniente de sua representatividade,
embora esta seja localizada e particular – num bairro, numa
categoria profissional, numa empresa ou num determinado
tipo de relação cotidiana – homem-mulher, por exemplo.
Através de um partido, procuram expandir o alcance deste
poder aos limites nacionais do país. Mas as condições
objetivas de isto acontecer repousam na capacidade de já
realizarem, no seu âmbito interno, esta meta
representativa, democrática, garantindo-a pela sua
estrutura social e comunitária.

A vinculação orgânica com os movimentos sociais fornece


aos partidos condições autônomas para a avaliação de suas
possibilidades de força. A vida partidária, no entanto, é
ambígua. Ao mesmo tempo em que se nutre de interesses
manifestados no movimento da sociedade, pre- cisa
transformá-los em objetivos institucionais para poder
participar da disputa governamental. Seu comportamento
oscila, portanto, entre a procura da representação social e o
desempenho conferido pelo voto, por exemplo, nas eleições
públicas.

Uma visão restrita ao confronto eleitoral, porém, cria a


impressão de que a força de uma orientação partidária
reside na debilidade das demais. O apelo “vote em mim”
neste caso significa “não vote no outro”. Neste sentido,
parece que o objetivo reside em “bater o inimigo”, e não no
ato de representar a sociedade, a si próprio. Em
consequência, perder-seia justamente a verdadeira fonte da
força política que é o exercício concreto da escolha,
reduzindo-a novamente a uma instância abstrata. O “pacote
eleitoral” do governo brasileiro, por exemplo, tem esta
função explícita: reduzir a disputa, que se manifesta nos
votos, exclusivamente ao âmbito institucional, fazendo do
jogo partidário uma mera disputa de cargos, esvaziando seu
conteúdo de prática social de participação nas decisões, o
verdadeiro objetivo da atividade política.

A autonomia partidária, ao contrário, residiria na capacidade


de se manter uma estrutura que garanta sua organização e
mobilização em cima das próprias pernas – os movimentos
sociais que expressa –, mesmo que estas ainda sejam
curtas. O que não significa a recusa da disputa institucional
pelo voto. Mas implica reconhecer que esta é apenas uma
forma, entre muitas, que a atividade política assume em
determinadas circunstâncias. Assim como o Direito é apenas
uma consequência da justiça como interesse manifestado
em sociedade, o voto é consequência do interesse na
participação e representação. O exercício destas é que é
importante, e nelas residem os elementos dinâmicos que
transformam e produzem as instituições – Estado, partidos
etc. –, conferindo-lhes um sentido.
Política e representação eleitoral

A vida institucional é um reflexo da vida social. O exercício


do voto constitui um objetivo político para demandas da
sociedade. As eleições parlamentares podem imprimir ao
sufrágio a necessidade sentida no cotidiano da vida social
de uma reorientação política do país. No entanto este seria
só o último momento de um longo trajeto, em que a
atividade política resume a participação e representação.
Para que ela pudesse ser traduzida em votos, precisou
antes existir em formas não institucionais, nas
comunidades, nos sindicatos etc. A opção eleitoral – mesmo
numa Assembleia Constituinte – precisa ser fundamentada
numa escolha cotidiana, de pessoas não limitadas como
“cidadãos”. O confronto eleitoral constitui apenas o último
elo abstrato de uma cadeia cujo conteúdo concreto passa
pela mobilização e organização cotidianas da sociedade
para pressionar seus representantes.

O sentido da atividade política perdido no enfoque


institucional, está em entender a confrontação de
orientações políticas como consequência de relações de
força de representatividade social diferente no dia a dia.
Relações e classe, de que o voto institucional é a expressão
mais abstrata. A menos dotada de conteúdos voltados ao
cotidiano. E, por isto mesmo, a mais manipulável, por ser a
mais distante.

A confrontação política real se exprime na coerção das


armas ou da lei, que vale permanentemente, em casa ou
fora dela, em todos os dias e não de quatro em quatro anos.
Ou então no arrocho salarial, na falta de escolas ou de
saúde de transporte, na distribuição da terra, na moradia e
nos problemas urbanos, na discriminação da mulher e das
minorias. Em cima desses dados se cria a atividade política,
que pode tanto ser a da repressão policial, a da coerção dos
tribunais, como a do movimento sindical ou das
organizações de base. A possibilidade de algo mudar, de
tempos em tempos, pelo voto é diretamente proporcio- nal
à avaliação das forças expressas diariamente no debate
parlamentar, nas greves, nos congressos, nas
manifestações intelectuais, de movimentos de bairro, de
mulheres, estudantes, nas relações de trabalho ou na vida
cultural. A legalidade é uma atribuição das instituições,
assim como a legitimidade provém da sociedade e seu
cotidiano. O voto constitui uma grande oportunidade para
conferir se esta legalidade é legítima e para manifestar a
necessidade de tornar legal uma nova legitimidade.
Política, cultura e ideologia
A censura, as aulas de moral e cívica são interferências
políticas diretas no espaço cultural. A música de protesto, o
cinema de crítica social, as análises intelectuais são
manifestações diretas da cultura no plano político.

Mas estas são apenas as formas mais imediatas da relação


entre atividade política e manifestações culturais. Qual o
significado político dos Beatles, do curso supletivo ou da
novela das oito? Que significado cultural tem uma
assembleia de metalúrgicos ou uma proposta política em
que não se elege diretamente o presidente da República?

Qual o significado atual das relações entre política e


cultura? Como se vincula a transformação política da
sociedade com o seu movimento cultural?

Política e cultura se relacionam desde que a palavra passou


a ser um instrumento de poder na Grécia antiga, seja a
partir do debate político ou da lei escrita. O termo “cultura”
deriva do latim “colere”, cultivar a terra, opondo-se assim o
“cultural” ao “natural”. Seria transposta ao conjunto dos
elementos econômicos, sociais, políticos, artísticos,
filosóficos, morais, técnicos etc., em que consiste a
experiência de uma determinada sociedade, situação
histórica ou agrupamento social. Através da cultura, esta
experiência mantém-se viva e é transmitida. Desta forma,
seria possível conferir um sentido às próprias atividades
desenvolvidas pelos homens, seja em suas relações de
classe, com poder, com os outros homens ou com a
natureza.

