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Psicopatologia:

Infância e
Adolescência
Prof. Lucas Tosi Dias de Souza

Indaial – 2021
1a Edição
Elaboração:
Prof. Lucas Tosi Dias de Souza

Copyright © UNIASSELVI 2021

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

S729p

Souza, Lucas Tosi Dias de

Psicopatologia: infância e adolescência. / Lucas Tosi Dias


de Souza – Indaial: UNIASSELVI, 2021.

151 p.; il.

ISBN 978-65-5663-986-4
ISBN Digital 978-65-5663-982-6

1. Psicanálise. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

CDD 150

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico! Bem-vindo ao Livro Didático Psicopatologia: Infância e
Adolescência, o ramo da ciência que se ocupa das causas, estruturas e funcionamentos
das doenças e dos transtornos mentais, além de suas formas de manifestação. Ou seja,
a Psicopatologia pode ser entendida como o conjunto de conhecimentos referentes ao
adoecimento mental do ser humano.

Enquanto a Psicologia dedica-se ao estudo sistemático da vida psíquica “normal”,


a Psicopatologia estrutura-se como uma parte da Psicologia Geral, que se dedica às
anomalias, deficiências e enfermidades da mente humana. É importante ressaltar que
a Psicopatologia não é um ramo da Psicologia, pois caracteriza-se como uma ciência
autônoma, fruto principalmente da clínica psiquiátrica, de disciplinas biológicas e
neurocientíficas aliadas aos saberes da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia etc.

Portanto, para uma melhor compreensão do que é a Psicopatologia e quais


são seus desdobramentos, na Unidade 1, faremos uma introdução ao estudo dessa ciência,
conheceremos a história e os principais conceitos da Psicopatologia, diferenciaremos os
critérios de normalidade e de patológico, definiremos os transtornos mentais, e, por fim,
identificaremos as principais funções psíquicas e suas alterações. Para facilitar nossos
estudos, a Unidade 1 foi dividida em três tópicos: 1. Fundamentos da Psicopatologia, 2.
Psicopatologia e Psicossomática, e 3. As funções psíquicas e suas alterações.

Em seguida, na Unidade 2, avaliaremos as alterações das funções psíquicas


através do processo de anamnese, das técnicas de entrevista e do diagnóstico
psicopatológico. Aprenderemos, também, sobre os principais quadros psicopatológicos
da infância e da adolescência, como o autismo, a esquizofrenia e a depressão. A última
parte dessa unidade consiste em identificar possíveis formas de prevenção, de escuta
e de intervenção terapêutica.

Por fim, na Unidade 3, aprenderemos um pouco sobre os sistemas de


classificação dos transtornos mentais, conhecendo suas origens e diferenciando os
principais sistemas de classificação, como a Classificação Internacional de Doenças
e Problemas Relacionados à Saúde (CID) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM). A partir disso, será possível compreendermos os principais
critérios de classificação e também aprender com os exemplos apresentados.

Boa leitura e bons estudos!

Prof. Ms. Lucas Tosi Dias de Souza


GIO
Olá, eu sou a Gio!

No livro didático, você encontrará blocos com informações


adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
assunto estudado em questão.

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os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina.
A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um
novo visual – com um formato mais prático, que cabe na
bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada
também digital, em que você pode acompanhar os recursos
adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo
deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura
interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no
texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
também contribui para diminuir a extração de árvores para
produção de folhas de papel, por exemplo.

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apresentamos também este livro no formato digital. Portanto,
acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com
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verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos,
para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os
seus estudos com um material atualizado e de qualidade.

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Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA PSICOPATOLOGIA NA
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E
ALTERAÇÕES....................................................................................1

TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS DA PSICOPATOLOGIA............................................... 3


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................... 3
2 HISTÓRIA E CONCEITOS INTRODUTÓRIOS......................................................... 3
2.1 BREVE EVOLUÇÃO DA PSIQUIATRIA ................................................................................5
2.2 AS ORIGENS DA PSICOPATOLOGIA CONTEMPORÂNEA..............................................7
3 CAMPOS E TIPOS DE PSICOPATOLOGIA............................................................. 9
4 OS CRITÉRIOS DE NORMALIDADE E DE PATOLOGIA.........................................11
4.1 CRITÉRIOS DE NORMALIDADE.........................................................................................12
4.1.1 Normalidade como ausência de doença...............................................................12
4.1.2 Normalidade estatística............................................................................................13
4.1.3 Normalidade como bem-estar................................................................................13
4.1.4 Normalidade como processo..................................................................................13
4.1.5 Normalidade subjetiva..............................................................................................14
4.1.6 Normalidade operacional.........................................................................................14
5 A SAÚDE MENTAL E A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL............................................. 14
5.1 ATENÇÃO BÁSICA PSICOSSOCIAL...................................................................................16
5.2 AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA DE ATENÇÃO NO BRASIL............... 17
5.2.1 Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).................................................................. 17
5.2.2 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS.............................................................18
5.2.3 Saúde mental e Saúde da família..........................................................................18
5.2.4 As Cooperativas e os Centros de convivência...................................................19
RESUMO DO TÓPICO 1...........................................................................................20
AUTOATIVIDADE.................................................................................................... 21

TÓPICO 2 — PSICOPATOLOGIA E PSICOSSOMÁTICA..........................................23


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................23
2 O QUE É PSICOSSOMÁTICO E SUAS MANIFESTAÇÕES....................................23
2.1 AS MANIFESTAÇÕES PSICOSSOMÁTICAS.................................................................... 24
2.2 INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA....................................................................................... 25
2.3 ADOLESCÊNCIA E PSICOSSOMÁTICA........................................................................... 26
3 OS TRANSTORNOS MENTAIS............................................................................. 27
4 AS SÍNDROMES E OS SINTOMAS.......................................................................29
RESUMO DO TÓPICO 2...........................................................................................30
AUTOATIVIDADE.................................................................................................... 31

TÓPICO 3 — AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E SUAS ALTERAÇÕES............................33


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................33
2 AS FUNÇÕES PSÍQUICAS ELEMENTARES.........................................................33
2.1 A CONSCIÊNCIA E A ATENÇÃO........................................................................................ 34
2.2 A ORIENTAÇÃO E AS VIVÊNCIAS DO TEMPO E DO ESPAÇO.................................... 35
2.3 A SENSOPERCEPÇÃO E A MEMÓRIA ............................................................................ 36
2.4 A VONTADE E A PSICOMOTRICIDADE...........................................................................38
2.5 A AFETIVIDADE E O PENSAMENTO............................................................................... 39
2.6 O JUÍZO E A LINGUAGEM.................................................................................................40
3 AS FUNÇÕES PSÍQUICAS COMPOSTAS............................................................ 41
3.1 O EU E O SELF..................................................................................................................... 42
3.2 A PERSONALIDADE........................................................................................................... 43
3.3 A INTELIGÊNCIA.................................................................................................................44
LEITURA COMPLEMENTAR...................................................................................46
RESUMO DO TÓPICO 3.......................................................................................... 48
AUTOATIVIDADE....................................................................................................49

REFERÊNCIAS........................................................................................................ 51

UNIDADE 2 — AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO EM PSICOPATOLOGIA:


INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA.........................................................53

TÓPICO 1 — AVALIAÇÃO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS...........................................55


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................55
2 A AVALIAÇÃO CLÍNICA.......................................................................................56
2.1 AVALIAÇÃO FÍSICA..............................................................................................................57
2.2 AVALIAÇÃO NEUROLÓGICA.............................................................................................58
2.3 AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E O PSICODIAGNÓSTICO................................................ 59
2.4 EXAMES COMPLEMENTARES......................................................................................... 59
3 A ENTREVISTA CLÍNICA.....................................................................................60
3.1 ENTREVISTAS COM CRIANÇAS ...................................................................................... 62
3.2 ENTREVISTAS COM ADOLESCENTES........................................................................... 63
4 A ANAMNESE......................................................................................................64
5 O DIAGNÓSTICO PSICOPATOLÓGICO................................................................65
5.1 TESTES PSICOLÓGICOS.................................................................................................... 66
5.2 VISÃO GERAL DA AVALIAÇÃO PSICOPATOLÓGICA.....................................................67
RESUMO DO TÓPICO 1...........................................................................................69
AUTOATIVIDADE....................................................................................................70

TÓPICO 2 — OS PRINCIPAIS QUADROS PATOLÓGICOS DA INFÂNCIA E DA


ADOLESCÊNCIA................................................................................ 73
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 73
2 O SURGIMENTO E A CONSTITUIÇÃO DOS TRANSTORNOS MENTAIS.............. 74
3 TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA............................................................ 76
3.1 ETIOLOGIA............................................................................................................................ 78
3.2 AUTISMO DE “ALTO FUNCIONAMENTO”....................................................................... 78
4 ESQUIZOFRENIA.................................................................................................78
4.1 ESQUIZOFRENIA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA...............................................81
5 DEPRESSÃO........................................................................................................82
5.1 A DEPRESSÃO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES......................................................83
RESUMO DO TÓPICO 2...........................................................................................86
AUTOATIVIDADE....................................................................................................87
TÓPICO 3 — A TERAPÊUTICA................................................................................89
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................89
2 PREVENÇÃO........................................................................................................89
3 ESCUTA E ACOLHIMENTO.................................................................................. 91
4 ESCOLHAS TERAPÊUTICAS..............................................................................93
4.1 REEDUCAÇÕES E CORREÇÕES....................................................................................... 94
4.2 PSICOTERAPIAS INDIVIDUAIS........................................................................................ 95
4.3 TERAPIAS FAMILIARES.................................................................................................... 95
4.4 PSICOTERAPIAS DE GRUPO........................................................................................... 96
LEITURA COMPLEMENTAR...................................................................................98
RESUMO DO TÓPICO 3.........................................................................................100
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 101

REFERÊNCIAS......................................................................................................103

UNIDADE 3 — DESCRIÇÃO DOS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS


DISTÚRBIOS MENTAIS: INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA...............105

TÓPICO 1 — OS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS DISTÚRBIOS


MENTAIS........................................................................................... 107
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 107
2 BREVE HISTÓRICO............................................................................................ 107
3 AS PRIMEIRAS CLASSIFICAÇÕES................................................................... 112
4 ESPECIFICIDADES DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA................................115
RESUMO DO TÓPICO 1..........................................................................................119
AUTOATIVIDADE..................................................................................................120

TÓPICO 2 — O MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS


MENTAIS (DSM)............................................................................... 123
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 123
2 O TRAJETO ATÉ O DSM-III................................................................................ 123
3 O DSM-IV........................................................................................................... 127
4 O DSM-V............................................................................................................ 129
5 EXEMPLOS DE CLASSIFICAÇÃO.......................................................................131
RESUMO DO TÓPICO 2.........................................................................................134
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 135

TÓPICO 3 — A CLASSIFICAÇÃO ESTATÍSTICA INTERNACIONAL DE


DOENÇAS E DE PROBLEMAS RELACIONADOS À
SAÚDE (CID).................................................................................. 137
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 137
2 O TRAJETO ATÉ A CID-10................................................................................. 137
3 A CID-11.............................................................................................................140
4 EXEMPLOS DE CLASSIFICAÇÃO.....................................................................142
LEITURA COMPLEMENTAR.................................................................................144
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................... 147
AUTOATIVIDADE..................................................................................................148

REFERÊNCIAS......................................................................................................150
UNIDADE 1 —

INTRODUÇÃO AO ESTUDO
DA PSICOPATOLOGIA NA
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA:
AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E
SUAS ALTERAÇÕES

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• conhecer a história e os principais conceitos da psicopatologia;

• diferenciar os critérios de normalidade e de patologia;

• revisar as principais definições de transtornos mentais, síndromes e sintomas;

• identificar as funções psíquicas e suas principais alterações.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – FUNDAMENTOS DA PSICOPATOLOGIA

TÓPICO 2 – PSICOPATOLOGIA E PSICOSSOMÁTICA

TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E SUAS ALTERAÇÕES

CHAMADA
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UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 —
FUNDAMENTOS DA PSICOPATOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 1, abordaremos os fundamentos da Psicopatologia, um
ramo da ciência que estuda as causas, estruturas e manifestações das doenças e dos
transtornos mentais. Começaremos o subtópico 2 com um pouco da história da Psiquiatria
e da Psicopatologia contemporânea; seguiremos apresentando alguns conceitos
introdutórios, mas fundamentais para a compreensão deste tópico.

No subtópico 3, apresentaremos os diferentes campos e tipos de Psicopatologia,


visto que o estudo das psicopatologias se caracteriza pela multiplicidade de abordagens
e referenciais teóricos. É da natureza da Psicopatologia ser um campo de conhecimento
que não admite uma teoria única e predominante, portanto, o conflito de ideias não é
um problema, mas uma necessidade.

Já o subtópico 4 será dedicado ao estudo dos diferentes critérios de normalidade


e de patologia, um debate vivo, complexo e que está em constante atualização, visto
que há sempre um juízo de valor e conotações políticas e filosóficas ao se categorizar
algo como patológico, impactando o modo como milhares de pessoas serão situadas
em suas vidas na sociedade.

Encerraremos o Tópico 1 com um assunto de bastante relevância, a saúde mental


e a atenção psicossocial, um dos campos de conhecimento mais complexos e plurais que
estudaremos, afinal, a saúde mental não é apenas Psicopatologia, Semiologia ou Psiquiatria,
e não pode ser delimitada apenas pelo estudo ou tratamento das doenças mentais.

2 HISTÓRIA E CONCEITOS INTRODUTÓRIOS


Compreende-se por Psicopatologia o ramo da ciência que se ocupa das causas,
estruturas e funcionamentos das doenças e dos transtornos mentais, além de suas
formas de manifestação. Portanto, a psicopatologia pode ser definida como “conjunto de
conhecimentos referentes ao adoecimento mental do ser humano. É um conhecimento
que se esforça por ser sistemático, elucidativo e desmistificante” (DALGALARRONDO,
2019, s.p.). Nesse sentido, estudar psicopatologia seria equivalente a montar um quebra-
cabeça, conforme ilustrado pela Figura 1.

3
FIGURA 1 – O ESTUDO DA PSICOPATOLOGIA

FONTE: <https://shutr.bz/3hRHXuz>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Considerando a Psicologia como o estudo sistemático da vida psíquica “normal”,


a Psicopatologia – área de responsabilidade da Medicina – configura-se como uma parte
da Psicologia Geral, que se refere às anomalias, deficiências e enfermidades da mente
humana. Ainda que o estudo da Psicopatologia se baseie na Psiquiatria, não podemos
confundir as duas áreas, a Psicopatologia configura-se a partir de disciplinas biológicas
e neurocientíficas aliadas à saberes da Psiquiatria, da Psicologia, da Sociologia etc.
(FERREIRA, 2015).

É importante frisar que a Psicopatologia não é um ramo da Psicologia (que


se origina da filosofia) mas uma ciência autônoma, fruto da clínica psiquiátrica.
Segundo o psiquiatra Karl Jaspers (1987), representado de forma ilustrada na Figura
2, a psicopatologia investiga muitos fatos, cujos correspondentes “normais” ainda não
foram estabelecidos pela psicologia, e é muitas vezes a visão do anormal que ensina a
explicar o normal.

FIGURA 2 – ILUSTRAÇÃO DO PSIQUIATRA KARL JASPERS

FONTE: <https://bit.ly/3Ctk70b>. Acesso em: 12 jul. 2021.

4
Dessa forma, a Psicopatologia dedica-se ao estudo dos transtornos mentais e
dos comportamentos que se diferem do que é esperado pelos padrões de normalidade
(conceito que estudaremos nos próximos subtópicos). O ponto de partida do estudo
da Psicopatologia, ou seja, a base na qual são construídas teorias e conceitos, não
está vinculada a uma teoria psicológica específica, como a Psicanálise, a Psicologia
Humanista ou a outras áreas do conhecimento como a Neurologia e a Genética. É por
isso que, segundo Ferreira (2015), essa ciência pode ser entendida a partir de diferentes
perspectivas:

• Fenomenológica: trata-se da visão mais objetiva, sem teoria pré-concebidas.


Define as qualidades essenciais dos transtornos mentais, registra as experiências
conscientes e os comportamentos dos doentes.
• Psicodinâmica: fundamenta-se na observação do comportamento do doente, além
das próprias experiências descritas por ele. A perspectiva psicodinâmica propõe-
se a explicar as causas dos transtornos mentais, valendo-se principalmente dos
processos inconscientes.
• Experimental: baseando-se na relação entre os acontecimentos anormais, a
perspectiva experimental cria hipóteses a partir do estudo dos elementos associados
aos transtornos, explicando as alterações a partir de testes e observações.

Ainda segundo Ferreira (2015), é preciso considerar as diferentes teorias e


abordagens, tanto psiquiátricas como psicológicas, para uma melhor compreensão
dos transtornos mentais existentes. Cada patologia deve ser avaliada de forma única,
visto que nada é apenas somático ou apenas psíquico, tornando as abordagens
complementares entre si. O uso de medicamentos, por exemplo, pode ser um importante
aliado ao tratamento Psicoterápico.

ATENÇÃO
A Psicopatologia é a ciência que estuda as manifestações e mecanismos
psíquicos da mente enferma, ou seja, conceitos e princípios que dizem
respeito ao doente mental. Já a Psiquiatria é uma especialização da
Medicina, uma prática médica que se dedica à mente humana e que
utiliza a Psicopatologia como um de seus principais instrumentos.

2.1 BREVE EVOLUÇÃO DA PSIQUIATRIA


Por toda a Idade Média considerou-se que as doenças físicas e mentais eram
ocasionadas pela alma, portanto, se a alma estava oprimida, o mesmo aconteceria com
o corpo. Assim, era comum a crença de que poderíamos morrer de desgosto, ou que o
medo e a raiva eram capazes de causar doenças.

5
A mudança de paradigma ocorre a partir do século XVIII, com a expansão
do Iluminismo, movimento intelectual e filosófico que dominou o mundo das ideias
na Europa e que ficou conhecido como O Século da Filosofia. É nesse período que
psiquiatras como William Cullen (1712-1790) classificaram as doenças psíquicas a partir
de bases científicas. Além disso, os conceitos introduzidos por Philippe Pinel (1745-1826)
contribuíram imensamente para a criação das duas mais famosas escolas psiquiátricas dos
séculos XIX e XX: a Escola Francesa de Psiquiatria e a Escola Alemã de Psiquiatria. A Figura
3 apresenta o rosto de Pinel, homenageado em um selo na França.

FIGURA 3 – SELO EM HOMENAGEM À PHILIPPE PINEL

FONTE: <https://shutr.bz/3hPBzEn>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Agora que vocês já conhecem Philippe Pinel, vale ressaltar que a escola
francesa se destacou pelo estudo das neuroses, principalmente através das pesquisas
conduzidas pelo neurologista Jean-Martin Charcot (1825-1893), um dos precursores
dos estudos da histeria e da hipnose. Outro importante psiquiatra dessa escola foi Pierre
Janet (1859-1947) que, através de experimentos com hipnose, descobriu que seus
pacientes poderiam relembrar de eventos traumáticos que auxiliavam no processo de
cura. Esse conceito de ab-reação, algo similar a uma descarga emocional, foi descoberto
e descrito quase simultaneamente pelo pai da Psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939),
em Viena (FERREIRA, 2015).

Com o avanço das ciências naturais, a partir das pesquisas de Charles Darwin
e Louis Pasteur, a Psiquiatria se inclina às causas orgânicas das doenças psíquicas,
iniciando estudos no córtex e no cérebro. Segundo Ferreira (2015), é a partir do estudo
anatomopatológico das demências que a Psiquiatria se consolidou. Em paralelo,
surgiram duas novas teorias que divergiam da escola alemã, representadas por dois
grandes nomes da Psiquiatria: Emil Kraepelin e Sigmund Freud, representado pela Figura 4.

6
FIGURA 4 – FOTO DE SIGMUND FREUD

FONTE: <https://shutr.bz/3AypWZS>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Emil Kraepelin (1856-1926) inclinou os seus estudos à Psiquiatria das psicoses,


enquanto Freud, cuja fotografia apresentamos na Figura 4, estudou a Psiquiatria das
neuroses, dedicando-se especialmente à clínica. Para Kraepelin, os psiquiatras deveriam
focar mais nas observações clínicas do que na anatomopatologia. Já Freud debruçou o
seu tempo para os fatores psicológicos dos indivíduos, especialmente o funcionamento
inconsciente da mente.

A última grande mudança na Psiquiatria ocorre a partir da década de 1960,


quando surgiram os estudos sobre os psicofármacos. A partir da década de 1980, as
teorias dos neurotransmissores consolidam-se e continuam sendo as mais utilizadas,
partindo de pressupostos como a plasticidade neuronal e, consequentemente, a
regeneração dos neurônios.

2.2 AS ORIGENS DA PSICOPATOLOGIA CONTEMPORÂNEA


A Psicopatologia contemporânea se originou a partir de duas vertentes:

• Tradição médica: fruto das pesquisas clínicas dos então chamados alienistas (nome
dado aos especialistas em saúde mental).
• Conhecimentos de outras ciências humanas: a Filosofia, a Literatura, a Psicologia,
a Psicanálise etc.

O termo Psicopatologia foi criado por Jeremy Benthan, em 1817. Psyché significa
alma e Páthos, sofrimento ou doença, e Lógos, estudo ou ciência. No entanto, os
trabalhos publicados por Esquirol e Griesinger em 1837 e 1845, respectivamente, lhes
garantiram o título de criadores da Psicopatologia.

7
A consolidação da Psicopatologia como uma ciência independente ocorreu,
em grande parte, a partir da publicação da obra do psiquiatra alemão Karl Jaspers,
Psicopatologia Geral, em 1913, sendo determinante para os estudos da área e tornando-
se referência obrigatória para pesquisadores e psiquiatras clínicos. Jaspers descreveu a
Psicopatologia como “uma ciência básica, que serve de auxílio à psiquiatria e à psicologia
clínica, a qual é, por sua vez, um conhecimento aplicado a uma prática profissional e
social concreta” (DALGALARRONDO, 2019, n. p).

Para Jaspers (1987), o estudo da Psicopatologia consiste em não reduzir o ser


humano a conceitos psicopatológicos, ou seja, é preciso estudar o homem considerando
sua totalidade. Para o autor, e conforme ilustrado pela Figura 5, não basta “investigar
apenas as vivências humanas em si, mas, também, as condições e causas de que
dependem os nexos em que se estruturam, as relações em que se encontram, e os modos
em que, de alguma maneira, se exteriorizam objetivamente” (JASPERS, 1987, p. 13).

FIGURA 5 – ILUSTRAÇÃO DA INTEGRAÇÃO DO CORPO

FONTE: <https://shutr.bz/3EA7pOW>. Acesso em: 12 jul. 2021.

A Figura 5 ilustra a integração do corpo, indicando que o domínio dessa ciência


“se estende a todo fenômeno psíquico que se possa apreender em conceitos de
significação constante e com possibilidades de comunicação” (JASPERS, 1987, p. 12).

DICA
Assista ao vídeo: A HISTÓRIA DA PSICOPATOLOGIA POR BENILTON
BEZERRA, disponível em: https://bit.ly/39qiJyZ.

8
3 CAMPOS E TIPOS DE PSICOPATOLOGIA
Ao longo dos últimos 200 anos, o estudo das psicopatologias se caracterizou
pela multiplicidade de abordagens e referenciais teóricos. Essa variedade é duramente
criticada por alguns cientistas, que afirmam tratar-se de uma ciência imatura, afinal,
quando realmente se conhece algo é possível explicá-lo por apenas uma teoria. Autores
como Dalgalarrondo (2019) discordam dessa visão, justificando que exigir uma única
explicação para uma área tão complexa como a psicopatologia seria tentar reduzir os
fenômenos psicopatológicos a soluções simplistas e artificiais.

Ainda segundo o autor, é da natureza da Psicopatologia ser um campo de


conhecimento que não admite uma teoria única e predominante pois trata-se de uma
ciência que exige debate constante e aprofundado. Diferentemente de outras ciências,
o conflito de ideias não é um problema, mas uma necessidade. Afinal, conforme
ilustrado pela Figura 6, a evolução da Psicopatologia reside justamente nas tentativas
de esclarecimento e aprofundamento das diferentes teorias.

FIGURA 6 – AS DIFERENTES TEORIAS

FONTE: <https://shutr.bz/3CygN3J>. Acesso em: 12 jul. 2021.

A partir dessas diferentes teorias, tornou-se possível elaborar o Quadro 1 que


apresenta, de forma resumida, algumas das principais correntes da Psicopatologia
conforme proposto por Dalgalarrondo (2019).

9
QUADRO 1 – RESUMO DOS PRINCIPAIS TIPOS DE PSICOPATOLOGIA

Perspectiva da
Principais características
Psicopatologia
Objetiva a descrição das formas de alterações psíquicas e as
Descritiva
estruturas dos sintomas.
O foco são os conteúdos das vivências, afetos, desejos e
Dinâmica
experiências particulares dos indivíduos.
Perspectiva centrada no corpo, adoecimento como um mau
Médica
funcionamento do cérebro e uma disfunção biológica.
O transtorno mental não seria tanto uma disfunção
Existencial biológica, mas um modo de existência, uma forma de ser e
de estar no mundo.
Os sintomas seriam comportamentos e representações
Comportamental cognitivas disfuncionais, aprendidas e reforçadas pela
experiência familiar e social.
Os sintomas e transtornos mentais seriam uma forma de
Psicanalítica expressão dos conflitos inconscientes, de desejos que não
podem ser realizados.
Define os transtornos mentais a partir de “categorias únicas”,
Categorial considerando que haveria diferenças bem definidas entre as
patologias.
Considera os transtornos mentais a partir de dimensões ou
Dimensional
espectros.
Compreende o transtorno mental a partir de alterações de
Biológica mecanismos neurais e de circuitos cerebrais. O foco são os
aspectos neuroquímicos e neurofisiológicos das doenças.
Considera o papel dos fatores culturais no desenvolvimento
de transtornos mentais. Os sintomas só teriam significado
Sociocultural
a partir de um contexto de valores e normas culturalmente
construídas.
Os transtornos são definidos a partir de sua utilidade
Operacional- pragmática, considerando o tratamento clínico ou a
pragmática pesquisa. É a base dos manuais de classificação de
transtornos mentais como o DSM-5 e o CID-11.
Pesquisa as psicopatologias a partir de fundamentos
Fundamental históricos e conceituais, incluindo, também, as tradições
literárias, artísticas e de outras áreas das humanidades.
FONTE: Adaptado de Dalgalarrondo (2019)

10
4 OS CRITÉRIOS DE NORMALIDADE E DE PATOLOGIA
O conceito de saúde e de normalidade na Medicina é uma questão que continua
gerando debates até os dias de hoje. A descrição do que é a doença nos remete à Grécia
antiga, onde é possível localizar nos escritos hipocráticos a definição de que a natureza
(physis), tanto no homem como fora dele, é a harmonia e o equilíbrio. A perturbação
desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença, ou seja, ela não estaria em uma parte do
homem, mas o acometeria como um todo. Para os gregos, a doença não é somente
desequilíbrio ou desarmonia; ela é, também, “o esforço que a natureza exerce no homem
para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de
cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar” (CANGUILHEM, 2009, p. 11).
Nesse sentido, a Figura 7 apresenta o que consideraríamos uma mente normal e outra
mente com um possível transtorno.

FIGURA 7 – O QUE É SER NORMAL?

FONTE: <https://shutr.bz/3tVw37Q>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Entretanto, com o avanço da anatomia e da fisiologia, a Medicina passa a


considerar outros padrões para determinar o que é normal e o que é patológico.
Uma das teorias desenvolvidas no século XVI associava lesões de órgão à grupos de
sintomas estáveis, permitindo a classificação nosográfica (tratado com descrição ou
explicação das doenças) baseada na decomposição anatômica. Segundo essa teoria,
“os fenômenos patológicos nos organismos vivos nada mais são do que variações
quantitativas, para mais ou para menos, dos fenômenos fisiológicos correspondentes”
(CANGUILHEM, 2009, p. 12). Assim, o patológico seria designado a partir do normal, não
tanto como a ou dis(função), mas como hiper ou hipo.

Ainda que os conceitos de normal e patológico tenham evoluído a partir dessa


visão positivista e organicista, Canguilhem (2009) propõe que o estado patológico é
uma norma que não tolera nenhum desvio das condições na qual é válida, assim, o que
caracterizaria o doente seria sua incapacidade de ser normativo. A saúde, em oposição, seria
a capacidade de estar adaptado às exigências do meio, criar e seguir novas normas de vida, já
que o normal é viver num meio onde flutuações e novos acontecimentos são possíveis.

11
Por essa razão, compreende-se o motivo do debate sobre normalidade e
anormalidade estar vivo e em constante atualização, visto que há sempre um juízo
de valor e conotações políticas e filosóficas ao se categorizar algo como patológico,
impactando o modo como milhares de pessoas serão situadas em suas vidas na
sociedade (DALGALARRONDO, 2019).

ATENÇÃO
“Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições,
pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O
indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele que sofre suas
consequências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar
as tarefas que a nova situação lhe impõe” (CANGUILHEM, 2009, p. 59).

4.1 CRITÉRIOS DE NORMALIDADE


Vimos que, mesmo os manuais e os dicionários não conseguem estabelecer
um critério de normalidade e anormalidade, estes são distintos e a escolha de uma
perspectiva em detrimento de outra depende, também, de questões ideológicas,
pragmáticas e filosóficas. Ainda assim, Dalgalarrondo (2019) delimita alguns critérios de
normalidade que podem ser utilizados pela Psicopatologia:

4.1.1 Normalidade como ausência de doença


Podemos considerar a ausência de doença como um dos critérios mais antigos
e atualmente falhos do que é a normalidade. Isso porque não deveríamos definir algo
pelo que ele não é, pelo que lhe falta. A Figura 8 ilustra a saúde como a ausência de
sintomas, ou seja, estamos definindo a saúde pelo seu negativo, o que parece não
resolver o problema conceitual.

FIGURA 8 – AUSÊNCIA DE DOENÇAS

FONTE: <https://shutr.bz/39mkNI3>. Acesso em: 12 jul. 2021.

12
4.1.2 Normalidade estatística
Trata-se da normalidade aplicada às situações quantitativas, conforme
apresentado na Figura 9, em que o normal passa a ser aquilo que se observa com mais
frequência. Se quem está dentro da curva de distribuição normal são justamente os
indivíduos “normais”, quem está fora da curva automaticamente se torna anormal ou doente.

FIGURA 9 – NORMALIDADE ESTATÍSTICA

FONTE: <https://shutr.bz/3znxLjD>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Dentro dessa metodologia, é preciso considerar que “esse é um critério


muitas vezes falho em saúde geral e mental, pois nem tudo o que é frequente é
necessariamente ‘saudável’, assim como nem tudo que é raro ou infrequente é
patológico” (DALGALARRONDO, 2019, n. p).

4.1.3 Normalidade como bem-estar


Essa definição seria a que mais se aproxima da apresentada anteriormente pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), que define saúde como o “completo bem-estar
físico, mental e social”, e não simplesmente como ausência de doença. As críticas que
são feitas a essa definição deve-se ao fato de que é difícil definir bem-estar de forma
objetiva, além disso, pensar em um “completo bem-estar” faria com que poucas pessoas
pudessem ser classificadas como saudáveis.

