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Fundações do Pensamento Político Brasileiro - Introdução ao

Pensamento Político (p. 1)


com Christian Lynch

SINOPSE
Qual o principal tema abordado no pensamento político brasileiro? Qual
sua vinculação com o iluminismo europeu? Mais: de que forma podemos
dicotomizar as ideologias existentes em nosso país? São esses os aspectos
fundamentais dessa aula introdutória ao pensamento político brasileiro do
Império.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: quais os três métodos de
estudo dos autores; as características da teoria política; o que é objetividade
possível; o que é a posição de centro dinâmico; qual é o ponto de vista formal e
substantivo do pensamento político brasileiro; o eixo cosmopolita e o eixo
nacionalista.

INTRODUÇÃO
A intenção do curso é fornecer os primeiros lineamentos de uma
história do pensamento político do Império. Império que começa, a rigor, em
1808, quando tem início o Estado brasileiro, e não em 1822. Em 1808, o Rio de
Janeiro se torna capital do Império luso-brasileiro. Portugal é dominado pelos
exércitos franceses, razão da transladação da capital de Lisboa para o Rio de
Janeiro. Então, o processo de construção do Estado brasileiro começa em 1808,
numa experiência que não teve paralelo em lugar nenhum do mundo, foi algo
muito peculiar. Iremos até a queda do Império, em 1889. Por isso mesmo,
talvez o último autor que devêssemos abordar seja Joaquim Nabuco 1. Joaquim
Nabuco é um ator político muito relevante naquela época, mas, ao mesmo

1
Político (1849 - 1910).
tempo, ele é o melhor intérprete do que está acontecendo. Ele é o melhor
analista político daquele momento. Joaquim Nabuco faz parte da tradição do
liberalismo, mas há os representantes do conservadorismo e eu diria dos
conservadorismos, porque há mais de um.

A ABORDAGEM
Para tratar da história do pensamento político, tenho que explicar a
abordagem que vou adotar aqui. Eu vou adotar a abordagem de uma disciplina
dentro da Ciência Política que se chama Teoria Política. Por isso, tenho
igualmente que explicar o que significa teoria neste caso. Quando pensamos
em teoria política, pensamos no estudos dos autores. No entanto, o estudo dos
autores pode ser feito de diversas maneiras diferentes. Eu posso dizer que
existe um método da Filosofia, um método da Ciência Política e um método da
História, a História propriamente dita, do campo da História.

Método da Filosofia
A abordagem da Filosofia, à maneira de Hegel, aquela da história da
filosofia deste autor, é uma abordagem centrada nos autores e nos textos,
sobretudo. É uma abordagem principalmente textual. Dispensa-se a
contextualização, imagina-se que as ideias têm validade própria, independem
do contexto, é possível criar um diálogo entre Platão e Habermas. É uma
abordagem textualista que está procurando alguma verdade que estaria ali
dentro. Ou, de maneira um pouco mais relativista, visões de mundo, sempre a
partir de um ponto de vista mais abstrato e geral. Essa é a abordagem da
Filosofia.

Método da História
Como é a abordagem da História? A abordagem da História é
exatamente a contrária. É uma abordagem que é contextualista e não presta
muita atenção, digamos, no “valor intrínseco” das ideias, se é que isso existe.
A História está preocupada em descrever o que é que Fulano de Tal está
pensando num determinado contexto. A abordagem da História é “no dia 29
de outubro de 1928, na sua coluna do jornal “Aurora Fluminense”, Evaristo da
Veiga escreveu um artigo em que criticava o governo imperial, afirmando que
o governo imperial tinha práticas absolutistas, etc…”. Isso é a abordagem da
história das ideias na História.

A Teoria
Eu estou caricaturando a Filosofia e a História só para dar uma espécie
de arquétipo. Eu estou tentando criar esses arquétipos da Filosofia e da
História das Ideias para explicar qual é o lugar da teoria. A Teoria está no meio.
A teoria está entre a abordagem da Filosofia, de um lado, e da História, de
outro.
Isso significa que tem uma abordagem própria? Eu não diria que ela tem
uma abordagem própria não, dentro da Ciência Política. Eu diria que a Teoria
oscila entre abordagens que se inclinam mais à Filosofia e abordagens que se
inclinam mais à História, mas nunca sem virar História e virar Filosofia pura.
A gente encontra isso na Academia brasileira, dentro da Ciência Política.

A realidade e o pensamento
Um segundo ponto que julgo necessário destacar do tipo de abordagem
é, e estou adentrando num terreno metodológico, a ideia de que não há
equiparação entre realidade e discurso. Não existe equiparação entre
pensamento e realidade. Não existe um pensamento que exprime o que a
realidade é exatamente. Esse é um ponto de vista científico. A realidade não é
transparente. Ela não se apresenta a nós com um grau de imediatidade que
imaginamos. A realidade não é imediatamente apreensível. Você precisa de
um esforço de conhecer essa realidade, de tentar sair dessa realidade, de fazer
um esforço epistemológico de se afastar dos seus preconceitos, de suas
próprios crenças ideológicas, de mundo, herdadas de família, seja lá o que for,
para tentar olhar de longe e tentar descrever o objeto de maneira fidedigna.
A gente sabe que isso, em certa medida, é impossível. É impossível ficar
completamente neutro a partir de determinado objeto, mas é que temos que
perseguir um certo ideal das Ciências Sociais weberiana, a maneira de Weber,
de uma objetividade possível. Objetividade possível é aquela que você
verdadeiramente se esforça o máximo para conseguir ver de longe e descrever
as ideias da maneira mais fidedigna possível.
A ideia mais fidedigna possível é aquela em que o autor, se fosse vivo,
leria e não diria que você foi infiel. Se lesse com isenção de ânimo também.
Você tem que tentar imaginar como o próprio autor descreveria o que ele está
pensando e o que ele está fazendo também, porque aqui, essa é outra
característica da abordagem da Teoria Política, a gente parte da ideia de que
quem produz pensamento político não são filósofos trancados em torre de
marfim imaginando um mundo ideal. Isso não existe. Isso é uma ficção. Até os
sujeitos que às vezes são descritos como pessoas que estão na torre de marfim,
não estavam na torre de marfim. Todos eles estão na luta política, querendo
influenciar mais ou menos. A própria ideia de que o sujeito é filósofo e está em
busca da verdade e não está querendo se meter na luta política, é uma
estratégia discursiva para melhor interferir na política. Esse é o ponto de vista
dessa abordagem. Então, não existe uma separação muito clara entre o autor e
o ator. O ator, o sujeito que está na luta política, o político militante, e o autor.
Vamos ver, inclusive, que quanto mais voltamos no tempo, mais isso está
misturado. Mais o autor é ator. No caso brasileiro então, de boa parte do
Império, em que você tem uma sociedade que é minúscula e que praticamente
não havia divisão do trabalho, vamos ver que os principais pensadores
brasileiros eram às vezes os líderes de partido, eram senadores, eram
Primeiros-Ministros. Eles próprios eram os líderes e eram os pensadores. Eu
posso dizer até que isso vai diminuir um pouco na República, não porque
mudou o regime, mas porque a sociedade brasileira está ficando um pouco
mais complexa e os papéis sociais estavam mudando um pouco. Essa divisão
só vai ficar mais claras nas décadas de 1920 e 1930, em que vai haver jornalistas
que não são deputados, que você começa a ter uma espécie de autonomia
desse campo intelectual. No período imperial, não tem.
Você pode objetar: mas então passou a ter distinção entre autor e ator?
Mais ou menos, porque o autor também é meio ator. E o ator, como tem que se
legitimar a partir das ideias, também é autor. Quando você tem um político que
publica, por exemplo, um artigo no jornal, ele é autor. Então, você não tem
dissociação entre uma coisa e outra. Podemos dizer que são uma espécie de
dois círculos com uma secante no meio. Tem gente que é puramente político
militante, tem gente que supostamente é mais autor. No fundo, está todo
mundo querendo influenciar o debate, em graus diferentes.

A questão das ideologias


Todas as ideologias reivindicam a sua condição de um discurso que
descreveria a realidade de maneira fidedigna. Um estudo das ideologias,
entendidas como visões legítimas de mundo, necessariamente não pode
partilhar disso, porque senão você não consegue descrever e também você
não explica por que existem outras visões concorrentes, persistentemente, da
história, se só tem uma que descreveria a realidade. Faz parte do discurso
ideológico reivindicar para si a descrição verdadeira dos problemas do mundo,
da natureza humana. Isso faz parte do jogo.

A posição de centro dinâmico


Temos de tentar ter um compromisso com a objetividade possível. Aí eu
volto a uma ideia muito bonita do Mannheim2. Mannheim, que foi um dos
primeiros pioneiros desse tipo de estudo, falava que o historiador das ideias,
ou sociólogo ou cientista social que busca-se explicar o pensamento político
tinha que se colocar do ponto de vista de um centro dinâmico. O centro
dinâmico é alguém que está no meio, em um lugar em que consegue ver
melhor o conjunto e que fosse capaz de conseguir oscilar de frente para trás e

2
Karl Mannheim, sociólogo (1893 - 1974).
da esquerda para a direita, para tentar o melhor possível. Repito: não existe a
ficção de que você vai conseguir essa transparência, mas a ideia é a de que, se
você estiver no centro dinâmico, você consegue ver as ideologias e ter um
compromisso em procurar descrevê-las em vez de se posicionar sobre elas,
num primeiro momento, você vai conseguir ter uma visão mais acurada e
mais próxima do que é essa realidade do que você teria enfurnado dentro de
uma das próprias ideologias e informado exclusivamente pela visão de mundo
que ela te oferece.
A gente tem que pensar também o papel das ideias aqui. Ideias não são
falsas impressões da realidade. Eu já vou explicar o que estou querendo dizer
com isso. Existe um certo cientificismo na Academia, em Ciência Política
principalmente, um exagero de positivismo, que afirma o seguinte: “eu quero
saber a verdade científica de como funcionam os partidos no Brasil”. Então, o
que as pessoas pensam, sobre os partidos políticos no Brasil, é irrelevante. É
irrelevante e é perigoso, porque são preconceitos, visões a-científicas que
podem prejudicar meu próprio estudo. Isso é uma posição extrema. Do outro
lado, a outra posição extrema é aquela que diz que as ideias reproduzem a
realidade ou são as únicas responsáveis pela modelagem da realidade. Isso é
uma coisa que parece superada, mas recentemente essa ideia meio que voltou,
a ideia de que é possível ter um conhecimento e que você explica o processo
social não pelo processo social, mas simplesmente pela prevalência de certas
ideias ou não na sociedade, como se não existisse economia, mudança de
sociedade agrícola para comercial, da comercial para industrial. Como se tudo
fosse explicável a partir exclusivamente das ideias. Essa abordagem tem que
evitar os riscos de um e de outro. As ideias não são falsas impressões da
realidade. As ideias são versões da realidade. Então, elas contém, todas, uma
parcela de verdade, eventualmente, de fidedignidade, e outras que não são.

O papel das ideias


Outro ponto importante é que as ideias não são passivas. Elas não são
reflexos só da realidade. Elas ajudam a modelar a realidade também, porque
quando eu acredito em alguma coisa e eu tenho força política para fazer aquilo
acontecer, a realidade muda. Isso não significa que a realidade fica igual à
minha ideia, mas certamente eu também ajudo a criar fatos na realidade que
fazem com que a realidade mude. Estamos vivendo um período em que isso é
óbvio. O papel das ideias voltou a ser central no debate político. A gente pode
apreciar como é que as crenças mudam a política também. As crenças,
exclusivamente, não mudam toda a política, não é o conjunto dos fenômenos
políticos que é modificado por isso, são ações das pessoas também, embaixo.
São processos sociais. Então, as ideias contam. Elas são tudo, mas elas contam,
elas ajudam a modificar a realidade. O que não significa, repito, que a realidade
possa ser subsumida na ideia.