A cultura popular, por exemplo, não seria aquela feita pelo


povo ou para o povo, mas aquela em que as manifestações
populares adquirem um sentido para o povo, em que ele
enxerga um valor. Assim como no âmbito da política os
interesses sociais dos homens, no seu trabalho, dentro e
fora de casa, apresentam-se como objetivos políticos, da
mesma forma, no plano cultural, estes mesmos interesses
cotidianos apresentam-se como valores culturais.

Cria-se, desta maneira, um novo plano de relacionamento:


entre objetivos políticos e valores culturais. Seus critérios
podem tanto ser determinados por normas políticas e
imperativos institucionais – como no caso de um censor
público; como também ser provenientes da experiência
cultural – como no caso da produção artística. Esta, por sua
vez, pode pautar-se por hábitos adquiridos – como uma
conduta moral das pessoas. Ou então ter como base valores
mais profundos, revelados com uma certa permanência no
conjunto da história humana – desde padrões estéticos até
um comportamento ético dos homens, tal como estaria na
concepção humanista de termos como “liberdade” ou
“democracia”.

É claro que a cultura para um censor possui um significado


diferente do que tem para o autor da peça censurada.
Existe uma cultura dominante quando ela tem por trás de si
uma proposta política dominante, e isto fica claro no caso
da censura política. Mas que dizer da censura ao palavrão,
ao lança-perfume, ou ao erotismo? Seriam também
questões de “segurança nacional” para uma determinada
orientação política do governo?

Como explicar manifestações culturais como o Chacrinha,


as orquestras sinfônicas, a música popular, as escolas de
samba, o folclore e as lendas, a literatura e o jornalismo, as
universidades e academias, os centros de pesquisa, o balé e
o Ministério da Educação?
É possível desembaraçar este novelo, procurando por uma
das duas extremidades possíveis do seu fio da meada. De
um lado, uma cultura identificada com interesses políticos e
instrumentalizada pelos mesmos. Do outro, uma cultura
entendida no seu significado mais amplo, de referência
“civilizatória” – a cultura da civilização ocidental, ou cristã,
ou indígena – que encerra os próprios significados da
atividade política em seu interior, como valores culturais
autônomos. No plano de uma cultura instrumentalizada
politicamente, pode haver relações de conflito – como a
censura, ou a crítica da cultura engajada de setores da
oposição. Ou relações de apoio mútuo entre política e
cultura – como a campanha hoje quase esquecida do
“Brasil: ame-o ou deixe-o”. Ou como os shows musicais a
favor da anistia ampla, geral e irrestrita. Aqui as
manifestações culturais apa- receriam como meios para a
realização de objetivos políticos.

Falar de uma cultura num sentido mais amplo seria


entender a atividade política como meio com uma missão
maior que extravasa o seu terreno, a política como uma
missão cultural, moral e ética. Agora já não se trataria tanto
de politizar a cultura, para se servir dela, mas de procurar
um sentido à própria atividade política no plano cultural.
Munidos deste critério, seria possível emitir um juízo sobre a
própria atividade política, e ancorá-la na experiência
cotidiana das pessoas.
A cultura em sua função política

Quem já não se surpreendeu no meio de uma discussão


chamando o interlocutor de “burro”? Está aí descoberto o
conteúdo de poder da cultura, que associa a sua existência,
ou não, a uma relação de autoridade.

Argumentos deste tipo são frequentes na história, e a eles


se deve a própria valorização do conceito de cultura nos
últimos duzentos anos. Na Revolução Francesa, uma das
primeiras reações da aristocracia alijada do poder seria
tachar a burguesia, a nova classe dominante, de “inculta”. A
cultura passaria a ser usada como um argumento a mais,
contrário às mudanças políticas, que “poriam a perder as
conquistas e os valores da humanidade”. Os burgueses,
grosseiros, sem refinamento, bom gosto e maneiras,
voltados unicamente aos bens materiais e sem
consideração com bens espirituais, não teriam condições de
ocupar o papel político dominante. No século XIX, a
burguesia desenvolveria sua própria cultura. Com as
revoluções socialistas do século XX, atacaria a nova classe
que aspirava ao poder dominante, o proletariado, como
rude, acostumada apenas aos trabalhos manuais,
desprovida de “cultura”, sem condições de assumir a
responsabilidade da direção política da “civilização
ocidental”.

A referência à cultura entra na história com este peso


conservador, permeada de apelos contrários às mudanças,
como suporte de propostas antigas sempre que estas se
encontravam ameaçadas pelo novo. A preocupação com a
cultura entra pela porta dos fundos em socorro dos que
vinham a se defrontar na porta da frente com novos
aspirantes a donos da casa. Por isto, trata-se de um uso
servil da cultura, unicamente instrumentalizada com
finalidades políticas.

“Analfabeto não deveria votar porque não tem cultura; o


povo não tem condições de escolher seus dirigentes porque
não sabe escovar os dentes ou tem mau cheiro”.

Este discurso é fácil, porém não é vazio. A prática política,


solidificada na experiência cotidiana das pessoas através
das manifestações culturais, encontraria nestas um
poderoso fator de apoio. As concepções políticas são
enraizadas culturalmente. Desde que o ambiente cultural
corresponda aos interesses politicamente dominantes, as
concepções políticas também serão as das classes domi-
nantes. Fazendo da sua cultura a cultura da sociedade, as
classes dominantes apresentam os seus interesses
particulares como sendo os únicos objetivos dotados de
sentido para toda a sociedade. Uma determinada cultura se
institucionaliza apoiada no poder político, e se apresenta
como “civilização”. Os valores específicos de uma parcela
da sociedade, reproduzidos na sua cultura, apresentam-se
como valores universais dos homens. Esta operação é o que
se chama inversão ideológica, ocultamento do parcial por
trás da aparência do geral. Neste sentido, a cultura
instrumentalizada politicamente torna-se um apoio
ideológico de orientações políticas. Através do uso
ideológico da cultura, o agente político consegue
generalizar para a sociedade como um todo os seus
próprios critérios de valor: desta forma, ele passa a ser
considerado legítimo. É deste modo que frequentemente se
acha justo que os que “sabem mais” tenham o direito de
mandar.

Isto é muito importante para as propostas revolucionárias.