4.1.4 Normalidade como processo


Nessa perspectiva são considerados os aspectos dinâmicos do desenvolvimento
psicossocial, das desestruturações e das reestruturações ao longo do tempo, de crises,
de mudanças próprias para certos períodos etários. Segundo Dalgalarrondo (2019),
esse conceito é particularmente útil na chamada psicopatologia do desenvolvimento,
relacionada à psiquiatria e à psicologia clínica de crianças, adolescentes e idosos.

13
4.1.5 Normalidade subjetiva
Ainda que se trate de uma proposta interessante, pois nessa visão a percepção
subjetiva do indivíduo com relação ao seu estado de saúde é o mais importante, pode
ser um critério falho, pois há pessoas que estão “se sentindo muito bem, felizes” em
fases maníacas de um transtorno bipolar, por exemplo.

4.1.6 Normalidade operacional


O critério operacional é o mais pragmático de todos. Isso porque são definidas
de forma explícita o que é o normal e o que é o patológico e busca-se trabalhar
operacionalmente com esses conceitos. De certa forma, essa perspectiva da normalidade
seria a mais utilizada em manuais de classificação como o CID e o DSM.

5 A SAÚDE MENTAL E A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL


Poucos campos de conhecimento são tão complexos, plurais e intersetoriais
como o da saúde mental. Isso porque esse campo não está limitado a um tipo de
conhecimento, como o da Psiquiatria, e também por ser exercido por diversos profissionais
da área da saúde, representados pela Figura 10. Dessa forma, a saúde mental não é
apenas Psicopatologia, Semiologia ou Psiquiatria, não podendo ser delimitada apenas
pelo estudo ou tratamento das doenças mentais (AMARANTE, 2013).

FIGURA 10 – ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (EQUIPE MULTIDISCIPLINAR)

FONTE: <https://shutr.bz/3tW2piZ>. Acesso em: 12 jul. 2021.

A partir disso, o que poderíamos considerar como “boas práticas em saúde


mental”? Trata-se de práticas acessíveis a todos, baseadas em premissas éticas, em
evidências científicas e na experiência, singular e coletiva. A busca da equidade e do
“melhor cuidado” na dimensão da experiência, valorizando práticas terapêuticas e
experiências locais ou regionais de organização da rede de serviços (THORNICROFT;
TANSELLA, 2010).

14
Para alcançarmos as boas práticas propostas anteriormente, é preciso
compreender que a saúde pública precisa ser estruturada considerando os conceitos
de medicina social, introduzida na Alemanha em 1948, por Virchow, que propunha a
reforma da medicina com base em quatro princípios:

• A saúde da população é uma questão de interesse social direto.


• As condições econômicas e sociais exercem impacto importante na saúde e na
doença, e essas relações devem ser objeto de investigação científica.
• As medidas adotadas para promover a saúde e conter as doenças devem ser tanto
sociais como médicas.
• As estatísticas médicas devem ser nosso padrão de medida (THORNICROFT;
TANSELLA, 2010).

Dessa forma, a avaliação dos transtornos mentais na saúde pública deve


considerar alguns critérios como a frequência, a severidade e as consequências, a
disponibilidade e a aceitação das intervenções. Além disso, é importante observar as
diferenças existentes na perspectiva da saúde individual e da saúde coletiva, conforme
apresentado no Quadro 2.

QUADRO 2 – COMPARAÇÃO ENTRE SAÚDE COLETIVA E INDIVIDUAL

SAÚDE COLETIVA SAÚDE INDIVIDUAL


Visão integral da população Visão parcial da população
Pacientes compreendidos em seu
Tende a excluir os fatores contextuais
contexto socioeconômico
Foco maior no tratamento do que na
Interesse em prevenção primária
prevenção
Intervenções dirigidas tanto ao indivíduo
Intervenções apenas no nível individual
quanto à população
Os componentes do serviço são
Os componentes do serviço são
considerados no contexto de um
considerados isoladamente
sistema global
O acesso aos serviços é baseado em
Favorece o acesso aberto aos serviços
critérios de elegibilidade, como idade,
com base nas necessidades
diagnóstico ou cobertura dos seguros

Preferência pelo trabalho em equipe Preferência pela terapia individual

Perspectiva de longa duração/por


Perspectiva episódica e de curta duração
toda a vida
Relação custo-efetividade considerada Relação custo-efetividade considerada
em termos populacionais em termos individuais
FONTE: Thornicroft e Tansella (2010, p. 9)

15
A partir do que aprendemos no Quadro 2, podemos avançar para o primeiro
subtópico da atenção psicossocial, a atenção básica.

5.1 ATENÇÃO BÁSICA PSICOSSOCIAL


Um dos objetivos da Atenção Básica é dedicar esforços à atenção à saúde,
considerando o meio ambiente, o estilo de vida e a promoção da saúde como seus
fundamentos básicos. Para tanto, é necessário desenvolver e utilizar tecnologias
próprias à Atenção Básica à Saúde. Dentre elas, podemos destacar:

• “Considerar a necessidade de atenção e cuidado para com todas as demandas dos


usuários”.
• Ampliar a capacidade dos profissionais para lidar com as dimensões psíquica e social
(cultural, profissional, econômica etc.) dos indivíduos, inclusive as suas próprias, que
interagem.
• “Ampliar as capacidades comunicativas e gerenciais dos profissionais, necessárias para
a atuação em comunidade e para a organização da assistência” (CAMPOS, 2018, p. 141).

Portanto, para que seja possível implementar programas ligados à Atenção Bá-
sica, é preciso primeiramente dispor das edificações e de equipamentos adequados,
conforme ilustrado pela Figura 11. Além disso, é fundamental considerar os conheci-
mentos e habilidades dos profissionais, “a capacidade de trabalho em equipe, os meios
constituídos pela interação dos profissionais entre si e destes com os usuários e a co-
munidade no processo de trabalho, buscando um modelo produtor do cuidado, centra-
do no usuário e suas necessidades” (CAMPOS, 2018, p. 142).

FIGURA 11 – ATENÇÃO BÁSICA

FONTE: <https://shutr.bz/3nTVeGQ>. Acesso em: 12 jul. 2021.

16
Portanto, é preciso pensar a saúde pública a partir da perspectiva da prevenção
das desordens, e não apenas seu tratamento, considerando as associações existentes
entre o contexto social e as doenças mentais. Isso porque a qualidade do ambiente social
“está fortemente relacionada ao risco que ela tem de sofrer de uma doença mental, ao
desencadeador de um episódio da doença e à probabilidade dessa doença tornar-se
crônica” (THORNICROFT; TANSELLA, 2010, p. 13). Ainda segundo as autoras, a pobreza
parece ser um fator crucial em muitas dessas complexas relações, visto que o impacto
cumulativo da pobreza pode produzir efeitos continuados sobre o funcionamento físico,
cognitivo, psicológico e social.

5.2 AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA DE ATENÇÃO


NO BRASIL
O modelo de atenção à saúde no Brasil é representado pelo Sistema Único
de Saúde (SUS) e pode ser caracterizado como um sistema integrado, organizado em
rede de forma regionalizada e hierarquizada. A organização dos serviços de saúde é
composta por três grandes conjuntos de ações e serviços do SUS:

• A atenção básica (o programa de agentes comunitários de saúde, a estratégia da


família e as unidades básicas e ambulatórios hospitalares).
• A média complexidade (unidades ambulatoriais e hospitalares especializadas,
públicas e privadas).
• As redes de alta complexidade (referência nacional em várias especialidades médicas).

Considerando a atenção psicossocial básica, Amarante (2013, s.p.) aponta que


“os serviços de atenção psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexível para que
não se tornem espaços burocratizados, repetitivos, pois tais atitudes representam que
estariam deixando de lidar com as pessoas e sim com as doenças”. Apresentaremos os
principais serviços implementados no Brasil.

5.2.1 Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)


A Rede de Atenção Psicossocial é definida pelo governo como

a rede de serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituído


por equipe multiprofissional e que atua sobre a ótica interdisciplinar e
realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou
transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes
do uso de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em
situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial e
são substitutivos ao modelo asilar (BRASIL, 2017).

17
A Rede de Atenção Psicossocial é constituída por diversos componentes como a
Unidade Básica de Saúde, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o programa Consultório
na Rua, os Centros de Convivência e Cultura, além dos Centros de Atenção Psicossocial.

5.2.2 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS


Os Centros de Atenção Psicossocial oferecem acolhimento e tratamento multi-
profissional aos usuários, sem necessidade de agendamento prévio ou encaminhamen-
to. O usuário que procura o CAPS é acolhido e participa da elaboração de um Projeto
Terapêutico Singular específico para as suas necessidades e demandas. Uma equipe
multiprofissional composta por médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, en-
fermeiros, terapeutas ocupacionais avaliam o quadro do usuário e indicam o tratamento
adequado para cada caso.

O CAPS também atua no acolhimento às situações de crise, nos estados agudos


da dependência química e de intenso sofrimento psíquico. Os CAPS são divididos em I, II
ou III, de acordo com o número de habitantes de cada município, e também em CAPSi
(atendimento de crianças e adolescentes) e CAPSad (atendimento de dependência
química – álcool e drogas).

5.2.3 Saúde mental e Saúde da família


A Estratégia Saúde da Família (ESF) surgiu em 1994 com o nome de Programa
de Saúde da Família. A Figura 12 ilustra o cuidado familiar que a ESF procura alcançar,
nesse sentido, a equipe básica da ESF é composta por um médico generalista, um
enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes de saúde, esses
devem ser residentes no próprio território de atuação da equipe.

FIGURA 12 – SAÚDE DA FAMÍILIA

FONTE: <https://shutr.bz/2XOL0gh>. Acesso em: 12 jul. 2021.

18
Segundo as definições do governo, a ESF visa à reorganização da atenção
básica no país, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde,

e é tida pelo Ministério da Saúde e gestores estaduais e municipais


como estratégia de expansão, qualificação e consolidação da atenção
básica por favorecer uma reorientação do processo de trabalho com
maior potencial de aprofundar os princípios, diretrizes e fundamentos
da atenção básica, de ampliar a resolutividade e impacto na situação
de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma
importante relação custo-efetividade (BRASIL, 2021).

5.2.4 As Cooperativas e os Centros de convivência


A partir da aprovação da Lei n° 9.867, em 11 de novembro de 1999, foram
instituídas cooperativas sociais “constituídas com a finalidade de inserir as pessoas em
desvantagem no mercado econômico, por meio do trabalho” e que “se fundamentam
no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social
dos cidadãos” (BRASIL, 1999) e, muito embora tivesse nascido no âmbito do movimento
social da saúde mental e reforma psiquiátrica, ampliou o leque de beneficiários da lei
(AMARANTE, 2013).

Em São Paulo, regulamentados pela Portaria Municipal 964/2018, os Centros


de Convivência e Cooperativa (CECCO) têm como objetivo favorecer a aproximação e
convivência entre a população geral, em toda sua diversidade, sejam elas idosas, pessoas
com transtornos mentais, com deficiências, crianças e adolescentes, pessoas em situação
de rua, dentre outras. Os dispositivos foram instalados preferencialmente dentro de parques
públicos e de centros comunitários e são concebidos como espaços alternativos de
convivência, permanecendo aberto a todas as pessoas.

IMPORTANTE
A partir dos dispositivos apresentados, é possível afirmar que estamos
caminhando no sentido de construir um “novo modo de lidar com o
sofrimento mental, acolhendo e cuidando efetivamente dos sujeitos, e
a construção, consequente, de um novo lugar social para a diversidade,
a diferença e o sofrimento mental” (AMARANTE, 2013, s.p.).

19
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A Psicopatologia é o ramo da ciência que se ocupa das causas, estruturas e funcionamentos


das doenças e dos transtornos mentais, além de suas formas de manifestação.
Formalmente, a psicopatologia pode ser definida como o conjunto de conhecimentos
referentes ao adoecimento mental do ser humano.

• É da natureza da Psicopatologia ser um campo de conhecimento que não admite uma


teoria única e predominante, trata-se de uma ciência que exige debate constante
e aprofundado. Diferentemente de outras ciências, o conflito de ideias não é um
problema, mas uma necessidade. A evolução da Psicopatologia reside justamente
nas tentativas de esclarecimento e aprofundamento das diferentes teorias.

• O debate sobre normalidade e anormalidade é vivo e está em constante atualização,


visto que há sempre um juízo de valor e conotações políticas e filosóficas ao se
categorizar algo como patológico, impactando o modo como milhares de pessoas
estarão situadas em suas vidas na sociedade.

• Ao nos depararmos com a palavra “saúde mental”, devemos pensar não só em


Psiquiatria e Neurologia, mas principalmente em Psicologia, Psicanálise, Fisiologia,
História, Geografia e tantas outras áreas do conhecimento que fazem parte do
conceito de saúde mental. Devemos considerar como boas práticas em saúde
mental as práticas acessíveis a todos, baseadas em premissas éticas, em evidências
científicas e na experiência, singular e coletiva.

20
AUTOATIVIDADE
1 A Psicopatologia é uma ciência que pode ser compreendida a partir de diferentes
perspectivas. Com relação à definição da Psicopatologia Psicodinâmica, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Trata-se da visão mais objetiva, sem teoria pré-concebidas. Define as qualidades


essenciais dos transtornos mentais, registra as experiências conscientes e os
comportamentos dos doentes.
b) ( ) Fundamenta-se na observação do comportamento do doente, além das
próprias experiências descritas por ele. Essa perspectiva se propõe a explicar
as causas dos transtornos mentais, valendo-se principalmente dos processos
inconscientes.
c) ( ) Baseia-se na relação entre os acontecimentos anormais, criando hipóteses
a partir do estudo dos elementos associados aos transtornos, explicando as
alterações a partir de testes e observações.
d) ( ) É a perspectiva mais centrada no corpo, que compreende o adoecimento como um
mau funcionamento do cérebro a partir de suas dinâmicas biológicas.

2 Dentre os critérios de normalidade, um deles define de forma explícita o que é o


normal e o que é o patológico, objetivando trabalhar operacionalmente com esses
conceitos. De certa forma, essa perspectiva da normalidade seria a mais utilizada em
manuais de classificação como o CID e o DSM. Acerca do critério descrito, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Normalidade estatística.
b) ( ) Normalidade como bem-estar.
c) ( ) Normalidade subjetiva.
d) ( ) Normalidade operacional.

3 Poucos campos de conhecimento são tão complexos, plurais e intersetoriais como


o da saúde mental. De acordo com alguns conceitos apresentados nesta unidade,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Entende-se por boas práticas em saúde mental aquelas acessíveis a todos,


baseadas em premissas éticas, em evidências científicas e na experiência, singular
e coletiva.
( ) Um dos objetivos da Atenção Básica é dedicar esforços à atenção à saúde,
considerando o meio ambiente, o estilo de vida e a promoção da saúde como seus
fundamentos básicos.

21
( ) Não é preciso ampliar as capacidades comunicativas e gerenciais dos profissionais,
visto que não são características necessárias para a atuação em comunidade e
para a organização da assistência.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Ainda que os manuais e dicionários não consigam estabelecer um critério único de


normalidade e anormalidade, ao longo desta unidade delimitamos alguns critérios
de normalidade que podem ser utilizados pela Psicopatologia. Os principais foram:
normalidade como ausência de doença, normalidade estatística, normalidade como
bem-estar, normalidade como processo, normalidade subjetiva e normalidade
operacional. Nesse contexto, disserte sobre os três critérios expostos e as suas
principais falhas.

5 A Psicopatologia contemporânea originou-se a partir de duas vertentes: da tradição


médica e dos conhecimentos de outras ciências humanas (Filosofia, Literatura, Psicologia,
Psicanálise etc.). Nesse contexto, disserte sobre a importância de observarmos as
patologias a partir de uma construção multidisciplinar.

22
UNIDADE 1 TÓPICO 2 —
PSICOPATOLOGIA E PSICOSSOMÁTICA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 2, estudaremos os conceitos da Psicossomática, linha
teórica que surge no início do século XX inspirada na “arte de curar” da Medicina e
que pode ser definida como o estudo das relações entre as emoções e os males do
corpo. O subtópico 2 será dedicado a apresentação dos conceitos e das manifestações
psicossomáticas, tanto na infância quanto na adolescência.

No subtópico 3, iniciaremos os estudos dos transtornos mentais, ou seja, as


anormalidades, sofrimentos ou comprometimentos de determinação psicológica e/
ou mental. Faremos uma breve contextualização dos conceitos, pois estudaremos os
transtornos mentais de forma mais aprofundada na Unidade 3.

Encerraremos esse tópico no subtópico 4, com a apresentação das síndromes e


dos sintomas. Além de conhecer algumas das síndromes que podem acometer os seres
humanos, diferenciaremos os conceitos de síndromes, sintomas e doenças.

2 O QUE É PSICOSSOMÁTICO E SUAS MANIFESTAÇÕES


O conceito de psicossomático surge no início do século XX, inspirado na “arte
de curar” da Medicina. Podemos definir psicossomático como o estudo das relações
entre as emoções e os males do corpo, conforme apresentado na Figura 13, sendo que
somatização é a “manifestação de transtornos psicológicos – conflitos e angústias –
por meio de sintomas corporais. Essas tendências podem se manifestar através de
respostas a estresse psicossocial” (FERREIRA, 2015, p. 40).

FIGURA 13 – PSICOSSOMÁTICA: A MENTE E O CORPO

FONTE: <https://shutr.bz/3CyfeDe>. Acesso em: 12 jul. 2021.

23
A partir da Escola de Chicago, a psicossomática evoluiu em três fases:

• Inicial, ou psicanalítica, em que predominavam os estudos sobre o inconsciente e sua


relação com as enfermidades.
• Intermediária, ou behaviorista, o foco dessa fase era a pesquisa em homens e animais,
baseando-se em princípios das ciências exatas e com ênfase nos estudos sobre estresse.
• Atual ou multidisciplinar, essa perspectiva entende a psicossomática a partir de suas
interações e interconexões entre os diversos profissionais de saúde (MELLO-FILHO, 2010).

Atualmente, a psicossomática pode ser considerada como uma ideologia sobre a


saúde, o processo de adoecimento e as práticas em saúde. Portanto, nessa concepção, a
doença é vista como a impossibilidade da mente em processar os conflitos psíquicos, onde
mente e corpo são considerados como partes inseparáveis. Esse processo inconsciente
dispõe de reflexo psíquico e corporal que, ativados, atuam nos órgãos suscetíveis a sofrer
determinadas enfermidades (FERREIRA, 2015).

2.1 AS MANIFESTAÇÕES PSICOSSOMÁTICAS


Na teoria psicossomática, considera-se que os órgãos possuem significados
inconscientes, adquirem linguagem e expressão sobre forma de “somatização”, que
ressalta nos processos inconscientes e nos sintomas da doença orgânica sob a percepção
exterior, consciente. As alterações somáticas seriam, portanto, “sinais e sensações
privadas do significado afetivo, que tendem a apresentar-se como distorção da realidade
e são conduzidas à interpretação como sendo enfermidades somáticas de causa interior
ou influência externa” (FERREIRA, 2015, p. 41).

O que caracteriza a manifestação psicossomática são os sintomas físicos


sem evidências patológicas, ou seja, derivados de conflitos e angústias psíquicas.
Danilo Perestrello (1916-1989), psiquiatra e psicanalista, formulou as bases da medicina
psicossomática no contexto brasileiro, ancorado em referenciais da teoria e da técnica
psicanalíticas. Para o autor (s.p. apud GUEDES; RANGEL; CAMARGO, 2020, on-line), seria
preciso uma nova concepção sobre as doenças a partir de alguns pressupostos:

• O objeto do estudo do médico é o homem doente e não a doença.


• Não há doenças locais. Toda a enfermidade é geral e acomete o
indivíduo como um todo.
• O indivíduo isolado é uma abstração e só pode ser concebido em
seu ambiente.
• Os estados emocionais podem perturbar o funcionamento de
qualquer órgão e são tão eficazes na produção de modificações
somáticas quanto os estímulos físicos.
• Não são preocupações conscientes, reais, mas conflitos
inconscientes os principais responsáveis pelos sintomas somáticos.
• Os distúrbios funcionais podem, pela continuidade ou intensidade,
acarretar lesões estruturais.

24
Nesse sentido, o sintoma psicossomático faz parte da própria vida do indivíduo,
como parte de sua personalidade e não como um aspecto isolado. Portanto, toda
investigação deve considerar o contexto complexo de onde emerge o sintoma, e não
simplesmente examinar o órgão e suas manifestações.

2.2 INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA


Os problemas considerados como “puramente psicológicos” na infância são grandes,
principalmente os de natureza psicossomática, revelando desordens somáticas dependentes
em grande parte de fatores emocionais ou distúrbios ligados ao terreno da “doença física”,
tendo ligações com o sistema nervoso vegetativo ou com fatores psicológicos. É comum que
tais desordens estejam correlacionadas com o desenvolvimento emocional da criança, o qual
se processa conjuntamente com o desenvolvimento psicossexual (ARRUDA, 2015).

Um dos textos produzidos pelo psicanalista Donald W. Winnicott em 1949 intitulado A


mente e sua relação com o psique-soma teve importante contribuição para a psicossomática,
apontando que a psique e o soma não devem ser distinguidos um do outro. Juntos, formam o
psicossoma que seria o mais perto, desde o início da existência do ser humano original.

Winnicott entende que é necessário um meio ambiente perfeito para que ocorra
o desenvolvimento saudável do psicossoma, esse ambiente seria representado pelo útero,
enquanto o nascimento seria uma perturbação a essa homeostase, uma espécie de trauma
(BELMONT, 2010). Nesse sentido, para a teoria winnicottiana, o ser humano seria capaz de
recordar tudo o que lhe acontece, tanto em nível físico quanto emocional. Por isso que o autor
se dedicou tanto aos atendimentos com crianças, destacando a importância das psicoterapias
nessa faixa etária. A Figura 14 representa o que seria um atendimento com crianças.

FIGURA 14 – ATENDIMENTO PSICOLÓGICO COM CRIANÇAS

FONTE: <https://shutr.bz/3hVe7FM>. Acesso em: 12 jul. 2021.

25
Na tentativa de minimizar esses traumas e descontinuidades, algumas teorias
defendem o corte tardio do cordão umbilical e o reencontro da mãe com o bebê
logo após o parto. Ao manter o cordão umbilical por alguns minutos mantinha-se a
homeostasia anterior, o bebê continuaria a receber oxigênio e nutrientes pelo cordão
garantindo um suave ingresso em um mundo tão diferente do anterior. Além disso, com
a elaboração de conceitos como holding e handling, Winnicott provou que os cuidados
pós-natais são essenciais na integração psicossomática e nas fundações de tempo e
espaço (BELMONT, 2010).

A psicossomática na infância pode ser então entendida pelo estudo das


interações entre o bebê, que possui estrutura genética, capacidades e incapacidades
específicas, e o meio ambiente. É a partir desse encontro que “poderá resultar integração
psicossomática ou não. Mesmo potenciais genéticos particulares podem ser ativados ou
não, dependendo do maior ou menor nível de estresse que ocorra durante a gestação”
(BELMONT, 2010, p. 573).

2.3 ADOLESCÊNCIA E PSICOSSOMÁTICA


A adolescência é um momento único no desenvolvimento humano: o sujeito
vivencia a transformação do corpo infantil que impacta diretamente o desenvolvimento
do psiquismo e vice-versa. Esse período é marcado por um longo processo de conflito,
o jovem busca renunciar seu corpo infantil através das questões identitárias e de grupo.
Nesse sentido, o processo físico da puberdade associado ao processo emocional da
adolescência favorece o surgimento de diversos sintomas transitórios ou permanentes.

A adolescência poderia ser então encarada como um processo psicossomático


e não patológico, visto que o corpo muda e passa a ter novas funções, tornando-se um
novo soma. Geralmente, o psiquismo se adapta para essas novas condições, mantendo
a conexão psique-soma, ou mente-corpo. Entretanto, a perda dessa conexão pode
significar o adoecimento do corpo, é a saída psicossomática enquanto construção de um
sintoma apontando para a impossibilidade de simbolização do novo corpo (SILVA, 2018).

A Figura 15 representa um atendimento psicológico com adolescentes, um


momento importante para reconhecer as características “normais” da adolescência que não
devem ser encaradas como patológicas. Dentre elas, podemos destacar:

• Busca de si mesmo e de sua identidade.


• Tendência a formar grupos, que há atuações de aparência psicopática, porém normais
para essa etapa do desenvolvimento.
• Necessidade de intelectualizar e fantasiar, que aparece na preocupação do
adolescente por princípios éticos, filosóficos e sociais.
• Evolução da sexualidade, desde o autoerotismo à aquisição de uma vida genital
adulta.

26
• Atitude social reivindicatória, com tendência a assumir atitudes antissociais,
diretamente relacionada com o modo como é recebido pelo mundo adulto.
• Instabilidade de conduta, variando do hostil ao amoroso.
• Necessidade de separar-se progressivamente dos pais ou de seus substitutos.
• Variações constantes do humor (irritabilidade, depressão, euforia).

FIGURA 15 – ATENDIMENTO PSICOLÓGICO COM ADOLESCENTES

FONTE: <https://shutr.bz/3tW5PlL>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Além de ser importante considerar esses aspectos esperados do desenvolvi-


mento, é preciso pensar nas patologias da infância e da adolescência de modo singular.
O que é vivenciado pelo paciente, como as angústias e os traumas, é somado às vivên-
cias não elaboradas pelos pais/cuidadores. Nesse sentido, é comum que a patologia
psicossomática acometa toda a família, no que pode ser denominado “ambiente psicos-
somatizador” (SILVA, 2018).

IMPORTANTE
“A origem de todo conflito psicossomático está na presença do ritmo dentro
do ventre materno. A criança, nesse período, vivencia os movimentos da
mãe, sua cadência, o som do coração e a sensibilidade plena desse corpo,
e essas vibrações são transmitidas para o inconsciente desse feto, que
elabora suas primeiras impressões da vida” (FERREIRA, 2015, p. 43).

3 OS TRANSTORNOS MENTAIS
Atribui-se o nome de transtorno a qualquer anormalidade, sofrimento ou
comprometimento de determinação psicológica e/ou mental, como as alterações de
pensamento, emoções e comportamento. É preciso considerar que pequenas alterações
nesses aspectos são comuns, mas quando passam a gerar angústia ou interferir em
nossa vida cotidiana, podem ser considerados transtornos de saúde mental, cujo efeitos
podem ser duradouros ou temporários.

27
Atualmente, a investigação dos transtornos mentais se dá de forma
interdisciplinar, considerando áreas como a Psicologia, a Psiquiatria, a Filosofia, entre
outras. A Psicologia e a Psiquiatria optam por utilizar as terminologias transtornos,
perturbações ou distúrbios psíquicos, evitando-se o uso da palavra doença pois apenas
poucos quadros clínicos mentais apresentam todas as características de uma doença
no sentido tradicional do termo.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU)


caracterizam os transtornos mentais como alterações mórbidas do modo de pensar e/
ou do humor (emoções), e/ou por alterações mórbidas do comportamento associadas
a angústia expressiva e/ou deterioração do funcionamento psíquico global. Os transtornos
mentais não constituem, apenas, em variações dentro da escala do normal, mas em
fenômenos anormais ou patológicos (FERREIRA, 2015).

Quatro das dez principais causas de incapacidade nas pessoas com cinco
anos de idade ou mais se devem a transtornos de saúde mental, sendo a depressão a
principal delas. Apesar dessa prevalência elevada, apenas cerca de 20% das pessoas
que têm transtornos mentais procuram assistência médica (FIRST, 2020). Isso porque
ainda há um estigma muito grande com relação à saúde mental, a própria pessoa pode
ser culpada pela sua condição ou considerada preguiçosa ou irresponsável. Além disso,
é comum que o transtorno mental seja interpretado como menos real ou legítimo do
que a doença física.

Atualmente, as referências mais utilizadas para as classificações diagnósticas


são o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), e a Classificação
Internacional de Doenças (CID), que serão devidamente apresentados na Unidade 3.
Mesmo com essas classificações, nem sempre é possível diferenciar com clareza um
transtorno mental de um comportamento normal. A linha divisória entre ter determinadas
características de personalidade (por exemplo, ser metódico ou organizado) e ter um
distúrbio de personalidade (por exemplo, transtorno obsessivo-compulsivo) pode ser tênue.

Dessa forma, acredita-se que os transtornos mentais sejam ocasionados por


uma interação complexa entre fatores genéticos, biológicos, psicológicos e ambientais.
Atualmente, a Psiquiatria tem valorizado o aspecto genético dos transtornos mentais,
compreendendo que estes ocorrem a partir de composições genéticas vulneráveis a
determinados transtornos. Ao associar essa vulnerabilidade a fatores como o estresse
ou problemas relacionados ao trabalho, pode-se dar origem ao desenvolvimento de um
transtorno mental.

28
4 AS SÍNDROMES E OS SINTOMAS
O termo síndrome origina-se da palavra grega “syndromé”, que significa
“reunião”. Quando utilizada na área da saúde, a síndrome é definida como uma reunião
de sintomas e sinais que estão associados a mais de uma causa e que podem definir
determinada patologia ou condição. Diferentemente do que acontece nas doenças, a
sintomatologia das síndromes é inespecífica, podendo ter diversas origens. É por isso
que alguns pacientes diagnosticados com síndromes podem nunca chegar a uma
conclusão definitiva sobre a causa de seus sinais e sintomas. Um dos exemplos é a
Síndrome de Down, pois, ainda que se saiba a sua origem cromossômica, não se sabe
exatamente o que causa a alteração.

As síndromes podem apresentar-se como: ansiedade generalizada (sintomas


ansiosos excessivos), crise de ansiedade (crises intermitentes), crise de pânico (crises
intensas de ansiedade), síndrome do pânico (crises recorrentes com desenvolvimento
de medo), síndrome mista de ansiedade e depressão (sintomas depressivos e ansiosos),
ansiedade de origem orgânica (síndrome ansiosa em decorrência de doença ou condição
orgânica) (FERREIRA, 2015). Quanto aos sintomas, podem ser definidos como alterações
no corpo percebidas e relatadas pelo próprio sujeito, como dor de cabeça, angústia,
náusea etc. Os sintomas são aspectos subjetivos e, diferentemente dos sinais, não é
possível observá-los diretamente. Já os sinais são objetivos e não dependem do relato
do sujeito, pois podem ser observados diretamente como a febre ou o edema.

29
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Psicossomática é o estudo das relações entre as emoções e os males do corpo,


sendo que somatização é a “manifestação de transtornos psicológicos – conflitos e
angústias – por meio de sintomas corporais. Essas tendências podem se manifestar
através de respostas a estresse psicossocial” (FERREIRA, 2015, p. 40). Atualmente, a
psicossomática pode ser considerada como uma ideologia sobre a saúde, o processo
de adoecimento e as práticas em saúde.