O contextualismo linguístico bem temperado


A abordagem que vou procurar tratar aqui, mais metodológica mesmo,
é a que posso chamar de contextualismo linguístico bem temperado. O
contextualismo linguístico é um assunto complicado, eu vou ser rápido e vou
pegar só os pontos que me interessam. O contextualismo vocês já sabem o que
é, é o contrário de textualismo. O contextualismo bem temperado é aquele que
procura explicar o texto levando em consideração o que os contextos políticos
do texto significavam naquele tempo e não hoje, procurar mostrar que cada
ator está se movendo dentro de um contexto que não necessariamente é
idêntico ao nosso, as palavras, às vezes, significam, na época, outras coisas. Por
isso, temos que estar atentos aos significados dos conceitos e, eventualmente,
ao caráter polissêmico dos conceitos, porque quanto mais importantes os
conceitos são no debate político, na luta política, mais o significado deles é
disputado. Por exemplo: liberalismo, Estado, democracia, lei, natureza,
homem. Se eu perguntar a vocês o que é natureza, cada uma vai responder
uma coisa diferente. Tudo isso depende de interpretação. Por exemplo: na
década de 1930, você tem os autoritários, como Oliveira Viana, que tinha uma
definição do que era democracia que não coincidia com a definição que os
liberais da época, como o Armando Sales Oliveira, está definindo como
democracia, porque, para o liberal, democracia é liberal. Para o autoritário,
pode ter um pedaço de liberalismo ou não, dependendo do tipo de
conservadorismo que seja autoritário.
Todo tipo de conservadorismo é autoritário no seguinte sentido: acha
que é preciso que tenha autoridade na sociedade. Não necessariamente que
alguma coisa que seja incompatível com o liberalismo ou com o Estado de
Direito.
Você tem uma extrema direita na década de 1930, conservadora,
autoritária, que é ligada à Igreja Católica da época, de caráter integrista, você
tem que pensar o que seria uma democracia. Aí é uma democracia que não é
liberal. Você pode perguntar: “mas qual é a verdadeira democracia?”. No plano
puramente linguístico, só precisamos detectar o que significa democracia na
boca de cada uma dessas famílias intelectuais. Então, a gente tem que estar
atento a isso a respeito dos conceitos. Segundo, é importante o contexto
também, mas eu procuro não ficar muito colado no contexto, para não cair no
negócio da História e procuro tentar explicar, especificamente, a história do
pensamento político do Império e o desenvolvimento da hegemonia
conservadora, que existe no começo, e depois da liberal, a partir de 1860,
procurando relacionar o debate com a agenda da construção do Estado
Nacional.

As ideologias políticas
No que diz respeito a ideologias políticas, olhando muito de longe,
podemos ver três ideologias hegemônicas na Modernidade.
Conservadorismo, liberalismo e socialismo. Sempre falando como arquétipos.
Antes do século 18, havia versões antigas do liberalismo e do
conservadorismo. No caso do liberalismo, havia o republicanismo cívico. O
liberalismo, em alguma medida, é uma espécie de versão atualizada do antigo
republicanismo romano adaptado à sociedade comercial, à ideia de
Modernidade. Vivemos uma época diferente, iluminismo e tal.
O conservadorismo - sempre falando de maneira geral - também
representa uma versão atualizada de certos tipos de pensamento que existiam
antes, como o absolutismo, adaptado também à sociedade comercial, à ideia
do iluminismo, das luzes, da mudança que se operou na forma de pensar o
processo histórico. E o socialismo é o mais novo, o mais recente que aparece,
para valer, na segunda metade do século 19. O conservadorismo e o
liberalismo modernos aparecem antes.

A AGENDA POLÍTICA DO IMPÉRIO


Mas, voltando ao assunto do contextualismo, que estão relacionados
com essa questão das ideologias, a gente pode fazer um esquema aqui para
tentar entender a história do pensamento político brasileiro que procura
vincular o conservadorismo à necessidade de construir um Estado Nacional,
porque quem diz conservadorismo diz autoridade. Quem diz
conservadorismo, diz ordem. Mesmo que compatível com o liberalismo. É
preciso conciliar a liberdade com a ordem, é preciso conciliar o progresso com
a autoridade. Aí você vai ter a agenda política do Brasil, naquele momento, tem
que estar mais preocupada com a ordem, com a autoridade, do que com a
liberdade, porque é preciso construir um Estado que não existe. Isso explica,
de alguma maneira, a hegemonia conservadora, que existe até 1860, 1870. Isso
também porque, depois de 1860, 1870, há um processo de progressiva
liberalização da sociedade brasileira.
De alguma maneira, é porque o Estado Nacional criou a sociedade
brasileira, e ela aparece, um pedaço dela, alguma coisa que reivindica ser a
sociedade nacional, uma sociedade nacional brasileira, porque você tinha a
sociedade de São Paulo, você tinha a sociedade no Rio, você tinha a sociedade
em Pernambuco, mas não era uma sociedade nacional. A ideia de Brasil não
existia. Isso foi uma construção do Segundo Reinado com elementos do
Primeiro também, claro. Mas assim, isso foi uma obra do Segundo Reinado.
É só quando esse Estado se sente tranquilo e se cria uma sociedade
nacional, é que você pode reivindicar a ideia de que o Estado tem que obedecer
a essa sociedade, que ele não tem autonomia. Começa a ter a percepção de que
existe algum mercado. Quando você tem a percepção de um mercado e de uma
sociedade, você cria as condições que tornam possível a liberalização da
sociedade. Isso do ponto de vista ideológico.
Do ponto de vista político, esse movimento se exprime num processo
que eu chamo de oligarquização. Oligarquização, aí, não necessariamente no
sentido negativo. A oligarquização é a ideia de que o poder que estava
concentrado em uma mão, vai passar a ser dividido por algumas pessoas, por
uma certa elite de pessoais.
Por derivação, você já está explicando por que a República Velha vai ser
uma república oligárquica. A gente pode pensar o sistema oligárquico, repito,
não numa chave de juízo negativo. Simplesmente, a ideia de que a sociedade
está se complexificando, tem cada vez mais gente, a sociedade está se
desenvolvendo, está ficando mais rica, está ficando mais instruída e com isso
há uma demanda de que o poder seja partilhado por mais gente. Tanto que,
depois, haverá uma demanda pela democratização. E vai aparecer a ideologia
socialista no Brasil. Quer dizer, as ideologias socialistas, porque ali também é
um ninho de marfagato, tem várias tendências umas diferentes das outras,
como vamos ver aqui.
No curso sobre a história do pensamento político do Império, a gente
consegue fazer esse tipo de articulação. O problema que vai dominar até 1860,
é o problema da construção da ordem nacional. Que tipo de ordem nacional a
gente vai construir, com que materiais, sobretudo do ponto de vista ideológico,
qual é o tipo de conservadorismo, portanto, que vai prevalecer nessa época e
por que é que, depois, vai haver uma virada liberal. Alguns vão achar que foi a
era de ouro do liberalismo brasileiro. Talvez tenha sido mesmo, que foi a
década de 1870, 1880. Isso é uma coisa sobre a qual podemos conversar em
uma outra ocasião.
Essa é a época em que apareceram as três figuras acerca das quais existe
menos divergência sobre quem tenha sido os founding fathers brasileiros.
Não que tenham sido eles, mas o próprio processo político brasileiro, com as
suas ambiguidades, explica por que saíram esses três nomes que são aqueles
que são os mais difundidos. Barão do Rio Branco 3, Rui Barbosa4 e Joaquim
Nabuco5. A respeito de Dom Pedro II6, eu não tenho nenhuma dúvida sobre o
que foi que ele fez, mas tem gente que reclama acerca do Império, do
escravismo. Enfim, são personalidades sujeitas a discussões. Getúlio Vargas 7,
nem se fala, embora ele tenha sido um elemento central nessa história
também. Você fala de Deodoro8, uns dizem que proclamou a república, outros,
que era um velho gagá que não sabia o que estava fazendo. Há polêmica a
respeito de todos e cada ideologia tem os seus heróis. Esses heróis são criados
pelos outros.
O caso brasileiro tem um aspecto também muito interessante, porque
como nós fomos monarquia constitucional e depois viramos república, parece
que o país nasceu duas vezes. Mas, como diria o Nabuco, isso é um equívoco.
País nasce uma vez só. Enfim, foi reivindicado que ele nasceu duas vezes. Como
você equilibra? Quem é o founding father aí? É Deodoro? Lopes Trovão?
Benjamin Constant? Campos Sales? Rui Barbosa? Ou é o José Bonifácio,
Marquês de Caravela, Dom Pedro I, Visconde de Cairu? Quem são os founding
fathers? Procuramos fugir afirmando que há os fundadores do Império e os
fundadores da República. Parece que o país não é um só, parece que eram dois
países diferentes. Isso é uma coisa problemática, mas eu acho que é isso que
explica o fato de que existe um certo consenso entre o Barão do Rio Branco,
Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Os três eram monarquistas e os três serviram
na república. É uma espécie de conciliação que torna possível um consenso
maior a respeito dessas personalidades. Isso não tem nada a ver com o curso,
isso foi só um comentário lateral, porque daqui sai muitas coisas. Começamos
a pensar em um monte de coisas.

3
Advogado (1845 - 1912).
4
Polímata (1849 - 1923).
5
Político (1849 - 1910).
6
Imperador do Brasil (1825 - 1891).
7
Presidente do Brasil (1882 - 1954).
8
Deodoro da Fonseca, político (1827 - 1892).
O PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO
O que é pensamento político brasileiro? A gente pode tentar entender
o que é pensamento político brasileiro. Eu gosto de falar essas coisas, porque a
gente sempre dá o curso da seguinte forma: vamos imaginar que o assunto seja
pensamento político brasileiro, “pensamento político, muito bem, vamos
começar então. Pensamento político brasileiro, sua primeira grande
expressão é José Bonifácio ou o Visconde de Cairu. O Cairu pensava..”. Pera aí,
qual é a especificidade do pensamento político do Brasil, existe alguma? Tem
alguma coisa que diferencia Teoria Política do pensamento brasileiro? Por que
você chama Teoria de Teoria e outro negócio de pensamento? Essas coisas não
são explicadas, é tudo naturalizado. Você fica sabendo que Fulano pensava isso
e Ciclano pensava aquilo outro e acabou.
A gente tem que tentar ter uma ideia do todo e, para isso, você tem que
ter uma espécie de um instrumental metodológico prévio que procura
explicar as coisas de um ponto de vista maior. Então, vai tentar entender o que
é pensamento político brasileiro do ponto de vista formal. Você pode entender
essa expressão de um ponto de vista formal e de um ponto de vista material ou
substantivo.

