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Psicanálise e

Processos de
Subjetivação

Prof.ª Allyne Evellyn Freitas Gomes


Prof. Bruno Stramandinoli Moreno
Prof. Reynaldo de Azevedo Gosmão

Indaial – 2021
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Allyne Evellyn Freitas Gomes
Prof. Bruno Stramandinoli Moreno
Prof. Reynaldo de Azevedo Gosmão

Copyright © UNIASSELVI 2022

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

G633p

Gomes, Allyne Evellyn Freitas

Psicanálise e processos de subjetivação. / Allyne Evellyn Freitas


Gomes; Bruno Stramandinoli Moreno; Reynaldo de Azevedo Gosmão. – Indaial:
UNIASSELVI, 2021

165 p.; il.

ISBN 978-65-5663-874-4
ISBN Digital 978-65-5663-871-3

1. Teorias psicanalíticas. - Brasil. I. Gomes, Allyne Evellyn Freitas.


II. Moreno, Bruno Stramandinoli. III. Gosmão, Reynaldo de Azevedo. IV. Centro
Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 150

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático Psicanálise e Processos de
Subjetivação. Convidamos vocês para a leitura, o estudo e a inserção nas teorias psica-
nalíticas referentes ao tema. Serão momentos de conhecimentos e produção de con-
teúdo, discussões de aspectos práticos e casos clínicos que elucidam a intervenção
da clínica psicanalítica no tratamento das psicopatologias. Teremos a possibilidade de
abordar diferentes aspectos que constituem a teoria e a técnica psicanalítica.

Na Unidade 1, abordaremos os aspectos epistemológicos e históricos da Psica-


nálise, com o intuito de compreendermos como se deu a emergência desta a partir dos
estudos de Sigmund Freud e seus colaboradores. Além disso, teremos contato com as
bases epistemológicas que foram se consolidando no processo histórico e como elas
influenciaram os estudos e métodos de Freud. Bem como percorreremos por uma breve
historiografia do pai da psicanálise e a historicidade desta não só no cenário europeu,
berço de Freud, como no cenário nacional. Iremos também refletir sobre a psicanálise
no contexto atual e a suposta crise enfrentada por esta quanto à sua adesão teórica e
metodológica na prática dos consultórios.

Em seguida, na Unidade 2, estudaremos a abordagem metapsicológica de


Freud e como essa se constitui, de que forma ela influencia na teoria e clínica psicana-
lítica desde sua emergência até a atualidade. Iremos identificar como outros teóricos
pós-freudianos fizeram uso de sua metapsicologia e de referências tanto conceituais
como metodológicas, conferindo uma outra roupagem para a psicanálise.

Por fim, na Unidade 3, aprenderemos como a psicanálise está implicada nos


modos de subjetivação do sujeito moderno e do sujeito contemporâneo. Poderemos,
então, identificar melhor e compreender os modos de produção do subjetivo ao olhar da
psicanálise freudiana e de outros autores contemporâneos. Iremos refletir e problema-
tizar os modos de subjetivação contemporâneos e a influência destes na constituição
do sujeito e seus sintomas. Acreditamos que serão momentos de muito aprendizado
pelo universo da psicanálise.

Bons estudos!

Prof.ª Allyne Evellyn Freitas Gomes


Prof. Bruno Stramandinoli Moreno
Prof. Reynaldo de Azevedo Gosmão
GIO
Olá, eu sou a Gio!

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acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
assunto estudado em questão.

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SUMÁRIO
UNIDADE 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E EPISTEMOLÓGICOS DA
PSICANÁLISE.....................................................................................1

TÓPICO 1 — A PSICANÁLISE E SEUS ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS................. 3


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................... 3
2 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA PSICANÁLISE............................................4
2.1 O QUE É EPISTEMOLOGIA?..................................................................................................5
2.2 AS VERTENTES EPISTEMOLÓGICAS NO CONTEXTO HISTÓRICO .............................6
3 A EPISTEMOLOGIA NA PSICANÁLISE ................................................................. 9
RESUMO DO TÓPICO 1............................................................................................17
AUTOATIVIDADE.................................................................................................... 18

TÓPICO 2 — FREUD: O PAI DA PSICANÁLISE E SUA HISTÓRIA........................... 21


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 21
2 FREUD: O PAI DA PSICANÁLISE......................................................................... 21
2.1 FREUD: UMA BREVE BIOGRAFIA.................................................................................... 22
2.1.1 Alguns fatos sobre Sigmund Freud....................................................................... 22
3 A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: O MOVIMENTO PSICANALÍTICO.....................23
3.1 CASOS CLÍNICOS CLÁSSICOS DA EMERGÊNCIA EM PSICANÁLISE ..................... 26
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................... 31
AUTOATIVIDADE....................................................................................................32

TÓPICO 3 — A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL.......................................33


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................33
2 O BRASIL E A PSICANÁLISE...............................................................................33
2.1 A EMERGÊNCIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL ............................................................ 33
3 A INSERÇÃO DA PSICANÁLISE NO CONTEXTO NACIONAL ATUAL.................36
3.1 A PSICANÁLISE COMO CIÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE.................................. 36
3.2 HÁ UMA CRISE NA PSICANÁLISE? ...............................................................................38
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................... 41
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................... 47
AUTOATIVIDADE................................................................................................... 48

REFERÊNCIAS........................................................................................................49

UNIDADE 2 — A METAPSICOLOGIA FREUDIANA..................................................53

TÓPICO 1 — A METAPSICOLOGIA: O QUE É?.........................................................55


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................55
2 A METAPSICOLOGIA COMO UMA PSICOLOGIA METAFÍSICA...........................56
2.1 A PSICOLOGIA A PARTIR DOS FATOS CLÍNICOS...........................................................57
2.2 A METAPISCOLOGIA FREUDIANA E SUA CONDIÇÃO DINÂMICA DE ANÁLISE....... 62
2.3 FREUD E SUA PERSPECTIVA NADA “MECÂNICA” .................................................... 64
3 AS VERTENTES DA PSICOLOGIA E A METAPSICOLOGIA.................................66
3.1 LIMITES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA METAPSICOLOGIA FREUDIANA.............68
RESUMO DO TÓPICO 1...........................................................................................70
AUTOATIVIDADE.....................................................................................................71
TÓPICO 2 — A METAPSICOLOGIA DA PSICANÁLISE FREUDIANA...................... 73
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 73
2 A METAPSICOLOGIA DE FREUD E SUAS IMPLICAÇÕES NA PSICANÁLISE....... 74
2.1 A NOÇÃO DE QUANTIDADE (Q).........................................................................................76
2.2 PRINCÍPIO DA INÉRCIA NEURÔNICA E O PRINCÍPIO DA CONSTÂNCIA................. 78
2.3 OS NEURÔNIOS Φ (phi), Ψ (psi) e ω (ômega)...............................................................79
2.4 A EXPERIÊNCIA DA SATISFAÇÃO E A EXPERIÊNCIA DA DOR................................. 82
3 A METAPSICOLOGIA FREUDIANA E O FUNCIONAMENTO PSÍQUICO .............83
3.1 POR UMA DEFINIÇÃO DE INCONSCIENTE....................................................................84
3.2 DO PONTO DE VISTA SISTEMÁTICO ..............................................................................86
3.3 DO PONTO DE VISTA DINÂMICO.....................................................................................88
3.4 DO PONTO DE VISTA ECONÔMICO ................................................................................90
3.5 DO PONTO DE VISTA ÉTICO ............................................................................................90
RESUMO DO TÓPICO 2...........................................................................................92
AUTOATIVIDADE....................................................................................................93

TÓPICO 3 — CONTRIBUIÇÕES DA METAPSICOLOGIA PSICANALÍTICA


PARA A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA................................................95
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................95
2 O MÉTODO FREUDIANO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA.....................................95
2.1 TRÊS POLOS DO PRAZER: NECESSIDADE, DESEJO E AMOR..................................98
2.2 A EMERGÊNCIA DO “EGO”................................................................................................98
2.3 OS PROCESSOS PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO............................................................. 100
3 A CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA............................................. 101
3.1 A INTERPRETAÇÂO DOS SONHOS................................................................................ 103
3.2 O SIMBOLISMO E SIGNIFICANTES NOS SONHOS..................................................... 104
3.3 ALGUMAS CONSIDERAÇÔES SOBRE A METAPSICOLOGIA FREUDIANA............ 105
LEITURA COMPLEMENTAR.................................................................................106
RESUMO DO TÓPICO 3.........................................................................................108
AUTOATIVIDADE..................................................................................................109

REFERÊNCIAS....................................................................................................... 111

UNIDADE 3 — PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO................................................ 113

TÓPICO 1 — A PSICANÁLISE FREUDIANA E OS PROCESSOS DE


SUBJETIVAÇÃO................................................................................115
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................115
2 A PSICANÁLISE DE FREUD E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO...............115
3 O QUE SERIAM PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO?.........................................117
4 OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PSICANÁLISE FREUDIANA........... 122
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................... 126
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 127

TÓPICO 2 — OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PSICANÁLISE


PARA ALÉM DE FREUD.................................................................... 129
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 129
2 OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PSICANÁLISE PÓS-FREUDIANA...... 129
3 OS DIFERENTES TEÓRICOS DA PSICANÁLISE PÓS FREUD..........................134
4 OS PROCESSOS SUBJETIVOS NAS DIFERENTES VERTENTES DA
PSICANÁLISE.................................................................................................... 137
RESUMO DO TÓPICO 2.........................................................................................140
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 141

TÓPICO 3 — OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E O CONTEXTO


CONTEMPORÂNEO DO TRABALHO DO PSICANALISTA................143
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................143
2 OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E O CONTEXTO ATUAL DO
TRABALHO DO PSICANALISTA........................................................................143
3 VISÃO CONTEMPORÂNEA DA PSICANÁLISE.................................................. 149
4 ATUAÇÕES DO PSICANALISTA NO CONTEXTO CLÍNICO E SOCIAL................151
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................. 156
RESUMO DO TÓPICO 3.........................................................................................160
AUTOATIVIDADE...................................................................................................161

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 163
UNIDADE 1 —

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS
E EPISTEMOLÓGICOS DA
PSICANÁLISE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar a emergência da psicanálise no contexto histórico;

• compreender a epistemologia da teoria e clínica psicanalítica;

• reconhecer a importância do movimento psicanalítico no contexto mundial e nacional;

• identificar os meios de inserção da psicanálise no contexto atual quanto ao trabalho


em saúde mental.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A PSICANÁLISE E SEUS ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS

TÓPICO 2 – FREUD: O PAI DA PSICANÁLISE E SUA HISTÓRIA

TÓPICO 3 – A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 —
A PSICANÁLISE E SEUS ASPECTOS
EPISTEMOLÓGICOS

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, neste momento, iremos estudar a psicanálise em sua constituição
como ciência e seu processo para tal. Isto é, como ocorreu a inserção da psicanálise no
contexto histórico da época e quais são os pontos relevantes da emergência e do avanço
dessa forma de ver e intervir sobre o sofrimento humano, bem como a constituição de
nossa vida psíquica e subjetiva dentro de um contexto sociocultural.

ATENÇÃO
Para compreendermos a construção de um saber científico,
também é necessário sabermos quem são os filósofos e autores
das diversas linhas de pensamento que constituem o arcabouço
teórico e metodológico da construção do conhecimento de uma
determinada ciência.

A psicanálise freudiana, nascida da experiência inaugural de Freud (1856-1939)


no atendimento às “histéricas”, por volta de 1900, inaugura um novo modelo de prática
clínica, no qual as pacientes têm voz sobre si mesmas, sobre o que lhes angustia. Assim,
o saber médico tradicional passa a ser questionado, inclusive o próprio Sigmund Freud
precisará vivenciar uma revolução epistemológica, como veremos na próxima unidade.

Produto de seu tempo e dos saberes que atravessam sua época, a psicanálise
freudiana recebeu as mais diversas interferências das artes, da filosofia, da literatura e
da música. Temos, então, uma ciência epistemologicamente transdisciplinar, que por
meio do entrecruzamento dos mais diversos saberes buscará compreender um objeto de
estudo até então não estudado cientificamente: o inconsciente humano. Não podemos
atribuir a Sigmund Freud o estatuto de descoberta do inconsciente, tal conceito já existia
anteriormente, porém, podemos afirmar que coube a ele estabelecer uma metodologia
de investigação e intervenção sobre o inconsciente humano. Tal metodologia só é possí-
vel graças aos embasamentos epistemológicos que conheceremos adiante.

3
A pertinência de abordar os aspectos epistemológicos, desde o que se configu-
ra como epistemologia enquanto campo de saber da filosofia, nos ajuda a contextualizar
e localizar melhor o advento da psicanálise e seus objetivos, sua visão de mundo e de
ser humano, seus métodos e técnicas de intervenção com a outra mente humana, a
saber, o inconsciente.

Iremos introduzir esse assunto para poder estabelecer articulações e reflexões


sobre a epistemologia, a produção científica e os novos métodos de investigação e in-
tervenção em saúde mental. Partiremos do conceito básico de epistemologia e seguir
em sua construção histórica, com as quebras de paradigmas e novos paradigmas sendo
criados e postos em prática no mundo da ciência e da psicanálise. Ao compreendermos
a historicidade dos fatos científicos, poderemos ter mais evidência sobre seus re-
flexos na vida contemporânea.

2 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA PSICANÁLISE


Para que possamos entender melhor a Psicanálise e sua constituição como
ciência ou teoria e metodologia em saúde mental, é notável a necessidade de olharmos
para ela como uma constituição histórica e epistemológica.

ATENÇÃO
Essa epistemologia que permeia a psicanálise e lhe dá embasamento, tam-
bém lhe confere um olhar crítico e atento, levando em consideração ques-
tões pertinentes em cada etapa histórica, criando, assim, rupturas e novos
paradigmas. Especialmente as rupturas com o saber médico, do qual o pró-
prio Freud era oriundo em virtude de sua formação em neurologia.

A psicanálise freudiana veio para promover uma ruptura de paradigmas frente


ao tratamento das neuroses, da histeria a priori e de patologias que não tinham sucesso
com intervenções tradicionais da medicina. Freud, enquanto um importante pesqui-
sador, além de clínico, conseguiu perceber nas pacientes, padrões de adoecimento
psíquico que não havia explicações pertinentes.

Ao invés de desistir de tal tratamento, do mesmo modo que outros colegas (e


também ao invés de acreditar que tais pacientes estavam mentindo), o espírito de cien-
tista do jovem Sigmund falou mais alto e ele se dedicou também a estudar os casos em
paralelo a prática clínica, de modo que a aprendizagem por via da prática, do empirismo,
pudesse prevalecer. Para compreendermos estas perspectivas, estudaremos o que é a
epistemologia e como ela se desenvolveu até chegarmos à epistemologia que direciona
a psicanálise.

4
2.1 O QUE É EPISTEMOLOGIA?
A epistemologia visa estudar o cerne das ciências, ou seja, suas bases e emer-
gências, além disso, estuda o modo como elas se configuram nas teorias e na ciência
em suas perspectivas de sujeito e de mundo.

FIGURA 1 – EPISTEMOLOGIA E AS DEMAIS ÁREAS DA FILOSOFIA

FONTE: <https://shutr.bz/3lKGAjH>. Acesso em: 11 ago. 2021.

Sendo assim, as bases epistemológicas servem para dar embasamento às


produções científicas, as quais são diferenciadas a partir da maneira como se dá a
interpretação ou não dos fenômenos e situações que se apresentam na realidade. Com
isso, ela pode ser tida como a teoria do conhecimento (ANDRADE; SMOLKA, 2009).

NOTA
A palavra epistemologia vem das palavras gregas episteme (conheci-
mento) e logia (estudo), trata-se, portanto, de uma área da filosofia
que tem por objeto de estudo o conhecimento e seus modos de
produção e validação.

5
Sabemos que o objetivo principal da ciência é construir conhecimentos para
promover melhorias na qualidade de vida das pessoas e, que tais ciências se conver-
tem ou divergem em como olham e atuam sobre os sujeitos e o mundo. Sendo que
cada base epistemológica está atrelada a seu tempo histórico e à demanda daquele
momento em particular. Devemos considerar, portanto, que a ciência e a epistemologia
estão sempre em movimento, com rupturas e novas construções, indo ao encontro da
produção do conhecimento e do uso desse no cotidiano, na realidade.

É na epistemologia que procuramos responder algumas questões, por exemplo


“como se deu tal conhecimento?”. Segundo Borges e Dalberio (2007), a epistemologia
justifica o lugar de origem do conhecimento e as ditas verdades sobre os fenômenos,
isso ocorre a partir de estudos experimentais ou não, possibilitando sair do senso co-
mum sobre a compreensão dos conflitos e da realidade.

IMPORTANTE
A partir dos estudos epistemológicos conseguimos compreender
a origem dos saberes, suas bases teóricas, ciências que dialogam
e que antagonizam, produzindo uma prática científica com possi-
bilidade de replicação, ou seja, em que o objeto de estudo e seus
métodos possam ser replicados em contextos diferentes, visando
obter resultados semelhantes.

Existem diferentes vertentes epistemológicas, tais como o positivismo, o


existencialismo, o estruturalismo, o pós-estruturalismo, entre outras. Toda teoria, para
ser considerada uma ciência, precisa fazer uso de um método científico que lhe con-
figure veracidade. Então, nós iremos estudar algumas abordagens epistemológicas
com o intuito de contextualizar historicamente e diferenciá-las para melhor compreen-
são da epistemologia da psicanálise.

2.2 AS VERTENTES EPISTEMOLÓGICAS NO CONTEXTO


HISTÓRICO
As especulações para compreender o mundo, como o porquê estamos nesse
lugar, qual seria nosso propósito, qual seria a verdade que direciona o mundo, são ques-
tões que surgem desde os filósofos pré-socráticos.

Cada teórico ou filósofo acabava por criar suas ideias e métodos dando início
há um movimento científico que se estende até a contemporaneidade e está sempre se
atualizando de acordo com as demandas do tempo vivido.

6
Devemos observar que essas vertentes epistemológicas acabam por ser rom-
pidas, desconstruídas e construídas a partir da necessidade da ciência em resolver as
questões que lhe implicam, ou seja, a necessidade de encontrar a solução dos proble-
mas reais.

Foi a partir da idade moderna que tais questões passaram a ter mais espaço
e força, isto é, com o advento do humanismo. Este pode ser caracterizado como um
período no qual emergiu um movimento filosófico fundamentado no reconhecimento
do valor do ser humano enquanto ser total, procurando compreendê-lo em seu mundo
natural e histórico.

No humanismo, o ser humano é visto como tendo alma e corpo, sendo ele res-
ponsável por viver e dominar o mundo que habita. Assim, o paradigma explicativo para o
mundo deixa de ser Deus e o teocentrismo, características da idade média. Desse modo,
passamos para a idade das luzes, em que o ser humano é colocado no centro da pauta.
O antropocentrismo reflete em mudanças de diversas áreas, como nas artes, que po-
dem então representar figuras humanas e não mais apenas figuras religiosas, e também
na medicina, recebendo uma importante contribuição, pois, se o corpo humano não é
mais um objeto apenas sagrado, é possível estudá-lo.

Outro ponto relevante do humanismo está relacionado ao reconhecimento do


ser humano e sua historicidade, ou seja, toda a constituição de vida e história do su-
jeito, com seus vínculos do passado e a procura por levá-los a uma maior compreensão
de sua vida. Foi nesse período que as letras começaram a ser reconhecidas pelo seu
valor humano, trazendo um aspecto que o diferencia dos outros animais e colocando as
letras como constituintes da formação humana.

Há uma concepção de ser humano como ser natural, no qual o conhecimen-


to se torna indispensável para sua própria elevação como humano. O humanismo visa
compreender o sujeito a partir de uma corrente filosófica que considera as diferentes
possibilidades humanas, tanto de limitações quanto enfrentamento, ele procura tam-
bém redimensionar os problemas filosóficos.

INTERESSANTE
Wihelm Wundt (1832-1920) é considerado um dos precursores da
psicologia científica. Ele utilizou aspectos trabalhados e discutidos
por Immanuel Kant (1724-1804) que estiveram relacionados a seu
tempo. Em seus postulados, valorizava a física e a fisiologia, como
também utilizava a aplicação lógica proposta por Herbart (1776-
1841). Destarte, Wundt salienta a necessidade de nos atermos aos
estudos da sociedade e da filosofia, uma vez que são essenciais para
o desenvolvimento da psicologia científica.

7
Nessa perspectiva, a mente era tida como consciência e, para além dessa, ela
poderia conter algumas percepções sutis do inconsciente. Esse inconsciente de Wun-
dt seria estudado para além dos laboratórios, indo ao encontro social dos fenômenos
psíquicos.

Entre autores que trabalharam com o psiquismo, em uma perspectiva do in-


consciente científico, está Fechner (1801-1887). Em sua proposta teórica ele utiliza da
psicofísica, com a ideia de mensurar os fenômenos psíquicos: as esferas físicas e
mentais se tornariam iguais quantitativamente e diferentes qualitativamente. Para ele,
o cérebro e a mente seriam sistemas idênticos, mas em diferentes localidades, ou seja,
cada um funcionando em seu próprio sistema.

Já Freud fez uso da lei da conservação de energia para trabalhar o conceito


de constância, que promove as noções referentes ao prazer-desprazer. Essa visão é
herdada da filosofia de Brentano (1838-1917), a qual via psicologia como uma ciência
a priori das outras, devendo ser considerada como aquela da qual partiriam as outras
ciências. Ele observa que a psicologia não necessita partir de uma base fisiológica
para se tornar ciência. Foi esse filósofo que trouxe a representação como o ato de repre-
sentar, de pensar conscientemente e, que tal ato vem da referência a algum objeto, por
exemplo, se observarmos uma árvore, ela se torna consciente para nós, promovendo,
consequentemente, o conceito de intencionalidade.

Em Brentano, podemos identificar que os fenômenos físicos, quando estu-


dados somente pela percepção do externo, iria propor uma verdade relativa, sendo que
não levam em consideração as percepções internas do sujeito. Tais percepções internas
seriam as responsáveis por dar acesso aos fenômenos psíquicos, conferindo mais ve-
racidade aos estudos da psicologia. Essa visão tinha como proposta superar a ideia da
psicologia como uma ciência puramente natural.

A psicologia e os estudos da psique sempre tiveram ressalvas epistemológicas,


visto até mesmo o que Comte (1798-1857) trouxe como uma crítica à ciência psicológi-
ca, afirmando que os fenômenos mentais só poderiam ser evidenciados e estudados a
partir da fisiologia. O que acaba por contrariar as ideias de Stuart Mill (1806-1873), que
percebia tais fenômenos mentais como muito além de meras manifestações fisiológi-
cas, e essas se dariam de forma sucessiva, sendo que a psicologia deveria se ater às
regras de tal sucessão dos fenômenos psíquicos.

8
FIGURA 2 – IMMANUEL KANT

FONTE: <https://shutr.bz/3FR6MRN>. Acesso em: 12 ago. 2021.

De acordo com Carvalho e Monzani (2015), Kant apresentou a ideia de que os


fenômenos psicológicos não seriam passíveis de cientificidade porque não apresenta-
vam características essenciais para serem explorados cientificamente. Na sua visão,
para que algo fosse digno de cientificidade, seria indispensável a condição de que os
dados empíricos correspondentes fossem passíveis de abordagem pela matemática.

3 A EPISTEMOLOGIA NA PSICANÁLISE
Como já percebemos, a epistemologia é a base da qual provêm a ciência, o sa-
ber das teorias e das práticas, da idade moderna até os dias atuais. Para estudarmos a
Psicanálise, é pertinente conhecermos quais são suas bases epistemológicas, isto é,
de qual ponto Freud começou a questionar e propor uma nova visão sobre as patologias
e, assim, romper com a visão somente física/orgânica do ser humano, trazendo à tona a
importância da subjetividade na constituição do humano e suas doenças.

FIGURA 3 – O QUE É EPISTEMOLOGIA?

FONTE: <https://shutr.bz/2YQx3ii>. Acesso em: 11 ago. 2021.

9
Sabemos de antemão que Freud foi o “pai” da psicanálise. Ele desconstruiu o
saber científico sobre as psicopatologias pautado no argumento de que a doença não
deve ser explicada somente pelo saber médico. Foi com a Psicanálise que se romperam
paradigmas epistemológicos importantes quanto aos tratamentos em saúde mental.
Iremos, então, conhecer um pouco mais dessa epistemologia na qual Freud se pautou
para desenvolver a Psicanálise e seu método de tratamento dos transtornos mentais.

FIGURA 4 – GALILEU GALILEI “PAI DO MÉTODO CIENTÍFICO”

FONTE: <https://bit.ly/3FJjFNI>. Acesso em: 11 ago. 2021.

Foi Galileu (1564-1642) quem trouxe, na idade moderna, o primeiro rompi-


mento com método experimental na ciência. Precisamos considerar que há nos ex-
perimentos uma conversa entre a razão e a realidade, permeando novas possibili-
dades de ver e intervir tal realidade, conferindo um bom e positivo resultado. A ciência
e a veracidade, então, se dão por meio do experimento e da razão, desconsiderando
suposições metafísicas.

ATENÇÃO
Freud sempre sofreu resistências ao propor a cientificidade da
psicanálise por ela não se enquadrar nas formalidades científicas
de seu contexto histórico. E como o seu objeto científico (o incons-
ciente) não era passível de observação ou mensuração, a psicanálise
provocava rechaço entre os médicos contemporâneos de Freud.

10
A teoria do inconsciente, assim como a sede dos adoecimentos psíquicos, o uso
da hipnose como método terapêutico, a questão da sexualidade humana como etiologia
das neuroses e a interpretação dos sonhos como método de investigação psicanalítica,
eram pontos que rompiam com qualquer ideal de cientificidade naturalista dos tempos
de Freud.

Contudo, o pai da psicanálise, como um bom pesquisador que era, perseguiu


obstinadamente o desejo de manter a psicanálise como ciência. Tal desejo esteve
presente desde os primeiros textos freudianos, em que percebemos o esmero com o
qual Freud descreve detalhadamente os estudos sobre histeria, por exemplo, os sin-
tomas físicos, e compõe o caso à medida que vai analisando tais sintomas com seu
correlato psíquico.

Podemos considerar que a Psicanálise é um método de investigação indutivo


e que teria por função ou objetivo o viés clínico e não a comprovação de algo ou algu-
ma coisa. Seus estudos eram voltados para alterar situações e não para prová-las. Em
contramão sempre existirá a necessidade de alguns teóricos e métodos científicos de
conferir à psicanálise uma cientificidade por ela pertencer às ciências naturais. Sendo
que tal pretensão não tem motivo para ser fundada, visto a proposta da própria Psica-
nálise sobre a constituição do sujeito ter um olhar clínico.

Sendo assim, não há como olhar para a Psicanálise como uma intervenção pau-
tada na ciência positiva, pois ela busca desconstruir esse lugar do sujeito do positivis-
mo. Aquele sujeito mensurável, verificável e imutável. O sujeito da psicanálise é aquele
que se transforma a partir do processo clínico, que é tido em sua singularidade e
com suas particularidades (TOREZAN; AGUIAR, 2011).

DICA
Assista ao professor e pós-doutor Christian Dunker, um dos maiores
nomes da psicanálise brasileira, apresentar a epistemologia psicanalítica
e seus fundamentos no vídeo A psicanálise é um conhecimento verificável?
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s5aLhKTIpaI.

A proposta de Freud trouxe a possibilidade de dar espaço para o estudo da alma,


visando um estudo do aparelho psíquico do sujeito, para além dos aspectos físicos
e orgânicos desse sujeito. Olhar para as singularidades e para além do racionalmente
comprovado empiricamente, é olhar para o ser humano e seu contexto social, é ver
vida para além das generalizações. Podemos, inclusive, lembrar as discussões de Comte,
quando ele apresentou a ciência vista em seu aspecto puro e aplicado, articulando,
assim, o saber teórico e o prático para uma produção científica visando aplicar o que se
teoriza para obter resultados.

11
Freud abriu caminhos para uma nova maneira de ver e fazer ciência quanto
aos estudos e métodos de intervenção e tratamento das patologias da alma, as
psicopatologias. Ele considera a psicanálise como uma ciência natural. Sendo que,
em 1880 ele apresentou a hipnose como método de investigação e tratamento nas
histerias, junto a Breuer (1842-1925). Em sua concepção muitos dos sinais não podem
ser visualizados ou materializados, com isso o trabalho com a subjetividade humana e
suas várias nuances sobre o adoecimento psíquico.

FIGURA 5 – TRATAMENTO POR HIPNOSE

FONTE: <https://shutr.bz/3lHYpQA>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Na década de 1890, a partir de seus estudos, Sigmund Freud expõe a noção de


metapsicologia, na qual demonstra que não há um local anatômico em que a doença
ou a psicopatologia se instala, mas que esta ocorre em uma causalidade entre o psí-
quico e a nossa consciência.

A nova proposta de Freud, a partir de uma metapsicologia, não foi de primeira


mão bem aceita e teve muitos obstáculos, os quais o psicanalista teve que se sobrepor
para configurar sua psicanálise como ciência e ter a veracidade e a aceitabilidade de
comunidade médica e científica da época, pois, sendo uma nova proposta de ciência,
ela seguia a contramão da objetividade, trazendo aspectos subjetivos e partes ima-
teriais do sujeito, como a própria alma e aspectos não palpáveis ou visíveis, ou seja,
não mensuráveis pela ciência tradicional.

Nessa busca por tornar a psicanálise uma ciência do psiquismo, podemos usar
a contribuição de Kant, apresentando a psicologia como uma abordagem voltada para a
observação e descrição de fenômenos externos. Ele considerava que os objetos de
estudo da psicologia não seriam palpáveis e possíveis de análise e observação no espa-
ço, estes estariam subentendidos e em um espaço não visível, consequentemente, não
acessível à cientificidade positiva. Os fenômenos não poderiam ser estudados, afinal,
não estariam articulados com as comprovações matemáticas.

Foi Herbart, a partir dos estudos de Kant, que começou a estudar os fenôme-
nos psíquicos. Isso ocorreu por meio da criação de quatro conceitos:

12
• intensidade;
• continuidade;
• variação;
• covariação.

Tais conceitos trariam uma nova proposta de ciência para a psicologia. O con-
ceito de intensidade estava relacionado ao entendimento dos fenômenos psíquicos
como dotados de força, e, assim, poderiam ser medidos por meio de uma avaliação
quantitativa.

NOTA
O conceito de continuidade diz respeito à constante dos fenômenos
psíquicos, sendo vistos com uma continuidade quanto às suas so-
breposições e funções em relação à consciência. Ora alguns fenô-
menos se sobressaem, ora diminuem, num constante movimento.
Quanto ao conceito de variação, podemos observar a variação de
intensidade dos fenômenos psíquicos no correr do tempo. Por meio
destes conceitos percebemos que os fenômenos são considerados
como uma recusa ao acaso, pois teriam sempre uma ligação com algo
e uma função específica.

A covariação seria o conceito que supõe um sistema mecânico dos fenôme-


nos psíquicos. Assim, Herbart teria constituído a psicologia matemática, conferindo
cientificidade ao estudo dos fenômenos psíquicos na época. Para ele, as representa-
ções eram inconscientes e dotadas de uma força tal que fazia com que chegassem à
consciência do sujeito. Dessa forma, articulam-se os saberes de Herbart e de Freud
quanto à presença e importância do inconsciente na vida subjetiva dos sujeitos.

FIGURA 6 – SISTEMA MECÂNICO DA MENTE

FONTE: <https://shutr.bz/3mWbk0A>. Acesso em: 12 ago. 2021.

13
Esses teóricos também compartilham a ideia de repressão de conteúdos
para que estes venham à superfície da consciência. Cada um à sua maneira apresenta
a repressão como meio de proteção do sujeito frente ao desprazer e ao sofrimento.
Para Freud, esse conflito vem de uma repressão sexual, já para Herbart é ocasional, não
tendo uma causa específica.

Em Herbart, a representação psíquica, mesmo reprimida, está sempre se esfor-


çando para vir à consciência, enquanto para Freud tal representação estaria agindo no
inconsciente podendo ocasionar patologias e doenças mentais. Essas representações
reprimidas no inconsciente acarretariam possíveis psicopatologias, seriam os agentes
etiológicos de tais doenças.

Os aspectos epistemológicos apresentados são de suma relevância para per-


cebermos como aconteceu o processo de cientificidade da psicanálise e da própria
psicologia, as quais sempre tiveram ressalvas no campo da ciência tanto na sua apli-
cabilidade quanto na sua veracidade, sendo que, as ciências procuram ser generalis-
tas, palpáveis e aplicadas em todas as situações e para todos os sujeitos, de forma
indiscriminada.

Cabe lembrar que ela foi tida como a verdade absoluta na época do Iluminismo,
como a luz no fim do túnel para todas e quaisquer problemáticas humanas e sociais.

ATENÇÃO
Uma das questões epistemológicas pertinentes a Freud se referia
ao uso da interpretação (um de seus métodos) e como ela ficaria
atrelada às ciências naturais. Sendo que as interpretações têm um
cunho subjetivo e não mensurável.

Com o pós-freudiano Jacques Lacan (1901-1981), as bases epistemológicas


da psicanálise se expandem para outras áreas de saber. Oriundo da matemática, como
formação básica, Lacan preconizou o retorno a Freud.

Isso ocorreu porque, após a morte de Freud, os psicanalistas estavam cada vez
mais se desviando dos princípios fundamentais freudianos e orientando a psicanáli-
se para uma psicanálise do Ego.

No entanto, o psicanalista francês Lacan propôs um retorno a Freud, retorno


este que ele apresentou por meio de seminários proferidos oralmente para psicanalistas
vinculados à Associação Internacional de Psicanálise, a IPA, com quem posteriormente
rompeu e propôs seminários abertos a todos os interessados nos estudos freudianos.

14
FIGURA 7 – LACAN

FONTE: <https://shutr.bz/3FOb3Fz>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Nos seminários lacanianos existia uma verdadeira transdisciplinaridade na


plateia, inclusive artistas surrealistas e o estruturalista Lévi-Strauss, que em muito
contribuiu para a clínica lacaniana, uma vez que a clínica Lacan ampliou a noção
freudiana de diagnóstico a partir da discussão estrutural, em que os sujeitos são
classificados a partir de três estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Além
disso, na epistemologia lacaniana temos como contribuição os importantes textos de
Lévi-Strauss, como em O feiticeiro e sua magia (1949), em que, a partir da antropologia
estruturalista, o lugar do analista será comparado ao poder do pajé nas aldeias.

INTERESSANTE
Desde a sua primeira grande obra – As estruturas elementares do
parentesco (1955) – o antropólogo belga Lévi-Strauss (1982) elegeu
Freud como um de seus interlocutores privilegiados na criação
e no desenvolvimento da sua antropologia estrutural. Alguns
autores chegam a afirmar que o pai da psicanálise foi o autor que
gerou maior impacto sobre a obra de Lévi-Strauss.

Tanto o psicanalista Lacan quanto o antropólogo Claude Lévi-Strauss pensaram


os fenômenos fundamentais da vida e da alma como situados no âmbito inconsciente.
Ambas as teorias são influenciadas pela linguística de Saussure e Jakobson. Em termos
epistêmicos, cabe destacar a influência da linguística na concepção do inconsciente
lacaniano e na antropologia estrutural, para compreendermos de quem é o sujeito in-
consciente da psicanálise lacaniana.

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FIGURA 8 – CONHECIMENTOS

FONTE: <https://shutr.bz/2YUu8VO>. Acesso em: 11 ago. 2021.

Como pudemos observar, a epistemologia que constitui para a psicanálise vem


de diferentes contextos, ou seja, médico, neurológico e psicológico, propondo ser uma
ciência da clínica, do movimento e da transformação.

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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A epistemologia é de suma relevância para o estudo das ciências e da psicanálise


para que possamos compreender como a psicanálise se desenvolveu no processo de
investigação e propostas de metodologias científicas.

• Estudar a psicanálise implica conhecer seus aportes epistemológicos e sua história,


como constituição de um novo saber sobre o sujeito, o psiquismo e as psicopatologias.

• Freud foi o pai da psicanálise, e suas investigações com novos métodos de interven-
ção e tratamento em saúde mental constituíram uma das maiores revoluções teóri-
cas sobre o psiquismo e a sexualidade humana.

• A psicanálise, por mais “antiga” que possa parecer, pode ser reconfigurada e repen-
sada a partir de teóricos pós-Freud, podendo se adequar às necessidades sociais e
singulares do tempo atual, na contemporaneidade dos fatos e fenômenos psíquicos.

