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setembro/2018
Temática
Weltanschauung e o saber que não se sabe

WELTANSCHAUUNG Luciana Portella Kohlrausch


- VISÕES DE O texto que estamos trabalhando tem uma particularidade interessante que é a de ter sido escrito como se
MUNDO EM introdutória sobre psicanálise. Tal trabalho, que encerra esse ciclo de conferências escritas por Freud no final
fosse uma fala, ou seja, supõe um público; aliás, está denominado como a trigésima quinta conferência

QUESTÃO de seu ensino, tem como tema um conceito não psicanalítico, já antes explorado pela filosofia. A
Weltaunchaunng, visão de mundo, onde Welt é mundo e Anschauung seria contemplação, concepção.

Minha ideia é trabalhar a noção de saber em psicanálise relacionando o saber à questão da Weltauschaung
trazida por Freud. Meu texto foi construído associando o texto de Freud com uma passagem do Seminário 17,
O avesso da psicanálise, em que Jacques Lacan faz referência ao saber que possibilitaria uma totalidade
Sumário Editorial
fechada. O contraponto desse saber totalizante é o saber em jogo na psicanálise, o saber que não se sabe,
conforme Lacan refere ali.

Decantou-se disso uma discussão sobre totalitarismo, ou poderia-se dizer unitarismos, aquilo que faz Um,
Temática aquilo que faz todo.

No texto freudiano encontramos esse tom logo de início na conferência, como definição e explicação para a
Weltanschauung. Sendo ela entendida como uma construção intelectual que soluciona de forma unitária todos
os problemas da nossa existência. A definição do termo é de “uma construção intelectual que, a partir de uma
hipótese geral, soluciona de forma unitária todos os problemas de nossa existência, na qual, portanto,
nenhuma questão fica aberta, e tudo que nos concerne tem seu lugar definido.” (FREUD, [1933] 2010, p. 322).
Essa definição, por si só, já nos remete a um fechamento.

Como disse anteriormente, Weltanschauung é um termo explorado pela filosofia e uma das explicações para
esse termo quem deu, na origem, foi Kant. No artigo intitulado “Existe uma Weltanschauung da psicanálise?”,
de Palmeira e Gewehl, sabemos que a primeira vez esse termo apareceu foi em Kant, tratando da relação do
mundo e do sujeito, da apreensão do mundo pelo sujeito. Trata-se de uma representação geral, de uma
apreensão não conceitual que engloba a totalidade do mundo sensível por via da interiorização imediata.

Com Heidegger, vê-se que Weltanschauung diz de uma forma de elaboração produtiva, que compreende
apreensão e interpretação conscientes do universo. Weltannschauungen, então, seriam sempre produtos da
história, contêm em si uma visão de mundo e da vida correspondentes à época e ao modo de vida das
pessoasas quais representam.

Por outra parte, vale a pena situarmos o contexto histórico em que foi escrito esse texto. Ele foi escrito em
1932 e publicado em 1933, sendo importante considerar que na Alemanha, em 30 de janeiro de 1933, ocorre a
nomeação de Hitler como chanceler da Alemanha. Nesse mesmo período, é criada a Gestapo, e ainda no
mesmo ano ocorreu a queima de livros de autores judeus. Nesse contexto, o partido nazista, assim como
qualquer partido totalitarista, cantava a promessa de mudança, de patriotismo e de defesa do povo.

Aliás, importante destacar o termo patriota, do Grego Antigo, patriotes ("do mesmo país"), de patris ("pátria"), de
pater ("pai"), termo que percorre minhas indagações.

Enquanto produzia meu texto, recebi no whats um convite para uma mateada com uma imagem que nos deixa
ver um cartaz escrito: é melhor Jair se acostumando. Fazendo referência ao candidato Bolsonaro.

Como muitas vezes acontece quando estamos escrevendo ou montando uma fala, fiquei tomada por isso e me
pareceu importante que esteja aqui.

Na mensagem-convite temos um check-list: é para não esquecermos de levar (1) a camiseta do candidato, (2)
cadeira, (3) chimarrão e o (4) patriotismo.