Porque não basta apenas substituir as posições de mando –
a conquista do Estado –, mas é preciso também substituir os
critérios de legitimidade do poder. Caso isto não aconteça, a
sociedade não se convence da necessidade da mudança
política, e acaba por ser con- trária a ela. O pensador e
político Georg Lukács, preocupado com o insucesso da
revolução na Hungria no começo do século XX, passa a
desenvolver a necessidade de haver, simultaneamente a
uma estratégia política de tomada do poder, uma estratégia
de política cultural. Só desta forma, acreditava ele, seria
possível tornar uma nova orientação política – a socialista –
capaz de competir com a orientação política que antes
estava no poder – a capitalista. Seria preciso desenvolver
nas pessoas uma nova “consciência de classe”, a base
cultural de uma nova classe assentada na consciência de
cada um, que passaria desta forma a entender como
legítimo o poder desta nova classe. A nova alternativa
política teria, assim, garantida a sua própria sustentação
ideológica. Desta preocupação surgiriam as “revoluções
culturais”, de que a mais conhecida é a chinesa, e que nada
mais são do que a instrumentalização política da cultura
com finalidades revolucionárias. Do mesmo jeito que antes
ela era utilizada com finalidades conservadoras.

Além deste papel de legitimação ideológica para as


propostas políticas, porém, a cultura ainda tem uma outra
função instrumental muito importante: a de meio
organizador.

Foi Gramsci que desenvolveu esta função teoricamente. Até


Gramsci, achava-se que a sociedade era organizada
principalmente mediante os partidos políticos. Estudando a
Itália meridional, em que a atuação dos partidos era
bastante débil, ele percebe que a organização política era
feita através da organização cultural, pelas escolas, pelos
jornais, pelo registro em cartório, pela Igreja etc. A escola,
por exemplo, não teria apenas a função de reproduzir uma
cultura ideológica de apoio, de legitimação institucional,
mas uma função de organizar a participação dos alunos na
sociedade. Assim como o jornal não teria só o papel de
transmitir informações de conteúdo ideológico, mas o papel
de organizar, de dirigir em certo sentido a participação do
leitor.

É o caso sobretudo da televisão. Ela não só organiza o


tempo do espectador enquanto ele assiste a seus
programas. Através destes – Faustão, Sílvio Santos, novela
ou Jornal Nacional – a organização social segundo certos
padrões penetra em casa, dirigindo a vida das pessoas
quando estas estão mais desprevenidas de acordo com
preocupações específicas, relegando outras a segundo
plano. A televisão impõe uma ordem hierarquizada na
conduta cotidiana. Na Igreja, o papel organizador também é
bastante patente, não só por transmitir normas de conduta
religiosa. O casamento no civil e no religioso constitui um
exemplo de interferência nas próprias relações institucionais
da vida cotidiana, como o atestado de batismo etc.

É claro que estas duas funções políticas da cultura


acontecem ao mesmo tempo. Mas é importante diferenciá-
las, porque elas se referem a finalidades específicas
distintas.

Através da imprensa, veiculam-se conteúdos culturais com


finalidades ideológicas de apresentar os interesses de uma
classe como sendo os interesses gerais da sociedade. Desta
forma, a proposta política desta classe adquire um apoio
consensual da população que a legítima. Esta é a função de
apoio ideológico, que permite ao Estado basear-se no
consenso.

Em segundo lugar, existe a função organizativa: ao mesmo


tempo em que os órgãos de imprensa transmitem e
reproduzem conteúdos ideológicos, eles permitem mobilizar
os leitores, organizar a participação da opinião pública em
torno de determinados objetivos que interessam
politicamente. Promover manifestações públicas, por
exemplo, ou votar em determinados candidatos, ou
consumir certos livros pelos quais se transmitem novos
conteúdos ideológicos, que reforçam o consenso político.
Esta é a função de direção ideológica da sociedade.

Se a classe que usa estes instrumentos ideológicos já está


ocupando o poder estatal, estes instrumentos são
“aparelhos ideológicos do Estado”, expressão cunhada pelo
filósofo Althusser. Quando ela ainda não ocupa o poder do
Estado, e utiliza recursos ideológicos para se opor a ele e
fundamentar sua própria orientação política, a ideologia é
encarada como “instrumento de libertação”, como meio
libertário.

A principal diferença entre o uso da ideologia como função


de legitimação, de procura do consenso, e como função
organizadora, de direção da participação, é que a política
cultural, a “revolução cultural”, não precisa ser feita após a
conquista do Estado e da sua organização, porque ela
mesma também pode ser organizadora. Desta forma, a
política cultural-ideológica pode ser promovida antes da
organização do Estado, e se constituir inclusive em um fator
para esta organização política, ajudando na libertação do
Estado antigo e na construção de uma proposta alternativa
a ele. Esta forma de luta revolucionária Gramsci
denominaria de “guerra de posição”.

Os elementos decisivos para a produção e reprodução da


ideologia são os intelectuais, que simultaneamente
produzem cultura e organizam através da cultura. Na
medida em que os intelectuais vinculam-se a determinados
interesses de classe, eles são intelectuais orgânicos desta
classe. A formação dos seus próprios intelectuais orgânicos,
portanto, é um fator decisivo para as possibilidades políticas
de uma classe. Os professores podem ser intelectuais
orgânicos, porque criam e transmitem ideologias de apoio
político; mas também os gerentes e os administradores
podem ser intelectuais orgânicos, porque eles organizam e
dirigem a participação das pessoas. O gerente de uma
fábrica, quando ele representa os interesses dos donos,
organiza a participação dos trabalhadores conforme estes
interesses. Mas ele também pode representar os interesses
dos trabalhadores – não no capitalismo, é claro – e dirigir a
participação de acordo com os interesses destes. Um reitor
de universidade nomeado pelo Estado é um intelectual
orgânico deste Estado; um reitor escolhido pela comunidade
é um intelectual orgânico desta comunidade. Como um líder
sindical ou um dirigente partidário eleitos por suas bases.

Em resumo, pode-se dizer que as culturas cumprem uma


função política enquanto ideologias que apresentam
interesses particulares como objetivos políticos gerais. Às
ideologias cabem dois papéis distintos: promover a
legitimidade do poder político através da obtenção do
consenso da sociedade, e organizar este consenso pela
direção da participação da opinião pública conforme
determinados interesses políticos.

Como ideologias, as manifestações culturais podem ter


tanto uma função conservadora – de apoio ao existente –
como inovadora – de promoção de alternativas ao existente.
Política como missão civilizatória

Quando se classifica algo de “autoritário”, isto quer dizer


mais do que simplesmente lhe atribuir uma atividade
política que se impõe pela força. Significa atribuir-lhe um
valor, uma referência que possui um sentido além do
político. Do mesmo modo, quando consideramos uma
pessoa “democrática”, emitimos uma opinião sobre as suas
qualidades que não se esgota unicamente na sua prática.
Neste sentido, a democracia seria algo mais do que uma
determinada forma de governo ou de atividade política.
Seria um valor, uma referência cotidiana que diz respeito ao
conjunto de uma experiência humana e social, objetiva e
subjetiva, acumulada ao longo da história na cultura.