• A psicossomática na infância pode ser entendida como o estudo das interações entre
o bebê, que possui estrutura genética, capacidades e incapacidades específicas,
e o meio ambiente. É a partir desse encontro que poderá resultar integração
psicossomática ou não. Mesmo potenciais genéticos particulares podem ser ativados
ou não, dependendo do maior ou menor nível de estresse que ocorra durante a
gestação.

• Chamamos de transtorno qualquer anormalidade, sofrimento ou comprometimento


de determinação psicológica e/ou mental, como as alterações de pensamento,
emoções e comportamento. É preciso considerar que pequenas alterações nesses
aspectos são comuns, mas quando passam a gerar angústia ou interferir em nossa
vida cotidiana, podem ser consideradas transtornos de saúde mental.

• As síndromes podem ser definidas como uma reunião de sintomas e sinais que
estão associados a mais de uma causa e que podem definir determinada patologia
ou condição. Diferentemente do que acontece nas doenças, a sintomatologia das
síndromes é inespecífica, podendo ter diversas origens. Quanto aos sintomas, podem
ser definidos como alterações no corpo percebidas e relatadas pelo próprio sujeito,
como dor de cabeça, angústia, náusea etc. Os sintomas são aspectos subjetivos e,
diferentemente dos sinais, não é possível observá-los diretamente.

30
AUTOATIVIDADE
1 Podemos definir psicossomático como o estudo das relações entre as emoções e os
males do corpo, sendo que somatização é a “manifestação de transtornos psicológicos
– conflitos e angústias – por meio de sintomas corporais. Essas tendências podem
se manifestar através de respostas a estresse psicossocial” (FERREIRA, 2015, p. 40).
Com relação à forma como a doença é encarada pela Psicossomática, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) A doença é vista como a impossibilidade da mente em processar os conflitos


exteriores ao sujeito, visto que mente e corpo são considerados de forma
separada.
b) ( ) Como a mente é capaz de processar todos os conflitos psíquicos, a doença é
vista como uma resposta biológica do corpo à agressões externas.
c) ( ) A psicossomática encara a doença como uma resposta proporcional do corpo ao
estresse psicossocial.
d) ( ) A doença é vista como a impossibilidade da mente em processar os conflitos
psíquicos, em que mente e corpo são considerados como partes inseparáveis.

2 Danilo Perestrello (1916-1989), psiquiatra e psicanalista, formulou as bases da


medicina psicossomática no contexto brasileiro, ancorado em referenciais da teoria
e da técnica psicanalíticas. Para o autor, seria preciso uma nova concepção sobre
as doenças a partir de alguns pressupostos. Acerca desses pressupostos, analise as
sentenças a seguir:

I- O objeto do estudo do médico é o homem doente e não a doença.


II- Os estados emocionais podem perturbar o funcionamento de qualquer órgão e são
tão eficazes na produção de modificações somáticas quanto os estímulos físicos.
III- São as preocupações conscientes, reais, as principais responsáveis pelos sintomas
somáticos

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

31
3 O termo síndrome origina-se da palavra grega “syndromé”, que significa “reunião”.
Quando utilizada na área da saúde, é atribuída a um conjunto de sinais e sintomas
físicos e/ou psicológicos que geram a manifestação de uma ou várias doenças e
condições clínicas que independem da etiologia. Com relação às síndromes e aos
sintomas, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

( ) A sintomatologia das síndromes é inespecífica, podendo ter diversas origens.


( ) Os sintomas são aspectos objetivos e, diferentemente dos sinais, é possível
observá-los diretamente.
( ) A síndrome é definida como uma reunião de sintomas e sinais que estão associados
a mais de uma causa e que podem definir determinada patologia ou condição.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A adolescência poderia ser encarada como um processo psicossomático e não


patológico, visto que o corpo muda e passa a ter novas funções, tornando-se um novo
soma. Nesse sentido, torna-se importante conhecer as características “normais” da
adolescência que não devem ser encaradas como patológicas. Disserte sobre pelo
menos três características apresentadas neste tópico.

5 Apesar dessa prevalência elevada, apenas cerca de 20% das pessoas que têm
transtornos mentais procuram assistência médica. Disserte sobre os possíveis
motivos para essa baixa procura por ajuda especializada.

32
UNIDADE 1 TÓPICO 3 —
AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E SUAS
ALTERAÇÕES

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3, abordaremos as funções psíquicas e suas alterações,
dedicando o Subtópico 2 para a apresentação das funções psíquicas elementares. Vale
ressaltar que a separação da atividade mental em áreas distintas é um procedimento
puramente didático. É preciso considerar que as pessoas adoecem na sua totalidade, não
existindo doenças que acometem exclusivamente uma função.

Entretanto, para uma melhor compreensão estudaremos as funções


separadamente: consciência, atenção, orientação, vivências do tempo e do espaço,
sensopercepção, memória, vontade, psicomotricidade, afetividade, pensamento,
juízo e a linguagem. Além de conhecermos as principais funções psíquicas, também
aprenderemos sobre as principais alterações que podem acometer cada uma delas,
ocasionando doenças ou transtornos mentais específicos.

Por fim, mas não menos importante, no Subtópico 3 conheceremos um pouco das
funções psíquicas compostas que, diferentemente das funções psíquicas elementares,
resultam de agrupamentos de funções, ou seja, a somatória de atividades e capacidades
mentais e comportamentais. Nesse subtópico, abordaremos as três principais funções
psíquicas compostas: o Eu (Self), a personalidade e a inteligência.

2 AS FUNÇÕES PSÍQUICAS ELEMENTARES


Ainda que seja importante estudar as funções psíquicas de forma isolada para
uma melhor compreensão de cada função, é importante lembrar que a separação da
atividade mental em áreas distintas é um procedimento artificial e puramente didático. A
separação é útil pois permite o estudo mais “detalhado e aprofundado de determinados
fatos da vida psíquica normal e patológica; é arriscada porque facilmente se passa a acreditar
na autonomia desses fenômenos, como se fossem objetos naturais” (DALGALARRONDO,
2019, s.p.).

Nesse sentido, não existem funções psíquicas isoladas ou doenças que


acometem exclusivamente uma função, é preciso considerar que as pessoas adoecem
na sua totalidade, conforme ilustrado pela Figura 16.

33
FIGURA 16 – AS FUNÇÕES PSÍQUICAS ELEMENTARES

FONTE: <https://shutr.bz/2ZcS073>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Segundo Dalgalarrondo (2019), o sentido das psicopatologias é definido a partir


de um fundo mental e das relações inter-humanas, mais do que pelos sinais e sintomas
apresentados pelo sujeito. Portanto, nos transtornos mentais, os sintomas estão ligados
estruturalmente entre si, não devemos encará-los apenas como um agrupamento.

2.1 A CONSCIÊNCIA E A ATENÇÃO


A consciência constitui uma síntese ou integração de todos os processos
mentais em determinado momento. Na definição neuropsicológica, a consciência está
ligada ao estado de vigilância, de clareza. Para a psicologia, a consciência representa a
soma total das experiências conscientes em determinado momento, ou seja, trata-se
de um campo.

Nesse sentido, a consciência psicológica pode ser considerada mais como


uma qualidade subjetiva que os processos mentais, como sensopercepção, memória,
imaginação, pensamento, afeto e vontade, podem ter. Algumas características da
consciência são: relacionar-se com vivências internas e atuais; é central na distinção eu/
não eu; é o conhecimento que os indivíduos possuem de suas vivências internas, de seu
corpo e do mundo externo; possui intencionalidade além de ser reflexiva.

A consciência pode sofrer alterações consideradas normais, como o sono, ou


patológicas (de forma quantitativa ou qualitativa). Uma das patologias quantitativas que
pode acometer a consciência são os diversos graus de rebaixamento, divididos em:
obnubilação, torpor, sopor e coma. Quanto às alterações qualitativas, podemos citar
os estados crepusculares, a dissociação da consciência, o transe e o estado hipnótico
(DALGALARRONDO, 2019).

A atenção, por sua vez, pode ser definida como o estado de concentração
da atividade mental sobre determinado objeto, ou ainda como o processo pelo qual a
consciência é direcionada para determinado estímulo (imagem, afeto ou pensamento).

34
Nesse sentido, a atenção refere-se ao conjunto de “processos psicológicos que torna
o ser humano capaz de selecionar, filtrar e organizar as informações em unidades
controláveis e significativas” (DALGALARRONDO, 2019, s.p).

A atenção voluntária está relacionada a um esforço intencional e consciente na


direção do objeto. A atenção espontânea ou involuntária consiste na reação automática,
não consciente e não intencional aos estímulos. Nos últimos anos, a neuropsicologia
passou a subdividir os estudos da atenção em: capacidade e foco de atenção, atenção
seletiva, atenção dividida, atenção alternada, atenção sustentada e seleção de resposta
e controle executivo.

Dentro das possíveis alterações da atenção, destacam-se:

• Hipoprosexia: é a mais comum e a menos específica, há uma perda básica da


capacidade de concentração, aumento da fadiga, dificuldade para lembrar, pensar e
raciocinar.
• Hiperprosexia: estado exacerbado da atenção, é caracterizada pela obstinação e
pela infatigabilidade.
• Distração: não é uma anormalidade em si, mas um sinal de que o indivíduo está
concentrado em determinado objeto e inibindo outras coisas ao seu redor.
• Distraibilidade: estado patológico representado pela instabilidade e mobilidade da
atenção voluntária, com dificuldade ou incapacidade para se fixar ou se ater.

2.2 A ORIENTAÇÃO E AS VIVÊNCIAS DO TEMPO E DO ESPAÇO


A orientação é a capacidade de se situar em relação a si mesmo e ao ambiente,
condição básica da atividade mental e fundamental para a sobrevivência do indivíduo.
Segundo Dalgalarrondo (2019), não podemos classificar a orientação como uma função
psíquica especificamente, mas sim como a integração de funções como a percepção, a
atenção, a memória, o pensamento, a inteligência e o afeto. A orientação divide-se em
autopsíquica, o indivíduo em relação a si mesmo (nome, idade, profissão), e alopsíquica,
que é a capacidade de orientar-se em relação ao mundo (tempo e espaço).

A orientação espacial significa saber exatamente onde se está e pode ser


investigada perguntando ao paciente se ele sabe o lugar exato onde ele se encontra
(prédio, bairro, cidade, país). Já a orientação temporal significa saber o dia da semana,
mês e ano em que se está. Com relação ao desenvolvimento infantil, a orientação
temporal é adquirida mais tardiamente que a espacial.

São inúmeros os tipos de desorientações e variam de acordo com a alteração


de base que a condiciona. A desorientação geralmente acomete primeiro questões
relacionadas ao tempo, quando há agravamento do transtorno, o indivíduo desorienta-

35
se quanto ao espaço e, por fim, quanto a si mesmo. Podemos citar alguns quadros como:
desorientação por déficit intelectual, desorientação por dissociação, desorientação por
redução do nível de consciência, desorientação apática, desorientação delirante etc.
(DALGALARRONDO, 2019).

Quanto às vivências do tempo e do espaço, podemos afirmar que são fundamentais


para todas as experiências humanas, visto que o “ser” só é possível nas dimensões
reais e objetivas do tempo e do espaço. Portanto, o tempo e o espaço são, ambos,
condicionantes fundamentais do universo humano e estruturantes básicos da nossa
experiência. A dimensão temporal da experiência humana relaciona-se com os
chamados ritmos biológicos, sendo que os principais para a Psicopatologia são: o ritmo
circadiano (cerca de 24h), as quatro estações do ano, os ritmos relacionados ao ciclo
menstrual e os marcos da vida humana (gestação, nascimento, infância, adolescência,
período adulto, velhice e morte) (DALGALARRONDO, 2019).

Quanto às alterações nas vivências do tempo, em quadros depressivos graves, a


passagem do tempo é percebida como lenta e vagarosa. Em contrapartida, nos estados
maníacos, é percebida como rápida e acelerada. Nas intoxicações por alucinógenos ou
psicoestimulantes, há uma deformação acentuada da percepção da duração temporal,
enquanto no caso de pacientes com esquizofrenia, há certa passividade em relação
ao fluir do tempo. Em casos graves, há uma verdadeira desintegração da sensação do
tempo e do espaço (DALGALARRONDO, 2019).

2.3 A SENSOPERCEPÇÃO E A MEMÓRIA


Todas as informações do ambiente chegam até nosso organismo por meio
das sensações, portanto, a sensopercepção constitui a primeira etapa da cognição (o
conhecimento do mundo externo). A sensação pode ser considerada um fenômeno passivo,
físico e objetivo, enquanto a percepção seria um fenômeno ativo, psíquico e subjetivo
(DALGALARRONDO, 2019).

Ainda que a distinção entre sensações e percepções seja artificial, visto que
chegam a nossa consciência de forma total e estruturada, didaticamente seria possível
considerar as formas e cores em uma fotografia, como a sensação e as carteiras, crianças
e quadro negro de uma sala de aula, como a percepção. Segundo Dalgalarrondo (2019), o
processo de sensopercepção se dá através da imagem perceptiva real ou imagem, que
possui qualidades como nitidez, estabilidade, corporeidade, extrojeção, ininfluenciabilidade
voluntária e completude.

Com relação às alterações quantitativas, as imagens perceptivas têm intensidade


anormal e podem configurar, segundo Cheniaux (2015):

• Hiperestesias: as percepções encontram-se anormalmente aumentadas em


sua intensidade ou duração. Os sons são ouvidos de forma muito amplificada e as
imagens visuais e as cores tornam-se mais vivas e intensas.
36
• Hipoestesias: o mundo é percebido como mais escuro e as cores tornam-se mais
pálidas e sem brilho.
• Hiperpatias: sensações desagradáveis são produzidas por um leve estímulo da pele,
por exemplo, uma queimação dolorosa.
• Anestesias: perda da sensação tátil em determinada área da pele.
• Analgesias: perda das sensações dolorosas.

As alterações qualitativas da sensopercepção são representadas pela:

• Ilusão: percepção falseada, deformada, de um objeto real e presente.


• Alucinação: esse fenômeno ocorre quando se interpreta como estando no campo
perceptual um objeto que de fato não está.
• Pareidolia: trata-se de imagens criadas intencionalmente a partir de percepções reais
de elementos sensoriais imprecisos, por exemplo: ver figuras humanas em nuvens ou em
manchas na parede.
• Sinestesia: ocorre quando o estímulo sensorial em uma modalidade é percebido como
uma sensação em outra modalidade, por exemplo: ver sons, ouvir cores etc. (CHENIAUX,
2015).

Com relação à memória, Dalgalarrondo (2019) a define como a capacidade de


codificar, armazenar e evocar as experiências, impressões e fatos que ocorrem em nossas
vidas. Portanto, tudo o que aprendemos depende intimamente da memória. Pesquisadores
das neurociências têm atribuído papel central à memória e à identidade do ser humano,
perder a memória, nessa perspectiva, significaria perder a si e a história de uma vida.

A memória psicológica possui três fases, a saber: codificação (captar e codificar


informações), armazenamento (reter as informações) e recuperação ou evocação (as
informações são recuperadas para os devidos fins). Dentro desse processo, a neuropsicologia
moderna divide a memória em quatro momentos temporais:

• Memória sensorial e depósito sensorial (até 1 segundo): as memórias sensoriais são


ricas em conteúdo, mas brevíssimas em tempo. São os estímulos visuais e auditivos que
recebemos constantemente, mas que guardamos por menos de um segundo.
• Memória imediata ou de curtíssimo prazo (de poucos segundos até 1 a 3 minutos):
é a capacidade de reter algum tipo de informação imediatamente após ter recebido,
como um número de telefone que discaremos logo em seguida.
• Memória recente ou de curto prazo (de poucos minutos até 3 a 6 horas): refere-se
à capacidade de reter a informação por curto período e com uma capacidade limitada.
• Memória de longo prazo ou remota (de dias, meses até muitos anos): a memória de
longo prazo representa o armazenamento permanente de informações. Mesmo sendo
fixadas há alguns minutos, são informações que poderão ser evocadas por anos ou até
por toda a vida. É um tipo de memória de capacidade bem mais ampla em termos de
itens a serem guardados que a memória imediata e a recente.

As memórias de longo prazo podem ser divididas em explícitas e implícitas. As


memórias explícitas representam informações acessíveis à consciência, sendo possível
evocá-las voluntariamente, podendo ser expressas em palavras. A memória implícita é
37
um tipo de memória que adquirimos e utilizamos sem que percebamos, sem consciência
e, geralmente, sem esforço. É uma forma relativamente automática e espontânea, como
andar de bicicleta ou saber escovar os dentes (CHENIAUX, 2015; DALGALARRONDO, 2019).

As alterações quantitativas da memória podem ocorrer com a hipermnésia,


resultando na aceleração do pensamento, além de numerosas recordações pouco claras e
que fluem rapidamente ou com a amnésia (anterógrada ou retrógrada), quando perdem-se
elementos mnêmicos para fatos posteriores a um trauma, no caso da anterógrada, ou para
fatos ocorridos antes do trauma, no caso da retrógrada.

Quanto às alterações qualitativas da memória os quadros mais comuns são:

• Ilusões mnêmicas: elementos falsos são acrescidos à uma lembrança verdadeira.


• Alucinações mnêmicas: memórias fantasiosas, sem dados de realidade.
• Fabulação: produções de relatos, narrativas e ações que são involuntariamente
incongruentes com a história passada do indivíduo.
• Criptomnésias: as lembranças não são reconhecidas como memória, o indivíduo as
vivenciam como um fato novo.
• Pseudologia fantástica: histórias e construções fantasiosas mescladas com a realidade,
o sujeito acometido responde com fluência e realmente crê no que fala.

2.4 A VONTADE E A PSICOMOTRICIDADE


A vontade, ou volição, pode ser definida como uma elaboração cognitiva
realizada a partir dos impulsos, influenciada por fatores intelectivos e socioculturais. A
vontade constitui um processo psíquico de escolha de uma entre várias possibilidades
de ação, uma atividade consciente de direcionamento da ação. O ato volitivo se dá, de
forma geral, como um processo composto por quatro etapas: intenção, deliberação,
decisão e execução (CHENIAUX, 2015).

As alterações quantitativas da vontade são definidas como: hiperbulia (aumento da


vontade e da iniciativa), hipobulia (diminuição da vontade, comum em quadros depressivos)
e a abulia (ausência da vontade, ocorre em depressões graves e quadros neurológicos).
Dentre as alterações qualitativas podemos citar os atos compulsivos, os atos impulsivos, o
negativismo, a obediência automática etc. (CHENIAUX, 2015).

Já as ações psicomotoras são atos voluntários e conscientes no que diz


respeito à motivação e a finalidade, representando a última etapa do processo volitivo:
a execução. Essas ações possuem conteúdos psicológicos, sendo a expressão final de
todo evento psíquico, inclusive da fala.

38
As alterações quantitativas da psicomotricidade são divididas em: apraxia
(dificuldade ou impossibilidade de realizar atos motores voluntários), hipocinesia
(diminuição acentuada e generalizada dos movimentos voluntários) e hipercinesia
(aumento patológico da atividade motora voluntária).

Já as alterações qualitativas da psicomotricidade manifestam-se através da


ecopraxia (repetição automática de ações motoras executadas por outra pessoa, como a
postura ou a fala), das estereotipias (ações motoras desprovidas de finalidade e de sentido,
como gestos, movimentos ou palavras e frases) etc. (CHENIAUX, 2015).

2.5 A AFETIVIDADE E O PENSAMENTO


A afetividade é composta por emoções e sentimentos, sendo responsável por
dar cor e brilho a todas as experiências humanas. Os afetos podem ser considerados
uma consequência das nossas ações que buscam satisfazer certas necessidades,
resultando em experiências agradáveis ou desagradáveis.

Segundo Dalgalarrondo (2019), os afetos são divididos em cinco tipos, a saber:

• Humor: é o estado emocional (ou de ânimo) que nos encontramos em determinado


momento. Toda a experiência psíquica passa por esse afeto, podendo ser considerado
como uma “lente afetiva”.
• Emoções: podem ser consideradas como um estado afetivo intenso e de curta
duração, originado a partir da reação a excitações internas ou externas. As emoções
geralmente são acompanhadas por sensações somáticas.
• Sentimentos: estado afetivo menos intenso e mais prolongado que as emoções,
sem alterações fisiológicas. Os sentimentos associam-se aos conteúdos intelectuais,
valores e representações.
• Afetos: qualidade que acompanha uma ideia ou representação mental. Os afetos
podem ser considerados como o componente emocional de uma ideia, ou seja,
propiciam um “colorido afetivo”.
• Paixões: estado afetivo intenso que domina a atividade psíquica, dirigindo a atenção
para uma só direção. Nesse estado, os demais interesses ficam inibidos.

As alterações quantitativas da afetividade ocorrem através da exaltação afetiva


(aumento da intensidade ou duração dos afetos) ou do embotamento afetivo (diminuição
da intensidade e da excitabilidade dos afetos, sejam eles positivos ou negativos).

As alterações qualitativas da afetividade podem ser divididas em distúrbios


da modulação afetiva e distúrbios do conteúdo dos afetos. Entre os distúrbios da
modulação afetiva estão: a labilidade afetiva, a incontinência afetiva e a rigidez afetiva.
Entre os distúrbios do conteúdo dos afetos estão: a paratimia, a ambitimia e a neotimia
(CHENIAUX, 2015).

39
O pensar está relacionado à antecipação de acontecimentos e à construção
de modelos da realidade, sendo suas principais funções: a elaboração de conceitos,
a formação de juízos e o raciocínio. Didaticamente, o pensamento pode ser dividido
em algumas modalidades: pensamento lógico (regido pela lógica formal, realidade
e racionalidade), pensamento indutivo (a partir da observação de fatos elementares,
chega-se a conclusões mais amplas), pensamento dedutivo (parte de esquemas e
definições constituídos para deduzir a correção do pensamento), pensamento intuitivo
(apreensão de uma realidade de forma direta e imediata) e o pensamento crítico (estar
atento às possíveis falhas em seu próprio raciocínio).

Não há um consenso nas definições e classificações das alterações do


pensamento. Cheniaux (2015) propõe a seguinte classificação:

• Quantitativas: curso (aceleração, alentecimento, interrupção).


• Qualitativas: forma (fuga de ideias, desagregação, prolixidade, minuciosidade,
perseveração) e conteúdo (concretismo; ideias delirantes, deliroides e sobrevaloradas).

2.6 O JUÍZO E A LINGUAGEM

O ajuizar (produzir juízos) é uma atividade humana que significa julgar. A


articulação de dois conceitos ou ideias, como ver uma sala e diversas cadeiras e afirmar
que se trata de uma sala de aula, é um exemplo da formação de um juízo. É através do
juízo que nos relacionamos com a realidade, visto ser uma função necessária para saber
da existência ou não de um objeto (juízo de existência), ou saber das qualidades desse
objeto (juízo de valor). Dentre as alterações patológicas do juízo, podemos destacar:

• Delírio: ideias que o indivíduo trata como verdadeiras com toda convicção, entretanto,
estão distantes da realidade.
• Ideia deliróide: são delírios secundários às circunstâncias de vida da pessoa; são
compreensíveis pois estão baseados em evidências delirantes.

Por fim, mas não menos importante, a linguagem é o principal instrumento


de comunicação dos seres humanos. Trata-se de um sistema relativamente arbitrário
de signos (fonéticos e gráficos), responsável pela intermediação das funções do
pensamento e do mundo externo. Além disso, é fundamental na elaboração e na
expressão do pensamento e das emoções.

Segundo Cheniaux (2015), dentre as finalidades da linguagem podemos destacar:


comunicação social, expressão de vivências internas (pensamentos, sentimentos), organização
da experiência sensorial e dos processos mentais, tradução dos estímulos externos, indicação
e descrição das coisas, transmissão de conhecimentos e regulação da conduta.

Ainda que de forma artificial e por motivos didáticos, as principais alterações da


linguagem são:

40
• Afasias: perda da linguagem falada e ouvida, por incapacidade de compreender e
utilizar os símbolos verbais, decorrente de lesão neuronal.
• Agrafia: incapacidade da expressão através da linguagem escrita, sem que haja
qualquer déficit motor ou perda cognitiva global.
• Alexia: é a perda da capacidade previamente adquirida para a leitura, decorrente de
disfunção ou lesão neuronal.
• Afonia: perda da voz sem danos neurológicos e musculares. Geralmente ocorre após
um evento de vida estressante.
• Ecolalia: repetição, como um eco, da última ou últimas palavras proferidas por
alguma pessoa no ambiente.
• Parafasia: deformação ou troca de palavras, podendo ser literais ou verbais.

As alterações da fala são inúmeras e podem ocorrer de forma mecânica (sem a


presença de transtornos mentais) ou associadas a algum tipo de transtorno mental, que
são o objeto de estudo da Psicopatologia. O aprofundamento no estudo das alterações da
fala pode ser feito em Dalgalarrondo (2019) ou Cheniaux (2015).

3 AS FUNÇÕES PSÍQUICAS COMPOSTAS


Diferentemente das funções psíquicas elementares que estudamos até agora,
as funções psíquicas compostas resultam de agrupamentos de funções, trata-se de
uma somatória de atividades e capacidades mentais e comportamentais.

As noções de Eu, self e de identidade são sobrepostas e variam de acordo


com a teoria estudada, assim como a inteligência, que inclui o conjunto de habilidades,
talentos, limitações e capacidades cognitivas de um indivíduo. Outra função composta, a
personalidade, pode ser definida como “a soma dos traços e características psicológicas
individuais, das marcas pessoais, formas de sentir e reagir, relativamente estáveis no tempo
e formados ao longo do desenvolvimento mental e físico do indivíduo” (DALGALARRONDO,
2019, s.p). Podemos pensar as funções psíquicas compostas como peças de quebra-
cabeça representadas pela Figura 17, visto que as diferentes teorias podem se sobrepor e,
em alguns casos, serem contraditórias.

FIGURA 17 – AS FUNÇÕES PSÍQUICAS COMPOSTAS

FONTE: <https://shutr.bz/3hUWkhL>. Acesso em: 12 jul. 2021.

41
Nesse campo da Psicopatologia, Segundo Dalgalarrondo (2019), isso pode causar
confusão em quem está estudando o tema, principalmente porque as distinções entre
os termos são sutis e difíceis de serem demarcadas. Considerando essas pontuações,
os próximos três subtópicos apresentarão as principais funções psíquicas compostas.

3.1 O EU E O SELF
Os conceitos de “Eu” e de “Self” são amplos e variam de acordo com o período
e a linha teórica. Uma das visões mais aceitas pela psicologia do desenvolvimento aponta
que o Eu se desenvolve ao longo do primeiro ano de vida da criança, tornando-se mais
nítido e consistente após esse período. Após o primeiro ano, a criança desenvolve a
capacidade de perceber e representar objetos autônomos e estáveis em sua mente,
além de elaborar uma visão de si mesma como um ser independente dos demais
(DALGALARRONDO, 2019).

Para a Psicanálise, é no contato com a realidade que a criança desenvolve o Eu (Ego),


considerando as adaptações do aparelho psíquico. O ego seria composto a partir de quatro
etapas: contato com a realidade e com o princípio de realidade (representado pela Figura
18); investimento amoroso dos pais sobre a criança; projeção dos desejos inconscientes dos
pais sobre a criança e a assimilação desses desejos pela própria criança, e a identificação da
própria criança com os modelos parentais.

FIGURA 18 – O EU E O SELF

FONTE: <https://shutr.bz/2XCaehG>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Já para Skinner, um dos precursores do Behaviorismo Radical, o conceito de


Eu pode ser definido como um dispositivo que representa um sistema de respostas
funcionalmente unificado. O Eu representaria algo que o indivíduo faz, determinado por
condições distintas ao organismo. Portanto, o termo se referiria a um modo de ação
comum, determinado por estímulos e condições emocionais.

42
Para a Psicologia Humanista, o conceito de self, também chamado de
autoconceito e de noção de Eu, é a percepção de si e da realidade pela própria pessoa.
Trata-se de uma estrutura, um conjunto organizado e mutável de percepções relativas
ao próprio indivíduo, podendo ser divididas em: características, atributos, qualidades e
defeitos etc.

3.2 A PERSONALIDADE
O estudo da personalidade humana é um tema complexo e plural, que envolve
diversas áreas do conhecimento. A tentativa de conhecer e delimitar a personalidade
humana na sua totalidade é impossível, pois sempre haverá dimensões e elementos
que não poderão ser alcançados. A Figura 19 apresenta de forma gráfica uma das
definições para o conceito de personalidade, ou seja, o modo característico como
uma pessoa sente, pensa, reage, se comporta e relaciona-se com as outras pessoas
(DALGALARRONDO, 2019).

FIGURA 19 – A PERSONALIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/3znxFIE>. Acesso em: 12 jul. 2021.

A personalidade também pode ser entendida como a variação única do indivíduo,


expresso como um padrão de desenvolvimento de traços disposicionais, adaptações
características e narrativas de vida autodefinidoras complexas e diferencialmente
situadas no contexto cultural e social.

Os construtos que mais influenciaram a visão de personalidade para a


Psicopatologia são a constituição corporal, o temperamento e o caráter. A constituição
corporal seria responsável pela aparência física, voz e gestos dos indivíduos, influenciando
nossas experiências psicológicas ao longo da vida. O temperamento seria determinado por

43
fatores genéticos ou constitucionais precoces, formando a base genético-neuronal
da personalidade. Nessa perspectiva, os indivíduos nasceriam com certas tendências
(mais ativo ou mais passivo, mais reativo ou menos reativo etc.). Por fim, o caráter se
constituiria a partir dos elementos da personalidade de base psicossocial e sociocultural.
O caráter, portanto, “resultaria do temperamento moldado, modificado e inserido no
meio familiar e sociocultural. O termo ‘caráter’, portanto, diz respeito aos aspectos mais
especificamente psicológicos da personalidade” (DALGALARRONDO, 2019, n. p).

3.3 A INTELIGÊNCIA
É possível que a inteligência não seja propriamente uma função psíquica
específica, e sim uma medida de rendimento do pensamento, particularmente do
raciocínio. Ainda que seja um conceito fundamental da psicologia moderna, não há uma
definição de inteligência que seja categórica ou amplamente convincente. A Figura 20
representa as múltiplas definições e formas de entendimento do conceito de inteligência.

FIGURA 20 – A INTELIGÊNCIA

FONTE: <https://shutr.bz/3nUKrwi>. Acesso em: 12 jul. 2021.

Vamos tentar esclarecer essa confusão: alguns autores definem a inteligência


como a capacidade de compreender e de elaborar conteúdos intelectuais que facilitem
a realização de novas adaptações, para a obtenção de um objetivo apetecido ou ainda
a definem como a capacidade para aprender a partir da experiência, usando processos
metacognitivos para melhorar a aprendizagem, e a capacidade para adaptar-se ao
ambiente circundante. Para Dalgalarrondo (2019), a inteligência é o conjunto das
habilidades cognitivas da pessoa, a resultante, o vetor final dos diferentes processos
intelectivos.

44
Em oposição à noção de inteligência geral (a inteligência como um traço unifatorial),
diversos autores vêm distinguindo diferentes tipos de inteligência, que correspondem
às várias habilidades ou áreas da cognição, como: inteligência verbal, visuoespacial,
visuoconstrutiva, aritmética, capacidade lógica, capacidade de planejamento e execução,
capacidade de resolução de problemas novos, inteligência para a abstração e para a
compreensão, inteligência criativa, entre outras.

