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Isto não é Filosofia

CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 6 – Cap. 6 – Filosofia Contemporânea: Heidegger e Ferry
Prof. Vitor Lima

ENCONTRO 6
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA:
HEIDEGGER E FERRY

Sumário
1. Filosofia contemporânea....................................................................................................... 2
1.1 A crise do pensamento moderno .................................................................................. 2
1.2 Crítica à subjetividade ..................................................................................................... 3
1.3 Ênfase na linguagem....................................................................................................... 4
1.4 Crítica ao antropocentrismo ........................................................................................... 5
1.5 Modernidade: herança e ruptura ................................................................................... 5
2. Filosofia pós-desconstrucionsimo ....................................................................................... 8
2.1 Herdeiros da desconstrução .......................................................................................... 9
2.1.1 A diagnóstico de Heidegger .................................................................................. 10
2.2 Retomada do projeto moderno .................................................................................... 12
3. O humanismo não materialista de Luc Ferry ................................................................... 12
3.1 Crítica ao materialismo ................................................................................................. 12
3.1.1 A liberdade como postulado em Kant ................................................................. 12
3.2 Theoria: transcendência na imanência e autorreflexão ........................................... 14
3.2.1 Transcendência na imanência.............................................................................. 14
3.2.2 Autorreflexão ........................................................................................................... 15
3.3 Ética: humanitarismo como transcendência vertical ................................................ 15
3.4 Salvação: a sabedoria do amor ................................................................................... 16
3.4.1 Pensamento alargado ............................................................................................ 16
3.4.2 Amor à singularidade ............................................................................................. 17
3.4.3 Experiência do luto ................................................................................................. 17
Bibliografia ................................................................................................................................. 18

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1. Filosofia contemporânea

Há uma dificuldade intrínseca em estudar História da Filosofia Contemporânea.


Falta distanciamento histórico para avaliar a durabilidade da influência do que é
produzido, critério que costuma ser predominante na escolha do que ser mencionado
nos manuais oficiais. No entanto, é preciso correr o risco, uma vez que a produção
filosófica em nossos dias é intensa e abrangente, sendo possível dizer que nunca houve
tantos filósofos, em tantas vertentes diferentes produzindo ao mesmo tempo na História
humana. É sempre possível cometer a injustiça de deixar de mencionar alguém
relevante.

1.1 A crise do pensamento moderno

A Filosofia Contemporânea pode ser vista como resultado da crise do


pensamento moderno do séc. XIX. Mas o que é o projeto moderno? Em linhas gerais,
Segundo Marcondes (p. 255), é a
“...busca da fundamentação da possibilidade do conhecimento e das teorias científicas na análise
da subjetividade, do indivíduo considerado como sujeito pensante, como dotado de uma mente ou
consciência caracterizada por uma determinada estrutura cognitiva, bem como por uma
capacidade de ter experiências empíricas sobre o real, tal como encontramos no racionalismo e
no empirismo, embora em diferentes visões.

Em suma, em três grandes eixos o pensamento moderno se fundamenta: na


centralidade da subjetividade, na ênfase do indivíduo e na valorização do homem1.

1
“homem (lat. homo, hominis) O que é o homem? Seria um objeto real ou apenas uma ideia? Seria uma
certa variedade animal, que os antropólogos chamam de Homo sapiens? O fato é que o homem existe no
planeta terra há dezenas de milhares de nãos. Hoje em dia, quando se fala da ‘morte do homem’ (M.
Foucault), trata-se da ideia ocidental do homem. Essa ideia foi criada pelo Cristianismo e pela antiguidade
greco-latina. A Bíblia afirma a posição dominante do homem sobre a natureza (Adão, Noé) e conta a
aliança que o Deus único e criador estabeleceu com uma parte dos descendentes de Adão. Ademais,
afirma que o próprio Deus se fez homem para salvar os homens. O fato de o homem relacionar-se com
Deus torna-o diferente do resto da natureza. Aos poucos, o pensamento grego elabora a ideia de que o
homem é um ‘animal dotado de razão’ (Aristóteles). As duas correntes vão se encontrar na Idade Média,
graças aos esforços conceituais da escolástica. Com o Renascimento, há uma reviravolta: a Terra deixa de
ser o centro do mundo, gira em torno do Sol, descobre-se a existência de outros homens além do oceano
etc. É a época do humanismo, na qual a ideia de homem vai laicizar-se. Utiliza-se a matemática para se
descrever e conhecer o mundo (Galileu, Newton). Na dúvida metódica de Descartes, a única evidência
que subsiste é o ‘eu penso, logo existo’. Tudo o que não é pensamento é reduzido à extensão submetida
às leis das matemáticas da mecânica. Assim, o homem se converte em ser abstrato, num mestre do
universo, simplesmente porque sabe que pensa e porque sabe medir a extensão. O prodigioso
desabrochar das ciências parece confirmar essa visão (a Enciclopedia e a filosofia das Luzes). No séc. XIX,
o homem, sujeito do conhecimento desde o século XVII, torna-se objeto de conhecimento: começam a
nascer as ciências do homem. Darwin situa o homem numa linhagem evolutiva e mostra que ele também
é um animal. Marx mostra que os homens não dominam as leis da economia, mas são dominados por
elas. A psicologia descobre que o homem está longe de fazer o que quer, de ser o que acredita ser. Abala-
se a ideia de homem. Questiona-se o cerne mesmo dessa ideia: a razão. O que entendemos hoje por
homem? Afinal, ‘o que é o homem?’, se perguntava Kant. Se a ideia de homem morreu, nem por isso o
homem concreto deixou de existir.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 122-23)

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No séc. XIX, esse projeto entra em crise a partir de Hegel e de Marx. A


contraposição proposta pelos dois filósofos é a de que o processo histórico precisa
ser levado em consideração quando se analisa a consciência. No primeiro, essa crítica
acontece numa vertente idealista. No segundo, numa vertente materialista.
Além disso, os românticos rompem com duas temáticas da modernidade.
Primeiro, o foco nos estudos da origem do conhecimento – o debate entre
racionalistas e empiristas – e nas condições de possibilidade do conhecimento – a
contribuição inaugurada por Kant. Segundo, a ênfase na ciência como modelo
privilegiado de relação do homem com a realidade.
Soma-se a isso a desconfiança da possibilidade de uma investigação filosófica
sistemática, de modo a cobrir todos os campos do saber. Tal empreitada passa a ser
vista como irrealizável, dada a crescente especialização do saber em diferentes ciências
e em suas ramificações. O último filósofo, talvez, a adotar essa visão de todo foi Hegel.