O ponto de vista formal


Do ponto de vista formal, podemos entender que o pensamento político
brasileiro é, ao mesmo tempo, um objeto e uma disciplina. O objeto é qual? É o
conjunto de reflexões políticas produzidas por autores brasileiros ou por
estrangeiros a respeito do Brasil, que foi produzido ao longo da existência do
Brasil entendido como tal, seja de 1822 com a independência para cá, seja de
1808 para cá. Ou, antes, na forma de um pensamento luso-brasileiro, embora
eu ache que não faz muito sentido, antes de 1822, separar o pensamento
português do brasileiro. É preciso que se estudem juntos. Eu estou publicando
um livro que até 1808, eu junto os dois. Você procura ver o que estava sendo
pensado lá e como isso reflete aqui. Então, isso é, do ponto de vista formal, o
pensamento político brasileiro como objeto. É o conjunto de reflexões políticas
que foram feitas por autores, atores, políticos brasileiros dos últimos 200 anos.
O pensamento político brasileiro também pode designar uma disciplina.
Você pode dizer assim: “o pensamento político brasileiro sempre esteve
preocupado com o problema da liberdade”. Neste caso, você está tratando o
pensamento político brasileiro como objeto. Quando você está falando assim:
“rapaz, fiz um curso sensacional de pensamento político brasileiro...”. Quando
você está falando pensamento político brasileiro neste sentido, você não está
falando do objeto, você está falando da disciplina, que é uma espécie de um
curso de pensamento político brasileiro, é a história do pensamento político
brasileiro. Não vamos cuidar da disciplina, porque isso aqui é um curso sobre
a disciplina, então a gente não precisa discutir, vamos focar, na verdade, na
questão do pensamento político brasileiro como objeto, a coisa em si.
Como objeto, podemos entender o pensamento político brasileiro num
sentido amplo e num sentido stricto. Você veem que, nessas classificações,
reaparece o jurista da formação, essa coisa de ficar classificando.
Objeto no sentido amplo
No sentido amplo, o pensamento político brasileiro é isso que referi a
vocês. É o conjunto de ideologias ou de reflexões políticas produzidas por
brasileiros ou por estrangeiros a respeito do Brasil ao longo da história
brasileira e, antes de brasileira, luso-brasileira. Isso é no sentido amplo.
Qualquer coisa potencialmente entra aí. Uma coluna do Merval Pereira no
“Globo”, faz parte do pensamento político brasileiro no sentido amplo. Os
tweets do professor Olavo de Carvalho fazem parte, também, do pensamento
político neste sentido. E aqui você não tem preconceito não. Não são livros,
tratados, manuais. São discursos, às vezes são poemas, são canções. Você pode,
por exemplo, fazer uma análise do pensamento político que está inscrito na
letra do hino nacional brasileiro. Entra toda e qualquer expressão de visão de
política, de mundo, a respeito do Brasil. Seja de diagnóstico, seja de
prognóstico. Isso como objeto no sentido amplo.
Objeto no sentido stricto
Você também pode entender pensamento político brasileiro num
sentido stricto. Num sentido stricto, corresponde a essa ideia que está mais
difundida de que existe um conjunto de autores que são chamados de “Os
intérpretes do Brasil”. Autores que corresponderiam a um certo cânone.
Como existe um cânone de autores que você tem que ler em literatura, se você
quiser ser alguém na vida, ou um cânone de autores da filosofia. Essa ideia de
cânone é uma ideia bastante hegeliana. Cânones de filosofia: Platão,
Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino. Se tem uma ideia de que
haveria um cânone de autores clássicos do pensamento político brasileiro. A
ideia de intérpretes é um pouco dúbia ainda, porque é muito interdisciplinar.
Às vezes, entra economista, às vezes, entra sociólogo. A expressão “Intérpretes
do Brasil” é mais usada na sociologia, em que procuram ver, nesses autores,
uma espécie de primeiros formuladores de um esboço do que seria uma teoria
sociológica brasileira ou, como a maioria na sociologia fala, um pensamento
social brasileiro ou um pensamento social no Brasil. É neste sentido que me
refiro. Então, existiria um cânone de autores clássico. Os intérpretes do Brasil
está bem difundidos. Você abre um livrinho dos intérpretes do Brasil, em
geral, os sociólogos começam do Oliveira Viana 9, quer dizer, da publicação de
“Populações Meridionais do Brasil” 10 em 1920. Isso também depende do lugar.
Na USP, por exemplo, tem-se horror a certos autores, digamos assim,
conservadores “estatistas”. Você tem que ensinar só aquilo que tem a ver um
pouco com a preferência ideológica do departamento de Sociologia, que seria
um pensamento progressista. Neste caso, começa-se por Caio Prado, depois,
estuda-se Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes. Também tem
isso. A gente tem que chamar atenção que cada banda tem o seu cânone. Cada
ideologia também tem o seu cânone. Na Academia, isso se expressa um pouco
não só do ponto de vista ideológico, mas também se expressa do ponto de vista

9
Professor (1883 - 1951).
10
É uma das referências tomadas pelo economista Luiz Alberto Machado no artigo
“Interpretações do Brasil” para oferecer uma visão geral das principais correntes de
interpretação do Brasil e também dos principais debates que permearam a nossa história
política, econômica, cultural, social, antropológica.
das tradições institucionais. Clássicos, às vezes, do Rio, não são clássicos em
São Paulo. Os clássicos da Capital, ligada à construção do Estado, não são os
clássicos de outros lugares. Ou certos autores são mais valorizados em certos
lugares do que outros. Por exemplo, você vai para o nordeste, de repente,
insere o Câmara Cascudo, que era um antropólogo avant la lettre, que era
folclorista, na verdade. É um homem que ninguém incluiria no cânone aqui.
No nordeste, há muito mais ênfase em autores da escola do Recife, como
Tobias Barreto, Sílvio Romero, que a gente estuda menos aqui no sudeste.
Então, tem muitas clivagens. Há clivagens geográficas, há clivagens
institucionais, há clivagens ideológicas. Tudo isso concorre na montagem do
cânone. É por isso que não são sempre os mesmos autores que aparecem nos
cânones e os cânones variam. É bom, por isso, perder a visão ingênua,
filosófica, da ideia de que existe um cânone de clássicos consagrados pelo
tempo, porque, ao longo do tempo, sempre teve gente divergindo e com
diferentes tipos de visão a respeito do mundo, da vida e do Brasil. Cada um
deles tem um cânone. Alguns autores aparecem em todos, alguns, não. Então,
é preciso relativizar, a partir dessa percepção da pluralidade da cultura política
brasileira, essa questão do cânone também. O cânone varia de acordo com
uma série de clivagens. Seja o que for, isso seria o pensamento político
brasileiro no sentido stricto. Eu não sou exaustivo, mas vou tentar ser
exaustivo aqui.
Meu cânone de pessoas: Tomás Antônio Gonzaga11 - se você quiser pegar
o período colonial -, que tem um tratado de Direito Natural. Visconde de Cairu,
José Bonifácio. Azeredo Coutinho, para ficar só no comecinho do Brasil.
Depois, você tem: o Marquês de Caravelas, o Marquês de Queluz. Do lado dos
radicais, há Frei Caneca, Cipriano Barata. Do lado dos liberais moderados, você
tem o Evaristo da Veiga, que é o primeiro grande liberal atuando no Brasil.
Antes dele, atuando em Londres, tem Hipólito da Costa. Você vê como o meu
cânone é imenso. E por aí vai. Mas vamos ficar mais no plano mais chão. Quem
são os clássicos? José Bonifácio, Evaristo da Veiga, o Visconde de Cairu, o

11
Jurista (1744 - 1810).
Visconde do Uruguai, eu incluiria Bernardo Pereira de Vasconcelos, que
realmente era um gênio, como veremos aqui, ligado a Visconde do Uruguai.
Há Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José de Alencar. Você pode dizer: “José de
Alencar? Mas ele não era escritor de literatura?”. Também, mas ele era
político, ele era deputado, tentou ser senador, tentou ser líder intelectual do
partido conservador do Império, tentou criar um novo conservadorismo no
Brasil. Isso para ficar só no Império. Você também tem os homens da geração
cientificista, que eu mencionei, Tobias Barreto, Sílvio Romero. Na República,
tem Assis Brasil, Campos Sales, Alcindo Guanabara. Repito: o meu cânone é
muito comprido. Esses autores que você teria que ler, isso que seria o
pensamento político brasileiro no sentido stricto. Se a gente fosse reduzir a
dez: Oliveira Viana, Alberto Torres, Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro,
Florestan Fernandes. No campo conservador, você pode pegar o João Camilo
de Oliveira Torres. E aí você vem até hoje. Se bem que hoje, por definição, não
é clássico. Para ser clássico, tem que preencher um requisito muito
importante que é morrer. Está claro o que é o pensamento político brasileiro
do ponto de vista formal?
Do ponto de vista Substantivo
Agora, entramos no ponto de vista substantivo. Aí é que é fogo. Por que
a gente o pensamento político brasileiro de pensamento? Em princípio, a
questão parece meio boba, porque, afinal, pensamento, teoria, filosofia, tudo a
mesma coisa, né? A gente já viu um pouco que não é, mas vamos ficar dentro
da Ciência Política. Quando você fala em pensamento, internacionalmente,
você, às vezes, tem um sentido que é igual à filosofia. Filosofia e pensamento
não têm distinção, não há uma razão específica pela qual você está
empregando essas palavras, mas, em outros lugares, às vezes você encontra a
expressão pensamento para designar um tipo de teoria política que se
produziu num âmbito determinado de nação. Você não fala teoria política
inglesa ou teoria política britânica, você fala pensamento político britânico,
pensamento político alemão, pensamento político italiano.
Mas aí tem uma coisa engraçada, que tem a ver com o que eu vou falar
agora. Quando eles estão falando deles, em geral, eles falam teoria política. É
muito mais raro você encontrar pensamento político britânico ou francês ou
americano do que você encontrar um cânon de teoria política em que 90% dos
autores são todos franceses e ingleses e alguns alemães e alguns italianos. Eu
estou antecipando um pouco o argumento. Lá, eles acreditam que o seu
pensamento local é universal, com muito eurocentrismo, a ideia de que “a
civilização é a Europa, então tudo que a gente produz aqui é universal”. Isso foi
uma consequência do iluminismo, como a gente vai ver.

Por que pensamento?


Aqui, não. A gente pode falar que o pensamento político brasileiro e o
pensamento político tem a ver com o Brasil, mas eu não acho que essa é a razão
pela qual a gente chama o pensamento de pensamento. Quando você vai ver
quando se começa a estudar alguma coisa de pensamento brasileiro, que é
depois de 1930, e explode, particularmente na década de 1950, é que surge a
expressão pensamento social no Brasil. Essa expressão pega essa análise.
Quando você percebe por que pensamento, porque você não consegue
classificar aquilo como sendo filosofia, como sendo ciência. Porque como a sua
cabeça também é eurocêntrica, embora você não esteja na Europa, você tende
a achar que, no Brasil, não se produziu teoria e não se produziu ciência ou
filosofia, porque, afinal de contas, aqueles homens que você estuda no cânone,
nenhum deles nasceu no Brasil. Então, você tem uma ideia subjacente de que
a produção de filosofia, ciência ou teoria é um atributo do hemisfério norte e,
no hemisfério norte do Atlântico Norte. Ou ali para Alemanha, para Itália.
Acaba por ali. Então, é pensamento porque você não consegue classificar isso.
E, também, quando alguns filósofos que foram os primeiros que estudaram o
pensamento brasileiro, Miguel Reale, Antonio Paim, Djacir Menezes, quando
eles olhavam para aquilo ali, eles tentavam entender aquilo dentro da caixa da
filosofia hegeliana. Eles olhavam e falavam assim: “pô, mas isso aqui tem muita
discussão de o que seria a ética, ou uma espécie de uma filosofia social, tem
muito pouco de metafísica”. Aquilo parecia que era filosofia, acabaram
chamando aquilo de pensamento. E é social porque o que predomina é social.
E olha que esse pessoal tinha um ânimo nacionalista para estudar aquilo. O
problema é que eles pensavam no modelo de filosofia que era igual aquela
brincadeira de criança no jardim de infância. Você está tentando enfiar o
redondo no quadrado. Você precisa de um buraco que corresponda à forma
esférica da peça. Então, o que acontece? O próprio livro que foi feito para
desmentir a ideia de que não tinha filosofia no Brasil, que diz que é o clássico
do pensamento, digamos assim, enquanto história da filosofia brasileira, do
Brasil, é um livro do professor Antonio Paim, da década de 1960, que se chama
“História das ideias filosóficas no Brasil12”. O próprio título já é enunciativo,
quer dizer, não é uma história da filosofia brasileira, porque o Brasil não tem
filosofia, porque a filosofia, por definição, tem que ser universal.
Curiosamente, só os alemães habitam essa terra que se chama o universal. Os
alemães, os ingleses, os franceses e, às vezes, um ou outro italiano. Como não
tem filosofia no Brasil, não ter originalidade, que é outro critério já muito ruim
de análise, a ideia de originalidade, porque, a rigor, não existe nada que seja
original. Nada nasce do repolho. Tudo nasce num certo contexto ideológico,
político, cultural. “A história das ideias políticas no Brasil”, porque o Brasil não
tem filosofia, então é o reflexo do universal que foi produzido na Europa, no
Brasil. É o eco daquilo que chegou, da Europa, no Brasil. Essa era uma ideia
muito difundida. Isso também chegou na Sociologia, nas Ciências Sociais,
quando isso começou a ser estudado nas Ciências Sociais na década de 1970.