DICA
Acadêmico, assista ao vídeo: COMO NASCE A INTELIGÊNCIA, de Luís Mauro Sá
Martino, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fLO2Z5BwHVE.

45
LEITURA
COMPLEMENTAR
MEDICALIZAR PROBLEMAS COTIDIANOS FAZ MAIS MAL A SAÚDE
DO QUE A DEPRESSÃO

Paulo Amarante

Entrevista concedida à Eliane Bardanachvili, do Blog Centro de Estudos


Estratégicos da Fiocruz.

Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão.


Por se tratar de problema para o qual não há um índice padrão de detecção, a depressão
tornou-se um conceito maleável, posto a serviço dos interesses da indústria farmacêutica,
para incrementar a venda de medicamentos. “Elegeu-se a depressão como doença a
ser cada vez mais alargada, para abarcar situações da vida, como conflitos, desgosto,
desemprego, separação, luto, e formatar como doença”, analisa nesta entrevista ao blog
do CEE-Fiocruz o sanitarista Paulo Amarante.

O que é depressão, afinal? Ela existe como doença?

Não temos um critério definitivo. Não se pode medir depressão como se


mede glicemia, anemia ou hipertensão, não há um índice padrão ou um índice médio
permanente. Trata-se de um conceito, e, exatamente por ser tão maleável, tão
subjetivo, tornou-se propício a que se elegesse a depressão como a doença a ser cada
vez mais alargada. Pânico, obsessão-compulsão, transtorno do déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH)... Problemas cotidianos, escola fracassada – não apenas a escola
pública brasileira, mas o modelo de ensino, sua proposta já superada –, pobreza, falta
de recursos, baixos salários, tudo contribui para uma piora do quadro. Há também as
situações de crise evolutivas, como entrada na terceira idade, iniciação na vida sexual,
incapacidade de realização de ato sexual, saída da primeira infância para a puberdade,
entrada na vida adulta, crises de identidade que podem vir acompanhadas de uma certa
situação depressiva. E o comportamento das pessoas diante das dificuldades acaba
sendo patologizado.

O que é importante entendermos sobre normalidade e anormalidade?

A vida não é uma norma, há diferentes padrões, cada vida é muito pessoal.
Podemos inventar a doença, ampliar o conceito de doença e patologizar todo o sofrimento,
ou podemos inventar e ampliar o conceito de saúde. O normal não é o estado de bem-estar
eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades – pois elas

46
existem – criando-se normas. A normatividade é a capacidade do ser vivo de criar normas;
elas não existem de antemão. A saúde está em lidar com a situação de doença. O câncer é
normal na vida; se há um corte no braço, o organismo encontra um caminho para o sangue
passar, ou cria a cicatriz para organizar a pele, assim como cria a febre para reagir à infecção.
Essa capacidade de criação de normas é muito pessoal. Há princípios gerais, mas nunca são
universais e idênticos.

Nesse embate entre saúde e mercado, como desmedicalizar sintomas, sem, no


entanto, minimizar o sofrimento das pessoas? Afinal, a depressão é tida como doença
silenciosa, em que as pessoas que sofrem não são ouvidas ou acolhidas.

Somos criados na relação com o outro; nossa identidade está nessa relação. A
necessidade de reflexão, introspecção, escuta é imanente, constituinte do sujeito. Essa,
no entanto, não é uma questão exclusivamente médico-sanitária, somente do âmbito da
saúde. As comunidades ditas primitivas são muito mais sábias nisso, com seus métodos
de relações de vizinhança, de cooperação, para fazer frente a essa necessidade. Nós
temos essas redes, mas não valorizamos! Na comunidade aqui do lado vemos uma mãe
que perdeu um filho contar com uma rede de apoio, de solidariedade das vizinhas que
vão dormir com ela, que levam um bolinho... Mas isso não é valorizado. A primeira coisa
que se faz quando se perde alguém é tomar um antidepressivo para suportar a crise. O
que é preciso, no entanto, é viver aquela crise, e as redes são importantes para isso. Mas
como não se dá valor a elas, e o Estado não sabe como propiciar esse acolhimento por
meio de uma política pública, e, ainda, como há uma quebra de relações de comunidade
promovida pela televisão, pelo medo e pela insegurança, a Igreja acaba ocupando esse
espaço. No meu bairro as pessoas sequer se cumprimentam dentro do elevador. Elas
não se abrem em sua comunidade, vão para a Igreja fazer uma catarse espiritual ou vão
procurar um médico. A questão da depressão é paradigmática, aponta para a ausência
do outro, da rede de solidariedade nas grandes cidades. Com as perdas de vínculo, as
pessoas ficam sós. O importante seria podermos restabelecer vínculos.

FONTE: Adaptado de <https://cee.fiocruz.br/?q=node/584>. Acesso em: 4 jul. 2021.

47
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Não existem funções psíquicas isoladas ou doenças que acometem exclusivamente


uma função, é preciso considerar que as pessoas adoecem na sua totalidade. A
Psicopatologia é definida a partir de um fundo mental e das relações inter-humanas,
mais do que pelos sinais e sintomas apresentados pelo sujeito.

• A consciência constitui uma síntese ou integração de todos os processos mentais em


determinado momento. Na definição neuropsicológica, a consciência está ligada ao
estado de vigilância, de clareza. Para a psicologia, a consciência representa a soma
total das experiências conscientes em determinado momento, ou seja, trata-se de
um campo.

• A memória pode ser definida como a capacidade de codificar, armazenar e evocar as


experiências, impressões e fatos que ocorrem em nossas vidas. Portanto, tudo o que
aprendemos depende intimamente da memória. Pesquisadores das neurociências
têm atribuído papel central à memória e à identidade do ser humano, perder a
memória, nessa perspectiva, significaria perder a si mesmo e a história de uma vida.

• Diferentemente das funções psíquicas elementares, as funções psíquicas compostas


resultam de agrupamentos de funções, trata-se de uma somatória de atividades e
capacidades mentais e comportamentais. As principais funções psíquicas compostas
apresentadas foram: o Eu e o Self, a Personalidade e a Inteligência.

48
AUTOATIVIDADE
1 O tempo e o espaço são, ambos, condicionantes fundamentais do universo humano
e estruturantes básicos da nossa experiência. Quanto às alterações nas vivências do
tempo, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Nas intoxicações por alucinógenos ou psicoestimulantes não há uma deforma-


ções quanto a percepção da duração temporal.
b) ( ) Pacientes com esquizofrenia percebem a passagem do tempo de forma rápida e
acelerada.
c) ( ) Em quadros depressivos graves a passagem do tempo é percebida como lenta e
vagarosa.
d) ( ) Nos estados maníacos, há certa passividade em relação ao fluir do tempo.

2 A linguagem é o principal instrumento de comunicação dos seres humanos. Trata-se


de um sistema relativamente arbitrário de signos (fonéticos e gráficos), responsável
pela intermediação das funções do pensamento e do mundo externo. Quanto às
alterações da linguagem, analise as sentenças a seguir:

I- Afasias: perda da linguagem falada e ouvida, por incapacidade de compreender e


utilizar os símbolos verbais, decorrente de lesão neuronal.
II- Agrafia: incapacidade da expressão através da linguagem escrita, sem que haja
qualquer déficit motor ou perda cognitiva global.
III- Alexia: perda da voz sem danos neurológicos os musculares. Geralmente ocorre
após um evento de vida estressante no qual o indivíduo fica totalmente sem voz.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A vontade, ou volição, pode ser definida como uma elaboração cognitiva realizada a partir
dos impulsos, influenciada por fatores intelectivos e socioculturais. A vontade constitui
um processo psíquico de escolha de uma entre várias possibilidades de ação, uma
atividade consciente de direcionamento da ação. Considerando as definições e
alterações da volição, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

49
( ) O ato volitivo dá-se, de forma geral, como um processo composto por quatro
etapas: intenção, deliberação, decisão e execução.
( ) A hiperbulia caracteriza-se pelo aumento da vontade e da iniciativa.
( ) Dentre as alterações qualitativas da volição, podemos citar os atos compulsivos,
os atos impulsivos e a hipobulia.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) V – V – F.

4 Os afetos podem ser considerados uma consequência das nossas ações que
buscam satisfazer certas necessidades, resultando em experiências agradáveis ou
desagradáveis. Segundo Dalgalarrondo (2019), os afetos são divididos em cinco tipos.
Disserte sobre três tipos dos afetos apresentados.

5 Os conceitos de “Eu” e de “Self” são amplos e variam de acordo com o período e a linha
teórica. A partir de uma das linhas teóricas apresentadas (Psicanálise, Behaviorismo ou
Humanismo), disserte sobre o conceito de Eu/Self.

50
REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. 4. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2013.

ARRUDA, J. A medicina psicossomática na infância. Conferências Arq. Neuro-Psiquiatr.,


v. 5, n. 1, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3AuKXEE. Acesso em: 30 jun. 2021.

BARLOW, D. H.; DURAND, M. R. Psicopatologia: uma abordagem integrada. 2. ed. São


Paulo: Cengage Learning, 2015.

BELMONT, S. Infância e psicossomática: intersubjetividade e aportes contemporâneos.


In: MELLO-FILHO, J. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

BRASIL. Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre a criação e o


funcionamento de Cooperativas Sociais, visando à integração social dos cidadãos,
conforme especifica. Disponível em: https://bit.ly/2Z8TsHy. Acesso em: 12 jul. 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Brasília, 2017.


Disponível em: https://bit.ly/3ksmdXZ. Acesso em: 12 jul. 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Estratégia Saúde da Família (ESF). Brasília, 2021.


Disponível em: https://aps.saude.gov.br/ape/esf/. Acesso em: 12 jul. 2021.

CAMPOS, M. T. D. Saúde coletiva. Porto Alegre: Grupo A, 2018.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2009.

CHENIAUX, E. Manual de psicopatologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015.

DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed.


Porto Alegre: Artmed, 2019.

FERREIRA, R. C. C. Psicopatologias: fundamentos, transtornos e consequências da


dependência química. 1. ed. São Paulo: Érica, 2015.

FIRST, M. Considerações gerais sobre a doença mental. Manual MSD, 2020. Disponível
em: https://msdmnls.co/3bYiJJ8. Acesso em: 16 jul. 2021.

GUEDES, C. R.; RANGEL, V. M.; CAMARGO, K. Movimento da medicina psicossomática


no Brasil: a trajetória teórica e institucional de Danilo Perestrello. História, Ciências,
Saúde-Manguinhos, vol. 27, núm. 3, p. 803-817, 2020.

51
JASPERS, K. Psicopatologia geral. Vol. I. Rio de Janeiro: Atheneu, 1987.

MELLO-FILHO, J. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

SILVA, A. S. O processo psicossomático na adolescência: quando o corpo se


transforma em sintoma. Revista da SBPdePA, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 24-31, 2018.

THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Boas Práticas em Saúde Mental Comunitária. São


Paulo: Manole, 2010.

52
UNIDADE 2 —

AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO
EM PSICOPATOLOGIA:
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• avaliar as alterações das funções psíquicas através da anamnese, da entrevista e do


diagnóstico;

• diferenciar os principais quadros patológicos da infância e da adolescência;

• identificar as formas de prevenção, de escuta e de intervenção terapêutica.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – AVALIAÇÃO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS

TÓPICO 2 – OS PRINCIPAIS QUADROS PATOLÓGICOS DA INFÂNCIA


E DA ADOLESCÊNCIA

TÓPICO 3 – A TERAPÊUTICA

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

53
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

Acesse o
QR Code abaixo:

54
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
AVALIAÇÃO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 1, aprenderemos sobre a avaliação das funções psíquicas,
ou seja, a medição sistemática dos fatores psicológicos, biológicos e sociais que um
indivíduo pode ou não apresentar um transtorno psicológico. Iniciaremos nossos
estudos no Subtópico 2 com a apresentação de um dos principais tipos de avaliação,
a avaliação clínica. O processo de avaliação clínica e o diagnóstico são essenciais para
o estudo da Psicopatologia e são entendidos como medição sistemática dos fatores
psicológicos, biológicos e sociais em um indivíduo que pode apresentar um transtorno
psicológico.

No Subtópico 3, estudaremos a entrevista clínica, um dos principais recursos


para a avaliação do paciente em Psicopatologia, que não deve ser vista simplesmente
como perguntas de aspectos da vida do paciente. As primeiras entrevistas podem
revelar informações valiosas para o diagnóstico clínico. Os dois principais aspectos da
avaliação obtidos através da entrevista são a anamnese e o exame psíquico. É a partir
da entrevista que se começa a estabelecer, ou não, uma aliança terapêutica entre o
paciente e o médico.

O Subtópico 4 será dedicado ao estudo do processo de anamnese, um tipo de


entrevista clínica direcionada a investigar fatos e, por isso, o profissional deve ter uma
posição mais ativa nos questionamentos. Trata-se de uma coleta de informações em
que o entrevistador se interessa tanto pelos sintomas objetivos quanto pela vivência
subjetiva do paciente em relação aos sintomas, pela cronologia dos fenômenos e pelos
dados pessoais e familiares. A anamnese é feita, geralmente, em forma de entrevista
semiestruturada, ou seja, há um roteiro prévio contendo aspectos essenciais a serem
abordados.

Encerraremos o Tópico 1 apresentando as possibilidades diagnósticas, ou seja, o


processo a partir do qual determinamos se um problema em particular que está afetando o
indivíduo pode ser classificado ou não como um transtorno psicológico. A palavra diagnóstico
tem origem grega e significa conhecer, distinguir ou reconhecer. Neste último subtópico,
ainda, aprenderemos um pouco sobre os testes psicológicos.

55
2 A AVALIAÇÃO CLÍNICA
O processo de avaliação clínica e o diagnóstico são essenciais para o estudo
da Psicopatologia. Podemos entender a avaliação clínica como a medição sistemática
dos fatores psicológicos, biológicos e sociais em um indivíduo que pode apresentar
um transtorno psicológico. Esse processo, ilustrado pela Figura 1, pode ser comparado
a um funil, pois são coletadas grandes quantidades de informações sobre diversos
aspectos da vida do paciente, permitindo a posterior identificação das possíveis fontes
do problema (BARLOW; DURAND, 2016).

FIGURA 1 – AVALIAÇÃO CLÍNICA

FONTE: <https://bit.ly/2W4jM4E>. Acesso em: 13 jul. 2021.

A avaliação psicológica ocorre a partir de três conceitos básicos: confiabilidade,


validade e padronização. A confiabilidade é o grau em que uma medida é consistente e
está relacionada à padronização dos diagnósticos. Se um paciente visita cinco médicos
diferentes relatando uma dor específica no joelho, ele espera que, pelo menos, a maioria
dos diagnósticos e tratamentos seja semelhante (BARLOW; DURAND, 2016).

A validade está relacionada à constatação de que a técnica está avaliando o que


deveria avaliar. A validade pode ser comprovada a partir da comparação dos resultados de
uma medida de avaliação com o de outras que são mais conhecidas. A padronização é o
processo pelo qual um “determinado conjunto de padrões ou normas é estabelecido
para uma técnica para tornar seu uso consistente no decorrer de diversas medições.
Os padrões podem ser aplicados aos procedimentos do teste, pontuação e dados de
avaliação” (BARLOW; DURAND, 2016, p. 74).

Portanto, a avaliação clínica consiste em diversos procedimentos e técnicas


que objetivam a obtenção de dados e informações necessárias para compreender o
paciente. Dentre esses procedimentos, podemos citar a entrevista clínica e a anamnese,
que serão abordadas nos próximos subtópicos, além da avaliação física, neurológica,
psicológica e de exames complementares.

56
ATENÇÃO
A avaliação clínica não é apenas o mero relato das atividades ou do
simples diálogo com o paciente. Ela pressupõe um objetivo claramente
definido da parte do examinador, que tenta captar o “ser-no-mundo”
do paciente em questão (ASSUMPÇÃO JUNIOR, 2009).

2.1 AVALIAÇÃO FÍSICA


O exame físico do paciente com transtorno mental é muito importante, não
diferindo dos exames realizados em indivíduos sem patologias mentais. Ainda assim
existe uma falsa crença de que os pacientes com transtornos mentais sofrem menos
frequentemente de doenças físicas, que são, por isso, subdiagnosticadas. Muitos
transtornos mentais possuem etiologia orgânica, como a depressão no hipotireoidismo,
ou podem levar a complicações físicas, como um quadro de desnutrição em função de
perda do apetite na depressão (CHENIAUX, 2015). A Figura 2 exemplifica uma das etapas
da avaliação física.

FIGURA 2 – AVALIAÇÃO FÍSICA

FONTE: <https://bit.ly/3CxfCSd>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Segundo Dalgalarrondo (2019), são vários os motivos pelos quais as doenças


físicas são subdiagnosticadas em pacientes com transtornos mentais graves, sendo eles:

• O clínico geral tende a não examinar adequadamente o paciente com transtornos


mentais graves, pois ele não é “seu paciente”, é “paciente apenas do psiquiatra ou do
psicólogo”.
• O psiquiatra não realiza o exame físico do indivíduo, pois não se considera “médico do
corpo”, mas “especialista da mente”.

57
• Esses pacientes têm dificuldades em acessar os serviços gerais de saúde.
• Os pacientes podem ter dificuldades em comunicar objetivamente suas queixas
somáticas.
• Esses indivíduos podem não ser adequadamente ouvidos pelos médicos em geral,
pois o estigma de “louco” pode invalidar suas queixas somáticas.
• Em muitos serviços de saúde, há um certo preconceito contra pessoas com
transtornos mentais, dificultando os cuidados na saúde física.

O tratamento de qualquer pessoa com transtorno mental, sobretudo grave,


deve ser acompanhado da possibilidade de doenças físicas. O exame físico do paciente
com transtornos mentais pode ser um excelente instrumento de aproximação afetiva
(DALGALARRONDO, 2019).

2.2 AVALIAÇÃO NEUROLÓGICA


O exame neurológico é fundamental para a avaliação psiquiátrica, afinal, é preciso
considerar que muitas das síndromes psiquiátricas ocorrem concomitantemente com
alterações neurológicas. Geralmente, a avaliação neurológica do paciente com transtorno
mental não difere do que é feito com a população em geral.

A avaliação neurológica baseia-se sobretudo no exame neurológico. Uma boa


avaliação neurológica pressupõe a realização de uma boa anamnese e de exames
neurológicos específicos, exemplificados na Figura 3, identificando possíveis lesões
ou disfunções no sistema nervoso central ou periférico. Ainda assim é importante
lembrar que muitas afecções neuronais presentes e clinicamente significativas não são
localizáveis por exames cerebrais (DALGALARRONDO, 2019).

FIGURA 3 – AVALIAÇÃO NEUROLÓGICA

FONTE: <https://bit.ly/3hOqsLR>. Acesso em: 13 jul. 2021.

58
Os objetivos da avaliação neuropsicológica são, basicamente, auxiliar no
diagnóstico diferencial, estabelecer a presença ou não de disfunção cognitiva e aferir o
nível de funcionamento em relação ao nível ocupacional.

2.3 AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E O PSICODIAGNÓSTICO


Entende-se por avaliação psicológica o processo de investigação no qual se
conhece o paciente e sua demanda, o que permite trilhar caminhos que levem à decisão
mais apropriada do psicólogo. Assim, a avaliação psicológica refere-se à coleta e
interpretação de dados, obtidos por meio de um conjunto de procedimentos confiáveis
como testes, entrevistas, observações e análise de documentos (KRUG; TRENTINI;
RUSCHEL, 2016). Uma das possibilidades da avaliação psicológica é a realização de um
Psicodiagnóstico (Figura 4).

FIGURA 4 – AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

FONTE: <https://bit.ly/2XLq61F>. Acesso em: 13 jul. 2021.

A entrevista clínica realizada com crianças em um contexto Psicodiagnóstico


também pode ser chamada de entrevista lúdica diagnóstica, que se configura como um
procedimento técnico utilizado a fim de conhecer e compreender a realidade da criança
em processo de avaliação. No psicodiagnóstico infantil, a coleta de informações não é
realizada apenas com a criança, mas, também, com os pais ou responsáveis.

2.4 EXAMES COMPLEMENTARES


Além das avaliações mencionadas anteriormente, “os exames complementares
laboratoriais, neurofisiológicos e de neuroimagem também são um auxílio fundamental
ao diagnóstico psicopatológico, particularmente na detecção de disfunções e
patologias neurológicas e sistêmicas que produzem síndromes e sintomas psiquiátricos”
(DALGALARRONDO, 2019, s.p.). A Figura 5 demonstra um tipo de exame complementar, o
exame de sangue.
59
FIGURA 5 – EXAMES COMPLEMENTARES

FONTE: <https://bit.ly/3CxELwi>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Ainda segundo Dalgalarrondo (2019), os exames de sangue, urina e fezes podem


detectar alterações importantes em vitaminas e hormônios fundamentais para o bom
funcionamento do nosso corpo, pois eles complementam o diagnóstico e diagnosticam
a partir de critérios que não são possíveis visualizar sem que haja esses exames.

DICA
Acadêmico, para expandir seus conhecimentos, assista ao vídeo Entre Nós - Avaliação
Psicológica, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=asBtAZJxA3g.

3 A ENTREVISTA CLÍNICA

A entrevista clínica é um dos principais recursos para a avaliação do paciente


em Psicopatologia, e não deve ser vista simplesmente como uma série de perguntas
sobre a vida do paciente. As primeiras entrevistas clínicas (Figura 6) podem revelar
informações valiosas para o “diagnóstico clínico, para o conhecimento da dinâmica
afetiva do paciente e, o que pragmaticamente é mais importante, para a intervenção e o
planejamento terapêuticos mais adequados” (DALGALARRONDO, 2019, s.p.).

60
FIGURA 6 – A ENTREVISTA CLÍNICA

FONTE: <https://bit.ly/3EDsd8w>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Os dois principais aspectos da avaliação obtidos através da entrevista são a


anamnese, o histórico dos sinais e dos sintomas; e o exame psíquico, o estado mental
atual. Diferentemente da entrevista psicopatológica, a entrevista psiquiátrica, realizada
por um médico, possui três objetivos básicos: a formulação de um diagnóstico, a
formulação de um prognóstico e o planejamento terapêutico. É a partir da entrevista
que se começa a estabelecer uma aliança terapêutica entre o paciente e o médico
(CHENIAUX, 2015).

Segundo Dalgalarrondo (2019), a técnica e a habilidade em realizar entrevistas


são atributos fundamentais da saúde mental. Parte dessa habilidade é intuitiva,
atributo da personalidade do profissional, e parte é aprendida e pode ser desenvolvida
(DALGALARRONDO, 2019). Nesse sentido, podemos afirmar que há três regras de ouro
da entrevista:

• Pacientes organizados, com inteligência normal, escolaridade ao menos razoável e fora


de um “estado psicótico” devem ser entrevistados de forma mais aberta.
• Pacientes desorganizados, com nível intelectual baixo, em um estado psicótico ou
paranoide devem ser entrevistados de forma mais estruturada.
• Nos primeiros contatos com pacientes muito tímidos, ansiosos ou paranoides, deve-se
fazer primeiro perguntas neutras ou de identificação (FERREIRA, 2015).

Além da organização da entrevista de forma mais estruturada ou aberta,


Dalgalarrondo (2019) ressalta que algumas atitudes podem ser inadequadas e
improdutivas, devendo ser evitadas pelo profissional de saúde:

• Posturas rígidas e estereotipadas. Prefira atitudes flexíveis e adequadas à personali-


dade do paciente.
• Atitude excessivamente neutra ou fria.
• Reações exageradamente emotivas ou artificialmente calorosas, produzindo uma
falsa intimidade.
• Comentários valorativos ou julgamentos.

61
• Reações emocionais intensas de pena ou compaixão.
• Responder com hostilidade ou agressivamente.
• Entrevistas excessivamente prolixas.
• Fazer muitas anotações durante a entrevista, pois pode dar a impressão de que as
anotações são mais importantes que a própria entrevista.

Ao iniciar uma entrevista, o profissional deve estar preparado para encarar o


desafio de conhecer uma nova pessoa, formular um diagnóstico e tentar compreender o
que realmente está acontecendo no mundo interior do paciente. Nesse sentido, um dos
elementos mais essenciais da entrevista é a paciência.

3.1 ENTREVISTAS COM CRIANÇAS


Realizar entrevistas com uma criança e sua família é provavelmente mais
desafiador do que com adultos. Além da multiplicidade de situações e imprevistos que
envolvem o universo infantil, é preciso “identificar as condutas de sofrimento, analisar
sua localização exata, avaliar seu papel na organização psicopatologia do indivíduo
e no sistema de interações do grupo familiar, determinar seu nível em relação ao
desenvolvimento, reconhecer seu sentido na história da criança e dos pais” (MARCELLI;
COHEN, 2010, p. 81).

Marcelli e Cohen ainda afirmam que as entrevistas com crianças objetivam não
só avaliar o normal ou o patológico, mas também orientar as possibilidades terapêuticas
imediatas ou posteriores. Nesse sentido, as entrevistas têm como principal objetivo
estabelecer uma comunicação baseada em trocas afetivas positivas, oferecendo à
criança um ambiente adequado para que essa comunicação se estabeleça. A Figura 7 é
uma representação de uma entrevista com crianças. São necessárias, em geral, de três a
quatro entrevistas de investigação.

FIGURA 7 – ENTREVISTANDO CRIANÇAS

FONTE: <https://bit.ly/3hRnvtQ>. Acesso em: 13 jul. 2021.

62
De acordo com Marcelli e Cohen (2010), as principais formas de se estabelecer
comunicação com as crianças são:

• Brincadeiras: ao brincar a criança expressa suas fantasias, identifica-se com os


personagens e domina sua angústia.
• Diálogo imaginário: ocorre através de brincadeiras com marionetes, com histórias
inventadas ou ainda em brincadeiras em que há a escolha de papéis, como professor
ou médica.
• Desenho: desenhar é uma das formas que as crianças têm de comunicar afetos,
funcionando como uma espécie de linguagem.
• Diálogo tradicional face a face: é possível estabelecer um diálogo tradicional com
uma criança geralmente a partir dos 11 anos. Naturalmente, isso varia de criança para
criança, dependendo muito de seu nível de desenvolvimento.

3.2 ENTREVISTAS COM ADOLESCENTES


Aprendemos que a entrevista com crianças não é tarefa fácil, entretanto, é possível
afirmar que não melhora muito com os adolescentes, isso porque a adolescência é marcada
pela instabilidade, e por um longo processo de conflito. Ao se estabelecer algum diagnóstico,
corre-se o risco de cristalizar o processo evolutivo do adolescente.

Nesse sentido, Marcelli e Braconnier (2007) apontam os principais perigos e


riscos de diagnósticos psiquiátricos na adolescência:

• Dificuldades de se estabelecer correspondências entre quadros nosográficos e uma


fase mutante e evolutiva da vida.
• Risco de classificar uma conduta “esperada” da juventude como uma patologia, como
associar uma experiência com drogas para a toxicomania, por exemplo.
• Risco de proteção e de ancoragem operada pelo diagnóstico apresentado.
• Flutuações frequentes dos níveis de funcionamento psíquico do adolescente.

A primeira entrevista de um adolescente costuma ser similar à de um adulto,


com a coleta de dados e as principais queixas do paciente. A diferença, nesse caso,
ocorre quando os pais estão presentes, pois se torna possível avaliar, também, o tipo de
interação familiar. Segundo Marcelli e Braconnier (2007), a primeira entrevista é feita na
atualidade das condutas do adolescente, na pressão exercida pelo conflito entre os pais
e seu filho, por um certo clima de urgência.

A segunda entrevista geralmente é diferente, marcada pelo aspecto defensivo


e retraído do adolescente. Alguns mecanismos de defesa e as surpresas mobilizadas
no primeiro encontro acabam por se destacar, como a banalização e a negação das
dificuldades. Ainda assim é importante continuar, visto que a “sequência de entrevistas
permite não apenas uma avaliação dinâmica do próprio adolescente, mas, também, de
sua família e de suas capacidades de mobilização” (MARCELLI; BRACONNIER, 2007, p. 64).

63
Ao longo das entrevistas de avaliação, Marcelli e Braconnier (2007) consideram
importante que o terapeuta comunique ao adolescente o interesse em se encontrar
com os pais, mesmo que o adolescente resista à ideia. No entanto, o mais comum é o
adolescente aceitar e se mostrar satisfeito com essa proposta. O objetivo dessas duas
ou três entrevistas de avaliação é chegar a uma proposição terapêutica.

4 A ANAMNESE
A palavra anamnese se origina do grego e significa rememoração (ana = novo;
mnesis = memória). A anamnese é um tipo de entrevista clínica direcionada a investigar
fatos e, por isso, o profissional tem uma posição mais ativa nos questionamentos (Figura
8). Trata-se de uma coleta de informações em que o entrevistador se interessa tanto
pelos sintomas objetivos como pela vivência subjetiva do paciente em relação aos
sintomas, pela cronologia dos fenômenos e pelos dados pessoais e familiares (SILVA;
BANDEIRA, 2016).

FIGURA 8 – O PROCESSO DE ANAMNESE

FONTE: <https://bit.ly/3Cp6W0i>. Acesso em: 13 jul. 2021.

A anamnese geralmente é feita em forma de entrevista semiestruturada, em


que há um roteiro prévio contendo aspectos essenciais a serem abordados para orientar
algumas perguntas. No entanto, o profissional não deve se fixar no roteiro a ponto de
perturbar a espontaneidade da entrevista. Os aspectos comuns a todas as entrevistas de
anamnese incluem: (a) evolução da queixa; (b) histórico de tratamentos de saúde atuais e
pregressos; (c) uso de medicamentos; (d) efeitos do problema sobre o funcionamento
psicossocial do paciente no momento atual; e (e) percepção do examinando em relação
à queixa (SILVA; BANDEIRA, 2016).

Segundo os autores supracitados, para estabelecer um rapport adequado


com o entrevistado, é preciso explicar os objetivos gerais da entrevista, sua duração e
importância para o processo de psicodiagnóstico. Essa etapa é iniciada perguntando
ao paciente o motivo da busca pela avaliação. O profissional deve deixar o paciente

64
confortável e demonstrar interesse pelo que lhe é dito, garantindo que a entrevista flua
naturalmente, tendo o cuidado para não usar expressões ou entonações que possam
parecer julgamentos.

Na anamnese com crianças, é importante registrar a história pré e perinatal, como


as condições de saúde física e mental da mãe durante a gravidez e após o parto, além
de possíveis intercorrências na gravidez. Informações sobre o parto como as condições
emocionais e de saúde da mãe também devem ser coletadas. Na entrevista de anamnese
com adolescentes, é preciso considerar todas as mudanças características desse período
(físicas, hormonais etc.). É importante, ainda, identificar se problemas ocorridos na infância
ainda repercutem na adolescência, além de enfocar aspectos como a socialização,
relacionamentos, sexualidade e histórico escolar (SILVA; BANDEIRA, 2016).