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AUTOATIVIDADE
1 Ao estudar a epistemologia, podemos encontrar diferentes vertentes, cada qual
com sua visão de ser humano e de mundo. Essas visões vão sendo modificadas
com o passar do tempo e com as demandas advindas da realidade, sendo que a
ciência tem por objetivo resolver problemas e problematizar situações. A perspectiva
epistemológica que vê o ser humano como dotado de mente e corpo, confere o
reconhecimento do valor humano enquanto ser total, compreendendo seu mundo
natural e histórico. Aqui, o sujeito é responsável por viver e dominar o mundo que
habita. Essa visão de homem está atrelada a qual base epistemológica? Assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Humanismo.
b) ( ) Positivismo.
c) ( ) Iluminismo.
d) ( ) Estruturalismo.

2 No momento em que surgiu o assunto sobre a epistemologia da psicanálise, muitas


contradições e dúvidas emergiram frente a sua cientificidade, ou seja, se a psicanálise
seria ou não parte das ciências naturais. A partir dos estudos sobre a epistemologia
em psicanálise podemos dizer que:

I- A Psicanálise se afirma como ciência por meio do positivismo ortodoxo, e propõe


estudos mensuráveis dos processos psíquicos.
II- A Psicanálise propõe uma nova perspectiva de olhar e de intervir nas enfermidades
psíquicas, como o trabalho precursor com a histeria, utilizando o método catártico.
III- Na década de 1890, Sigmund Freud apresentou a noção de metapsicologia, de-
monstrando que não há um local anatômico para localizar a doença ou a psicopato-
logia, mas ela ocorre em uma causalidade entre o psíquico e a nossa consciência.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Na constituição da psicanálise como ciência sempre houve a discussão se ela per-


tenceria às ciências naturais ou a qual cientificidade se dava essa nova perspectiva
de olhar e intervir nos fenômenos psíquicos e nas psicopatologias. Com isso, po-
demos apontar que a psicanálise propôs constituir sua própria cientificidade. Desse
modo, assinale a alternativa que compreende a perspectiva psicanalítica:

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a) ( ) A Psicanálise aponta para uma nova proposta de ciência, indo na contramão da
objetividade, trazendo aspectos subjetivos e partes imateriais do ser humano,
como a própria alma, além de aspectos não palpáveis ou visíveis, ou seja, não
mensuráveis na ciência tradicional.
b) ( ) O avento da Psicanálise traz a articulação entre o positivismo e o humanismo em
sua base epistemológica.
c) ( ) A Psicanálise utiliza somente conceitos próprios da neurologia e da medicina
para descrever os fenômenos psíquicos.
d) ( ) Freud começou seus estudos na Psicanálise pelo experimento e mensuração
dos fenômenos psíquicos.

4 Sabemos que as ciências partem de pressupostos epistemológicos, os quais forne-


cem suporte para a constituição de novas abordagens, novos paradigmas e meto-
dologias científicas que visam a melhoria da qualidade de vida dos sujeitos. Como
podemos compreender a base epistemológica da Psicanálise em sua emergência no
cenário científico da época?

5 Qual é a importância de estudar a epistemologia ao tentarmos compreender a psica-


nálise e sua instituição enquanto ciência e prática em saúde mental?

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UNIDADE 1 TÓPICO 2 —
FREUD: O PAI DA PSICANÁLISE
E SUA HISTÓRIA

1 INTRODUÇÃO
Agora, no Tópico 2, abordaremos um breve histórico de vida de Freud, além da
psicanálise como uma constituição histórica e científica dentro de um cenário marcado
por uma cientificidade positiva e palpável.

Iremos compreender, então, como a psicanálise ganhou espaço em um am-


biente marcado pelas ciências que viam a subjetividade com “maus olhos”, com des-
crença e sem lhe conferir veracidade e cientificidade.

Desse modo, observaremos que o processo de inserção da psicanálise na ciên-


cia passou por um desenvolvimento de sua teoria e prática no decorrer do tempo e das
pesquisas de Freud.

2 FREUD: O PAI DA PSICANÁLISE


Quem não ouviu falar em Freud uma vez em sua vida? Ou mesmo aquela
conhecida frase “Freud explica”? No senso comum, podemos acreditar que ele é um
“super-homem” da subjetividade humana, sendo alguém capaz de explicar sobre
qualquer coisa ou fenômeno. Porém, o que podemos dizer com certeza é que ele,
Sigmund Freud, foi um grande entusiasta dos estudos sobre a mente, o comportamento
humano, a subjetividade e seu espaço na ciência.

FIGURA 9 – FIGURA DE CERA DE SIGMUND FREUD

FONTE: <https://shutr.bz/3DLpNmR>. Acesso em: 11 ago. 2021.

21
Contudo, assim como todo teórico, Freud se apresenta para contextualizar e
trazer questões pertinentes de uma época, de seu contexto histórico e demandas so-
ciais e culturais. Seu trabalho é e sempre será reconhecido como o precursor que pro-
piciou o início de novas descobertas no campo da subjetividade e transtornos mentais.

Veremos, então, um pouco mais sobre quem foi Freud, sua biografia e a história
da teoria e metodologia por ele criada, ou seja, a história da Psicanálise e alguns casos
clássicos que foram pioneiros da psicanálise como tratamento clínico dos transtornos
e doenças mentais.

2.1 FREUD: UMA BREVE BIOGRAFIA


É sempre importante sabermos sobre o autor de quem falamos, lemos e estu-
damos, pois, muitas vezes, observamos que os teóricos, e Freud é um exemplo, acabam
por usarem a si mesmos como objetos de estudo e pesquisas ou até mesmo parâmetros
para algumas interpretações e conclusões, mesmo que de forma inconsciente. Portan-
to, conhecer o autor é conhecer também os desejos que movem quem escreve e produz
ciência. Então, vamos lá?

2.1.1 Alguns fatos sobre Sigmund Freud


Freud, tendo seu nome completo Sigmund Schlomo Freud, nasceu em 1856
e faleceu em 1939. Nascido em Freiberg, território que pertencia ao império austríaco,
era filho de Jacob Freud e Amalie Nathanson, foi o primogênito da família com mais
seis irmãos. Devido à origem judaica da família, decidiram se mudar para Viena quando
Freud tinha quatro anos, sendo que nessa nova cidade a descendência judaica seria
mais respeitada, de modo que teriam melhores condições de vida.

ATENÇÃO
O menino Freud sempre foi um ótimo aluno e com boas perspec-
tivas futuras. Com 17 anos ingressou na faculdade de Medicina de
Viena. Desde seus primeiros passos na medicina, já se interessava
pelo sistema nervoso e o estudo das doenças mentais, no que se
referia aos métodos utilizados para a avaliação e tratamento de tais
psicopatologias.

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Foi em 1884 que Freud teve contato com Breuer, médico que já estava traba-
lhando com a hipnose para curar doenças mentais como a histeria. Seu método catártico
(no qual as pacientes falavam tudo o que vinha à cabeça, sendo um desabafo sobre o
que elas sentiam e pensavam), deu início ao primeiro método utilizado na psicanálise.

Foi com Estudos sobre as histerias que Freud iniciou a psicanálise, com seu
amplo campo de pesquisa e metodologia em saúde mental na época. Construindo, des-
se modo, novos paradigmas na ciência, até então totalmente objetificada e agora com
seu espaço para a subjetividade e as singularidades humanas.

FIGURA 10 – ILUSTRAÇAO DE UMA SESSÃO DE PSICANÁLISE

FONTE: <https://shutr.bz/2YRNafk>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Sigmund Freud especializou-se em neurologia com Charcot, na cidade de Pa-


ris e, a partir disso, voltou para Viena a fim de trabalhar com Breuer nos casos de histe-
rias. Dando início a uma carreira e a estudos promissores sobre as patologias da alma,
que já não tinham cura por meio dos métodos tradicionais da medicina positivista.

Em suas premissas teóricas, Freud traz três pontos relevantes para o trabalho
analítico: somos seres bissexuais (ativos e passivos); somos movidos pela libido; e a vida
psíquica seria constituída por Eros (visto como a sexualidade) e pelos instintos de morte
e agressão.

3 A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: O MOVIMENTO


PSICANALÍTICO
Podemos compreender a emergência da Psicanálise em meados do século XX,
em um cenário de desconfianças sobre sua cientificidade, veracidade e aplicabilidade
quanto a uma intervenção que era constituída de aspectos subjetivos e por assim, não
objetificados, visíveis e palpáveis. Esta nova ciência, ou proposta de uma, veio na con-
tramão das ideias positivistas ortodoxas.

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Foi no segundo congresso de Psicanálise que surgiu a ideia da fundação da IPA.
Nesse momento, Freud e os demais estudiosos, seus parceiros médicos, neurologistas e
psicanalistas, deram início ao movimento psicanalítico e propagaram a psicanálise en-
quanto uma ciência dita como uma psicologia aplicada, além da aplicação dela às medi-
cinas e à humanidade. Um dos objetivos da IPA era articular melhor os teóricos da psicaná-
lise, buscando também fortalecer essa área e promover mais saberes e práticas científicas
naquele contexto histórico.

Sabemos que, desde o início dos estudos, Freud passou por provações em re-
lação à sua teoria e proposta metodológica de fazer ciência. Ele mesmo não pretendia
levar sua clínica a ter um cunho científico, pois se dizia muito mais preocupado com o
que sua intervenção poderia promover enquanto mudança de situações e melhora de
sintomas neuróticos.

Na sua concepção, Freud apresenta a possibilidade de ver e pensar o sujeito


como alguém que muitas vezes não é dono de sua própria consciência. “De fato, ao
descentrar a sede do sujeito de sua consciência, o inconsciente freudiano subverteu
de modo radical o cogito cartesiano e introduziu a dimensão de uma racionalidade in-
teiramente nova” (JORGE, 2008, p. 17). Gerando, assim, novas formas de olhar para o
sujeito e sua realidade, seus sofrimentos e enfrentamentos diários diante de “fantasmas
inconscientes”. Esse inconsciente está sempre presente nos discursos, seja de forma
evidente ou como metáforas e outras manifestações (até mesmo patológicas).

FIGURA 11 – ILUSTRAÇÃO CONSCIÊNCIA E INCONSCIÊNCIA

FONTE: <https://shutr.bz/3n3F2RA>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Em seus estudos, Freud também apresenta o conceito de pulsão para trabalhar


a partir da sexualidade humana, sendo de fundamental importância para o desenvolvi-
mento do sujeito.

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Tal pulsão poderia ser considerada como impulsos endógenos, ou seja, impulsos
orgânicos do sujeito em relação à sua sexualidade. Ele traz esse tema à tona quando per-
cebe em seus atendimentos clínicos uma forma que poderia ser errada da vivência dessa
sexualidade, de certa forma reprimida e contra os instintos animais.

ATENÇÃO
Na história da psicanálise, devemos sempre lembrar das rupturas,
de modo que ela foi sendo ampliada e repensada por teóricos que
vieram depois de Freud, com propostas de novas maneiras de
olhar e intervir no sujeito.

Lacan foi um dos teóricos que trouxe uma ruptura por meio de seus seminários.
Contudo, sempre se colocou como freudiano, sugerindo um retorno às obras e estudos
de Freud, conforme estudamos anteriormente. Ele dizia que aos outros competia que
fossem lacanianos, não a ele. Lacan consegue reavivar as obras e os pensamentos de
Freud já amortecidos, dando originalidade e movimento à psicanálise, resgatando con-
ceitos e criando novos a partir dos preceitos freudianos, conferindo uma nova roupa-
gem que se atualiza nesse momento histórico.

Devemos salientar que os estudos em psicanálise também são provisórios, sen-


do constituídos e desconstituídos a partir da demanda atual e dos novos olhares
sobre o ser humano e o mundo. Assim, precisamos atentar-nos para as nuances que a
ciência propõe em sua contextualização histórica. A psicanálise deu o ponto de par-
tida para os estudos da psique e da subjetividade humana, possibilitando abrir espaço
para novas teorias e metodologias em saúde mental na atualidade.

No decorrer da sua produção de teorias, Freud faz revisões, renovando-as sem-


pre que necessário. Podemos considerar a psicanálise, então, como grande influencia-
dora dos campos de saberes sobre o funcionamento das personalidades, ou seja, como
elas se constituem. Desse modo, Freud não só se utiliza de suas descobertas no campo
científico e do conhecimento, como também das intervenções psicoterápicas.

Freud busca elucidar a constituição do aparelho psíquico ao beber anterior-


mente das águas da física, da química, da neurofisiologia e da biologia. Até mesmo pelo
fato de as ciências só serem consideradas como tal a partir de sua mensuração e ve-
racidade generalizada. Contudo, tal postura acaba por continuar a naturalizar o hu-
mano como um ser somente biológico, o que leva às resistências da psicanálise em sua
inserção no campo científico. Sendo ela uma abordagem totalmente nova e pretensio-
sa de conceber e trabalhar com o psiquismo e suas nuances cognitivas, emocionais e
comportamentais.

25
INTERESSANTE
Foi em 1909 que Freud e seus colaboradores médicos chegaram na
América do Norte para possibilitar que a teoria psicanalítica fosse
conhecida e expandida pelo mundo. Assim, Freud publicou a partir
dessa experiência a obra Cinco lições de psicanálise. Assim, a psicanálise
ganhou espaço e força para além do continente europeu.

De modo prático, a seguir, veremos alguns exemplos de casos clínicos acom-


panhados por Freud e seus colaboradores no primeiro momento da Psicanálise e sua
emergência como intervenção nos fenômenos psíquicos. Elucidaremos, então, o que a
teoria estava propondo na época.

3.1 CASOS CLÍNICOS CLÁSSICOS DA EMERGÊNCIA EM


PSICANÁLISE
Alguns casos clínicos acompanhados por Freud acabam sendo pioneiros da
própria ciência psicanalítica. Podemos agora conferir um pouco sobre tais casos, para
melhor compreendermos a própria constituição da psicanálise, isto é, sua historici-
dade por meio da prática, da aplicabilidade.

No caso de Anna O., pode-se dizer que foi escrito a quatro mãos, por ser esta
uma paciente que Breuer acompanhava, tendo Freud como seu aliado nos estudos
sobre a histeria. Vamos, então, ao caso: Anna O., cujo nome é Berta Pappenheim (1859-
1936), chegou até Breuer manifestando sintomas como alucinações, dores no corpo,
esquecimento da língua materna, dificuldade para ingerir líquidos, desatenção e tosse
persistente.

FIGURA 12 – ANNA O.

FONTE: <https://shutr.bz/3mXDwAb>. Acesso em: 12 ago. 2021.

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Foi por meio da hipnose que Breuer conseguiu compreender a formação de
alguns dos sintomas. Zimerman (2004) nos auxilia ao dizer que os sintomas de Ana eram
aliviados na hipnose porque, nos momentos de transe, a paciente conseguia reviver
situações traumáticas da infância. Frente aos conflitos, por ter uma consciência frágil,
ela se dissociava, o que justifica a substituição dos sintomas durante o tratamento.

Contudo, Freud começou a perceber que Ana poderia estar deslocando seus
sintomas pelo fato de estar enamorada por Breuer. Ela manifestaria por ele, aos olhos
de Freud, atitudes de amor e ódio. O que acaba por ter sentido quando ela, em aparente
crise histérica, gritou “o filho de Breuer está para chegar”, pedindo que ele fizesse mais
uma sessão de hipnose. O que causou muito constrangimento em todos os envolvidos
e levou Breuer a se afastar por um tempo, interrompendo seu vínculo com Ana.

ATENÇÃO
O caso de Anna O., como lembra Zimerman (2004), trouxe o
método catártico para a psicanálise. A própria Ana dizia que era
curada por meio da palavra, ou seja, pelas conversas com Breuer.
Aqui também devemos observar que há uma família repressora, a
qual não deixava que ela vivesse seus desejos “fora do lar”. Seu
pai era doente e quem cuidava dele era Ana, o que mostra a
importância da relação familiar para o desenvolvimento do
psiquismo em qualquer instância.

Outro caso de extrema relevância no estudo da história da Psicanálise é o do


homem dos ratos. Neste caso, o jovem chegou ao consultório muito angustiado, com
uma ideia obsessiva relacionada a um castigo que ouvira no tempo do serviço militar.
Um tenente havia comentado sobre esse castigo: tratava-se do suplício chinês, no qual
um rato é introduzido no ânus. Segundo Nasio (1997), podemos pensar que esse fato
despertava no paciente uma angústia que gerava a formação de uma série de sinto-
mas obsessivos, trazendo à cena uma história de seu pai em relação a uma dívida
antiga de jogo.

Esses pensamentos obsessivos o faziam acreditar que se não pagasse a dívida,


seu pai sofreria tal castigo, além disso, algo de horrível poderia acontecer à sua amada.
Embora o seu pai estivesse morto, para ele tal ideia fazia sentido. Ele começou, então,
uma peregrinação angustiante atrás desse tenente ao qual deve, antes que uma
desgraça ocorresse. Em repetida busca, ele pediu ajuda a um amigo que o encaminhou
até Freud.

Cabe, sobretudo, destacar que o pai do paciente se casou com sua mãe devido
a questões financeiras, de modo que ela era mais rica.

27
O discurso repetido e brincalhão da mãe, o qual trazia o fato de seu marido
rejeitar a moça mais bonita e pobre, voltava como um fantasma ao paciente. Desse
modo, podemos perceber que esse caso foi atravessado e constituído por questões
financeiras e pelo medo em desapontar a família.

Quando Freud interpretou, procurou fazer com que “o homem dos ratos”
percebesse que tudo não passava de seus fantasmas inconscientes relacionados
ao dinheiro e ao que ele representa na sua vida. Bem como o fato de ficar em dívida
com sua família caso não aceitasse se casar com a moça rica: assim como seu pai
aceitou. Mas por que os ratos? Ele tinha uma fixação por ratos, os quais foram vistos
como representação fantasiosa do próprio pai.

Para elucidar a emergência da psicanálise no trabalho com crianças, iremos


observar como ocorreu o caso do pequeno Hans, assim, teremos também um momento
de estudos sobre ludoterapia e análise com crianças.

FIGURA 13 – LUDOTERAPIA

FONTE: <https://shutr.bz/3AFjmzS>. Acesso em: 12 ago. 2021.

O menino Hans não foi necessariamente atendido por Freud, mas sim em par-
ceria com o próprio pai de Hans, amigo e colega de Freud. O amigo trazia nas conversas
detalhes do comportamento cotidiano de seu filho, para que juntos pudessem interpre-
tar e amenizar os sintomas que estariam se agravando. Como lembra Zimerman (2004),
quem analisou o caso do menino foi o próprio pai, pois ele quem fez a maioria das
sessões com o menino.

Os sintomas apresentados por Hans estavam associados à fobia por cavalos,


animais tão estimados pelo menino até então. Ele começou a apresentar essa fobia
dizendo que os cavalos poderiam mordê-lo, o que fazia com que o menino não quisesse
mais sair de casa, visto que o cenário da época era povoado por muitos cavalos, afinal,
era um dos meios de transporte mais utilizado em Viena.

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Em um dos encontros com Hans, Freud pediu para que ele desenhasse, e Hans
desenhou um cavalo, contudo, Freud observou que o cavalo tinha um risco muito forte
abaixo do nariz. Quando Freud questionou se aquilo desenhado era um bigode, o me-
nino disse fantasioso que sim, que se tratava de um bigode no cavalo, um bigode igual
ao de seu pai.

Nesse momento, Freud começou a perceber a relação da fobia com o medo de


seu próprio pai e o que ele representava. Podemos dizer que o menino estava sofrendo
uma ameaça de castração quando sua sexualidade começou a se manifestar, por meio
da curiosidade sobre o seu corpo e o corpo dos outros. E como lhe diziam que era para
tomar cuidado, pois o cavalo poderia morder sua mão, ele, na sua fantasia, a partir das
análises de Freud e do próprio pai do menino, deslocou sua mão para seu órgão genital.
Começou, então, a imaginar que a castração, a mordida ou o corte poderia não ser na
sua mão, mas nas suas partes íntimas.

ATENÇÃO
As situações apresentadas retratam brevemente os casos clássicos
e precursores da psicanálise freudiana. Embora cada caso tenha sua
especificidade, eles têm a neurose em comum. Assim, podemos ter
uma compreensão das neuroses: sua diversa manifestação de sinto-
mas e psicopatologias associada à estrutura neurótica de personali-
dade proposta por Freud.

Nos casos descritos, podemos perceber a necessidade de atenção à história


que os pacientes carregam: suas fantasias, seus medos, suas dúvidas, a maneira como
cada um enxerga sua realidade. Afinal, os sintomas estão associados com a história,
por vezes criadas somente na cabeça dos neuróticos. Para eles, tudo o que pensam e
sentem possuem um sentido atrelado aos conteúdos inconscientes.

FIGURA 14 – REPRESENTAÇÃO DA NEUROSE

FONTE: <https://shutr.bz/3j5hgDx>. Acesso em: 12 ago. 2021.

29
Quando pensamos nos sintomas de Ana, eles estariam relacionados às expe-
riências infantis dela, principalmente no que diz respeito à maneira opressora de seus
pais sobre seu comportamento. Como em momentos em que ela estava desatenta e o
pai a repreendia de forma opressora, o que desperta nela uma incongruência de desejo
e ação. Ela, então, convertia essa hostilidade em sintomas corporais e em momentos
que “saia do ar”, como se não estivesse presente nas conversas.

Não temos a intenção de esgotar o estudo sobre os casos, uma vez que eles
podem e devem ser olhados mais minuciosamente. Todo estudo em psicanálise requer
dedicação, tempo e muita interpretação. A pretensão maior aqui foi elucidar como ocor-
reu o processo histórico da psicanálise em sua emergência naquele cenário, mos-
trando por meio da aplicabilidade da ciência psicanalítica, o início de sua efetivação
como metodologia de trabalho com saúde mental.

Esperamos que tais exemplos possam auxiliar na compreensão da teoria, da


metodologia e da perspectiva clínica proposta por Freud com a constituição da psicaná-
lise. Lembrando que cada caso clínico tem suas singularidades, de modo que devemos
observar com muita cautela e zelo, pois estamos diante do sofrimento e das dificulda-
des de um sujeito que busca ajuda ou uma suposta cura. Estejamos, assim, atentos e
abertos para compreender e intervir de forma ética, pautados em aportes epistemológi-
cos, teóricos e metodológicos confiáveis, que promovam saúde mental.

DICA
Para o aprofundamento dos conhecimentos sobre a história de
Sigmund Freud e seu processo de construção da psicanálise,
assim como os casos clínicos, indicamos o filme Freud, além da
alma, dirigido por John Huston, e também o documentário O
jovem doutor Freud, dirigido por David Grubin.

30
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A história de vida dos teóricos contribui para o próprio processo de instituição das
novas ciências.

• A Psicanálise se constitui como uma nova ciência pautada em descobertas relevan-


tes para os tratamentos das patologias que eram vistas e tratadas como somente
orgânicas, possibilitando novos olhares para o sofrimento psíquico e alternativas de
cura.

• O processo histórico da instituição da Psicanálise se deu em um contexto marcado


por resistências a essa teoria, não sendo considerada, a priori, como ciência, pois não
se enquadrava na perspectiva positiva de ciência vigente na época.

• Foi com persistência, produção de conhecimento e muita clínica que Freud, por
meio de seus casos clássicos no tratamento da histeria e das neuroses, se destacou
na sociedade científica e promoveu uma nova teoria sobre o sujeito, sua estrutura
psíquica e seu sofrimento.

31
AUTOATIVIDADE
1 Todas as linhas e metodologias da ciência e de estudos sobre o ser humano são
protagonizadas por pensadores que se debruçaram intensamente sobre seus ex-
perimentos e conhecimentos, promovendo quebras de paradigmas e construção de
outros. Uma das teorias precursoras no tratamento das psicopatologias, para além do
aspecto orgânico, é a Psicanálise. Assinale a alternativa que corresponde ao nome do
pai da psicanálise:

a) ( ) Carl Jung.
b) ( ) Sigmund Freud.
c) ( ) Charcot.
d) ( ) Breuer.

2 A Psicanálise foi pioneira no que diz respeito à maneira de abordar e tratar a histeria.
Junto com Breuer, Freud trabalhou com a hipnose em um caso muito conhecido,
o qual apresentava sintomas histéricos, contudo, não apresentava melhoras com
métodos tradicionais de intervenção. Tal caso clássico da história da psicanálise se
refere ao:

a) ( ) Caso Anna O.
b) ( ) Caso Melanie K.
c) ( ) Caso do homem dos ratos.
d) ( ) Caso do pequeno Hans.

3 Freud, em sua psicanálise, utilizou novos métodos de investigação e tratamento das


patologias que acometiam o corpo e a “alma”, ou seja, o subjetivo. A respeito desses
métodos, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Dedução, interpretação e modulação neuronal.


b) ( ) Hipnose, modulação neuronal e indução.
c) ( ) Hipnose, associação livre e interpretação.
d) ( ) Catarse e modulação neuronal.

4 A instituição da psicanálise, enquanto ciência e método de investigação e tratamento


das patologias, passou por momentos de resistência no território europeu e também
fora dele. A partir de seus estudos, comente como a psicanálise conseguiu ganhar
espaço como teoria e metodologia de tratamento das psicopatologias.

5 Os casos clássicos de Freud possibilitaram, de certa forma, comprovar a eficácia da


psicanálise no tratamento das neuroses, entre elas há um destaque para o tratamen-
to da histeria. Comente brevemente sobre o caso Anna O. e sua importância para a
instituição da psicanálise.

32
UNIDADE 1 TÓPICO 3 —
A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
Neste momento de nossos estudos, iremos abordar a Psicanálise e seu surgi-
mento no Brasil.

Poderemos, desse modo, observar como a Psicanálise se instituiu enquanto


teoria e prática em saúde mental em nosso território nacional.

Tal conhecimento é importante porque é necessário compreendermos como a


Psicanálise foi e é trabalhada enquanto uma ciência da psique (ou da alma) em um con-
texto de tantas alternativas que promovem uma cura rápida e sem maiores esforços.

2 O BRASIL E A PSICANÁLISE
A forma como a Psicanálise se institui no cenário nacional é o começo de uma
nova maneira de intervir na saúde mental e nos fenômenos psíquicos, gerando para
com outros países uma ruptura de paradigmas e um outro jeito de falar e trabalhar com
o sofrimento humano.

2.1 A EMERGÊNCIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL


Foi no início do século XX que a psicanálise começou a se instituir no cenário
brasileiro, aliada aos saberes médicos da época, sendo abraçada por diferentes grupos,
mas sempre na tentativa de resgatar e articular as necessidades que se instalavam no
território nacional.

Conforme estudamos no tópico anterior, quando Freud se colocou a explorar


os territórios fora da Europa, ele se lançou com seus colaboradores para a América do
Norte, isso ocorreu em 1909. Assim, ele proferiu estudos, pesquisas e experiências que
o levaram a escrever As cinco lições de psicanálise. Essa obra já citada foi difundida
pelo mundo e chegou ao Brasil como precursora da Psicanálise, orientando essa nova
abordagem de intervenção nas psicopatologias e nos sofrimentos humanos.

33
ATENÇÃO
Salientamos aqui o momento histórico em que o Brasil se encontrava
quando a psicanálise começou a se instituir como um campo do saber
e fazer em saúde mental. Tratava-se da virada do século XX, quando
nosso país estava abolindo a escravidão e consolidando um estado
de República. Muitas mudanças políticas ocorreram a partir de tais
situações sociais, culturais e econômicas.

O cenário nacional, nesse período histórico, foi marcado por transformações e


necessidade de novas adequações devido ao processo de modernização. Eram muitas
arestas para serem podadas e novas formas de viver e se organizar socialmente sendo
instauradas. As dificuldades estavam relacionadas à própria organização dos espaços,
enquanto as questões de higiene estavam relacionadas à falta de saneamento básico
que atendesse toda a população. Como também a vida dos imigrantes europeus e suas
necessidades de trabalho e moradia.

ATENÇÃO
Nesse contexto de necessidade de reformulações e estratégias
de melhorias sanitárias, de reorganização social e de emergência
em pensar soluções para os problemas de saúde da população,
a intelligentsia nacional passou a articular sobre formas higienistas
para conter o avanço das mazelas sociais e culturais. A Psicanálise,
então, começou a ganhar espaço a partir da inserção dessa intelli-
gentsia, junto aos saberes médicos.

É nessa perspectiva que a medicina começou a intervir para não somente regular
os corpos quanto ao enfrentamento das doenças, mas também numa tentativa de orga-
nizar o corpo social. Tratava-se de uma ideia de normatizar as pessoas, higienizar aquilo
que estava sendo intolerável quanto às subjetividades doentes e desviantes das normas
institucionais da época, considerada a primeira república.

IMPORTANTE
Visto que a concepção higienista da medicina se tornara fortemente
presente no Brasil, a Psicanálise surgiu como método de intervenção
para tratar os sujeitos que eram considerados como débeis e impo-
tentes frente às demandas da sociedade. Sociedade essa marcada
pela ideia de homogeneização da espécie, na qual o diferente não era
aceito e por isso, refutado e excluído da sociedade.

34
Dessa maneira, a psicanálise seria uma das intervenções para “corrigir” tais
“anormalidades” e garantir o equilíbrio de uma sociedade higienizada, limpa de seres e
situações que fugissem a norma constituída por esse ideal absurdo e preconceituoso.
Tal ideal seria pautado pela psicanálise, a qual iria contribuir com seus conhecimentos e
práticas na higienização, ou seja, numa limpeza desses sujeitos não quistos e/ou com
potencial de trabalho.

Havia também uma expectativa de utilizar a psicanálise voltada para a nossa


realidade latina, a partir das demandas da nossa realidade, sendo diferente da realidade
e dos problemas científicos da Europa.

ATENÇÃO
Vale ressaltar que a psicanálise circulava no Brasil antes mesmo
das intervenções científicas, enquanto leitura assídua de muitos
psiquiatras e também de artistas, como no caso da literatura.

Sua inserção ocorreu junto com a psiquiatria, quando esta reconhece que as
neuroses manifestam sintomas que não podem ser considerados como genéticos e
tampouco são tratados com métodos tradicionais da psiquiatria. O que possibilitou à
psicanálise intervir de forma a problematizar, analisar e interpretar tais psiconeuroses e,
assim, promover novos meios de intervenção, inclusive nas demais patologias da mente.

FIGURA 15 – EGO E SUPEREGO

FONTE: <https://shutr.bz/3BGZKwx>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Foi a psicanálise uma das responsáveis por educar o povo e o normatizar,


promovendo uma psicoeducação moral e ética na sociedade moderna. Poderíamos
pensar, a partir de então, em uma “domesticação” do Ego guiada por um Superego.

35
IMPORTANTE
O primeiro nome que aparece na história da inclusão da psicanálise
é de Juliano Moreira (1873-1933). Ele utilizava a psicanálise no
estado da Bahia, tanto como professor, instigando seus discentes
a estudar essa nova proposta teórica e metodológica, quanto na
aplicabilidade da psicanálise em sua própria clínica.

Sendo assim, a psicanálise começou a se ramificar no território nacional como


uma possibilidade de lidar com questões de conflito e ajudar a constituir o estado moder-
no e o ser humano em constante relação intra e interpessoal. Ela poderia explicar como
se davam os processos mentais e também as configurações sociais, facilitando as inter-
venções mais eficientes no objetivo de modernizar o país.

A criação da Liga brasileira de Higiene Mental se institui em 1922, na cidade do


Rio de Janeiro, com uma perspectiva de trabalho com a saúde mental coletiva.

As práticas de educação e normatização dos sujeitos ganhou mais força e a psi-


canálise passou a auxiliar esse processo, como sendo uma das responsáveis por avaliar,
diagnosticar e promover a manutenção de uma “ordem social”.

3 A INSERÇÃO DA PSICANÁLISE NO CONTEXTO


NACIONAL ATUAL
Abordaremos, agora, a relação entre a psicanálise na contemporaneidade e
sua contextualização frente aos desafios desta como ciência do subjetivo. Diante
de uma suposta crise da psicanálise, além de tantos métodos que prometem uma cura
para o sofrimento mental de modo rápido e com pouca implicação pessoal no processo,
podemos visualizar os meios em que a psicanálise pode estar inserida nas camadas
sociais em diferentes perspectivas de intervenção em saúde mental.

3.1 A PSICANÁLISE COMO CIÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE


Sabemos que a psicanálise, desde seu surgimento no século XIX, com as pri-
meiras ideias e investigações de Freud sobre o psiquismo, sempre existiram ressalvas e
resistências pela comunidade científica.

Destarte, essa teoria e metodologia clínica sempre tiveram espaços criados


nas fissuras da sociedade médica e psiquiátrica. O movimento da psicanálise acontece
também com rupturas e novos paradigmas, os quais são atrelados a obras iniciais de
Freud, mas muitas vezes revisitados por seus contemporâneos.

36
Por mais que a psicanálise se proponha a romper paradigmas e criar outros, ela
ultrapassa esse status, pois a escuta (elemento primário e fundamental da clínica psicana-
lítica) precisa estar à disposição de simbolismos e do desejo. Sendo necessário que ela se
dê de forma atenciosa e concisa, com o olhar clínico mais integral sobre aquele que ouvi-
mos, não reduzindo os sujeitos a sintomas e queixas, mas indo além em sua compreensão.

FIGURA 16 – SIMBOLISMO

FONTE: <https://shutr.bz/3j6ajlx>. Acesso em: 12 ago. 2021.

No entanto, o que se percebe na contemporaneidade é a pressa, ou seja, pressa


para diagnosticar, para dar respostas que por vezes parecem receitas, isto é, iguais a
todos sem lembrar das singularidades e dos contextos. Há o diagnóstico rápido, a clas-
sificação do sujeito e o tratamento adequado a partir da psicopatologia, e não do sujeito
que adoece e fala sobre seu sofrimento.

ATENÇÃO
Como a psicanálise propõe uma escuta intensa e genuína,
atenciosa e, por vezes, mais frequente e demorada, ela acaba
por ser, além de questionada em seus resultados, refutada pelos
sujeitos que desejam resolver seus conflitos internos de forma
rápida e sem muita responsabilidade sobre o processo.

Sabemos que as tentativas de adequar a psicanálise às ciências continuam em


movimento, de modo que novas pesquisas estão sempre sendo realizadas com o intuito
de acompanhar as mudanças do contexto sócio-histórico, assim como as próprias psi-
copatologias. Com novos transtornos mentais surgindo e, consequentemente, a socie-
dade adoecendo cada vez mais com questões psíquicas, torna-se necessário repensar
a psicanálise e sua aplicabilidade.

37
DICA
Podemos observar o crescente desenvolvimento de novas psicopa-
tologias a partir dos próprios manuais de diagnóstico, em especial
o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V).
Para conhecer mais e se atualizar, leia o manual na íntegra: https://
edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5662409/mod_resource/con-
tent/1/DSM-5.pdf.

Devemos considerar, ademais, que os sintomas na psicanálise estão funda-


mentados na linguagem, pois é por meio dela que eles se manifestam, seja de forma
oral ou corporal, em situações não evidentes nem mesmo para o sujeito, possibilitan-
do que o processo da psicanálise e sua escuta especializada traga à tona as questões
do inconsciente.

FIGURA 17 – LINGUAGEM CORPORAL

FONTE: <https://shutr.bz/3veSeGG>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Existe uma necessidade de sermos sensíveis e irmos além da linguagem falada,


sem desprezá-la. Aqui podemos lembrar um conceito muito utilizado e trabalhado por
Freud, trata-se da transferência e da contratransferência entre o analista (psicana-
lista) e o analisando (sujeito que fala).

3.2 HÁ UMA CRISE NA PSICANÁLISE?


No cenário contemporâneo há uma controvérsia sobre uma possível crise que
a psicanálise estaria enfrentando em relação à procura de atendimentos e de análise
como meio de resolução de seus conflitos psíquicos. Muito dessa suposta crise acaba
sendo um reflexo da pressa contemporânea em se responder as questões de forma
imediata e resolver os conflitos e sofrimentos sem necessariamente haver um compro-
metimento de quem sofre, delegando ao externo e a outras práticas a busca por uma
cura e melhora psicológica.

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FIGURA 18 – PROCESSO TERAPÊUTICO

FONTE: <https://shutr.bz/3BKYp84>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Tal crise começa a ser percebida pelos psicanalistas quando os analisados


acabavam por não se adequar com a proposta da psicanálise, e deixavam o tratamento
antes mesmo de qualquer melhora no quadro clínico. A partir disso, pensaram em
estabelecer perfis para o atendimento em psicanálise, o que também não surtiu efeito,
por serem estes, ao fim, sujeitos que não precisariam de uma intervenção de cura,
mas sim de um suporte para o cotidiano. Além da questão do tempo de um processo
analítico, existem algumas questões de cunho social, uma vez que vivemos em uma
sociedade marcada pelo capital, pela pressa e pela pressão de produzir sempre e no
menor tempo possível.