No entanto, o conceito de democracia se desenvolve no


âmbito da política. E se ele não diz respeito apenas a
significados imediatamente políticos, é porque a própria
política, seus valores e objetivos situam-se também no
plano cultural. Assim como existe uma cultura estética ou
uma cultura física, há uma cultura política. Através dela se
mantém viva a própria experiência que condiciona os
padrões de comportamento subjetivo e de atuação obje-
tiva que se referem à atividade política.

Do mesmo modo que se pode falar de um papel político


para a cultura, cabe também falar de uma função cultural
da política. As relações entre os dois planos são recíprocas.
Precisamente para se referir a estas relações usa-se o
conceito de “ideologia”. Daí sua importância.

Ao falar da função política da cultura, lança-se mão de


termos como “consenso” ou “organização”, tipicamente
tirados do vocabulário político. Para falar da função cultural
da política, utilizam-se termos tirados especificamente do
vocabulário cultural, como “visão de mundo”. Estas duas
funções tornam o termo ambíguo.

É que, por referir-se a uma relação, a “ideologia” tem dois


sentidos diferentes, conforme se privilegia um ou outro dos
interesses que ela põe em cena: políticos ou culturais.
Ideologia no sentido político restrito, de “Iegitimação” ou
“organização” social; ideologia no sentido cultural amplo, de
“visão de mundo”. A “visão de mundo” dos gregos ou da
Renascença; uma “visão de mundo” capitalista ou socialista.

Anteriormente já se falou sobre a função política da cultura,


sobre a ideologia em seu sentido restrito. Agora é a vez da
política enquanto ela se relaciona com o plano cultural, a
vez da ideologia enquanto “visão de mundo”.

Marx mostrou em sua A Ideologia Alemã que as visões que


os homens constituem do seu mundo, o conjunto de ideias e
valores que são a sua experiência cultural, são frutos do
modo como organizam no cotidiano suas relações de
trabalho. Em outras palavras, o mundo ideal é determinado
pelo mundo material. Marx tirou desta constatação duas
importantes consequências.

Em primeiro lugar, que não há “visões de mundo” certas ou


erradas. Todas elas são um reflexo correto de determinadas
condições de produção material, de organização do trabalho
humano. Se os homens trabalham apenas para produzir seu
próprio sustento, têm determinado tipo de ideias; se
trabalham com a finalidade de produzir excedentes – ou
seja, mercadorias para serem vendidas – têm outra espécie
de “visão de mundo”. Ambas são corretas, porque
correspondem fielmente ao seu universo material, de que
são “aparências” necessárias.
Além disto Marx observa que, para se mudarem as “visões
de mundo”, não basta agir no nível das ideias e dos valores;
é preciso transformar no cotidiano as condições materiais a
que estas ideias correspondem. Portanto o papel da crítica
às ideologias e da sua transformação não é função da
especulação teórica, mas cabe à prática das alterações
materiais. Em outras palavras, a ação do nível das ideias, no
plano cultural, exige uma atuação política de transfor-
mação do mundo. Daí a sua célebre tese sobre a filosofia:
“Até agora, os filósofos só interpretaram o mundo de formas
diferentes; é preciso transformá-lo”.

Examinando a visão de mundo da sociedade capitalista


moderna, Marcuse, no livro A Ideologia da Sociedade
Industrial, mostra como seus valores refletem o mundo do
trabalho. É uma ideologia enquanto “visão de mundo”
cultural – que incorpora como valores culturais, como éticas,
a eficácia e a produtividade que caracterizam a produção
capitalista. Todos os outros valores que estão na herança
cultural dos homens, mas não correspondem à eficiência da
produção, são tolhidos, escondidos, desprestigiados. A
ideologia da sociedade industrial reflete corretamente as
condições da sociedade industrial. E, justamente por isto,
serve como apoio ideológico – agora no sentido restrito da
instrumentalização política – dos interesses capitalistas.
Como se dá este apoio? Pela valorização cultural da
eficiência produtiva, esta é transformada em critério político
geral, inclusive fora do âmbito específico da produção.
“Tempo é dinheiro”, é preciso ser eficiente e organizado no
cotidiano. O interesse particular transforma-se em
concepção geral, para a qual a legitimidade política está na
eficiência do modo de produção capitalista – que está nas
mãos de uma parcela – e não na representatividade dos
interesses do conjunto social. Através da sua cultura, a
sociedade industrial leva a crer que o critério geral dos
homens deva ser a eficácia produtiva. Desta forma, as
propostas políticas alternativas, baseadas na
representatividade dos interesses da maioria, são
enfraquecidas, quando não destruídas. A cultura, a “visão
do mundo” capitalista, funciona como elemento
conservador do modo de produção capitalista. Para ser
possível valorizar a representatividade, portanto, numa
“visão de mundo” que não se baseie apenas na eficácia do
trabalho, é preciso agir sobre este modo de produção,
transformá-lo. É preciso uma ação política.

É possível tirar algumas lições importantes desta análise de


Marx e da sua aplicação moderna feita por Marcuse. São
basicamente duas. Primeira: que a cultura, para realizar de
fato os valores que constituem a sua experiência humana,
exige a elaboração de uma proposta política, necessita a
aplicação de uma atividade política. Segunda: que a
atividade política, portanto, possui um objetivo cultural, de
realização de valores éticos, de concretização de uma “visão
de mundo”.

Em cada situação histórica determinada, os homens em


sociedade organizam a sua experiência cultural, econômica
e política e institucionalizado: a este conjunto chama-se
uma “civilização”. A civilização grega, por exemplo, ou a
civilização industrial. Quando se afirma que a atividade
política tem um objetivo cultural, portanto, este deve ser
entendido dentro de uma situação histórica específica, num
contexto civilizatório. Neste sentido, pode-se afirmar que a
política possui uma missão civilizadora, que lhe confere
sentido humano, significado para a vida dos homens, seja
em sociedade, seja individualmente, fora e dentro de casa.

Dito de outra maneira: a atividade política tem um papel


libertário, uma função de expressão livre dos valores de
uma “civilização” obstruída ideologicamente pela
dominação de certos interesses e das suas orientações
políticas.