ATENÇÃO
A realização de uma boa anamnese exige do profissional os conhecimentos
teóricos adequados sobre o que se pretende avaliar, além do uso adequado
de estratégias que otimizem a qualidade das informações coletadas.

5 O DIAGNÓSTICO PSICOPATOLÓGICO
A palavra diagnóstico tem origem grega e significa conhecer, distinguir ou
reconhecer (Figura 9). O diagnóstico é um o processo a partir do qual se determina se
um problema em particular, que esteja afetando o indivíduo, pode ser classificado ou
não como um transtorno psicológico, seguindo as definições do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) ou da Classificação Estatística Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID).

FIGURA 9 – O DIAGNÓSTICO

FONTE: <https://bit.ly/3At5CJi>. Acesso em: 13 jul. 2021.

65
Não há um consenso acerca da formulação de diagnósticos, pois, se
considerarmos que as doenças são apenas conceitos e estão em constante modificação,
algumas pessoas poderiam estar “doentes” hoje e não estarem mais amanhã, caso
os critérios sejam alterados ou excluídos dos manuais de referência. Além disso,
cada pessoa é uma realidade única e inclassificável, dando ao diagnóstico um caráter
“estigmatizante, e que ele apenas serviria para rotular as pessoas diferentes, permitindo
e legitimando o poder médico, o controle social sobre o indivíduo desadaptado ou
questionador” (CHENIAUX, 2015, s.p.).

Nesse sentido, Cheniaux (2015) argumenta que há uma grande diferença entre
diagnosticar uma pessoa, uma necessidade prática na medicina e na ciência, e reduzi-
la a esse diagnóstico. Quando utilizado de forma positiva, o diagnóstico permite a
comunicação e a previsão, ou seja, o prognóstico depende do diagnóstico, contribuindo
para as medidas terapêuticas e preventivas.

5.1 TESTES PSICOLÓGICOS


Nos testes psicológicos, são utilizadas ferramentas específicas capazes de
agrupar respostas cognitivas, comportamentais ou emocionais. A avaliação da cognição
é realizada, em alguns casos, através de testes de inteligência (Figura 10). Um dos
modelos de testes que se popularizou bastante são os testes projetivos que se baseiam em
princípios da Psicanálise e na ideia de que as pessoas projetam sua própria personalidade
e medos inconscientes em outros objetos. Os três testes projetivos mais utilizados são
o teste das manchas de tinta de Rorschach, o Teste de Apercepção Temática (TAT) e o
método de completar sentenças (BARLOW; DURAND, 2015).

FIGURA 10 – TESTES PSICOLÓGICOS

FONTE: <https://bit.ly/3EOmg8T>. Acesso em: 13 jul. 2021.

66
Já os testes de inteligência foram criados visando identificar “aprendizes
lentos”, que poderiam se beneficiar de ajudas extras. Os criadores desse tipo de
teste desenvolveram uma série de tarefas que “mediam” habilidades consideradas
fundamentais para o ambiente escolar, como a atenção, percepção, memória, raciocínio
e a compreensão verbal. A aplicação do teste resulta em uma pontuação denominada
quociente de inteligência, ou Q.I. Atualmente, a pontuação de Q.I. é compreendida como
o quanto o desempenho de uma criança na escola se desviará do desempenho médio de
outras da mesma idade (BARLOW; DURAND, 2015). As críticas realizadas aos testes de
Q.I. recaem sobre a sua simplificação, afinal, capturar o intelecto humano com precisão
requer um conjunto de testes mais detalhados e que experimentem uma ampla gama
de possibilidades, considerando os vários tipos de inteligência existentes.

Por fim, os testes neuropsicológicos podem identificar com precisão o local de


uma disfunção cerebral, medindo as capacidades em áreas como a linguagem, atenção,
memória, habilidades motoras, capacidades perceptuais e aprendizagem. Portanto, “esse
método de teste avalia a disfunção cerebral, observando seus efeitos sobre a capacidade
de a pessoa desempenhar certas tarefas. Embora não se possa verificar o dano, é possível
ver seus efeitos” (BARLOW; DURAND, 2015, p. 84).

5.2 VISÃO GERAL DA AVALIAÇÃO PSICOPATOLÓGICA


Como vimos neste tópico, a avaliação psicopatológica é composta por diversas
etapas e, muitas vezes, é realizada de forma multiprofissional. Dalgalarrondo (2019)
definiu ao menos cinco etapas, as quais são apresentadas a seguir:

1. Entrevista inicial: etapa em que a anamnese é realizada, obtendo todos os dados


necessários para o diagnóstico. Além das informações pessoais, são coletadas
informações como a queixa, a história da queixa, antecedentes psíquicos, uso de
substâncias químicas, história de vida etc.
2. Exame psíquico: é o exame do estado mental atual. Se valendo de perguntas e
observações, o profissional coletará informações sobre o aspecto geral do paciente,
além da avaliação de funções psíquicas específicas como a consciência, atenção,
memória, linguagem etc.
3. Exame físico geral e neurológico: todos os pacientes deveriam passar uma
avaliação somática geral e bem-feita, entretanto, caso o profissional suspeite de
doença física, deverá examinar o indivíduo somaticamente em detalhes.
4. Avaliação psicológica e neuropsicológica: realizadas por meio de testes da
personalidade, da inteligência, da atenção, da memória etc.
5. Exames complementares: exames laboratoriais, de neuroimagem e neurofisioló-
gicos podem ser fundamentais na detecção de algumas psicopatologias.

67
IMPORTANTE
Comportamentos não verbais, como: mímica da face; olhar; movimentos
da boca; postura gestual; qualidade e tom da voz; e modo de andar
informam muito sobre a personalidade e o estado mental das pessoas.
A comunicação não verbal pode, inclusive, ser mais verdadeira, sintética e
expressiva do que a comunicação verbal (DALGALARRONDO, 2019).

68
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• O processo de avaliação clínica e o diagnóstico são essenciais para o estudo da


Psicopatologia. A avaliação clínica pode ser definida como a medição sistemática
dos fatores psicológicos, biológicos e sociais em um indivíduo que pode, ou não,
apresentar um transtorno psicológico.

• A avaliação psicológica refere-se à coleta e interpretação de dados, obtidos por


meio de um conjunto de procedimentos confiáveis como os testes, as entrevistas,
observações e a análise de documentos (KRUG; TRENTINI; RUSCHEL, 2016). Uma das
possibilidades da avaliação psicológica é a realização de um Psicodiagnóstico.

• O Psicodiagnóstico pode ser definido como um procedimento científico com duração


limitada e com a finalidade de alcançar uma compreensão mais aprofundada
da dinâmica do paciente e do grupo familiar. O exame compara a amostra do
comportamento do examinando com os resultados de outros sujeitos da população
geral ou de grupos específicos.

• A avaliação psicopatológica é composta por diversas etapas e muitas vezes realizada


de forma multiprofissional. Dalgalarrondo (2019) definiu ao menos cinco etapas:
(1) entrevista inicial; (2) exame psíquico; (3) exame físico geral e neurológico; (4)
avaliação psicológica e neuropsicológica; e (5) exames complementares.

69
AUTOATIVIDADE
1 O processo de avaliação clínica e o diagnóstico são essenciais para o estudo da
Psicopatologia. Podemos entender a avaliação clínica como a medição sistemática
dos fatores psicológicos, biológicos e sociais em um indivíduo que pode, ou não,
apresentar um transtorno psicológico. Com relação aos três conceitos básicos
necessários para uma avaliação, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Confiabilidade, validade e padronização.


b) ( ) Funcionabilidade, reprodutividade e confiabilidade.
c) ( ) Confiabilidade, generalização, veracidade.
d) ( ) Funcionabilidade, profundidade, confiabilidade.

2 As entrevistas com crianças têm como principal objetivo estabelecer uma comunicação
baseada em trocas afetivas positivas, oferecendo um ambiente adequado para que
a comunicação se estabeleça. Com relação às principais formas de se estabelecer
comunicação com as crianças, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Brincadeiras, diálogos estruturados, testes psicológicos e diálogo tradicional


face a face.
b) ( ) Testes psicológicos, desenhos, brincadeiras e diálogos com os pais.
c) ( ) Brincadeiras, diálogos imaginários, desenhos e diálogo tradicional face a face.
d) ( ) Testes psicológicos, desenhos, diálogo tradicional face a face e jogos estruturados.

3 A técnica e a habilidade em realizar entrevistas são atributos fundamentais da saúde


mental. Parte dessa habilidade é intuitiva, atributo da personalidade do profissional, e
parte é aprendida e pode ser desenvolvida. De acordo as regras de ouro da entrevista,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Pacientes organizados, com inteligência normal, escolaridade ao menos razoável


e fora de um “estado psicótico” devem ser entrevistados de forma mais fechada,
estruturada.
( ) Pacientes desorganizados, com nível intelectual baixo, em um estado psicótico ou
paranóide, “travados por um alto nível de ansiedade” devem ser entrevistados de
forma mais livre, acompanhando o raciocínio do paciente.
( ) Nos primeiros contatos com pacientes muito tímidos, ansiosos ou paranóides,
deve-se fazer primeiro perguntas neutras.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

70
a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 O exame físico do paciente com transtorno mental é muito importante, não diferindo
dos exames realizados em indivíduos sem patologias mentais. Ainda assim as doenças
físicas são subdiagnosticadas em pacientes com transtornos mentais graves por
diversos motivos. Discorra sobre pelo menos três desses motivos.

5 Além da organização das entrevistas de forma mais estruturada ou aberta, algumas


atitudes podem ser inadequadas e improdutivas, devendo ser evitadas pelo
profissional de saúde. Nesse sentido, disserte sobre pelo menos cinco atitudes que
devem ser evitadas ao se realizar entrevistas.

71
72
UNIDADE 2 TÓPICO 2 —
OS PRINCIPAIS QUADROS PATOLÓGICOS DA
INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 2, conheceremos os principais quadros patológicos da
infância e da adolescência. O Subtópico 2 será dedicado ao estudo do surgimento
e da constituição dos transtornos mentais, considerando fatores como: genética;
experiências emocionais na infância e adolescência; condições pregressas e atuais da
vida. Aprenderemos, também, que os sintomas e as síndromes têm origem definida a
partir de dois fatores: os fatores predisponentes e os fatores precipitantes.

No Subtópico 3, dedicaremos nossos estudos ao Transtorno do Espectro


Autista, um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta o modo como a pessoa
percebe e socializa com os outros, resultando em desenvolvimento atípico, déficits
na comunicação e na interação social. Embora muito provavelmente o autismo seja
conhecido há bastante tempo, foi somente na década de 1940 que Leo Kanner, nos
Estados Unidos, e Hans Asperger, na Áustria, descreveram as características sociais,
linguísticas e comportamentais do autismo.

No Subtópico 4, por sua vez, apresentaremos as principais características e


condições da esquizofrenia. O termo esquizofrenia foi proposto em 1911 pelo psiquiatra
Eugen Bleuler, que notou dois aspectos característicos do transtorno: a desarmonia
interna do funcionamento mental e a quebra radical do contato com a realidade. A
esquizofrenia é a principal forma de psicose ou síndrome psicótica, seja pela frequência
ou pela importância clínica.

Por fim, encerraremos o Tópico 2 estudando um dos principais transtornos


mentais da atualidade, a depressão. Do ponto de vista psicopatológico, esse transtorno
é marcado pelo humor triste e pelo desânimo. Diversos tipos de transtornos depressivos
são descritos pelo DSM-5, sendo diferenciados pela frequência, severidade ou curso
dos sintomas. A síndrome, de forma geral, é caracterizada por uma multiplicidade de
sintomas afetivos, instintivos e neurovegetativos, ideativos e cognitivos, relativos à
autovaloração, à vontade e à psicomotricidade.

73
2 O SURGIMENTO E A CONSTITUIÇÃO DOS
TRANSTORNOS MENTAIS
Tanto os sintomas quanto as síndromes têm origem definida a partir de dois
fatores: (1) fatores predisponentes, como a genética, experiências emocionais na
infância e adolescência e as condições pregressas de vida, e os (2) fatores precipitantes,
que são mais atuais ou recentes como perdas e estresses. Nesse sentido, “é preciso
notar como se articula, ao longo da vida, o conjunto de fatos biológicos, psicológicos
e sociais para a ocorrência ou não de sintomas, síndromes ou transtornos mentais”
(DALGALARRONDO, 2019, s.p.).

Dessa forma, fatores predisponentes, como a constituição genética, somados a


eventos como a morte de um dos pais/cuidadores ou, ainda, abusos e violências sofridas
na infância tornam as pessoas mais ou menos vulneráveis para a ação dos fatores
precipitantes na irrupção do transtorno mental (Figura 11). Os fatores precipitantes (ou
eventos de vida) podem ser exemplificados pelas separações, desemprego, brigas com
amigos etc. É importante, também, assinalar que a resiliência, ou seja, a capacidade de
absorver e lidar com os fatores precipitantes, é fundamental no processo de saúde-
doença no campo da psicopatologia (DALGALARRONDO, 2019).

FIGURA 11 – OS TRANSTORNOS MENTAIS

FONTE: <https://bit.ly/3hUaOyu>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Ainda que a predisposição constitucional e os fatores predisponentes sejam a


base dos processos patológicos, o psiquiatra alemão Karl Birnbaum (1878-1950) propôs
que se discriminem três fatores envolvidos nas manifestações das doenças mentais, os
quais são apresentados a seguir:

74
• Fator patogenético: é a manifestação dos sintomas diretamente produzidos pelo
transtorno mental como, por exemplo, o desânimo e o humor triste na depressão ou
as alucinações na esquizofrenia.
• Fator patoplástico: trata-se de manifestações relacionadas à personalidade do
paciente, à história de vida específica do indivíduo e de seus padrões culturais,
familiares e religiosos.
• Fator psicoplástico: relaciona-se aos eventos e às reações posteriores ao adoecer,
tanto do indivíduo quanto do meio psicossocial. Os conflitos familiares e as perdas
sociais e ocupacionais decorrentes do transtorno contribuem na determinação do
quadro clínico (DALGALARRONDO, 2019).

Segundo Dalgalarrondo (2019, s.p.), o breve caso descrito a seguir exemplifica


como os três tipos de fatores atuariam em conjunto.

Um homem de 50 anos é acometido de um episódio depressivo grave


(fator patogenético); ele sempre teve personalidade extrovertida, ativa e
enérgica; e é filho de italianos napolitanos (fatores patoplásticos). Após
alguns meses do início dos sintomas depressivos, estando ele muito
descuidado com suas tarefas profissionais, acaba por perder o emprego
(fator psicoplástico). A manifestação dramática e demonstrativa dos
sintomas depressivos fica por conta dos fatores patoplásticos; o humor
triste, a perda do apetite e a anedonia podem ser atribuídos aos fatores
patogenéticos; e, por fim, as sensações de fracasso, de inutilidade e de
desmoralização diante da vida são devidas aos fatores.

Com relação aos transtornos mentais crônicos, os cursos longitudinais


são divididos em (1) processo, quando há uma transformação lenta e insidiosa da
personalidade, decorrente de alterações psicologicamente incompreensíveis (processo
esquizofrênico); e (2) desenvolvimento, em que há uma evolução psicologicamente
compreensível de uma personalidade, podendo ser normal ou anormal, determinando
os transtornos da personalidade como desenvolvimento hipocondríaco, por exemplo.

Com relação aos fenômenos agudos ou subagudos, podemos classificá-los em


crises, reações vivenciais, fases e surtos. Os fenômenos se caracterizam pelo caráter
episódico e podem ser definidos como:

• Crises: a crise (ataque) é marcada pelo surgimento e pelo término abrupto do quadro
(crise epiléptica, ataques de pânico).
• Reações vivenciais: são consideradas reações vivenciais anormais quando há
intensidade exagerada ou duração prolongada dos sintomas.
• Fase: períodos de depressão e de mania dos transtornos afetivos. Passada a fase, o
indivíduo retorna ao que era antes dela, sem alterações duradouras na personalidade.
• Surto: ocorrência aguda, que se instala de forma mais ou menos repentina, fazendo
eclodir uma doença de base endógena. Produz sequelas irreversíveis e danos à
personalidade, cognição e afetos do indivíduo (DALGALARRONDO, 2019).

75
IMPORTANTE
“É incorreto falar em surto maníaco, fase esquizofrênica, crise maníaca;
tal uso revela o desconhecimento da terminologia e dos conceitos
psicopatológicos básicos. Na dúvida, quando não se conhece ainda o
tipo de fenômeno e o curso temporal do ocorrido, sugere-se utilizar o
termo neutro episódio” (DALGALARRONDO, 2019, s.p.).

3 TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Embora muito provavelmente o autismo seja conhecido há bastante tempo, foi


somente na década de 1940 que Leo Kanner, nos Estados Unidos, e Hans Asperger,
na Áustria, descreveram as características sociais, linguísticas e comportamentais do
autismo por meio de estudos de caso, passando a reconhecê-lo como uma forma de
psicopatologia distinta (DUMAS, 2018).

Atualmente, utiliza-se o termo Transtorno do Espectro Autista (TEA), definido


como um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta o modo como a pessoa
percebe e socializa com os outros. Dentre as principais características do transtorno,
podemos citar: desenvolvimento atípico, déficits na comunicação e na interação social,
padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados, podendo apresentar um
repertório restrito de interesses e atividades. Por mais que o TEA se torne evidente em
torno de 30 a 36 meses de vida, os sinais precursores chamam a atenção desde os 12
primeiros meses, atingindo de três a quatro vezes mais meninos do que meninas.

Uma das características típicas das pessoas com TEA é a incapacidade de


desenvolver relações sociais apropriadas à idade. Nesse sentido, as dificuldades de
comunicação e interação sociais são definidas a partir de três aspectos: (1) problemas
com a reciprocidade social (não conseguem estabelecer conversas normais); (2)
comunicação não verbal deficitária; e (3) dificuldade em iniciar e manter relacionamentos
sociais.

Com relação à reciprocidade social, Barlow e Durand (2015) afirmam que


indivíduos com sintomas mais graves de TEA são incapazes de se envolver na atenção
compartilhada. Uma criança que não tenha TEA, geralmente, ao ver um brinquedo que
gosta, olha para sua mãe, sorri e olha para o brinquedo novamente. Essa atitude indica o
interesse no brinquedo e o desejo de compartilhar esse interesse com outra pessoa, algo
limitado nas crianças com TEA. A Figura 12 representa o Dia Mundial de Conscientização do
Autismo, que ocorre anualmente no dia 2 de abril.

76
FIGURA 12 – CONSCIENTIZAÇÃO SOBRE O AUTISMO

FONTE: <https://bit.ly/2XwlUlY>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Ainda que seja evidente que crianças com TEA apresentem um leque de
comportamentos sociais inadequados, a natureza desse problema ainda é complexa.
Por muito tempo, reproduziu-se a ideia de que crianças com TEA eram incapazes de
estabelecer vínculos afetivos com seus próximos ou mesmo de diferenciar entre as
pessoas que conheciam e as que lhe eram estranhas. No entanto, “vários estudos sobre
o apego confirmam que as crianças com autismo diferenciam claramente entre seus
pais e pessoas que não conhecem, preferindo, por exemplo, a companhia de sua mãe à
de um estranho” (DUMAS, 2018, p. 104).

3.1 ETIOLOGIA
Por se tratar de uma condição complexa que envolve uma série de contribuições
biológicas atreladas a influências psicossociais, não é possível definir uma causa única para o
TEA. Nesse sentido, os primeiros estudos e diagnósticos do TEA se deram de forma obscura,
pois o TEA era visto como resultado de uma parentalidade falha, fruto de pais perfeccionistas,
frios e distantes. Essa visão inspirou teorias que responsabilizavam os pais pelo comportamento
de seus filhos. Segundo Barlow e Durand (2015), esse modo de ver o transtorno foi arrasador
para uma geração de pais, que se sentiram culpados e responsáveis pelas condições de seus
filhos. Atualmente, porém, pesquisas recentes sugerem que os pais de indivíduos com TEA
não são substancialmente diferentes de pais de crianças sem o transtorno.

Atualmente, sabe-se que o TEA tem um componente genético significativo e


altamente complexo, porém, de hereditariedade moderada, em que famílias que têm
uma criança com TEA tem cerca de 20% de chance de ter outra criança com esse
transtorno. Nesse sentido, ainda que numerosos genes já tenham sido implicados na
apresentação do TEA, cada um parece ter um efeito relativamente pequeno, assim como
em outros transtornos psicológicos como a esquizofrenia (BARLOW; DURAND, 2015).
Segundo Barlow e Durand (2015), a idade dos pais parece ser outro fator importante, já
que pais com 40 anos ou mais tiveram mais de cinco vezes maior probabilidade de ter
uma criança com TEA do que pais com idade inferior a 30 anos.

77
Algumas pesquisas apontam para o fato de que crianças pequenas com TEA
possuem a amígdala, uma estrutura cerebral, maior do que as crianças sem o transtorno,
causando ansiedade e medos excessivos. De acordo com Barlow e Durand (2015), a
liberação excessiva do cortisol derivada do estresse continuado danificaria a amígdala,
diminuindo, assim, o número de neurônios da estrutura na idade adulta. A amígdala
danificada poderia ser uma das explicações de como as pessoas com TEA respondem
a situações sociais.

Por muito tempo, acreditou-se que o mercúrio contido em vacinas infantis poderia
ser um dos responsáveis pelo aumento dos casos de TEA, entretanto, diversos estudos
apontam que não há nenhuma relação entre o transtorno e as vacinas. A crença errônea
leva alguns pais a não vacinarem seus filhos, contribuindo para um aumento significativo de
doenças que poderiam ser controladas, como o sarampo e a caxumba.

3.2 AUTISMO DE “ALTO FUNCIONAMENTO”


A partir da classificação do autismo com um espectro, o que era conhecido
como síndrome de Asperger é atualmente compreendido como autismo de alto
funcionamento. Assim como o autismo, a síndrome de Asperger se manifesta desde
a primeira infância em perturbações graves das interações sociais e comportamentos
restritos e repetitivos. No entanto, crianças e adolescentes com essa síndrome não
apresentam déficit de linguagem, deficiência intelectual ou dificuldades cognitivas
maiores (DUMAS, 2018).

A síndrome de Asperger é mais rara que o autismo, mas os dois casos tendem a
aparecer nas mesmas famílias. As diferenças entre os transtornos são de ordem quan-
titativa, visto que muitas crianças diagnosticadas com Asperger preenchem os critérios
dos diagnósticos do autismo. Assim, mesmo não apresentando os mesmos problemas
de linguagem, essas crianças possuem as mesmas dificuldades no relacionamento so-
cial e nos comportamentos inadequados.

4 ESQUIZOFRENIA
A esquizofrenia é a principal forma de psicose ou síndrome psicótica, seja pela
sua frequência ou pela importância clínica. O termo esquizofrenia foi proposto em 1911
pelo psiquiatra Eugen Bleuler, que notou dois aspectos característicos do transtorno:
a desarmonia interna do funcionamento mental; e a quebra radical do contato com a
realidade. O Quadro 1 a seguir apresenta algumas definições de esquizofrenia tanto para
autores importantes da psicopatologia como pelos sistemas diagnósticos atuais.

78
QUADRO 1 – DEFINIÇÕES E VISÕES DE ESQUIZOFRENIA

Autor Principais sintomas

Alterações da vontade; embotamento afetivo; alterações da


Emil Kraepelin atenção e da compreensão; transtornos do pensamento;
(1856-1926) alterações do juízo, da avaliação e da realidade;
Alucinações, especialmente auditivas.

Eugen Bleuler Alterações formais do pensamento; embotamento afetivo;


(1857-1939) ambivalência afetiva; dissociação ideoafetiva.

Alterações de pensamento e de percepção; experiências de


CID-11 alterações do self; Perdas cognitivas; alterações da volição;
alterações dos afetos e psicomotoras.

Delírios; alucinações; discurso desorganizado;


comportamento grosseiramente desorganizado ou
DSM-5
catatônico; sintomas negativos (embotamento afetivo,
alogia, avolição); disfunções sociais.
FONTE: Adaptado de Dalgalarrondo (2019)

Até o CID-11 e o DSM-5, a esquizofrenia era classificada em quatro subtipos:


paranoide; catatônica; hebefrênica; e um subtipo considerado “simples”. Posteriormente,
porém, os sistemas de classificação atuais abandonaram essas divisões, considerando
que não eram úteis, pois os pacientes poderiam “mudar” de subtipo ao longo dos anos,
além de não garantirem um padrão de evolução para a doença e não alterarem a forma
de tratamento farmacológico ou psicossocial.

Nas últimas décadas, em contraposição à definição de subtipos delimitados,


tem-se dado muito mais “importância à identificação de conjuntos de sintomas e
comportamentos, que podem se combinar de formas muito variadas e heterogêneas,
nas diversas fases da esquizofrenia, nas quais preponderariam distintas dimensões
sintomatológicas” (DALGALARRONDO, 2019, s.p.). Nesse sentido, o Quadro 2 apresenta
os principais grupos de sintomas da esquizofrenia.

QUADRO 2 – PRINCIPAIS GRUPOS DE SINTOMAS

Grupos Principais sintomas


Perda de certas funções psíquicas (vontade, pensamento e
Sintomas linguagem. Empobrecimento global da vida afetiva, cognitiva e
negativos social. Podem ser primários (decorrentes da própria esquizofrenia)
ou secundários (decorrentes de efeitos colaterais).

79
Alucinações (sendo a auditiva a mais frequente). Ideias
Sintomas delirantes (delírio): frequentemente de conteúdo persecutório,
positivos autorreferentes ou de influência. Outras formas de distorção da
realidade.
Pensamento progressivamente desorganizado. Discurso e
Sintomas de
comportamentos desorganizados e incompreensíveis. Afeto
desorganização
inadequado, marcadamente ambivalente e incongruente.
Sintomas Lentificação e empobrecimento psicomotor. Estereotipias de
psicomotores movimentos, maneirismos e posturas bizarras. Catatonia.
Sintomas/ Alterações cognitivas na atenção, memória episódica, memória
prejuízos de trabalho, velocidade de processamento e funções executivas.
cognitivos Dificuldade na percepção e no gerenciamento de emoções.
Redução da experiência e da expressão emocional. Aumento da
Sintomas de
reatividade emocional. Maior probabilidade de sintomas ansiosos
humor
e depressivos, bem como depressão clínica.
FONTE: Adaptado de Dalgalarrondo (2019)

A esquizofrenia é um transtorno que envolve comportamentos psicóticos,


termo utilizado para caracterizar comportamentos incomuns, que envolvem delírios e/
ou alucinações (FIGURA 13). A doença é caracterizada pela combinação dos sintomas
listados no Quadro 2 e, geralmente, é diagnosticada quando sintomas positivos e
negativos ocorrem em conjunto com perdas no funcionamento social, na ausência de
sintomas proeminentes de humor, mas não são decorrentes de doenças neurológicas
ou do uso de substâncias (DALGALARRONDO, 2019).

FIGURA 13 – ESQUIZOFRENIA

FONTE: <https://bit.ly/3hWto99>. Acesso em: 13 jul. 2021.

80
A etiologia da esquizofrenia ainda é um mistério. Estudos de neuroimagem
identificaram consistente redução do volume cerebral total e do volume de substância
cinzenta, alargamento dos ventrículos e redução de estruturas como áreas mediais dos
lobos temporais, do córtex pré-frontal e do tálamo (DALGALARRONDO, 2019, s.p.). O
surgimento dos sintomas psicóticos ocorre, de modo geral, na adolescência e no início da
idade adulta. Trata-se de uma doença crônica, com surtos recorrentes de difícil remissão
completa. O curso da doença é, de modo geral, dividido em três fases: fase pré-mórbida, fase
de sintomas psicóticos e fase crônica, em que há graus diversos de perdas e deteriorações.
Assim, a pior evolução dos quadros da doença está associada ao sexo masculino.

Nesse sentido, embora seja mais propício que pessoas com problemas de abuso
de substâncias e com transtornos de personalidade cometam atos violentos, é comum ver
notícias e histórias populares associando a esquizofrenia a episódios violentos. Ainda, na
teledramaturgia, mais de 70% dos personagens com esquizofrenia são retratados como
violentos, sendo 20% deles representados como assassinos (BARLOW; DURAND, 2015).
Estima-se que a esquizofrenia acometa 0,7% da população mundial, média parecida com a
do Brasil, que está em torno de 0,8%.

Segundo Dalgalarrondo (2019), é comum que pacientes com esquizofrenia


tenham falta de insight, ou seja, as pessoas acham que não têm qualquer problema ou
doença. Dessa forma, ainda que os pacientes reconheçam alguns sintomas, atribuem-nos a
causas externas como nervosismo, influências espirituais etc. Tal comportamento contribui
para que os pacientes recusem atendimento médico e psicológico, mesmo após algum
episódio de surto. Diante disso, para aqueles que buscam tratamento, os antipsicóticos
são as intervenções terapêuticas com mais evidência de eficiência, sobretudo para os
sintomas positivos. A clozapina, embora implique efeitos colaterais potencialmente graves,
é o tratamento medicamentoso mais eficaz.

4.1 ESQUIZOFRENIA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA


Ainda que os critérios diagnósticos para esquizofrenia em crianças sejam os
mesmos que para os adultos, é muito difícil diagnosticar uma criança com esquizofrenia. A
imaturidade normal do desenvolvimento da linguagem e a separação entre realidade e
fantasia tornam difícil o diagnóstico da esquizofrenia em crianças, já que, nos primeiros
anos de desenvolvimento, apresenta características comuns ao autismo.

O diagnóstico na adolescência também não é um processo simples. Segundo


Marcelli e Braconnier (2007), a adolescência é marcada por episódios excêntricos, atitudes
ocasionalmente estranhas e tentativas de fuga, o que torna o diagnóstico um diferencial
entre um possível processo esquizofrênico e uma forma de crise de adolescência, sendo
a situação uma das questões mais difíceis para a clínica psiquiátrica. Nesses casos,
os principais fatores examinados são os antecedentes do sujeito, o aspecto clínico
propriamente dito e o funcionamento mental. No entanto, apenas o tempo e a evolução
dos quadros permitirão um diagnóstico preciso.

81
Ainda que não se saiba a causa exata para a esquizofrenia, certos fatores
parecem aumentar o risco de desenvolver ou desencadear a doença, como:

• Histórico familiar de esquizofrenia.


• Dificuldades durante a gravidez e no nascimento, como infecções ou desnutrição.
• Eventos estressantes para pessoas que já possuem predisposição (morte de alguém
importante, perda de um emprego, abusos etc.).
• Uso de drogas na infância e na adolescência.

5 DEPRESSÃO
Diversos tipos de transtornos depressivos são descritos pelo DSM-5, sendo
diferenciados pela frequência, severidade ou curso dos sintomas. A síndrome, de forma geral,
é caracterizada por uma multiplicidade de sintomas afetivos, instintivos e neurovegetativos,
ideativos e cognitivos, relativos à autovaloração, à vontade e à psicomotricidade. As
características centrais são: a tristeza (exacerbação afetiva); a hipobulia ou abulia (alteração
da conação); e a inibição do curso do pensamento. Do ponto de vista psicopatológico, a
Figura 14 representa uma das principais características: o humor triste e, na esfera volitiva,
o desânimo. (DALGALARRONDO, 2019).