O pensamento social no Brasil


Em 1980 ou 1981, aparece um grupo de trabalho, que existe até hoje, é
muito forte, muito prestigioso nas Ciências Sociais brasileiras, que se chama
pensamento social no Brasil, grupo de trabalho de pensamento social no
Brasil, que reúne parte significativa da nata dos estudiosos. É um grupo

12
Reflexão sobre o pensamento brasileiro do passado, revivendo-o de algum modo, uma nação
tomada pela plena consciência de si como algo de comum, como um projeto.
interdisciplinar, mas o que interessa, de novo, é o nome. Você se debruçou
sobre esse material aqui e você olha e diz assim: “eles estão discutindo
sociedade, mas isso não é universal, então isso não é teoria sociológica, mas é
uma espécie de tentativa de aplicação da teoria sociológica à realidade
brasileira”. Entenderam? Você não questiona que a própria ideia de teoria é
uma ideia que é inventada na Europa e tem um cunho eurocêntrico. Quem
escreve lá faz filosofia, faz ciência, quem escreve aqui, é como se fosse
destinado simplesmente a aplicar a ciência, que é universal, à realidade
brasileira. O Brasil só entra com material etnográfico, para não dizer outra
coisa. Essa ideia de que existe uma filosofia, uma ciência que são universais e
que a gente não precisa produzir nenhum outro tipo de reflexão adicional, é só
entrar com material brasileiro para processar aquilo ali e sai alguma coisa.
E também a palavra social. Repara que social não é sociológico. Social é
uma coisa difusa que pode ser político, pode ser literário. Você pode estudar
Portinari, você pode estudar o pensamento do Florestan Fernandes, você pode
colocar uma porção de coisas, pode fazer sociologia dos intelectuais ali dentro,
porque ela ter um caráter meio amorfo mesmo. Alguém diria que o Brasil tem
esse caráter meio amorfo. Acaba sendo uma espécie de pensamento cultural.
E no Brasil, porque você, de novo, repete a ideia de que não tem brasileiro. Eu
não acho que hoje seja assim não, mas quando o grupo foi criado, esse nome
queria dizer isso. O que importa aqui não é julgar pessoas, mas é tentar
entender uma certa percepção de que a gente chama isso de pensamento
porque, esse lugar aqui, é o lugar que não produz filosofia, nem ciência, nem
teoria.

Atrasado e periférico
Agora, por que que não produz? Eu estou repetindo o que eles pensam.
Porque isto aqui é um lugar periférico e atrasado. A identidade do Brasil como
sendo um lugar periférico e atrasado foi constitutiva da identidade nacional
brasileira, desde antes da Independência. O Brasil não é igual à Portugal neste
aspecto, não é idêntico à Portugal, mas é bom lembrar que Portugal era um dos
países mais atrasados da Europa, passou a ser considerado, no século 18, um
dos países mais atrasados da Europa pelo iluminismo.
Aí a gente tem que entender como é que o pensamento iluminista, a
maneira como ele pensou a história e o desenvolvimento da civilização
afetaram a forma como os portugueses passaram a ver Portugal e como os
brasileiros passaram a se perceber, como parte de Portugal e, depois, como
nação independente, nesse aspecto de “estamos num lugar atrasado e
periférico do mundo”. Essa sensação de estar sofrendo de um duplo
descolamento. Um descolamento que é espacial e um descolamento que é
temporal. O descolamento temporal, o atraso, porque a ideia é de que tem
algum lugar que está na frente e que aquele lugar é o lugar normal, é o lugar
que a gente devia estar e não está. Então já estamos com problema. Aí
começam os problemas de origem, que, em boa parte, são problemas
ideológicos também. São problemas inventados, um pouco. O segundo
problema que é descolamento espacial. Existe um centro, existe uma periferia,
a gente está na periferia, então, isso explica uma situação de inferioridade em
que nós nos encontramos.
Temos que entender como é que foi criada essa ideia de centro e
periferia e de atraso ou adiantamento que, no fundo, não é nem adiantamento,
é presente. Que existe um lugar do mundo que, ao mesmo, é o centro do
mundo e é o momento adequado da história, que seria a Europa e,
eventualmente, os Estados Unidos, um pouco depois. E existe o resto. O resto
está atrasado e está periférico. Isso é montado como? Isso é montado no
iluminismo.

O iluminismo
Eu não vou dar aula de iluminismo aqui, isso é complicadíssimo, porque,
a rigor, não existe iluminismo, existem iluminismos. Tem iluminismo
britânico, iluminismo alemão, tem iluminismo italiano, tem iluminismo
francês e tem até iluminismo ibérico, que compartilha com o italiano algumas
características. A gente vai falar um pouco de iluminismo luso-brasileiro.
Qual é o problema central aqui? Até o iluminismo, você tinha uma
percepção genérica de que a Europa toda pertencia a res publica christiana,
que era a república ou a comunidade cristã, que haveria um certo
pertencimento comum a uma tradição que remontava ao Império romano ou
que remontava ao catolicismo. Na verdade, remontava às duas coisas. Então,
você tinha o direito comum, que era o direito romano relido que vigorava mais
ou menos em toda parte, a despeito das divisões políticas tênues que existiam
na época, e que todo mundo tinha uma mesma herança. Essa herança,
naturalmente, remonta a um certo passado, também remonta a uma
concepção tradicional de vida. Quando o comércio começa a se desenvolver
nos séculos 17 e 18, você começa a ter uma mudança da sociedade em que você
começa a se perguntar… porque, até então, você pensava assim: o modelo do
presente é o passado. Não existiu melhor constituição do que a romana. Não
existiu melhor sociedade do que a romana. Ou, não existiu outro padrão de
conhecimento tão verdadeiro quanto o católico ou quanto o religioso, para não
ficar só no católico.

Um novo período de tempo


Quando vem o iluminismo, vem uma sensação de que a gente está
vivendo um período novo. Um período novo que parece que não corresponde
àquilo que os antigos descreveram que era a Antiguidade Clássica. Aparece a
famosa querela dos antigos e dos modernos. Quem eram os mais perfeitos, os
modernos ou os antigos? Você comparava os escultores, os escritores, uma
coisa que seria impensável antes, porque a ideia de que presente ou é a
continuação do passado ou que o modelo de perfeição estava no passado. Na
Modernidade, não. A Modernidade é uma ideia de que você começa a viver um
período novo e esse período parece que é melhor, inclusive, do que o passado,
porque as pessoas estão vivendo melhor, elas estão morrendo menos, a Europa
estava produzindo mais riqueza. O iluminismo começa um pouco dessa
percepção de que a gente está vivendo um período inédito na história do
mundo e de que as coisas estão melhorando. Isso vai se refletir em um monte
de coisa. Na própria Modernidade, no aparecimento das ideologias modernas,
a Revolução Francesa, a codificação, tudo que você pode imaginar vem daí.
Mas, o ponto que nos interessa aqui é tentar entender como é que o
iluminismo mudou a maneira de pensar o tempo. A passagem do tempo.
Porque, no mundo anterior, você tinha duas maneiras de pensar a passagem
do tempo. Isso tem diretamente a ver com a nossa percepção aqui. Parece que
não tem, mas tem.
Você pensava o tempo como sendo, no paganismo romano, ou circular,
isso você encontra em Políbio, você encontra isso em Maquiavel, é uma
maneira natural de pensar a passagem tempo. Tudo estava sujeito à
corrupção, as formas de governo mudavam, mas você acabava voltando para o
começo. Você pensava que a natureza humana era estável e era por isso que
você, como político, podia aprender com a história, porque como o homem
sempre foi o mesmo em toda parte, e amanhã eu vou ter uma batalha em
Waterloo, eu posso imaginar como Napoleão vai reagir estudando a história
da guerra do Peloponeso, a história dos grandes chefes militares da Guerra dos
Trinta Anos ou dos Setes anos, entenderam? Ou Frederico da Prússia, como
Frederico da Prússia agiria? A história é mestra da vida, porque a história conta
como funciona esse círculo em que a novidade só acontece dentro de certos
limites, porque o que predomina é uma repetição com roupas novas. Isso era
uma maneira de pensar.
A outra maneira de pensar o tempo era a maneira religiosa,
escatológica, de que o mundo está decaindo, maneira tradicionalista que vai
ser repetida pelo pensamento reacionário, depois da Revolução Francesa.
Pensamento reacionário aí, é tecnicamente reacionário. Aquela ideia de que o
mundo está decaindo desde que Adão foi expulso do paraíso. A história da
Bíblia, de alguma maneira. É uma interpretação que alguém como Bossuet vai
fazer no começo do século 18 sobre a história como providência divina. Como
a gente vai decaindo, isso explica, por exemplo, Noé, você explica uma
inundação. A história da arca de Noé que a humanidade decaiu tanto, Sodoma
e Gomorra, que você quer acabar com a humanidade. A humanidade continua
decaindo e o que a gente tem que fazer é cuidar da salvação da própria alma
porque o juízo está chegando aí, o juízo está próximo e o mundo vai acabar.
Essas eram as duas maneiras de pensar a passagem do tempo. Com o
iluminismo, isso muda. Por quê? Porque, em primeiro lugar, você começa a
perceber que a sociedade está mudando como ela nunca foi. Então, ela sai do
círculo, se é que vocês me entendem. Ela sai do círculo. Em vez de você pensar
o tempo como círculo, vira uma espécie de uma seta que descreve um
movimento retilíneo uniforme para cima. Ou seja, você tem um vetor que seria
qualidade e você tem um vetor que seria o tempo. Quanto mais o tempo passa,
mais a humanidade progride. Aí aparece a ideia da passagem do tempo como
progresso histórico, como progresso. Esse progresso é medido do ponto de
vista moral e é medido do ponto de vista tecnológico, material. Repare: nós
estamos vivendo uma época de esclarecimento, o homem cada vez mais
consegue se emancipar dos seus preconceitos. O iluminismo defende um tipo
de conhecimento científico que é necessariamente crítico da religião e é
crítico, até certo ponto, da tradição, neste caso, depende do autor. Os homens
estão melhorando as suas condições. A gente tem o conhecimento do
funcionamento do universo que nós não tínhamos antes, nós temos um
conhecimento da fisiologia humana que nós não tínhamos antes. Sobretudo,
nós temos uma noção da física, Newton é o grande nome aí, porque explica,
através de algumas leis gerais, o funcionamento da natureza, dos corpos
celestes. Com isso, você começa a acreditar que é possível conhecer tudo, que
o conhecimento não tem um limite pré-determinado pela vontade de Deus.
Insondáveis são os desígnios do Senhor. E que é possível ir adiante. Você não
joga Deus fora não. Deus vai acompanhando o negócio durante um bom tempo.
Deus criou o universo através da física newtoniana. Quer dizer, não foi Newton
que criou a física, foi Deus que criou a física. Você começa a ter um certo
otimismo e começa a ver, na verdade, essa ideia de que a gente vai melhorando
cada vez mais ao longo do tempo, você tem um progresso que, depois, você vai
chamar isso de evolução, depois você vai chamar isso de desenvolvimento, sei
lá o nome que vocês vão chamar, mas é a ideia de progresso.
O problema do progresso
O problema é que esse progresso não se distribui de maneira igual no
globo. E essa é a primeira vez que a gente começa a tentar pensar a ideia de
uma história universal no sentido Moderno. Porque as histórias, na verdade,
eram histórias locais ou nacionais ou histórias de reis, de generais. A história,
na verdade, tinha uma função pedagógica. Era você contar os bons exemplos e
os maus exemplos de homens que se sucederam ao longo do tempo, para
gente emular os bons e refugar os maus exemplos, como, por exemplo, “A
história da América portuguesa” do Rocha Pita de 1720. É uma história? É uma
história, mas o que interessa ali é você procurar emular o bom exemplo dos
estadistas virtuosas, que são aqueles homens públicos que são marcados pelo
seu altruísmo, pelo seu interesse pela comunidade, quer dizer, são
“republicanos”, e, ao mesmo tempo, são modelos de fé, porque você não
distingue entre moral e moral católica. A moral católica é a moral que deve
prevalecer para o bem comum.