1.2 Crítica à subjetividade

Há uma crítica em muitas frentes à centralidade atribuída à noção de


subjetividade, o “eu penso”, que tem seu ponto de partida em Descartes2. De um lado,
há a crítica tributária de Marx e Hegel. De outro, há a crítica tributária de Leibniz e Kant.
Hegel mostra que a subjetividade é resultado de um processo de formação
histórica, não podendo ser considerada prévia ao contexto temporal e espacial. O que
era considerado o fundamento de nossa possibilidade de conhecer o real passou a não
mais ser localizado no mundo transcendente.
Marx parte dessa posição e acrescenta uma interpretação materialista,
enfatizando o papel do trabalho e das relações de produção na constituição da
subjetividade.
Quanto à crítica tributária de Leibniz e Kant, a abordagem levará em conta as
contribuições dos estudos da linguagem e da lógica, principalmente para lidar com as
dificuldades dos modernos em conciliar a relação entre sujeito e objeto, mente e mundo.
Isso ocorre porque a conexão entre um e outro se dá via representação, e a
representação passou a ser vista, de certo modo, como uma construção subjetiva, não
objetiva. O problema a ser atacado passou a ser o de construir uma alternativa à
redução da realidade à experiência subjetiva, psicológica, individual.

2
“eu (filosofia do) O eu (ego em latim, je em francês) constitui o termo característico para designar a
filosofia do sujeito (ou da consciência), que parte do pensamento pessoal a fim de construir toda uma
teoria do conhecimento. Nascida com o cogito de Descartes, ela se encontra bem expressa no ‘Penso,
logo existo’. Podemos duvidar de tudo, podemos nos perguntar se os objetos que percebemos não
constituem fantasmas ou visões de um sonho. Contudo, enquanto estamos duvidando, percebemos que
há pelo menos uma coisa que permanece ao abrigo da dúvida: existe um certo ser, que se encontra aí e
que está duvidando. ‘Esta proposição: je suis, j‘existe é necessariamente verdadeira todas as vezes que a
pronuncio ou que a concebo em meu espírito’, comenta Descartes. E do cogito, ele tira a conclusão: eu
sou uma substância que pensa. Cada vez que pensamos ou dizemos ‘eu’, ou seja, que temos consciência
atual de existir, esta consciência é um ato, não uma coisa. Porque afirmar a existência de um eu pensante
é exceder os limites de nossa experiência.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 91)

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1.3 Ênfase na linguagem

Uma alternativa encontrada pelos filósofos contemporâneos foi recorrer à


linguagem para explicar a relação entre mente e mundo. Ao tentar investigar o processo
de significação, várias vertentes inauguraram projetos de pesquisa distintos, mas
partindo da mesma ideia: a análise do processo de atribuição de significados, de
símbolos, de sinais que utilizamos em nossa relação com a realidade. Tal empreitada
aconteceu em duas direções.
A primeira direção partiu da noção de que os processos mentais subjetivos
dependem de linguagem, de significados, de um sistema simbólico. A partir daí, a
relação entre linguagem e mundo poderia ser estudada de modo a compreender as
regras e princípios envolvidos nessa atividade.
A segunda direção partiu da noção de que a linguagem pode ser vista a partir de
um ponto de vista lógico, como constituída de estruturas formais independentes dos
processos mentais subjetivos. A partir daí, a relação entre linguagem e mundo poderia
ser estudada sem levar em consideração a consciência individual.
Algumas teorias que se desenvolveram nesses dois sentidos são estas.
Filosofia Analítica da Linguagem. Inspirada em parte em Leibniz e no
desenvolvimento da lógica matemática, alguns filósofos se destacam: Gottlob Frege e
sua obra Conceitografia (1879); Bertrand Russell e sua obra Princípios da Matemática
(1903) e Principia Mathematica (1910), com A. N. Whitehead; Ludwig Wittgenstein e sua
obra Tractactus logico-philosophicus (1921).
Positivismo lógico do Círculo de Viena. Partindo da uma concepção de
fundamentação do pensamento científico de cunho empirista e lógico, destacam-se os
seguintes pensadores.
Semiótica e a teoria geral dos signos de Charles Sanders Peirce, com sua teoria
pragmática da verdade.
A filosofia das formas simbólicas. Ernst Cassirer e sua obra homônima
forneceram uma interpretação do conhecimento da cultura por meio dos processos de
simbolização desenvolvidos ao longo da História.
Hermenêutica. Surgida sob a inspiração do teólogo e filósofo Friedrich
Schleiermacher, considera a interpretação como forma de relação fundamental com o
real. O principal representante atual é H. G. Gadamer com sua obra Verdade e método
(1960).
Estruturalismo. Grande corrente influente na produção filosófica de língua
francesa, tem como principais nomes: Ferdinand de Saussure e sua obra Curso de
linguística geral (1916); Claude Lévi-Strauss e sua Antropologia estrutural (1958); Louis
Althusser; Jacques Lacan; Michel Foucault; Roland Barthes.
Antropologia linguística. Os principais nomes são: Borislaw Malinowski e seu
O problema do significado nas linguagens primitivas (1923); Edward Sapir e seu livro
Language (1921); Benjamin Lee Whorf.

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Teoria linguística de Noam Chomsky e sua obra Estruturas sintáticas (1957).


Chomsky buscou pesquisar os universais linguísticos presentes em todas as línguas e
aos processos cognitivos.