FIGURA 14 – DEPRESSÃO

FONTE: <https://bit.ly/3EHcyES>. Acesso em: 13 jul. 2021.

A ordenação da depressão em vários subtipos é um desafio psicopatológico


permanente. O CID-11 e o DSM-5 elencam ao menos 11 subtipos de síndromes e
transtornos depressivos. Do ponto de vista biológico, sabe-se que há fatores genéticos
e neuroquímicos envolvidos nos diferentes quadros de depressão. O fator psicológico
também é muito relevante, visto que as síndromes depressivas se relacionam
intimamente com experiências de perda.

82
O transtorno do humor mais facilmente reconhecido é o transtorno depressivo
maior. O risco de desenvolver esse tipo de depressão é baixo até o início da adolescência,
e começa a aumentar de forma regular até a idade adulta. Estima-se que a idade média
de início do transtorno depressivo maior seja de 30 anos, entretanto, alguns estudos
apontam que 25% das pessoas entre 18 e 29 anos já tiveram algum quadro de depressão
maior. Em crianças de cinco a 12 anos, 5% tinham experimentado o transtorno e, em
adolescentes, entre 13 e 17 anos, a taxa era de 19% (BARLOW; DURAND, 2015).

A duração de episódios depressivos é variável, podendo durar de duas semanas


a vários anos. Quando o episódio dura mais de cinco anos, passa a ser considerado
grave, e a taxa de recuperação de um episódio grave é de, aproximadamente, 38%.
Ainda assim os episódios podem não ser inteiramente resolvidos, deixando sintomas
residuais e probabilidade de episódios subsequentes.

Estima-se que, no mundo, a prevalência pontual da depressão maior esteja


em torno de 4,4 a 4,7%, já a prevalência na vida é de até 16,2%. No Brasil, um estudo
realizado na cidade de São Paulo, em 2002, revelou uma prevalência de depressão na vida
de até 17%. Por sua vez, outro estudo realizado nas cidades de Rio de Janeiro e de São
Paulo encontrou prevalência de depressão na vida de 17,4% e de 19,9%, respectivamente.
Estima-se, ainda, que entre 15% e 40% das pessoas com depressão maior já tentaram o
suicídio ao menos uma vez, enquanto 60% das pessoas que efetivamente se suicidaram
tinham algum tipo de depressão. Ter a doença aumenta em 20 vezes o risco de suicídio
(DALGALARRONDO, 2019).

5.1 A DEPRESSÃO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES


A depressão em crianças e adolescentes é mais frequente do que imaginamos e
pode se tornar grave, caso não seja diagnosticada e tratada adequadamente. Os quadros
depressivos estão associados a dificuldades escolares, como a piora do rendimento
escolar (Figura 15) e a comportamentos disruptivos como irritabilidade e agressividade.

83
FIGURA 15 – DEPRESSÃO NA ADOLESCÊNCIA

FONTE: <https://bit.ly/3EG89lS>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Atualmente, é possível identificar duas subformas de depressão na infância


e na adolescência: “uma ‘pura’, sem sintomas de comportamentos disruptivos, mais
frequente em garotas, e uma com sintomas disruptivos, mais comum em garotos e
rapazes com redução no QI e pior desempenho escolar” (DALGALARRONDO, 2019, s.p.).

Aprendemos, anteriormente, que a depressão geralmente está associada a


alguma perda, e isso não é diferente nas crianças e nos adolescentes: a perda repentina
de um dos pais, por exemplo, torna-as vulneráveis à depressão grave. Nesse sentido,
denomina-se episódio depressivo quando a depressão é desencadeada no decurso de
um acontecimento de perda ou de luto. O episódio depressivo costuma ser superado
progressivamente, porém, o comportamento da criança se modifica em relação à
situação anterior (MARCELLI; COHEN, 2010).

O fracasso escolar mencionado anteriormente pode estar associado à dificuldade


de pensar e de prestar atenção, levando a uma fuga ou recusa de realizar trabalhos
escolares, e consequentemente, à crença dos pais de que a criança é “preguiçosa”.
Além disso, observam-se transtornos do apetite, dificuldades para dormir, dores de
barriga e de cabeça. Segundo Marcelli e Cohen (2010), não é raro que a criança ou o
adolescente expressem ideias de morte ou de suicídio através de uma carta escrita aos
pais, levando-os a procurar ajuda especializada.

Pesquisas epidemiológicas indicam que há uma forte correlação entre os


transtornos depressivos dos adolescentes e os dos adultos, não sendo possível estabelecer
a mesma conexão para os transtornos depressivos das crianças. Ou seja, a depressão na
adolescência aumenta o risco de depressão na idade adulto, entretanto, a depressão na

84
infância não necessariamente aumenta o risco de depressão no adulto. Uma pesquisa
revelou que apenas 20% de crianças que tiveram depressão apresentaram episódios
depressivos na idade adulta, enquanto 60% de jovens com episódios depressivos continuaram
tendo episódios na idade adulta (MARCELLI; COHEN, 2010).

Nesse sentido, em relação ao ambiente familiar e aos antecedentes, alguns


pontos em comum são observados por diversos pesquisadores, os quais são apresen-
tados a seguir:

• Antecedentes de depressão nos pais, em particular na mãe.


• Frequência da carência parental, como o contato empobrecido entre os pais e os
filhos, pouco ou nenhum estímulo afetivo, verbal ou educativo.
• Mais raramente, certa severidade educativa excessiva.

Nesse sentido, crianças vítimas de maus tratos estão mais suscetíveis a


episódios depressivos. Uma amostra de 56 crianças de 7 a 12 anos, vítimas de maus-
tratos, constatou que 27% delas apresentavam episódio depressivo maior. Essas crianças
alimentam o sentimento de que se apanham é porque são malvadas e fazem coisas
erradas, sentindo-se culpadas. Dessa forma, a depressão na criança e no adolescente
está muito mais relacionada a fatores ambientais e familiares do que a depressão em
jovens adultos ou em adultos (MARCELLI; COHEN, 2010).

DICA
Assista ao vídeo Andrew Solomon: Depressão, o segredo que
compartilhamos, disponível em: https://youtu.be/-eBUcBfkVCo.

85
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Tanto os sintomas quanto as síndromes têm origem definida a partir de dois fatores:
(1) fatores predisponentes, como a genética, experiências emocionais na infância e
adolescência e as condições pregressas de vida; e os (2) fatores precipitantes, que
são mais atuais ou recentes, como perdas e estresses.

• Os estudos sobre o TEA ainda são recentes e carecem de teorias integrativas. Dados
mostram que fatores genéticos desempenham um papel fundamental na etiologia
do autismo, entretanto, os mecanismos envolvidos ainda não foram identificados.
O que se sabe, atualmente, é que os fatores psicológicos e sociais aliados a certas
características biológicas produzem déficits na sociabilização e na comunicação.

• A esquizofrenia é a principal forma de psicose ou síndrome psicótica, sendo possível


o diagnóstico quando sintomas positivos e negativos ocorrem em conjunto com
perdas no funcionamento social e na ausência de sintomas proeminentes de humor.

• A depressão geralmente está associada a alguma perda, e isso não é diferente nas
crianças e nos adolescentes: a perda repentina de um dos pais, por exemplo, torna-
as vulneráveis à depressão grave.

86
AUTOATIVIDADE
1 Tanto os sintomas quanto as síndromes têm origem definida a partir de dois fatores:
predisponentes e precipitantes. Um dos conjuntos de fatores está associado à
genética e experiências emocionais na infância e adolescência, já o outro está ligado
a perdas ou estresses. Sobre a definição de cada conjunto de fatores, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Os fatores predisponentes decorrem da articulação da vulnerabilidade


constitucional com as primeiras experiências de vida.
b) ( ) Os fatores predisponentes são mais atuais ou recentes como perdas e estresses.
c) ( ) Os fatores precipitantes podem ser exemplificados pela constituição genética e
as condições pregressas de vida.
d) ( ) As pessoas carregam predisposições genéticas e constitucionais que somadas
às vivências infantis caracterizam os fatores precipitantes.

2 Ainda que a predisposição constitucional e os fatores predisponentes sejam a base


dos processos patológicos, o psiquiatra alemão Karl Birnbaum (1878-1950) propôs
que se discriminem três fatores envolvidos nas manifestações das doenças mentais.
Sobre o exposto, analise as sentenças a seguir:

I- Fator patogenético: manifestação dos sintomas diretamente produzidos pelo


transtorno mental.
II- Fator patoplástico: manifestações relacionadas a personalidade do paciente.
III- Fator psicoplástico: manifestações da história de vida específica do indivíduo e de
seus padrões culturais, familiares e religiosos.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Atualmente, sabe-se que o TEA tem um componente genético significativo e


altamente complexo, porém, de hereditariedade moderada. Ainda que numerosos
genes já tenham sido implicados na apresentação do TEA, cada um parece ter um
efeito relativamente pequeno. Sobre o exposto, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:

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( ) O TEA era visto como resultado de uma parentalidade falha, fruto de pais
perfeccionistas, frios e distantes.
( ) Crianças pequenas com TEA possuem a amígdala (estrutura cerebral) maior do
que as crianças sem o transtorno, entretanto, isso não causa nenhum prejuízo a
essas crianças.
( ) Por muito tempo, acreditou-se que o mercúrio contido em vacinas infantis poderia
ser um dos responsáveis pelo aumento dos casos de TEA.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Os transtornos mentais de caráter episódico caracterizam-se como agudos ou


subagudos e são divididos em quatro categorias: crises, reações vivenciais, fases e
surtos. Nesse sentido, disserte sobre as principais características apresentadas em cada
uma das categorias.

5 A depressão geralmente está associada a alguma perda, e isso não é diferente nas
crianças e nos adolescentes: a perda repentina de um dos pais, por exemplo, torna-as
vulneráveis à depressão grave. Com relação ao ambiente familiar e aos antecedentes
que favorecem quadros depressivos, disserte sobre pontos em comum que são
observados por alguns pesquisadores.

88
UNIDADE 2 TÓPICO 3 —
A TERAPÊUTICA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3, conheceremos um pouco sobre a terapêutica, dedicando
o Subtópico 2 para as principais características e formas de prevenção. Entende-se por
prevenção o conjunto de medidas ou de ações voltadas ao indivíduo ou ao seu ambiente,
suscetíveis de impedir o aparecimento de um estado patológico posterior ou de reduzir sua
intensidade e suas consequências. Aprenderemos que as formas de prevenção podem ser
distinguidas em primárias, secundárias e terciárias.

No Subtópico 3, estudaremos os diferentes aspectos da escuta e do


acolhimento, questão tão importante para as crianças quanto para os adolescentes,
visto que eles nem sempre relatam suas dificuldades de forma objetiva como fazem os
adultos. É comum que as crianças não expressem seus sofrimentos adequadamente, o
que não significa que o sofrimento psicológico não exista. O sofrimento sempre existe
no entorno da criança, como nos pais e na escola, sendo o grau e a qualidade desse
sofrimento muito variáveis.

Encerraremos esse tópico apresentando algumas possibilidades terapêuticas,


afinal, a decisão pelo tratamento não é simples, é preciso levar em conta a conduta
sintomática e a estrutura psicopatológica da criança e suas relações com a problemática
familiar. Portanto, aprendemos sobre as reeducações, as psicoterapias individuais, as
terapias familiares e as psicoterapias de grupo.

2 PREVENÇÃO
Os cuidados mentais de crianças e adolescentes preocupam-se mais com o
futuro do que com o presente propriamente dito. Ainda que a avaliação ocorra no estado
presente de uma criança ou adolescente, o objetivo é a avaliação da capacidade potencial
de manter um desenvolvimento satisfatório ou não (MARCELLI; COHEN, 2010).

A simples presença do que chamamos de “patológico” não seria suficiente para


avaliar o potencial de desvio, afinal, “são comuns na criança as condutas aparentemente
patológicas que, na realidade, constituem pré-formas de uma organização mental
normal: se isso não fosse verdade, quase todas as crianças deveriam ser consideradas
‘doentes’ e passiveis de um tratamento” (MARCELLI; COHEN, 2010, p. 528).

89
Nos adolescentes, por exemplo, diversas pesquisas epidemiológicas
evidenciam a frequência de manifestações sintomáticas, sejam elas somáticas (dores
de cabeça, fadiga), afetivas (tristeza, crises de choro), comportamentais (retraimento,
impulsividade) ou de vertente social (delinquência, ruptura escolar). Essa constatação
pode desencadear duas situações: uma de abrandamento, considerando apenas como
a crise da adolescência ou, em outro extremo, levar a intervenções precoces, que
também podem gerar riscos (MARCELLI; BRACONNIER, 2007).

Portanto, no meio do caminho das duas situações descritas anteriormente estaria


a prevenção. Entende-se por prevenção, o “conjunto de medidas ou de ações voltadas
ao indivíduo ou ao seu ambiente, suscetíveis de impedir o aparecimento de um estado
patológico posterior ou de reduzir sua intensidade e suas consequências” (MARCELLI;
BRACONNIER, 2007, p. 388). As formas de prevenção podem ser distinguidas em:

• Prevenção primária: ação no nível ambiental ou individual para minimizar o risco do


aparecimento de transtornos, conforme ilustrado pela Figura 16.
• Prevenção secundária: detecção e intervenção precoce, eliminando ou atenuando
os transtornos.
• Prevenção terciária: ação no nível dos transtornos estabelecidos, minimizando o
agravamento e as sequelas.

FIGURA 16 – PREVENÇÃO PRIMÁRIA

FONTE: <https://bit.ly/2XGtQ4G>. Acesso em: 13 jul. 2021.

As ações de prevenção são mais efetivas na medida em que o risco seja


claramente identificado e a patologia apresente traços característicos, diferenciando
dos padrões de normalidade. Nesse sentido, a noção de saúde mental em crianças
e adolescentes pode ser ambígua, afinal, sintomas ou problemas nesses períodos da
vida não implicam a instalação de patologias. Portanto, segundo Marcelli e Braconnier
(2007), a prevenção primária é provavelmente utópica, sendo a prevenção secundária a
mais possível de ser implementada.

90
Ainda na tentativa de agir preventivamente, alguns fatores devem ser
observados no comportamento dos jovens, pois podem ser consideradas “condutas de
risco”, sendo eles:

• Repetições de condutas (vários acidentes de forma repetida, absenteísmo escolar


frequente, abuso de álcool de forma constante etc.).
• Duração de uma mesma conduta durante um período de mais de três meses.
• Acúmulo de manifestações de sofrimento.
• Circunstâncias de vida negativas (mudanças de casa, doença, desemprego etc.).

Quando essas condutas se repetem e perduram, não é mais correto associá-


las a uma fase ou característica da adolescência, sendo necessária a busca por ajuda
profissional (MARCELLI; BRACONNIER, 2007).

3 ESCUTA E ACOLHIMENTO
A identificação dos riscos só é eficaz se for seguida de alguma resposta, portanto,
Marcelli e Braconnier (2007) identificaram três grupos e as possíveis prevenções para
cada um deles, sendo:

• O grupo “sem problema aparente”: para esse grupo de adolescentes, a prevenção


se dá através da informação. É um grupo sensível ao acúmulo de circunstância de vida,
ou seja, as informações sobre saúde mental veiculadas pelas mídias provavelmente
são úteis.
• O grupo “intermediário”: por mais que se beneficiem de informações, para esse
grupo elas não são suficientes. São jovens mais vulneráveis, sendo importante
oferecer-lhes possibilidades de escuta e de encontro dirigidos.
• O grupo “com problemas múltiplos”: para esses adolescentes a informação e a
prevenção praticamente não surte efeito, pois já estão em um processo de “pré-
ruptura”. É comum que esse tipo de adolescente tenha mais informação sobre
determinado assunto, como o HIV, do que seus colegas, e ainda assim não se previna
de forma adequada.

Nesse sentido, adultos que tenham contato com adolescentes como professores,
funcionários administrativos de escolas, treinadores, podem ser formados para propiciar
escuta para esses jovens, em particular para os adolescentes do grupo “intermediário”.
Muitos adultos ficam ansiosos ou até mesmo indiferentes frente às dificuldades dos
adolescentes, o que acaba atrapalhando ao reforçar a ideia dos adolescentes de que
não se pode esperar nada dos adultos. A Figura 17 ilustra que a informação dos adultos e a
“formação daqueles que se sentem motivados e interessados proporcionam as bases
necessárias para uma escuta mais serena e confiante” (MARCELLI; BRACONNIER, 2007,
p. 393).

91
FIGURA 17 – ACOLHIMENTO

FONTE: <https://bit.ly/3Eykit3>. Acesso em: 13 jul. 2021.

A escuta e o acolhimento para as crianças são tão importantes quanto para os


adolescentes, afinal, elas não relatam suas dificuldades de forma objetiva como fazem os
adultos. Na maioria dos casos, a criança ou não sofre ou não expressa adequadamente, o
que não significa que o sofrimento psicológico não exista. O sofrimento sempre existe
no entorno da criança: nos pais, na escola, sendo o grau e a qualidade desse sofrimento
muito variáveis.

Segundo Marcelli e Cohen (2010), o sofrimento dos pais pode derivar de três
situações: (1) das dificuldades dos filhos que despertam a empatia dos pais, tentando ajudá-
los da melhor forma possível, ou seja, são pais identificados com seus filhos, (2) da própria
dor devido à imagem desvalorizada que a criança passa, especialmente na comparação
com outras crianças da mesma idade e (3) da rejeição, visto que alguns parecem mais
preocupados em “se livrar” de condutas dos filhos que lhes aborrece ou importuna. Em
geral, as condutas sintomáticas da criança são traduções de desejos de relação com seus
pais ou de uma renúncia a essa relação.

Portanto, na criança o trabalho é realizado de forma conjunta: diagnóstico,


avaliação psicodinâmica e a escolha terapêutica. O diagnóstico refere-se ao
levantamento das condutas somáticas e sua classificação nosográfica, que como vimos
anteriormente, é muito difícil de ser realizado em crianças, especialmente no que se
refere a transtornos mentais.

92
4 ESCOLHAS TERAPÊUTICAS
A decisão pelo tratamento não é simples. Conforme observamos na Figura 18,
é preciso levar em conta a conduta sintomática, conforme apontamos no subtópico
anterior, como também a estrutura psicopatológica da criança e suas relações com a
problemática familiar. Em outras palavras, “o esforço terapêutico deverá incidir sobre
a própria conduta patológica, sobre a estrutura psicopatologia subjacente, sobre
a constelação familiar e ambiental ou sobre vários desses eixos ao mesmo tempo?”
(MARCELLI; COHEN, 2010, p. 528).

FIGURA 18 – ESCOLHAS TERAPÊUTICAS

FONTE: <https://bit.ly/3hVPgBH>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Nesse sentido, segundo Marcelli e Cohen (2010), é preciso compreender o


grau de interiorização do conflito para determinar a origem do sintoma, podendo ser
distinguido em:

• Manifestações de inadequação: conflitos externos decorrentes de pressões


inadequadas do ambiente, seja porque não estão adequados ao nível maturativo da
criança ou porque são excessivos ou insuficientes.
• Manifestações decorrentes de um conflito natural: são conflitos transitórios que
geralmente desapareceriam naturalmente, mas que podem entrar em ressonância
com um conflito externo, estendendo sua duração.
• Manifestações de conflitos reais: são manifestações de conflitos internos que
podem atrapalhar no desenvolvimento da criança/adolescente.
• Manifestações “sequelares”: são hábitos ou comportamentos que permanecem
após a superação de um conflito de alguma fase anterior.
• Manifestações secundárias: são representadas por dificuldades desconhecidas
da própria pessoa, por exemplo o mau desempenho escolar pode ser fruto de um
transtorno da aprendizagem, da linguagem ou da coordenação motora.

93
Mesmo considerando os aspectos mencionados, as escolhas terapêuticas na
infância e na adolescência podem ser complexas. É preciso considerar a multiplicidade de
técnicas disponíveis, de quadros institucionais existentes e de teorias etiopatogênicas.
Portanto, antes de tomar qualquer decisão terapêutica é preciso pensar no caso
específico daquela criança, considerando seu ambiente familiar e contexto social para
encontrar: (1) o que seria ideal, (2) o ponto em que qualquer ação terapêutica seria
inefetiva e (3) o que é possível ser feito.

4.1 REEDUCAÇÕES E CORREÇÕES


Algumas terapias têm como objetivo imediato a redução de certa conduta. Ao
agir sobre o transtorno, elas permitem a retomada do desenvolvimento harmonioso de
determinada função. Esse tipo de intervenção dura alguns meses ou no máximo um
ano, com exceção aos transtornos graves. A Figura 19 ilustra como se daria um processo
de correção.

FIGURA 19 – REEDUCAÇÃO E CORREÇÃO

FONTE: <https://bit.ly/3lMSSHi>. Acesso em: 13 jul. 2021.

As reeducações fonoaudiológicas, por exemplo, objetivam a reeducação


dos transtornos da linguagem, desde articulatórios até atrasos generalizados. Já
as reeducações psicomotoras visam modificar a função tônica, estática e dinâmica
da criança, auxiliando a organização do comportamento gestual. As reeducações
psicopedagógicas objetivam suprir as lacunas deixadas pelas aprendizagens escolares
regulares, principalmente em quadros de dificuldade de aprendizagem (MARCELLI;
COHEN, 2010).

94
4.2 PSICOTERAPIAS INDIVIDUAIS
As psicoterapias individuais com crianças e adolescentes são de grande
valia e podem ser um aliado fundamental de outros tratamentos, como o psiquiátrico
representado na Figura 20. Existem inúmeras abordagens e possibilidades dentro do
universo das psicoterapias, a psicanálise, por exemplo, objetiva “trazer à consciência
a origem dos conflitos e das condutas sintomáticas à medida que elas aparecem e se
reproduzem durante as sessões, e depois proporcionar à criança os meios para melhor
elaborar, superar e/ou tolerar seus conflitos” (MARCELLI; COHEN, 2010, p. 551).

FIGURA 20 – PSICOTERAPIA INDIVIDUAL

FONTE: <https://bit.ly/3krjii5>. Acesso em: 13 jul. 2021.

A terapia cognitiva, por sua vez, trabalha com os esquemas cognitivos não
conscientes (implícitos) que influenciam negativamente os julgamentos que as
pessoas fazem sobre si. Portanto, “trata-se de fazer com que o paciente reflita sobre as
motivações detalhadas do comportamento visado, de desmontar os circuitos mnésicos
inconscientes e de por em prática meios simbólicos que permitam compreender e
dominar a evolução” (MARCELLI; COHEN, 2010, p. 558).

4.3 TERAPIAS FAMILIARES


A conceituação de terapia familiar surgiu na década de 1950, dividindo-se
em duas correntes teóricas: (1) baseadas em teorias sistêmicas e (2) inspiradas em
concepções psicanalíticas. Conforme ilustrado pela Figura 21, trata-se de um tipo de
terapia que não é centrada nos indivíduos, mas no sistema e nos modos de comunicação
entre os elementos desse conjunto.

95
FIGURA 21 – PSICOTERAPIA FAMILIAR

FONTE: <https://bit.ly/3koIk1r>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Segundo Marcelli e Braconnier (2007), as terapias familiares ganharam destaque


a partir de seus resultados com psicóticos, visto que esses pacientes estavam presos
em uma rede de interação tal que a aparente doença do indivíduo parecia necessária à
estabilidade do conjunto.

4.4 PSICOTERAPIAS DE GRUPO


As terapias de grupo podem ser praticadas de diversas maneiras e a partir de
diferentes referenciais teóricos, desde grupos abertos que acolhem quem os procura,
grupos com objetivos psicossociais geridos por profissionais da saúde ou educadores, ou
até mesmo pequenos grupos de adolescentes que realizam terapia com um terapeuta
analista. Nesse sentido, a prática do grupo terapêutico “parece particularmente frutífera,
e responde a uma necessidade, a uma capacidade eletiva dos pacientes dessa idade”
(MARCELLI; BRACONNIER, 2007, p. 421). Independentemente da forma de trabalho, a
principal função dos grupos terapêuticos é a catarse no nível do afeto, ou seja, descarga
da tensão interna na presença de outros membros do grupo, conforme ilustrado na
Figura 22.

96
FIGURA 22 – PSICOTERAPIA DE GRUPO

FONTE: <https://bit.ly/3zuHG6I>. Acesso em: 13 jul. 2021.

Nesse sentido, o grupo pode criar um espaço de contenção do pensamento,


provedor de fantasias. Além disso, permite o deslocamento dos conflitos que o
adolescente não consegue resolver com seus pais sobre os outros membros do grupo.
Permite, também, a elaboração das relações com os familiares e com o mundo e o
remanejamento das identidades tanto individuais como grupais.

97
LEITURA
COMPLEMENTAR
ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DE CRIANÇAS PRECISA SER MELHORADA

CRISTIANE SEIXAS DUARTE

Entrevista concedida a Elton Alisson, da Agência FAPESP.

Agência FAPESP – Os países em desenvolvimento apresentam maior prevalência de


transtornos mentais?

Duarte – O que verificamos – e isso ainda não está claro, porque não há estudo
que tenha usado uma mesma metodologia para fazer essa comparação e os dados sobre
número de pessoas com transtornos mentais em países como o Brasil são recentes – é
que os países em desenvolvimento tendem a ter uma taxa maior de distúrbios mentais
do que as nações desenvolvidas. Uma das hipóteses para explicar isso, que ainda não foi
testada, é que os países em desenvolvimento apresentam maior prevalência de fatores
de risco para o surgimento de transtornos mentais, como a violência.

Agência FAPESP – Por que isso ocorre?

Duarte – Pode ser resultado de uma combinação de fatores, como o estigma


social do problema de saúde mental e o desconhecimento de que existem tratamentos
muito eficientes para a grande maioria dos distúrbios mentais. A falta de serviço de
atendimento à saúde mental também é um fator importante que contribui para esse
cenário.

Agência FAPESP – Por que as ações de prevenção e atendimento à saúde


mental devem ser focadas em crianças e adolescentes?

Duarte – Mais de 75% dos transtornos mentais começam na infância ou até


os 18 anos de idade – quando o cérebro, a personalidade e as relações estão em
desenvolvimento – e progridem ao longo da vida. Isso não quer dizer que não se
possa iniciar uma depressão aos 40 anos, por exemplo, o que é bastante comum,
principalmente em mulheres.

Agência FAPESP – Que formas de tratamento de crianças com distúrbios


mentais existem atualmente?

98
Duarte – Há estratégias farmacológicas eficientes, particularmente para o
tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Mas
também há estratégias de psicoterapia relativamente breves que podem ajudar muito
crianças com outros tipos de transtornos mentais, principalmente se combinadas com
intervenções com os pais e se iniciadas cedo. Embora ainda exista muito espaço para
melhorar essas intervenções psicossociais e psicoterápicas e torná-las mais eficientes
e possíveis de serem incluídas nos sistemas de saúde, elas têm se revelado muito
promissoras.

Agência FAPESP – Nesse sentido, qual seria o papel dos profissionais de saúde
mental para auxiliar esses agentes de saúde a identificar crianças com problemas de
saúde mental?

Duarte – Nossa responsabilidade, como profissionais de saúde mental, é orientar


esses agentes de saúde que estão na linha de frente para fazer a identificação, triagem e
mesmo o atendimento dos casos mais simples. Sabemos que isso é possível, desde que
esses profissionais tenham o mínimo de treinamento adequado. Não temos a ilusão de
que são os psicólogos, psiquiatras e, muito menos, os psiquiatras infantis, que irão atender
essa demanda. Quem terá de fazer a maior parte desse trabalho são os profissionais
que estão na linha de frente do atendimento à saúde, como enfermeiras, médicos e até
agentes do Programa de Saúde da Família.

FONTE: Adaptado de: <https://bit.ly/3u0t91R>. Acesso em: 11 jul. 2021.

99
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Os cuidados mentais de crianças e adolescentes preocupam-se mais com o futuro


do que com o presente propriamente dito. Ainda que a avaliação ocorra no estado
presente de uma criança ou adolescente, o objetivo é a avaliação da capacidade
potencial de manter um desenvolvimento satisfatório ou não.

• Entende-se por prevenção o conjunto de medidas ou de ações voltadas ao indivíduo


ou ao seu ambiente, suscetíveis a impedir o aparecimento de um estado patológico
posterior ou de reduzir sua intensidade e suas consequências, sendo distinguidas
em: prevenção primária, secundária e terciária.

• A escuta e o acolhimento para as crianças são tão importantes quanto para os


adolescentes, afinal, elas não relatam suas dificuldades de forma objetiva como
fazem os adultos. Na maioria dos casos a criança ou não sofre ou não expressa
adequadamente, o que não significa que o sofrimento psicológico não exista.

• A decisão pelo tratamento não é simples, é preciso levar em conta a conduta


sintomática, conforme apontamos no subtópico anterior, como também a estrutura
psicopatológica da criança e suas relações com a problemática familiar.

100
AUTOATIVIDADE
1 As ações de prevenção são mais afetivas à medida que o risco seja claramente
identificado e a patologia apresente traços característicos, diferenciando-a dos
padrões de normalidade. Na tentativa de agir preventivamente, alguns fatores
devem ser observados no comportamento dos jovens, pois podem ser consideradas
“condutas de risco”. Sobre o exposto, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Duração de uma mesma conduta durante um período de mais de duas semanas.


b) ( ) Circunstâncias de vida negativas, como mudanças de casa ou doenças.
c) ( ) Uso de álcool, ainda que socialmente.
d) ( ) Manifestações isoladas de sofrimento.

2 A identificação dos riscos só é eficaz se for seguida de alguma resposta, portanto,


Marcelli e Braconnier (2007) identificaram três grupos e as possíveis prevenções para
cada um deles. Quanto aos tipos de grupos, analise as sentenças a seguir:

I- Para o grupo “sem problema aparente” a informação é o suficiente para a prevenção.


II- O grupo “intermediário” também se beneficia apenas da informação, por se tratar de
jovens menos vulneráveis.
III- No grupo “com problemas múltiplos” a informação e a prevenção praticamente não
surtem efeito, pois já estão em um processo de “pré-ruptura”.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A escuta e o acolhimento para as crianças são tão importantes quanto para os


adolescentes, afinal, elas não relatam suas dificuldades de forma objetiva como
fazem os adultos. Na maioria dos casos, a criança ou não sofre ou não expressa
adequadamente, o que não significa que o sofrimento psicológico não exista.
Considerando o sofrimento que pode existir no entorno da criança, classifique V para
as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

101
( ) O sofrimento dos pais pode derivar das dificuldades dos filhos que despertam a
empatia dos pais, tentando ajudá-los da melhor forma possível.
( ) O sofrimento dos pais pode derivar da própria dor devido a imagem desvalorizada
que a criança passa, especialmente na comparação com outras crianças da mesma
idade.
( ) O sofrimento dos pais não relaciona-se com a rejeição, visto que os pais estão
sempre identificados com seus filhos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) V – V – F.