História como Ciência


Isso começa a mudar com o iluminismo. A história não é mais lógica e
não tem uma função pedagógica. Você começa achar que a história pode
descrever o que realmente aconteceu no passado. O papel de descrever o que
aconteceu no passado não necessariamente tem um caráter pedagógico ou
moral. Ou seja, a história começa a se organizar como ciência à medida que
você vai saindo da tradição, entenderam? Você percebe que você está fora da
tradição, você pode pensar a ciência como descrição de fatos. Aí a história
mesmo, ou a descrição dos acontecimentos, começa a perder importância
para política e começa a ficar importante a uma outra coisa, é a filosofia da
história. Para onde a história vai? Só posso saber para onde a história vai…
porque eu estou pensando o seguinte: a história não se repete. Ela nunca se
repetiu de acordo com esse primeiro lugar. Segundo, a natureza humana -
faltou dizer isso - não é estável. O ser humano vai mudando com o tempo, vai
mudando conforme a época. Então, aquilo que servia para o homem do
passado, não serve para o presente. O tipo de conhecimento, a prudência
clássica, por exemplo, da política, não serve para agora. A natureza do homem
vai mudando. Se, para Waterloo, eu tentar o que Leônidas fez na batalha do
Peloponeso, eu vou perder a batalha. Como é que você vai dizer que a história
é a mestra da vida num contexto de guerra que tem bombardeio, tem míssil,
que nada disso existia antes?
Volto. Como é que essa mudança da percepção da passagem do tempo
se reflete na formação da identidade brasileira? Porque esse iluminismo, esse
esclarecimento, esses progressos não se verificam de forma uniforme no
mundo. Você tem essa história e tem que tentar entender como é que é o
mundo inteiro em vez de pensar a história local, e como ciência e como
processo. Você começa a olhar em volta, dizer assim: “onde é o epicentro da
civilização? Do processo de civilização que é o processo de desenvolvimento
através do progresso histórico, onde é? É a Europa. Mas é aonde na Europa? É
na Europa Ocidental e um pouco Central”. Ela é basicamente Inglaterra e
França. Tem a Holanda, também, tem parte da Alemanha, deve ter um ou
outro suíço na jogada também, mas a Suíça é meio francesa, meio alemã.
Alguma coisa na Áustria. Certamente coisas na Itália e acabou. Acabou. Esse é
o centro. A partir dali, que aquilo tem que ser exportado para o bem da
humanidade. O futuro de toda humanidade será uma espécie de espelho do
que é a Europa, porque isso é um movimento mundial, é um movimento
global. Simplesmente, a França e a Inglaterra estão na frente. Com isso, você
começa a hierarquizar as nações e os lugares do globo. Tem países que são
civilizados, tem países que são semi-civilizados ou bárbaros e tem países que
são selvagens. Você começa a olhar para o globo, você pega os quadros do
desenvolvimento do espírito humano do Condorcet, isso está claro lá. Isso é
uma coisa boa. Que bom que a humanidade inteira vai se libertar a partir dos
exemplos dados pelos europeus. Ou seja, o que é fantástico. Tudo que a gente
sofreu aqui para aprender e para descobrir, vai chegar pronto lá, sobretudo na
América, porque a colonização europeia era muito maior na América. Na
África e na Ásia tem que chegar pela mão do colonizador, mas já tem sociedade
na América, aquilo chega pronto. Eles vão poder ser modernos, ser civilizados,
muito mais rápido. Mas isso significa contrario sensu que aqui é um lugar
atrasado e periférico.
Isso impacta muito fortemente na Península Ibérica, porque Espanha e
Portugal são países que estão em crise e em declínio desde o fim da Guerra dos
Trinta Anos, em 1648. Portugal recupera a independência em 1640, mas como
a Espanha dominava quase que a Europa inteira, conseguiu juntar todo mundo
para combatê-la. A Espanha perde a guerra, a Holanda fica independente,
Portugal sai de lá, quase que a Catalunha saí junto. Lembra que a Espanha era
a Espanha, Flandres, Áustria, porta parte da Alemanha, era um negócio
imenso. Você tem esse declínio desses antigos países que haviam sido aqueles
que estavam na vanguarda do mundo no século 16.

Por que atrasado?


Os iluministas britânicos e franceses olhavam para Península Ibérica e
para certas partes, especialmente do sul da Itália, questionando-se por que
aqueles lugares haviam ficado tão atrasados. Já aparece a ideia de atraso. Quer
dizer, porque lá não houve reforma, porque lá o espírito científico não entrou,
ficaram os jesuítas mandando naquele lugar, a Igreja. Por isso, não teve
dinamismo econômico também. Não teve dinamismo econômico, a Igreja
manda e detém um terço do país, sei lá, no caso de Portugal. Porque a mão de
obra fica toda dentro de convento e mosteiro. Então, você também tem um
problema econômico aí. Você tem redução da mão de obra disponível, você
tem um monte de propriedades que está petrificada por instituições de
profiteuses ou por outros tipos de morgados, de capelas, diversos institutos
herdados do período feudal, então você não consegue criar mercado. Ao
mesmo tempo, o espírito científico não entra. Todo ensino está na mão dos
padres. Aí, você não consegue criar opinião pública, você não consegue criar…
Aí começa o processo de vilipendiar, por assim dizer, a identidade ibérica.
Você tem uma elite em Portugal e Espanha que procura reagir, porque
eles percebem que a França é um país fortíssimo, com exército, que é
moderna, tem um Estado e a Inglaterra, também. Sendo que a Inglaterra, no
caso, já era até Estado de Direito na época. Isso não foi só a Iberia não. A Rússia
sofreu isso. A Áustria, em boa medida, também sofreu. A Itália sofreu, os países
italianos. Todo mundo começou a se movimentar para tentar reduzir o atraso.
Porque o atraso também era um problema de sobrevivência nacional.
É bom lembrar o exemplo da Polônia, porque a Polônia não se mexeu. E
a Polônia, em três guerras, desapareceu do mapa. Ela não conseguiu reagir e
em três guerras sucessivas, na segunda metade do século 19, ela desapareceu,
ela foi partilhada entre a Áustria, a Prússia e a Rússia. Então, você tem que se
mexer. Lembra que são países dinásticos, as dinastias começaram a se coçar.
Aí é que eles desenvolvem aquilo que vai ser chamado de absolutismo
ilustrado. Você tenta beber os princípios da ilustração para que o Estado
empurre o desenvolvimento das sociedades, ele induza o desenvolvimento e o
progresso das sociedades. Então, o Estado vai ter que criar, a exemplo de Luís
XIV, sociedades científicas, Academias de Belas Artes, você começa a ter um
Estado que tem que fomentar, mas o Estado também tem que se criar, porque
o Estado ainda é um Estado que não é mais medieval, mas ainda tem o poder
político dividido com a aristocracia, o poder político de várias maneiras,
veremos isso daqui a pouco. Digamos assim, o absolutismo ilustrado é a
primeira ideologia de revolução pelo alto, é a mãe daquilo que eu vou chamar
de conservadorismo estatista. Conservadorismo estatista, conservadorismo
reformista, conservadorismo progressista.
Estatista aí não no sentido negativo de “O estatismo”, mas, na verdade,
a ideia de que o Estado é que vai modelar essas sociedades atrasadas porque
elas não têm ainda formado uma sociedade que lhe sirva de motor desse
desenvolvimento, desse progresso. Aí a gente entende Marquês do Pombal, a
gente entende Carlos III na Espanha, a gente entende Catarina da Rússia, a
gente entende Frederico da Prússia.
Existe o progresso histórico, existe desenvolvimento, caminho da
ciência, os liberais vão dizer, do liberalismo, e aquilo começa na França e na
Inglaterra, que são os países cêntricos. Eu vou chamar de países cêntricos.
Você pode objetar: “Então existe centro e periferia?”. Existe centro e periferia,
mas, assim, eu não estou preocupado em objetivar o que é centro e periferia.
Eu estou preocupado que centro e periferia está, sobretudo, na cabeça das
pessoas. É como eu falei aqui no começo dessa aula, se elas estão na cabeça das
pessoas, se as pessoas acreditam, isso tem reflexos no mundo.
Você imagina, Portugal e Espanha serão particularmente
ridicularizados ou detratados numa obra do iluminismo que fez um sucesso.
Como diria o Nelson Rodrigues, fez um sucesso de Frank Sinatra, que foi “A
história das duas Índias” do abade Raynal. “A história das duas Índias” do
abade Raynal é uma espécie de tentativa de fazer uma história do mundo
inteiro. Era uma enciclopédia, de tantos volumes. Tinha um volume sobre a
colonização britânica na América do Norte e tinha outro da colonização ibérica
na América ibérica. Ao passo que ele era muito elogioso da colonização
inglesa, mas, ao mesmo tempo, defendia o lado dos americanos, que tinham
ficado independentes, ele esculhambava o estabelecimento dos portugueses
no Brasil. É o nome do volume. E tem o da passagem, que fazem um livrinho
hoje, em que ele esculhambava, ele dizia que Portugal e Espanha eram os
países mais selvagens da Europa, os mais bárbaros da Europa e que a
colonização de Portugal e Espanha na América, refletia esse caráter de atraso,
barbárie. Eles eram predatórios, eram egoístas, eram ignorantes.
Essa obra vai ser uma obra muito importante para a formação do
liberalismo brasileiro, especialmente o mais radical. Raynal é a grande
referência, por exemplo, dos inconfidentes. Essa ideia de que não é só para nos
livrarmos do jugo metropolitano, o negócio era mais grave, tipo nós somos os
portugueses da América, então, a gente repete isso aqui. Será que a gente tem
condição de sair disso, se aqui é o lugar mais atrasado da América? Porque
tinha isso também. O Brasil era o lugar mais atrasado da América. Para vocês
terem uma ideia, vocês sabem, os espanhóis fizeram universidades na
América hispânica, mas, no Brasil, a gente vai a primeira universidade, a
Universidade do Brasil, em 1822. O país que teve a universidade mais tardia foi
a Colômbia, quer dizer, naquele tempo era o Vice-Reinado de Nova Granada,
que tinha uma universidade desde 1735. Aqui, não tinha. Por que os
portugueses eram isso ou eram aquilo? Não, Portugal era um país fraco, era
um país decadente, a Coroa era fraca, pouco povoado. Tem características
específicas da colonização portuguesa que explicam as diferenças. A presença
do Estado era mil vezes menor aqui do que em regiões como Peru ou México.
México, então, nem se fala.