1.4 Crítica ao antropocentrismo

Diferentes pontos de vista também questionam na contemporaneidade o


antropocentrismo. De acordo com essa noção tipicamente moderna, o homem tem
uma natureza portadora de direitos naturais, que é dotada de racionalidade, entendida
como consciência autônoma, com capacidades cognitivas e éticas não presentes nos
demais animais. Há, ao menos, três abalos a considerar nessa noção – cosmológico,
biológico e psicológico.
Em primeiro lugar, a ruptura pode ser remontada à teoria heliocêntrica de
Copérnico (1473-1543), a partir de sua obra Da revolução das esferas celestes (1543).
Copérnico retirou a Terra de seu lugar ao deslocá-la, como era no modelo cosmológico
antigo e medieval, do centro do universo para colocá-la em movimento ao redor do Sol.
De estável e perfeita em sua posição, passou a ser instável e imperfeita – dado que, do
ponto de vista da cosmologia anterior, a própria ideia de movimento já denotava
imperfeição. O modelo cosmológico heliocêntrico abala as crenças tradicionais do
homem tanto em relação à ordem do universo, quanto em relação ao seu lugar nessa
ordem.
Em segundo lugar, a ruptura pode ser encontrada também na teoria da
evolução das espécies de Charles Darwin (1809-1882), a partir da publicação de A
origem das espécies pela seleção natural (1859). O homem passou a ser entendido
como mais uma espécie natural entre outras, que resultam de um processo de seleção
natural, com ancestrais comuns. A crença da superioridade humana em relação aos
demais seres passou a ser amplamente questionada também no âmbito biológico.
Em terceiro lugar, a ruptura também está presente na teoria psicanalítica de
Sigmund Freud (1856-1939), principalmente com o conceito de inconsciente, com sua
formulação inicial em A interpretação dos sonhos (1900). Depois das investigações
freudianas e das que dela derivaram, a concepção de que o homem se define pela
racionalidade clássica e pela consciência passaram a perder força. Segundo Freud, os
desejos e os valores humanos são fortemente influenciados por uma dimensão psíquica
da qual não temos plena consciência e que, ainda que reprimida, manifesta-se à revelia
de deliberação nos sonhos, no pensamento, na linguagem, na ação cotidiana.
A essas três rachaduras na noção de homem tal qual herdada da tradição,
somam-se problemas típicos do séc. XX que também continuam presentes no séc. XXI.
Ambos são provenientes da revolução da informática – em que se ocupa a Filosofia
da Mente – e da engenharia genética – em que se ocupa a Bioética.

1.5 Modernidade: herança e ruptura

É difícil categorizar os filósofos contemporâneos. Adotaremos, para efeitos


didáticos, a divisão de Marcondes: herança da modernidade e ruptura com a

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modernidade. Os herdeiros são continuadores da tradição, embora de forma crítica. A


Filosofia teria a tarefa de desenvolver os projetos de pesquisa já iniciados, ainda que
buscando novos rumos. Pertencem a esse rótulo a Fenomenologia3, o Existencialismo4,
a Filosofia Analítica5, o Positivismo Lógico e a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt6.

3
“fenomenologia 1. Termo criado no século XVIII pelo filósofo J.H. Lambert (1728-1777) designando o
estudo puramente descritivo do fenômeno tal qual este se apresenta à nossa experiência. 2. Hegel
emprega o termo em sua Fenomenologia do espírito (1807) para designar o que denomina de ‘ciência da
experiência da consciência’, ou seja, o exame do processo dialético de constituição da consciência desde
seu nível mais básico, o sensível, até as formas mais elaboradas da consciência de si que levariam
finalmente à apreensão do absoluto. 3. Corrente filosófica fundada por E. Husserl, visando a estabelecer
um método de fundamentação da ciência e de constituição da filosofia como ciência rigorosa. O projeto
fenomenológico se define como uma ‘volta às coisas mesmas’, isto é, aos fenômenos, aquilo que aparece
à consciência, que se dá como seu objeto intencional. O conceito de intencionalidade ocupa um lugar
central na fenomenologia, definindo a própria consciência como intencional, como voltada para o mundo:
‘toda consciência é consciência de alguma coisa’ (Husserl). Dessa forma, a fenomenologia pretende ao
mesmo tempo combater o empirismo e o psicologismo e superar a oposição tradicional entre realismo e
idealismo. A fenomenologia pode ser considerada uma das principais correntes filosóficas deste século,
sobretudo na Alemanha e na França, tendo influenciado fortemente o pensamento de Heidegger e o
existencialismo de Sartre, e dando origem a importantes desdobramentos na obra de autores como
Merleau-Ponty e Ricoueur.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 198)

4
“existencialismo (fr. existentialisme) Filosofia contemporânea segundo a qual, no homem, a existência,
que se identifica com sua liberdade, precede a essência; por isso, desde nosso nascimento, somos
lançados e abandonados no mundo, sem apoio e sem referência a valores por nossa própria liberdade e
sob nossa própria responsabilidade. Quando Sartre diz que a existência precede a essência, quer mostrar
que a liberdade é a essência do homem: ‘A liberdade do para-si aparece como seu ser.’ Assim, a filosofia
existencialista é centrada sobre a existência e sobreo homem. Ela privilegia a oposição entre a existência
e a essência. Quanto ao homem, ele é aquilo que cada um faz de sua vida, nos limites das determinações
físicas, psicológicas ou sociais que pesam sobre ele. Mas não existe uma natureza humana da qual nossa
existência seria um simples desenvolvimento. O cerne do existencialismo é a liberdade, pois cada
indivíduo é definido por aquilo que ele faz. Donde o interesse dos existencialistas pela política: somos
responsáveis por nós mesmos e por aquilo que nos cerca, notadamente, a sociedade: aquilo que nos cerca
é nossa obra. Como o pensamento filosófico (abstrato e generalizante) não apreende a existência
individual, na qual a angústia tem um papel preponderante, o existencialismo abre-se para a literatura e
para o teatro, fazendo a filosofia passar pelos romances e pelas peças teatrais.” (JAPIASSÚ, MARCONDES,
1990, p. 92)

5
“filosofia analítica Corrente de pensamento filosófico que se desenvolveu sobretudo na Inglaterra e nos
Estados Unidos a partir do início deste século, com base na influência de filósofos como Gottlob Frege,
Bertrand Russel, George Edward Moore e Ludwig Wittgenstein, dentre outros. Caracteriza-se, em linhas
gerais, pela concepção de que a lógica e a teoria do significado ocupam um papel central na filosofia,
sendo que a tarefa básica da filosofia é a análise lógica das sentenças, através da qual se obtém a solução
dos problemas filosóficos. Há, no entanto, profundas divergências sobre as diferentes formas de se
conceber esta análise.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 100)