A relação entre política e cultura, vista do ângulo cultural,


apresenta duas faces igualmente importantes: a cultura
precisa da política e a política tem um objetivo cultural.
Algumas situações específicas podem ajudar no
esclarecimento destas questões.

1. Afirmar que a política tem objetivos culturais, possui


uma “missão civilizadora”, não quer dizer que toda
atividade política cumpra este papel. Ao contrário, as
insatisfações são muito grandes e frequentes, e
aparecem em expressões do tipo “o governo está
desmoralizado”, “os políticos só pensam neles
mesmos”, “toda esta política não leva a nada” ou que é
que eu ganho com isto?”.

Principalmente porque os interesses culturais estão mais


presos ao cotidiano, e as propostas políticas oficiais são
sentidas como insatisfatórias neste nível, por se dedicarem
principalmente aos grandes temas – a segurança nacional, a
paz social etc. –, cria-se um clima desfavorável na
população. Ela está mais interessada em seu mundo
imediato, do dia-adia, e passa a exigir respostas a estas
questões.

Sobretudo a partir do começo deste século, esta


insatisfação seria sentida com mais profundidade e
abrangência. As guerras produziram nas pessoas a
sensação de que os objetivos políticos não tinham nada a
ver com seus interesses. A cultura oficial correspondente a
tais políticas, passaria progressivamente a ser tachada de
decadente, de alienada, de falsa. Era mais e mais
impossível derivar destas propostas culturais algo além de
ideologias de suporte de determinadas práticas políticas;
todo o resto era legado a segundo plano, desde a
possibilidade de fornecer padrões morais, prazer estético,
até a chance de obter qualquer benefício em relação ao
bem-estar e a seus valores. Enfim, já não havia méritos na
política institucional, a não ser os de permitir a perpetuação
do próprio poder. É o período do movimento expressionista,
do surrealismo, do desencanto com a chamada “civilização
ocidental cristã”. As pessoas estavam perdidas no mundo,
precisamente porque este mundo movimentava-se de
acordo com orientações políticas sem qualquer sentido
cultural, sem perspectivas para a vida cotidiana. Valorizava-
se uma outra “cultura”, oposta a esta “civilização”.

A partir disto, as propostas revolucionárias tinham que levar


em conta esta insatisfação; precisavam aliar às saídas
políticas – de transformação do Estado, da estrutura social e
econômica – algumas saídas culturais – de hábitos morais,
de sentido para a vida individual. Caso não o fizessem, não
conseguiriam obter o apoio de que careciam, estariam
impossibilitadas de se basearem no consenso, nos
interesses da maioria. E quanto mais adiantada
culturalmente uma sociedade, tanto mais as propostas
revolucionárias precisavam aparecer como propostas
“civilizadoras”, pondo em xeque a “civilização” existente.

Pois nestes locais mais “desenvolvidos”, a insatisfação com


a visão de mundo produtivista era maior. Tornou-se famoso
o ensaio de Freud sobre o Mal-estar na Cultura, em que
aponta para o abandono a que a cultura do capitalismo, da
sociedade industrial, relegou quaisquer objetivos que não
fossem ligados imediatamente ao esforço produtivo, ao
trabalho. Chega ao ponto de afirmar que esta civilização
estaria baseada na repressão ao prazer como necessidade
de induzir ao trabalho. Entre o prazer e a realidade, haveria
que optar pela realidade, impossível sem a repressão.
Problemas deste tipo levariam à constituição de propostas
políticas alternativas, revolucionárias, que teriam um
objetivo “libertário”, de liberar os homens das amarras da
sociedade construída sobre o trabalho alienado,
desinteressante, opressor. Logo depois da Revolução,
desenvolve-se na Rússia um movimento cultural intenso –
que vai da dança de Isadora Duncan aos filmes de
Eisenstein, os poemas de Essenin, o balé de Diaquilév, o
feminismo de Alexandra Kollontai. Eram modos de procurar
uma realização no plano cultural concomitante ao esforço
produtivo. Quase que maneiras de mostrar a possibilidade
de haver uma “erotização” do trabalho.

Nos países da Europa Ocidental, as propostas


revolucionárias precisavam também se apresentar como
saídas éticas, moralizantes. Deste modo, conseguiram o
apoio das camadas médias, desencantadas com a inversão
de valores operada pelas guerras, com a corrupção, o
deses- pero do baixo nível de vida. Esta debilidade do
mundo cultural e de seus valores, porém, facilitaria também
o desenvolvimento de alternativas falsas – como o nazismo.
Este se basearia na crise para propor normas autoritárias,
que criariam uma mobilização da população em torno do
que lhes era apresentado como “certo” e “errado”. Não foi à
toa que o nazismo utilizou-se do anti-semitismo: os judeus
encarnariam o “mal”, pois eram identificados aos
capitalistas que só viviam em função de interesses
materiais. Aliás, a expressão popular de que “judeu sempre
faz bons negócios” é uma sobrevivência desta utilização da
cultura como saída política autoritária.

Em épocas de crise, o autoritarismo sempre parece ser um


porto seguro, porque ele acena com segurança para seus
próprios padrões, escondendo o fato de que são impostos à
força.
Também no Brasil já se tornou comum falar da
desmoralização da política oficial. Exatamente por isto, a
saída autoritária de 1964 associaria o combate à
“subversão” à luta contra a “corrupção” e o “desregramento
moral” do erotismo e dos tóxicos. Acontece que o tiro saiu
pela culatra: o governo proíbe o jogo do bicho, mas libera a
loteria esportiva; cassa “corruptos” mas diminui os salários
e institui as eleições indiretas, em que o peso maior é o do
dinheiro que compra os convencionais que compõem o
colégio eleitoral; censura o erotismo mas diminui as verbas
da educação; combate os entorpecentes, mas não oferece
saúde pública. Pela expressão “Revolução de 1964” o
governo queria surrupiar o tom libertário das revoluções
socialistas. Mas fracassa, pois aprofundaria ainda mais a
crise da civilização no Brasil.

Em todo caso, a saída política seria associada a uma saída


civilizatória, o que precisa ser levado em conta por
quaisquer propostas alternativas.

1. Se o significado da política institucional oficializada no


Brasil acaba sendo de insatisfação, e aponta para a
necessidade de uma saída civilizatória, isto não ocorre
sempre com a atividade política. Existem formas que a
política assume fora do âmbito institucional que
produzem satisfação cultural, conseguem traduzir em
valores cotidianos os objetivos políticos.