O problema da modernização
Voltando ao assunto aqui. O que é o pensamento político brasileiro do
ponto de vista material, substantivo? Por que a gente chama pensamento de
pensamento e não de teoria? Em boa medida, é por causa disso, porque aqui é
um lugar periférico e atrasado. Quando eu estou dizendo isso, eu estou dizendo
também qual é o principal assunto, qual é o principal tema, qual é o principal
tópico do pensamento político brasileiro. Qual é o principal tópico, o principal
assunto que quase monopoliza o pensamento político brasileiro? É o problema
da modernização. Todas as ideologias, inclusive boa parte das conservadoras,
parte do diagnóstico de que o Brasil é um país periférico e atrasado. Bom, e era,
enfim, é um país periférico e atrasado e como você supera isso.
É claro que, no caso brasileiro, havia uma diferença em relação à
Portugal. O Brasil era o futuro de Portugal, por isso que a independência foi
uma tragédia para eles. Depois, vão tentar refazer um novo Brasil na África,
mas não é a mesma coisa. O Brasil tinha virado o futuro de Portugal. Foi por
isso que o rei veio para cá Dom João se mudou para o Rio de Janeiro porque aqui
era tudo ao contrário. Portugal era camundongo na Europo. Cheio de gatos
querendo devorá-lo e ele tinha que fazer aliança com um dos gatos para não
ser devorado por outro, periodicamente, quase que num rodízio. Aqui, não.
Aqui era o contrário. Repara: o rei estava aqui, a Espanha estava ocupada por
Napoleão, ele podia invadir o Uruguai, podia declarar guerra à Argentina. E a
França, que tinha ocupado Portugal, era aquela titica da Guiana Francesa.
Quer dizer, aqui era tudo ao contrário. Aqui, nós éramos grandes e eles que
eram pequenos. A primeira coisa que Dom João faz ao chegar aqui é declarar
guerra à França e ele invade a Guiana Francesa. Você tem uma coisa diferente
de Portugal aqui. Você tem um horizonte, a ideia de que olha o tamanho desse
território. Nós seremos o maior país do Ocidente. Vai ser a gente, a Rússia e a
China. A gente tem o potencial de ser um dos maiores e mais poderosos países
do mundo. Mas, a gente tem a sociedade mais atrasada do mundo ao mesmo
tempo. Pela escravidão, pela falta de tecnologia moderna para explorar terras.
Enfim, insuficiência de população. Por vários motivos, aqui é a sociedade mais
atrasada que tem. Essa é uma percepção que a corte tem quando chega. Na
verdade, você vai ficar oscilando entre essa ideia de que a gente pode ser o
maior, mas que somos periféricos e atrasados. Às vezes, a gente vai oscilar, na
história do Brasil, assim: ou a gente acha que está bombando, que é o Brasil
potência, que é o Brasil que está acontecendo, que chegou a hora do Brasil,
Brazil takes off; ou nós somos o último país do mundo. Tudo que é ruim só
acontece no Brasil. Aparece esse tropos do “em nenhum lugar do mundo, só
no Brasil”. Isso é mentira. Isso aí é mentira completa, mas aparece essa
dinâmica maníaco-depressiva a respeito da sua própria identidade nacional.
O tema central do pensamento político brasileiro é o problema do
atraso. Quais são as causas do atraso? Como a gente pode superar esse atraso?
O tema do atraso e o imperativo da modernização. A gente tem que ir para
frente. Isso explica um pouco também de por que a história não tem muito
valor, porque a história é uma história triste, é uma história trágica, é uma
história de erros, de atrasos, de mau povoamento, de má exploração da terra,
da exploração predatória, de maus imigrantes, de imoralidade. É uma espécie
de repositório das faltas do país. Isso aparece muito particularmente no
pensamento, menos do conservador, dependendo do conservador, mas isso é
constitutivo do pensamento liberal no Brasil. A ideia de que tem que fazer uma
ruptura porque nada para trás presta e é para frente que tem que ir. Os
socialistas também, mas, neste sentido, um certo tipo de socialismo, que é
herdeiro do liberalismo que é cosmopolita - já vou explicar o que é -, que acha
também que nada da herança presta e só tem que fazer ruptura.
A gente pode chegar justamente na discussão de quais são as ideologias
do pensamento político brasileiro. Eu acho que a gente pode começar por uma
primeira divisão dicotômica, uma dicotomia aqui, entre o pensamento que eu
vou chamar de cosmopolita ou universalista e um tipo de pensamento que eu
vou chamar de nacionalista ou particularista.

O pensamento cosmopolita
Qual a diferença entre eles? O pensamento cosmopolita avalia a herança
portuguesa, a herança da colonização, a herança católica, escravistas, de
maneira muito negativa. A gente quase não tem nada para aproveitar disso.
Então, a gente tem que operar uma ruptura. Tem que ter uma ruptura com o
passado. Se a gente vai romper com a tradição, a gente vai beber de onde?
Vamos beber do modelo dos países cêntricos. Temos que adotar as instituições
dos países cêntricos, temos que adotar o modelo de sociedade dos países
cêntricos e isso tem que se refletir nos nossos códigos, nas nossas leis. Ou seja,
a transplantação de instituições é uma forma de modernização. Por exemplo:
você vive bêbado, dirige bêbado, atropela e foge do corpo de bombeiros
quando está chegando. Como eu faço com você? Eu tenho que botar lá: é
proibido dirigir bêbado, porque na Inglaterra, há muito tempo, é proibido
dirigir bêbado. Aí eu vou prever uma sanção e você vai preso. Entenderam? É
assim: as leis não têm que refletir a sociedade.
É claro que em lugar nenhum do mundo as leis refletem a sociedade
porque, direito, se você não precisa modelar o comportamento do pessoal,
você não precisa ter aquela norma, que é a norma jurídica. Mas assim, você
começa a ter esse hiato entre o país legal e o país real, porque a elite, que estava
comprometida com os valores modernizadores, vê o padrão comportamental
da população como atrasado ou bárbaro, então a técnica, por excelência, do
liberal é a importação das instituições econômicas, das instituições políticas,
dos modelos todos. O cara anda com um livro de direito constitucional
britânico ou manual de economia britânico ou americano, depois. Na verdade,
nada do que está aqui presta, tem que importar tudo. E a gente consegue
remodelar o país através de uma segunda fundação. Esse é um pouco o
pensamento cosmopolita. Ele vai informar tanto o liberalismo, mas também,
repito, uma parte do socialismo, porque o socialismo é um pouco mais
complicado. Tem um socialismo que é cosmopolita e tem um socialismo que
é nacionalista. De alguma maneira, o socialismo cosmopolita é herdeiro do
liberalismo e o socialismo estatista é herdeiro do conservadorismo estatista.

O pensamento nacionalista
O outro grande eixo é o que estou chamando de nacionalismo ou
particularismo. O cosmopolitas acreditam que existe uma ordem universal,
que existe modelos de comportamento universais, padrões de civilização que
são universais, vive falando da filosofia da história, de estar à altura do tempo
e o Brasil está atrasado, tem que modernizar o Brasil, tem que empurrar a
partir dos modelos dos países cêntricos.
Os nacionalistas ou particularistas têm uma visão diferente. Eles
tendem a achar que cada lugar tem a sua cultura própria, tem a sua
especificidade, mesmo quando você compartilha da ideia de que o Brasil é um
país atrasado e periférico. Esse pessoal não acredita que você pode, como o
Barão de Münchhausen, sair da lama puxando os próprios cabelos. Você não
tem como partir do nada. Você tem que partir dos materiais pré-existentes. E
os materiais pré-existentes são aquilo que é aproveitável da tradição. A
avaliação é que não é tudo que é ruim na herança ibérica. Nem tudo é ruim,
tem coisas que são boas. A monarquia é uma coisa boa, porque a monarquia
nos permite construir um Estado sem passar pelos percalços da instabilidade
política das repúblicas hispano-americanas, por exemplo. A Igreja Católica
também é uma coisa boa. Por que é uma coisa boa? Porque a gente não tem
Estado construído direito, a gente precisa de submissão. Só existe ordem nesse
país por causa da Igreja, que mantém a subordinação social. Isso é o
pensamento conservador da época. Tem algumas coisas que são boas. O Brasil
é um povo mais cordial. Enfim, você tem uma análise um pouco cultural
também dali que faz com que você defenda um pouco a tradição.
Você faz o seguinte: “ah, mas esses caras estão fora do mundo? Estão
fora do movimento do mundo?”. Não, eles estão dentro do movimento do
mundo, mas eles pensam o seguinte: “olha, o Brasil realmente é um país
atrasado e periférico. Por isso que a gente não pode imitar em tudo Inglaterra
e França”. Por quê? “Eles podem ter certas normas, regras e condutas, porque
são mais desenvolvidos. A gente não pode, justamente porque a gente é
atrasado. Por exemplo: eles podem ter certas regras de liberalismo ou de
democracia, porque eles já têm Estado construído, nós não temos. A gente tem
que, primeiro, construir um Estado, respeitando as regras de civilização,
liberal, constituição, separação de poderes, esse negócio todo, mas a gente
tem que relativizar esse negócio de que tudo que é americano, inglês ou
francês é bom. Não só por causa disso, mas também porque cada lugar tem a
sua especificidade. Você também tem que conhecer o modus operandi”.
Eu diria que, nesse sentido, o pensamento de Montesquieu é muito
importante nessa época, porque concilia o iluminismo com o reconhecimento
das especificidades da cultura de cada povo. A palavra cultura não existe, mas
ele chama de “o espírito geral de cada povo” no “Espírito das Leis”. Você tem a
ideia de que nós nunca seremos civilizados se não formos minimamente
nacionalistas no sentido de vestirmos a camisa do país. Você nunca vai ser um
país desenvolvido se sempre ficar dizendo que esse país é uma merda. Você
tem que fazer o contrabando. Você tem que tentar ver, o Guerreiro Ramos
disse isso, “este país é uma merda, mas você tem que fazer o contrabando”,
você tem que inverter e vender isso aqui como se fosse grande, porque você
tem que criar espírito nacional, você tem que instilar patriotismo. Você tem
que gostar desse lugar aqui. Sem isso, nenhum país se desenvolveu, sem um
sentimento nacional. Então, também tem uma coisa estratégica. Não é que
você tem que desenvolver o nacionalismo porque você é mau, feio ou bobo,
não, é porque você tem que criar um sentimento de identidade nacional para
poder crescer. E você olha “não, mas isso não tá certo”. “Cara, olha a
Inglaterra, os ingleses têm um sentimento patriótico forte, nacional forte, a
França também tem. Como é que a gente não vai ter?”. Mas, na cabeça do
liberal, é complicado, porque você defender uma posição nacionalista, para o
liberal, é você ficar no atraso, porque tudo que tem aqui é atrasado.
Entenderam?
Você tem essas duas grandes divisões. Os estudiosos do pensamento
político brasileiro antes de mim, costumavam dividir o pensamento político
brasileiro em dois grandes eixos que eram basicamente esses. Agora, se o
intérprete, o estudioso era, por exemplo, nacionalista, ele dividia entre
realidade nacional e liberalismo doutrinário, quer dizer, ideias fora do lugar,
esses liberais não entendem nada desse negócio aqui. Os liberais diziam que
os nacionalistas eram autoritários e que os liberais é que eram os democratas.
E os socialistas diziam que, na verdade, você tem o pensamento que é
progressista e o pensamento que é atrasado ou reacionário ou um equivalente
qualquer. Na verdade, cada um deles está puxando a sardinha para sua brasa.
O liberal está preocupado com a liberdade, então ele divide, classifica os
autores, se eles são liberais que, para ele, são democráticos, ou se são
autoritários. Entenderam, é tudo chapado. Para os nacionalistas também, ou
você pensa a partir do Brasil e pensa certo ou você pensa o Brasil com a cabeça
de fora e pensa errado. E para socialista também. Ou você é progressista ou
você é conservador, reacionário. Reparem que todos têm dicotomias. A
dicotomia do liberal é informada pelo critério da liberdade. A dicotomia da
análise nacionalista é discutida a partir da ideia de que a realidade não é a
liberdade, a realidade é a nação. E, para o socialista, a realidade é a igualdade.
Você sempre pode dividir o pensamento em bom e ruim. No fundo, é isso. Eles
não querem dizer isso, mas, no fundo, estão querendo dizer isso. Eles estão
analisando, mas, ao mesmo tempo, estão interferindo no debate. Por isso falei
que é muito difícil separar o autor-ator e até, às vezes, cientista social do ator.
Já estou dando a lista do ator, que também tem seus compromissos
ideológicos.
O que eu fiz? Eu, quando tive que tratar desse assunto, já tinha lido muito
de pensamento político brasileiro. Digamos assim, li bem pelo menos 150 anos
do pensamento brasileiro. Eu comecei a perceber esse parti pris, porque, no
fundo no fundo, tudo levava a uma dicotomia entre idealismo e realismo.
Idealismo no sentido negativo. É um bobo, é um pensamento errado, o meu é
que é o real. Para o nacionalista, o real é a nação. Para o liberal, o real é a
liberdade. Para o socialista, o real é igualdade ou a opressão das classes dos
dominados pelos dominantes.
Você tinha que tentar fazer uma grade um pouco diferente. Eu fiz uma
outra grade em que eu partia das grandes ideologias da modernidade -
conservadorismo, liberalismo e socialismo - para tentar organizar um quadro
mais razoável dentro dos dois eixos de cosmopolitismo e de nacionalismo. Eu
posso dizer que essa clivagem entre cosmopolitismo e nacionalismo é muito
pronunciada no Brasil por causa desse sentimento periférico. Na verdade, as
ideologias aparecem como respostas ao problema do atraso do Brasil. As
ideologias podem ser classificadas de acordo com o diagnóstico que elas fazem
das causas do atraso e os prognósticos consequentes que partem daí.
Você tem, no eixo cosmopolita, o pensamento liberal em primeiro lugar.
Tem o liberalismo político. E você vai ter um tipo de socialismo também. O
liberalismo político é essa preocupação com a liberdade. Qual é o diagnóstico
da ideologia liberal? O problema do Brasil é a falta de liberdade do cidadãos ou,
se vier junto, mas nem sempre vem junto, o liberalismo econômico. Neste
último caso, o problema do Brasil é o excesso de regulamentação na economia.
Às vezes, isso vem junto, às vezes, vem separado, mas o problema é a falta de
liberdade. Os liberais estão sempre olhando o Brasil no espelho dos Estados
Unidos. Por que nós não temos liberdade? Nós não temos liberdade porque,
quem foi que colonizou os Estados Unidos mesmo? Os ingleses. Então, aqui
foram os portugueses. Lá teve pluralismo religioso dos protestantes. Aqui, foi
catolicismo. No norte dos Estados Unidos não teve escravidão, aqui teve no país
inteiro. Você começa a ver as causas do atraso. E esse atraso, para o liberal, é o
autoritarismo e a ignorância. O autoritarismo é a cultura política ibérica. Eles
compram todo o negócio do iluminismo. A política ibérica era um país
atrasado. Portugal era o país mais atrasado da Europa, a colonização aqui foi
uma barbaridade, era a ignorância dos jesuítas, era a opressão dos Capitães-
Mores da Coroa absolutista. Esse é o diagnóstico. Por isso que nós não temos a
tradição de liberdade no Brasil. Quem a gente faz então? Temos que ter
remédios universais, cosmopolitas, para responder esse problema. Quais são
esses remédios? Procurar reproduzir aqui aquilo que se tem nos países
cêntricos que são modelares. Para o liberal, a França não é muito modelo não.
Modelo é a Inglaterra e os Estados Unidos. Quando vem a república, acaba
virando, com o tempo, só Estados Unidos. Então, tem que reproduzir aquilo
que está lá.
No lado do eixo do nacionalismo, vai aparecer o conservadorismo, mas
existem dois tipos de conservadorismos diferentes. Quer dizer, eles
conversam, mas o núcleo deles não é exatamente igual. Assim como a gente
vai ver depois que, no liberalismo, vai aparecer uma franja que, por falta de
nome melhor, a gente vai chamar de libertária ou de neoliberal, que é uma
mistura de liberalismo com conservadorismo, a gente tem dois tipos
diferentes de conservadorismo propriamente dito. Um que eu vou chamar de
conservadorismo culturalista e outro que eu vou chamar de conservadorismo
estatista.