6
“Frankfurt (escola de) Nome genérico para designar um grupo de filósofos e pesquisadores alemães
que, unidos por amizade no início dos anos 30, emigraram, com o advento do nazismo, só retornando à
Alemanha depois da guerra: Theodor Adorno, Walter Benjamin, Max Horkheimer, Herbert Marcuse,
Jürgen Habermas etc. A pretensão básica do grupo foi a de elaborar uma teoria crítica do conhecimento,
de um lado, aprofundando as origens hegelianas de Marx, do outro introduzindo um questionamento no
sistema de valores individualistas. Assim, a escola de Frankfurt elucidou o caráter contraditório de

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Os que rompem preferem inaugurar novas reflexões e formas de filosofar. O


papel da Filosofia não seria o de desenvolver o que já foi iniciado, mas o de criar
metodologias e possiblidades, ainda que fazendo referência ao passado. Vinculam-se
a essa etiqueta Heidegger, Wittgenstein e os pensadores do que se tem chamado de
pós-estruturalismo e pós-modernismo7.

conquista racional do mundo, pois a racionalidade científica e técnica consegue o feito de converter o
homem num escravo de sua própria técnica. Procedeu ainda, de modo mais ou menos radical, segundo
os autores, a uma crítica da ‘massificação’ da indústria cultural, dos totalitarismos, da concepção
positivista do mundo etc.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 106)

7
“modernidade 3. A questão da modernidade é uma controvérsia contemporânea, envolvendo questões
filosóficas de interpretação da sociedade, da arte e da cultura. Pode ser representada, por um lado, pelo
filósofo francês Lyotard e, por outro, pelo filósofo alemão Habermas. Lyotard introduz a ideia da ‘condição
pós-moderna’, como uma necessidade de superação da modernidade, sobretudo da crença na ciência e
na razão emancipadora, considerando que estas são, ao contrário, responsáveis pela continuação da
subjugação do indivíduo. De acordo com Lyotard, seguindo uma inspiração do movimento romântico, a
emancipação deve ser alcançada através da valorização do sentimento e da arte, daquilo que o homem
possui de mais criativo e, portanto, de mais livre. Habermas, por sua vez, defende o que chama de ‘projeto
da modernidade’, considerando que esse projeto não está acabado, mas precisa ser levado adiante, e só
através dele, pela valorização da razão crítica, será possível obter a emancipação do homem da ideologia
e da dominação política e econômica.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 170)

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2. Filosofia pós-desconstrucionsimo

Resumo das filosofias

Theoria Ética Salvação


Adaptação ao
kósmos e
lugar do kósmos Desapego da vida
lógos impessoal –
Estoicos atitude intelectiva
correspondente a cada pessoal para voltar ao
um, seguindo o lógos kósmos impessoal
diante da realidade
que o rege

Observação dos
kósmos e Pratica do amor em
mandamentos divinos
lógos encarnado – Deus e o amor de Deus
Cristãos atitude humilde de fé
inscritos na Bíblia,
para alcançar a vida
inspirada pelo lógos
diante de Deus eterna pessoal
encarnado.

Engajamento em
Sem kósmos e sem Dignidade humana e religiões seculares,
lógos encarnado – individualismo como empreendimentos
Modernos atitude de construção negação da natureza humanos: revolução
da realidade via egoísta, rumo a (progressismo), nação
cognição humana princípios universais (nacionalismo) e
ciência (cientificismo)

Eterno retorno e amor


Forças ativas e reativas fati – agir de modo a
Grande estilo –
– atitude genealógica eternizar momentos
intensificação e
de identificação dos valiosos e amar a
hierarquização das
Pós-modernos pressupostos morais
forças ativas e reativas;
realidade presente tal
inconfessáveis por trás qual ela é, com a
arquétipo do artista, do
dos juízos sobre a consciência de que não
criador de mundos
realidade poderia ser de outro
modo.
Sabedoria do amor:
Transcendência na Valores verticais:
pensamento alargado
Humanismo não imanência: liberdade humanitarismo.
rumo à singularidade
em nós e valores fora Absoluto como
materialista de nós – autorreflexão, postulado no âmbito
no outro e experiência
de Luc Ferry do luto com
histórica como projeto prático, embora inviável
reconciliação ainda em
de emancipação. no plano teórico.
vida.

Os medievais trocaram o lógos impessoal dos antigos pelo lógos pessoal dos
cristãos, mantendo a ideia de kósmos organizado, harmônico e hierárquico. Apostaram
na ideia de amor em Deus, para pautar suas relações coletivas e para garantir a
salvação individual de si e de seus entes amados no pós-vida.
Os modernos, em contrapartida, abandonaram a noção de kósmos e criticaram
a autoridade religiosa – com ela a salvação pela fé no lógos encarnado. Trocaram-na
pelo ideal humanista e pelas ideias de racionalidade e liberdade humanas, centrados na
premissa de que o homem é fundamentalmente diferente dos outros animais – nos
atributos de perfectibilidade (Rousseau) e princípios universais (Kant). Nesse cenário, a
salvação se dá por tripla via: revolução (comunismo), preservação e exaltação da

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nacionalidade (nacionalismo), descoberta e inovação científicas (cientificismo). Por sua


vez, todo esse prédio teórico se fundamenta na sacralização do espírito crítico que
opera via dúvida metodológica que de tudo duvida, inclusive desconsiderando a tradição
(Descartes).
Os pós-modernos, com Nietzsche à frente, voltaram-se contra o humanismo,
denunciando-lhe o mesmo pressuposto metafísico que atacavam: a dicotomia
mundo/além-do-mundo, a ideia de que alguns valores são superiores à vida, e que o
real deve ser julgado pelo ideal. Nesse ataque, estão Religião, Filosofia e Ciência,
porque seus ideais – kósmos, Deus e Razão – são os ídolos que operam a partir da
duplicação de mundos, negando o imanente em prol do transcendente. Aceitar a vida é
aceitar a sua composição caótica, composta de forças ativas e reativas. A via ética é
cultivar o grande estilo – a intensificação e a hierarquização das forças cósmicas – e
buscar salvar-se aqui neste mundo e não em outro, maximizando momentos valiosos e
desejando a realidade como ela é.
Qual rumo tomar diante do pós-modernismo? Os filósofos adotaram duas vias:
a continuação da desconstrução, de um lado, e a volta às grandes questões da
modernidade, de outro.