Isto não ocorre na atuação governamental, nem no plenário


das discussões partidárias oficializadas no parlamento.
Acontece onde a política aparece com o significado de
expressar as aspirações cotidianas das pessoas, ligadas ao
mundo do seu trabalho, do seu lazer, da sua sobrevivência.
Existe em muitos sindicatos, em comunidades da Igreja, em
associações de moradores, em organismos que homens,·
mulheres, minorias, trabalhadores, estudantes etc.,
constituem com o objetivo de atender aos seus interesses
“de base”.

Não ocorre nos aparelhos políticos que o Estado


institucionaliza, mas se desenvolve quando o movimento
social procura expressar-se politicamente, como postulante
a uma voz ativa na transformação da sociedade.

Quando as pessoas se reúnem para discutir e deliberar


sobre seus problemas objetivos, este exercício político
permite uma interiorização subjetiva destas questões. A
diversidade de problemas e de opiniões, e principalmente o
modo conjunto de resolvê-los, acabam transformando a
consciência individual. A democracia nas relações políticas
objetivas termina por se tornar um patrimônio subjetivo dos
indivíduos, já presente na prática interna de muitos
movimentos de base popular, e não apenas como meta de
conquistas exteriores, relacionadas à disputa do poder
institucional.

Neste sentido, a democracia passa a ser um valor ético,


cultural, que orienta o comportamento individual inclusive
em situações não diretamente relacionadas com objetivos
políticos, como no trabalho, em casa ou na escola e na vida
afetiva. Influi no relacionamento pessoal e social: acaba
tornando-se efetivamente urna “visão de mundo”, que diz
respeito tanto ao prazer estético como ao bem-estar físico
etc. Quando a democracia acaba sendo uma “visão de
mundo”, então passa a ter sentido falar, como muitos o
fazem, que “tudo é política”. A política se “cotidianiza”.

Gramsci denomina este fenômeno de “catarse”, que seria


uma subjetivação das relações políticas objetivas, o contato
íntimo entre o cotidiano-cultural e o espaço das
transformações operadas na realidade. A “catarse” não
precisa ocorrer só com a democracia. O melhor exemplo,
novamente, é o nazismo, que nisto também foi inovador
como saída política autoritária. A estrutura rígida nazista,
baseada na figura centralizadora do Führer, do líder,
também se baseava na interiorização deste princípio de
autoridade na consciência de cada pessoa. O chefe de
família, o marido, o irmão mais velho, o professor, o gerente
de fábrica, o oficial etc., cada um era um pequeno Führer
que completava a pirâmide do poder até Hitler. E cada um
se sentia responsável, a seu modo, pela sobrevivência
daquela proposta de “civilização”. Por isto, se convocasse
eleições livres e diretas, facilmente o líder nazista seria
eleito para o posto que ocupava, dado que “tudo era
nazismo”. Um “tudo”, porém, parcial e excludente: os
socialistas, os judeus, os proletários, os outros países não
participavam. A maioria ficava de fora, o nazismo geraria
uma nova insatisfação civilizatória, a estrutura do Führer
tornada em ídolo mostrava seus pés de barro. Os limites do
autoritarismo como “visão de mundo” estão na sua
incapacidade de satisfazer o conjunto dos interesses em sua
diversidade. Nesta capacidade de interiorização subjetiva
das relações objetivas da sociedade, e nas consequentes
“visões de mundo”, residiria para Lukács um referencial que
permitiria optar entre várias propostas políticas.
Examinando as diferenças entre a “visão” de mundo” do
capitalista e do proletário, ele se detém nas “consciências
de classe” possíveis em cada caso. O máximo de
consciência possível à classe capitalista estaria
condicionada pela necessidade da exploração, da obtenção
do lucro, pela eficiência produtiva. Lukács associaria a
insatisfação cultural a esta “visão de mundo” limitada. E
encontraria uma saída civilizadora, que responderia a esta
insatisfação, na elaboração de uma “visão de mundo”
baseada na classe proletária e sua consciência, que não se
basearia na exploração – do homem pelo homem –, mas
procuraria eliminá-la.
1. “Meus votos para deputado e governador”, ou “meus
melhores votos de pronto restabelecimento”. Este uso
distinto do termo “voto” revela sua origem a um tempo
política e cultural. O voto é a expressão de uma
vontade, e como tal está ligado a um valor cultural. Ao
mesmo tempo, ele ficou caracterizado como meio de
realização desta vontade, como instrumento em que se
apresenta a atividade política.

Os elementos culturais precisam, para se realizar,


apresentar-se politicamente. Cotidianamente algum aspecto
da vida cultural revela esta necessidade. Um jornal precisa
de uma “política” editorial. Aprender a dançar corresponde
a uma “política” para realizar relacionamentos sociais,
afetivos, ou mesmo o prazer da expressão corporal. A
“política” do corpo é um instrumento de realização
amorosa, o elemento cultural mais típico e humano de todas
as cul- turas. A psicanálise é uma “política” para a
abordagem do inconsciente e das suas forças. A prática
literária demanda uma “política” para a realização da
literatura, como objetivo estético tanto para o leitor como
para o autor. Ao mesmo tempo, a própria política das
instituições e dos movimentos sociais se apresentaria como
parte harmônica deste relacionamento íntimo entre o plano
cultural e o plano da atividade política.

Atualmente, porém, o quadro não é este. A crise de


participação nas propostas políticas institucionalizadas, em
vigor, revela um abismo existente entre os valores que são
as metas culturais e o alcance da atividade política. Hoje em
dia política não é cultura.

A isto se pode atribuir, em grande parte, o desinteresse


voltado à prática política, que pouco significaria para a vida
das pessoas. Além disto, a própria cultura, resultado de uma
valorização proveniente de formas determinadas de
atividade política, não contribui com referências para
responder satisfatoriamente à realização de questões
cotidianas não institucionais. Esta cultura não oferece
“políticas” para a solução de problemas que não digam
respeito diretamente à produção material – às relações de
classe –, ao mundo do trabalho ou ao poder que lhe
corresponde. A experiência cultural

concentrou-se excessivamente nos seus aspectos


econômicos e nas políticas postas em cena por eles. A
cultura indígena, por exemplo, oferece meios para tratar
problemas cotidianos, recorrendo à experiência
sistematizada em sua civilização, do mesmo modo que
orienta seus guerreiros ou chefes. A civilização industrial
con- temporânea é pobre neste sentido. Justamente por isto
ocorre uma recorrência frequente a conteúdos culturais
místicos ou religiosos, com os quais se procura redescobrir a
vinculação entre cotidiano e experiência cultural. Desse
modo se obteriam “políticas” para a solução de
determinados problemas, como se comportar no trabalho,
em casa ou na rua, na vida afetiva ou familiar, em relação à
saúde etc. A mãe de santo e sua prática religiosa peculiar, a
umbanda, a cultura do oriente, a astrologia, o I Ching, os
guias místicos, o espiritismo, as “viagens”, são fontes de
referência para o comportamento em certas situações, do
mesmo jeito que o esporte, a Ioga etc. São pequenos
pedaços da experiência de civilizações em que não ocorria a
desorientação da prática cotidiana. Como tal, seriam
suportes para desenvolver políticas de ação frente a
determinados eventos ligados ao dia a dia, que esclarecem
a precariedade da civilização contemporânea deste aspecto.