FIGURA 19 – PRESSA

FONTE: <https://shutr.bz/3ALg6my>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Desse modo, a necessidade que temos de aliviar o sofrimento de forma rápida


faz com que não pensemos em estratégias mais genuínas de melhora e cura, e sim
em paliativos que amenizam sintomas, como as medicações, mas os sintomas não são
resolvidos e nem elaborados, voltando como fantasmas a cada nova dificuldade em
relação aos nossos recursos psíquicos.

Essa crise foi identificada em todos os territórios por ela contemplados, e parece
marcar, por vezes, uma crise do próprio mercado quanto aos tratamentos em saúde
mental. A urgência em ser feliz ou em viver tudo de uma vez só, além da falta de empa-
tia para consigo mesmo, ou seja, não olhar para si com mais respeito e honestidade ao
buscar resolver conflitos, gera o uso de uma “máscara da felicidade” superficial.

39
FIGURA 20 – MÁSCARAS DA FELICIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/3n0tu18>. Acesso em: 12 ago. 2021.

Permitir-se entrar em contato com seus fantasmas mais profundos pode dar
medo e representar muita responsabilidade para enfrentar tais fantasmas. Nesse caso,
a psicanálise está à disposição para lidar com todos os fantasmas que criamos e nos
sãos criados, em seu processo de análise que vai compreender e ouvir o sujeito em sua
singularidade e historicidade, para então promover a intervenção clínica neces-
sária àquela situação em particular. O resultado do processo é muito melhor do que a
sua negação.

Encontramos em Herrmann (2002) uma suposição sobre essa crise na psica-


nálise, sendo uma crise associada também aos próprios teóricos da psicanálise, os
quais precisariam se atualizar e modificar suas formas de ver e fazer psicanálise.
Para que pudessem, assim, promover a clínica psicanalítica, buscando e construindo
novos conceitos e métodos mais alinhados com as necessidades sociais e individuais.

ATENÇÃO
É muito importante articular a clínica psicanalítica com o momento
social, econômico e cultural de sua época, sempre se reinventando
a partir das demandas em saúde mental e psicopatologias. Desse
modo, devemos rever a teoria e fazer com que ela não morra inte-
lectualmente e muito menos enquanto prática de cuidado em saúde.

Por fim, podemos notar que as crises servem para que possamos sempre rea-
valiar nossos conhecimentos, nossas observações e metodologias de intervir na ciência
e com a ciência, em prol de melhorias que atinjam a maioria da população. Portanto,
pensar a crise na psicanálise é possibilitar a produção de novos olhares e saberes sobre
os fenômenos psíquicos e as psicopatologias, seus diagnósticos e tratamentos.

40
LEITURA
COMPLEMENTAR
UM EXERCÍCIO RIGOROSO DE INVESTIGAÇÃO CLÍNICA

Angélica Bastos

Diante do mal-estar subjetivo, Freud assumiu uma posição ativa que resultou
na criação de um dispositivo clínico inusitado e solidário à invenção do inconsciente.
Assim, pelo ato de Freud, surgiu a psicanálise em descontinuidade com o que era até
então possível pensar, desejar e, sobretudo, fazer. O modo segundo o qual a investiga-
ção psicanalítica se arquiteta já indica uma série de exigências. Segundo Freud, o termo
psicanálise comporta três acepções; em primeiro lugar, designa “um procedimento para
a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro
modo” (FREUD, 1923/1966, p. 287).

Numa segunda acepção, a psicanálise é um tratamento baseado nessa inves-


tigação. Por último, “é uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo des-
sas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica” (FREUD,
1923/1966, p. 287). Essas três acepções se conjugam e se interpenetram, posto que as
linhas de investigação e de tratamento estão na base da teoria psicanalítica que só exis-
te à medida que pesquisa e clínica para ela confluem. A experiência psicanalítica não
é mediada por ideias ou conceitos abstratos e mesmo o conceito fundamental (Grun-
dbegriff) não está na base (não é um conceito básico), mas no topo (FREUD, 1914/1999),
como resultado de uma elaboração.

Na base, encontra-se o trabalho do inconsciente, trabalho sob transferência,


cuja sustentação depende, como apontou Lacan, do desejo do analista. Para conceituar
a clínica e transmitir a psicanálise, o analista se remete à experiência inaugural de Freud
e dirige indagações a seus textos.

UM PRINCÍPIO DE LEITURA E DUAS ORDENS DE LAÇO

Ao ler a obra de Freud, Cosentino (1999a, 2004) não se limita a tratar seu pen-
samento como um fato, por isso, não recai numa história da ciência ou das ideias. Tam-
pouco toma o fato da obra freudiana para tratá-lo como ideia, não realizando, por con-
seguinte, uma epistemologia de seus conceitos.

Um exercício rigoroso de investigação clínica história do pensamento e da epis-


temologia, além do fato e das ideias freudianas, com a psicanálise inaugura-se um novo
campo de experiência, irredutível a uma Weltanschauung filosófica ou ao campo do ex-
perimento científico.

41
Nem concepção totalizante do mundo, nem investigação de um campo objeti-
vável segundo um modelo de ciência exata, a psicanálise se define por uma práxis e o
objeto da teoria psicanalítica coincide com o campo desta práxis. Trata-se do campo de
uma experiência mediada pela linguagem, mais especificamente mediada pela transfe-
rência, condição da clínica psicanalítica. O rigor na investigação psicanalítica requer a
transferência e essa exige do analista que interrogue sua posição.

Sobre o campo da experiência analítica, o trabalho de Cosentino (1998a, 1998b,


2001, 2004) muito ensina ao leitor que acompanha sua demarcação na descoberta freu-
diana do inconsciente, pontuada pelas irrupções da dimensão do real, correspondendo
ao que Freud circunscreveu como trauma e que hoje, após certos desenvolvimentos
teóricos, abordamos como gozo.

Com as primeiras histéricas, Freud se defrontou com o que chamou de contra-


-vontade, o sujeito impelido a fazer algo apesar de si mesmo ou impedido de fazê-lo,
malgrado sua vontade. Se esta pode ser definida como uma faculdade através da qual
alguém é capaz de opor-se a si mesmo, de contrapor-se à pressão imperiosa de seus
impulsos, a suas ideias intrusivas, descobrimos na contra-vontade a determinação pelo
inconsciente e a debilidade da vontade suplantada pela força da pulsão. A compulsão à
repetição e a pulsão de morte, a satisfação de outra índole, colocam mais e novas exi-
gências a Freud e aos psicanalistas.

Lacan (1962/1998) reabilita o termo vontade e subverte a ideia, introduzindo-o


no registro da pulsão de morte e retirando-lhe toda temperança, todo bom-senso, todo
bem, com a expressão vontade de gozo.

A investigação de Cosentino (2001) percorre a teorização do campo psicanalí-


tico como campo da linguagem (e do Outro) e seu desdobramento em campo do gozo.
Este, à medida que não se deixa absorver na significação do desejo, exige um trata-
mento, definindo uma clínica do real, que não confunde a dimensão fantasmática com
a estrutura em que o sujeito se constitui pela inscrição de uma marca de gozo.

Seu livro Construcción de los conceptos freudianos (COSENTINO, 1993, 1999a)


consiste numa leitura conceitual da obra de Freud, uma releitura que acompanha, mui-
to mais que a cronologia, o movimento do pensamento freudiano impulsionado pela
problemática clínica. Do fato de que a experiência de Freud nem sempre esteve bem
correlacionada à construção teórica, isto é, que a clínica não caminha pari passu com a
elaboração conceitual, mas adianta-se a ela, Cosentino (1993, 1999a) extrai um princípio
de leitura.

Desde os primeiros textos estudados, a partir do núcleo designado por Freud


de “patógeno”, são formuladas questões que atravessam e estruturam seu trabalho, a
saber, a existência de, em primeiro lugar, “um limite à recordação: o núcleo como um

42
ponto de falta na própria cadeia associativa. Com o dizer, nem tudo pode se dizer” (CO-
SENTINO, 1999a, p. 38) e, em segundo lugar, um limite à significação. Quanto a este, o
autor afirma que o núcleo antecipa também o “núcleo genuíno do perigo”, assinalado por
Freud em Inibição, sintoma e ansiedade (FREUD, 1926/1976).

Ele aplica Freud ao próprio texto freudiano e, localiza “um resto que escapa ao
dizer, fora da cadeia associativa e da função da palavra. O que excede a sobre determi-
nação e introduz com a angústia o registro da causa” (COSENTINO, 1999a, p. 38). Para os
psicanalistas, define-se, então, um procedimento de interpretação inconfundível com
a hermenêutica que buscaria o desdobramento da significação sempre insaturada e
pronta a liberar algo de novo ou ainda não dito. Assim, a linha de investigação do autor
segue o que não se deixa capturar pela significação, e que irrompe de modo pontual no
fenômeno do estranho e em várias dimensões do horror.

O autor percorre as obras de Freud e Lacan, endereçando-lhes as questões


suscitadas pela distinção de duas ordens de laço na experiência do analista: de um lado,
fantasma, frase superegóica, neurose de transferência, aspecto metafórico do sintoma;
de outro, os traços de caráter, a estrutura. Na tensão entre esses dois laços que coexis-
tem e se diferenciam, o psicanalista (COSENTINO, 1998b) vai dos estudos das fobias em
Freud até ao conceito lacaniano de lalangue (COSENTINO, 2007).

Em relação à servidão, não bastam a tragédia de Édipo, e a neurose de transfe-


rência. Há outra dimensão em jogo: a tragédia contemporânea. Ela opera sob transfe-
rência, mas não é sintomatizável. Freud a denominou traços de caráter: continuações
inalteradas das pulsões originárias ou formações reativas a elas. Traços e formações
mais inatingíveis para a análise que o sintoma-metáfora, os processos neuróticos, a
neurose de transferência e a dimensão fantasmática ou superegóica. (COSENTINO,
2001, p. 18)

Inibição, sintoma e angústia foram formas do mal-estar detectadas como res-


postas ao real, traduzindo a relação do sujeito com o gozo. Da tríade de respostas re-
pertoriadas e teorizadas por Freud, o autor dedica-se intensamente ao estudo da an-
gústia, passando pelas neuroses, especialmente a fobia, e pelos sonhos de angústia
que cedo interrogaram o império do princípio do prazer. Em toda incursão que efetua
na obra freudiana, ele atende à necessidade de se situar um ponto de exterioridade ao
princípio do prazer, ponto que distingue a prática psicanalítica das clínicas que objeti-
vam a dimensão real do mal-estar e neutralizam o sintoma, reduzindo-o ao sofrimento
erradicável.

O reconhecimento desse ponto exterior à homeostase do prazer permite aos


analistas não somente abordar o gozo, enquanto satisfação pulsional além do princípio
do prazer, como também apostar no desejo, cuja sustentação requer uma ultrapassa-
gem dos limites do prazer.

43
A clínica das fobias constitui o terreno privilegiado em que o psicanalista in-
terroga o dispositivo: “as fobias estendem os limites do campo analítico, e por isso, as
operações possíveis no marco da transferência, ao não coincidir com a estrutura do
fantasma” (COSENTINO, 1998a, p. 10). Desde os primeiros artigos de Freud, a reflexão
de Cosentino visa estabelecer o estatuto da angústia como afeto e como neurose. Seu
minucioso estudo sobre as fobias ressalta o lugar peculiar m exercício rigoroso de in-
vestigação clínica que esta neurose ocupa em relação à histeria e à neurose obsessiva
– placa giratória para esses dois tipos clínicos - além do destino que ela dá à angústia.
Uma vez que na fobia não se detecta a representação recalcada, a fobia escapa ao “rei-
no da substituição” de uma representação por outra. O autor ressalta momentos em que
a abordagem freudiana prefigura uma teorização ulterior, recortando em artigos tidos
por pré-psicanalíticos algo que será destacado em Inibição, sintoma e angústia, quando
esta assumir um lugar primordial e anterior ao recalque.

Sua trajetória de investigação se prolonga. Em seu comentário sobre Herbert


Graf (COSENTINO, 1999b) - o pequeno Hans, cujo caso ele retoma em vários trabalhos –
localiza um déficit fantasmático, para o qual o sujeito encontra um sintoma- suplência.
Com bases nas fobias graves, enfrenta “o enigmático problema de saber, aquém do
fantasmático, de onde vem a neurose, ali onde o sujeito, determinado pela estrutura, se
diferencia do fantasma” (COSENTINO, 1998a, p. 10).

Não se trata, no entanto, de uma pesquisa limitada às fobias. Estas conduzem


a outras regiões da experiência, como é próprio do inconsciente. Por exemplo, a partir
do falo imaginário que acede ao estatuto simbólico de razão do desejo, o psicanalista
segue Lacan na afirmação de um resíduo que não pode ser subsumido pelo significante
e que, tal como mostram os irracionais, deixa um resto, o objeto a, o objeto da angústia.
Desloca-se, então, da razão à causa do desejo, concernido pela função que cabe a este
numa análise.

Por seu caráter incontornável na existência humana, a angústia já se convertera


em objeto da filosofia, antes que Freud a situasse no seio da neurose e interrogasse os
sonhos de angústia. O foco de seu interesse se concentra, para além do fenômeno da
angústia, em seu lugar estrutural, introduzido pela situação traumática de desamparo,
que institui a função do objeto.

Nessa operação, o psicanalista demarca o “campo da angústia” (COSENTINO,


1998a, p. 132) e situa seu objeto, o objeto a, no fundamento da divisão constitutiva do
sujeito. Daí a angústia ganhar não só o estatuto de lugar e função, mas também o de
tempo na constituição do sujeito, uma vez que sua função data de um momento logi-
camente anterior à cessão desse objeto não objetivável.

A angústia concernia ao campo da linguagem, à medida que se a interrogava do


ponto de vista do desejo e do campo do Outro: “a angústia original, o lugar da angústia,
se situa no nível do Outro que nada pode fazer com isso que lhe escapa, nada o une a

44
esse grito, já que a cessão do objeto é um entre dois; situa-se entre o Outro e o sujeito”
(COSENTINO, 1995, p. 117). A delimitação do campo da angústia culmina em sua relei-
tura no campo do gozo. Conforme Cosentino em sua leitura de RSI (LACAN, 1975-1976,
seminário inédito), assiste-se a um deslocamento da angústia para o campo do gozo, à
medida que ela deixa de ser abordada a partir do desejo do Outro. Assim, ela ultrapassa
a dialética entre o sujeito e o Outro para se circunscrever entre os registros e requisitar
o reconhecimento do real e do imaginário do corpo no mal-estar.

O ofício do analista o confronta com a necessidade de manejar a angústia que


sobrevém no tratamento, de acordo com o que cada um é capaz de suportar. Mas a
experiência também indica que ela pode faltar, e que as defesas mobilizadas contra
ela arrastam o sujeito no acting-out e na passagem ao ato. Por isso, “Na experiência,
é necessário canalizá-la e, se ouso dizer, dosá-la, para não ser por ela submerso. Aí
está uma dificuldade correlativa da que há em conjugar o sujeito com o real...” (LACAN,
1964/1979, p. 43).

O psicanalista argentino enfrenta essa dificuldade. Antes de tudo, preocupa- se


em afinar o funcionamento do dispositivo com essa dimensão real da experiência do
inconsciente. Uma análise não deixa intocado o fantasma, desvela o lugar de objeto
que o sujeito ocupava, e abala a identificação com o objeto do fantasma como causa do
desejo do Outro. A opacidade do desejo do Outro e as lacunas em seu discurso acionam
a angústia e confrontam o sujeito com o fato de que não sabe que objeto ele é para o
Outro. Nessa direção, Cosentino localiza uma dimensão de horror no tratamento e inter-
roga os destinos a que está sujeita a neurose de transferência, correlativa ao fantasma.

Sob a temática do despertar, o psicanalista contempla disjunção entre o real e


a realidade. Freud vira no sonho o guardião do sono e estabeleceu que se sonha para
continuar a dormir. Quando falha a função do sonho e o sonhador acorda, ele mergulha
em sua fantasia que vela o real. Lacan assinala no próprio despertar uma função homó-
loga: a fim de continuar a dormir, ao invés de despertar para o real, o sujeito acorda para
a sua realidade de cada dia.

O despertar assim entendido desnaturaliza o desejo de dormir. O dispositivo


analítico não promove o desejo de dormir. Assim, o desejo do analista opera numa dire-
ção que mobiliza a função mediana da angústia entre o gozo e o desejo.

Despertar para o real é impossível porque o encontro com ele é faltoso, isto é,
o real se furta ao encontro no instante inapreensível entre o sonho e o despertar. Mas
é impossível despertar: o despertar é o real. Só pode haver nessa borda uma escrita.
Resta ainda revisar a construção do dispositivo analítico e a posição do analista, pois o
que aí se escreve questiona a “natureza” de sua posição (COSENTINO, 1998a, p. 11). No
terreno dos sonhos, a profundidade da análise de Cosentino (1998a, 2004) não pode
ser restituída ao leitor sem o contato direto com seu texto. Ele evidencia que ler Freud
não é a mesma coisa que ler qualquer outro autor, porque este inaugurou uma nova

45
maneira de ler: a leitura do inconsciente, na qual os sonhos desempenham papel privi-
legiado. Essa outra leitura busca uma certa decantação da linguagem, numa pontua-
ção que transgride as normas gramaticais, segundo uma lógica que desdenha a lógica
das proposições, tira conclusões de um fragmento de palavra, extrai consequências
do que se diz nos pedaços de frase, dando ao próprio ato de dizer seu valor máximo. O
que não pode ser lido no texto inconsciente, na cadeia associativa, Cosentino encontra
nos sonhos que recuperam as marcas de experiências infantis impressionantes. Seus
trabalhos recentes (COSENTINO, 2004, 2007) perscrutam no texto freudiano marcas
(Eindrücke), impressões, experiências contundentes que ele cuidadosamente distingue
dos trilhamentos de traços mnêmicos que se diferenciam uns em relação aos outros.

De modo original e especialmente bem documentado, ele ensina a ler no texto


freudiano as marcas de lalangue e os afetos que ela suscita no sujeito. As marcas de
experiências impressionantes correspondem aos depósitos da fala do Outro, detritos
do que cada um ouviu antes de poder subjetivar ou significar. Essas escansões e sedi-
mentações dos fragmentos da língua não serão capturadas pela intenção significativa,
não ingressarão nos desfiladeiros do significante, e muito menos na comunicação. Tais
impressões indeléveis, que ele diferencia dos rastros mnêmicos, são equiparadas ao
significante um que não é um significante como os demais (COSENTINO, 2004).

CONCLUINDO

O sintoma especifica o campo psicanalítico e constitui a forma especialmente


qualificada para a operação analítica, em sua relação com a linguagem Cosentino (2001)
situa o móvel para a investigação psicanalítica. Não basta reformular a teoria e submeter
os conceitos à prova da experiência. No retorno da teoria à experiência, cabe ao clínico
rever sua prática, fazendo do desejo do analista uma função.

Nós analistas contamos apenas com o sintoma e, além dele, com a linguagem.
Questionamos, justamente, a relação entre os dois. O saber atribuído a algo no real não
tem nada a ver com o saber que se articula pelo fato de que há um ser que fala. Pois
bem, por sua própria condição, procura-se delimitar uma relação entre a perda própria a
esse campo – uma dimensão do horror na própria divisão do sujeito - e a função desejo
do analista (COSENTINO, 2001, p. 13).

“Eu não procuro, acho” são as palavras de Picasso subscritas por Lacan (1979,
p. 14). O efeito de transmissão que o conjunto dos textos de Cosentino são suscetíveis
de provocar, deve-se à dimensão de achado presente em sua investigação, guiada não
pela busca, mas pelo desejo na experiência do inconsciente. Ao leitor, deixamos o con-
vite para acompanhá-lo em seus achados, dentre os quais salientamos sua refinada
leitura da obra de Freud e a concepção de duplo laço da experiência analítica.

FONTE: Adaptada de <https://www.scielo.br/j/rdpsi/a/JtzxgZhZDXJLxgdTZ4NW4Nf/?lang=pt>. Acesso em:


15 jul. 2021.

46
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Assim como em todo contexto mundial, a Psicanálise no Brasil também sofreu resis-
tências por parte da comunidade científica e começou a ganhar espaço por meio das
práticas dos médicos que utilizavam a psicanálise em sua clínica e também como
método investigativo.

• Como disciplina, a psicanálise passou a direcionar alguns estudiosos das patologias


e psicopatologias que já não viam só a questão orgânica ou física como causa de
doenças, principalmente as doenças e os sofrimentos mentais.

• A crise da psicanálise diz muito mais sobre a intolerância do sujeito para se envolver
em um processo de cura que requer tempo, disposição e implicação total com o pro-
cesso, frente a uma atualidade com promessas rápidas de cura.

• Existem muitas possibilidades de trabalhar com a psicanálise no Brasil, desde que


estejamos sempre atentos às demandas singulares dos sujeitos e seu contexto.

47
AUTOATIVIDADE
1 Sabemos que a saúde mental é uma constante nos estudos de médicos, psiquiatras,
psicólogos e demais interessados no ser humano e todas suas nuances. No mundo,
assim como no Brasil, houve a inserção de uma nova teoria e prática de trabalho com
os sujeitos que adoeciam, ultrapassando o aspecto somente orgânico, se detendo
também nas singularidades e no emocional desses sujeitos. Passaram a observar
e considerar, então, os aspectos psíquicos na elaboração das doenças, por vezes
somatizadas. Qual foi a linha teórica pioneira dessa maneira de ver e tratar o sujeito?

a) ( ) Psicanálise.
b) ( ) Humanismo.
c) ( ) Positivismo ortodoxo.
d) ( ) Existencialismo.

2 A crise foi identificada em todos os territórios, marcando uma crise do próprio merca-
do em relação aos tratamentos em saúde mental. Afinal, a urgência em obter felicida-
de ou em viver todas as coisas de uma única vez, além da ausência de empatia para
consigo mesmo, ocasionou o uso constante de uma “máscara da felicidade”. Sobre
essa situação, assinale a alternativa que apresenta tal crise:

a) ( ) Crise social.
b) ( ) Crise emocional.
c) ( ) Crise da psicanálise.
d) ( ) Crise mundial.

3 O primeiro nome que aparece na história da inserção psicanálise no Brasil se utilizava


da psicanálise no estado da Bahia, tanto como professor quanto na aplicabilidade da
psicanálise na clínica. Dessa forma, a psicanálise começou a se ramificar no território
nacional como uma possibilidade de lidar com questões de conflito, e assim, ajudar a
constituir o estado moderno. Este estudioso foi:

a) ( ) Pedro Magalhães.
b) ( ) Juliano Moreira.
c) ( ) Constantino Peres.
d) ( ) Charcot.

4 Em nosso contexto atual, fala-se sobre uma crise que a psicanálise estaria enfren-
tando, tal crise está relacionada a quais aspectos? Comente sobre.

5 Diante da suposta crise na psicanálise, como podemos pensar novas estratégias de


intervenção em saúde mental com base na psicanálise? Comente brevemente.

48
REFERÊNCIAS
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perspectivas: contribuições de um diálogo entre Bachelard e Vigotski. Ciência &
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RODRIGUES, S. A atualidade do projeto freudiano de 1895. Transformações em


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TOREZAN, Z. C. F.; AGUIAR, F. O Sujeito da psicanálise: particularidades na


contemporaneidade. Revista mal-estar e subjetividade, Fortaleza, v. 11, n.
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ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – uma


abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 2004.

51
52
UNIDADE 2 —

A METAPSICOLOGIA
FREUDIANA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• discutir os fundamentos, pressupostos, conceitos e estratégias metodológicas que


caracterizam o movimento psicanalítico;

• identificar as contribuições dos principais nomes históricos da teoria psicanalítica e


seu desenvolvimento recente;

• compreender o processo de subjetivação a partir das contribuições


metapsicológicas;

• discutir a inserção do psicanalista nos diferentes contextos profissionais.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A METAPSICOLOGIA: O QUE É?

TÓPICO 2 – A METAPSICOLOGIA DA PSICANÁLISE FREUDIANA

TÓPICO 3 – CONTRIBUIÇÕES DA METAPSICOLOGIA PSICANALÍTICA PARA A CLÍNICA


CONTEMPORÂNEA

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

53
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

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54
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
A METAPSICOLOGIA: O QUE É?

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, estudaremos aqui os aspectos específicos das formulações freu-
dianas acerca da organização mental e psíquica humana, seremos instigados com elu-
cubrações, a fim de conseguir compreender alguns dos preceitos psicanalíticos.

Desde que Freud introduziu as primeiras discussões sobre esta temática, mui-
tas controvérsias e inquietações foram postuladas, mas no geral há sempre um ponto
que elucida e direciona estes movimentos: o conceito de inconsciente. Mesmo o psi-
canalista Jacques Lacan, após várias provocações, acaba estabelecendo uma analogia
entre inconsciente e psicanálise, natureza e física, de modo a alinhar uma “equivalência
entre essas instâncias”.

Assim como existe uma série de disciplinas e ramos científicos que tentam e
se desdobram para compreender e construir conhecimentos sobre a natureza (seja na
física, na biologia, na matemática, entre outras), o mesmo ocorre com o inconsciente. E
é aqui que a metapsicologia freudiana se posiciona.

Se pensarmos nos conceitos fundamentais que estruturam a teoria freudiana


da psique humana, fica evidente que a presença da psicanálise, em âmbito sociocul-
tural, desde o fim do século XX, não é das mais homogêneas. Ao contrário, mostra-se
ambígua ou mesmo confusa, uma vez que o debate psicanalítico suscita e demanda a
abertura para questões não muito ortodoxas. Em especial, quando em foco, a especifici-
dade de sua experiência, algo que vá além do engessamento intrincado de suas teorias.

É preciso, então, pensá-la na prática: da experiência clínica, social (escola, lo-


cais de trabalho, vida privada, vida pública, marketing, esfera política etc.), ou seja, na
escuta do sujeito por seus praticantes analisados. E, nesses termos, serão trabalhadas
as premissas e fundamentos. Um saber que, como destaca Jorge (2008), se coloca a
tratar sobre singularidades subjetivas, por meio da escuta do sujeito (de seus discursos,
de suas práticas e comportamentos), daquilo que ele faz e o que não faz.

55
2 A METAPSICOLOGIA COMO UMA PSICOLOGIA METAFÍSICA
Sigmund Schlomo Freud, ou como ele mesmo se autonomeava, a partir de
1878, apenas Sigmund Freud, um proeminente médico vienense do início do século
XX estabelece uma prática científica a qual ele delimitou psicanálise, na sua visão
uma “ciência natural”, ou como ele mesmo a define, uma psicologia empírica, pois, ao
mesmo tempo, é um método de “tratamento psicológico”.

Isso implica dizer que as teorias nessa seara têm como premissa resolver
problemas empíricos específicos, ou seja, para Freud, enquanto ciência, o corpo
se compõe de conhecimentos, e, assim, é constituído por teorias de diferentes tipos:
algumas que de um lado versavam desde aspectos empíricos, e outras em que se
estabelecem posicionamentos mais especulativos.

FIGURA 1 – SIGMUND FREUD

FONTE: <https://shutr.bz/3FT6DNV>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Enquanto o primeiro caso corresponde a um conjunto de teorias que surgem


dos fatos empíricos (assim ele entendida a partir de fatos clínicos), há um outro cabe-
dal conceitual que trabalha a partir de conceitos especulativos, sem que se estabe-
leça um conteúdo empírico definido.

ATENÇÃO
Autores como Nasio (1997) e Jorge (2008) já sinalizaram que os
conceitos de pulsão, libido e aparelho psíquico se encontram nesta
segunda porção. E é justamente a qual Freud denomina como
metapsicologia.

56
O pensamento freudiano referente à teoria metapsicológica, tem seu desen-
volvimento e construção na junção entre a parte empírica e a parte especulativa
de suas teorizações e conceituações. As quais unem-se de maneira harmoniosa, com
um modo muito particular de definir e conceber a pesquisa científica, algo como uma
conformação intelectual (concreto e abstrato ao mesmo tempo).

A partir desse tipo de compreensão, é possível compreender certos questio-


namentos, inquietações e abstrair conclusões sobre quais implicações e desafios se
assentam as teorias metapsicológicas no desenvolvimento da psicanálise contem-
porânea.

2.1 A PSICOLOGIA A PARTIR DOS FATOS CLÍNICOS


Enquanto uma ciência natural, a psicanálise tem como projeto freudiano rela-
cionar-se às atividades médicas desenvolvidas por seu criador. Isso significa que, a
fim de erigir um método de tratamento para distúrbios psicopatológicos definidos,
Freud precisou criar certos tipos de “expedientes” que àquela época não estavam dis-
poníveis ou criados.

A prática freudiana, pelo menos em seus primórdios, se pautou no compro-


misso com a ciência médica.

Para Freud, um médico em sua lide diária precisava assumir os dissabores e


encargos não apenas para com o paciente, num formato individual, mas também, e
sobretudo, com uma prática científica.

Obviamente este não era o único compromisso fundador da Psicanálise, de


modo que havia outro, para além do compromisso médico.

Se havia a articulação da inserção da psicanálise com práticas consideradas


científicas, isto implicava, de forma agregada, a necessidade de enfrentar fundamen-
tos enquanto experiência. Pense comigo, ao elencar os fundamentos da Psicanálise,
Freud, necessariamente, não utiliza conceitos especulativos. Entretanto, ele o faz de
modo estritamente empírico.

São conceitos que se referenciam diretamente a questões e fatos específicos e


reconhecíveis, a partir de sua experiência clínica. Por exemplo, para o médico vienense,
não é possível considerar a existência de processos mentais inconscientes sem que
haja o reconhecimento de uma teoria da resistência e repressão, ou ainda, conceber
a sexualidade e o complexo de Édipo enquanto sua importância no processo de desen-
volvimento humano. São elementos e experiências como estas que constituem o tema
central da Psicanálise: o inconsciente.

57
NOTA
Devemos distinguir os aspectos clínicos dos processos incons-
cientes, os quais já haviam sido explorados por outros médicos an-
teriormente, tais como o psiquiatra francês Jean-Martin Charcot ou o
neurologista francês Hippolyte Bernheim, os quais o próprio Freud
rende menção. E quanto ao “pensamento inconsciente”, em termos
metapsicológicos, é preciso estabelecer o que é considerado factual
e o que é especulativo. Nesse sentido, parece mais salutar consi-
derar como uma “instância psíquica” entrecruzada e produzida no
encontro de certas forças e energias.

Ao longo de seus escritos, Freud posicionou a Psicanálise como um movimento


que operava um conjunto de conceitos e princípios a serem compartilhados, tradu-
zidos, implicados e apropriados, em termos de prática e experiência.

FIGURA 2 – ANTAGONISMO RELACIONAL DE FORÇAS NA PSIQUE HUMANA

FONTE: <https://shutr.bz/3aF4czR>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Desse modo, parece conveniente trazer alguns destes desdobramentos, como


destaca Tavares (2012, p. 16) ao relacionar alguns dos conceitos concebidos por Freud e
suas traduções em diferentes línguas e versões:

58
QUADRO 1 – TERMOS E CONCEITOS FREUDIANOS

FONTE: Tavares (2012, p. 16)

Nesse conjunto de conceitos, podemos depreender alguns fundamentos da


Psicanálise, os quais aludem a estes grupos específicos mencionados por Freud, a citar
alguns deles:

• a divisão do psíquico em consciente e inconsciente (apresentada em O ego e o id, de


1923);
• a teoria dos sonhos (apresentada em Novas palestras introdutórias sobre psicanálise,
de 1933);
• o complexo de Édipo (apresentado em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de
1905).

59
Para Fulgêncio (2005), são estes os fundamentos que para Freud caracterizam
a Psicanálise. Uma tentativa de delimitar, descrever, explicar e dimensionar dois con-
juntos de fatos incomuns e de difícil tarefa observacional: transferência e resistência.
Algo que emerge, como descrevem a experiência e as práticas clinicas de Freud, a todo
o instante que se entra no “encalço” dos sintomas de um neurótico em busca de suas
origens, normalmente em sua vida passada.

Segundo o autor, um profissional que utilize tais premissas, ao fazê-lo, coloca-


-se na condição de um psicanalista. E se, ao empreender um movimento como este,
operar reconhecendo tais fatos, de modo a torná-los o “ponto de partida” de sua prática
cotidiana, muito provavelmente o fará de modo a apropriar-se de tais conceitos. Isso
significa que, em termos práticos, conceitos como os supracitados, na visão freudia-
na, expressam-se em termos “descritivos”, pois, correspondem a um campo empíri-
co, do arcabouço teórico da psicanálise de Freud, ou seja, de sua psicologia baseada
em fatos clínicos. Mas esta é apenas uma porção do “caldo”, existe outra relação de
conceituações que não concretamente mostra-se em termos de dados e fatos na
experiência humana.

E é nesse ponto que Fulgêncio (2005) salienta a concepção de Freud sobre tais
conceitos, como sendo metapsicológicos, uma vez que eles ocorrem sob a forma de
sentenças metapsicológicas. Para Freud, o sonho opera sob a premissa da realiza-
ção de um dado desejo. Mas esta premissa diz respeito apenas à uma “porção psico-
lógica” da solução, não a biológica.

Uma solução metapsicológica para o problema do sonho deveria permitir um


modo de realização de algo insatisfeito. Uma força que impulsiona o sujeito na bus-
ca de realizar esta atenção: a causa ou essência dos desejos. Isto é, o processo psíquico
que se estrutura a fim de realizar um dado desejo por meio da vivência de um sonho.

ATENÇÃO
É interessante notar que a explicação metapsicológica aponta duas
direções possíveis. Uma voltada para a construção de soluções por
referência aos processos corporais, obtidas e formuladas em termos
biológicos, uma vez que o sonho é vivenciado em termos corpóreos.
E outra via apresentada na tentativa de organizar o que poderia
“significar” os motivos que mobilizam o sujeito: uma certa causa da
existência daquele desejo e sua elaboração por meio do sonho.
Desse modo, seria o processo propriamente psíquico envolvido na
realização do desejo por meio do sonho.

Conforme destaca Fulgêncio (2005), não se trata de excluir um em função de


outro. Estes dois tipos de metapsicologia não são e nem devem ser aplicados como se
os fatos clínicos fossem identificados de modo independente de teorias.

60
Devemos lembrar que toda prática científica, se explícita, tem uma relação de
dependência com uma dada teoria, afinal, ela funcionará como bússola para orientar as
formas de selecionar os fenômenos a serem estudados.

E é isso que Freud propõe ao ter que, diante uma multiplicidade de fenômenos
a serem considerados, escolher quais os elementos seriam pertinentes de observação.
E por conta disso, seriam capazes de possibilitar o estabelecimento de certos tipos de
relação a serem empreendidos: um movimento de vinculação entre fenômenos e seu
devido ordenamento.

De acordo com Freud, a fundação da Psicanálise é algo que se estabelece em


função de práticas de observação sobre os fatos da vida mental, uma vez que seus
preceitos e procedimentos buscam elucidar conjuntos de fatos, de modo gradual e ro-
tineiro, intenso e extenuante. Como todo o método, há a necessidade de primeiro, se-
lecionar e delimitar o que é relevante e orbita no campo dos fenômenos a serem
estudados. Em segundo lugar, é preciso compreender, em termos de aplicabilidade,
quais conjuntos de conceitos auxiliares serão úteis na solução para os problemas
identificados, ou seja, é necessário estruturar uma perspectiva para organizar os fatos.

Enquanto homem da ciência, o médico vienense pautou-se na utilização de um


método que corroborasse a prática de pesquisa, e fez isso a partir de construtos es-
peculativos a serem empregados para auxiliar associações hipotéticas, ao mesmo
tempo favorecendo a apreensão e sistematização de dados empíricos.

NOTA
Tomemos a compreensão freudiana do conceito de funções
mentais. Para Freud, tratava-se de algo a ser mensurado não de
forma direta, mas com seus efeitos: aumento, diminuição e des-
locamento, como uma descarga energética pelo corpo. Mesmo
sendo precisamente especulativo, este é um exemplo de conceito
auxiliar, haja vista que sua aplicação contribuiu apoiando os mo-
dos explicativos e de organização dos fatos e dados empíricos em
foco e, por conseguinte, não necessariamente corresponde a um
elemento crivelmente implicado no fenômeno em estudo.

Segundo Fulgêncio (2005), esta é uma especificidade da obra freudiana, em


especial quando pensados as conceituações metapsicológicas. Para o psicanalis-
ta brasileiro, diversos conceitos psicanalíticos têm no âmago de suas formulações um
hibridismo que opera tanto em termos descritivos (psicológicos) quanto especulati-
vos (metapsicológicos).

61
Distinguir um do outro, pelo menos no campo psicanalítico, parece ser algo
pouco usual e produtivo, pois é difícil separa o “joio do trigo” quando um e outro se
embrenham na constituição um do outro. Afinal, mesmo que os fatos clínicos sejam
agregados no manejo de formulações teóricas, não há como afirmar, indiscutivel-
mente, o que oriunda da experiência em contraponto do que procede do significado
(percepção) daquilo que foi experienciando, pelo menos não em psicanálise.