2.1 Herdeiros da desconstrução

O caminho herdeiro da desconstrução é aquele que levará em conta nestes


quatro pontos inaugurados por Nietzsche:

• A theoria ontológica como o conflito de forças ativas e reativas, como


sobreposição de uma em relação a outra;
• A theoria epistemológica como genealogia, isto é, como identificação e
ataque de aspectos não declarados e inconfessáveis nas ideias defendidas.
O caminho de crítica não é lógico-argumentativo. Passa a ser ora por
identificação e denúncia de tipos morais (via psicológica), ora por
identificação e denúncia de tipos sociais (via sociológica).
• A ética como a intensificação e hierarquização dessas forças, realizada
principalmente no arquétipo do artista, do que valoriza antes a criação de
mundos novos que a tradição.
• A salvação como seleção e repetição de momento valiosos (eterno retorno)
e como aceitação do conflito de forças ativas e reativas (amor fati).
A sociologia e a biologia passam a desconstruir a ideia de que os indivíduos
são autônomos e livres, uma das premissas do humanismo.
Na verdade, os homens seriam determinados por variáveis éticas (valores de
bem e mal), políticas (relações de poder), culturais (modos de ser de cada comunidade)
e econômicas (relações de produção e distribuição de riquezas) que lhe fogem à
deliberação exclusivamente individual. Hoje – diríamos – a mídia, o algoritmo das redes
sociais, associados às técnicas de marketing, bem como as “bolhas ideológicas”,
criadas por uma e por outros, determinam a todos.

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Na realidade, também, os homens seriam determinados por variáveis químicas


e biológicas. O cérebro (algo material) comandaria o que chamamos de mente (algo
pretensamente imaterial), e tudo se reduz a sinapses que dependem da quantidade
balanceada ou desbalanceada de substâncias nela contidas. O comportamento humano
nada mais seria que fruto da necessidade de adaptação do homo sapiens às
modificações de seu ambiente.
Marx, por exemplo, centrou sua crítica na identificação dos aspectos
inconfessáveis das ideias localizados nas relações materiais de produção
econômica. Por sua vez, Freud centrou sua crítica na identificação dos aspectos
inconfessáveis das ideias localizados nas pulsões ocultas do inconsciente.
A maior crítica de Ferry é o que chama de “triunfo da sacralização do real
como ele é”, isto é, de um comodismo resultante de levar realmente a sério a ideia de
amor fati e vontade de potência. Tal qual a interpreta Ferry, o que essas noções
guardam é a negação total a toda forma de transcendência e, como resultado, a simples
aceitação de todo e qualquer aspecto da imanência – inclusive de suas injustiças – e o
domínio pelo domínio.

2.1.1 A diagnóstico de Heidegger

Aos olhos de Ferry, é Heidegger quem descreve a época atual como


consequência desse ímpeto desconstrutivo nietzscheano. Hoje, viveríamos na Era do
domínio da técnica. A ideia central é a de que o projeto de dominação da natureza e
da história, que acompanha o nascimento do mundo moderno, inclusive fundando os
ideais de autonomia democrática e de emancipação por intermédio da razão,
transforma-se em seu contrário perfeito: uma situação em que os homens perdem todo
o controle sobre o desenvolvimento do mundo. São três momentos: nascimento da
Ciência Moderna, século das Luzes e concorrência global.
O primeiro momento, aparece com o nascimento da Ciência Moderna, a
partir do rompimento com a Filosofia Grega. Inicia um projeto de dominação da Terra,
inspirado no dito de Descartes, segundo o qual o homem se tornaria “senhor e
proprietário da natureza”.
Essa via se deu por dois caminhos: intelectual e prático.
No plano intelectual, o objetivo era tornar o mundo completamente explicável por
meio da razão. A premissa é de que nada acontece no mundo sem razão. O projeto foi
de erradicar o mistério que os homens da Idade Média e da Idade Antiga acreditavam
inerente à natureza8.
No plano prático, uma vez que não há mistérios no mundo natural, tudo se reduz
ao seu aspecto material e não há sentido intrínseco na natureza. Em suma, não há
impedimento algum ao homem em dispor como quer da realidade, para alcançar os
seus próprios fin.

8
Ver fragmento de Heráclito: “A natureza ama esconder-se”.

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Essa é a época dos séculos XVII e XVIII – o tempo de Descartes, dos


enciclopedistas franceses e de Kant. Em todos eles o desencantamento da natureza e
seu domínio ainda se vinculavam a uma finalidade emancipadora humana. O objetivo
não é dominar por dominar, mas sim compreender o mundo e poder, ocasionalmente,
servir-se dele com vistas a atingir certos objetivos superiores: liberdade e felicidade.
O mundo da técnica, ao contrário, é o universo no qual a preocupação com os
fins, com os objetivos últimos da história humana, desaparece em benefício exclusivo
da atenção aos meios. Mas antes dele, ainda há uma etapa intermediária.
O segundo momento descrito por Heidegger é o século das Luzes. Os ideais
de liberdade e felicidade ainda estão plenamente presentes.
De um lado, o progresso da razão vai emancipar o homem das tiranias políticas.
O objetivo é livrar o homem do jugo das autoridades – da superstição e do
obscurantismo. Eis o ideal de liberdade.
De outro lado, o progresso da razão vai emancipar o homem das tiranias
naturais. A finalidade é permitir dominar a natureza para que estejamos e ela menos
submetidos e menos submissos à fome, à peste, aos desastres naturais. Eis o ideal de
felicidade.
O projeto iluminista, com a passar do tempo, descaracteriza-se e é incorporado
ao mundo da competição pela competição, que prega o progresso pelo progresso. É
aqui que acontece a transformação completa.
O terceiro momento descrito por Heidegger é o da concorrência generalizada
ou “globalização”, nos termos de hoje.
O progresso passa a não ter outro fim além de si mesmo, porque o que interessa
é se manter páreo na concorrência econômica, profissional, afetiva etc. Essa atmosfera
gera