Foi dito que cada civilização corresponde à orientação de


interesses políticos. A cultura que se impõe em uma
sociedade é a da proposta política que se impõe nesta
sociedade. A cultura capitalista é a da classe capitalista etc.
Com isto não se quer dizer, porém, que o conjunto da
experiência cultural adotada pelo capitalismo, sua proposta
civilizatória, corresponde unicamente a interesses
capitalistas.

Há valores humanos permanentes que se transmitem de


cultura em cultura, civilização em civilização, embora se
apresentem sob formas diversas conforme sucedem as
orientações políticas dominantes. A democracia aparece nos
gregos, e como democracia burguesa e como demo- cracia
socialista. Ela é adjetivada como democracia relativa, como
democracia com responsabilidade, mas por trás mantém
um valor essencial, tão essencial que precisa adquirir novas
feições com cada orientação política que se impõe. As
ideologias, como um suporte cultural da política, não podem
ser livremente inventadas no ar; precisam de alguma
referência anterior em que se ancorar.

Em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freire mostra como a


experiência cultural no Brasil constitui-se a partir da forma
peculiar do capitalismo no país. Vários matizes culturais
nativos, africanos e europeus, apresentar-se-iam integrando
uma “visão de mundo” brasileira, com um pé na senzala dos
escravos, e o outro na casa senhorial. A cultura assim se
constrói em cima de elementos anteriores à orientação
política dominante a que corresponde. Tem uma história
própria, em que se reproduzem elementos que, em
princípio, nada têm a ver com os interesses políticos,
podendo até atrapalhá-los. São elementos tão fortes que se
impõem à atividade política. Esta apenas consegue vesti-los
desta ou daquela maneira.

A “cordialidade” brasileira, por exemplo, nada mais seria do


que uma máscara para esconder o autoritarismo das
relações duras do trabalho, seja do escravo, seja do
trabalhador livre. Esta mesma cordialidade, porém, não
existe em outras situações onde há a exploração capita-
lista. É resultado portanto da imposição de uma situação
específica brasileira, não é necessária para o capital, que foi
obrigado a se utilizar dela, mascarando-a, por imposição
cultural. Mas não é porque é usada pelo capitalismo que se
deve lançar toda e qualquer cordialidade como valor
cultural no lixo. Ela também está ligada a um hoje, para ver
que uma parte dele serve a interesses comerciais e
políticos, e que outra parte corresponde a interesses
culturais aqui e agora. A politização da cultura separa nela o
joio “ideológico” do trigo dos “ideais” da civilização
humana, revelando ambos como valores condicionados a
determinadas situações históricas. A democracia também já
não estaria presente por trás de algumas formas em que se
mostra hoje? Seria preciso politizar o jeito como ela se
apresenta, para poder descobrir por baixo da camisa da
“abertura política”, da “democracia representativa”, da
democracia socialista”, os interesses a que serve em cada
situação, a sua proveniência histórica e a relatividade do
seu valor que isto implica. Desta forma, perceber-se-ia que
a democracia que se quer já também não é abstrata, uma
meta eterna, ideal, e desprovida de forma concreta. Pois ela
também deve ter um valor aqui e agora, e portanto um
significado para interesses conjunturais específicos: a
garantia da maior representatividade e da mais ampla
participação nas decisões políticas, retirando-as da alçada
exclusiva do Estado capitalista a conjuntura específica.

Ao mesmo tempo, culturas a serviço de orientações


políticas produzem elementos que significam aquisições da
humanidade em geral, mesmo tendo sido concebidos
apenas para beneficiar parte dela. Não é porque a produção
industrial, fruto do desenvolvimento capitalista, é alienante,
que é preciso retomar ao artesanato. Não é porque o
automóvel traz problemas que é necessário voltar à
charrete de burros. A sociedade de massas transformou a
arte em mercadorias, mas nem por isto há que ser contra os
discos, ou o cinema, ou a TV.

É preciso, isto sim, evitar que o automóvel transforme-se


em centro de uma proposta de civilização, já que o seu
“valor” também é relativo. Mas, para chegar a isto, é
preciso politizar este bem cultural chamado automóvel,
para detectar os pontos em que ele é somente um apoio a
determinada forma de dominação, e aqueles outros
aspectos em que ele significa um benefício efetivo para o
homem. É preciso politizar o jogo de futebol tal como ele
existe.
Indicações para leitura
Uma visão panorâmica da política pode ser obtida em
História das ideias políticas, de Sabine, e em História das
doutrinas políticas, de G. Mosca. O Estado é examinado
historicamente em As origens do Estado moderno, de B. de
Jouvenel, e O mito do Estado, de E. Cassirer. Diálogos
políticos de M. Cranston contém interessantes confrontos
entre posições políticas.

A leitura de alguns clássicos é imprescindível e mais


esclarecedora do que os comentadores: A política, de
Aristóteles; O príncipe, de Maquiavel; O contrato social, de
Rousseau; O manifesto comunista, de Marx; O Estado e a
revolução de Lenin.

Há duas coletâneas – a obra política de Marx, organizada e


apresentada por O. lanni, e a obra política de Lenin,
organizada e apresentada por F. Fernandes – que permitem
aprofundamentos posteriores. Maquiavel, a política e o
Estado Moderno, de A. Gramsci, desenvolve as propostas
marxistas para a política, assim como História e consciência
de classe, de G. Lukács. A vida política-ética dos gregos é
magistralmente descrita em Paideia, de W. Jaeger.
Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau estão analisados em
profundidade em O pensamento político clássico,
organizado por Célia Quirino e Maria Teresa Sadek, obra que
pode ser complementada por A teoria política do
individualismo possessivo, de C. B. Macpherson.