2.2 A METAPISCOLOGIA FREUDIANA E SUA CONDIÇÃO


DINÂMICA DE ANÁLISE
Será que a mera descrição de fatos se apresenta como prática suficientemente
capaz de explicar a ocorrência de fenômenos psíquicos?

Para Freud, a descrição dos fatos em si não dava condições suficientes de ex-
plicar de modo satisfatório como os fenômenos psíquicos operavam, e mesmo no
nível consciente, parece algo interpretativo para se empreender. A forma encontrada
por Freud para fornecer um caráter descritivo ao inconsciente foi estabelecer e for-
mular a concepção de elementos que nele habitavam e poderiam ser observados em
carácter indireto, por exemplo, as “forças” e “energias” de “natureza psíquica”.

Nesse sentido, ele apresenta algumas formulações auxiliares para expressar,


buscando facilitar o manuseio do material a ser analisado, por meio da descrição hipo-
tética de “mecanismos” e “aparelhos psíquicos”, os quais operam e auxiliam para por-
menorizar as leis às quais os fenômenos psicológicos se subjugam, enquanto relações
de interdependência. São ficções como essas, utilizadas por Freud, que o possibilita-
ram manusear o material empírico em caráter explicativo. Seja preenchendo lacunas
com compreensões e entendimentos sobre os fenômenos psíquicos, seja identificando
possíveis sequências e perspectivas para elucidar os nexos causais.

Ainda resta entendermos como e com quais tipos de modelos conceituais es-
peculativos são estruturadas e “maquinadas” as “teorias empíricas” de Freud. O modelo
metapsicológico freudiano pressupunha a utilização dos mesmos preceitos meto-
dológicos das chamadas ciências naturais da sua época: hipóteses estabelecidas por
aproximação.

Seu valor é impreciso, uma vez que um modelo busca ilustrar o funcionamento
e dinâmica de um dado fenômeno. Imagine um furacão, especificamente seu “olho”,
como é possível descrever e explicar as forças e energia ali implicadas? É preciso fazer
simulações, correlações, comparações e estimativas indiretas, mesmo em caráter em-
pírico. Mesmo se utilizados certos instrumentos computacionais, estes operam sobre a
forma de simulações e “modelagens da realidade”.

62
FIGURA 3 – OLHO DO FURACÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3DC1YxQ>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Desse modo, como Freud acabou “modelando a realidade” inconsciente dos


fenômenos psíquicos a que se prestou a entender? Fulgêncio (2005) argumenta que,
similar a essas ciências, inicialmente, Freud usou conceitos e princípios básicos a se-
rem aplicados, como instinto e energia nervosa, os quais, foram empregados por um
considerável lapso temporal em suas teorizações.

Ainda sob um modo especulativo de proceder, Freud aplicou os conceitos bá-


sicos. Consideremos a histeria como um exemplo destes procedimentos especulativo:
enquanto fenômeno médico, a histeria já havia sido explorada por célebres e proemi-
nentes médicos. Vejamos o Quadro 2:

QUADRO 2 – INFLUENCIADORES DE FREUD

FONTE: Adaptado de Fulgêncio (2005)

63
Como é possível apreender estas explanações se elas têm um caráter notada-
mente especulativo? Foi com base em conjuntos de dados e hipóteses desta ordem
que Freud foi a um modo procedimental muito próprio da Psicanálise, o processo de
verificação.

Partindo do princípio de que há um “ponto de origem” para o estabelecimento


de uma dada desordem (uma situação traumática, por exemplo), Freud introduz a ideia
de que uma entidade patológica produz “ideias inconscientes” no interior do “psíquico”.
Um movimento que mobiliza a ativação e a atuação de determinadas ideias no sujeito e,
por desdobramento, produz seus sintomas.

No entanto, essa explicação ainda explora apenas uma faceta da metapsicolo-


gia freudiana, pois dá apenas o caráter fisiológico, por assim dizer. Isto é, havia uma
condição (pelo menos assim se pensava) hereditária ou mesmo inflamatória, que
incapacitava os acometidos a tolerar e assimilar eventos, ocorrências e situações que
afligiam uma carga emocional intensa.

Essa explicação, contudo, não contemplava a parte psíquica do fenômeno, en-


tendido como “histeria”. Mesmo com as “manobras hipnóticas” operadas por celebres
médicos franceses, Freud não encontrou elementos que evidenciassem a ocorrência
dos fatos psíquicos em relação ao acometimento histérico, tampouco sua origem e
extensão de seu poder paralisante. Sendo assim, a mera descrição dos fatos realmente
não deu conta, o que demandou emprego de outros expedientes capazes de preencher
lacunas como estas.

2.3 FREUD E SUA PERSPECTIVA NADA “MECÂNICA”


Enquanto médico, a formação de Freud seguiu uma linha não tão ortodoxa à
época, pois, sua perspectiva interpretativa não seguia parâmetros mecânicos e lineares.
Ao contrário, o ponto de vista por ele adotado guiava-se em prol de encontrar explicações
sobre os fenômenos e suas causas, mas em caráter dinâmico, ou seja, as forças que
compõe e mobilizam, movimentam e implicam os fenômenos psíquicos pressupõem
um modelo interativo, mas também conflitivo.

ATENÇÃO
Alguns autores e comentadores da obra freudiana, como Fulgêncio (2005),
o psicanalista argentino Juan-David Nazio, o psicanalista brasileiro Marco
Antônio Coutinho Jorge, ou mesmo a historiadora francesa Élisabeth
Roudinesco, apontam que fica evidente, com a expressiva presença na
obra de Freud, conceitualizações em termos de “forças psíquicas”.

64
Sendo assim, as explicações também precisavam ser abordadas, produzidas e
buscadas a partir dessa premissa. Com isso, os fatos quando observados precisavam
ser organizados (estruturados e formatados) e relacionados (entre si), em função de
supostas forças e movimentos em caráter conflitivo. Cabe destacar que uma formula-
ção metodológica dessa natureza tem como pressuposto explicitar um significado.
O que, em termos práticos, designa a adoção de um ponto de vista “dinâmico” sobre os
modos de práticas e investigação científica.

Para Freud, a adoção de um modo dinâmico de explicações para questões


patológicas, por exemplo, está diretamente ligada à capacidade de descrevê-las en-
quanto uma interação de forças, pois, nessa mesma condição, poderia ser operada
em termos de intenções e propósitos. Seja em situações de laboratório, seja na sim-
plicidade da vida cotidiana.

Mais do que um modo de entender os fatos psíquicos, trata-se de um com-


promisso metodológico, porque mais do que descrever e classificar tais fenômenos,
existe a busca pela compreensão destes enquanto sinalizações e indicadores que
elucidam o funcionamento de uma certa interação de forças, no âmbito mental. Isto é,
algo que evidencia uma manifestação de intenções e de propósitos, e que atuam em
confronto ou não, entre si.

IMPORTANTE
Nesse contexto está o elemento central no arcabouço metodológico
psicanalítico proposto por Freud: o ponto de vista. A maneira ou a
perspectiva sob a qual o olhar de quem observa, analisa, significa e
compreende, assume.

De acordo com Fulgêncio (2005), esse posicionamento implica alguns eixos


a serem considerados na teoria metapsicológica de Freud. As forças psíquicas, pelo
menos as identificadas por Freud, dotadas, então, de carácter dinâmico, são tidas como
análogas às forças físicas que operam na natureza, assim como as ciências naturais
identificaram e dissecaram. Esta “chave de leitura” funciona como um alicerce que sus-
tenta e organiza, estrutura e dá sentido, inter-relacionando os fatos psíquicos.

Enquanto fundamento, nas ciências psicanalíticas, essa operação (a observação)


atribui valor à capacidade de significar a própria experiência do sujeito. Ao menos au-
xilia de forma guiada a atuação do observador. Mesmo nas ciências mais rígidas, existem
elucubrações sobre o que pode ou não haver, ocorrer e como funcionam os fenômenos a
serem estudados. Assim, as chamadas forças de natureza psíquica, ou aquilo que Freud
denominou de pulsões, correspondem a um “conceito auxiliar”, isto é, uma convenção, que
ao ser aplicada a porção empírica, busca descrever (ordenando e integrando) certos fatos,
em uma cadeia sistemática.

65
NOTA
Ao descrever a pulsão, o recurso utilizado por Freud é de ordem
metapsicológica. Afinal, ele busca explicar em termos empíricos
um elemento abstrato, em caráter auxiliar. E assim, enquanto
força (digna de materialidade), a pulsão, tal como na natureza, atua
sobre a porção corpórea humana.

Como aponta Fulgêncio (2005), mesmo nas ciências naturais, as explicações


de forças ainda se situam sob uma lógica até certo ponto etérea. Podemos retomar,
inclusive, o exemplo do “olho do furacão”, pois, o modo de explicar seu carácter danoso
faz alusão às paredes do olho, em que se concentram os ventos mais violentos. Desse
modo, é uma construção especulativa que serve apenas para a investigação dos
fatos. Trata-se de um movimento que busca tornar o fenômeno, a descrição de sua
ocorrência e dinâmica mais empírica, inteligível.

3 AS VERTENTES DA PSICOLOGIA E A METAPSICOLOGIA


Para abordarmos as especulações metapsicológicas de Freud, precisamos
considerar não apenas um ou outro conceito por ele erigido, mas sim abarcar toda uma
estrutura conceitual que envolve e busca explicar a dinâmica da psique. Desse modo,
no “memorial descritivo” da metapsicológica de Freud estão conceitos como pulsão
(um primeiro fundamento da metapsicologia), ou, ainda, a noção de aparelho psíquico,
no qual circula uma energia de natureza sexual, denominada libido, também parte das
hipóteses metapsicológicas.

São esses conceitos, como aponta o próprio Freud, que subsidiam e dão a
porção estrutural de sua metapsicologia. Sob três eixos estruturantes, veremos os
aspectos que constituem, operacionalizam e mobilizam o psiquismo humano na visão
de Freud:

• aspectos dinâmicos;
• aspectos topográficos;
• aspectos econômicos.

Assim como aponta Fulgêncio (2005), tais estratagemas funcionam como


modelos, ou conceitos auxiliares, a fim de apoiar as explicações freudianas sobre os
processos psíquicos.

Se a princípio, numa perspectiva dinâmica que supõe a existência de uma pulsão


básica (ou seja, de forças psíquicas) que atuam de modo antagônico (conflituoso),
para Freud, elas ocorrem em função e como promotoras de motivações primárias,
isto é, uma certa gênese do funcionamento primário psíquico.

66
Então, há concomitantemente uma outra porção desse aparelho psíquico,
o que ele chama de econômico. Um elemento quantitativo (uma suposição lógica,
lembrando que estamos tratando de conceituações auxiliares que nos apoiem no
entendimento de um mecanismo), para a energia psíquica, ao que será investido e
empenhado em uma causa, provocação, um motivo desencadeado: objeto de desejo,
medo, saturação etc. Contudo, existe ainda uma terceira via ser considerada: o aspecto
topográfico. É daqui que se empreende a noção de aparelho psíquico, algo possível
de ser visualizado, e como tal, passível de configuração e reconfiguração, a pender da
perspectiva utilizada em sua análise.

Trata-se, então, de algo semelhante a um telescópio, microscópio, ou qualquer


outro aparato óptico que altera o modo e o grau com que se analisa e observa, identi-
fica e descreve o fenômeno em foco. E que, por conseguinte, permite diferenciar as
partes operadas e operadoras na instância psíquica, compondo-as como partes
de uma estrutura.

FIGURA 4 – INSTÂNCIAS PSÍQUICAS METAPSICOLÓGICAS

FONTE: <https://shutr.bz/3pcrA0p>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Outro ponto concernente à metapsicologia freudiana, em especial esta primeira


tratativa do aparelho psíquico, diz respeito ao carácter provisório, uma vez que, como
explica Fulgêncio (2005), tem um carácter conotativo, especulativo, mas dinâmico.

Freud ampliou esse ponto de vista com o tópico e o econômico, aos


quais correspondem respectivamente outros conceitos e modelos
especulativos, cujo fim é sempre o mesmo: completar as teorias
empíricas, possibilitando um melhor agrupamento e ordenamento
dos fatos clínicos, fornecendo tanto um guia tanto para a obtenção
de fatos quanto para a obtenção de novos dados (FULGÊNCIO, 2005,
p. 108).

67
Evidentemente Freud não inventou o modo especulativo para conceber suas
teorizações. De modo que isso já havia sido empreendido em larga escala com filósofos
e pensadores, sejam eles contemporâneos ou não de sua metapsicologia. Mesmo com
aqueles oriundos das “ciências naturais”, isso já havia sido aplicado de modo exitoso.

IMPORTANTE
Muitos dos “mestres” ou mesmo de pensadores, alvos da admiração
de Freud, empreenderam ações investigativas sob a premissa especu-
lativa e ficcional de elementos, aspectos e conjecturas, a fim de abarcar
questões concernentes e necessárias às próprias teorizações. Como
destaque, cabe aqui listar alguns: o filósofo, matemático e físico alemão
Gustav Theodor Fechner; o fisiologista alemão Herman von Helmholtz;
o médico alemão Ernst Wilhelm von Brücke; o filósofo e psicólogo ale-
mão Franz Clemens Honoratus Hermann Brentano; o filósofo prussiano
Immanuel Kant; o físico austríaco Ernst Mach. A lista é longa, mas já dá
podemos ter uma noção da complexidade e da amplitude com que tal
prática investigativa especulativa foi empregada.

3.1 LIMITES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA METAPSICOLOGIA


FREUDIANA
Até agora, vimos que a teoria metapsicológica de Freud foi por ele estruturada
a partir de dois conjuntos de pressupostos teóricos: um de ordem empírica e outro de
ordem especulativa. De naturezas diferentes, atuam complementarmente, fomen-
tando e propondo um modo muito particular de conceber o fenômeno colocada em
tela: os processos psíquicos. Especificamente quando pensamos em como Freud utiliza
conceituações auxiliares, em modo ficcional, com o intuito de ilustrar e apoiar seus
“achados clínicos”. Pois, como vimos, trata-se de “um método coerente de investigação
nas ciências empíricas, que, por sua vez, é reconhecível na obra científica e filosófica de
Freud” (FULGÊNCIO, 2005, p. 112).

Para o psicanalista Fulgêncio (2005), foram justamente as experimentações


fisio-filosóficas que produziram este modo de interpretar freudiano. Algo que sinaliza
e o circunscreve, enquanto procedimento metodológico da época. Principalmente no
que tange às “ciências empíricas” de sua época (fim do século XIX e início do século XX).
No entanto, a metapsicologia freudiana se enquadraria mais como uma superestrutu-
ra especulativa, no tocante às formulações ficcionais sob as quais ela buscou narrar
os processos a serem compreendidos.

68
Nesse sentido, precisamos considerar que a metapsicologia freudiana fornece
valoração aos fenômenos psíquicos, mas sem, necessariamente, diminuir-se quan-
to a seus conceitos: as forças, as energias ou as instâncias de um aparelho. Mesmo a
prática clínica apresenta um componente empírico a suas definições, nem tanto por
instrumentalizar paciente e terapeuta para atuar experiecialmente, porém, mais com o
intuito de:

[...] auxiliar na organização dos fatos, possibilitando estruturá-


los e relacioná-los; é uma construção para conectar descrições
e um guia de orientação para buscar (observar) novos dados. As
especulações metapsicológicas não são nem fornecem explicações,
mas estabelecem uma estrutura e uma direção para a busca de
explicações factuais (empíricas) relativas aos fenômenos psíquicos
(FULGÊNCIO, 2005, p. 113).

69
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• O médico vienense Sigmund Freud propôs inicialmente um modelo explicativo dos


processos psíquicos, com base na díade: empirismo e especulação.

• Para Freud, na ciência existem teorias de diferentes tipos: algumas que versam as-
pectos empíricos e outras em que se estabelecem posicionamentos mais especula-
tivos.

• Freud estruturou sua teoria metapsicológica sob três eixos, ou seja, três aspectos
que constituem, operacionalizam e mobilizam o psiquismo humano: dinâmicos; to-
pográficos; econômicos.

• Freud utilizou conceituações teóricas auxiliares, ou seja, elementos ficcionais de apoio,


a fim de descrever suas questões e explicações acerca dos processos psíquicos.

70
AUTOATIVIDADE
1 Para estabelecer os parâmetros científicos em seu projeto metapsicológico, Freud
fez uso de certos “expedientes” alternativos. Nesse sentido, é possível afirmar que:

a) ( ) Ao elencar os fundamentos da Psicanálise, Freud, necessariamente, utilizou


conceitos especulativos.
b) ( ) Se havia articulação da inserção da psicanálise com “prática” considerada “cien-
tífica”, isto implicava, de forma agregada, a necessidade de enfrentar fundamen-
tos enquanto “experiência”.
c) ( ) Para Freud, ao elencar os fundamentos da Psicanálise, era preciso em carácter
secundário, usar apenas elementos especulativos, não necessariamente empíricos.
d) ( ) Os conceitos desenvolvidos por Freud pautam-se em questões e ideias gene-
ralizantes e incognoscíveis, pois, sua visão de mundo se dava apenas por uma
“experiência clínica”.

2 Para Freud, a psicanálise se posicionava enquanto um movimento que operava


um conjunto de conceitos e princípios. Com isso, analise as sentenças sobre tais
conceitos e princípios:

I- São excludentes.
II- São práticos e experienciais.
III- Devem ser compartilhados, traduzidos, implicados e apropriados.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A obra freudiana é muito vasta, complexa, profunda e controversa. O que amplia


tais características, segundo Tavares (2012), é a quantidade de traduções em
diferentes línguas. O que muitas vezes produz diferenciações de entendimento
sobre um mesmo termo. Um exemplo que causa confusão é o conceito denominado
Trieb. Originalmente, Freud o concebeu como (instinto), mas diferentes traduções
o posicionaram como sendo pulsão. Situações como estas ilustram o modo como
a Psicanálise se caracteriza. Desse modo, sobre as características da Psicanálise,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

FONTE: TAVARES, P. H. M. N. O vocabulário metapsicológico de Sigmund Freud: da língua alemã às suas


traduções. Literatura/ Cultura – Pandaemonium ger., São Paulo, v. 15, n. 20, 2012. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pg/a/pKTCLwfcJL84PTknR95bpRP/?lang=pt. Acesso em: 14 jul. 2021

71
( ) Uma tentativa de delimitar e descrever, explicar e dimensionar dois conjuntos de
fatos incomuns e de difícil lide observacional: transferência e resistência.
( ) Algo que emerge, como descrevem as experiências e práticas clínicas de Freud, a
todo o instante que se entra no “encalço” dos sintomas de um neurótico em busca
de suas origens.
( ) Uma psicologia baseada apenas em fatos clínicos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – V – F.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Freud estruturou sua teoria metapsicológica sob três eixos, ou seja, três aspectos
que constituem, operacionalizam e mobilizam o psiquismo humano: dinâmicos; to-
pográficos; econômicos. O que caracteriza a condição metapsicológica da teoria
freudiana?

5 Para Freud, a descrição dos fatos em si não dava condições suficientes de explicar
de modo satisfatório como os fenômenos psíquicos operavam, e mesmo no nível
consciente, parece algo interpretativo para se empreender. Como Freud estabeleceu
as bases da realidade inconsciente dos fenômenos psíquicos a que se buscou
entender?

72
UNIDADE 2 TÓPICO 2 —
A METAPSICOLOGIA DA
PSICANÁLISE FREUDIANA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 2, buscaremos definir um quadro genealógico da metap-
sicologia de Freud. Para se estabelecer, enquanto projeto científico, Freud precisou pro-
por algumas bases para sua Psicanálise. Nessa perspectiva serão apresentados alguns
conceitos específicos que direcionam os entendimentos da Psicanálise suas reflexões
acerca do funcionamento psíquico.

Nesse sentido, para elaborar uma teoria do funcionamento psíquico, Freud


esboçou algumas experimentações conceituais, seja pela via da abordagem quanti-
tativa (algo como um dimensionamento da força psíquica), seja pela via do signifi-
cado das ações, com interpretações de pensamentos, sentimentos e até mesmo de
comportamentos.

Cabe lembrar que Freud foi “forjado”, intelectualmente, sob um clima cientificis-
ta e positivista, muito característico do século XIX, no qual a visão predominante enten-
dia a ciência como uma “produção suprema do homem e a única que pode conduzi-lo
ao conhecimento” (GARCIA-ROZA, 2009, p. 44).

Considerando que a dinâmica utilizada por Freud buscou integrar diferentes ar-
ticulações, em especial os aspectos empíricos (em geral clínicos) e especulativos, ob-
servaremos que isso se reverteu na perspectiva de que Freud, assim como muitos de
seus contemporâneos, partiu da premissa de que “os processos psíquicos são passíveis
de serem expressos por leis científicas” (GARCIA-ROZA, 2009, p. 45).

Desse modo, trata-se de uma abordagem conceitual que compreende a neces-


sidade de quantificar o funcionamento do sistema nervoso, em termos de soma de ex-
citações, canalização da excitação e função de inibição, porém, na mesma medida em
que se tem a relação “prazer-desprazer” e outros princípios reguladores do psiquismo.
Esses são elementos centrais na teoria metapsicológica de Freud.

73
2 A METAPSICOLOGIA DE FREUD E SUAS IMPLICAÇÕES
NA PSICANÁLISE
Inicialmente, estudaremos a respeito do aparelho psíquico, de modo que Freud
concebia o psiquismo humano como um aparelho no qual flui uma determinada energia
que vai sendo transmitida e transformada. Para ele, o funcionamento desse “aparelho”
tinha no âmago de seu funcionamento duas premissas:

• existe uma dada “quantidade” (Q) que dimensiona a atividade do repouso das
partículas materiais;
• tais partículas materiais se identificam com os neurônios.

FIGURA 5 – PROPOSTA METAPSICOLÓGICA DE FREUD

FONTE: <https://shutr.bz/3DHSMrG>. Acesso em: 2 ago. 2021.

São essas duas premissas que atuam regulando o “aparelho psíquico”, por meio
de mecanismos como o Princípio de Inércia Neurônica, no qual os neurônios tendem
a descarregar completamente toda a quantidade (Q) de energia que a eles é propagada.
Além do Princípio das Barreiras de Contato, em que, no sentido oposto, atua ofere-
cendo ações de resistência à descarga total.

Esse modelo explicativo, mais do que fornecer uma condição ontológica, busca
apenas descrever, por alusão, uma “mecânica” de funcionamento. Como aponta Gar-
cia-Roza (2009), trata-se de um empréstimo da teoria termodinâmica da física. Isso
significa que o aparelho psíquico de Freud foi, enquanto tal, concebido a partir de uma
referência, especificamente do modelo “termodinâmico”, ou seja, mesmo os neurônios
não se referem a elementos analisados por ciências como a histologia e neurologia de
sua época. Devemos lembrar que Freud, a todo o instante utiliza elementos “fantásti-
cos”, auxiliares, como apoio para suas reflexões a respeito do aparelho psíquico.

Sem dúvidas, como destaca Garcia-Roza (2009), Freud utiliza muitas descober-
tas empreendidas pelos cientistas de sua época. Todavia, não lhes foi fiel em demasia
para estruturar suas explicações metapsicológicas

74
IMPORTANTE
Os neurônios aludidos por Freud são constituídos não como os
que foram descobertos pela histologia do século XIX. Ao contrário,
são tidos como base material do aparelho psíquico, sim, mas não
é “uma tentativa de explicação do funcionamento do aparelho
psíquico em bases anatômicas” (GARCIA-ROZA, 2009, p. 47).

O autor Nasio (1997) apresenta um exemplo de como o pensamento freudiano


concebe elementos para tentar descrever o funcionamento psíquico. Na Figura 6,
teremos o esquema neurológico do arco reflexo que liga dois extremos: excitação
externa e ação real. Além de descrever a trajetória da energia psíquica. Vejamos a
descrição mais detalhada apresentada pelo autor:

A da direita, extremidade motora, transforma a energia recebida


numa resposta imediata do corpo — em nosso exemplo, a perna
reage prontamente com um movimento reflexo de extensão. Entre
os dois extremos, instala-se, pois, uma tensão que aparece com
a excitação e desaparece com a descarga escoada pela resposta
motora. O princípio que rege esse trajeto em forma de arco é
muito claro, portanto: receber a energia, transformá-la em ação e,
consequentemente, reduzir a tensão do circuito (NASIO, 1997, p. 16).

FIGURA 6 – ARCO REFLEXO

FONTE: Nasio (1995, p. 16)

Ao aplicarmos esse mesmo esquema reflexo no funcionamento do psiquismo,


notaremos que ele é regido por um princípio, como destaca Freud, que almeja promover
a absorção e excitação, e, por conseguinte, reduzir a tensão.

Isso significa que a vida psíquica trabalha entre esses polos, numa certa tensão
que nunca se esgota, ou seja, a vida, de acordo com a metapsicologia freudiana, é uma
eterna tensão psíquica. Algo que mais à frente será denominado por Freud como o
Princípio de desprazer-prazer.

75
ATENÇÃO
O modelo freudiano especula que existem duas extremidades do
arco reflexo. Então, ao pensar no aparelho psíquico, trata-se de
seus polos, mas o aparelho está imerso, e assim é constituído pela
realidade externa. Na fronteira desse aparelho existe a separação
entre um interior psíquico e um exterior que o circunscreve.

2.1 A NOÇÃO DE QUANTIDADE (Q)


Conforme verificamos, a metapsicologia freudiana concebe a existência de
duas hipóteses fundamentais: uma em que há uma dada quantidade (Q) de neurônios
investidos em uma ação; outra em que que esses atuam de forma livre.

Para Freud, a excitação é sempre interna, uma vez que tudo, interno (fome
e sono, por exemplo) ou externo (como acidente, tropeço ou pancada) deixa uma
marca psíquica.

Como descreve Nasio (1997, p. 18) “a fonte da excitação endógena é uma mar-
ca, uma ideia, uma imagem, ou, para empregar o termo apropriado, um representante
ideativo carregado de energia”, então, há uma estimulação “ininterrupta” que tende a
manter o aparelho psíquico em estado de tensão constante, mobilizando o sujeito a
buscar permanentemente descarregar tal tensão.

Ao abordar a modelagem especulativa, Freud estabelece que o princípio do


desprazer-prazer direciona o indivíduo numa variação entre escoamento efetivo da
energia e eliminação da tensão (prazer), e abolição deste escoamento (desprazer).

Se considerarmos que no dia a dia somos quase invariavelmente condicionados


a viver em estado de excitação incessante, no qual não dispomos sempre (por inúmeras
razões) de mecanismos e “válvulas de escape” para toda a tensão, notaremos que te-
mos variações de prazer parcial e substitutivo, moderado e absoluto (impossível), assim
como teremos desprazer.

Vejamos uma representação dessa dinâmica:

76
FIGURA 7 – DINÂMICA DE “ESCOAMENTO ENERGÉTICO”

FONTE: Nasio (1995, p. 20)

Isso significa que no psiquismo humano, o estado de tensão é constante e por


desdobramento. Enquanto arco reflexo, o aparelho psíquico não atua sobre si direta-
mente. De modo que ele faz uso de intervenções mediadas: pensamentos, significa-
dos, sentimentos, comportamentos e emoções. Representações da ação que permitem
a descarga parcial, nunca completa, da energia.

Como descreve Nasio (1997), há uma dinâmica de representação a ser considera-


da. De um lado uma representante-excitação e de outro uma representante-ação. A
segunda se estende e se desdobra em uma rede de muitos outros representantes, tecendo
a trama no aparelho psíquico. Será justamente por essa via que a energia afluirá e circulará
num fluxo: esquerda → direita; excitação → descarga. O fluxo contempla o atravessamen-
to de uma embrenhada rede intermediária. Desse modo, a circulação nunca ocorre do
mesmo modo entre tais representações, embora existam similaridades, ocorre sempre de
modo variante, ou seja, a energia sempre encontra caminhos diferenciados e inventivos.

Como salienta Garcia-Roza (2009), Freud, ao analisar diversos casos de “histe-


ria” e “neurose obsessiva”, por exemplo, sugere a existência de uma certa relação entre
a intensidade de certos traumas e a intensidade de certos sintomas produzidos pelos
primeiros, ou seja, um modo de representação da excitação sob a qual se envereda a
energia tensionada.

A inventividade de Freud, não foi necessariamente estabelecer tal vínculo, mas


sim relacionar a questão das psicopatologias, pois, na questão da concepção Quan-
titativa (Q) está imbricada, pelo menos para Freud, a intensidade de carregamento dos

77
neurônicos, ou como mais tarde em psicanálise se intitularia como investimento. Esse
Q circula no sistema de neurônios, desenhado por Freud, na passagem de um para o ou-
tro, por meio de diferentes caminhos, regulados pelo princípio de inércia neurônica
e pelo princípio de constância.

2.2 PRINCÍPIO DA INÉRCIA NEURÔNICA E O PRINCÍPIO DA


CONSTÂNCIA
Segundo o princípio de inércia neurônica (PI), Freud concebeu que os neurô-
nios tendem a desfazer Q. Sendo justamente o princípio baseado no arco reflexo, ou
seja, a quantidade de excitação recebida pelo neurônio sensitivo tende a ser inteira-
mente descarregada na extremidade motora. Trata-se de uma tendência, uma vez que
existem elementos que regulam essa condição primordial: o princípio da inércia.

ATENÇÃO
Para essa função há uma outra de ordem secundária, que procura
não apenas liberar Q, mas, também, tende a conservar as vias de
descarga, de modo a possibilitar uma condição de manutenção de
afastamento de fontes de excitação. Algo como equilíbrio = função
(descarga) mais função (fuga do estímulo), ou seja: eq = f (d) +f (fe).

Essa modelagem proposta por Freud está baseada na ideia de que o funciona-
mento do aparelho psíquico ocorre buscando evitar o livre escoamento da energia
(GARCIA-ROZA, 2009), pois, há no sistema uma convergência de diferentes fontes de
estímulos, podendo ser contempladas em dois tipos: exteriores (ambientais) e interiores
(endógenas, oriundas do próprio organismo). Assim, para Freud, nessa convergência
são criadas as demandas, necessidades e mobilizações no sujeito: fome, frio, sono, se-
xualidade, entre outras.

Entretanto, se os estímulos originados do ambiente podem ser evitados, os en-


dógenos não. Em geral, apenas desaparecem enquanto estímulos quando há de algu-
ma forma sua dissipação, realização ou troca. Todavia, o princípio da inércia atua no
sistema justamente mobilizando o escoamento de toda a quantidade de energia produ-
zida (transmitida), o que provocaria um desequilíbrio devastador no sistema, porque o
sistema não disporia de energia para atuar em questões endógenas, por exemplo. Para
Freud, é necessário ajustar o sistema para manter alguma reserva suficiente para sa-
tisfazer outras exigências e demandas.

78
FIGURA 8 – PESOS E CONTRAPESOS NO SISTEMA INCONSCIENTE

FONTE: <https://shutr.bz/3p7Sre2>. Acesso em: 2 ago. 2021.

O contrapeso desenhado por Freud foi denominado lei da constância (L. C.).
Trata-se de uma tendência que contrapõe o princípio da inércia. Se no P.I. a tendência
é reduzir Q a zero, o sistema psíquico faz uso da L.C. a fim de regular, mantendo Q em
níveis reduzidos, a ponto de se proteger de qualquer oscilação, numa constante.

Como observa Garcia-Roza (2009), Freud, em sua metapsicologia, designou a


L.C. como uma lei secundária, não um princípio independente em si. Somente depois,
de modo mais consolidado, Freud apresentou elementos mais sólidos para descrever
um princípio de constância enquanto princípio independente. Mas o que é importante
nessa enunciação é o que Freud sinaliza e distingue como processos primários e
processos secundários. Algo que estudaremos mais adiante.

DICA
Para compreendermos mais obre o princípio da constância,
recomendamos a leitura da obra Além do Princípio do Prazer, de
Freud, publicada em 1920.

2.3 OS NEURÔNIOS Φ (phi), Ψ (psi) e ω (ômega)


Freud identificou, especulativamente falando, a existência de dois tipos de mo-
vimentos no aparelho psíquico, duas tendências básicas: uma de descarga total de
Q, e outra que tende a armazenar e investir uma certa quantidade de Q para demandas
endógenas. Assim, para ele, essas tendências operam por meio de pontos de controle,
ou como ele denominou, barreiras de contatos entre os neurônios, a fim de regular o
que e o quanto escoa ou é armazenado e investido.

79
Inerente a essa proposta, Freud entendeu que tal dinâmica produz uma classi-
ficação, uma tipologia de neurônios: aqueles que permitem a fruição de Q (os quais ele
denominou permeáveis) e aqueles que limitam essa passagem (denominados imper-
meáveis). Sendo que os primeiros, por procederem a passagem de Q, tendem a retornar
ao estado anterior, mas os impermeáveis não, pois, a cada passagem há uma quanti-
dade de Q diferente já armazenada, podendo ou não ter sido investida. E aqui reside a
ideia de memória neurônica, pois, acaba sendo estabelecido um histórico de excita-
ções e de investimentos (destinos). Essa relação estrutura dois sistemas neurônicos:

• um denominado neurônio Φ (phi), constituído de neurônios permeáveis, pois


não apresentam limitação para a passagem de Q. Para Freud, esse sistema reserva
neurônios específicos para o processo perceptivo;
• o segundo denominado neurônio Ψ (psi), constituído por neurônios impermeáveis,
aqueles que regulam e impedem a passagem livre de Q, e que de algum modo
estabelecem uma memória do processo.

É interessante notar que Freud elucidou esse mecanismo neurônico, especial-


mente no que se refere aos neurônios Ψ (psi) e sua condição de impermeabilidade.
Isto é, não há uma impermeabilidade total de Q, ela é parcial, em que parte é retida e
parte é liberada.

IMPORTANTE
Muitas vezes, tal represamento produz marcas psíquicas. De
modo que fruição, escoamento e descarga passam a seguir
um mesmo caminho. Regulada pela marca psi que direciona
e orienta a fim de ser investida. Essa é uma característica
marcante e inerente dos neurônios Ψ (psi).

Para Garcia-Roza (2009), a diferenciação entre neurônios Φ (phi) e neurônios


Ψ (psi) está mais relacionada à funcionalidade, exposição e aplicação do que à ordem
inata. Os neurônios Φ (phi) estão expostos diretamente a fontes externas (ambiente),
atuando com os processos perceptivos.

Enquanto os neurônios Ψ (psi) acabam sendo estimulados originalmente em


função de elementos endógenos. Isto significa que o fluxo de Q, e consequentemente
de carga impelida via neurônios Φ (phi) seja maior do que a via neurônios Ψ (psi).

Para Freud, este volume Q, via Φ (phi), impede qualquer criação de barreira de
contato. Ao passo que com o volume de Q, é consideravelmente menor nos neurônios
Ψ (psi), havendo maior probabilidade de se estabelecer barreiras mais perenes e, assim,
de memória.

80
Ambos os sistemas neurônicos, Φ (phi) e Ψ (psi), atuam primordialmente es-
coando grandes quantidades de Q, enquanto mecanismo de evitação de dor (despra-
zer), em função do acúmulo excessivo de Q, o qual, muitas vezes é formado em fun-
ção da contenção seletiva imposta pelos “neurônios Ψ (psi)”. O princípio do prazer,
descrito por Freud, momentos mais adiante em sua obra, segue esta dinâmica.

Se o prazer é identificado com a tensão decorrente do acúmulo de Q, o prazer


consiste na descarga desta Q excessiva. O prazer é a própria sensação de descarga, sendo
que qualquer manutenção de Q no sistema nervoso é apenas tolerada, o que significa
dizer que implica sempre uma terceira dose de desprazer (GARCIA-ROZA, 2009, p. 51).

Além das descrições até aqui empreendidas a respeito dos sistemas neurônicos
que ilustram uma porção quantitativa, para Freud, há ainda que se considerar a porção
qualitativa dessa sistemática. Desse modo, ele propõe uma terceira “via neurônica”, ou
seja, uma terceira tipologia que se especializa quanto à “qualidade” do aparelho psíquico.

Para tal sistema, Freud designou o nome neurônios ω (ômega). Trata-se de


um tipo especializado em significar sensações a partir da percepção. Segundo o
médico vienense, esses neurônios são totalmente permeáveis, uma vez que atuam
como veículos de consciência e implicam em uma condição de mutabilidade da carga
Q, articulando diferentes fatos combinados, simultaneamente percebidos de maneira
fácil e rápida.

IMPORTANTE
Aqui não se identifica a função memória, o estado é transitório,
assim como a percepção. O ponto central da proposição de Freud
é a condição de transitoriedade dos neurônios ω (ômega). Mais
do que a carga de Q em si, o que é denotado a esse sistema
neurônico é o tempo e o período com que recebem estimulação.
Há exposição a uma carga mínima, suficientemente necessária,
para a excitação.