• o incessante desenvolvimento da técnica


• o aumento de poder sobre o mundo e
• o automatismo, o descontrole e a cegueira das atividades anteriores.
Não se trata mais de ser livre e feliz, porque simplesmente é cada vez mais
inviável agir de modo diferente, devido à natureza da sociedade. “Progredir ou
perecer”9 – eis o lema do mundo da técnica. Do mesmo modo que a Apple não escolhe
lançar o novo Iphone (ou lança ou fica para trás), os indivíduos não escolhem se
desenvolverem ou se aperfeiçoarem (ou o fazem ou ficam para trás) no mercado de
trabalho e no mercado afetivo.
O raciocínio predominante passa a ser não é que estabelece finalidades – como
liberdade e felicidade – mas o hipotético do tipo “se..., então...”. Se quero isto, então
preciso fazer aquilo. O problema é que o que vem antes da vírgula – a finalidade
propriamente dita – nunca é objeto de deliberação. Os homens do mundo da técnica só
estão preocupados com os meios, porque os fins já estão postos pelo mundo da técnica.

9
Há uma versão dessa máxima no mundo acadêmico: “publish or perish”, isto é, “publique ou pereça”.

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Essa seria a consequência de destruir todos os ídolos – e com eles todas as finalidades
– conforme propôs Nietzsche.

2.2 Retomada do projeto moderno

A principal lição que Ferry toma de Heidegger é a de que, como o mundo da


técnica opera de modo automático e cego, sem poder centralizado, o principal papel da
Filosofia não é fazer a crítica dos ideais. Isso aprofundaria mais a crise em que nos
encontramos, porque tornaria o homem ainda mais descrente e, consequentemente,
ainda mais passivo. O que a Filosofia deve fazer é propor “novos ideais a fim de se
reencontrar um mínimo de poder no desenvolvimento do mundo”.

3. O humanismo não materialista de Luc Ferry


3.1 Crítica ao materialismo

Após criticar a tendência da Filosofia atual de se voltar apenas a questões


meramente técnicas10, Ferry centra sua crítica no que chama de materialismo, isto é,
toda filosofia hostil à noção de transcendência. Aqui ele enquadra Nietzsche e seus
herdeiros.
A crítica principal é que materialismo implica determinismo. Em outras
palavras, em um mundo estritamente material, reina a estrita lei da causalidade. Sendo
assim, tudo o que acontece é determinado por uma causa anterior e não fruto de
deliberação. E quanto está em jogo “tudo o que acontece”, a ação humana não escapa
a esse escopo.
Trata-se de uma crítica herdeira de Kant, para quem a existência da lei moral se
impõe à consciência como um fato da razão, e esse “fato” se pode explicar apenas
caso se admita a liberdade.
Por isso, uma breve explicação do lugar da liberdade em Kant.

3.1.1 A liberdade como postulado em Kant

Para Kant, as pessoas adquirem consciência da liberdade justamente porque


antes de tudo têm consciência do dever. O fato de existir o dever informa, por si mesmo,
que algo poderia ter sido feito de modo diferente, mas não foi. Por exemplo, quando
alguém se arrepende de ter feito algo errado, é razoável supor que esse sentimento só
existe porque ela considera que deveria ter feito algo diverso do que fez e, não só, que
poderia ter feito algo diverso do que vez. O dever parece implicar o poder e, portanto, a

10
A “Filosofia técnica” a que se refere Ferry é aquele que se preocupa apenas com a “reflexão crítica” –
necessária, não suficiente para o fazer filosófico – e com a “moral” – geralmente com questões dia como
bioética ambientalismo. Isso quando resolve sair dos muros da academia. Quando não sai, o que é mais
comum de acontecer, dedica-se apenas à “erudição pela erudição”, o que não deixa de ser uma vertente
do mundo da técnica, enunciado por Heidegger. Passa a investigar as ideias dos filósofos e de seus livros,
sem buscar relação alguma com o problema da salvação: sentido, vida boa, sabedoria etc.

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liberdade de fazer ou não fazer. Do contrário, não faria sentido sentir arrependimento –
afinal, se não houvesse escolha, não haveria responsabilidade pelos atos, e não
havendo responsabilidade, não haveria dever.
Dessa maneira, entra em campo a dimensão não fenomênica da liberdade.
A liberdade, afinal, não é captada pelo intelecto, posto que não se enquadra na
dimensão transcendental da sensibilidade (espaço e tempo), nem do intelecto
(categorias). Porém, é preciso admiti-la ainda assim.
A liberdade é a independência da vontade em relação à lei natural dos
fenômenos, ou seja, ao mecanismo causal. Essa liberdade, que nada explica no
mundo dos fenômenos (afinal, só os conhecemos mediante o princípio da causalidade
que não admite liberdade) e que, na Dialética Transcendental, capítulo da Crítica da
Razão Pura, dá lugar a uma antinomia insuperável11, ao contrário, explica tudo na esfera
moral.
O mundo inteligível e numênico, que escapava à razão pura e lhe estava
presente apenas como exigência ideal, torna-se, portanto, acessível por via prática. Na
Crítica da razão prática, a liberdade, a imortalidade (da alma) e Deus, de simples ideias
(exigências estruturais da razão) tornam-se postulados.
Os postulados são pressupostos de um ponto de vista necessariamente prático.
Portanto, não ampliam o conhecimento especulativo, mas dão às ideias da razão
especulativa em geral uma realidade objetiva e autorizam conceitos dos quais, de outro
modo, não se poderia sequer afirmar a possibilidade. Não se poderia fazer jus à lei
moral, se não se admitissem estes três postulados:
1. A liberdade, postulada pelo fato de que é possível conceber a vontade pura
como causa livre.
2. A existência de um Deus onisciente e onipotente, postulada para adequar
a felicidade do homem a seus méritos e ao grau de sua virtude.
3. A imortalidade da alma, postulada no sentido de um aproximar-se sempre
mais da santidade, uma vez que a santidade requerida pelo sumo bem pode
se encontrar apenas em um processo ao infinito.
A Crítica da razão pura adquire, assim, seu justo significado apenas à luz da
Crítica da razão prática.
Agora, voltando a Ferry.