Voltando ao texto em questão, destaco que uma das ideias principais dessa conferência de 1933 de Freud é
um duelo entre religião e ciência. Freud se coloca, ou coloca a psicanálise, ao lado da ciência e toma como
inimigo a religião. Podemos notar uma ideia de sucessão desde o animismo para o pensamento religioso e
então, finalmente, a razão, no corpo da ciência, fecharia esse ciclo. Freud diz:

Sendo essa a pré-história da visão de mundo religiosa, voltemo-nos agora para o que ocorreu desde então e
o que está sucedendo ante nossos olhos. O espírito científico, fortalecido na observação dos processos
naturais, começou, ao longo dos tempos, a tratar a religião como um assunto humano e submetê-la a um
exame crítico. (FREUD, [1933] 2010, p. 333).

Essa visão, talvez otimista, talvez iluminista, parece uma aposta de que a ciência fosse capaz de superar a
religião, extingui-la ou colocá-la num lugar menor. Mas como interpretar tal intento de Freud na atualidade,
quando a religião parece ganhar mais força quanto mais “conhecimento” temos, como sociedade?

Essa valorização da razão em contraposição ao pensamento religioso - e se somarmos a isso uma dose de
questionamento das coisas - remete-nos à modernidade, e é fato que a psicanálise é contemporânea da
modernidade, isso porque a clínica psicanalítica, criada por Freud, pressupõe o sujeito moderno inaugurado
por Descartes.

E isso me interessa aqui, nessas minhas indagações entre saber e totalitarismos, pois temos um personagem
que representa ou que inaugura o sujeito moderno: Hamlet, nosso herói moderno ou anti-herói; em
comparação ao herói grego, trágico.

Lacan, no Seminário 6, dedica uma parte considerável a essa peça. E, seguindo a trilha de Freud, entende a
estrutura de Hamlet comparável a estrutura de Édipo. Temos uma diferença que reflete as épocas nas duas
peças, justamente uma diferença entre o herói trágico e o herói moderno. Na medida em que cada
personagem reflete sua época, Hamlet reflete a dúvida e a incerteza. Édipo, por sua vez “não fazia tanta
cerimônia”, nos diz Lacan. “Édipo não tinha de titubear vinte vezes antes do ato, ele o cometera antes mesmo
de pensar, e sem saber” (LACAN, [1958-1959] 2016, p. 319).

Édipo responde a pergunta da esfinge e acerta, e a resposta não é nada mais do que seu não-saber. Seu não
saber que se desenrola no seu destino trágico. E ele bem consegue pagar por esse crime.

O enigma, que todos conhecemos, dipous, tripous e tetrapous, acentua o próprio de Edipous. O pés inchados. O
nome em grego se pronuncia edipous, mas se escreve oidipous. Sendo que pous significa pés. O prefixo do
nome de édipo, que seria édi, ou oidi faz referência a dois termos, primeiro o inchar, mas também uma
referência ao verbo saber. A referência aqui é lembrada por Antônio Quinet no livro Um olhar a mais: ver e ser
visto em psicanálise.

Édipo vai em busca do saber, investiga, esmiúça os fatos, remexe um passado que estava prestes a sobressair.
O saber não pode sobrepor a verdade, mas esse saber do qual édipo se aproxima toca a verdade, esse não-
sabido.

Ainda no Seminário 6, Lacan introduz a frase Não há Outro do Outro. Não há, no Outro significante que vá
responder pelo que o sujeito é. E a resposta a isso é o significante que falta no Outro, isso se traduz na fórmula
S(A) barrado.

Se falamos desse significante de que o Outro não dispõe, é porque ele deve estar em algum lugar. O
significante oculto, aquele de que o Outro não dispõe é justamente aquele que concerne ao sujeito. (LACAN,
[1958-1959] 2016). Se o título da minha fala faz referência ao saber que não se sabe, é porque estou
considerando de um lado o saber que não se sabe (que é o saber em psicanálise) e por outro lado o saber que
poderia constituir uma totalidade fechada que parece ser o saber em jogo nas visões de mundo.

Lacan diz que “o saber, então, é posto no centro, na berlinda, pela experiência psicanalítica”. Isto impõe um
dever de interrogação a respeito da “ideia de que o saber possa constituir de algum modo, ou em algum
momento, mesmo que seja de esperança no futuro, uma totalidade fechada.”(LACAN, 1969/1970 [1992], p. 31).