No limite, os três sistemas atuam complementar e mutuamente, em um mo-


vimento tripartite: transferindo quantidades de Q; transferindo a qualidade (tempo e
periocidade) de Q entre si; exercendo uma forma de excitação recíproca (GARCIA-ROZA,
2009). Assim, os neurônios ω (ômega) recebem uma excitação indireta, provenien-
te das descargas reguladas nos neurônios Ψ (psi). Numa relação direta, aumenta-se
Q em Ψ (psi), ω (ômega) é investido, ou seja, os neurônios ω (ômega) atuam guiando a
descarga de Q represada nos neurônios Ψ (psi).

81
2.4 A EXPERIÊNCIA DA SATISFAÇÃO E A EXPERIÊNCIA DA DOR
Na linha das “descargas” e dos “escoamentos” possíveis e exequíveis pelo sis-
tema neurônico, seus resíduos atuam como experiências significantes: de satisfação e
de dor, na perspectiva metapsicológica de Freud. E serão essas “experiências” que pro-
duzirão e constituirão os chamados afetos e estados de desejos. Agora, tentaremos
traçar algumas considerações acerca da chamada experiência de satisfação.

Vejamos, se o aparelho psíquico trabalha buscando regular o fluxo de estí-


mulos por meio do escoamento de Q que ele recebe (sejam eles estímulos endógenos e/
ou exógenos), não fica difícil imaginar que é preciso alguma habilidade para operaciona-
lizar a realização dessa “descarga”. Logo, quanto mais desenvolvido o sujeito, melhores
chances de o fazer. Entretanto, pensemos em um recém-nascido, em especial da es-
pécie humana, o qual nasce totalmente despreparado para sobreviver no mundo, como
ele consegue dar “vazão” aos estímulos a ele e por ele mobilizados?

No caso, há a necessidade de um outro externo que o auxilie, seja a mãe, o pai


ou um cuidador para mediar este ”escoamento” e, por conseguinte, promover a supres-
são da tensão criada. A essa troca, substituição de um estado por outro, de tensão por
alívio, Freud denominou de experiência de satisfação.

É interessante notar que essa nova experiência se associa a um objeto: a mãe,


o pai ou o cuidador, ou, como destaca Garcia-Roza (2009, p. 54), associa-se à “ima-
gem do objeto que proporcionou a satisfação, assim como à imagem do movimento
que permitiu a descarga”, desse modo, ao repetir a demanda (fome, sono, dor, frio ou
medo), instala-se uma cadeia de ação, um arco reflexo que delineia e guia o “escoa-
mento” via o objeto que anteriormente funcionou como canal de supressão da ten-
são criada. Logo, o impulso psíquico constituído seguirá o investimento anteriormen-
te realizado, em função de seu sucesso prévio, isto é, uma imagem mnemônica que
se estabelece como referência, e assim, servirá de parâmetro para a reprodução da
satisfação original.

ATENÇÃO
A grande questão levantada por Freud é que a repetição dessa ex-
periência está mais ligada à imagem registrada sobre o objeto e da
vivência em si, do que do objeto e situações reais. Imagine, então,
que um recém-nascido ainda não é capaz de diferenciar uma coi-
sa da outra, para ele tudo é real. Esse circuito é desencadeado,
havendo a experiência concreta ou não. Mais do que a descarga,
o foco torna-se a posse do objeto para a repetição da experiência
de satisfação. O que, na maioria das vezes, acaba gerando frustra-
ção, uma vez que ele não encontra o objeto à disposição a todo
momento. Esse movimento produz, concomitante, a percepção da
realidade em função das ausências e presenças a ele disponíveis.

82
No caso da experiência da dor, a situação é análoga, pois uma das tendências
básicas do funcionamento psíquico é a orientação para evitar desprazer, ou seja,
escoar o aumento excessivo nos níveis de Q. O sistema é ativado na medida em que é
identificado: ativa-se uma dinâmica de descarga acompanhada da associação a uma
imagem do objeto que produz a dor.

De uma maneira invertida, o objeto da dor é aquele que produz o aumento dos
níveis de Q, enquanto o da satisfação o elimina. Dito de outra forma, à imagem do objeto
desprazeroso é reinvestida, e para ela surge um canal de escoamento (um objeto) que
regula a energia a ser descarregada.

Para Freud, essas duas experiências formam a base da constituição de estados


de desejos e dos afetos. Nos dois casos, há um aumento no nível de Q, ou seja, de
“tensão” nos “sistemas neurônicos”, em especial no dos neurônios Ψ (psi), o que pro-
duz quando pensamos no afeto, num escoamento rápido, e quando do desejo, por um
efeito somatório.

Então, desejos e afetos, para Freud, são a base de mecanismos futuros, que
ainda em sua teoria metapsicológica, ele identificou como recalcamento. Este em
especial será trabalhado no Tópico 3 desta unidade.

3 A METAPSICOLOGIA FREUDIANA E O
FUNCIONAMENTO PSÍQUICO
Para Nasio (1997), a metapsicologia freudiana concebe um elemento essencial
para a definição do funcionamento psíquico: os processos inconscientes. E nesse
sentido, segundo o psicanalista argentino, é preciso considerar quatro tempos básicos
que ilustram tal dinâmica:

FIGURA 9 – QUATRO TEMPOS NA DINÂMICA INCONSCIENTE

FONTE: Adaptada de Nasio (1997, p. 24).

Aqui cabem algumas definições que servirão de apoio para entendermos os


processos inconscientes:

83
• Prazer: a satisfação parcial ou substitutiva ligada às formações inconscientes não
necessariamente é sentida pelo sujeito como uma sensação agradável de prazer.
Antes, em muitos casos, anteveem uma sensação desprazerosa (uma tensão des-
confortável), a qual se converte em prazer justamente por ocasião de sua descarga,
ou ainda, como aponta Nasio (1997), um certo sofrimento suportado pelo sujeito em
função da possibilidade de prazer futuro. Isto é, para Freud, prazer está mais atrela-
do a um sentido econômico, “descarga de tensão”, ou melhor, encontrar prazer em
ações e movimentos de alívio da tensão. Assim, o sofrimento seria uma experiência
de prazer não sentido.

• Recalcamento: para Freud, o recalcamento não tem como foco, necessariamente,


evitar o desprazer (tensão acumulada) que prevalece no inconsciente. Ao contrá-
rio, trata-se de um movimento que busca atenuar ao máximo o risco de o aparelho
psíquico, em especial uma de suas instâncias (o Ego), de satisfazer por completo
(direta e integralmente) a exigência de satisfação (pulsão). Isto pois, como desta-
ca Nasio (1997), a experiência de satisfação plena efetivamente destruiria o equi-
líbrio do aparelho psíquico. Cabe salientar, então, as duas maneiras de proceder à
satisfação, sendo que no âmbito do aparelho psíquico uma é total, em que o Ego
busca (incessantemente) um prazer absoluto, mas evita, pois, ao entrar em ação, o
recalcamento atua protegendo o sistema de um excesso destrutivo. E uma outra em
carácter parcial, moderada e que ocorre de modo seguro, e que, ao mesmo tempo,
é tolerável pelo Ego.

Vejamos agora o que é, especificamente, aquilo que Freud denominou como


Inconsciente. Nasio (1997) nos auxilia nesta delimitação ao explorar, em especial, dois
dos quatro tempos anteriormente mencionados: o Tempo 1 (o inconsciente, enquanto
fonte de excitação) e o Tempo 4 (referente às formações exteriores do incons-
ciente). Em ambos é possível encontrar definições que auxiliam no entendimento dos
processos inconsciente.

3.1 POR UMA DEFINIÇÃO DE INCONSCIENTE


A fim de melhor explorar o que vem a ser esse inconsciente, vamos considerá-lo
a partir de uma perspectiva externa, como se o observássemos de fora para dentro,
ou seja, tentando descrever suas manifestações exteriores ao sujeito, seus produtos,
ainda que entendido com um processo obscuro e incognoscível, além de inacessível.
Para tanto, resta identificar seus produtos.

Nesta linha, Nasio (1997) aponta que diante da infinidade de expressões e com-
portamentos humanos, o desafio é escolher qual, ou melhor, quais formações provêm
do inconsciente.

84
Para ele, tais manifestações surgem em carácter intempestivo, “como atos
inesperados, que surgem abruptamente em nossa consciência e ultrapassam nossas
intenções e nosso saber consciente” (NASIO, 1997, p. 26).

Atos que oscilam desde condutas cotidianas e rotineiras (leia-se aqui atos
falhos, esquecimentos, sonhos, ou alguma ideia brilhante, um insight criativo de um po-
ema ou da solução de um problema) até manifestações patológicas (se alimentar mal,
comportamentos desconexos com a realidade, sintomas neuróticos-psicóticos etc.).
“Normais” ou “patológicos” são produtos inconscientes (abruptos e inesperados).

Em todo caso, são “enigmáticos” para a racionalidade consciente do sujeito.


Trata-se de produções psíquicas que possibilitam, em sua manifestação, observar a
existência de uma provocação obscura, mas intensamente ativa, que atua sobre o indi-
víduo, seus comportamentos, ações, escolhas e decisões (até não fazer nada torna-se
algo a ser considerado).

Podemos imaginar, por exemplo, a apatia de uma pessoa que vê outra em situ-
ação de vulnerabilidade, perigo ou necessidade e não faz nada (seja pela razão que for).
Há algo aí a ser considerado que foge da sua consciência. Um fenômeno que opera a
despeito da escolha consciente do sujeito e que, de um modo ou de outro, acaba por
determiná-lo enquanto sujeito. O psicanalista argentino ainda enfatiza que essa pers-
pectiva considera a ideia de que:

Na presença de um ato não intencional, postulamos a existência do


inconsciente, não apenas como causa desse ato, mas também como
a qualidade essencial, a essência mesma do psiquismo, o psiquismo
em si. O consciente, portanto, seria apenas um epifenômeno, um
efeito secundário do processo psíquico inconsciente (NASIO, 1997,
p. 26).

Assim, o funcionamento psíquico ganha outras nuances e delimitações, pois,


enquanto processo, refere-se a um movimento contínuo de energia em busca de
efetivação de um “prazer absoluto”.

Porém, sofre a ação de mecanismos de regulação com o intuito de proteger o


sistema de um colapso (recalcamento). E que dessa forma, reverte a energia restrita no
início de uma nova excitação, deixando a energia que transpõe a barreira se exteriorizar
sob a forma de prazer parcial enquanto formação inconsciente.

A Figura 10 ilustra esse movimento, explicitando alguns dos aspectos citados


acerca do inconsciente:

85
FIGURA 10 – RELAÇÃO DENTRO-FORA NO FLUXO ENERGÉTICO

FONTE: Nasio (1997, p. 25)

Entretanto, precisamos considerar mais algumas questões sobre o inconscien-


te. Nesse sentido, como lembra Nasio (1997), nessa perspectiva congregam pontos de
vista que se complementam e encorpam o entendimento sobre o Inconsciente enquan-
to instância e corpo do aparelho psíquico:

• ponto de vista sistêmico;


• ponto de vista dinâmico;
• ponto de vista econômico;
• ponto de vista ético.

Nessa miríade de perspectivas sobre o fenômeno dos processos inconsciente


que Freud estruturará sua metapsicologia acerca do Inconsciente. Sendo assim, vamos,
uma a uma, construir uma definição do que venha a ser o Inconsciente.

3.2 DO PONTO DE VISTA SISTEMÁTICO


O inconsciente como um sistema deve ser compreendido como uma estrutura,
uma rede de representações. Na qual a “fonte de excitação” é denominada por Freud
como sendo representação de coisa, de modo que produz “manifestações deturpa-
das” do inconsciente.

Podemos tomar como exemplo uma análise dos sonhos que temos, muitas ve-
zes, “sem pé nem cabeça”. Eles mostram bem esses tipos de manifestações. Entretanto,
enquanto estrutura, apontam para dois tipos de sistemas: um primeiro que contempla
processos conscientes, e um segundo, processos inconscientes.

86
O segundo grupo, de acordo Nasio (1997), objetiva o “escoamento” da tensão de
modo imediato, com o intuito de atingir o “prazer absoluto”, enquanto tal é caracterizado
por “representações pulsionais”, multiplicando-se em muitos outros. Freud denominou
isso como representações inconscientes ou representações de coisas. E como
tal, englobam todo o tipo de “imagens (acústicas, visuais ou tácteis) de coisas ou de
pedaços de coisa impressas no inconsciente” (NASIO, 1997, p. 19).

Freud destaca que tais representações têm em sua natureza uma condição im-
preterivelmente visual, pois fornecem a matéria-prima de sonhos e, principalmente, das
fantasias. A denominação representações refere-se à outra condição, a de investimen-
to, ou seja, estão carregadas de energia, oriunda de algum fragmento ou acontecimento
real, e que é revisto enquanto representação disso.

FIGURA 11 – REPRESENTAÇÃO INCONSCIENTE

FONTE: <https://shutr.bz/3BLQjMd>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Diferentemente de aspectos reais e materiais no âmbito mais consciente, tais


representações inconscientes operam para além dos limites da razão, da realidade ou
do tempo. É nesse sentido que Freud o caracteriza como atemporal. Uma vez que
seus parâmetros se pautam pela busca instantânea do “prazer absoluto”. E é aqui que
o sistema inconsciente tem sua principal característica e funcionamento: mecanismos
que regulam e fomentam uma circulação fluente da energia, ou seja, encontra pouca
dificuldade para fluir com toda a mobilidade na rede inconsciente (NASIO, 1997).

NOTA
O conceito de pulsão para Freud, como destaca Fulgêncio (2005, p.
106), pode ser definido como “uma força equivalente às forças físico-
químicas que atuam sobre a matéria”. Lembremos que, no bom estilo
freudiano de especular, “força”, mesmo nas ciências naturais, não é
conceito empírico. Trata-se, então, de uma construção especulativa
teórica, com a intenção de convencionar uma ideia abstrata sem
conteúdo empírico definido, embora necessário.

87
Agora, a respeito do primeiro grupo de processos, há um sistema que Freud
identificou como pré-consciente/consciente. Tal qual o primeiro, ele busca o prazer,
no entanto, ao contrário do primeiro, sua missão é redistribuir a energia (aquela
investida) de modo a descarregá-la gradualmente sob a égide dos ditames do princípio
de realidade. Por conseguinte, as representações daí oriundas são denominadas
representações pré-conscientes e representações conscientes.

Enquanto as primeiras (pré-conscientes) estruturam a partida da palavra


(imagem acústica, gráfica, gestual e escrita), no caso das conscientes, elas operam
representando uma coisa agregada a uma palavra que a designa. Há, nesse sentido,
uma associação entre diferentes imagens. Por exemplo, uma imagem acústica a uma
imagem mnemônica (visual) de uma determinada coisa. Imaginemos o sol, nós o
faremos de duas formas, pela palavra “sol” e pela visão (uma visão, seja ela qual for) do
sol. Esse movimento concederá um nome e ao mesmo tempo uma qualidade específica.

ATENÇÃO
Cabe destacar que ambos os sistemas buscam o escoamento
de energia (tensão): o prazer. O que os difere é que enquanto o
sistema “pré-consciente/consciente” opera por meio do alcance
de prazer moderado/parcial, o sistema inconsciente, por sua vez,
tem com premissa a obtenção de um prazer absoluto.

3.3 DO PONTO DE VISTA DINÂMICO


Abordar o inconsciente sob a perspectiva de sua condição dinâmica é tratar,
especificamente, de um movimento antagônico entre duas forças: de um lado aquelas
que são mobilizadas por fontes de excitação (e que ora são recalcadas), e por outro
lado as produções finais que escapam à ação do refreamento do recalque (produtos do
inconsciente). Se os primeiros se mantêm no nível inconsciente, os pró-inconscientes,
com aponta Nasio (1997), eclodem (de forma velada) na superfície da consciência.

88
FIGURA 12 – INSTÂNCIAS DA PSIQUE HUMANA NA METAPSICOLOGIA FREUDIANA

FONTE: <https://shutr.bz/3lIhC4G>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Para Nasio (1997), o que Freud estabeleceu como aparições conscientes da-
quilo que outrora fora recalcado, no nível inconsciente, mostram-se em muitos casos
como uma solução ao sofrimento, o qual precisa e acaba fruindo à consciência, a fim de
diminuir uma tensão criada. Ou seja, algo que produz uma mistura entre um elemento
inconsciente e uma máscara consciente, ou ainda, como destaca o autor:

Em outras palavras, o retorno do recalcado é um disfarce consciente


do recalcado, porém incapaz, apesar disso, de mascará-lo por com-
pleto. [Uma] ilustração dos traços visíveis do recalcado no retorno
do recalcado foi-nos proposta por Freud, quando ele comentou uma
célebre gravura de Félicien Rops. Nela, o artista figurou a situação
de um asceta que, para rechaçar a tentação da carne (o recalcado),
refugiou-se aos pés da Cruz (recalcamento) e viu surgir, estupefato, a
imagem de uma mulher nua, crucificada (retorno do recalcado como
solução de compromisso) no lugar de Cristo. O retorno do recalcado,
nesse caso, foi um compromisso entre a mulher nua (parte visível
do recalcado) e a cruz que a sustentava (recalcamento) (NASIO, 1
997, p. 28).

Como você já se deu conta, o conceito-chave para esta “perspectiva econô-


mica” é o de “recalcamento”: um jogo complexo de forças que se antagonizam e se
produzem, ao mesmo tempo. Pois tanto acaba por conter e fixar no mais profundo do
inconsciente aquelas representações que não podem vir à tona e ser satisfeitas, quanto
nortear aquelas que devem, e precisam, ser satisfeitas aos níveis pré-conscientes e
conscientes.

89
NOTA
Para Freud, o recalcamento se divide em dois tipos de intervenção:
uma que captura da carga pré-consciente/consciente uma dada
energia e a devolve ao nível inconsciente (esquecimentos, chistes
etc.), a qual denominou de recalcamento primário, e; um outro
tipo de intervenção no qual, o produto inconsciente é literalmente
reinventado como um novo “produto inconsciente”, com uma nova
carga inconsciente.

3.4 DO PONTO DE VISTA ECONÔMICO


Agora, sob a perspectiva econômica, Freud definiu o inconsciente do ponto
de vista de uma relação energética a ser investida em um dado objeto. Subdividindo
em dois polos: um, a fonte de excitação, o que ele denominou de representante das
pulsões, e outro, as produções finais do inconsciente, as quais ele identificou como
sendo as fantasias, comportamentos afetivos e escolhas (amorosas, desejos, vontades,
anseios, medos etc.) inexplicadas, tendo como parâmetro as fantasias.

Isto significa que, a partir de sua natureza tópica, ou seja, enquanto um dos
polos, as fantasias não surgem simplesmente ao nível consciente, mas enquanto
produções inconscientes, num mix entre o que tais “representações inconscientes da
coisa” suscitam e sua máscara consciente (por exemplo, uma vontade inexplicável de
comer manga com leite, ou mesmo um afeto questionável para com uma dada pessoa).
Contudo, na maioria dos casos, as fantasias acabam por atuar como uma espécie de
defesa do “aparelho psíquico” frente a alguma pressão exagerada inconsciente, em
função de uma dada “tensão produzida”, uma “válvula de segurança”.

Dito de outra forma, as fantasias podem se mascarar como um produto pré-


consciente daquilo que foi recalcado, o qual desvia ou direciona (investe) a energia
em um objeto desconectado com o conteúdo que o produziu, ou na outra ponta, atuar
de modo a retirar o investimento de algo nocivo ou crítico, agindo como uma “defesa
recalcante”. Esses dois polos são exatamente o que Nasio (1997) identificou como o
barramento do recalque (Tempo 1) e a intensidade e sua extensão (Tempo 2 e
Tempo 4, respectivamente).

3.5 DO PONTO DE VISTA ÉTICO


Agora, a partir de uma perspectiva ética, Freud definiu o inconsciente en-
quanto desejo. Como traduz Nasio (1997), trata-se de um movimento com objetivo
definido. Uma “intenção inconsciente” que anseia algo: a satisfação absoluta.

90
Desse modo, devemos compreender que as “produções finais do inconscien-
te” não atuam de maneira a atender plenamente esse movimento. Dito isso, o que são
operadas são realizações parciais do desejo. Elas podem ocorrer e satisfazer parcial-
mente o desejo, ou ainda, substituir o alvo ideal de satisfação, e que jamais será atingido
por algo possível e que não colapse o aparelho, ou mesmo o funcionamento psíquico.

FIGURA 13 – SISTEMA ÉTICO

FONTES: <https://shutr.bz/3vktnBA>; <https://shutr.bz/3DKxLwG>; <https://shutr.bz/3DPq1JR>.


Acesso em: 2 ago. 2021.

Para Nasio (1997), Freud qualificou enquanto ético, o inconsciente, justamente,


em função desse movimento:

FIGURA 14 – DINÂMICA ENERGÉTICA NO SISTEMA ÉTICO

FONTE: O autor

Esse movimento, para Freud, é característico do inconsciente, uma vez que se


refere à uma tendência de “fazer ouvir” e se “fazer reconhecer” por um outro. Sua con-
dição ética reside justamente no fato de que enquanto movimento, “descarrega” uma
dada energia, carregada de valoração, a um dado objeto. Seja ele originalmente o alvo
desse desejo, seja ele um substituto. Se antes, os atos mais simples e banais passa-
vam desapercebidos, quase anedóticos (um sorriso, uma face enrubescida, um esque-
cimento etc.), com essa noção ética do inconsciente, tudo passa a ser escrutinado pelo
desejo que mobiliza os comportamentos, os pensamentos e os sentimentos.

91
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Freud concebia o psiquismo humano como um “aparelho” no qual flui uma determi-
nada energia, sendo transmitida e transformada. Seu funcionamento seguia duas
premissas: a existência de uma dada “quantidade” (Q) de energia que dimensiona a
atividade do repouso das partículas materiais, e que tais partículas materiais seriam
definidas como neurônios.

• O aparelho psíquico opera sob dois princípios: o princípio da inércia neurônica e o


princípio da constância.

• Há três sistemas neurônicos: os neurônios Φ (phi) ou permeáveis, atuando espe-


cificamente junto ao processo perceptivo; os neurônios Ψ (psi) ou impermeáveis,
pois regulam e impedem a passagem livre de Q (atuando como uma memória do pro-
cesso); e os neurônios ω (ômega), de excitação indireta das descargas reguladas nos
neurônios Ψ (psi), uma vez que ω (ômega) atua guiando a descarga de Q represada
em Ψ (psi).

• A metapsicologia freudiana concebe os processos inconscientes como elementos


essenciais do funcionamento psíquico. Freud tentou definir a existência de um “in-
consciente” a partir de quatro operações (características) que o constituem, sob di-
ferentes pontos de vista: um sistemático (inconsciente, pré-consciente/consciente),
um dinâmico (em que se salienta um antagonismo de forças mobilizantes e recalcan-
tes), um econômico (calcado no “investimento” de energia) e um ético (que opera sob
o império do desejo).

92
AUTOATIVIDADE
1 Para Freud, há uma força no âmbito psíquico, equivalente às forças físico-químicas
que atuam na matéria, mobilizando a ação e a atuação do sujeito. Freud denominou
essa força como:

a) ( ) Representações do pré-consciente.
b) ( ) Pulsão.
c) ( ) Estados empíricos do sonho.
d) ( ) Experiência generalizante da clínica.

2 O psiquismo humano, para Freud, era concebido como um aparelho em que flui uma
determinada energia, de modo que ela é transmitida e transformada. Isso implica que
o funcionamento desse aparelho atendia algumas condições. Sobre tais condições,
analise as sentenças:

I- Existe uma dada quantidade (Q) que dimensiona a atividade do repouso das
partículas materiais.
II- As partículas materiais são como os neurônios.
III- A energia Q é algo doloroso e intenso.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 O inconsciente, enquanto sistema, deve ser compreendido como uma estrutura, ou


seja, uma “rede de representações”. Nela, a “fonte de excitação” é denominada por
Freud como “representação de coisa”, e produz, assim, “manifestações deturpadas”
do inconsciente. Sobre isso, analise as sentenças e classifique V para as verdadeiras
e F para as falsas:

( ) É objetivo dos “processos inconscientes” escoar a tensão de modo imediato.


( ) Os “processos conscientes” são caracterizados por “representações pulsionais”,
multiplicando-se em muitos outros.
( ) A expressão “representação das coisas” faz alusão aos processos inconscientes.

93
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) F – V – F.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – F – V.

4 Há um sistema identificado como “pré-consciente/consciente”, o qual abarca um


determinado tipo de processos psíquicos. Quais são estes processos como eles
operam?

5 Há um tipo de processo inconsciente responsável pelo represamento, uma espécie


de crivo acerca dos conteúdos e das energias a serem escoadas. Qual é o nome
desse processo e como ele opera?

94
UNIDADE 2 TÓPICO 3 —
CONTRIBUIÇÕES DA METAPSICOLOGIA
PSICANALÍTICA PARA A CLÍNICA
CONTEMPORÂNEA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3, abordaremos alguns elementos essenciais para o pro-
jeto metapsicológico de Freud, de modo que auxiliarão conceitos futuros desenvolvidos
na estruturação e proposição de uma “ciência psicanalítica”.

Desse modo, traremos conceitos como sexualidade, processos primários e


secundários, a emergência do ego e os sonhos.

Por último, compreenderemos algumas considerações, reiterações e críticas


sobre a teoria metapsicológica de Freud e sua reedição, em relação à apresentação de
uma segunda tópica realizada pelo próprio Freud.

2 O MÉTODO FREUDIANO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA


Discutir a sexualidade em Freud só é possível quando trazemos os elementos
e conceitos anteriormente discutidos nessa unidade. Para Nasio (1997), são elementos
como esses que possibilitam compreender como mais à frente Freud, em sua obra, for-
mulou as premissas fundadoras de sua psicanálise.

Retomando o nosso foco, todo o ato (sentimento, pensamento, comportamento


etc.), em especial quando se manifesta à surdina do recalque, não pode ser compre-
endido apenas como determinado somente por questões externas, por processos in-
conscientes. Eles são carregados de sentido, ou de algum sentido, pois, eles “carregam”
consigo uma mensagem, normalmente diferente do incialmente manifesto.

ATENÇÃO
A questão aqui é “qual é o sentido produzido?” ou “por que
fazemos o que fazemos enquanto ato?”. Dar sentido a um ato
involuntário está relacionado com a sua condição de substituto
de um conteúdo idealizado. Um ato que, em suma, opera
sob uma condição de impossibilidade de se efetivar, ou seja, foi
produzido, mas não pôde acontecer.

95
Como transportar isso para a conotação sexual a qual Freud enfatiza? Todo ato,
para Freud, é passível de interpretação, porque carrega consigo um significado, um
sentido que o direciona de modo substitutivo ou não. Como mostra Nasio (1997), por-
tanto, todo o ato (involuntário ou não) tem um sentido. O problema, então, é qualificá-lo
enquanto tal: qual teor que nele está atrelado este sentido?

A proposta psicanalítica para responder esse questionamento é o “pulo do gato”,


tanto como teoria quanto prática clínica ou mesmo social. Para Freud, a significação
dos atos humanos está atrelada a uma conotação ou mesmo denotação sexual. A
priori, esse posicionamento parece, no mínimo, um exagero. Afinal, tudo gira em torno
disso? Por que sexual? Nasio (1997) nos auxilia nesse sentido. Vejamos que, conforme
ilustrado na Figura 15, é possível identificar que a fonte da tendência pulsional é
de natureza sexual e, o destino dessa pulsão é de natureza impossível de se efetivar.
Portanto, há uma substituição. Logo, os sentidos atrelados aos atos associam-se à uma
conotação sexual, uma vez que atuam substituindo o alvo ideal pelo alvo possível
ao investimento e depósito do desejo.

FIGURA 15 – REPRESENTAÇÃO DA DINÂMICA PULSIONAL NO SISTEMA PSÍQUICO HUMANO


A PARTIR DA METAPSICOLOGIA FREUDIANA

FONTE: Nasio (1997, p. 36)

Dito de outra forma:

O sentido de nossos atos é um sentido sexual porque a fonte e o alvo


dessas tendências são sexuais. A fonte é um representante pulsio-
nal cujo conteúdo representativo corresponde a uma região do corpo
que é muito sensível e excitável, chamada zona erógena. Quanto ao
alvo, sempre ideal, ele é o prazer perfeito de uma ação perfeita, de
uma perfeita união entre dois sexos, cuja imagem mítica e universal
seria encarnada pelo incesto (NASIO, 1997, p. 37).

96
Nesse sentido, precisamos compreender o conceito psicanalítico de sexua-
lidade sob a perspectiva do investimento, pois nascem de uma representação vin-
culada à uma zona erógena corpórea, que a mascara a nível consciente, porém, sob
o efeito do barramento recalcante. Enquanto tendência, Freud denominou este movi-
mento de pulsão sexual.

Como ele mesmo define, há uma pluralidade imensa de possibilidades de “pul-


sões sexuais”, uma vez que elas orbitam o inconsciente esperando um canal para in-
vestir e produzir um dado “escoamento”. Essa “dinâmica incestuosa” ocorre justamente
porque as principais manifestações são um investimento no objeto maternal, os
quais se dão nos primeiros cincos anos de vida. A figura materna é, então, o principal
objeto de desejo a ser investido, mas ao longo da vida é retirado ou impossibilitado de
ser investido. Contudo, Freud, ao “dissecar” a “mecânica” das pulsões sexuais, identifica
quatro elementos constituintes:

• fonte (zona erógena);


• força mobilizadora;
• objetivo que atrai;
• objeto que veiculará a efetivação do investimento (objetivo ideal).

Enquanto objeto, pouco importa quem ou o que ele seja, pois, no limite, ele é
fantasiado pelo sujeito, não sendo, necessariamente, real. Os atos substitutivos, em
especial aqueles oriundos de pulsões sexuais, são forjados e exprimem um compo-
nente sexual, produzido em uma dada fantasia (ou várias). Sua operacionalidade é es-
truturada em torno do objeto fantasiado, não de sua condição real. Mais do que isso,
o que mobiliza é a possibilidade de investimento, ou seja, o prazer que ele, enquanto
fantasia-fantasiado, objetiva proporcionar.

Conforme mencionamos anteriormente, não se trata de algo pleno, mas sim


parcial. É uma substituição do idealizado, “prazer parcial, qualificado de sexual” (NASIO,
1997, p. 33). Assim, o conceito de sexualidade para Freud vai além do ato sexual, ele é
um ato “fantasiástico”. Sexualidade, nesse sentido, refere-se “à toda conduta que, par-
tindo de uma região erógena do corpo (boca, ânus, olhos, voz, pelo etc.) e apoiando-se
numa fantasia, proporciona um certo tipo de prazer” (NASIO, 1997, p. 34).

Então, podemos questionar, “que tipo de prazer? ”. A metapsicologia freudia-


na concebe o prazer da seguinte forma: um aspecto não está relacionado ao alívio de
uma necessidade fisiológica (por exemplo, a fome no bebê, a vontade aliviada de ir ao
banheiro etc.). O prazer, está relacionado à fantasia criada pelo bebê, por exemplo, de
sugar o peito da mãe, não do leite em si.

Logo, a satisfação associa-se a um ato ainda relacionado com uma condição


fisiológica, mas que transcende sua condição natural para ficar como uma fantasia,
o que Freud denominou de prazer funcional. Um outro aspecto é o prazer sexual
(não o prazer funcional), há a emergência de um objeto substituto para assumir o

97
papel de mediador da fantasia pelo sujeito (não é mais o objeto real que opera, mas sim
a fantasia do sujeito sobre ele criado. Um abraço, um carinho, uma provocação visual,
entre outros, assume o poder promotor de prazer, por exemplo.

2.1 TRÊS POLOS DO PRAZER: NECESSIDADE, DESEJO E


AMOR
Se temos o prazer funcional de um lado e o prazer sexual de outro, há no meio
do caminho algumas nuances que precisam ser delimitadas, a fim de evidenciar esse
caminho que oscila entre um aspecto e outro.

A necessidade é a exigência de um órgão cuja satisfação se dá, re-


almente, com um objeto concreto (o alimento, por exemplo), e não
com uma fantasia. O prazer de bem-estar proveniente daí nada tem
de sexual. O desejo, em contrapartida, é uma expressão da pulsão
sexual, ou melhor, é a própria pulsão sexual, quando lhe atribuímos
uma intencionalidade orientada para o absoluto do incesto e a vemos
contentar-se com um objeto fantasiado, encarnado pela pessoa de
um outro desejante. Diferentemente da necessidade, o desejo nasce
de uma zona erógena do corpo e se satisfaz parcialmente com uma
fantasia cujo objeto é um outro desejante. Assim, o apego ao outro
equivale ao apego a um objeto fantasiado, polarizado em torno de um
órgão erógeno particular. O amor, por último, é também um apego ao
outro, mas de maneira global e sem o suporte de uma zona erógena
definida (NASIO, 1997, p. 34-35).

Didaticamente, essa divisão apresentada por Nasio (1997) descreve três estados
que se misturam e se confundem na dinâmica amorosa. Nesse sentido, é justamente
sob essa dinâmica que as pulsões sexuais se embrenham buscando proporcionar uma
“satisfação possível”. Para Freud, em sua teoria metapsicológica, há uma condição
antagônica entre aquilo que é idealizado e o que é possível.

2.2 A EMERGÊNCIA DO “EGO”


Oriundo do sistema de neurônios Ψ (psi), surge uma estrutura com a mis-
são de intermediar a relação entre diferentes fluxos e processos sob os quais operam
a circulação da energia psíquica. Estritamente focado na diferenciação daquilo que é
fantasiado e daquilo que é real. Daquilo que é idealizado e daquilo que é possível. Mas
buscando impedir a experienciação de altos níveis de desprazer, quando diante de um
objeto alucinado (irreal, fantasiado), o sujeito não encontra escoamento, ou pelo me-
nos ele está vazio. Para isso, o aparelho psíquico cria o que Freud denominou de Ego.
Uma formação que objetiva regular (até mesmo dificultar) o fluxo de energia (Q), para
minimizar o sofrimento, por não encontrar o objeto idealizado.

98
É interessante notar que o Ego que Freud propõe em sua metapsicologia não
está totalmente alinhado com o que ele vai propor na segunda tópica (GARCIA-ROZA,
2009). Na primeira ele é proposto mais como uma formação oriunda do sistema Ψ
(psi), e que por conta disso, não está relacionado a questões que envolvam a realidade:
percepção, consciência e desejo.

O acesso à realidade, como alerta Garcia-Roza (2009), na teoria metapsicológi-


ca freudiana, ocorre por meio do sistema perceptivo, pelos neurônios ω (ômega) e não
pelos neurônios Ψ (psi). Nesse sentido, o Ego conceituado na metapsicologia freudiana
não é um “ego entendido como um sujeito, como um indivíduo, ou mesmo com uma
totalidade do aparelho psíquico, mas como parte do sistema Ψ que possui uma função
essencialmente inibidora” (GARCIA-ROZA, 2009, p. 56).

FIGURA 16 – OBSTÁCULOS E RESISTÊNCIAS NO SISTEMA INCONSCIENTE

FONTE: <https://shutr.bz/3DK2z0n>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Desse modo, a formação denominada Ego, na primeira tópica freudiana, se


caracteriza pela dupla função inibidora: evitar o investimento no vazio (na alucinação)
e, por conseguinte, inibir ou mitigar ao máximo a decepção. Isso significa que ela é objeto
e sujeito ao mesmo tempo. Atuando, então, de modo ativo e passivo, protegendo a si
mesmo e ao aparelho psíquico.

Quando o Ego não consegue inibir satisfatoriamente uma descarga em um “ob-


jeto fantasiado”, isso, segundo Garcia-Roza (2009) provoca uma descarga excessiva,
e, assim, gera desprazer. Segundo o mesmo autor, outra forma de sofrimento é ocasio-
nada no processo de descarga em um estado de desejo em alta intensidade, de difícil
refreamento, e que, por conta disso, não há poder suficiente para limitar a descarga,
gerando novamente um desprazer.

Nos dois casos de desprazer, a referência inibitória da realidade encontra-se


ausente, uma vez que o sistema ω (ômega) é incapaz de dirimir o que é real do que é
imaginário.

99
Lembremos que a função perceptiva da realidade é vivenciada pelos
neurônios ω (ômega), mas a função de inibição é operada pelo Ego. É aqui que Freud
entende a necessidade de propor uma teorização que explique tal dinâmica: trata-se
dos processos primários e secundários.

2.3 OS PROCESSOS PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO


Freud estabeleceu que o aparelho psíquico tinha seu funcionamento operado
sob ação de dois processos: um de ordem primária e outro de ordem secundária. Isto é,
dois modos em que circula a energia psíquica.