11
Trata-se da terceira antinomia, que pode ser posta da seguinte maneira. Tese: a causalidade segundo
as leis da natureza não é a única da qual possam ter derivado todos os fenômenos do mundo; é necessário
admitir, para a explicação deles, também uma causalidade livre. Antítese: não existe nenhuma liberdade,
mas tudo no mundo acontece unicamente segundo leis da natureza. Na Crítica da Razão Pura, Kant
aponta esse debate como não passível de conciliação. Na Crítica da Razão Prática, no entanto, argumenta
que ambas podem ser verdadeiras, porém em âmbitos distintos. Em relação ao âmbito numênico, a tese
é verdadeira. Em relação ao âmbito fenomênico, a antítese é verdadeira.

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3.2 Theoria: transcendência na imanência e autorreflexão


3.2.1 Transcendência na imanência

Contra a hostilidade à noção de transcendência, sustenta que ela é, de um lado,


incoerente e que, de outro, conduz a atitudes cínicas e até obscenas diante de
realidades cruéis. Não há como protestar contra uma injustiça, se não há valor maior
em relação ao qual contrastar essa injustiça. Para Ferry, a transcendência dos valores
é uma necessidade humana.
Surge, então, sua reabilitação do humanismo, que chama de pós-nietzscheano,
ou pós-desconstrucionista, ou pós-materialista. Seria um humanismo sem as ilusões
dos ideais de salvação da Filosofia Moderna: cientificismo, revolucionarismo e
nacionalismo.
É nesse contexto que ele propõe a sua noção de transcendência, cuja essência,
para ele, é ser uma realidade exterior, independente e superior em relação a outra
realidade.
Nesse sentido, transcendência para os estoicos é transcendência em relação à
humanidade. Em outras palavras, transcendente é a realidade que é exterior,
independente e superior aos seres humanos, mas não à própria natureza. Por isso, a
realidade, para os estoicos, é imanente, isto é, não há duas realidades. Porém, dentro
dessa imanência, é possível falar que exista algo que é exterior, independente e superior
somente aos humanos, mas que, ainda assim, seja parte da natureza e não exterior a
ela.
Diferentemente, acontece a transcendência para os monoteístas (cristãos
incluídos), porque se dá em relação à realidade natural como um todo. Em outras
palavras, transcendente aqui é a realidade exterior, independente e superior não só aos
seres humanos, mas à totalidade natural da realidade.
A terceira possibilidade é o que o Ferry chama de "transcendência na
imanência". Essa é a sua posição. É uma formulação que abarca três afirmações:

• Toda presença supõe uma ausência


• Algo sempre nos escapa naquilo que nos é dado
• O saber absoluto não é possível a nós
Para a primeira, ele fornece o exemplo do cubo, que nunca consegue ser
visualizado em sua inteireza. Para a segunda, ele fornece o exemplo do horizonte, que,
apesar de conseguir ser visto empiricamente, nunca consegue ser alcançado. Em
relação à última, ele assume como consequência das duas anteriores.
Essa concepção faz com que aceitemos a imanência do mundo, mas que não
tenhamos a pretensão de localizar no mundo todas as respostas, que não tenhamos a
possibilidade de afirmar que tudo se reduz ao que é material. Vale dizer, há algo que
seja exterior, independente e superior – ou seja, transcendente – na imanência em
que vivemos e que nos escapa, embora só possa ser percebido a partir dessa
realidade, com os meios de que dispomos.

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A transcendência mínima de Ferry é assumir dois postulados:

• A liberdade dentro dos humanos


• Os valores fora dos humanos
Para Ferry, não inventamos “nem as verdades matemáticas, nem a beleza de
uma obra, nem os imperativos éticos”. Parece saltar da realidade matemática pra a
realidade dos valores estéticos e morais – o que, convenhamos, precisa ignorar todas
as teses dos estudos antropológicos do último século.

3.2.2 Autorreflexão

Há três idades do conhecimento, segundo Ferry:


Em primeiro lugar, a theoria grega – contemplação do kosmos, a fim de encontrar
o que é a realidade e como se comportar perante essa realidade.
Em seguida, a ciência moderna – investigação modelo para descobrir o que é a
realidade, mas não para como deve ser o comportamento humano. Em seu final, é fruto
das críticas genealógicas de Nietzsche, que representa a autorreflexão da razão.
Por fim, a autocrítica da autorreflexão – questionamento das pretensões das
ciências da natureza e ascensão das ciências históricas, com a promessa de que
conhecer o passado permite entender melhor o presente. Emancipar-se passa
necessariamente por apreender o passado e compreender que o que passou pesa muito
mais em nossas vidas do que supomos.

3.3 Ética: humanitarismo como transcendência vertical

Para Ferry, a essência do valor ético é ser tão elevado a ponto de os humanos
considerarem valer perder a vida para defendê-lo. Essa também seria a característica
mínima para algo ser considerado sagrado.
Passa a apostar que haja transcendências valorativas verticais, não mais
horizontais. A noção remete a algo que está no mesmo plano que nós, não mais acima
de nossas cabeças, como os ideais metafísicos da modernidade. Em suas palavras:
“vivemos, sem dúvida alguma, um movimento [...] de divinização ou de sacralização do humano
no sentido em que acabo de definir: agora é para o outro homem que podemos, eventualmente,
aceitar assumir riscos, não para defender as grandes entidades de antigamente, como a pátria ou
a revolução [...]” (p. 279)

O exemplo que fornece é a Cruz Vermelha, fundada por Henri Dunant, escritor
do livro Un Souvenir de Solferino. Segundo a instituição humanitária internacional,
“o soldado, uma vez derrubado, desarmado e ferido, deixa de pertencer a uma nação, a um
campo, para voltar a ser um homem, um simples humano que, enquanto tal, merece ser protegido,
assistido, tratado, independentemente de todos os engajamentos vividos no conflito do qual
participou.” (p. 279-180)

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A ideia é levar a sério a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, a de que


todo ser humano precisa ser respeitado independentemente de todos os pertencimentos
comunitários, étnicos, linguísticos, culturais e religiosos.
Ferry, no entanto, parece entrar numa contradição que não resolve. Em suas
palavras, é preciso se contrapor ao materialismo e...
“... reconhecer na experiência íntima a existência de valores que comprometem absolutamente,
mas que no plano teórico se empenham em defender uma moral relativista, rebaixando esse
absoluto a uma simples ilusão a ser ultrapassada.” (p. 280)

Em outras palavras, compromete-se com valores absolutos no âmbito prático,


mas quer defender uma moral relativista no âmbito teórico. Embora não explique, trata-
se de uma posição que repete a proposta de Kant.