Me interessa aqui é a ideia de todo, tão avessa ao inconsciente.

Lacan situa o saber que não se sabe como instituído no nível do S2, o que ele chama de outro significante,
dizendo que o “ventre” do Outro está repleto deles. Esse ventre seria o que dá a base para a fantasia de um
saber-totalidade. Que o Outro seja o portador de todos os significantes, essa é a fantasia neurótica. Que exista
um Outro não castrado. Ocorre que se S1 é o significante que representa o sujeito e que falta ao Outro, faz do
Outro castrado.

A partir disso precisamos de uma Weltanschauung.

Para finalizar, quero ainda deixar mais duas cenas com o intuito de instigar mais um pouco a discussão:

Cena 1: no dia 3 de março, em Santa Maria, ocorreu um assassinato duplo. Um sujeito com uma arma entrou
em um apartamento em que dormia uma família, baleou mortalmente o pai e o filho e ainda baleou a mãe que
consegue fugir e sobreviver. Eu peguei um taxi naquela manhã, o taxista (porque a rua estava fechada)
comentava sobre o ocorrido, ele então falou: “Na época dos militares isso não acontecia, esses vagabundos
não tinham vez, 11h da noite eles passavam, davam uma “camaçada” de pau e botavam todo mundo para
dormir”.

Impossível não prestar atenção aos significantes com referência ao pai nessa história. E vale a referência do
que Freud comenta no texto de 1933 sobre as “funções” da religião. Freud aponta que a religião oferece aos
seres humanos explicações sobre a origem e procedência do mundo, assegura proteção nas contingencias da
vida e, por fim, felicidade; e orienta suas atitudes e ações, mediante preceitos que sustenta com toda a sua
autoridade. Especialmente na que diz respeito à proteção. E com isso a religião preencheria três importantes
funções, quais sejam, ânsia de saber, alivio da angustia e por fim, instaura preceitos e formula proibições e
restrições.

Cena 2: frase dita por um jovem que falava sobre seu possível voto nas eleições. “Quando me dizem que sou
novo e não sei o que é perder a liberdade eu retruco dizendo que sei bem, não posso sair a rua sem correr
perigo. Eu prefiro que a falta de liberdade venha de cima e não de baixo”.

O que quero trazer com essas cenas é uma discussão em relação a esse movimento relacionado ao Bolsonaro
(mas não exclusivo dele) de proteção do povo. A ideia de que alguém, encarnando a figura de protetor, cuidará
de nós.

As formas de totalitarismos do nosso tempo são inúmeras e não estão apenas encarnadas nesse político,
estão em cada diálogo. Mas com o militarismo ligado à religião como promessa da política atual nos
encaminha para algo perigoso, como todos sabemos.

Como citei anteriormente, em Lacan, não há Outro do Outro, só há Outro, como lembrou a Liz Ramos no cartel,
só há Outro e nada mais, isso que faz com que apareçam as weltanschauungen.

Finalmente, a proposta que já sabemos é de que a psicanálise é regida por uma ética e não por uma
weltanschauung, não por uma visão de mundo totalizante. Mas dizer isso não pode cair mais uma vez numa
visão de mundo fechada sobre o saber psicanalítico, de que só a psicanálise salva. E sim aplicar de fato a ideia
de que somos sujeitos castrados e a verdade é sempre um meio corpo a aparecer.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. Acerca de uma visão de mundo (1933). In Obras Completas de Sigmund Freud, volume 18: O
mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: companhia
das Letras, 2010.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 6. O desejo e sua interpretação (1058/1959). Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17. O avesso da psicanálise (1969/1970). Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

PALMEIRA, A. GEWEHR, R. Existe uma weltanschauung da psicanálise? In: Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro,
v. 37, n. 32, p. 63-84, jan./jun. 2015

QUINET, Antônio. Um Olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

* Luciana Portella Kohlrausch é psicanalista - APPOA.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre


Rua Faria Santos 258 - Porto Alegre, RS
51 3333.2140 / 51 3333.7922
www.appoa.org.br

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