O conservadorismo estatista
Do conservadorismo estatista, eu já falei um pouco. O seu primeiro
avatar histórico é o despotismo ilustrado. O absolutismo ilustrado. A ideia de
que nós estamos atrasados, nós somos periféricos, a nacionalidade está
correndo perigo e a gente precisa induzir o desenvolvimento. Nós precisamos
ter uma sociedade que nós não temos, nós precisamos ter uma cultura que nós
não temos, precisamos ter força, exército que nós não temos. Quem pode fazer
isso? Elites ilustradas que dirijam o Estado. Quanto mais forte for essa Coroa,
esse governo, melhor, porque você vai reduzir o tempo que vai levar para você
se progredir. A ideia é absolutismo sim, mas ilustrado. É o conservadorismo
que eu diria que é anfíbio, porque, ao mesmo tempo que ele é conservador,
porque você tem que manter a ordem e a hierarquia, você tem que
movimentar o progresso. Você tem que ir para frente. Eles também são críticos
da herança, em larga medida. É um conservadorismo, por exemplo, que as
pessoas quando analisam ideologia no Brasil, que ficam muito a partir de
manuais que são produzidos lá fora, não entendem nada. Então, tem uma
percepção completamente errada das coisas. Por quê? Porque lá, por exemplo,
quando você fala conservador, a primeira coisa que vem à nossa cabeça do
manual o que é? Burke, Burke é o conservador. Bom, noves fora que é muito
complicado dizer que Burke era conservador, ele era uma coisa um pouco
mais complicada que isso ao longo da carreira dele, Burke era whig, não era
tory, mas assim, lendo o manual estrangeiro, o tipo de conservadorismo que
até tem no Brasil, embora seja mais complicado, e não vê o conservadorismo
estatista. Por uma razão muito simples: de que o absolutismo ilustrado não
existiu nos países anglo-saxões. Mas ele existiu um pouco na França e existiu
sobretudo no resto do mundo. Porque toda periferia da Europa teve
despotismo ilustrado, teve absolutismo ilustrado. E, no caso brasileiro, isso foi
transplantado para cá com a vinda da corte. Isso foi potencializado, porque
quando eles chegaram aqui, não tinha passado. Não tem de onde você partir.
Não tem tradição constitucional. Esse aqui é o lugar mais atrasado do mundo.
Então, esse é lugar por excelência do absolutismo ilustrado. Vamos pegar a
parte da elite que é viajada, a parte da elite que é culta, vamos botá-la no Estado,
vai ser Ministro de Estado, vai ser burocrata, vai ser técnico, vai ser seja lá o
que for, vamos organizar esse negócio e vamos empurrar esse negócio para
frente. Você sempre vai ter que ter isso? A maior parte deles diz não. A gente
só vai precisar fazer isso até criar sociedade e o país poder andar com as
próprias pernas. E é por isso que um desses autores que estudou pensamento
político brasileiro, foi o melhor deles, o Wanderley Guilherme dos Santos 13,
que morreu semana passada, chamava esse tipo de conservadorismo de

13
Autor (1935 - 2019)
autoritarismo instrumental, porque, na verdade, era algum tempo que você
tinha que suspender o liberalismo ou o cosmopolitismo até que se criassem
condições para você ter democracia liberal no Brasil, não em 1808, porque o
horizonte não era democrático nem liberal, mas isso, nas encarnações
sucessivas desse ideário conservador ilustrado, você vai ter isso. Depois do
despotismo ilustrado, vai haver o reformismo ilustrado, que é uma coisa mais
light, no período joanino. Depois da independência, há a continuação desse
pensamento num autor, por exemplo, como José Bonifácio. Depois de José
Bonifácio, há uma adaptação desse negócio mais caro ao liberalismo por
Bernardo Pereira de Vasconcelos e pelo Visconde do Uruguai,que são os
próceres intelectuais do partido conservador. Mais na frente, você vai ter uma
transformação, através do positivismo. O positivismo tem muitas afinidades
eletivas com o absolutismo ilustrado. É como se positivismo,
desenvolvimentismo, o nacionalismo varguista, o saquaremismo, fossem
todos encarnações, em momentos diferentes, do mesmo espírito que estou
chamando de conservadorismo estatista. Esse é um dos conservadorismo.
Esse foi o conservadorismo hegemônico na história do Brasil. A gente pode até
discutir, não é o caso aqui agora, se a crise da filosofia da história como
progresso, que aconteceu agora, da virada do século 20 para o 21, também não
fechou um ciclo do pensamento político brasileiro. A gente pode até pensar.
Porque se a história não marcha necessariamente para o progresso, a gente
tem um revival do pensamento reacionário, que nega o negócio da história
como progresso, pelo contrário, diz que a história é decadência, que o Brasil
sempre esteve na era da decadência, porque, para esse pensamento, a
decadência começa no Renascimento. Não sei se a gente ainda está nesse
trade histórico de duzentos anos. Eu tenho que trabalhar empiricamente
nesse trade histórico.

O conservadorismo culturalista
Você tem outro tipo de conservadorismo, que também se subdivide, ao
lado do estatista, eles conversam e eu diria até que, depois do Estado Novo,
eles começaram meio que se amalgamar, mas nunca é exatamente a mesma
coisa. Que é esse conservadorismo que eu estou chamando de culturalista. A
palavra é um pouco complicada, cultura. O que estou querendo chamar de
cultura aqui? É a ideia de que você tem que conservar os costumes, os modos
da cultura brasileira. Se o outro conservadorismo era de Estado, eu posso
chamar esse conservadorismo de conservadorismo de sociedade. Você tem
uma espécie de conservador culturalista moderado e um que é radical, quer
dizer, é reacionário. O conservador moderado culturalista é aquele sujeito que
elogia a colonização ibérica, é o contrário do liberal. O estatista não é
inteiramente filho do liberal. Tem algumas coisas em comum. Todos eles têm
pontos em comum e diferenças. Isso explica porque se juntam às vezes em
certos momentos da história do Brasil e depois eles se separam. Eles fazem
elogio da colonização portuguesa e fazem elogio daquilo que os liberais
criticam. Fazem o elogio do catolicismo, fazem o elogio do português, do papel
civilizador do colonizador português como agente cultural. A especificidade
positiva da colonização, porque o português era uma figura mais plástica, ele
era mais adaptável, era mais cordial, era mais adaptado aos trópicos. E o papel
da Igreja nisso tudo também. Não pela Igreja ser a Igreja, mas porque o
catolicismo foi bom na modelagem de certos costumes e padrões morais. Você
tem autores clássicos como José de Alencar. Vocês podem não ter lido nada
dele político, mas todos sofreram em algum momento do segundo grau tendo
que ler ou “O Guarani”, ou “Iracema”, ou “Senhora”. Vocês reparem que os
livros dele sempre são muito morais, sempre têm lições morais fortes e a
colonização portuguesa é retratada como se fosse uma epopeia. Uma epopeia
que, às vezes, era uma epopeia meio de período feudal. Mesmo nas obras
literárias você tem isso. Aparece também, nas obras literárias, uma oposição
entre cidade e campo. A cidade é estrangeirada, a cidade é cosmopolita, a
cidade não reflete a cultura brasileira, a verdadeira cultura está no campo, está
no interior, está na fazenda. Tem a ideia também de que o escravismo aqui foi
mais leve do que nos Estados Unidos. Tem uma espécie de explicação da
cultura brasileira com caráter positivo. Além de José de Alencar, tem Eduardo
Prado14, você tem Gilberto Freyre, obviamente. Você tem uma ala, dentro
desse conservadorismo, radical, que é ala do conservadorismo moral que
tradicionalmente era ligado à Igreja Católica. Era um conservadorismo que,
também, como todo conservadorismo, frisava o valor da ordem e da
hierarquia, mas eles eram mais obedientes à Roma do que ao governo
brasileiro, do que ao Estado brasileiro.
É bom lembrar o seguinte: o liberalismo gira em torno da liberdade, do
valor de liberdade e, a partir disso, você faz os diagnósticos e os prognósticos.
Os conservadores fazem em torno do valor da ordem e da autoridade e,
eventualmente, da hierarquia.
Os conservadores culturalistas, de uma maneira geral, como eles veem
o passado de uma maneira positiva, são favoráveis à preservação das tradições.
Eles levantam o brado quando acham que ela está ameaçada, como José de
Alencar e também Gilberto Freyre. A cultura brasileira foi modelada na
colonização. Isso é importante. Todas as características do Brasil modeladas na
colonização são vistas como boas. E toda a modernização que vem de fora,
Inglaterra, França, liberalismo, meio que começa a ser vista como se fosse
uma descaracterização da cultura brasileira. Isso produz coisas muito boas. A
criação do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) é
uma delas. A preservação do patrimônio, essas tradições, sei lá, o quindim,
“vamos parar de tomar sorvete e comer quindim”, Gilberto Freyre falava essas
coisas. Mas, também, isso começa a criar uma coisa meio decadentista, que
você vê, por exemplo, no Gilberto Freyre no “Sobrados e Mucambos”. Quando
o Brasil começa a modernizar a partir da chegada de Dom João, ele descreve,
de maneira meio melancólica, como é que os velhos hábitos vão
desaparecendo e sempre essa percepção de que o que vem de fora não é
nacional, não é autêntico. Essa ideia de autenticidade está muito presente
nesses caras.
Agora, repito, no conservadorismo reacionário, a identidade, na
verdade, está ligada antes à Roma do que ao Brasil. Alguns, por isso, podem até