3.4 Salvação: a sabedoria do amor

A salvação humanista não materialista de Ferry parece propor a seguinte tese


básica: salvar-se na imanência é encontrar sentido na imanência. E encontrar sentido,
é encontrar significado e orientação. Significado é atribuição de valor em mais alta
conta. Orientação é saber para onde ir. As perguntas que se colocam, então, são estas:

• Qual o valor (ou os valores) ter em mais alta conta?


• Que caminho seguir com base nesse valor (ou valores)?

3.4.1 Pensamento alargado

O pensamento alargado consiste em situar-se à distância de si para tomar


consciência de si. É preciso empreender um esforço de tirar o ego do centro e colocar
o outro, na tentativa de penetrar nos costumes e valores alheios para, em seguida, voltar
a si mesmo, de modo menos dogmático e com as ideias mais enriquecidas.
Segundo Ferry, trata-se de uma noção herdeira da ideia de perfectibilidade de
Rousseau: trata-se de se retirar da condição particular para subir a uma
universalidade maior, de modo individual e coletivo. Individual de modo a contribuir
com a própria educação. Coletivo de modo a adentrar no mundo da cultura e da política.
Esse ideal de saber por meio do descentramento de si, segundo Ferry,
possibilitaria a situação em que...
“... conseguimos, mas apenas em alguns momentos, como nos sugeriam os gregos, nos libertar
da tirania do passado e do futuro para habitar esse presente por fim sem culpa e sereno. [...] como
um instante no qual o temor da morte finalmente não significa mais nada para nós.” (p. 285)

Obras de arte, para serem arte e não outra coisa, devem se situar entre a
particularidade da cultura em que foram produzidas e a universalidade abstrata das
características gerais da humanidade. Esse meio termo se chama singularidade ou
individualidade. Almejar essa última, ao invés das duas outras possibilita o
pensamento alargado:
“afastando-me de mim mesmo para compreender o outro, alargando o campo de minhas
experiências, eu me singularizo, já que ultrapasso ao mesmo tempo o particular de minha condição

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de origem para aceder, se não à universalidade, pelo menos ao reconhecimento cada vez maior e
mais rico das possibilidades que são da humanidade inteira.” (p. 289)

3.4.2 Amor à singularidade

A singularidade é a característica que amamos em alguém, quando amamos


esse alguém e não qualquer outra pessoa. Os atributos particulares (simpatia brasileira,
bom-humor amazonense, arrogância manauara) e universais (inteligência,
generosidade, coragem) de uma pessoa a conectam ao grupo a que pertence, não
dizem quem ela é enquanto indivíduo. Amar alguém individualmente é amar o que
há nela de humana: sua singularidade. Aqui também há um momento de salvação:
“Nesse momento, podemos também, sempre acompanhando o fio condutor do pensamento
alargado e da singularidade, reinvestir o ideal grego desse ‘instante eterno’, esse presente que,
por sua singularidade, justamente porque o consideramos insubstituível e cuja espessura
medimos, em vez de anulá-lo em nome da nostalgia do que o precede ou da esperança do que
poderia suceder a ele, liberta-se das angústias de morte ligadas à finitude e ao tempo.” (p. 293)

3.4.3 Experiência do luto

Há três maneira de lidar com a morte, segundo Ferry:


A maneira estoica e budista – não se apegar.
A maneira cristã – cultivar o amor em Deus esperando a ressureição.
A sua maneira, já que não renuncia ao apego e não consegue ter fé. Sua
proposta consiste em apegar-se e reconciliar-se com as pessoas amadas ainda em vida.
Nas palavras de Ferry:
“Então o que fazer senão esperar pela catástrofe, pensando nela o menos possível? Talvez nada,
de fato, em silêncio, só para si mesmo, uma espécie de ‘sabedoria do amor’. Todos sabem muito
bem que precisamos nos reconciliar com nossos pais – quase que inevitavelmente, pois a vida
cria tensões – antes que eles desapareçam. Porque depois, o que quer que diga o cristianismo, é
tarde demais. Se pensamos que o diálogo dos seres que nos são caros não acabou, é preciso
chegar a uma conclusão. [...] essa sabedoria do amor deve ser elaborada por cada um de nós e,
sobretudo, em silêncio. Mas acredito que devemos, à margem do budismo e do cristianismo,
aprender, enfim, a viver e a amar como adultos, pensando, se necessário, todos os dias na morte.
Não por fascinação mórbida. Ao contrário, para procurar o que convém fazer aqui e agora, na
alegria, com aqueles que amamos e que vamos perder, a menos que eles nos percam antes.” (p.
297)

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Bibliografia

DEKENS, Olivier. Compreender Kant. Tradução de Paula Silva. São Paulo: Edições
Loyola, 2012.
JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 2ª ed. rev., ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Artur Morão. 9ª ed. Lisboa,
Portugal: Edições 70, 2014.
KENNY, Anthony. Uma nova História da Filosofia Ocidental (vol. 3) – O despertar
da Filosofia Moderna. 2ª ed. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. Revisão de Marcelo
Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dário. História da Filosofia (vol. 4) – de Spinoza a Kant.
Coleção História da Filosofia. Tradução de Ivo Storniolo. 1ª ed. [2004]. 4ª reimpressão
[2014]. São Paulo: Paulus, 2014.

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