Um modo em que a energia circula livremente, e outro no qual essa energia


circula ligada a algum objeto. Diz-se que a energia está livre para circular quando en-
contra facilmente ou não encontra obstáculo para ser descarregada. Sendo que será
considerada “ligada”, quando seu “escoamento” for regulado ou controlado por algum
obstáculo recalcante.

Sendo assim, o papel que o Ego assume é essencial. Em uma dupla função, ele
opera inibindo e defendendo o funcionamento do aparelho psíquico. Assim, os pro-
cessos primários, como destaca Garcia-Roza (2009), referem-se aos processos que
têm como função defender a integridade do aparelho psíquico.

Enquanto os processos secundários têm como função “inibir” os fluxos de


energia, de modo a regular e empregar seu investimento. Esses processos atuam de
modo antagônico um ao outro (GARCIZ-ROZA, 2009).

ATENÇÃO
Garcia-Roza (2009) alerta que é preciso diferenciar processos primá-
rios e secundários de funções primárias e secundárias. Enquanto
os primeiros referem-se ao fluxo (livre o regulado) da energia psíquica a
ser investida em um dado objeto, os segundos, por sua vez, referem-se
às funções básicas do sistema nervoso: o modelo do arco-reflexo e a
descarga total de Q (primárias), e a fuga de estímulo (secundária).

Portanto, os processos primários se referem aos conteúdos inconscientes, e os


processos secundários aos conteúdos pré-conscientes/conscientes.

100
FIGURA 17 – FLUXOS E SENTIDOS

FONTE: <https://shutr.bz/3FTtl8o>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Outro ponto a ser destacado, o qual Freud enfatiza em sua obra (GARCIA-ROSA,
2009), é que, sob o prisma genético, os processos secundários seriam resultados de
uma transformação dos processos primários, visto que Freud entendeu que os proces-
sos secundários seriam uma etapa “mais evoluída” dos processos primários quanto ao
modo de gerir a energia psíquica. Seja reprimindo, seja buscando caminhos alternati-
vos para fluir a energia psíquica e seu investimento possível. Nesse sentido, podemos
dizer que cada um corresponde uma etapa de desenvolvimento em relação ao outro.

3 A CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA


O sonho para Freud é o exemplo mais notório dos processos primários. Ele é
acompanhado de uma diminuição da função orgânica (o que acarreta uma diminuição
significativa da função secundária do ego), além de um aumento, concomitante, da
livre circulação da energia psíquica Q, encontrando uma “via aberta” para fluir e
encontrar “objetos fantásticos” para investir.

Como a queda da carga no sistema Ψ (psi), há uma condição muito propícia


para processos primários em descarga no Ego. Já que o contato com a esfera externa
é reduzido a nível quase zero, a um espaço livre para um tipo de atividade desenvolvida
pelo sistema Ψ (psi) identificada por Freud como “sonho”.

101
FIGURA 18 – SONHOS

FONTE: <https://shutr.bz/3lMX6Qu>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Para Freud, esse processo primário (o sonho) é detentor de seis características


que o distingue de outros processos, sendo os oníricos (um pensamento de vigília, sob
o comado do inconsciente, que emaranha em algum tipo de racionalidade). Garcia-Roza
(2009) elenca que os sonhos na metapsicologia freudiana:

• São realizações de desejos: enquanto processo primários os sonhos reproduzem


um modelo de experiência de satisfação.
• Apresentam-se em carácter alucinatório: durante a vigília a corrente “Φ (phi)”
impede a fluidez de “Φ (phi)” para “Ψ (psi)”, limitando a concentração da energia
psíquica em uma dada representação e por conseguinte de uma memória (este
processo Freud denominou de catexia). Entretanto, no sono isso não ocorre, o que
faz com que “Φ (phi)” seja catexizado, (ou seja representado).
• Produzem conexões absurdas, contraditórias e “loucas”: seja porque mais de
uma catexia ocorra ao mesmo, tentando estabelecer uma conexão entre si, seja por
que a algum tipo de esquecimento da experiência psíquica vivenciada nos sonhos, tor-
nando sua lembrança fragmentada e de difícil recordação, fragmentado e desconexo.
• Carecem de carga motora: há uma paralisia da motilidade corporal, e, por conta
disso, as lembranças tornam-se fracas e insipientes.
• Seguem velhas facilitações: que os tornam uma reinvenção das próprias experi-
ências.
• A consciência fornece qualidade ao que é vivido: isso sinaliza para Freud que
a consciência não está restrita à figura do Ego, e menos ainda, que os processos
primários sejam exclusivamente inconscientes.

102
3.1 A INTERPRETAÇÂO DOS SONHOS
Em sua obra A interpretação dos sonhos, de 1900, Freud, introduz uma grande
quantidade de conceitos, com a intenção de formular sua primeira teoria do incons-
ciente. Buscou, assim, estabelecer um grau de amplitude suficientemente abrangente,
a fim de abarcar uma função comum a todo sujeito, na figura do sonho, por exemplo,
além de mecanismos inconscientes e mesmo conscientes que se estruturam de modo
neurótico. Para ele, os sonhos são um exemplo contundente das latências dos conteú-
dos inconscientes, mas não daquilo que se torna manifesto pela via do sonho.

Desse modo, para Freud, mais importante que a própria manifestação do


inconsciente, o sonho precisa ser interpretado, comparado e significado. Há um
aspecto pictórico, figurativo, inerente ao sonho. Algo como um quebra-cabeças a ser
montado e que precisa ser decifrado, significado, porque em seus mosaicos há algo a ser
desvelado, decifrado e significado. Há uma valoração significante, um ordenamento
simbólico singular que conota uma condição pictográfica ao conteúdo onírico do sonho.

Evidentemente, com destaca Garcia-Roza (2009), existem elementos individuais


emitidos nos pensamentos que ocorrem no sonho. Uma mensagem que precisa ser
codificada, uma palavra uma frase, um número, que carrega em si uma representação
de um “objeto fantasiado”. Essa combinação a ser empreendida delimitará uma dada
interpretação.

FIGURA 19 – INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

FONTE: <https://shutr.bz/3n5YL2J>. Acesso em: 2 ago. 2021.

No entanto, cabe destacar que “o sonho não quer dizer nada a ninguém; não é
um veículo de comunicação; ao contrário, se empenha em permanecer incompreendi-
do” (FREUD, 1917 apud JORGE, 2008, p. 126). Há, desse modo, a necessidade de esta-
belecer um carácter relacional entre o sentido e a interpretação a ser estabelecida,
mas com foco no inconsciente e não no sonho e suas figurações em si. Mais do que uma
dada simbologia, é preciso considerar as motivações individuais, ou seja, aquilo que
singularmente se restringe ao indivíduo e não a um simbolismo universalizante, segun-
do Freud, é preciso fugir disso.

103
3.2 O SIMBOLISMO E SIGNIFICANTES NOS SONHOS
Freud considerava o simbolismo um elemento secundário no processo in-
terpretativo dos sonhos. Contudo, como bem lembra Garcia-Roza (2009), precisamos
lembrar que símbolo, etimologicamente falando, possui uma ressalva interessante no
que se refere à interpretação. Mais do que dar uma qualidade a um objeto, o termo grego
symbolon designa duas metades de um objeto partido que se aproximavam. Isto é,
designa uma relação que se convenciona em termos de sentido e significado.

Entretanto, mais do que representantes de um ado objeto, um símbolo veicula


um significado sobre este objeto. Tomemos uma árvore como exemplo, ao citá-la, uma
série de significados foram mobilizados a nós e por nós. Uma árvore continua sendo
árvore, mas cada uma das diferentes aplicações nas imagens anteriormente apresen-
tadas, suscitam diferentes significados, logo, um mesmo símbolo pode mobilizar dife-
rentes significados para diferentes sonhos do mesmo indivíduo.

FIGURA 20 – ÁRVORES EM DIFERENTES SENTIDOS E SIGNIFICADOS

FONTES: <https://shutr.bz/3vAmXOV>; <https://shutr.bz/2YWZonv>; <https://bit.ly/3voGoKj>.


Acesso em: 2 ago. 2021.

Assim, a interpretação, não está arraigada necessariamente ao que o símbolo


em si representa, mas sim o significado que ele suscita, mobiliza e produz (e mes-
mo revela) sobre quem o significa. Isso significa que é preciso estabelecer uma linha
interpretativa, gradativa, para constituir um entendimento, significado, e, por con-
seguinte, a interpretação do sonho a partir dos símbolos apresentados e o que eles
tendem a transmitir, em função do sujeito que os apresenta.

Dessa forma, o símbolo é um constructo individual, uma aplicação muito par-


ticular do indivíduo que o usa, e nada tem de universal. Obviamente, existem elementos
culturais por trás de todo o processo simbólico. Porém, para estabelecermos o signifi-
cado de um dado símbolo presente no sonho de um sujeito, devemos compreender ou
pelo menos identificar quais os usos a que tais são empregados no sonho. Para Freud,
como destaca Jorge (2008), essa é a “chave de leitura interpretativa” a ser empreendida
no processo de interpretação dos sonhos. E o único que detém a chave de leitura (o uso)
é o próprio sujeito detentor e produtor do sonho.

104
3.3 ALGUMAS CONSIDERAÇÔES SOBRE A METAPSICOLOGIA
FREUDIANA
Autores como Fulgêncio (2005), Jorge (2008), Nasio (1997) e Garcia-Roza
(2009) entendem a teoria metapsicológica de Freud como uma bússola, um norte
referencial de ação acerca das práticas estabelecidas em psicanálise. A “descoberta”
dos processos inconscientes revolucionou o modo de pensar em uma série de áreas,
nuances e dimensões do cotidiano das pessoas. Suas relações interpessoais, a política,
e a própria existência humana em seus contextos vivenciais.

FIGURA 21 – FREUD E SUA METAPSICOLOGIA

FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/sigmund-freud-cartoon-sitting-on-
his-388215331>. Acesso em: 2 ago. 2021.

Por fim, as teorizações propostas por Freud em sua metapsicologia não criam
os fenômenos inconscientes, apenas os desmascaram. Assim como outros fenômenos
psíquicos ocultos. Há, então, uma dinâmica produtora de condições e modos de existir.
Uma dinâmica que mobiliza diferentes ações e regula fluxos e “modos de escoamento”
de energia psíquica. Então, a vida guiada sob a perspectiva de um dado funcionamento
psíquico produz modos de existência, mas especialmente de significação.

105
LEITURA
COMPLEMENTAR
O QUE É METAPSICOLOGIA CIENTÍFICA?

Carlos Eduardo de Sousa Lyra

QUESTÕES FORMULADAS PELA METAPSICOLOGIA CIENTÍFICA

Tendo avaliado as dimensões epistemológica e metodológica, bem como os


principais obstáculos conceituais à realização da metapsicologia enquanto teoria cien-
tífica, passemos, então, ao exame das questões mais fundamentais que são formuladas
pela metapsicologia científica.

PULSÃO VESUS INSTINTO

A questão do significado do conceito de Trieb na obra de Freud tem gerado


algumas controvérsias. Como veremos mais adiante, o problema da tradução a partir
dos originais em alemão não raramente conduz a equívocos na interpretação da obra
freudiana, principalmente no que se refere aos conceitos da metapsicologia.

A palavra Trieb pode ser traduzida como pulsão ou instinto. Outra palavra ale-
mã, Instinkt, também é utilizada por Freud para se referir, neste caso, apenas ao instinto
no seu sentido exclusivamente biológico. Apesar de reconhecer a diferença entre Trieb e
Instinkt, Andrade (2003) propõe que se traduza Trieb como instinto, pois acredita, entre
outras coisas, que o termo é menos inadequado, mais simples e mais fiel aos escritos de
Freud. Por outro lado, boa parte dos psicanalistas traduz Trieb como pulsão. Esta será
nossa posição neste artigo.

Independentemente, portanto, da tradução utilizada, parece haver argumentos


suficientes para considerar o conceito de Trieb como distinto de Instinkt. A pulsão se di-
ferencia do instinto biológico na medida em que agrega qualidades psicológicas a este
último. Somente a pulsão possui plasticidade, é capaz de se adaptar a uma infinidade
de objetos. A pulsão é aquilo que movimenta um sujeito em direção a um objeto. Essa
plasticidade da pulsão está associada à própria plasticidade neural. O ser humano é o
único animal que nasce com o cérebro imaturo. Os demais animais agem por instinto. A
influência do ambiente na maturação do cérebro humano é extraordinária, o que o levou
a desenvolver habilidades e capacidades cognitivas sem precedentes na cadeia evolu-
tiva. Assim, podemos dizer que a pulsão sexual (libido) se diferencia do instinto sexual,

106
pois, diferentemente dos animais, a sexualidade humana não está apenas a serviço da
reprodução e da conservação da espécie, mas é perversa, ou seja, vai além da genitali-
dade e adquire um caráter mais amplo.

Da mesma forma, o instinto de autoconservação é ampliado na pulsão de con-


servação do indivíduo biopsíquico, ou seja, no conceito de pulsão do ego. De uma ma-
neira mais resumida, podemos dizer que a pulsão do ego está para a libido assim como
a conservação do indivíduo biológico está para a conservação da espécie.

REPRESENTAÇÕES E AFETOS

De acordo com a metapsicologia freudiana, a pulsão só se manifesta, no psi-


quismo, na forma de representantes psíquicos, que são de duas naturezas distintas:
representações e quotas de afeto. As representações psíquicas são inscrições que se
apresentam como traços mnêmicos e determinam apenas o fator qualitativo referente
às ideias e pensamentos. Há apenas dois tipos de representações: as representações
de coisa, que são restritas ao sistema inconsciente, e as representações de palavra, que
são componentes qualitativos restritos ao sistema pré-consciente/consciente.

As quotas de afeto, por sua vez, são os representantes quantitativos do psi-


quismo. As quantidades atribuídas às quotas de afetos podem variar de acordo com
a intensidade da experiência inscrita na forma de traço mnêmico, ou representação,
no psiquismo. Apenas as quotas de afeto, enquanto representantes psíquicos, podem
transitar do sistema inconsciente para o sistema pré-consciente/consciente. É impor-
tante ressaltar que

A quota de afeto se distingue do afeto propriamente dito, uma vez que


a primeira diz respeito à quantidade de energia psíquica, enquanto
o segundo é a percepção de uma descarga desta energia, que
atinge o somático. É por isso que Freud não considera a existência
de afetos inconscientes, uma vez que toda percepção deve passar
necessariamente pela consciência. Contudo, podemos falar de quota
de afeto inconsciente (ANDRADE, 2003, p. 86).

Freud expressou claramente as dificuldades relacionadas ao estudo dos afetos.


Assim, o estudo dos afetos parece ter sido, de certa forma, colocado em segundo plano
pela psicanálise. Segundo Green (1982, p. 8), isso se deve à "ausência de uma teoria
psicanalítica do afeto satisfatória". Dentre os afetos estudados por Freud, a ansiedade
(Angst) é, sem dúvida, o mais profundamente investigado. Freud ressalta a importância
do afeto para a teoria psicanalítica como um todo e, em particular, para a teoria do
recalque. Por outro lado, não desenvolve suficientemente a problemática do afeto,
deixando em aberto muitas questões a respeito dos conceitos envolvidos "nessa região
obscura" (FREUD, 1990, p. 462).

FONTE: Adaptado de <https://www.scielo.br/j/rprs/a/WY8BwNYxgzzkGbPfywskLKM/?lang=pt>.


Acesso em: 2 ago. 2021.

107
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• O sonho se apresenta como exemplo mais notório dos processos primários. Pois, há
uma diminuição da função orgânica e um aumento da livre circulação da energia
psíquica.

• Os sonhos são detentores de seis características que os distinguem de outros


processos: são realizações de desejos; apresentam-se em carácter alucinatórios;
produzem conexões absurdas, contraditórias e “loucas”; carecem de carga motora;
seguem velhas facilitações; têm na consciência uma fonte de qualidade ao que é
nele vivido.

• Os sonhos são um exemplo contundente das latências dos conteúdos inconscientes,


mas não daquilo que se torna manifesto pela via do sonho.

• Para Freud, mais importante que a manifestação do inconsciente, o sonho precisa


ser interpretado, comparado e significado.

108
AUTOATIVIDADE
1 Qualquer que seja a manifestação a nível consciente, um pensamento, uma palavra,
um sentimento ou um comportamento precisa ser compreendido para além de
questões externas. Há algo que lhes valora, há uma mensagem por eles carregada. A
isso Freud estabeleceu como:

a) ( ) Purgação neurótica.
b) ( ) Dar sentido.
c) ( ) Estados catatônico.
d) ( ) Generalização evidente.

2 Sobre a sexualidade, na visão metapsicológica freudiana, é preciso ponderar algumas


questões que delimitam esse entendimento. Para tanto, analise as afirmações a seguir:

I- O sentido de nossos atos é um sentido sexual porque a fonte e o alvo dessas


tendências são sexuais.
II- A fonte é um representante pulsional, cujo conteúdo representativo corresponde a
uma região do corpo que é muito sensível e excitável, chamada zona erógena.
III- Quanto ao alvo, nuca ideal, mas sempre real, ele é o prazer perfeito de uma ação
perfeita, de uma perfeita união entre dois sexos.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) Somente a sentença III está incorreta.
d) ( ) Somente a sentença I está incorreta.

3 Para Freud, é preciso considerar a existência de uma pluralidade imensa de


possibilidades de “pulsões sexuais”. As quais orbitam no inconsciente apenas em
posição de espera, a fim de encontrar um canal de investimento e produção de
um dado “escoamento”. Sobre isso, analise as sentenças e classifique V para as
verdadeiras e F para as falsas:

( ) O prazer, para Freud, está relacionado à fantasia criada pelo sujeito.


( ) A satisfação associa-se a um ato, ainda relacionado à condição fisiológica, mas que
a transcende para ficar como uma fantasia.
( ) No prazer funcional, há a emergência de um objeto substituto para assumir o papel
de mediador da fantasia pelo sujeito.

109
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) F – V – F.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Para Freud, no que se refere à sexualidade ao objeto, pouco importa quem ou


o que ele seja. Isso significa que esse sempre é fantasiado pelo sujeito, ele não é
necessariamente real. Para tanto, ele sinaliza a existência do que ele denominou de
atos substitutivos. O que seriam e como operam tais atos?

5 Dentre os diferentes processos psíquicos, precisamos diferenciar aqueles que elen-


cados como processos primários e secundários de outros tipos, como as funções
primárias e secundárias. Como eles podem ser diferenciados?

110
REFERÊNCIAS
FULGÊNCIO, L. Freud’s metapsychological speculations. Int. J. Psychoanal., [s. l.], v.
86, n. 1, p. 99-123, 2005. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1516/
TNY1-6YT7-V37T-16LD?journalCode=ripa20. Acesso em: 29 jul. 2021.

GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. 24. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. 5. ed. Rio de


Janeiro: Zahar, 2008.

NASIO, J. D. Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

TAVARES, P. H. M. N. O vocabulário metapsicológico de Sigmund Freud: da língua


alemã às suas traduções. Literatura/ Cultura – Pandaemonium ger.,
São Paulo, v. 15, n. 20, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pg/a/
pKTCLwfcJL84PTknR95bpRP/?lang=pt. Acesso em: 14 jul. 2021

111
112
UNIDADE 3 —

PROCESSOS DE
SUBJETIVAÇÃO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender o que são os processos de subjetivação na psicanálise;

• identificar na clínica freudiana os processos de subjetivação e sua relação com a


saúde mental;

• diferenciar os teóricos da psicanálise pós freudianos;

• visualizar as diferentes inserções do psicanalista no contexto clínico e social


contemporâneo;

• compreender as dimensões políticas sociais, políticas e culturais que interferem na


construção das subjetividades.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A PSICANÁLISE FREUDIANA E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

TÓPICO 2 – OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PSICANÁLISE PARA ALÉM DE


FREUD

TÓPICO 3 – OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO


DO TRABALHO DO PSICANALISTA

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113
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UNIDADE 3!

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114
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
A PSICANÁLISE FREUDIANA
E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 1, trabalharemos a compreensão acerca do processo de
subjetivação no interior da psicanálise.

Devemos considerar, contudo, que a psicanálise é muito mais ampla do que


uma teoria, ela é uma práxis que envolve época, teóricos, modos de manejar conceitos,
percepções geográficas, históricas e sociais.

Nesse contexto, iremos conhecer as perspectivas de subjetivação como uma


maneira de compreender o sujeito, sua forma de se inserir no meio social, de dar sentido
para a vida e de se relacionar com o Outro. Por fim, retomaremos o processo de subjeti-
vação na psicanálise freudiana.

Bons estudos!

2 A PSICANÁLISE DE FREUD E OS PROCESSOS DE


SUBJETIVAÇÃO
Podemos considerar a psicanálise como uma construção da modernidade? Em
1900, quando Freud publicou seu texto mais famoso, Interpretação dos sonhos, ele já
havia concluído o texto um pouco antes, mas pediu que datassem a publicação de 1900
para que a psicanálise demarcasse o surgimento de um novo século, o século XX.

Enquanto um corpus de conhecimentos sobre o humano, situado entre o psí-


quico e o somático, Freud rompe com o estatuto de ciência de sua época e decide
centrar suas pesquisas na escuta empírica de seus pacientes, fundando uma teoria
da clínica e não uma clínica da teoria. Tal postura epistêmica colocou a clínica como
centro do processo de construção do saber, construindo, assim, um modo empirista
de fazer ciência sobre as experiências clínicas vivenciadas, o que não era bem-visto em
seu tempo. No entanto, Freud sabia que seu reconhecimento não seria entre os seus,
tampouco em seu momento histórico. Assim como todos os bons filósofos, poetas e
artistas, o reconhecimento da psicanálise, imaginava ele, seria póstumo, embora nunca
tenha deixado de trabalhar para a difusão do saber psicanalítico.

115
Visando contribuir para a ciência de seu tempo, Freud, em seu primeiro trabalho
publicado juntamente com Josef Breuer (1842-1925), Estudos sobre histeria (1895), cons-
truiu um novo modelo de prática clínica, em que o saber não estava centrado na figura
do médico, além disso, caberia ao profissional produzir um discurso sobre o doente.

A transgressão psicanalítica instaura uma escuta diferenciada às pacientes


predominantemente mulheres, as quais eram chamadas de histéricas. Coube a elas
a fala sobre suas angústias, sintomas e possíveis origens deles, sendo atribuição do
profissional facilitar que a palavra acontecesse de forma livre e que fossem construídas
associações sobre as palavras, a fim de chegar até a origem dos sintomas por meio
da cura pela palavra. Essa técnica utilizada por Freud e Breuer após a intervenção da
paciente Bertha Pappenheim (1859-1936), conhecida na literatura psicanalítica como
Anna O. Assim, Freud abandona a hipnose e estabelece com suas pacientes a técnica
da associação livre, utilizada até os dias atuais.

Trata-se, portanto, de um conceito fundado pela clínica, um avanço solicitado


por meio do processo de subjetivação de uma paciente que, insatisfeita com as
técnicas que havia vivenciado, cria um instrumento novo, ou seja, a cura pela palavra,
cura que utilizamos até hoje, mesmo com todas as mudanças sociais e históricas.

Baseado nas construções empíricas e nos resultados dos seus casos, Freud
estabeleceu, então, um novo modo de fazer a prática clínica, especialmente a clínica
dos cuidados em saúde mental.

NOTA
As primeiras pacientes de Sigmund Freud foram as histéricas. O
termo “histeria” vem de útero, e acreditava-se que as sintomatolo-
gias da histeria seriam encontradas apenas em mulheres, porém,
é possível localizar, na teoria psicanalítica, estudos sobre a histeria
masculina. É importante destacar que a paciente Anna O., atendida
inicialmente por Breuer e posteriormente por Freud, tem uma enor-
me relevância na teoria psicanalítica. Na relação entre Breuer e Anna
é possível perceber os primeiros momentos do que, posteriormen-
te, será discutido como o conceito de amor de transferência entre a
paciente e seu analista. Além disso, é atribuída à Anna a criação da
técnica da associação livre de palavras, conceito primordial na clínica
psicanalítica. Apesar das mudanças sociais, temporais e históricas,
a técnica ainda preserva sua relevância e deve ser estudada com
afinco por todos os estudantes de psicanálise.

116
Compreenderemos, adiante, que os modos de subjetivação dos sujeitos na
atualidade não são os mesmos do contexto de surgimento da teoria psicanalítica freu-
diana, na sociedade vienense.

No contemporâneo, a subjetivação acompanha os caminhos pelos quais os


sujeitos constroem as experiências de interpretação das normas e condições sociais,
bem como o tempo histórico, podendo, assim, produzir modos de enfrentamento e/ou
adaptação às questões socioculturais de seu tempo. Estudaremos, portanto, o que são
os processos de subjetivação, como eles são compreendidos na psicanálise e de que
forma atuam na formação do indivíduo contemporâneo, atualizando, desse modo, os
conhecimentos sobre a psicanálise e suas configurações na clínica atual.

NOTA
Segundo o dicionário de Laplanche e Pontalis (2001, p. 38), a regra
fundamental da psicanálise, isto é, a associação livre, é tida como um
"Método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os
pensamentos que ocorrem ao espírito, quer a partir de um elemento
dado (palavra, número, imagem de um sonho, qualquer representa-
ção), quer de forma espontânea".

3 O QUE SERIAM PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO?


Um termo bastante presente na literatura de psicólogos e psicanalistas é a
expressão subjetividade, como já pudemos perceber. Tal análise dos sujeitos, seja
no contexto clínico, social e ou organizacional leva em consideração os processos de
produção da subjetividade e as afetações que um determinado contexto exerce sobre
a subjetividade humana. Seja de modo individual ou grupal, a subjetivação diz respeito
aos processos de relação dos sujeitos com seu tempo histórico, com as normas
sociais e culturais circunscritas e os modelos de relação social, cultural, econômico,
biológico e psicológico em um dado período.

117
FIGURA 1 – SUBJETIVIDADE E CULTUR

FONTE: <https://shutr.bz/3FXxFDK>. Acesso em: 2 out. 2021.

Certamente, falar da dinâmica do inconsciente freudiano não é o mesmo


que o inconsciente pós-moderno, pós-pandemia COVID-19 e suas reverberações na
humanidade. Subjetivar inclui se apropriar do mundo em sua volta, com suas questões,
castrações e limites que impõe ao humano novos modos de lidar com a angústia,
inibições e sintomas relacionados ao seu momento histórico e valorização de questões
que outrora não foram pensadas na experiência humana.

Dessa maneira, cada tempo histórico está implicado em suas condições. Mas
vale ressaltar que a própria história é cíclica, pois existem fatores que se repetem, por
exemplo, a pandemia. Afinal, não é primeira vez que isso ocorre na sociedade humana,
mas, de certa forma, a cada vez que um momento pandêmico atinge a humanidade,
somos levados a lidar com essas questões de uma determinada maneira.

Na contemporaneidade, a subjetividade tem sido fortemente marcada pelo


negacionismo, ou seja, um traço de negar o real, a morte, o imprevisto, as incertezas e,
inclusive, a finitude, por mais que tenhamos provas por meio de dados estatísticos e da
própria ciência em relação à existência do vírus SARS-CoV-2. Estamos, porém, revivendo
novas maneiras de encarar a Sociedade do mal-estar (1930), bem como de subjetivar o
que nos é tão estranho e ao mesmo tempo familiar.

FIGURA 2 – O ESTRANHO E O FAMILIAR

FONTE: <https://shutr.bz/3lQQekT>. Acesso em: 2 out. 2021.

118
Cada novo momento histórico nos alerta para novos modos de enfrentamento
do mal-estar e da angústia, porém, questões como a castração, a falta estruturante,
a dinâmica edípica, o narcisismo, entre outras levantadas pela teoria psicanalítica, se
repete independentemente do tempo histórico e dos aspectos sociais, obviamente em
novas formatações, mas se repetem como o princípio básico do gozo na repetição.

Sendo assim, iremos conhecer do que se tratam os processos de subjetivação


à luz da teoria psicanalítica e da psicologia, assim como quais autores explanam seu
conceito e articulam a subjetivação com a formação do indivíduo à luz do referencial
teórico da psicanálise. Vamos lá?

De acordo com Mansano (2009), a compreensão do que se entende por


subjetivação perpassa os conceitos de subjetividade e sujeito. É o sujeito que, para
construir sua subjetividade, irá vivenciar os processos de subjetivação. Por isso, para
discutir tal conceito, seguiremos juntamente com a autora a inspiração dos teóricos
pós estruturalistas Deleuze, Guattari e Foucault, para abordarmos os processos de
subjetivação do sujeito na pós-modernidade. A respeito do conceito de subjetividade,
então, a autora afirma que "a subjetividade não implica uma posse, mas uma produção
incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com o outro" (MANSANO,
2009, p. 111).

Em vista disso, não podemos falar de algo estático, que se conclui e estaciona,
mas sim de um processo contínuo que se atualiza por meio dos encontros vivenciados
com outros indivíduos que compõem o laço social. Nossa subjetividade é, portanto,
assim como o inconsciente, um conceito dinâmico e que depende das interações
com os outros significativos para se constituir.

A "subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social”


(GUATTARI; RONILK, 1996, p. 31 apud MANSANO, 2009, p. 111). Esses registros ou laços
sociais que interferem na produção das subjetividades podem ser os outros com os
quais o sujeito interage, pode ser também a natureza, os acontecimentos, as invenções,
tudo aquilo que produz efeitos nos corpos e nas maneiras de viver (MANSANO, 2009).

Um exemplo é pensarmos a produção de subjetividades antes e depois da


era das redes sociais. Estariam nossas subjetividades marcadas pela relação com
esses outros sociais com os quais nos relacionamos por intermédio de likes? Todas as
subjetividades podem e devem ser pensadas antes e depois da internet e das mídias
sociais, pois elas exercem influências sobre os processos de subjetivação humana e em
relação à própria constituição das subjetividades.

119
FIGURA 3 – ERA DIGITAL E SUBJETIVIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/3lOVfKK>. Acesso em: 2 out. 2021.

Para pensarmos a articulação entre a ideia de subjetividade e a cultura di-


gital, o filósofo Pierre Lévy estabeleceu o conceito de cibercultura (MIRANDA, 2021).
Para Lévy, as subjetividades receberam impactos diretos da internet. Segundo El Khouri
e Miranda (2015, p. 137) “a cultura digital reconfigura nos jovens o sentido de linguagem,
lazer, sociabilidade e, portanto, subjetividade”.

A pesquisadora se detém em analisar os impactos da cibercultura nos jovens


da geração Y, a geração que já nasceu na cultura digital. Contudo, podemos expandir
as discussões provocadas pela autora e problematizar os impactos que a cibercultura
apresenta nas subjetividades de mulheres, homens e idosos. Impactos esses que, in-
clusive, passam pela performance dos corpos. Como diria Foucault sobre a resposta
à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma do
controle da repressão, mas do controle estimulação, “Fique nu..., mas seja magro, boni-
to, bronzeado” (FOUCAULT, 1997, p. 147).

Isso significa a ditadura midiática do corpo jovem, belo, perfeito, harmônico que
sustenta toda uma indústria de cosméticos, cirúrgica, medicamentos e moda. Indús-
trias que recorrem à influência das mídias sociais por intermédio dos influencers para
vender e impactar cada vez mais a subjetividade das pessoas, propagando um ideal de
corpo e beleza por vezes irreal.

É, então, na sociedade dos filtros, das pessoas, das máscaras, dos likes e dos
milhões de seguidores que engendramos nossos modos de subjetivação. Quais cami-
nhos irão tomar os processos de subjetivação depois do período da pós-modernidade?
Não sabemos, porém, com certeza as redes sociais e as mídias continuam tendo forte
impacto na determinação dos corpos, dos comportamentos e dos afetos.

120
FIGURA 4 – PADRÃO E SUBJETIVIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/30stdwm>. Acesso em: 2 out. 2021.

A sociedade pós-moderna nos insere num contexto de exigência de adequação


a um ideal propositalmente inatingível, o qual atravessa o processo de construção e
manutenção da subjetividade dos integrantes de nossa sociedade contemporânea para
os autores, a partir da premissa da construção do eu sob a ótica da subjetividade em
Freud e em Lacan.

DICA
No ano de 2020, em plena pandemia de COVID-19, período marcado pelo isolamento
social e por uma grave crise de sanitária em esfera global, foi lançado o filme O dilema
das redes. O filme nos mostra como os grandes líderes das mídias e da tecnologia
possuem o controle sobre a maneira de pensarmos, agirmos e vivermos.
Nele, frequentadores do Vale do Silício revelam como as plataformas de
mídias sociais estão reprogramando a sociedade e sua forma de enxergar
a vida. Com relatos sobre neurociência e aspectos psicológicos e sociais
associados ao uso das redes sociais, o filme faz uma crítica importante
ao uso abusivo das redes sociais, aos objetivos por trás das plataformas,
bem como aos prejuízos em nível biopsicossocial aos usuários. Vale a pena
assistir e refletir sobre os processos de subjetivação que estamos vivendo,
atravessados fortemente pelos usos das mídias sociais.

A resposta para a pergunta “quem sou eu?” Certamente está atravessada pela
produção de personalidades virtuais. Cabe lembrar que personalidade vem do grego
“persona”, que quer dizer “máscara”, se referindo ao teatro grego e às representações que
os homens faziam de diversos personagens, incluindo personagens femininos com uso
de tais personas (máscaras). Porém, tudo isso ocorre na subjetividade e nos processos
conscientes de construção da identidade dos sujeitos. Quais efeitos a subjetivação
pode ter em relação ao sujeito do inconsciente e seus processos de constituição por
meio do recalque? Vamos entender um pouco mais dos processos de subjetivação para
chegar nessa resposta.

121
ESTUDOS FUTUROS
Como ocorre a constituição da subjetivação na contemporaneidade?
Esse processo inconsciente é afetado por nossa relação com a globa-
lização, mídias sociais, internet e fenômenos de forte impacto, como a
pandemia de 2020? Posteriormente, compreendermos as relações en-
tre subjetivação, psicanálise e pós-modernidade, analisando como o in-
consciente dos sujeitos podem ser afetados por tais fenômenos e quais
impactos eles exercem no processo de subjetivação de cada sujeito.

4 OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PSICANÁLISE


FREUDIANA
Para a psicanálise, a dimensão da constituição do sujeito é uma dimensão in-
consciente, a noção de desenvolvimento em psicanálise não é a mesma que na psico-
logia. Em psicanálise, falamos de um desenvolvimento psicossexual (FREUD, 1996b).
No texto Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud irá nos apresentar como
se dá o desenvolvimento psicossexual dos sujeitos a partir da visão psicanalítica. Tal
desenvolvimento relaciona as dimensões biológicas e psicológicas.

Com o conceito de pulsão, como aquilo que está entre o somático e o psíquico,
Freud inaugura um novo modo de pensar o ser humano, pensar o desenvolvimento à
luz dos processos de constituição do inconsciente. Analisar a relação do corpo com os
investimentos libidinais e pulsionais será o caminho utilizado pela psicanálise Freudiana
para compreender o sujeito.

Para Freud, nosso desenvolvimento está diretamente relacionado às experiên-


cias de prazer obtidas por meio da satisfação das necessidades fisiológicas. As nossas
necessidades físicas funcionam como funções de apoio, nas quais nos apoiaremos
para a conquista de momentos desde o prazer autoerótico até o prazer genital. Para
isso, conheceremos as fases do desenvolvimento psicossexual e o que elas represen-
tam no processo de subjetivação e formação do indivíduo.

Na teoria psicanalítica, um dos modos de constituição do sujeito se dá pela


linguagem. Quando Lacan afirma que o inconsciente é estruturado como linguagem,
ele eleva a linguagem a um conceito fundamental na teoria psicanalítica para
compreensão dos modos de ser sujeito no contemporâneo. Não podemos perder de
vista a complexidade e inventividade do psiquismo humano. Dentro da própria
teoria psicanalítica não podemos estabelecer uma explicação única sobre o processo
de formação do indivíduo, diversas correntes de diversas escolas psicanalíticas terão
ênfases em aspectos divergentes na formação do sujeito.

122
ATENÇÃO
Desse modo, na teoria freudiana clássica, temos a ênfase no
desenvolvimento psicossexual por intermédio dos processos de
deslocamento da libido e dos investimentos pulsionais, com
destaque na experiência do Complexo de Édipo e sua resolução.
Na teoria Lacaniana, temos a ênfase na linguagem e nos processos
de constituição por meio do estágio do espelho. Na visão de
Melanie Klein, o desenvolvimento do sujeito deve ser pensado
desde os momentos primitivos da relação com o seio materno,
entre outros enfoques que as diversas escolas da psicanálise
irão produzir para compreender os modos de constituição do
inconsciente e como este orienta e se apresenta na consciência.

Atualmente, a prática clínica psicanalítica tem buscado sair de um modelo


de compreensão e explicações sobre as questões inconscientes do sujeito, em que o
foco está na origem das experiências traumáticas que ocasionam os sintomas, para se
dedicar, agora, em compreender a produção de novos modos de existência (SIMÕES
et al., 2011).