14
Escritor (1860 - 1901)
questionar se deveria chamar isso de culturalista, mas eu acho que pode,
porque, para eles, a cultura nacional é religião, é dada tradicionalmente pelo
catolicismo e ela é garantida por uma instituição que é mais importante que o
Estado, que é a Igreja.
De alguma maneira, eles refletem a posição pré-absolutista de que o
Estado é que é braço da Igreja e não a Igreja que tem que ser braço do Estado.
A gente encontra autores desse naipe no Império a partir de 1860, mas eles são
sempre residuais, eles nuncam pauta a agenda, porque são os mais refratários
à ideia de progresso. Como o Brasil foi dominado pela ideia de progresso
durante duzentos anos, esse pessoal é o mais residual, o que é menos ouvido.
Você tem o Brás Florentino de Sousa, tem o Figueiredo de Mello, você tem o
senador Cândido Mendes, na época do Império, que são grandes expoentes do
pensamento católico ou reacionário que, na verdade, é crítico do Estado.
Na questão religiosa, ficam do lado da Igreja, no lado do Papa e não do
lado do Imperador. A cultura brasileira, para eles, é a cultura católica. Você
tem que mantê-la de qualquer jeito através de uma posição privilegiada da
Igreja. Na virada do Império para República, em São Paulo, você tem o João
Mendes15, que é um jurista muito influente. Acho que o foro de São Paulo tem
o nome dele. Tem uma praça João Mendes no centro da cidade. É esse João
Mendes. Você tem Carlos de Laet16. Na crise do liberalismo da Primeira
República, há, de alguma maneira, o período dourado da Igreja, porque a Igreja
nunca teve período áureo no Império, uma vez que o Império era regalista, era
pombalino, o padre era visto como funcionário público.
Na década de 1920, você tem uma espécie de esplendor do catolicismo
no Brasil, através de homens como Jackson de Figueiredo 17, escreve “A reação
do bom senso”, você tem Padre Leonel Franca, Hamilton Nogueira, Tristão de
Athayde, que era a primeira encarnação do Alceu Amoroso e Lima quando ele
era conservador, depois, ele continua católico, mas vira de esquerda, estou
falando do Tristão de Athayde, não estou falando do Dr. Alceu. Como eu disse,

15
Advogado (1856 - 1923).
16
Professor (1847 - 1927).
17
Advogado (1891 - 1928).
é uma coisa muito residual. Gustavo Corção, principalmente, que teria sido o
último. Até anteontem, era o último representante dessa linha. Essa é uma
linha que sempre foi menos estudada e eu mesmo menos estudei justamente
porque era a menos importante para a história das ideias políticas, para o do
desenvolvimento político do Brasil. Agora eu acho que a coisa mudou de
figura, não sei por quanto tempo, mas vale a pena tentar revisitá-la. O retorno
desse conservadorismo…
Eu estou falando aqui, lembro, a minha divisão aqui não é direita e
esquerda. Você tem três grandes ideologias que, no Brasil, pela razão do
pensamento de periferia, ele se subdivide, na verdade, em seis. Você tem
liberalismo, conservadorismo estatista, tem o culturalista, que eu estou
falando, tem essa divisão dentro do conservadorismo culturalista, desse
pensamento reacionário, que apareceu hoje e virou governo, coisa que nunca
aconteceu na história do Brasil. E se transformou também, porque o
conservadorismo sempre foi um pensamento muito elitista, de índole
aristocrática, a matriz era a matriz inglesa, se você ver o Gilberto Freyre como
ele se comporta, Apipucos, onde ele morava, era o Downtown Abbey
pernambuco, só que adaptado ao Brasil, mas era exatamente o modelo do
conservadorismo britânico. Isso mudou. Agora o modelo do conservadorismo
massificou e pegou o modelo americano. Ele pegou o modelo americano. É
preciso pensar essas transformações do pensamento conservador de tipo
reacionário hoje.
Que mais a gente tem aí que é importante para o Império? A gente tem
algo que era também residual, que é isso que eu comentei de neoliberalismo
ou neolibertarianismo, mas, na verdade, ele é realmente muito residual nesse
período. No Império, ele quase não existe. Ele começa a aparecer no finalzinho
do Império, na Primeira República, em torno do pensamento spenceriano.
Você vai dizer: “ó, mas existia libertarianismo antes de Hayek?”. Se você ler o
Spencer18, ele é muito parecido. Era o pessoal que era liberal econômico,
aquele que queria o Estado pequeno. Não tenho muito como explicar aqui e

18
Herbert Spencer, Filósofo (1820 - 1903).
nem teria muito por quê, porque não tem a ver com a coisa do Império. Mas o
que eu posso dizer é que o sonho do Herbert Spencer, político, é uma espécie
de democracia com Estado mínimo. E uma democracia que é pensada muito
como Estado de Direito e menos como participação. Os críticos dele vão dizer
que, empiricamente, isso é impossível, porque se você está incorporando aí,
nessa época, operário, trabalhador, mulher, essa gente toda, essa gente toda
está por baixo da carne seca. Esse pessoal quer Estado para conseguir ter
acesso à saúde, para ter acesso à educação. Então, se o sistema é democrático,
o Estado não tem como ficar mínimo. Mas quem tem isso no Império? No
finalzinho do Império, tem o Francisco Belisário, tem Alcindo Guanabara, tem
uns caras. Isso vai dar no Joaquim Murtinho, Ministro da Fazenda de Campos
Sales, mas aí já está na República. No Império, a rigor, posso dizer que isso não
tem. ,
Você tem outras duas ideologias que também não vão ter importância
para gente aqui, que é o socialismo. O socialismo brasileiro está preocupado
com as causas da desigualdade. Se, antes, estávamos falando de
conservadorismo reacionário, popular hoje, está nas bancas, a gente pode
pensar também no lado esquerdo, alguém como Jessé Souza, que é uma
espécie de Olavo de Carvalho no espelho, inverso, invertido. Reparem como
um está sendo preocupado com o problema da ordem moral e o outro está
preocupado com o problema da desigualdade. Nos livros do Jessé, o problema
é sempre a escravidão. A origem é sempre a escravidão. Isso mostra como é
que o pensamento socialista, na verdade, é preocupado com a produção de
igualdade. Para entender o estado de desigualdade, você tem que entender as
causas da desigualdade. A causa da desigualdade no Brasil, por excelência, é a
escravidão. Sempre vão dar muita ênfase a essa questão da escravidão, a
questão dos direitos trabalhistas, como é que você constitui operário digno,
diferente do escravo, como se supera essa herança escravista e por aí vai. A
diferença é que existe um socialismo que é estatista e um socialismo que é
cosmopolita. É tudo a mesma coisa? Não, eles não são a mesma coisa não. Eles
se bicam. Na oposição, fica tudo igual. No governo, eles se separam. É
exatamente como está acontecendo agora com os conservadores. Eles são
diferentes. Os estatistas são herdeiros do conservadorismo estatista e a figura
paradigmática da transição é Getúlio Vargas. Getúlio Vargas é conservador
estatista tradicional e depois vai cair para a esquerda nacionalista. Eles herdam
muita coisa do conservadorismo estatista, acreditam no papel indutor do
Estado. Só que o papel do Estado não é mais liberalizar a sociedade, o progresso
é produzir igualdade, mas também através do desenvolvimento, da
intervenção no domínio econômico, no domínio social. Neste sentido, eles são
herdeiros. Não são os únicos. Você também continua tendo algum
conservadorismo estatista aí. O pensamento hegemônico dos militares
continua sendo esse. Mas, ele ficou hegemonicamente identificado com a
esquerda agora. Os militares nem conseguem ser estatistas porque tudo ficou
associada à esquerda, então eles ficam quietos engolindo Paulo Guedes.
Você tem o socialismo que é cosmopolita. O socialismo que é
nacionalista, o socialismo estatista, às vezes, é uma coisa engraçada. Você pega
um cara tipo Darcy Ribeiro, como é que ele bebe no Gilberto Freyre, só que é o
Gilberto Freyre que leu Marx. Então, você consegue estruturar um tipo de
discurso que, ao mesmo tempo, elogia as classes populares brasileiras e mete
o pau nas elites. Mas você tem um socialismo cosmopolita também, que é
tributário do liberalismo político e que, na verdade, também acha que a
herança é negativa, que você tem que beber em modelos do socialismo
contemporâneo. Itália via Gramsci. Quer dizer, estou falando na década de
1940, 1950, 1960. União Soviética não, porque União Soviética é o modelo
nacionalista. Você tem que partir da liberdade. Eles sofrem de Estadofobia,
igualzinho aos liberais.
Em São Paulo, você tem o predomínio de liberalismo político e de
socialismo cosmopolita. A identidade política de São Paulo é muito modelada
por liberalismo e pelo socialismo, os dois dentro do quadrante cosmopolita,
por várias razões, sobretudo pela posição excêntrica, quer dizer, descentrada,
ocupada por São Paulo no contexto da federação. São Paulo é, de longe, o
Estado mais poderoso e a capital não está aqui dentro. De alguma maneira,
você fazer a defesa do liberalismo e da liberdade, é uma maneira de evitar
interferência da União no estado de São Paulo. Sobrevivência das autonomias
das oligarquias de São Paulo, políticas de São Paulo, das elites políticas, como
vocês quiserem chamar.
O Rio de Janeiro, o contrário. Como Rio de Janeiro é capital, a ideia de
nação é poderosíssima no pensamento carioca, a ideia da unidade nacional e a
ideia da autoridade do Estado. A cabeça do fluminense é uma cabeça
centralizadora, é uma cabeça mais estatista. Então você tem essas disputas.
Mesmo que tenha caído para esquerda, esse tipo de nacionalismo.
O socialismo nacionalista tem, por exemplo, o Celso Furtado. Mas você
vai ler as ideias do Celso Furtado e muitas das suas ideias são parecidas com as
do Oliveira Viana, que é conservador estatista, ou com o Visconde do Uruguai,
porque você tem uma ligação com aquele tipo de pensamento nacionalista do
conservadorismo do Império, que veio depois com Vargas, papel do Estado,
resgate das populações pobres, etc. e tal. Mas você tem um pessoal que sofre
de estadofobia, de São Paulo, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique
Cardoso, se é que algum dia ele foi socialista. Todos os intelectuais de São
Paulo, você conta nos dedos os que não são. Sei lá, o Bréscia não é, mas a
maioria é. Dentro da esquerda, tem essa questão do receio do Estado. Toda essa
história da fundação do PT, do ABC, tudo isso, na verdade, eles fazem a crítica
do socialismo estatista do Rio, com seus sindicatos, a tutela de Vargas. Eles
também são anti-varguistas. Não é todo socialista que é varguista.
Com a apresentação dessas seis ideologias do pensamento político
brasileiro, dividido nesses três quadrantes. Quadrante cosmopolita:
neoliberalismo/libertarianismo, liberalismo político, socialismo cosmopolita;
no quadrante nacionalista ou particularista, você tem conservadorismo
culturalista, conservadorismo estatista e socialismo estatista ou nacionalista,
se vocês preferirem. Com isso, acho que conseguimos encerrar essa primeira
aula, pois já conseguimos obter todo o instrumental, todo o ferramental
necessário para que consigamos analisar os autores e seus contextos na
história do Império. Eu posso já antecipar que a história do pensamento
político do Império é uma história que oscila, sobretudo, entre
conservadorismo estatista e liberalismo político. Você tem um
conservadorismo culturalista, que aflora depois de 1860 e que cresce junto
com o liberalismo político, por razões que veremos. Oposição ao Estado, mas
ele é residual. Ele acaba virando o conservadorismo hegemônico mais para o
fim do Império, mas ele é mais residual.

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