4 Entende-se por prevenção, o conjunto de medidas ou de ações voltadas ao indivíduo


ou ao seu ambiente, suscetíveis de impedir o aparecimento de um estado patológico
posterior ou de reduzir sua intensidade e suas consequências. Disserte sobre as três
formas de prevenção que aprendemos nesse subtópico.

5 As escolhas terapêuticas na infância e na adolescência podem ser complexas. É


preciso considerar a multiplicidade de técnicas disponíveis, de quadros institucionais
existentes e de teorias etiopatogênicas. Escolha e disserte sobre uma das
possibilidades terapêuticas, apresentando suas características e principais objetivos
(reeducações, psicoterapias individuais, terapias familiares ou psicoterapias de grupo).

102
REFERÊNCIAS
ASSUMPÇÃO JUNIOR, F. B. Fundamentos de Psicologia - Psicopatologia
Aspectos Clínicos. São Paulo: Grupo GEN, 2009.

BARLOW, D. H.; DURAND, M. R. Psicopatologia: uma abordagem integrada. 2. ed. São


Paulo: Cengage Learning, 2015.

CHENIAUX, E. Manual de psicopatologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,


2015.

DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed.


Porto Alegre: Artmed, 2019.

DUMAS, J. Psicopatologia da Infância e da Adolescência. Porto Alegre: Grupo A, 2018.

FERREIRA, R. C. C. Psicopatologias: fundamentos, transtornos e consequências da


dependência química. 1. ed. São Paulo: Érica, 2015.

KRUG, J.; TRENTINI, C.; RUSCHEL, D. Conceituação de psicodiagnóstico na atualidade.


In: SIMON, H. C.; RUSCHEL, B. D.; MARCELI, T. C.; SILVA, K. J. Psicodiagnóstico. Porto
Alegre: Grupo A, 2016.

MARCELLI, D.; BRACONNIER, A. Adolescência e Psicopatologia. 6. ed. Porto Alegre:


ARTMED, 2007.

MARCELLI, D.; COHEN, D. Infância e Psicopatologia. Porto Alegre: Grupo A, 2010.

SILVA, M.; BANDEIRA, D. A entrevista de anamnese. In: SIMON, H. C.; RUSCHEL, B. D.;
MARCELI, T. C.; SILVA, K.J. Psicodiagnóstico. Porto Alegre: Grupo A, 2016.

103
104
UNIDADE 3 —

DESCRIÇÃO DOS SISTEMAS


DE CLASSIFICAÇÃO DOS
DISTÚRBIOS MENTAIS:
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar a origem dos sistemas de classificação dos distúrbios mentais;

• diferenciar os sistemas de classificação dos distúrbios mentais;

• registrar os principais critérios para a classificação;

• examinar os exemplos de classificação apresentados.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – OS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS DISTÚRBIOS


MENTAIS

TÓPICO 2 – O MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE


TRANSTORNOS MENTAIS (DSM)

TÓPICO 3 – A CLASSIFICAÇÃO ESTATÍSTICA INTERNACIONAL DE


DOENÇAS E DE PROBLEMAS RELACIONADOS À SAÚDE (CID)

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

105
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!

Acesse o
QR Code abaixo:

106
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
OS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS
DISTÚRBIOS MENTAIS

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 1, aprenderemos sobre os principais sistemas de
classificação dos distúrbios mentais, tema fundamental para a compreensão de diversas
áreas como a psicopatologia, a psicologia e a psicanálise.

Antes de conhecer os principais sistemas e manuais existentes, como a CID e o


DSM, iniciaremos o Subtópico 2 com um breve histórico da psicopatologia, da nosografia
e dos sistemas de classificação. É importante lembrar que a psicopatologia se constitui
como tal a partir de sistemas semiológicos e diagnósticos entre a psicologia, a psiquiatria
e a psicanálise.

Seguiremos, no Subtópico 3, apresentando as primeiras classificações, partindo


do primeiro estudo estatístico de doenças publicado pelo inglês John Graunt em 1662.
Entretanto, a primeira classificação adotada por diversos países ocorreu a partir de 1893
e foi intitulada “Classificação das Causas de Morte de Bertillon”, podendo ser considerada
como a primeira classificação internacional de causas de morte. Aprenderemos,
também, que as primeiras classificações no campo da psicopatologia surgiram da
tradição biológica, especialmente a partir de publicações realizadas por Emil Kraepelin,
em 1913.

Já o Subtópico 4 será dedicado às especificidades das classificações realizadas


com crianças e adolescentes na psicopatologia moderna. Ainda que esse período
da vida seja marcado pelo desenvolvimento e pela mudança contínua, o campo da
saúde mental da infância e da adolescência tem vivido franca expansão, isso porque a
psicopatologia infantil vem sendo utilizada como se fosse uma cópia da psicopatologia
do adulto. Nesse sentido, será muito importante compreender os riscos que isso pode
representar.

2 BREVE HISTÓRICO
Inciaremos nossos estudos com um breve histórico da psicopatologia, conforme
ilustra a Figura 1. A psicopatologia constitui-se como tal a partir de sistemas semiológicos e
diagnósticos entre a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise. Segundo Dunker e Kyrillos
Neto (2011), as descrições psicopatológicas são frutos da medicina, da antropologia, da
fenomenologia e das práticas terapêuticas, ou seja, possuem natureza híbrida entre o
saber, a experiência e a disciplina.

107
FIGURA 1 – BREVE HISTÓRICO

FONTE: <https://bit.ly/3kuoXEh>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Diante disso, a psicopatologia se valeu da filosofia para alcançar seus dois


principais objetivos: “(1) transformar pathos, como diferença particular e transitória,
em experiência de aspiração universal e (2) transformar pathos, como experiência de
sofrimento, das paixões e dos sintomas, em discurso e prática clínica singular” (DUNKER;
KYRILLOS NETO, 2011, p. 2).

Entretanto, desde a metade do século XIX, iniciou-se uma nova forma de


compreender e de lidar com os transtornos mentais. Ao invés de tentar compreender
os sintomas como delírios, alucinações e os atos violentos, os alienistas e psiquiatras
da época passaram a analisar o comportamento e as condutas dos indivíduos, com o
objetivo de classificá-los em diferentes categorias, conforme apresentado na Figura 2.

FIGURA 2 – CATEGORIZAÇÕES

FONTE: <https://bit.ly/3kuoXEh>. Acesso em: 24 jul. 2021.

108
A partir da metade do século XIX, diversos comportamentos passaram a
ser considerados como desviantes, surgindo estratégias de intervenção baseadas
em categorias pré-estabelecidas. A ideia principal era “substituir uma classificação
sintomática por uma classificação etiológica das doenças mentais, pois somente com
a determinação das causas poderiam ser elaborados um sistema classificatório de
patologias e uma terapêutica apropriada” (CAPONI, 2012, p. 22). Nesse sentido, emergiu
um novo campo que transformou questões como a tristeza, a sexualidade infantil e os
desvios de comportamento em diagnósticos e práticas médicas.

A partir de 1857, surgiram teorias como a da degeneração, de Morel, e eram


criadas classificações consistentes das patologias mentais que não se baseavam apenas
na diferenciação de sintomas ou nas manifestações corporais, mas em classificações
etiológicas das doenças mentais. Nesse sentido, acreditava-se que determinar as causas
das doenças permitiria que sistemas classificatórios e terapêuticas apropriadas fossem
elaboradas. Portanto, com a consolidação da teoria da degeneração, a psiquiatria passou
a estabelecer vínculos diretos entre “desvios de conduta” a um estado anormal, que
exigia intervenções psiquiátricas. Assim, as pequenas condutas anormais e desviantes
se transformaram no eixo articulador da nova psiquiatria (CAPONI, 2012).

Nesse contexto, foi no final do século XIV que Emil Kraepelin sistematizou a
psicopatologia descritiva, consolidando a propensão nosológica. Durante 30 anos, foram
publicadas oito edições do Manual de Psiquiatria de Emil Kraepelin, objetivando discernir
as diversas formas do adoecimento mental e atribuindo a estas o mesmo estatuto das
doenças físicas tratadas pela medicina. Segundo Caponi (2012), todas as edições ampliavam
as classificações de patologias psiquiátricas e serviam de referência para a formação dos
novos profissionais, sendo atualizadas a partir de descobertas científicas no campo na
neurologia e da estatística médica (Figura 3).

FIGURA 3 – ESTATÍSTICA MÉDICA

FONTE: <https://bit.ly/3ktCaxh>. Acesso em: 24 jul. 2021.

109
Concomitantemente, nos Estados Unidos, o principal objetivo era desenvolver
uma classificação das doenças mentais a partir de dados estatísticos. A primeira tentativa
de desenvolvimento da classificação ocorreu em 1840, através de um censo que media
a frequência de duas categorias: “idiotice” e “insanidade”. Um outro censo realizado em
1880, por sua vez, media a frequência considerando sete categorias: mania; melancolia;
monomania; paresia; demência; alcoolismo; e epilepsia.

A última classificação realizada antes da publicação do primeiro Manual de


Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) foi realizada em 1918, no Manual
Estatístico para o Uso de Instituições de Insanos, compreendendo 22 categorias, entre
elas a psicose; a melancolia; a demência precoce; a paranoia; entre outras psiconeuroses
e neuroses (DUNKER; KYRILLOS NETO, 2011).

Durante os anos 1900-1950, a classificação norte-americana das doenças


mentais era baseada em princípios da psicanálise, considerando três conceitos híbridos:
personalidade, estrutura e psicodinâmica. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial,
o modelo psicopatológico proposto por Oto Fenichel se tornou a visão dominante,
compreendendo que o funcionamento normal da mente é governado por um aparelho de
controle que organiza, conduz e inibe forças arcaicas mais profundas e mais instintivas
(DUNKER, 2014b).

Nesse sentido, ao deslocar condições consideradas “naturais” pela psicanálise,


como a neurose, para um “sistema de controle e para a analogia com os impulsos
reflexos do cérebro, prepara-se o solo no qual a psiquiatria dos anos 1960 aprofundará
a definição de neurose como manifestação de comportamentos” (DUNKER, 2014b, p.
82). É a partir de definições como a da neurose que tem início a distinção entre os
transtornos de primeira ordem (sintomas) e os transtornos de personalidade (Figura 4).

FIGURA 4 – TRANSTORNO DE PERSONALIDADE

FONTE: <https://bit.ly/3kqtdom>. Acesso em: 24 jul. 2021.

110
A partir da distinção entre transtornos de primeira ordem e transtornos de
personalidade que os sintomas passam a ser encarados como “não relacionais” enquanto
as afecções de personalidade são vistas como transtornos “relacionais”, marcando a
divisão entre a psicanálise e a psiquiatria. Para Dunker (2014b, p. 83), “há uma clara
separação entre o normal, a personalidade como estrutura equilibrada, e o patológico, o
sintoma como expressão do desequilíbrio da estrutura”.

O distanciamento da psiquiatria e da psicanálise só aumentou na medida que


os manuais classificatórios (DSM e CID) foram sendo publicados e revisados, isso porque
a abordagem organicista, biológica e estatística se tornou cada vez mais dominante.
Ainda que, atualmente, esses dois sistemas sejam predominantes, autores como
Dalgalarrondo (2019) propõem uma perspectiva sindrômica para a abordagem clínica
inicial dos quadros mentais.

Como vimos anteriormente, as síndromes são conjuntos de sinais e de sintomas


que se agrupam de forma recorrente e são observados na prática clínica diária. Portanto,
identificar as “síndromes é o primeiro passo no sentido de ordenar a observação
psicopatológica dos sinais e dos sintomas dos pacientes” (DALGALARRONDO, 2019, s.p).
O diagnóstico sindrômico, representado pela Figura 5, é uma estratégia importante no
raciocínio clínico, e sua evolução se dá ao longo das primeiras avaliações e do conhecimento
aprofundado sobre o paciente e seu sofrimento mental.

FIGURA 5 – DIAGNÓSTICO SINDRÔMICO

FONTE: <https://bit.ly/3kvGFHE>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Na psicopatologia clássica, a “teoria das síndromes” defendia que há sintomas


nucleares, como a alteração do nível de consciência no delirium ou a mudança do
humor nos transtornos afetivos, e os sintomas periféricos, que se articulam de forma
secundária aos sintomas nucleares (DALGALARRONDO, 2019).

111
ATENÇÃO
“Para a psicanálise o campo do patológico é formado tanto pela hipótese
de um objeto intrusivo, como a sexualidade ou o trauma, ao qual a
personalidade reage gerando sintomas, quanto pela hipótese de uma
desregulação interna ao aparelho psíquico, na qual certas disposições,
fixações ou organizações pulsionais, que constituem o sujeito, diante
de conflitos concorrem para a produção de respostas defensivas,
causando sintomas positivos e negativos” (DUNKER, 2014b, p. 83).

3 AS PRIMEIRAS CLASSIFICAÇÕES
Classificação é um termo que pode se referir à criação de princípios e regras
em torno dos quais itens, referências, características e futuros agrupamentos serão
constituídos, ou, então, ao ato de agrupar em si, de organizar e distribuir. Nesse sentido,
classificar é identificar a categoria ou grupo ao qual um indivíduo ou objeto pertence
com base nas suas características observadas.

Se considerarmos que a saúde pública é a ciência e arte de evitar a doença,


prolongar a vida e promover a saúde mediante a atividade organizada da sociedade, é
fundamental conhecer os problemas de saúde que acometem a população, seus tipos
e como se distribuem. Portanto, a Figura 6 ilustra que a classificação de pessoas com
transtornos em determinados grupos é chamada de nosologia, e a atribuição de um
nome a cada entidade específica é chamado de nosografia (LAURENTI, 1991).

FIGURA 6 – CLASSIFICAÇÕES

FONTE: <https://bit.ly/3hQfTYA>. Acesso em: 24 jul. 2021.

112
Um dos objetivos da nosografia é a compreensão das causas e da natureza
das doenças, permitindo certo planejamento e avaliação a partir de uma comunicação
padronizada entre diversos profissionais. A nosografia ou a nomenclatura de doenças
pode ser entendida, portanto, como a “maneira pela qual um determinado agravo à
saúde que tenha determinados sintomas, sinais, bem como alterações patológicas
específicas, recebe o mesmo rótulo, que pode também ser chamado diagnóstico, em
qualquer lugar do mundo” (LAURENTI, 1991, p. 407).

Nesse sentido, atribui-se ao inglês John Graunt o primeiro estudo estatístico de


doenças. Graunt publicou, em 1662, uma análise das causas de morte em Londres a partir
de dados registrados em paróquias. Ainda assim, não se tratava de uma classificação
propriamente dita, mas sim de uma nosografia, ou seja, uma listagem de doenças ou
sintomas sem nenhum agrupamento formalizado.

Desde a publicação da listagem de Graunt até as primeiras décadas do século


XX, a frequência de doenças era observada a partir das estatísticas de mortalidade. Por
isso, a história das classificações de doenças teve início e por muito tempo continuou
sendo uma classificação de causas de morte. A partir deste contexto, a necessidade
de comparar as causas de morte por regiões ou países despertou o interesse para
padronizar classificações internacionais (Figura 7), considerando as diversas tentativas
de classificação feitas a partir da segunda metade do século XIX (LAURENTI, 1991).

FIGURA 7 – CLASSIFICAÇÃO DE CAUSAS DE MORTE

FONTE: <https://bit.ly/3ktx1VV>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Foi assim que o Primeiro Congresso Internacional de Estatística, realizado em


1853, reconheceu a importância de se estabelecer uma classificação estatística para
as causas de morte. A primeira sistematização pretendia preparar uma nomenclatura
uniforme de causas de morte aplicável a todos os países, apresentada em 1855, e
contemplando cinco classes para as causas de morte, as quais são apresentadas a
seguir:

113
1) doenças epidêmicas, endêmicas e contagiosas, 2) doenças constitucionais, 3)
doenças localizadas, 4) doenças do desenvolvimento e 5) doenças ou mortes violentas
(LAURENTI, 1991).

Em 1891, o Instituto Internacional de Estatística formou uma comissão para


preparar uma nova classificação e, sob a direção de Jacques Bertillon, publicou uma
classificação de causas de morte que ficou conhecida como “Classificação das Causas de
Morte de Bertillon”. Essa classificação foi adotada por diversos países a partir de 1893, sendo
considerada a primeira classificação internacional de causas de morte.

Avançando um pouco para o campo da psicopatologia, as primeiras classificações


em psicopatologia surgiram da tradição biológica, especialmente a partir da publicação
do livro Psychiatry: a textbook for students and physicians por Emil Kraepelin, em
1913. Kraepelin foi um dos pioneiros da descrição dos sintomas da esquizofrenia,
que acreditava que uma patologia no cérebro era responsável por desencadear esse
transtorno particular. Ainda que outros psiquiatras influentes, como Philippe Pinel,
tenham caracterizado os transtornos psicológicos como entidades separadas, a teoria
de Kraepelin de que “os transtornos psicológicos eram basicamente distúrbios biológicos
produziu maior impacto sobre o desenvolvimento de nossa nosologia e levou a uma
ênfase das estratégias categoriais clássicas” (BARLOW; DURAND, 2015, p. 91).

Segundo Barlow e Durand (2015), no campo da saúde mental, as primeiras


classificações não tiveram muita influência, especialmente o DSM-I, publicado em 1952
pela Associação Americana de Psiquiatria. Ainda que em 1959 houvesse, no mundo,
pelo menos nove sistemas diferentes de classificação dos transtornos psicológicos, foi
somente no final dos anos 1960 que os sistemas de nosologia realmente começaram a
influenciar os profissionais da área da saúde mental.

Isso se deve, principalmente, ao fato de que as primeiras classificações não eram


tão precisas, havendo diferenças entre elas. As primeiras classificações eram baseadas
em teorias que não eram comprovadas ou aceitas por todos os profissionais da área. Além
disso, Barlow e Durand (2015) argumentam que as classificações eram pouco confiáveis,
tornando-se comum que dois profissionais examinassem o mesmo paciente e chegassem
a diagnósticos diferentes, ainda que se baseassem nos manuais disponíveis. A Figura 8
ilustra um possível diagnóstico a partir de um manual.

114
FIGURA 8 – DIFERENTES DIAGNÓSTICOS

FONTE: <https://bit.ly/39qYUHO>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Nas últimas décadas, tanto a CID quanto o DSM se tornaram os manuais padrão
de classificação internacional de transtornos mentais. Desta forma, dedicaremos o
Tópico 2 e o Tópico 3 para a apresentação destes manuais, conhecendo um pouco da
história e das formas de classificação neles presentes.

DICA
Assista o vídeo Transtornos Mentais: Diagnósticos Em Questão,
disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=hqyXTu3NZSw

4 ESPECIFICIDADES DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA


Toda criança nasce sendo constituída por uma base genética a ser investida por
um ambiente que inscreverá suas características. Segundo Assumpção Junior (2009),
esse processo permite com que a criança se desenvolva a partir de características
singulares, tornando-se um ser dotado de unicidade e de plasticidade, ou seja, ao mesmo
tempo, a criança altera e é alterada pelo ambiente no qual está inserida.

O processo de desenvolvimento ocorre através de etapas que possibilitam que


novos esquemas sejam incorporados pelo indivíduo, a partir de esquemas reflexos já
presentes desde o nascimento. Assim, a criança passa a explorar seu corpo, a identificar
o outro e a ter relações sociais. Nesse contexto, a criança passa a estabelecer diálogos
emocionais com o ambiente, “organizando seu funcionamento afetivo e seus esquemas
sociais, surgindo, inclusive, um sistema comunicacional pré-verbal, que lhe permite
mostrar as pessoas mais próximas seus desejos” (ASSUMPÇÃO JUNIOR, 2009, p. 108).

O breve processo escrito acima desenvolve-se por toda a infância e a


adolescência, possibilitando a passagem de um ser totalmente dependente para um ser
autônomo, que se constitui a partir de suas

115
potencialidades e características, bem como das influências
ambientais a que se encontra submetido. Em função dessas
características desenvolvimentistas, sua psicopatologia não pode
constituir-se em mera cópia da psicopatologia do adulto, conforme
frequentemente é observado (ASSUMPÇÃO JUNIOR, 2009, p. 109).

É a partir dessa configuração (como uma cópia da psicopatologia do adulto),


que Almeida et al. (2019) aponta que o campo da saúde mental da infância e da
adolescência tem vivido uma franca expansão, não necessariamente devido a avanços
do conhecimento. A popularização da psiquiatria na infância e na adolescência se deve
ao surgimento de novas categorias nosológicas, que são publicadas em entrevistas
diagnósticas e, também, em artigos e reportagens, por vezes, sensacionalistas. Diante
disso, Almeida et al. (2019) argumentam que, ainda que muitas crianças possam se
beneficiar de diagnósticos e intervenções precoces, o diagnóstico equivocado somado
ao uso de psicofármacos pode ter efeitos destrutivos sobre diversas crianças e
adolescentes.

A prescrição de medicamentos psiquiátricos para crianças e adolescentes é


um fenômeno recente, considerando que, antes de 1980, poucas crianças ou jovens
eram medicados. No início da era farmacológica da psiquiatria, as crianças não eram
diagnosticadas com doenças mentais. As crianças que praticavam bullying ou que não
gostavam de estudar (Figura 9) não eram diagnosticadas com transtorno do déficit de
atenção com hiperatividade (TDAH), até porque, este diagnóstico não existia. Em casos
como este, o esperado era que, ao crescerem, as crianças se tornassem adultos mais
ou menos adequados às normas e regras da sociedade, sem indícios de neuroatipia
(WHITAKER, 2017).

FIGURA 9 – CRIANÇA SE DESTRAI COM O LÁPIS

FONTE: <https://bit.ly/3CAiEFi>. Acesso em: 24 jul. 2021.

116
O quadro começa a se alterar a partir do ponto que a psiquiatria passa a tratar
crianças com psicotrópicos, alegando que as novas descobertas apontavam que as
crianças sofrem regularmente de doenças mentais, de natureza biológica. Primeiro, “a
psiquiatria materializou o TDAH como uma doença identificável; depois, determinou que
a depressão aguda e o transtorno bipolar atingem regularmente crianças e adolescentes”
(WHITAKER, 2017, p. 226).

Portanto, “doenças” que passavam despercebidas passaram a ser identificadas e,


assim, a psiquiatria pediátrica passou a se basear, cada vez mais, na ideia de que as drogas
psiquiátricas são úteis e necessárias, pois podem ajudar a criar “cérebros sadios”, agindo
como neuroprotetores, ou seja, os tratamentos medicamentosos poderiam proteger de
lesões cerebrais ou promover a neuromaturação normal.

Essas concepções nos remetem a um assunto que vimos nas unidades


anteriores: as fronteiras entre normalidade e patologia, as quais não são tão claras no
campo da psicopatologia, principalmente em crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo
que o desenvolvimento infantil se configura como um dos referenciais para o diagnóstico
psiquiátrico, ele também se torna o principal fator de dificuldade na distinção entre
normal e patológico, isso porque “não é possível estabelecer critérios rígidos e estáticos
para seres cuja característica é a mudança contínua, a estruturação e reestruturação
de seu modo de pensar, de se comportar, de aprender e de se relacionar” (ALMEIDA et
al., 2019, p. 22).

Ao considerar a normalidade estatística, ou seja, entender que o normal é o que


é mais comum em uma dada população, descobriremos que algumas crianças, ainda
que felizes e bem adaptadas, podem ser consideradas “anormais” ao apresentarem
comportamentos incomuns ao meio no qual estão inseridas. Nesse sentido, também
seria possível encontrar crianças aparentemente bem adaptadas ao seu ambiente, mas
que, na realidade, escondem sofrimentos ou sensações de inadequação, conforme
ilustrado pela Figura 10 (ALMEIDA et al., 2019).

FIGURA 10 – O QUE É SER NORMAL?

FONTE: <https://bit.ly/3EDe1MA>. Acesso em: 24 jul. 2021.

117
Estamos acostumados a lidar com a doença como algo objetivo, algo que a
pessoa tem ou não tem. Essa lógica não pode ser aplicada à psicopatologia infantil, já
que, na maioria dos quadros, não há algo que possa ser identificado objetivamente, de
modo separado da criança, além dos quadros que podem ser transitórios ou limítrofes,
conforme estudamos anteriormente. Nesse sentido, é preciso compreender a saúde
como um valor e não como uma média.

Portanto, o que pode ser considerado passível de avaliação e de possíveis


tratamentos, é “aquilo que é experimentado pela criança, por seus pais ou mesmo por
outras pessoas significativas de seu entorno como algo que limita a vida do sujeito,
suas capacidades criativas e adaptativas e que se mantém durante certo período”
(ALMEIDA et al., 2019, p. 23). Dessa forma, a avaliação com crianças e adolescentes não
se restringe a checklists de critérios diagnósticos, e é preciso

levar em conta a experiência da criança, seu funcionamento físico e


mental, suas relações com o ambiente próximo, seu lugar na família, o
modo como os pais lhe oferecem (ou não) cuidados e segurança, seu
desenvolvimento e seu histórico de vida (ALMEIDA et al., 2019, p. 23).

Segundo Almeida et al. (2019), há duas maneiras distintas de compreender os


transtornos psiquiátricos na infância e na adolescência:

• Visão categorial: relaciona-se com a ideia de “tudo ou nada”, ou há normalidade


ou há patologia. Essa visão é fundamental para diversas áreas da medicina, sendo
importante, por exemplo, determinar se a criança tem ou não tem uma fratura óssea.
Entretanto, quando pensamos em saúde mental, tal visão pode contribuir para a ideia
de que, se a criança está com alguma dificuldade de comportamento, é porque tem
alguma “coisa” nela. Como vimos anteriormente, um possível diagnóstico de TDAH,
por exemplo, eliminaria todas as outras variáveis psicológicas e ambientais que
poderiam estar contribuindo para o comportamento inadequado da criança.
• Visão dimensional: é uma visão que enxerga “linhas de continuidade” entre a
normalidade e a patologia, em que a definição entre uma ou outra situação é feita
de forma mais ou menos arbitrária. Como a diferenciação entre normal e patológico
pode ser subjetiva e um pouco incerta, essa visão pode estimular a excessiva
medicalização dos problemas infantis.

DICA
Assista o vídeo Patologização da Vida de Crianças e Adolescentes,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2EaYfgeubrw.

118
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• Desde a metade do século XIX, iniciou-se uma nova forma de compreender e lidar com
os transtornos mentais. Ao invés de tentar compreender os sintomas como delírios,
alucinações e os atos violentos, os alienistas e psiquiatras da época passaram a
analisar o comportamento e as condutas dos indivíduos, com o objetivo de classificá-
los em diferentes categorias.

• Após a Segunda Guerra Mundial o modelo psicopatológico proposto por Oto Fenichel
se tornou a visão dominante, compreendendo que o funcionamento normal da
mente é governado por um aparelho de controle que organiza, conduz e inibe forças
arcaicas mais profundas e mais instintivas.

• A popularização da psiquiatria na infância e na adolescência se deve ao surgimento de


novas categorias nosológicas publicadas em entrevistas diagnósticas e, também, por
meio de artigos e reportagens que são, por vezes, sensacionalistas.

• A avaliação com crianças e adolescentes não se restringe a checklists de critérios


diagnósticos, é preciso “levar em conta a experiência da criança, seu funcionamento
físico e mental, suas relações com o ambiente próximo, seu lugar na família, [...] seu
desenvolvimento e seu histórico de vida (ALMEIDA et al., 2019, p. 23).

119
AUTOATIVIDADE
1 O distanciamento da psiquiatria e da psicanálise só aumentou na medida que os
manuais classificatórios (DSM e CID) foram sendo publicados e revisados, isso porque
a abordagem organicista, biológica e estatística se tornou cada vez mais dominante.
Com relação à perspectiva sindrômica dos quadros mentais, assinale a alternativa
CORRETA:

a) ( ) As síndromes são conjuntos de diagnósticos que se agrupam de forma recorrente


e são observados na prática clínica diária.
b) ( ) Identificar as síndromes não é tão importante quanto realizar um diagnóstico
preciso.
c) ( ) A “teoria das síndromes” defendia que há sintomas singulares e sintomas gerais,
que se articulam de forma secundária aos sintomas singulares.
d) ( ) O diagnóstico sindrômico é uma estratégia importante no raciocínio clínico,
sua evolução se dá ao longo das primeiras avaliações e do conhecimento
aprofundado sobre o paciente e seu sofrimento mental.

2 Classificação é um termo que pode se referir à criação de princípios e regras em


torno dos quais itens, referências, características e futuros agrupamentos serão
constituídos, ou, então, ao ato de agrupar em si, de organizar e distribuir. Sobre a
classificação das doenças mentais, analise as sentenças a seguir:

I- A classificação de pessoas doentes ou com transtornos em determinados grupos é


chamada nosologia.
II- Um dos objetivos da nosografia é a compreensão das causas e da natureza das
doenças, permitindo certo planejamento e avaliação a partir de uma comunicação
padronizada entre diversos profissionais.
III- Desde o início, as classificações se demonstraram uma ferramenta confiável, se
dois profissionais examinassem o mesmo paciente eles chegariam ao mesmo
diagnóstico.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

120
3 A psicopatologia da criança e do adolescente vem sendo encarada como uma
cópia da psicopatologia do adulto. Com isso, o campo da saúde mental da infância
e da adolescência tem vivido uma franca expansão. Sobre as características
desenvolvimentistas marcantes da infância e da adolescência, classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) A popularização da psiquiatria na infância e na adolescência se deve ao surgimento


de novas categorias nosológicas publicadas em entrevistas diagnósticas e,
também, por meio de artigos e reportagens por vezes sensacionalistas.
( ) A prescrição de medicamentos psiquiátricos para crianças e adolescentes não é
um fenômeno recente, e, desde 1960, tornou-se comum que crianças ou jovens
fossem medicados.
( ) Ainda que muitas crianças possam se beneficiar de diagnósticos e intervenções
precoces, o diagnóstico equivocado somado ao uso de psicofármacos pode ter
efeitos destrutivos sobre diversas crianças e adolescentes.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Estamos acostumados a lidar com a doença como algo objetivo, algo que a pessoa
tem ou não tem. Essa lógica não pode ser aplicada à psicopatologia infantil, já que, na
maioria dos quadros, não há algo que possa ser identificado objetivamente, de modo
separado da criança. Nesse sentido, aprendemos que há duas maneiras distintas
de compreender os transtornos psiquiátricos na infância e na adolescência: a visão
categorial e a visão dimensional. Discorra sobre cada uma dessas visões apresentando
suas principais características.

5 O campo da saúde mental da infância e da adolescência tem vivido uma franca expansão,
não necessariamente devido a avanços do conhecimento. Discorra sobre a popularização
da psiquiatria na infância e na adolescência, apontando os principais fatores e riscos
apresentados.

121
122
UNIDADE 3 TÓPICO 2
O MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO
DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM)

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 2, conheceremos o Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (DSM). O Subtópico 2 será dedicado ao estudo da trajetória
percorrida pelo manual até sua terceira edição, considerada como a versão que traçou
uma linha divisória clara entre os problemas da vida e a verdadeira doença mental.
Veremos que a necessidade de organizar sistemas diagnósticos surgiu a partir da
segunda metade do século XX.