Segundo a análise realizada por Simões et al. (2011), a visão sobre o psiquismo
e o inconsciente, alicerçada apenas na lógica do indivíduo e da mente, reforçando a
divisão consciente e inconsciente, não é mais referência na clínica contemporânea. Na
atualidade, os processos de constituição dos sujeitos vencem o mentalismo outrora
estabelecido e as visões binárias sobre o humano, fazendo confluir social e psíquico na
formação dos processos subjetivos, em que o Eu e o mundo não se configuram como
instâncias separadas, mas sim complementares na constituição dos processos de
subjetivação da existência humana.

O sujeito pós-moderno é um sujeito em crise. Seus modos de subjetivação
são variados, vivemos, assim, a crise de referência das instituições totalizantes que
normatizam os discursos sobre o sujeito: a igreja, a ciência, o estado, a política e
diversos campos disciplinares, bem como diversas instituições que eram de primordial
importância para direcionar as subjetividades contemporâneas vem caindo por terra
e instaurando o que Jorge Forbes (2004) irá nomear de sujeito desbussolado. Tal
sujeito, de acordo com o psicanalista que defende a clínica do real, é resultado de um
tempo histórico e social.

Forbes (2004) defende uma mudança no ato analítico, ele chama a atenção a
uma transformação do laço social, que exige uma mudança na forma de incidência do
ato analítico. Para o psicanalista, estamos no contexto de uma psicanálise não mais
orientada pelo édipo, pela busca da origem inconsciente dos sintomas neuróticos por

123
meio do movimento de fazer surgir os conteúdos recalcados, ou seja, na atualidade, é
preciso propor uma psicanálise para o ser humano que não sabe o que fazer, nem es-
colher entre os vários futuros que lhe são possíveis: sem pai, sem direção, sem bússola
(FORBES, 2004).

IMPORTANTE
A moda do momento: as cirurgias de harmonização facial
prometem beleza, juventude e o principal, a harmonia. Mas qual
harmonia os sujeitos buscam? Considerando que a face é uma
das partes do corpo humano que estabelece um maior número
de diferenças individuais e características do sujeito, harmonizar
é padronizar pessoas a um modelo "harmônico" ou "ideal". Este
ideal de ego que busca alcançar um padrão de perfeição, um ideal
narcísico de beleza, tem em cada intervenção estética um ideal
frustrado, pois a transformação desse Eu está nos mecanismos
internos de subjetivação de si e não nas performances externas
de corpo, ou como dizem os lacanianos, o corpo "sintoma".

Para pensar uma subjetividade fora da mente, Simões et al. (2011) propõem,
tomando como referência os pós estruturalistas Deleuze e Guattari, um diálogo em
que a subjetivação contemporânea possa incluir não só a dimensão da mente, mas do
sujeito como um todo e também como parte do mundo.

A compreensão sobre o corpo e a posição a que ele é destinado também é


afetada pelos modos de subjetivação na contemporaneidade. Não se trata apenas de
uma questão estética, mas também do processo de construção da subjetividade. É
possível concluir, tomando como referência os achados de Sanches e Leite (2018) que,
passando o corpo à categoria de objeto de consumo, resta ao sujeito uma crise em
relação à sua subjetividade.

DICA
O principal psicanalista brasileiro que discute a relação entre
subjetivação e psicanálise na contemporaneidade é Joel Birman.
Assista ao vídeo em que ele apresenta a formulação de que não
existe separação entre estatuto do indivíduo e sociedade, mos-
trando o que Lacan chama de inconsciente transindividual,
em que o inconsciente está para além do indivíduo imbricado no
campo histórico e social. O autor aponta que o texto Mal-estar na
civilização, de Freud, é um relato de sujeitos pós-modernos que
se confrontam com as patologias do social. Para assistir, acesse:
https://vimeo.com/71267710.

124
Pudemos notar, então, que os processos de subjetivação dizem respeito
à capacidade humana de interagir com as questões de seu tempo, as demandas
socioculturais e as normativas, absorvendo e aderindo apenas aquelas que considera
pertinente, ou seja, não sendo uma cópia do desejo da sociedade, mas sim o produto de
uma elaboração subjetiva frente às demandas do contemporâneo.

Os modos de subjetivação são variáveis ao longo da história da psicanálise. Na


sociedade vienense, em que ocorreu o surgimento da teoria e da técnica psicanalítica
com Freud, a temática da sexualidade e da repressão sexual das mulheres se destacava
como tema principal, e por isso os processos de subjetivação frente às normativas
sexuais de seu tempo produziam nas mulheres adoecimentos histéricos, para lidar
com o mal-estar da repressão sexual. Em nossa geração, com a cultura da ausência
de referências hegemônicas, o papel primordial da tecnologia e as transformações dos
corpos atendendo aos ideais de juventude e culto à beleza, a subjetivação em consiste
em enfrentar o culto ao narcisismo e ao ideal da sociedade do espetáculo (DEBORD,
2000), em que o ter não mais prevalece sobre o ser. Atualmente, o importante é parecer
ter, parecer sustentar uma imagem de uma pessoa feliz, magra, jovem, em que o espaço
para aquilo que é do psíquico não está no plano principal, uma vez que não se constitui
em imagem.

Subjetivar no contemporâneo, portanto, é encontrar meios de fazer frente ao


“desbussolamento contemporâneo” (FORBES, 2004) e produzir formas criativas de
construir e sustentar um espaço de segurança que favoreça a manutenção da saúde
mental e a preservação dos vínculos afetivos.

125
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A psicanálise ocorreu por meio da escuta para além de uma perspectiva da norma
social.

• A subjetivação se dá pelos atravessamentos sociais, culturais, históricos e políticos


de um tempo, e como os sujeitos reagem a eles.

• A psicanálise é uma crítica social.

• Na modernidade, a cultura tecnológica tem impacto na construção da subjetividade.

126
AUTOATIVIDADE
1 Sobre a subjetividade e as marcas contemporâneas, é possível analisar uma exa-
cerbação das relações com o corpo por fatores estéticos e necessidade de perten-
cimento com os grupos sociais. São fatores impulsionados pelo fortalecimento do
uso da internet, da ampliação da sociedade do consumo na geração Y e pelo uso das
mídias sociais que exercem influências sobre os processos de subjetivação humana.
Sobre o desejo que corresponde a esse cenário, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Desejo de pertencer.
b) ( ) Desejo de diferenciar.
c) ( ) Desejo de apropriação.
d) ( ) Desejo de vincular.

2 Considera-se que a psicanálise é diferente de outras ciências, sendo originada pela


escuta de Freud a partir das histéricas, mulheres que tinham passado por médicos e
apresentavam sintomas que a medicina não encontrava a causalidade. Diante disso,
observou-se que as queixas histéricas advinham de:

I- Conflitos sexuais.
II- Conflitos familiares e sociais.
III- Conflitos inconscientes.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Todas as sentenças estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 “A subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social”


(MANSANO, 2009, p. 111), tais registros ou laços sociais que interferem na produção
das subjetividades podem ser os outros com os quais os sujeitos interagem, pode ser
também a natureza, os acontecimentos, as invenções, tudo aquilo que produz efeitos
nos corpos e nas maneiras de viver. De acordo com a afirmativa citada, analise as
sentenças e classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

FONTE: MANSANO, S. R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista


de Psicologia da UNESP, Assis, v. 8, n. 2, p. 110-117, 2009. Disponível em: https://seer.assis.unesp.br/
index.php/psicologia/article/view/946. Acesso em: 2 out. 2021.

127
( ) As redes sociais constituem um grande fator para influenciar no modo de vida e na
construção das subjetividades contemporâneas.
( ) A religião, assim como instituições culturais, científicas e educacionais influenciam
na subjetividade humana.
( ) A subjetividade tem um período biológico de construção.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Um termo bastante presente na literatura de psicólogos e psicanalistas é a expressão


subjetividade, como já pudemos perceber. Tal análise dos sujeitos, seja no contexto
clínico, social e ou organizacional leva em consideração os processos de produção da
subjetividade e as afetações que um determinado contexto exerce sobre a subjetivi-
dade humana. Com base nos estudos do Tópico 1, disserte sobre o que é subjetivação.

5 Considerando os temas abordados sobre a subjetivação na contemporaneidade,


inclusive em relação ao conceito de cibercultura, disserte sobre a subjetividade e o
padrão estético.

128
UNIDADE 3 TÓPICO 2 —
OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA
PSICANÁLISE PARA ALÉM DE FREUD

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 2, abordaremos a perspectiva contemporânea da psi-
canálise, do percurso pós-freudiano até os dias atuais. É impossível pensar a psicaná-
lise sem retomar Freud, uma vez que ele foi o inventor, sistematizador e percussor da
psicanálise, mas com sua morte, houve outros teóricos que fizeram outros avanços a
partir de sua teoria, e criaram outras relações de analisar o inconsciente e até mesmo a
subjetividade e a cultura.

Surgiram, ainda, problemáticas que se apresentaram na cultura e que Freud


não vivenciou de forma tão intensa, como a presentificação da globalização, ascen-
são da cultura capitalista na sua forma mais intensa, a cibercultura, como já men-
cionamos, entre outros movimentos políticos, culturais, sociais e históricos. Outro fator
a ser considerado é que a psicanálise chegou a mais continentes e culturas, com mais
força, como ocorreu na américa latina após a morte de Freud e com o avanço das esco-
las de psicanálise, com influência da relação freudolacaniana e também, por meio das
faculdades de psicologia.

Trabalharemos, adiante, caminhos possíveis que a sociedade psicanalítica as-


sumiu após a morte do percussor da teoria psicanalítica. E como se deram os processos
de subjetivação em diferentes perspectivas teóricas.

Bons estudos!

2 OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PSICANÁLISE


PÓS-FREUDIANA
Antes de entrar nos autores pós-freudianos, vale ressaltar que todos eles,
autores psicanalíticos, só são possíveis porque existiu Freud, pois cada autor freudiano
utiliza de uma parte da obra construída por Freud para legitimar seus pressupostos,
inclusive utilizam do próprio Freud para dizer que outros autores pós-freudianos não
são legítimos, querendo sempre ter um lugar mais legítimo que o outro.

129
FIGURA 5 – FREUD O PÓS-FREUD QUE RESISTE

FONTE: <https://shutr.bz/3voPCpV>. Acesso em: 2 out. 2021.

Com a morte de Freud, ocorreram dois grandes fatores que influenciaram


diretamente nos processos de subjetivação da psicanálise para além de Freud, uma
delas é de influência cultural e outra de influência geográfica.

Mezan (2014, p. 22-25) faz um destaque acerca das influências da dispersão


geográfica e outras:

Dispersão geográfica: da cultura científica centro-europeia de


Belle Époque que lhe deu origem, a psicanálise migrou para outras
latitudes, aprendeu outros idiomas, mergulhou em outras áreas
culturais, e, massacrada em seu solo natal pelo nazismo, quase
desapareceu dos países de língua alemã, nos quais somente a
partir dos anos 60 volta a se configurar uma reflexão psicanalítica
original [...] a dispersão doutrinária, diz respeito, ao fato que existem
várias escolas de psicanálise [...] costuma suscitar um choque de
consideráveis proporções, pois efetivamente são muito diversos
os referenciais do que é a psicanálise, de como se deve praticá-
la e pensá-la [...] a dispersão institucional, tem como referente ao
movimento psicanalítico, algo intrínseco ao desenvolvimento teórico
fundado por Freud, esta perspectiva, porém, esbarra num obstáculo:
a resistência dos psicanalistas a admitir que outras formulações, além
daquela à qual aderem, possam ter sustentação teórica e prática.

Diante desses movimentos de dispersão, a psicanálise passa a ser incorpora-


da por quatro grandes escolas, as quais são consideradas as principais matrizes da
metapsicologia freudiana, sendo Melaine Klein, Jacques Lacan, psicologia do ego
por Hartmann, Kris e Loewenstein e os teóricos britânicos Fairbain e Winnicott, assim,
Renato Mezan (2014, p. 31) afirma que:

[...] elas preservam a descoberta básica de Freud – o inconsciente- e


a ideia fundamental do conflito psíquico; em sua teoria do desenvol-
vimento, mantêm a ideia essencial de uma permanência do infantil
no psiquismo adulto; em sua teoria do funcionamento normal e pa-
tológico, operam com a categoria basilar de defesa, em consequ-
ência da qual o sintoma se define como compromisso entre forças
psíquicas opostas; na forma de conduzir o processo analítico e de

130
refletir sobre ele, trabalham como os processos e com os conceitos
de transferências e de resistência, em virtude do que utilizam como
meio privilegiado de intervenção terapêutica a interpretação do dis-
curso produzido durante a sessão.

Para Lacan, o efeito da subjetividade será analisado pelo estilo adotado pelo
sujeito em sua personalidade, ou seja, uma síntese que representará as funções
psíquicas e sua forma de colocar funções psíquicas no meio social dentro de uma
estrutura, seja ela neurótica, perversa ou psicótica.

Já Melanie Klein se destacou no campo psicanalítico ao defender que crianças


eram passíveis de serem analisadas, já que expressavam seus sofrimentos. De acordo
com Couto (2017, p. 6-7), a diferença entre Lacan e Klein se dá pela seguinte forma:

O termo “sujeito” já era muito utilizado na tradição filosófica francesa, mas Lacan
(1954-55/2010) o transformou em um ponto central de seu ensino, introduzindo-o na
psicanálise com uma acepção particular: o sujeito não é o indivíduo, no sentido de uma
unidade, mas um sujeito dividido entre consciente e inconsciente. Dessa forma, haveria
um sujeito do enunciado, identificado como sujeito do significado, aquele que está cons-
ciente do que diz; e o sujeito da enunciação, identificado como sujeito do significante,
aquele que está para além do que se diz (LACAN, 1964/2008). O discurso, portanto, não
é mera comunicação, pois nas brechas daquilo que foi enunciado está a enunciação, a
presença do sujeito do inconsciente, aquele que se manifesta por um lapso, um esque-
cimento, um sonho, um chiste, um sintoma, enfim, uma formação do inconsciente.

O sujeito do inconsciente não se relaciona ao tempo cronológico, mas a um


tempo lógico, um tempo próprio. Uma temporalidade outra, pois é possível fazer de-
correr uma noção de tempo do modo de funcionamento do inconsciente, haja vista a
noção do a posteriori. No entanto, isso implica uma temporalidade não cronológica (re-
ferente à consciência), mas lógica (referente à relação do sujeito do inconsciente com
o Outro). Dessa forma, Lacan não fala em desenvolvimento da criança como Freud,
nem mesmo do bebê, como Klein, mas na emergência do sujeito do inconsciente.

Antes do advento do sujeito do inconsciente, há a emergência de um eu cor-


poral, que se constitui de forma imaginária, mas sobre uma matriz simbólica, como
exposto por Lacan (1949/1998) no artigo O estádio do espelho como formador da
função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. É importante as-
sinalar que esse “eu” presente no título se refere ao pronome francês je e designa o
sujeito do inconsciente.

Já o “eu” corporal de que falamos anteriormente se refere ao pronome fran-


cês moi. Assim, enquanto o sujeito do inconsciente se constitui no simbólico, pela
mediação da linguagem, o eu (moi) se constitui no imaginário, pela mediação da
imagem especular (i(a)). Essa imagem especular oferece uma síntese e se sobrepõe
àquela imagem do corpo fragmentado pelas pulsões parciais.

131
Para explicar o que seria o estádio do espelho, Lacan (1949/1998) nos leva
a imaginar uma cena em que um bebê se encontra diante de um espelho, susten-
tado pela mãe, já que ele ainda não consegue andar nem se manter numa postura
ereta. Ao olhar para a imagem refletida, o bebê se reconhece nela e sua expressão
se enche de júbilo. Se pudesse falar, diria: “Este sou eu!”. O júbilo corresponde à sa-
tisfação narcísica de ter representado um corpo não mais fragmentado, mas unifica-
do. A imagem refletida no espelho, portanto, corresponderia à imagem da mãe – no
sentido da pessoa que exerce a função materna – o que implica dizer que não há a
necessidade de um espelho de fato para que o eu do bebê possa se constituir.

O que é necessário é que um outro possa fornecer a ele a possibilidade de


adentrar o universo da linguagem. Essa entrada no simbólico se efetiva por meio dos
cuidados que são dispensados ao bebê pela mãe à medida que ela interpreta as sen-
sações e o choro dele, inscrevendo marcas em seu psiquismo. O sujeito assume uma
imagem que será o esboço do seu eu (moi). A identificação com a imagem implica
em uma alienação na imagem do outro, “[...]a primeira de uma série de alienações:
ao procurar a si mesmo, o que o indivíduo encontra é a imagem do outro.” (GARCIA-
-ROZA, 2004, p. 215).

Sendo assim, o processo de constituição do sujeito, do ponto de vista laca-


niano, é efeito de duas operações fundamentais: a alienação e a separação. Na alie-
nação, Lacan (1964/2008) distingue dois campos: o campo do Outro e o campo do
ser vivente. O campo do Outro se refere ao campo do simbólico, da linguagem, essa
que já marca o ser vivente antes mesmo de seu nascimento. Mas, mesmo surgindo
imerso em um mundo de linguagem, o ser vivente ainda não adentrou o campo do
simbólico, o que só acontece se ele consentir em se assujeitar ao Outro.

Dito de outra forma, o campo do Outro é o campo do sentido e o campo do


sujeito é o campo do ser. Para que o sujeito possa advir, faz-se necessária uma es-
colha entre o ser e o sentido. Se escolhe o ser, ou seja, se não se aliena no campo do
Outro, o sujeito perde o sentido e não se constitui como sujeito dividido; se escolhe o
sentido, ou seja, se se aliena no campo do Outro, perde o ser, mas se constitui como
sujeito dividido, pois o sujeito só advém no campo do Outro e não de si mesmo. As-
sujeitando-se ao desejo do Outro, a criança se torna um sujeito da linguagem e pode,
quando se instaurar a separação, constituir-se como sujeito desejante.

Na separação, não há mais o embate do sujeito alienado com o Outro da


linguagem, mas com o Outro do desejo. (FINK, 1998). O sujeito é causado pelo desejo
do Outro, se aliena nele e assume a posição de objeto do desejo do Outro. Assim,
se para adentrar a linguagem o sujeito precisa se alienar ao campo do Outro, para
adentrar o desejo ele precisa sair desse lugar de objeto. O Outro da separação não
coincide com o Outro da alienação, porque esse Outro que encarna o desejo não é
completo, é faltoso. Como isso pode ser explicado? A mãe, por mais que tenha uma
grande dedicação ao seu bebê, ela não está completamente disponível para satis-

132
fazê-lo. Qualquer atividade da mãe realizada longe do bebê demarca que ela tem
outros interesses, outros desejos e que o bebê não é o único objeto do seu desejo. A
mãe, portanto, é faltosa.

Fink (1998) esclarece que o Outro da operação de separação é barrado (A), ou


seja, dividido entre consciente e inconsciente, porque nem sempre sabe o que de-
seja, pois o desejo nunca cessa. Ao se deparar com essa falta no Outro, o sujeito, ini-
cialmente, tenta tamponá-la, assumindo o lugar de objeto de desejo do Outro. Mas a
mãe continua a dar provas de que ela não está completa e que seu desejo não é uma
continuação do desejo da criança. O fracasso do bebê em ser o objeto do desejo dela
incita-o a deixar esse lugar e fazer a escolha pelo desejo. Para que a separação se
concretize e haja o advento do sujeito é preciso que “[...]o Outro materno [demonstre]
que é um sujeito desejante (e, dessa forma, também faltante e alienado), que tam-
bém se sujeitou à ação da divisão da linguagem [...].” (FINK, 1998, p. 76). Sujeito que
não se encontra mais na posição de objeto do desejo do Outro, mas sujeito dese-
jante, incompleto e que, por isso mesmo, se dirige ao Outro para tamponar sua falta.

Quando aludimos que a mãe deseja algo além do bebê, identificamos a sua
condição faltosa. É por seguir desejando, por olhar para outras direções, que a mãe
introduz um terceiro significante na sua relação com o bebê.

FONTE: COUTO, D. P. Freud, Klein, Lacan e a constituição do sujeito. Psicol. pesq., Juiz de
Fora, v. 11, n. 1, p. 2-10. ISSN 1982-1247, 2017. p. 6-7. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-12472017000100004. Acesso em: 2 out. 2021.

Diante disso, a perspectiva de subjetivação se transforma a partir da concepção


tomada no ceio da teoria psicanalítica, principalmente na forma em que o sujeito se
aliena do outro ou se assujeita e esse outro, ou até mesmo como é incorporada ou
renegada a teoria do édipo, uma vez que não é toda corrente psicanalítica que defende
da mesma forma a entrada e saída ou até mesmo se o mito edípico existe.

FIGURA 6 – TERRA DE EGOS

FONTE: <https://shutr.bz/3jeMZ53>. Acesso em: 2 out. 2021.

133
Na teoria do ego, a defesa de um ego forte é o que prepararia o sujeito para
lidar com as questões mais densas da vida, ou seja, os aspectos subjetivos partiriam
de um treinamento, o que foge de diferentes perspectivas que defendem o além do
princípio do prazer, do real e do gozo defendida por Freud.

ATENÇÃO
A psicologia do ego criada por Hartmann, Kris e Loewenstein teve uma
grande contribuição também na temática da sublimação, incorporando
aspectos artísticos na psicanálise e sendo considerada por alguns auto-
res como a psicologia da arte.

Com isso, podemos perceber que os impasses são inúmeros dentro da psicanáli-
se, mas a psicanálise e seus conceitos são maiores que os próprios psicanalistas, o con-
ceito de subjetividade, por exemplo, é tomado como um camaleão, tendo divergências e
convergências estruturais entre os teóricos da área.

3 OS DIFERENTES TEÓRICOS DA PSICANÁLISE PÓS


FREUD
Freud, em 1914, em seu texto A história do movimento psicanalítico, inicia afir-
mando que, enquanto fundador da psicanálise, passou cerca de dez anos defendendo
sozinho o interesse por ela, apenas posteriormente, especialmente após a publicação
de A interpretação dos sonhos em 1900, a obra Freudiana começou a despertar interes-
se da comunidade científica.

INTERESSANTE
Na atualidade, o livro A interpretação dos sonhos, publicado em 1900,
é um dos livros mais traduzidos do precursor da psicanálise. Após
anos defendendo a psicanálise de forma solitária, Freud fundou o
que ficou chamado como a sociedade das quartas-feiras. Em
1902, na sala de recepção do consultório de Sigmund Freud, ele
e outros interessados em psicanálise, fiéis seguidores da teoria
psicanalítica, se reuniam às quartas para estudar a teoria e discutir
seus avanços e questões clínicas, temos, desta forma, a primeira
sociedade psicanalítica. Segundo Oliveira (2016), eles se reuniam
na Berggasse 19, semanalmente, após as 21 horas, de modo que
cada um deveria apresentar considerações teóricas, artísticas,
literárias que pudessem contribuir para a psicanálise. Todos eram
obrigados a falar e os debates eram por vezes violentos, inclusive
Freud precisava intervir.

134
A história da psicanálise pós-freudiana foi diretamente influenciada pelos di-
versos rompimentos e divergências dentro da sociedade psicanalítica de Viena, ou seja,
a primeira escola de psicanálise formada pelos primeiros seguidores do pensamento
freudiano. Ao questionar os fundamentos teóricos estabelecidos pelo “pai da psicaná-
lise” e propor novos meios de olhar para o inconsciente, além de novas técnicas para
operar com ele, os seguidores percebiam a resistência de Freud, pois ele não flexibili-
zava suas ideias originais, por isso começaram a acontecer dissidências no movimento
psicanalítico freudiano.

Cabe destacar que a hipótese defendida por Freud em toda sua obra é que a
etiologia das neuroses era de origem sexual, hipótese essa defendida até a sua mor-
te, de maneira que ele avançou em suas obras e construiu saberes importantíssimos
sobre a sexualidade infantil, zonas erógenas, bissexualidade psíquica e outras impor-
tantes questões que ainda hoje têm grande relevância social e clínica.

FIGURA 7 – FREUD E A TEORIA SEXUAL

FONTE: <https://shutr.bz/3FWWXlp>. Acesso em: 2 out. 2021.

Retomando o tempo histórico, a psicanálise surgiu em Viena, no séc. XX, em


uma sociedade marcada por questões, como uma forte repressão sexual feminina,
machismo e o pensamento cultural efervescente. Todos esses aspectos compuseram
o cenário de influências da obra freudiana.

Além dos colaboradores de Viena, Freud trocou cartas muito importantes


com o Fliess, bem como com outros intelectuais de sua época, por isso sua teoria e
técnica pode ter contribuições das mais diversas. Posteriormente, também alcançou
interessados até mesmo no outro lado do oceano, como no caso da apresentação das
conferências que deram origem ao texto das cinco lições de psicanálise.

135
FIGURA 8 – FREUD E INTERLOCUÇÕES

FONTE: <https://shutr.bz/3jeSOj7>. Acesso em: 2 out. 2021.

As reuniões da sociedade das quartas-feiras, formadas inicialmente por ho-


mens, não era exclusiva para médicos. Desde o início da psicanálise, Freud compreen-
dia a importância de o saber psicanalítico transitar em outros espaços e beber de outras
fontes: da mitologia, literatura, música, das artes no geral, entre outras manifestações
humanas.

FIGURA 9 – INTERDISCIPLINARIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/2Z3T9OE>. Acesso em: 2 out. 2021.

Segundo Zacharewicz e Formigoni (2015, p. 309):

O grupo pioneiro não era formado somente por médicos, mas tam-
bém por educadores e intelectuais da época, contando com um mú-
sico e também com escritores. Participavam das “noites psicológicas
de quarta-feira” Otto Rank, responsável pela redação das atas, Alfred
Adler, Max Graf, pai do pequeno Hans, entre outros.

136
Já nessas reuniões, em suas atas registradas, é possível perceber questões
envolvidas na elaboração de algumas noções ou conceitos próprios à psicanálise,
bem como o surgimento de questões importantes e válidas ainda hoje.

Cada um dos membros, assim como os psicanalistas pós-freudianos, contribuiu


para aprofundar o debate sobre o objeto de estudo da psicanálise, as técnicas psica-
nalíticas diversas, sua fundamentação teórica e aspectos pertinentes e/ou divergentes
acerca da formação do psicanalista.

Os principais psicanalistas pós-freudianos são:

• Carl Gustav Jung: nascido em 26 de julho de 1875; morte: 6 de junho de 1961.


• Sándor Ferenczi: nascido em 16 de julho de 1873; morte: 22 de maio de 1933.
• Jacques Marie Émile Lacan: nascido em 13 de abril de 1901; morte: 9 de setembro
de 1981.
• Wilfred Ruprecht Bion: nascido em de setembro de 1897; morte: 28 de agosto de
1979.
• Melanie Klein: nascida em 30 de março de 1882; morte: 22 de setembro de 1960.
• Alfred Adler: nascido em 7 de fevereiro de 1870; morte: 28 de maio de 1937.
• Alois Alzheimer: nascido em 14 de junho de 1864; morte em 19 de dezembro de 1915.
• William James: nascido em1 de janeiro de 1842; morte: 26 de agosto de 1910.
• Erik Erikson: nascido em 15 de junho de 1902; morte: 12 de maio de 1994.
• Donald Woods Winnicott: nascido em 7 de abril de 1896; morte: 28 de janeiro, 1971.
• André Green: nascido em 2 de março de 1927; morte: 22 de janeiro de 2012.

IMPORTANTE
No Brasil, a psicanálise chegou por intermédio de Durval Bellegar-
de Marcondes e Francisco Franco da Rocha, da Sociedade Brasi-
leira de Psicanálise – a primeira da América Latina, que renasceu
como Grupo Psicanalítico de São Paulo, em junho de 1944 –, além
das importantes psicanalistas Virgínia Bicudo e Lélia Gonzalez, que
fizeram com que seus movimentos e conhecimentos reverberas-
sem até a contemporaneidade.

4 OS PROCESSOS SUBJETIVOS NAS DIFERENTES


VERTENTES DA PSICANÁLISE
Conforme já apresentamos, a psicanálise é muito ampla, rica em teoria e múl-
tipla na quantidade de teóricos. Sendo assim, as apropriações são multifacetadas,
fazendo com que as vertentes dos processos subjetivos sejam compreendidas de
formas diferentes.

137
Inicialmente, é importante destacar que Freud compreende o processo de
construção da subjetividade por meio do mito edípico, em que o sujeito se constitui
pelas dimensões do inconsciente, atravessado pela sexualidade, pelas questões sociais,
familiares e culturais.

Essa clivagem do sujeito às marcas do édipo é a sua subjetividade, sua lente


de ler e significar o mundo. Lacan, a partir da teoria freudiana, avança ao condensar
esses entendimentos à lógica da estrutura da linguagem, ou seja, o sujeito, ao
subjetivar outro sujeito, elege significantes para operar no decorrer da vida, exemplo:
o abandonado.

FIGURA 10 – SUBJETIVAÇÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3G7AceK>. Acesso em: 2 out. 2021.

Já nas teorias Kleinianas, considera-se que a subjetivação se dá muito cedo,


inclusive, o processo clínico e interventivo é feito com crianças muito novas, sendo uma
teoria pioneira nesse aspecto, uma diferença estrutural em relação a outros autores da
psicanálise.

138
FIGURA 11 – TERAPIA INFANTIL

FONTE: <https://shutr.bz/3n1s8n3>. Acesso em: 2 out. 2021.

Nas teorias da psicologia do ego, a subjetividade ocorre pela construção de


um ego forte que seria capaz de lidar com as adversidades do ambiente, ou seja, o
sujeito seria capaz de lidar com momentos estressores sem tantos danos subjetivos.

No entanto, como um ponto em comum, a psicanálise sempre escuta os efei-


tos sociais e culturais na constituição da subjetividade do sujeito, sem generalizar e
também considerando as marcas do inconsciente, uma vez que esse é o pressuposto
fundante da teoria.

139
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A psicanálise sofreu dispersão geográfica, cultural e social, fazendo com que outros
pressupostos teóricos fossem incorporados em seu bojo.

• Os autores pós-freudianos foram fundamentais para o vigor da psicanálise, mas não


necessariamente mantêm uma convergência teórica entre si.

• A sexualidade foi um dos principais conceitos de divergência entre os teóricos pós-


freudianos.

• O conceito de subjetividade varia de acordo com a escola pós-freudiana e seus


autores.

140
AUTOATIVIDADE
1 Após a morte de Freud e outros eventos, a psicanálise tomou folego pelo mundo,
mas principalmente pelo rigor e importância do trabalho que Freud fez em vida.
Entretanto, ocorreram movimentos que influenciaram diretamente nas diferentes
leituras da psicanálise sobre o globo. A respeito da dispersão influenciadora, assinale
a alternativa CORRETA:

a) ( ) Dispersão geográfica e cultural.


b) ( ) Dispersão religiosa e judaica.
c) ( ) Dispersão linguística e religiosa.
d) ( ) Dispersão política e linguística.

2 A hipótese defendida por Freud em toda sua obra, é que a etiologia das neuroses
era de origem sexual. Essa hipótese foi defendida até a sua morte, de modo que ele
avançou e construiu saberes importantíssimos sobre a sexualidade infantil, zonas
erógenas, bissexualidade psíquica e outras importantes questões que ainda hoje têm
grande relevância social e clínica. Sobre essas ideias, analise as sentenças a seguir:

I- Esta hipótese defendida por Freud permitiu avanços em conceitos como o da


bissexualidade psíquica.
II- Esse conceito fez com que Freud rompesse com grande parte dos psicanalistas de
sua época.
III- Freud abandona essa hipótese em sua última obra.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Considerando quatro principais escolas de psicanálise pós-freudianas, analise as


sentenças e classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Melaine Klein, Jacques Lacan, psicologia do ego por Hartmann, Kris e Loewenstein
e os teóricos britânicos Fairbain e Winnicott.
( ) Wilfred Ruprecht, William James, Erik Erikson.
( ) Bion, Klein, Alzheimer e Winnicott.

141
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Os psicanalistas pós-freudianos contribuíram para aprofundar o debate sobre o objeto


de estudo da psicanálise, as técnicas psicanalíticas diversas, sua fundamentação
teórica e aspectos pertinentes e/ou divergentes acerca da formação do psicanalista.
Disserte sobre os diferentes autores pós-freudianos.

5 A psicanálise é muito ampla, rica em teoria e múltipla na quantidade de teóricos.


Sendo assim, as apropriações são multifacetadas, fazendo com que as vertentes dos
processos subjetivos sejam compreendidas de formas diferentes. Disserte sobre e
subjetivação e a psicanálise.

142
UNIDADE 3 TÓPICO 3 —
OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E
O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DO
TRABALHO DO PSICANALISTA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3, buscaremos em Freud, especificamente na sua obra
intitulada Psicologia das massas e análise do Eu, como ele apresenta a ideia de a psi-
cologia individual ser social, enquanto Lacan aponta que a psicanálise precisa estar à
altura de sua época. Sendo assim, a psicanálise só pode ser pensada dentro da cultura,
dentro de um tempo histórico, desde seu princípio, foi assim com Freud ao escutar as
histéricas e tem sido assim com as demandas LBGTQIA+, questões raciais, desigualda-
des e outras temáticas.

Mas cabe ressaltar que, por mais que a vivência seja inédita, a história é cíclica,
sempre se repete com traços de ineditismo, se repete de outro modo, mas em ter-
mos psicanalíticos, estamos sempre a voltas de um estranho familiar, ou seja, pensar a
subjetividade na contemporaneidade não é tão diferente de pensar a subjetividade em
outras épocas.

Bons estudos!

2 OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E O CONTEXTO


ATUAL DO TRABALHO DO PSICANALISTA
Uma questão muito cara à psicanálise envolve a sexualidade. Se analisarmos
o início da psicanálise e o tempo histórico em que estamos, podemos dizer que
tivemos um grande avanço, ou melhor, grandes mudanças na questão da sexualidade
humana. O livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos escrito
por Freud (1996b) corrobora e tem grande impacto na compreensão epistemológica
e psicanalítica dos sujeitos e suas identidades, principalmente na compreensão do
conceito de pulsão e no manejo singular ao édipo.

No livro citado, Freud abarca a compreensão do sujeito constituído por uma


pulsão sexual que organiza e rearranja modos de satisfação para tal pulsão. Para tanto,
Freud apresenta as fases de desenvolvimento da organização infantil, mostrando a
tonalidade da pulsão como essencialmente autoerótica, com destino e funcionamento
direcionados à busca da satisfação e resposta ao conflito edípico.

143
A principal fonte de prazer sexual infantil é a excitação apropriada de deter-
minadas partes do corpo particularmente excitáveis, além dos órgãos genitais, como
os orifícios da boca, ânus e uretra, além da pele e outras superfícies sensoriais. Como
nesta primeira fase da vida sexual infantil a satisfação é alcançada no próprio corpo,
excluído qualquer objeto estranho, é denominada, segundo o termo introduzido por Ha-
velock Ellis, de autoerotismo. Zonas erógenas denominam-se os lugares do corpo que
proporcionam o prazer sexual. O prazer de chupar o dedo, o gozo da sucção, é um bom
exemplo de tal satisfação autoerótica partida de uma zona erógena (FREUD, 1996b).

IMPORTANTE
Freud sistematiza diversos pontos que convergem para a proble-
mática da orientação sexual (heterossexual, homossexual e bis-
sexual) e, falando sobre, Freud apresenta que não há um caminho
único ou verdades únicas e sustentáveis radicalmente comuns aos
indivíduos, isto desmistifica e empobrece os argumentos que visam
patologizar as vivências sexuais.

Freud (1996b, p. 85), ao se referir à homossexualidade, “esse caráter pode


conservar-se por toda a vida, ou ser temporariamente suspenso, ou ainda constituir um
episódio no caminho para o desenvolvimento normal; e pode até exteriorizar-se pela
primeira vez em época posterior da vida, após um longo período de atividade sexual
normal”. Esses pontos enunciam o quanto as possibilidades de orientação sexual são
paradoxais e plurais, mesmo Freud querendo demonstrar parâmetros comuns, no
decorrer do texto ele aponta estas percepções.

Respondendo ao título da discussão, a partir da perspectiva psicanalítica,


podemos dizer que Igor era e/ou pode ser gay, as experenciações singulares durante o
édipo deixam registros mnêmicos, e cada sujeito dá vazão à pulsão de forma subjetiva.
O sujeito psicanalítico é aquele que desconhece seu desejo, portanto, Igor ao se
possibilitar outras experiências e com fala deste outro que não entende a identidade
dele, a cena demonstra o sujeito psicanalítico que pulsa entre as divisões edípicas e
suas barragens.