O pensamento político nos EUA é ilustrado por A democracia


na América, de A. Toqueville, Os direitos do Homem, de T.
Paine, Autobiografia, de B. Franklin, Liberalismo, liberdade e
cultura, de J. Dewey e na obra de C. Wright Mills, em
especial em A elite do poder.
Na Europa há uma vertente liberal igualmente importante
em Apolítica como vocação, de M. Weber, Entre o passado e
o futuro – entre outros títulos –, de H. Arendt, e Massa e
poder, de E. Canetti.

O debate político atual pode ser acompanhado, por


exemplo, em O marxismo e o Estado. Sociedade e Estado na
filosofia política moderna, de N. Bobbio e M. Bovera, e Um
socialismo a inventar, de L. Radice. O novo Estado
industrial, de K. Galbraith, e Ideologia da sociedade
industrial, de H. Marcuse. O futuro da democracia, de N.
Bobbio, A alternativa, de R. Bahro; e Adeus ao proletariado,
de A. Gorz. Estes dois últimos examinam as alternativas
para o socialismo na sociedade industrial. Existe uma
História do Marxismo, organizada por E. Hobsbawm,
contendo análises dos séculos XIX e XX até hoje. Os
próprios títulos dos livros já são elucidativos do seu
conteúdo.

No Brasil, a discussão passa pelos movimentos sociais,


quepodem ser acompanhados em São Paulo: O povo em
movimento,coletânea de P. Singer e V. Caldeira Brand, e O
que é participação política, de D. Dallari, que escreveu
também O futuro do Estado, examinando as alternativas
entre Estado democrático e Estado autoritário, que é
também um título de Franz Neumann, num texto clássico
sobre o assunto.

A democracia e suas vias constitui tema fundamental entre


autores brasileiros: Por que democracia?, de F. Weffort; A
democracia como valor universal, de C.N. Coutinho; Cultura
e democracia, de Chaui.

As alternativas institucionais e partidárias são examinadas


em Nova República e Que tipo de República, de F.
Fernandes; Perspectivas, de F.H. Cardoso e na coletânea E
agora PT?.
Sobre o autor
Wolfgang Leo Maar é professor da Universidade Federal de
São Carlos. Estudou na Escola Politécnica, no Instituto de
Física e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de S. Paulo, em cujo Centro
Residencial fez política estudantil até ser preso por ocasião
da decretação do Ato Institucional nº. 5, em 1968. Participou
intensamente da vida sindical (greves nacionais de
professores, conferências nacionais da classe trabalhadora
etc.) e política (Comitê Suprapartidário das Diretas, Comitê
Pró-Participação Popular na Constituinte, Partido dos
Trabalhadores etc.) especialmente enquanto dirigente da
Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior –
ANDES, de que foi vice-presidente.

Como analista político, escreveu nos principais jornais,


revistas e semanários, destacando-se um longo período
como colaborador da Folha de S. Paulo. No debate político
cultural tem se dedicado à discussão e elaboração de
propostas de reforma educacional e universitária, seja nas
entidades de classe, seja no plano partidário.    
O que é célula-tronco
Marques, Marília Bernardes
9788511350579
105 páginas

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Este livro é uma condição oportuna e indispensável ao


enriquecimento de um dos temas contemporâneos mais
desafiadores envolvendo a ciência: o uso das células-tronco
embrionárias.

A autora aborda o tema com um enfoque abrangente e


integrador, descrevendo e analisando a forma histórica e
social assumida, até o presente, pelo dilema que fervilha a
cada dia nas páginas dos jornais do mundo todo.

Analisa uma a uma as justificações presentes nas


numerosas visões em confronto, prudentemente tentando
manter a devida distância dos indisfarçáveis interesses em
jogo.

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O que é ética
Valls, Álvaro L. M.
9788511351200
61 páginas

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Não existe povo ou lugar que não tenha noções de bem e


mal, de certo e errado. Da Grécia antiga aos nossos dias, a
ética é um conceito que sempre esteve presente em todas
as sociedades.

Mas, apesar disso, as dúvidas são muitas. Seria a ética


apenas um princípio supremo que atravessa toda a história
da humanidade? E numa sociedade capitalista, qual a
relação entre ética e lucro?

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O que são direitos humanos das
mulheres
de Teles, Maria Amélia Almeida
9788511350302
130 páginas

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Sempre houve preconceito contra a discussão das questõs


específicas das mulheres. Não se concebia que mulheres
violentadas por seus maridos/companheiros, espancadas e
assassinadas sob a alegação de defesa da honra tinham
seus direitos humanos violados. Considera-se normal que
mulheres tenham salários mais baixos que homens, que
mulheres sejam alvo das ações masculinas de assédio
sexual, de estupro e demais tipos de violência de gênero. É
como se os direitos do homem incluíssem os da mulher, ou
como se estes fossem secundários. A exclusão da cidadania
das mulheres está arraigada em nossa cultura. É preciso
tratar o tema recuperando os conceitos históricos e as lutas
políticas já travadas para conquistar a igualdade. Consolidar
os direitos humanos das mulheres é prioridade para uma
sociedade justa e digna.

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O que é educação popular
Brandão, Carlos Rodrigues
9788511350562
95 páginas

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Normalmente, a educação é pensada em domínios restritos


como a Universidade, a alfabetização, o Ensino Médio e a
supervisão escolar. Na maioria das vezes ela não é
analisada em seu cotidiano, a cultura.

A educação propriamente dita é um domínio de ideias e


práticas regidas pelas diferenças entre as diversas
realidades sociais. Mais do que pensar em domínios
restritos, é necessário pensar no modo de ser da educação
popular e nas várias formas e situações que ela possui hoje
em dia: a educação na comunidade primitiva, no ensino
público, nas classes populares e na sociedade igualitária.

A educação pode ser tanto uma forma de opressão quanto


uma forma de libertação. Isto depende apenas de como ela
é pensada e praticada.

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O que é direito
Filho, Roberto Lyra
9788511010626
100 páginas

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Quais as relações entre Direito e Justiça, Direito e ideologia,


Direito e conflito social? Em linguagem clara e precisa, o
professor Roberto Lyra discute as várias dimensões do
direito, apresentando-o não como conjunto imutável de
regras, mas como atividade em permanente transformação:
"A maior dificuldade, numa apresentação do direito, não
será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas
ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel."

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