No decorrer do texto, é introduzido por Freud (1996b) dois termos, chamemos


de objeto sexual e alvo sexual. Os dois conceitos nos possibilitam refletir sobre o
investimento pulsional, objeto e alvo sexual. Freud anuncia tipologias e caminhos
para as pulsões. É importante notar que Freud não expõe de forma evidente, mas de
forma subentendida, portanto, neste funcionamento existem representações e, ao
mesmo tempo, demonstra ter caminhos paradoxais que geram (im)possibilidades.
Freud (1996b) propunha que a genitalidade era responsável por produzir a síntese destes
objetos parciais, dirigindo a pulsão a um objeto total, alguém do outro sexo. Em parte, o
significante fálico tem esta função, mas ela nunca ocorre de modo completo.

144
Então, o investimento pulsional por si só depende de uma instância do sujeito
implicada, por intermédio de suas fantasias e representações. O sujeito é composto por
necessidades fundamentais e elas fazem parte do aspecto constitutivo, uma pulsão se-
xual que podemos entender como toda ação de investimento e/ou busca de satisfação.

FIGURA 12 – SEXUAL COMO CONSTITUTIVO

FONTE: <https://shutr.bz/3aO1nN9>. Acesso em: 2 out. 2021.

Contudo, nos Três ensaios [...] (1905) é possível encontramos uma concep-
ção que prioriza a via do exercício pulsional e não apenas as identificações edípicas.
Freud, ao se referir ao objeto e alvo, relata instâncias da sexualidade humana, e apa-
rentemente desconsidera o investimento realizado pelo próprio sujeito em suas refe-
rências corpóreas e fantasmática, que são diretrizes básicas e tecem o caminho para o
exercício e enredo singular para o sujeito de objeto e alvo. Por exemplo, a experiencia-
ção do sujeito perante o feminino e masculino também é apresentado com dificuldade
pelo autor, os conceitos de passivo e ativo são questionáveis e definem a constituição
bissexual humana.

Freud apresenta duas possibilidades de pulsão, a passiva e a ativa, mas referin-


do-se às modalidades de vazão pulsional, homens e mulheres não são definidos pela
pulsão, porém ambos podem "funcionar" dentro destas possibilidades. Freud (1996b)
aponta que a busca pela satisfação pulsional que a mobiliza só pode ter o caráter de
atividade. Mesmo quando se goza da posição passiva (ao se fazer de objeto para um
Outro), trata-se de uma passividade ativamente produzida (FREUD, 1996b).

Ao demonstrar os conceitos da pulsão, Freud enuncia o ponto de partida,


uma energia disposta e constituinte universal aos sujeitos (bissexualidade), o masculino
e o feminino, ou o passivo e o ativo, são formas de destino final das pulsões.

145
O Caso Dora e os Três ensaios [...] (1905) têm grande importância para esta
compreensão, porque no decorrer do Caso Dora, e quando Freud apresenta os aspectos
constituintes da homossexualidade, da sexualidade infantil e zonas erógenas, ele tem a
percepção de uma validade universal dos sujeitos, por meio da bissexualidade como
fundamento orgânico que gera desdobramentos sintomáticos devido à castração.

ATENÇÃO
A bissexualidade psíquica é um substrato em que se processa o
édipo, a identificação e castração, além dos modos de satisfação das
fases erógenas. A bissexualidade, diz Freud (1923 apud DELOUYA,
2003, p. 208), "ofusca e embaralha nossa visão sobre a natureza das
escolhas objetais primárias". Os termos utilizados por Freud são subs-
tancialmente consistentes e instigam pensar a sexualidade humana, as
vivências sexuais e representações, questionando um parâmetro da
normalidade, uma vez que a bissexualidade psíquica seria a regra e a
sexualidade seria perversa, polimorfa (FREUD, 1996b).

O aspecto da perversão é usado por Freud na compreensão da recusa de


reconhecer a falta no outro, tem como efeito a experiência sexual prematura, que pode
ter como desdobramento a perversão ou a neurose, servindo na bissexualidade de
todos os seres humanos, dando origem a um verdadeiro estatuto.

Ao final dos Três ensaios [...] (1905), Freud afirma que um dos resultados
constitutivos a partir da perversão polimorfa da criança funciona em detrimento das
formações reativas, porque se opõem diretamente à realização do desejo e podem
ser evidenciadas, sobretudo, na neurose obsessiva.

Neste livro, com a análise sistêmica é possível perceber que não são concre-
tos os tipos ideais para as pulsões, e Freud subverte a ordem de protótipos de identi-
dade ideal. Por mais que apresente os mecanismos estruturantes, a própria construção
edípica demonstrada por Freud é uma tentativa de desvendar os enigmas que visam
sanar a diferença sexual, mas nunca consegue, o sintoma apenas reduz a combustão
da pulsão, ou seja, a sexualidade humana não é meramente um aspecto de reprodução
ou de constructo relacional, ela está a serviço e faz suplência aos sentidos singulares
dos sujeitos.

146
ATENÇÃO
As marcações binárias não são suficientes para a psicanálise,
isto é, o aspecto pulsional e o edípico, ser portador ou não do
falo não caracteriza contingência principal nas escolhas para o
posicionamento singular do sujeito, não é reducionista a ponto
de constituir grupos para portadores do falo e para os castrados
(ou vice-versa).

Gênero não é correspondente ao órgão sexual, a presença ou falta de pênis e


estas perspectivas são entregues às crianças desde muito cedo, como azul ou rosa,
carrinho ou boneca, mas este efeito é ínfimo no funcionamento pulsional. “Não é fácil
perceber por que qualquer instinto humano profundo deva necessitar ser reforçado pela
lei. Não há lei que ordene aos homens comer e beber ou os proíba de colocar as mãos
no fogo” (FREUD, 1996c, p. 129).

FIGURA 13 – FREUD

FONTE: <https://shutr.bz/3DVJJnh>. Acesso em: 2 out. 2021.

Freud, em seu texto Sobre as teorias sexuais das crianças, de 1908, concerne o
termo "Geschlecht" em alemão, que tem dupla significação, ou seja, pode ser entendido
como gênero e como sexo. O paradoxo do conceito amplia nossa compreensão, porque
nele existe a esfera da psicanálise, que não pretende legislar a forma de gozo ideal para
os sujeitos, que extrapola a compreensão única do fenômeno, e também a noção de
sexo e gênero em relação à posição individual e subjetiva que permite a cada um ou
cada uma desvendar a realidade do caminho pulsional, que vai além da compreensão
científica e biologicista do que é dito de sexo e gênero, porque a instância individual
é criativa e fura os planos de regulamentação.

147
Freud acrescenta um eixo estrutural na compreensão da sexualidade humana,
isto é, a diferenciação da sexualidade animal e sexualidade humana. Ele propõe a
desconstrução dos determinismos biológicos e/ou ambientais para definir a
satisfação sexual humana, embora possa ser influenciada pela expressão biológica e
pelas experiências subjetivas.

Em nota acrescentada em 1915, discutindo a bissexualidade psíquica, Freud não


desconsidera o papel da biologia, mas afirma que os fatores que influenciam a escolha
sexual são em parte constitucionais e em parte acidentais (FREUD, 1996b). Dizer que
há algo de acidental no posicionamento do sujeito frente à diferença sexual aponta o
caráter arbitrário em que toda a subjetividade se funda.

Ao escutar as histéricas, Freud escutava também as impossibilidades de satis-


fação existentes naquela época impregnada por uma moral da civilização. Na atualida-
de, passamos por revoluções feministas, pela possibilidade do uso de anticoncepcionais
e pela elevação da pauta sobre gênero e sexualidade.

FIGURA 14 – SEXUALIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/3FUPe7n>. Acesso em: 2 out. 2021.

No entanto, mediante essa situação, o que se percebeu não foram avanços


radicais que romperam com o machismo e com o moralismo, muito menos impediram
ou construíram outras e novas formas de sofrer.

Sobre a subjetividade contemporânea, há de se perguntar “quais as novas formas


de sofrer?”. Porque, além dos impasses com o sexual, outras questões se tornaram
presentes, como as influências das mídias sociais nas tendências de comportamento e
pensamento, o abuso de substância psicoativa, a baixa possibilidade de tempo ocioso e
o crescimento da demanda de produção por parte das pessoas.

148
FIGURA 15 – TEMPOS CONTEMPORÂNEOS

FONTE: <https://shutr.bz/3n4x2j1>. Acesso em: 2 out. 2021.

Em cada tempo histórico muda-se o modo de viver, assim muda o modo do


sujeito subjetivar. Com isso, transforma-se a forma de confiar, de sentir, de se relacionar,
de interagir, interpretar, entre outras dimensões.

FIGURA 16 – SUJEITOS

FONTE: <https://shutr.bz/3lSAzBE>. Acesso em: 2 out. 2021.

O trabalho do psicanalista contemporâneo é questionar de que modo esses


sujeitos têm se subjetivado? Quais os efeitos dessa cultura, desse tempo histórico, na
saúde mental dos sujeitos? Assim como Freud fez no início de seus trabalhos.

Diante disso, podemos considerar que o processo de subjetivação ocorre de


maneira constante, e cabe aos psicanalistas questionar como os sujeitos têm lidado
com os efeitos da cultura no seu dia a dia.

3 VISÃO CONTEMPORÂNEA DA PSICANÁLISE


A psicanálise, como já mencionamos, é uma práxis, uma teoria que se faz por
meio de uma prática, isto é, a escuta. Na contemporaneidade, a psicanálise tem to-
mado força justamente por ir contracorrente, pois em uma sociedade medicamentosa,
em que há tanta pressa, soluções milagrosas e pouca escuta, a psicanálise vem para
subverter essa ordem.

149
Como apresentado nos tópicos anteriores, os efeitos da cultura, da cibercultura
e da sociedade do consumo esgotam mentalmente a sociedade, apressando a popula-
ção de modo que as relações se tornam automatizadas, as conversas como “olá, tudo
bem?” são conversas rápidas que não passam de três segundos, e se a resposta for
diferente de “tudo!”, talvez o enunciador nem ouça.

FIGURA 17 – OUVIR

FONTE: <https://shutr.bz/3aLDWnt>. Acesso em: 2 out. 2021.

A psicanálise tem sido, então, a possibilidade de colocar um farol para os afetos,


desautomatizar, dar espaço para as faltas, os restos, em termos psicanalíticos, para o
real, para a castração, sem fazer disso necessariamente algo que finja ser uma resolução.

De acordo Giovannetti (2003, p. 5):

Nós, psicanalistas, temos alguma experiência em trabalhar com a


provisoreidade dos conceitos, com o aqui e o agora, em que nem o
aqui é necessariamente o lugar onde estamos nem o agora é o tempo
marcado pelo calendário. Portanto, é mais do que hora de sairmos de
nossos consultórios e levarmos um pouco da experiência aí adqui-
rida para o mundo de fora. Não para diagnosticá-lo, nem tampouco
tratá-lo. Mas para tentarmos pensá-lo. Juntamente com os demais
ramos das humanidades. Pois nunca ficou tão evidente quanto agora
a estranheza do homem e do mundo.

Portanto, a psicanálise tem muito a colaborar com a cultura e com a


contemporaneidade com seu trabalho clínico e social, uma vez que é por meio da escuta
que as subjetividades e nosso tempo podem ser ouvidos.

150
4 ATUAÇÕES DO PSICANALISTA NO CONTEXTO CLÍNICO
E SOCIAL
O campo de atuação dos psicanalistas no contexto social e clínico é indissoci-
ável, uma vez que a clínica é uma crítica social feita de outro modo, ou em palavras
freudianas, a psicologia individual é social.

Quando um sujeito procura um atendimento psicológico, uma análise, ele está


se queixando de algum sofrimento também causado pelos impasses sociais, afinal, es-
sas dimensões são inseparáveis. Como aponta Lacan, o Eu e o outro é transindividual,
ou seja, a cultura e o Eu estão sempre coexistindo.

FIGURA 18 – FITA DE MOEBIUS

FONTE: <https://shutr.bz/3DPt2K2>. Acesso em: 2 out. 2021.

Como apresentado na imagem anterior, Lacan usa a fita de Moebius para


exemplificar que o dentro e o fora se atravessam, ou seja, a dimensão social e a indi-
vidual. Por isso, o trabalho do psicanalista não pode ser fragmentado em um aparato
apenas, seja clínico ou social, ambos têm que conversar.

Entretanto, há uma tipificação para uma psicanálise implicada que, de acordo


com Dupim e Besset (2014, 1158-1159):

A discussão sobre a psicanálise aplicada tem interessado diversos


autores. Observam-se cada vez mais demandas que convocam a
psicanálise a dialogar com outros campos de saber. Diversos são os
relatos da experiência de profissionais que atuam orientados pelos
princípios psicanalíticos em hospitais, escolas, nas mais diversas
instituições, da saúde mental a instituições sociais ou mesmo
jurídicas (DUPIM; ESPINOZA; BESSET, 2011; GUERRA, 2011; COSTA,
2011; ALBERTI, 2011; VILHENA; ROSA, 2011; MILLER, 2004). [...] Se
como nos ensina Brousse (2003), o inconsciente é a política, e ser
analista é dar crédito ao inconsciente, o analista é responsável pela
presença do discurso analítico no laço social. A política da psicanálise
não é alheia às transformações da cultura, uma vez que o analista-

151
cidadão se aproxima das questões referentes a polis marcando sua
posição ética. Assim, a psicanálise é cada vez mais convocada a atuar
nos mais diversos campos, fora dos limites dos enquadres clássicos
e das práticas standard. Segundo Vilhena e Rosa (2012, p. 109), hoje
em dia a psicanálise engendra diálogos com diferentes campos de
saber e em diferentes espaços muito além do consultório particular.
Tal fato, que se mostra uma tendência inexorável, tem em Freud seu
mais sólido respaldo, pois ele já afirmava que a psicanálise possui
uma essência que não se perde, ainda que o trabalho analítico ocorra
em outras esferas que não o setting convencional.

Por muito tempo, a psicanálise foi pensada apenas no espaço do consultório,


no setting convencional, com cadeira e divã. Na atualidade, discussões têm avançado
sobre o fazer psicanalítico, apontando que ele não depende dessas instrumentalidades,
pelo contrário, mas da transferência, do desejo e da escuta.

FIGURA 19 – SETTING TRADICIONAL

FONTE: <https://shutr.bz/3BUuryj. Acesso em: 2 out. 2021.

Atualmente, existem experiências de atendimentos psicanalíticos em praças


públicas, por exemplo. Com a pandemia, os atendimentos por chamada de áudio de
vídeo também estão fortemente presentes, mudando, assim, toda a configuração
tradicional.

Para Dupim e Besset (2014, 1159-1160):

Embora as questões referentes à aplicabilidade da psicanálise


sejam alvo de discussões frequentes na atualidade (Miller, 2004), a
relevância desse tema já se mostrava cara a Freud: “as aplicações da
psicanálise são também uma confirmação dela” (Freud, 1932/2006,
p. 138). Consideramos que o mote das discussões outrora norteadas
pela questão da legitimidade da prática analítica deslocou-se para os

152
diferentes modos de operar das quais lança mão a psicanálise. Não
se trata mais de julgar se numa prática trata-se ou não do exercício
da psicanálise, mas sim, de se interrogar sobre os princípios que a
orientam. [...] Ao abordarmos a ação da psicanálise em sua relação
com outros saberes, torna-se importante especificar os princípios
que norteiam sua prática. Ferrari (2004) indica que a psicanálise
trabalha em direção contrária a generalização e vitimização do
sujeito, considerando caso a caso e buscando a responsabilização
subjetiva. A particularidade da proposta psicanalítica implica em
contemplar o sujeito a partir do que lhe é particular, separando-o
das classificações universalizantes (Miller & Milner, 2006). Nessa
perspectiva, o psicanalista atua levando em consideração isso que
sobra, que fica como resto e que tem como pressuposto a própria
impossibilidade constituinte do sujeito. Esse “não-pode, que marca a
falta, que funda o sujeito como desejante” (Besset, 1997, p. 69).

A respeito do que faz a clínica social, Araujo (2019, p. 305-308) responde:

Essa caminhada para pensar a clínica social a partir de sua multiplicidade,


o pensamento de Deleuze nos convida a ampliar o olhar e pensar essa articulação
da prática clínica pelo viés da resistência. A primeira pergunta que nos atravessa
nesse pesquisar é: o que faz um(a) profissional atender numa proposta “social”?
Assistencialismo? Divulgação de seu trabalho? Não acreditamos que exista apenas
uma resposta a essa pergunta, nem que ela seja simples, mas acreditamos que
algumas das versões possíveis para essa resposta envolvem a dimensão de
encontros e convocações a subjetividade do profissional. Não uma subjetividade
endurecida, mas uma subjetividade fluxo, que circula, vagueia, reage ao contexto de
um lugar e um momento, e por isso também passa inevitavelmente pelos espaços de
criação que escapam à norma, ao instituído, à não reatividade, ao esvaziamento da
vida, à redução da vida à sobrevivência biológica, ao absoluto niilismo, como Pelbart
(2016, p. 35) menciona:

Uma vida [ênfase adicionada], tal como Deleuze a concebe, é a


vida como virtualidade, diferença, invenção de formas, potên-
cia impessoal, beatitude. Vida nua [ênfase adicionada], contra-
riamente, do modo como Agamben a teorizou, é a vida reduzi-
da a seu estado de mera atualidade, indiferença, disformidade,
impotência, banalidade biológica.

O atendimento clínico social também existe sob a forma de instituições que


se propõe a tal prática. Em muitos casos são instituições formadoras em psicologia
clínica, universidades e pós-graduações que precisam oferecer a seus alunos pes-
soas que irão constituir o “objeto” base para o aprendizado de um fazer clínico. No
entanto, de forma paralela, pessoa a pessoa, experiência a experiência, essa forma
de atendimento vai sendo articulada fora desses estabelecimentos. Ela aparece em
brechas de histórias que são contadas entre parceiros profissionais, em redes invi-
síveis, fazendo surgir possibilidades, onde antes não existiam, por meio da sensibili-

153
zação diante de histórias. Diante do esgotamento niilista encontram-se as pessoas
a serem atendidas, mas também os articuladores dos encontros e os profissionais,
o cuidado de si e o cuidado do outro. A movimentos de pessoas em direção a outras
pessoas com impactos que só podem ser seguidos, cartografados, uma dimensão
experiencial e política de um fazer.

Um exemplo dessas articulações aconteceu recentemente, fim de 2016 e


início de 2017. Com a crise financeira do Estado do Rio de Janeiro muitos servidores
deixaram de receber seus salários de forma regular, previsível, capaz de sustentar
um planejamento orçamentário. Situação improvável até pouco tempo antes, onde
ter um emprego público era sinônimo de estabilidade e tranquilidade. Diante do im-
provável e de uma crise jamais vista no estado, o funcionalismo público estadual
virou protagonista de notícias diárias. As histórias de sofrimento pelo atraso de dois,
três meses seguidos de salários causou crise e rupturas em muitas vidas. Muitos
servidores estaduais haviam contraído dívidas, vendido bens, perdido imóveis e a
capacidade de se alimentar, comprar remédios, pagar seus planos de saúde. Cuida-
dos básicos com a vida haviam sido comprometidos. A situação se agravara ainda
mais em alguns casos, começaram a ser noticiados servidores com sequelas deri-
vadas de situações cardiológicas e circulatórias provocadas por intenso stress, além
alguns suicídios associados ao acentuado sofrimento provocado pela crise. Essas
situações improváveis anos atrás, compartilhadas diariamente nos noticiários, pro-
vocaram reações em muitos psicólogos clínicos. Um movimento, iniciado nas redes
sociais, convidava psicólogos clínicos a atenderem de forma social, ou gratuita, ser-
vidores do estado que estavam em sofrimento diante do não pagamento de salários.
Surgiram muitas vagas para atendimento psicológico gratuito ou a baixo custo em
todo o estado para esses servidores. Vagas que não existiam, que não foram abertas
por instituições que ofereciam esse serviço, mas através da articulação de indivídu-
os, psicólogos clínicos que se sentiram convocados a agir.

Esse movimento/fluxo da clínica nessa situação não deve ser lido de forma
simplificada, pois nada tem de único e vale sempre refletir sobre o que isso fala da
psicologia, escapando à ideia simplista da solidariedade. Situações, especialmen-
te as coletivas que envolvem intenso sofrimento, costumam ser noticiadas convo-
cando a psicologia como saber e prática. Desastres naturais (como deslizamentos,
enchentes) e outros provocados pelo homem (desastres com vítimas de armas de
fogo, atiradores, desabamentos de construções e barragens...) mobilizam psicólogos
que se propõem a atender de forma social ou mesmo voluntária, indivíduos e grupos.
Mais que um conjunto de pessoas que se sensibilizam diante do sofrimento huma-
no, os recursos que os profissionais de psicologia disponibilizam são também, em
sua essência, recursos políticos. Falam de uma postura e forma de ação no mundo
que podemos considerar movimentos de resistência. Tornam a clínica e a psicologia
visíveis diante da sociedade como um fazer essencial quando se trata de sofrimento
psíquico e cuidado.

154
A reação diante da impossibilidade ultrapassa o acolhimento imediato, arti-
culando junto a um conjunto de outras pessoas e outros profissionais a criação de
novos possíveis. O trabalho do clínico jamais escapa dessa articulação, quer seja
num consultório privado ou num espaço compartilhado, numa clínica ampliada, uma
profunda reflexão sobre como situações se sustentam. Lidar com os impossíveis,
fazer surgir daí articulações criativas, diante do que está interrompido, capturado
pelo universo da impossibilidade está no fundamento do fazer clínico (PRESTRELO;
ARAUJO; MORAES; MARQUES, 2016).

Seguindo esse fluxo, que se inicia na sensibilização do psicólogo clínico diante


do sofrimento alheio e dos espaços criados para lidar com essa dimensão da dor de
forma compartilhada, podemos dar mais um passo nessa contextualização. Se a clí-
nica, e sua atuação ainda que individual possui uma dimensão social, essa dimensão
social também dá contornos à psicologia clínica como explorado de forma mais apro-
fundada por Foucault (1997) em “História da Loucura”, onde conclui que a psicologia
nunca possuiria a verdade sobre a loucura, já que era a loucura que detinha a verdade
sobre a psicologia. Se a psicologia se constitui como força político social, ainda que
em sua dimensão mais íntima de contato com o ser humano, esse contato também dá
contornos ao que chamamos de clínica e suas muitas peculiaridades.

FONTE: ARAUJO, E. S. A “clínica social” em psicologia e articulações que sustentam esse fazer: uma
reflexão acerca do cenário brasileiro. Psicol. Conoc. Soc., Montevideo, v. 9, n. 2, p. 298-317, 2019. p.
305-308. Disponível em: http://dx.doi.org/10.26864/pcs.v9.n2.12. Acesso em: 2 out. 2021.

Podemos concluir que o trabalho clínico possui um caráter social, pois essas
esferas são intrínsecas, indissociáveis e complementares. O que se escuta na
clínica e se percebe a respeito das questões de dimensões sociais são fatores que se
esbarram, e os trabalhos são feitos, portanto, de forma complementar.

155
LEITURA
COMPLEMENTAR
A PSICANÁLISE DO SUJEITO DESBUSSOLADO

Jorge Forbes

“O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus
próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante
do nariz”.

I STANDARDS E PRINCÍPIOS

A prática lacaniana não tem standards, mas tem princípios. É o que afirma o
tema central deste IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Há controvérsias
quanto ao que seja um princípio. Restrinjo-me à noção que prepondera: princípio é algo
que engendra, que vem antes, a cabeça primeira. Na etimologia, tem a raiz de caput,
cabeça Standard, por sua vez – um anglicismo para o que nomeamos, em português,
padrão – é aquilo que se adquire da experiência. O princípio antecede a experiência,
enquanto o standard é dela fruto. É fato que alguns standards podem, com sua
consagração, acabar por ter função de princípio, no que antecedem e orientam novas
experiências.

II NOVO HOMEM. A MUDANÇA CONSEQÜENTE

Parto do tema do Congresso para relatar o que me cabe desenvolver: “A Psica-


nálise do Homem Desbussolado – As reações ao futuro e o seu tratamento”. Ao escolher
esse título, chamo a atenção a uma transformação do laço social, hoje, que exige uma
mudança na forma de incidência do ato analítico. Mudança que só podemos pensar por
que diferenciamos princípios de standards. Sem essa distinção, a psicanálise arriscaria
deixar de existir, engessada em standards inaptos ao tratamento das novas formas do
laço. Com a expressão “homem desbussolado”, refiro-me ao habitante de uma nova
era: globalização, pós-modernidade – ainda nenhum termo é suficientemente bom para
nomeá-la, sempre causando polêmicas aqui – uma nova era, dizia, diferente da anterior
por não ser prioritariamente “pai-orientada”. O laço social na era industrial, na moder-
nidade, era francamente orientado por um eixo vertical. As pessoas se juntavam “em
nome de”, “em torno a”. A família, a empresa, a nação eram estruturas triangulares, ou
piramidais, com um ápice ideal e aglutinador. Tínhamos na família o pátrio poder; na
empresa, a carreira de office-boy a diretor; na nação, o sentimento de Pátria. O pai - que
tinha as chaves do saber seguro, e dava a direção - ocupava, ele e seus representantes,

156
o ápice da pirâmide. Lembramos, se ainda é necessário reforçar essa ideia, que, quando
não sabíamos alguma coisa, éramos convidados a procurar no dicionário, chamado de
quê? “Pai dos burros”.

Pois bem, na globalização, o saber consagrado, desde os iluministas, virou um


genérico, do mesmo modo que fogões e geladeiras brancos são genéricos: uns não têm
mais valor que outros. Um aperto de botão, um clique, um clique no rato, é tudo o que é
necessário para acessar o saber. O homem ficou desbussolado, sem o norte da mão do
pai que, por ter o saber, lhe assegurava o caminho a seguir. Freud teve a genialidade de
propor uma estrutura capaz de esquadrinhar a experiência humana nesse mundo pai-o-
rientado: o complexo de Édipo. Um standard freudiano, não um princípio. Durante quase
cem anos, fomos capazes de entender muita coisa das relações humanas a partir dessa
estrutura, a tal ponto que vários chegaram a pensar que o Édipo fazia parte do homem,
e que fora dele só haveria psicose. Foi Jacques Lacan quem deu o alerta da intensidade
de uma psicanálise além do Édipo. Uma psicanálise capaz de acolher um homem cujo
problema não está mais nas amarras de seu passado, que o impedem de atingir o objeti-
vo pretendido, motivo que levou Freud a chamar a psicanálise de cura da memória. Uma
psicanálise para o homem que não sabe o que fazer, nem escolher, hoje, entre os vários
futuros que lhe são possíveis: sem pai, sem norte, sem bússola.

III QUEIXA, LIBERDADE, ANGÚSTIA

Antes, as pessoas se queixavam por não conseguirem atingir os objetivos que


perseguiam. Hoje, quase ao avesso, as pessoas se queixam ou nem se queixam ainda,
mas se angustiam pelas múltiplas possibilidades que se oferecem. Frente à responsa-
bilidade do querer o que deseja, o homem recua. Ele reage ao futuro incerto, preferindo
seguranças passadas. A época pós-moderna, que chegou a ser tão festejada, de um
sonho de esperança transformou-se num pesadelo de angústia. A pós-modernidade,
para Gilles Lipovetsky, foi um período de curta duração, substituído pela atual hipermo-
dernidade, que ele conceitua. Hipermodernidade quer dizer uma modernidade ilimitada,
extensa a todos os domínios da experiência humana, ancorada em três fatores: na tec-
nologia, na individualidade e na economia. Será que estamos fadados a sermos hiper-
modernos e acompanharmos passivamente as loucas, senão engraçadas, tentativas
localizacionistas do id no mesencéfalo, prenúncio do próximo remédio, possivelmente
o “idiota”?

IV TENDÊNCIA: SEREMOS HIPERMODERNOS?

Não acredito nesse destino, por duas razões: a primeira, porque embora ainda
poucos, podemos notar uma série de pesquisadores estudando e promovendo novas
conceituações deste laço social que exige, para a sua compreensão, uma nova topologia,
a borromeana, na visão de Jacques Lacan. Além do grupo que representamos, na psica-
nálise, acrescentaria pessoas além dela, como o filósofo francês Gilles Lipovetsky, recém
citado; o sociólogo polonês Zygmunt Bauman; o arquiteto americano Ron Pompei; no
Brasil, os juristas Tercio Sampaio Ferraz Junior e Miguel Reale Junior.

157
Enfim, cito alguns nomes só para provocar em cada um a lembrança de outros,
de diversas áreas. Todos, como diria, profissionais do incompleto, que de forma oca-
sional ou provocada, além das especificidades de suas disciplinas, em um verdadeiro
movimento de desespecialização, contribuem reciprocamente, realizando o que Freud
preconizava em sua “questão da análise leiga”, a saber: a compreensão, pelo paciente,
dos fundamentos do tratamento a que se submete. A segunda razão é a forte convicção
de que a essência desejante e incompleta de saber – ou seja, inconsciente - do homem
é um princípio que resistirá a todos os tipos de “bushadas” totalitárias.

V ANGÚSTIA: UM PARÂMETRO

Angústia é o tema do momento. “Sentir o que o sujeito pode suportar de angús-


tia coloca vocês - analistas – o tempo inteiro à prova”, afirma Lacan na abertura de seu
mais recente Seminário estabelecido por Jacques-Alain Miller. A angústia é um parâme-
tro, por excelência, da direção do tratamento. Uma angústia do homem desbussolado
vem sendo maltratada e acomodada em neo-religiosidades e em neo-cientificidades.
Junto às neo-religiões colocaria os neo-universitários que consagram e standardizam
os conceitos, em um renovado mercado de títulos, que lhes confere uma batina respei-
tável para acalmar a suposta e temida amoralidade consequente à queda do pai.

Quanto aos neo-cientistas, empírico-localizacionistas, eles não têm medo do


ridículo, dada a avidez cúmplice de respostas - não importa que sejam absurdas - de
uma população a quem se propagandeia que para tudo nessa vida tem remédio. O psi-
canalista do homem desbussolado, para manter vivos os princípios da psicanálise la-
caniana, deverá mudar sua música, ter novos standards. Pensei em alguns exemplos:

• Se ontem se analisava para se compreender mais, para ir mais fundo, hoje se dirige o
tratamento ao limite do saber: é a necessidade da aposta, na precipitação do tempo.
• Se ontem se fazia análise para obter uma ação garantida, livre de influências fanta-
siosas, hoje nenhuma ação é assegurada em um justo saber, toda ação é arriscada e
inclui a responsabilidade do sujeito.
• Se ontem a psicanálise falava em sofrimento psíquico, o que a levou a ser patroci-
nada por psicólogos que a reduziram a uma das disciplinas de seu currículo, hoje é
necessário separá-la do campo da saúde mental, como tem insistido Jacques-Alain
Miller.
• Se ontem queríamos uma certeza verdadeira, hoje, na segunda clínica de Jacques
Lacan, separamos certeza subjetiva de verdade lógica. Queremos uma certeza con-
vencida.
• Se ontem nos limitávamos em nossa práxis ao espaço cartesiano do consultório, hoje
haverá psicanálise onde houver um analista, e ele é necessário nos mais diversos
locais da experiência humana, muito além das instituições de saúde.

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Existem várias opositoras a este caminho, das estatísticas empíricas às me-
tanálises, dos remédios salvadores - recentemente houve quem propusesse colocar
antidepressivo junto com o flúor na água de São Paulo - aos livros de autoajuda. E daí?
Nada que possa desentusiasmar aqueles que se beneficiaram de um trabalho analítico
e foram formados no tratamento da angústia pela invenção responsável.

VI CONCLUSÃO: PRINCÍPIOS ESTÁVEIS, STANDARDS INCOMPLETOS

Não tenho certeza de que não tenhamos standards. Uma vez que os princípios
estão além dos enunciados, sendo difícil positivá-los, caberia talvez entendermos que
nossos enunciados são, afinal, standards com função de princípios. Porém, são stan-
dards ad hoc, usados a cada decisão analítica. Assim como acontece com os princípios
do direito, na concepção de Tercio Sampaio Ferraz Junior: na decisão jurídica, eles têm
aplicação como topoi, lugares-comuns de uma retórica. Standards. A principal diferença
entre os standards ortodoxos e os nossos está na posição de quem os enuncia: de uma
forma completa, ou de uma forma incompleta. Frente à estabilidade dos nossos prin-
cípios, nossos standards clínicos serão leves, contraditórios, múltiplos, circunstanciais:
sensíveis à singularidade de cada momento da sua aplicação. O analista “escolhe” quais
usar a cada vez, a cada tempo. O analista pode querer o que deseja, não fica no inefável
do que opera na clínica.

Concluo, com Freud, mostrando que o que estamos debatendo aqui, os princípios
analíticos, não é novo. Em “Inibições, Sintomas e Angústia”, em 1926, assim aconselhava
Sigmund Freud: “Aceitemos humildemente o desprezo com que nos olham, sobranceiros,
do ponto de observação de suas necessidades superiores. Mas visto que nós não podemos
também renunciar a nosso orgulho narcísico, ficaremos reconfortados com o pensamento
de que tais ‘Manuais para a Vida’ ficam logo desatualizados, de que é precisamente nosso
trabalho míope, tacanho e insignificante que os obriga a aparecer em novas edições, e de
que até mesmo os mais atualizados deles nada mais são do que tentativas para encon-
trar um substituto para o antigo, útil e todo-suficiente catecismo da Igreja. Somente uma
pesquisa paciente e perseverante, na qual tudo esteja subordinado à única exigência da
certeza, poderá gradativamente ocasionar uma transformação. O viajante surpreendido
pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de
tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante do nariz”.

Comandatuba, 2 de agosto de 2004.

FONTE: Adaptado de <http://www.jorgeforbes.com.br/index.php?id=115>. Acesso em: 28 set. 2021.

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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• As relações clínicas e políticas são indissociáveis, uma vez que as condições de


subjetivação, de sofrimento e condições de viver estão entrelaçados.

• O trabalho clínico e político é defendido na psicanálise desde o princípio por Freud,


ao dizer que o trabalho individual é social.

• O que estabelece o trabalho clínico não são as quatro paredes ou o setting tradicio-
nal, com divã, tapete, cadeiras etc., mas sim a transferência da relação paciente e
analisando, desejo e inconsciente.

• A psicanálise, mesmo que seja considerada contemporânea, é indissociável dos


pressupostos freudianos.

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AUTOATIVIDADE
1 Quando um sujeito procura um atendimento psicológico, uma análise, ele está se
queixando de algum sofrimento que também é causado pelos impasses sociais,
pois essas dimensões são inseparáveis. Marque o que é CORRETO afirmar sobre o
entrelace do coletivo e o individual a partir do conceito lacaniano:

a) ( ) Como aponta Lacan, o Eu e o outro é transindividual, ou seja, a cultura e o Eu


estão sempre coexistindo.
b) ( ) O sujeito é bipartite, sempre está em uma escolha individual ou coletiva.
c) ( ) O sujeito é multifacetado, está para além das esferas do coletivo e individual,
incorpora também os aspectos espirituais.
d) ( ) Lacan foi um autor psicanalista que não considerou a esfera social.

2 Com base nas definições sobre a sexualidade apontadas por Freud na teoria
psicanalítica, analise as sentenças a seguir:

I- Freud acrescenta um eixo estrutural na compreensão da sexualidade humana,


a diferenciação da sexualidade animal e sexualidade humana. Ele propõe a
desconstrução dos determinismos biológicos e/ou ambientais, a fim de definir a
satisfação sexual humana, embora possa ser influenciada pela expressão biológica
e pelas experiências subjetivas.
II- Em nota acrescentada em 1915, discutindo a bissexualidade psíquica, Freud não
desconsidera o papel da biologia, mas afirma que os fatores que influenciam a
escolha sexual são em parte constitucionais e em parte acidentais.
III- Dizer que há algo de acidental no posicionamento do sujeito frente à diferença
sexual aponta o caráter arbitrário em que toda a subjetividade se funda.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Todas as sentenças estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Sabemos que a psicanálise é uma práxis, uma teoria que se faz por meio de uma
prática, a escuta. A respeito disso, analise as sentenças e classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

161
( ) A psicanálise surgiu da escuta da histeria.
( ) A psicanálise, na contemporaneidade, tem papel fundamental em fazer escutar o
que a sociedade tenta reprimir.
( ) A psicanálise na contemporaneidade tem sido mais respeitada, pois está mais
próxima dos preceitos psiquiátricos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 O campo de atuação dos psicanalistas no contexto social e clínico é indissociável, uma


vez que a clínica é uma crítica social feita de outro modo, ou em palavras freudianas,
a psicologia individual é social. Disserte sobre a mudança do setting na psicanálise.

5 A psicanálise, mesmo que seja considerada contemporânea, é indissociável dos


pressupostos freudianos. Disserte sobre a compreensão da psicanálise na contem-
poraneidade.

162
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