No Subtópico 3, dedicaremos nossos estudos à quarta versão do manual, o


DSM-IV. A publicação do DSM-IV ocorreu apenas em 1994, 14 anos após o DSM-III. O
objetivo dessa versão era, através da revisão da literatura, estabelecer bases empíricas
que sustentassem atualizações. Nesse sentido, diversas alterações foram realizadas nas
classificações, nos critérios diagnósticos e nas descrições das doenças.

No Subtópico 4, apresentaremos a versão mais atual do manual, o DSM-V,


publicado em 2013. O enfoque principal para essa versão do DSM era a quantificação da
gravidade dos sintomas e a avaliação em forma dimensional e transversal daqueles que
apresentavam ampla diversidade de diagnóstico. Como o sistema multiaxial presente no
DSM-IV gerava distinções superficiais e era pouco utilizado, ele foi suprimido no DSM-V.

Por fim, encerraremos no Subtópico 5 com um exemplo de classificação contida


no DSM-V. Escolhemos exemplificar o Transtorno Depressivo Maior por se tratar de uma
patologia que aprendemos na Unidade 2.

2 O TRAJETO ATÉ O DSM-III


A necessidade de organizar sistemas diagnósticos surgiu a partir da segunda
metade do século XX. O trajeto para padronizar as categorias de doenças, conforme
ilustrado pela Figura 11, era necessário para suprir necessidades terapêuticas e
acadêmicas, entretanto, estabelecer um consenso não era tarefa fácil, especialmente
ao considerarmos as especificidades dos limites entre o normal e o patológico (DUNKER,
2014a).

123
FIGURA 11 – O TRAJETO

FONTE: <https://bit.ly/3CBzxQe>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Em 1921, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) colaborou com a


publicação da primeira classificação americana de doenças, cujo principal objetivo era
diagnosticar pacientes com transtornos mentais e neurológicos graves. Em 1952, a
APA publicou uma variação da CID-6 (aprenderemos sobre a CID no Tópico 3) intitulado
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, dando início ao primeiro Manual
de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-I, manual que contava com
106 categorias, com abordagem predominantemente psicanalítica.

Já em 1968, ocorre a publicação da segunda versão do manual, o DSM-II.


A evolução do manual se deu a partir da coleta de dados e estatísticas de hospitais
psiquiátricos, bem como de um manual desenvolvido pelo exército americano que tinha
como objetivo selecionar e acompanhar recrutas. Com 182 categorias, predominava a
visão da psiquiatria psicodinâmica de Adolph Meyer, principalmente na oposição entre
neurose e psicose. A versão do 2 do DSM não agradou muito a comunidade científica,
principalmente porque tentava se aproximar da CID-8, o que levou a uma revisão um
ano após sua publicação.

A próxima versão do manual foi publicada em 1980. O DSM-III tinha como


principal objetivo uniformizar e validar os diagnósticos psiquiátricos, padronizando,
assim, as práticas internacionais de diagnóstico, ilustradas pela Figura 12. Nesse sentido,
o desenvolvimento da terceira edição do manual ocorreu de forma coordenada com a
CID-9, que havia sido publicada em 1975.

124
FIGURA 12 – PADRONIZAÇÃO GLOBAL

FONTE: <https://bit.ly/3AwnHGm>. Acesso em: 24 jul. 2021.

A partir do DSM-III, os diagnósticos passaram a ser considerados como


instrumentos convencionais, dispensando referências ontológicas, ou seja, seriam
puramente descritivos. Isso ocorreu, principalmente, porque havia uma confusão teórica
e terminológica muito grande na psiquiatria no final dos anos 1970, levando à opção
por critérios da recente medicina baseada em evidências, que foi considerado o início
de uma revolução científica (DUNKER, 2014a). Nessa medicina, a prática é direcionada
para a identificação de sintomas, definição de diagnósticos e testagem da eficácia de
medicamentos.

A terceira versão do manual foi recebida com esperança pelos profissionais da


área de saúde, considerando que a unificação de linguagens facilitaria o trabalho e a
pesquisa. Segundo Dunker (2014a, s.p.), essa versão “traçou uma linha divisória clara
entre os problemas da vida e a verdadeira doença mental. A chegada do DSM-III se
fazia acompanhar do processo de desinstitucionalização de pacientes crônicos, da luta
antimanicomial”.

Segundo Caponi (2012), a revolução do DSM-III se deu com relação aos outros
manuais existentes. O DSM-III recuperava um pensamento clássico da psiquiatria
biológica que parecia ter sido abandonado. A recuperação das teses biológicas
de Kraepelin correlaciona-se, entre outras questões, aos novos medicamentos
psicotrópicos, como a descoberta da clorpromazina em 1952. Além disso, classificar as
doenças de forma objetiva e descritiva (FIGURA 13) facilitava a aceitação de diversos
profissionais, excluindo concepções consideradas pouco científicas como a sociologia
ou a psicanálise.

125
FIGURA 13 – CONCEPÇÃO BIOLOGICISTA

FONTE: <https://bit.ly/3AJ5TYN>. Acesso em: 24 jul. 2021.

A classificação do DSM-III foi fundamentada em dados empíricos, descartando


avaliações subjetivas dos psiquiatras. Para tanto, foram revisados diversos artigos
e com base nos dados levantados estabeleceram-se critérios diagnósticos, mais
especificamente, 16 critérios para doenças psiquiátricas. Um dos grupos responsáveis
por essa nova forma de olhar para a psiquiatria considerava que, para se desenvolver
uma classificação válida, era preciso respeitar cinco critérios, a saber:

• Descrição clínica.
• Estudos de laboratório.
• Critérios de exclusão de outras doenças.
• Estudo do curso da doença.
• Estudos referentes à família dos doentes.

Essas transformações decorreram do trabalho conjunto de psiquiatras com uma


visão biológica dos transtornos mentais, de pesquisas experimentais e de psiquiatras
progressistas, que consideravam que a psicanálise psicologizava problemas de ordem
social. Portanto, a partir do DSM-III, o estilo de entrevista na psiquiatria deixa de ser
orientado pelo insight, ou seja, deixa de ser psicodinâmico, e passa a ser orientado pelo
sintoma, de forma descritiva (DUNKER, 2014a).

O sistema multiaxial presente na terceira versão objetivava traçar um quadro


mais completo do paciente, baseado em uma classificação “em descrição, ao invés de
pressupostos etiológicos. Então a psicodinâmica foi abandonada, em favor do modelo
biomédico, com distinção entre o normal e o anormal” (FERREIRA, 2015, p. 68). O
abandono do enfoque psicodinâmico faz com que as classificações psicopatológicas
sejam definidas como síndromes, prevalecendo o modelo biomédico e a marcação clara
do que é normal e do que é anormal ou patológico.

126
Em 1987, uma revisão do DSM-III foi publicada e denominada DSM-III-R. Essa
nova versão renomeou, reorganizou e mudou alguns critérios diagnósticos, passando
de 265 para 292 categorias. Segundo Ferreira (2015), alguns diagnósticos como disforia
pré-menstrual e personalidade masoquista foram descartados por serem um tanto
controversos. Ainda assim essa versão não foi poupada de críticas, por ser considerada
uma versão que utilizou uma metodologia empobrecida para chegar aos critérios
operacionais.

IMPORTANTE
“O DSM não inclui informações a respeito de tratamento ou explanação
sobre assuntos psiquiátricos e/ou psicológicos, e isso não exclui o que
podemos considerar como doença” (FERREIRA, 2015, p. 70)

3 O DSM-IV
A publicação do DSM-IV ocorreu apenas em 1994, 14 anos após o DSM-III. Essa
versão do manual é fruto do trabalho de mais de 1.000 pessoas de diversas organizações
ligadas à saúde mental. Assim como o DSM-III, o DSM-IV foi desenvolvido em conjunto
com a CID-10, que havia sido publicada em 1992. O objetivo dessa versão era, através da
revisão da literatura, estabelecer bases empíricas que sustentassem atualizações. Nesse
sentido, diversas alterações foram realizadas nas classificações, nos critérios diagnósticos e
nas descrições das doenças.

Segundo Ferreira (2015), o DSM-IV organizou cada diagnóstico psiquiátrico em cinco


eixos ilustrados pela Figura 14 e relacionando diferentes aspectos dos transtornos, a saber:

• Eixo I: transtornos clínicos, incluindo os principais transtornos mentais, problemas


do desenvolvimento e da aprendizagem.
• Eixo II: transtornos de personalidade ou invasivos, bem como retardo mental.
• Eixo III: situações clínicas agudas e doenças físicas.
• Eixo IV: fatores psicossociais e ambientais que contribuem para desordens.
• Eixo V: avaliação global de funcionamento ou escala de avaliação global para
crianças.

127
FIGURA 14 – CATEGORIZAÇÃO POR EIXOS

FONTE: <https://bit.ly/3tX447M>. Acesso em: 24 jul. 2021.

A partir da concepção por eixos, o DSM-IV revisou diversos critérios diagnósticos,


acrescentou e eliminou alguns transtornos, incluiu grupos e demarcou normas de
interpretação e generalização das informações. Nesse sentido, o DSM dispensa de vez
o diagnóstico diferencial, ou seja, o tratamento pela palavra. Ao excluir a subjetividade, a
medicina biofisiológica se afasta de vez da psicanálise e do pensamento que havia servido
de base para as primeiras edições do DSM (DUNKER, 2014a).

Nesse sentido, a quarta versão do manual rompeu com a “longa tradição,


em vigor desde Pinel, na qual a caracterização das formas de sofrimento, alienação
ou patologia mental fazia-se acompanhar da fundamentação ou da crítica filosófica”
(DUNKER, 2014a, s.p.). O autor ainda argumenta que não só foi rompido o diálogo
entre a psicanálise e a psiquiatria, mas também a maneira de fundamentar e de fazer
psicopatologia (Figura 15).

FIGURA 15 – A CURA PELA PALAVRA

FONTE: <https://bit.ly/3hUXp9o>. Acesso em: 24 jul. 2021.

128
Em 2000, o DSM-IV recebe uma versão atualizada, denominada DSM-IV-TR,
apresentando mais 21 categorias além das 297 já existentes. Ainda que não tenha
apresentado modificações substanciais, essa versão valoriza as comorbidades e os
cruzamentos entre os eixos diagnósticos. Cada seção trazia informações extras e os
diagnósticos e seus respectivos códigos foram atualizados, mantendo a consistência
com a CID (FERREIRA, 2015).

4 O DSM-V
Desde o início dos anos 2000, grupos foram criados para definir métodos e
critérios para a elaboração do DSM-V. Esses grupos produziram centenas de artigos
e monografias, sintetizando o que se sabia de mais importante sobre o diagnóstico
psiquiátrico. Em 2007, a APA deu início a uma força tarefa que revisaria todo o conteúdo
produzido, culminando com a publicação do DSM-V em 2013, com mais de 300
categorias e 947 páginas.

O enfoque principal para essa versão do DSM era a quantificação da gravidade


dos sintomas e a avaliação em forma dimensional e transversal daqueles que
apresentavam ampla diversidade de diagnóstico, conforme ilustra a Figura 16. Ainda
que permaneça fundamentado no modelo categorial, a quinta versão do DSM possui um
enfoque mais dimensional em relação aos anteriores, permitindo analisar se o sintoma
é leve, moderado ou severo em diversos quadros clínicos (MARTINHAGO; CAPONI, 2019).

FIGURA 16 – AVALIAÇÃO DIMENSIONAL

FONTE: <https://bit.ly/3lOlYpA>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Como o sistema multiaxial presente no DSM-IV gerava distinções superficiais


e era pouco utilizado, ele foi suprimido no DSM-V. Além disso, o manual foi organizado
considerando os ciclos de vida. A primeira parte do material é dedicada aos quadros

129
clínicos das primeiras fases do desenvolvimento, a parte central dedica-se aos
transtornos da adolescência e da idade adulta e, na última parte, são apresentados os
transtornos relacionados à velhice.

Assim com as outras versões do manual, o DSM-V buscou harmonizar as


classificações com as apresentadas pela CID-11, justificando que:

• A existência de duas classificações que não estejam harmonizadas dificulta a coleta


e o uso de estatísticas, além do desenvolvimento de novos tratamentos.
• A existência de duas classificações dificulta a replicação de resultados científicos
entre diferentes países.
• Os diagnósticos apresentados pelo DSM-IV e pela CID-10 nem sempre estavam em
acordo.

Umas das preocupações do DSM-V é considerar o transtorno mental a partir


de suas relações a normas e valores culturais, sociais e familiares. O entendimento
do manual é que a cultura proporciona “estruturas de interpretação que moldam a
experiência e a expressão de sintomas, sinais e comportamentos que são os critérios
para o diagnóstico” (APA, 2016). Segundo o manual, a avaliação diagnóstica deve
considerar se os sintomas e os comportamentos de um indivíduo se diferem das normas
socioculturais, conduzindo-o a dificuldades de adaptação culturais ou familiares.

Entretanto, segundo Dunker (2014a), a quinta versão do DSM surpreende ao


apresentar uma longa lista de “condições” que podem aparecer na clínica, dentre
elas, podemos citar: problemas de relacionamento, rompimentos familiares, violência
doméstica ou sexual, problemas ocupacionais e profissionais, problemas com vizinhos,
dentre outros. Para o autor, ainda que o DSM se mostre preocupado com questões
sociais, a lista apresentada “denota os efeitos da exclusão da noção de sofrimento,
acrescidos agora da dispersão gerada pela recusa incondicional em pensar os sintomas
no quadro de uma forma de vida, como unidade entre trabalho, desejo e linguagem”
(DUNKER, 2014a, s.p.).

Outra crítica apresentada por Dunker (2014) é que, nessa versão, o diagnóstico é
sobrevalorizado, especialmente a partir da análise dos efeitos de medicamentos em que
o mecanismo de ação ainda é desconhecido. Nesse sentido, o autor aponta que 52% dos
pesquisadores envolvidos na elaboração do DSM-V declararam que tinham ligações formais
com a indústria farmacêutica, ilustrada pela Figura 17.

130
FIGURA 17 – INDÚSTRIA FARMACÉUTICA

FONTE: <https://bit.ly/39snJmO>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Ainda assim os elogios feitos ao DSM-V baseiam-se na apresentação


etiológica dos transtornos mentais fundamentadas em orientações neurobiológicas,
na confiabilidade e validade das classificações e nos avanços nas pesquisas básicas
e clínicas, garantindo atualizações para as próximas versões do DSM (MARTINHAGO;
CAPONI, 2019).

5 EXEMPLOS DE CLASSIFICAÇÃO
A classificação dos transtornos mentais no DSM-V é realizada a partir da
definição de uma série de fatores, como:

• Critérios diagnósticos.
• Características diagnósticas.
• Prevalência.
• Desenvolvimento e curso.
• Fatores de risco e prognóstico.
• Diagnóstico diferencial.
• Comorbidade.
• Entre outros.

O Quadro 1 apresenta os principais elementos descritos no DSM-V sobre o


Transtorno Depressivo Maior, um dos transtornos que aprendemos na Unidade 2.

131
QUADRO 1 – DEFINIÇÕES DO DSM-V PARA O TRANSTORNO DEPRESSIVO MAIOR

Item Definição

A. Cinco (ou mais) dos seguintes sintomas estiveram presentes


durante o mesmo período de duas semanas e representam uma
mudança em relação ao funcionamento anterior; pelo menos um
dos sintomas é (1) humor deprimido ou (2) perda de interesse ou
prazer. 1. Humor deprimido na maior parte do dia, quase todos
os dias, conforme indicado por relato subjetivo (p. ex., sente-
se triste, vazio, sem esperança) ou por observação feita por
outras pessoas (p. ex., parece choroso). (Nota: Em crianças e
adolescentes, pode ser humor irritável.) 2. Acentuada diminuição
do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades
na maior parte do dia, quase todos os dias indicada por relato
subjetivo ou observação feita por outras pessoas). 3. Perda ou
ganho significativo de peso sem estar fazendo dieta (p. ex., uma
alteração de mais de 5% do peso corporal em um mês), ou redução
ou aumento do apetite quase todos os dias. (Nota: Em crianças,
considerar o insucesso em obter o ganho de peso esperado.) 4.
Insônia ou hipersonia quase todos os dias. 5. Agitação ou retardo
psicomotor quase todos os dias (observáveis por outras pessoas,
não meramente sensações subjetivas de inquietação ou de estar
Critérios
mais lento). 6. Fadiga ou perda de energia quase todos os dias.
diagnósticos
7. Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inapropriada
(que podem ser delirantes) quase todos os dias (não meramente
autorrecriminação ou culpa por estar doente). 8. Capacidade
diminuída para pensar ou se concentrar, ou indecisão, quase
todos os dias (por relato subjetivo ou observação feita por outras
pessoas). 9. Pensamentos recorrentes de morte (não somente
medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano
específico, uma tentativa de suicídio ou plano específico para
cometer suicídio. B. Os sintomas causam sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou
em outras áreas importantes da vida do indivíduo. C. O episódio
não é atribuível aos efeitos fisiológicos de uma substância ou a
outra condição médica. D. A ocorrência do episódio depressivo
maior não é mais bem explicada por transtorno esquizoafetivo,
esquizofrenia, transtorno esquizofreniforme, transtorno
delirante, outro transtorno do espectro da esquizofrenia e outro
transtorno psicótico especificado ou transtorno da esquizofrenia
e outro transtorno psicótico não especificado. E. Nunca houve
um episódio maníaco ou um episódio hipomaníaco.

132
A prevalência de 12 meses do transtorno depressivo maior nos
Estados Unidos é de aproximadamente 7%, com acentuadas
diferenças por faixa etária, sendo que a prevalência em
Prevalência indivíduos de 18 a 29 anos é três vezes maior do que a prevalência
em indivíduos acima dos 60 anos. Pessoas do sexo feminino
experimentam indices 1,5 a 3 vezes mais altos do que as do
masculino, começando no início da adolescência.
O transtorno depressivo maior pode aparecer pela primeira
vez em qualquer idade, mas a probabilidade de início aumenta
sensivelmente com a puberdade. Nos Estados Unidos, a
incidência parece atingir seu pico na década dos 20 anos; no
entanto, o primeiro episódio na idade avançada não é incomum.
Desenvolvimento
O curso do transtorno depressivo maior é bastante variável, de
e curso
modo que alguns indivíduos raramente experimentam remissão
(um período de dois meses ou mais sem sintomas ou apenas
1 ou 2 sintomas não mais do que em um grau leve), enquanto
outros experimentam muitos anos com poucos ou nenhum
sintoma entre episódios discretos.
Temperamentais: Afetividade negativa (neuroticismo).
Ambientais: Experiências adversas na infância, particularmente
quando existem múltiplas experiências de tipos diversos,
constituem um conjunto de fatores de risco potenciais para
transtorno depressivo maior. Genéticos e fisiológicos: Os
Fatores de risco
familiares de primeiro grau de indivíduos com transtorno
e prognóstico
depressivo maior têm risco 2 a 4 vezes mais elevado de
desenvolver a doença que a população em geral. Modificadores
do curso: Essencialmente, todos os transtornos maiores não
relacionados ao humor aumentam o risco de um indivíduo
desenvolver depressão.
Episódios maníacos com humor irritável ou episódios mistos.
Transtorno do humor devido a outra condição médica. Transtorno
Diagnóstico
depressivo ou bipolar induzido por substância/medicamento.
diferencial
Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Transtorno de
adaptação com humor deprimido. Tristeza.
FONTE: Adaptado de APA (2016).

DICA
Assista ao vídeo Questões entre a Psicanálise e o DSM, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WP4pdaC1PYk.

133
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A necessidade de organizar sistemas diagnósticos surgiu a partir da segunda metade


do século XX. Padronizar as categorias de doença se fazia necessário para suprir
necessidades terapêuticas e acadêmicas, entretanto, estabelecer um consenso não
era tarefa fácil, especialmente ao considerarmos as especificidades dos limites entre
o “normal” e o patológico.

• Em 1952, a APA publicou uma variação da CID-6 intitulado Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, dando início ao primeiro Manual de Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-I.

• A partir do DSM-III, os diagnósticos passaram a ser considerados como instrumentos


convencionais, dispensando referencias ontológicas, ou seja, seriam puramente
descritivos. Isso ocorreu, principalmente, porque havia uma confusão teórica e
terminológica muito grande na psiquiatria no final dos anos 1970.

• O enfoque principal do DSM-V é a quantificação da gravidade dos sintomas e a


avaliação em forma dimensional e transversal daqueles que apresentavam ampla
diversidade de diagnóstico. Ainda que permaneça fundamentado no modelo
categorial, essa versão do DSM possui um enfoque mais dimensional em relação às
edições anteriores.

134
AUTOATIVIDADE
1 Em 1952, a APA publicou o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,
dando início ao primeiro Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais,
o DSM-I. Considerando o que aprendemos sobre a primeira versão do DSM, assinale
a alternativa CORRETA:
a) ( ) A primeira versão do manual contava com 106 categorias e a abordagem era
predominantemente comportamental.
b) ( ) A necessidade de organizar sistemas diagnósticos surgiu desde o fim do século XIX.
c) ( ) A primeira versão do manual era uma variação da CID-6.
d) ( ) Padronizar as categorias de doença se fazia necessário para suprir apenas
necessidades teóricas.

2 O DSM-III, publicado em 1980, tinha como principal objetivo uniformizar e validar


os diagnósticos psiquiátricos, padronizando, assim, as práticas internacionais de
diagnóstico. Nesse sentido, o desenvolvimento da terceira edição do manual ocorreu
de forma coordenada com a CID-9, que havia sido publicado em 1975. Com relação
ao DSM-III, analise as sentenças a seguir:

I- A partir do DSM-III, os diagnósticos passaram a ser considerados como instrumentos


convencionais, dispensando referencias ontológicas, ou seja, seriam puramente
descritivos.
II- A terceira versão do manual foi recebida com esperança pelos profissionais da área
de saúde, a unificação de linguagens facilitaria o trabalho e a pesquisa.
III- A chegada do DSM-III não sofreu influência do processo de desinstitucionalização
de pacientes crônicos e da luta antimanicomial.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A publicação do DSM-IV ocorreu apenas em 1994, 14 anos após o DSM-III. A quarta


versão do manual é fruto do trabalho de mais de 1.000 pessoas e de diversas
organizações ligadas à saúde mental. Sobre o DSM-IV, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para falsas:

( ) O DSM-IV foi desenvolvido em conjunto com a CID-10, que havia sido publicada

135
em 1992.
( ) O DSM-IV seguiu o modelo de classificação da versão anterior, incluindo o
diagnóstico diferencial.
( ) O objetivo dessa versão era, através da revisão da literatura, estabelecer bases
empíricas que sustentassem atualizações.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A partir da concepção por eixos, o DSM-IV revisou diversos critérios diagnósticos,


acrescentou e eliminou alguns transtornos, incluiu grupos e demarcou normas de
interpretação e generalização das informações. Nesse sentido, o DSM dispensa de
vez o diagnóstico diferencial, ou seja, o tratamento pela palavra. Disserte sobre os
caminhos da psiquiatria e da psicanálise a partir do DSM-IV.

5 Em 2007, a APA deu início a uma força tarefa que revisaria todo o conteúdo produzido,
culminando com a publicação do DSM-V em 2013, com mais de 300 categorias e 947
páginas. Assim com as outras versões do manual, o DSM-V buscou harmonizar as
classificações com as apresentadas pela CID-11. Disserte sobre os problemas decorrentes
de classificações diferentes apresentadas pelo DSM e pela CID.

136
UNIDADE 3 TÓPICO 3 —
A CLASSIFICAÇÃO ESTATÍSTICA
INTERNACIONAL DE DOENÇAS E DE
PROBLEMAS RELACIONADOS À SAÚDE (CID)

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3, apresentaremos sobre a Classificação Estatística
Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saúde, mais conhecida como
CID. Dedicaremos o subtópico 2 para conhecer o trajeto percorrido pelo CID até a décima
versão, a CID-10.

Em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) assumiu a responsabilidade


pela organização do sistema de classificação, que passou a ser desenvolvido de
forma mais previsível. Ainda que a classificação tenha surgido como um instrumento
estatístico para enumerar e analisar as causas de morte, ou seja, não incluía doenças
não letais, a partir da sexta edição, a CID foi expandida visando classificar a morbidade
além da mortalidade.

No Subtópico 3, conheceremos um pouco sobre a CID-11, a 11ª edição da


classificação que foi apresentada na Assembleia Mundial da Saúde, em 2019, e será
implementada de forma integral a partir de janeiro de 2022. A OMS definiu a última
versão da classificação como o “padrão internacional para o registro sistemático,
relatório, análise, interpretação e comparação de dados de mortalidade e morbidade”
(OMS, 2019).

Encerraremos este tópico apresentando um exemplo de classificação


apresentada pela CID: a esquizofrenia, transtorno que estudamos na Unidade 2. Ainda
que atualmente as pesquisas têm se preocupado menos com as diferenciações entre
as esquizofrenias e mais com os sintomas de forma ampla, a CID-10 ainda apresenta
diferenciações claras entre os tipos.

2 O TRAJETO ATÉ A CID-10


Como vimos anteriormente, um dos primeiros registros sistematizados de doenças e
mortes foi realizado pelo inglês John Graunt. Passados 300 anos das primeiras classificações,
ainda há quem questione a eficácia de se classificar e compilar estatísticas sobre as doenças,
isso por conta das dificuldades inerentes a essa classificação.

137
William Farr (1807-1883) foi um dos primeiros médicos estatísticos a utilizar
classificações de doenças disponíveis em sua época, por volta de 1837. Ainda que
imperfeitas, o médico trabalhou com o objetivo de melhorar as classificações e
padronizá-las para uso internacional. A primeira lista produzida por Farr e apresentada
no Congresso Internacional de Estatística, em 1853, foi dividida em cinco grupos:
doenças epidêmicas; doenças constitucionais; doenças locais organizadas de acordo
com a localização anatômica; distúrbios do desenvolvimento; e doenças resultantes de
violência (Figura 18).

FIGURA 18 – GRUPOS DE DOENÇAS

FONTE: <https://bit.ly/3kvvHSj>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Nesse sentido, ao propor uma classificação para as causas de morte, Farr


acreditava que as doenças

poderiam ser classificadas de diferentes maneiras visando servir


a propósitos estatísticos e quanto à finalidade de estudar causas
de morte [...] propondo uma classificação, como se verá a seguir,
e que se reconhece como a base estrutural da atual classificação
internacional de doenças (LAURENTI, 1991, p. 410).

Ainda que a classificação de Farr não tenha sido adotada universalmente, a


forma e os princípios da organização realizada por Farr serviram de base para a primeira
lista internacional de causas de morte. A nova classificação, apresentada em 1893, por
Bertillon, distinguia as doenças gerais das doenças localizadas em um órgão ou região
específica do corpo. A Classificação Bertillon de Causas de Morte, como ficou conhecida,
foi aprovada e adotada por diversos países, inclusive fora da Europa como nos Estados
Unidos e no México.

A classificação de Bertillon teve sua primeira revisão em 1900, a partir de uma


conferência internacional realizada em Paris, em que 26 países se reuniram e adotaram
uma nova versão que identificava as causas de morte em 179 grupos. A conferência

138
internacional decidiu que a classificação passaria por revisões a cada 10 anos. A quinta
conferência, realizada em 1938, reconheceu a necessidade de classificar as doenças
para melhorar as estatísticas de mortalidade apresentadas pela classificação atual.

Em 1948, a OMS (Figura 19) assumiu a responsabilidade pela organização desse


sistema de classificação, que passou a ser desenvolvido de forma mais previsível. As
primeiras cinco versões do manual haviam sido publicadas em um único volume, porém,
a partir da sexta versão e com a inclusão de dados estatísticos sobre mortalidade, a
classificação passou a ser publicada em dois volumes.

FIGURA 19 – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE

FONTE: <https://bit.ly/3kxPosS>. Acesso em: 24 jul. 2021.

Nesse sentido, a sexta revisão não só passou a ser conhecida como Manual da
Classificação Estatística Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Morte, e incluía,
pela primeira vez, uma seção de transtornos psiquiátricos. A sexta versão, portanto,

constituiu o princípio de uma nova era no campo internacional das


estatísticas vitais e sanitárias. Além de aprovar uma longa lista para
mortalidade e morbidade e estabelecer regras internacionais para
seleção da causa básica de morte, recomendou a adoção de amplo
programa de colaboração internacional no campo da estatística vital
e sanitária, inclusive a criação de comissões nacionais especializadas
que se encarregassem de coordenar o trabalho de estatística no país
e de servir de enlace entre os serviços de estatísticas nacionais e a
Organização Mundial de Saúde (LAURENTI, 1991, p. 412).

Ainda que a classificação tenha surgido como um instrumento estatístico para


enumerar e analisar as causas de morte, ou seja, não incluía doenças não letais, a partir
da sexta edição, a classificação foi expandida visando classificar a morbidade além da
mortalidade. A sétima versão, publicada em 1955, limitou-se à correção de pequenos
erros contidos na versão anterior.

139
A oitava versão sofreu mudanças mais radicais do que a versão anterior, ainda
assim a estrutura básica e a forma de encarar a classificação das doenças permaneceu
inalterada. Diversos países pressionaram a OMS para que a classificação da oitava edição
fosse mais voltada para questões da morbidade, e não apenas da mortalidade. Entretanto,
isso ocorreu apenas na nona versão, que foi bastante expandida não somente “no número
total de categorias mas, particularmente, nas chamadas subcategorias, muitas das quais
foram criadas para possibilitar várias especificações ou manifestações de uma mesma
doença (categoria)” (LAURENTI, 1991, p. 413). Nesse sentido, a partir da nona versão
publicada em 1977, a classificação passou a focar aspectos da morbidade, e não mais
apenas da mortalidade.

Seguindo essa linha de raciocínio, é na décima versão que o nome da classificação


passou a ser Classificação Estatística Internacional de Doenças e de Problemas
Relacionados à Saúde, ou apenas CID-10. Enquanto que a nona versão mencionou 30
categorias de transtornos mentais, a CID-10 apresentou 100 categorias, alterando o
sistema de classificação numérico (001-009) para alfanumérico (A00-Z99), aumentando
significativamente as categorias disponíveis para a classificação. Nesse sentido, a CID-10
foi criada para uma classificação relacionada à doença e à saúde, agrupadas em categorias
para facilitar a sua consulta (FERREIRA, 2015).

3 A CID-11
A 11ª edição da CID foi apresentada na Assembleia Mundial da Saúde, em 2019,
e será implementada de forma integral a partir de janeiro de 2022. A OMS definiu a
última versão da classificação como o “padrão internacional para o registro sistemático,
relatório, análise, interpretação e comparação de dados de mortalidade e morbidade”
(OMS, 2019, s.p.). Nesse sentido, a 11ª revisão da CID é resultado do trabalho conjunto de
médicos, estatísticos, epidemiologistas e especialistas em tecnologia da informação de
diversas partes do mundo (Figura 20).

FIGURA 20 – TRABALHO CONJUNTO

FONTE: <https://bit.ly/3CFhfxt>. Acesso em: 24 jul. 2021.

140
Segundo a OMS (2019), a CID-11 recebeu atualizações significativas em relação
às versões anteriores, permitindo que os países contabilizem e identifiquem seus
problemas de saúde usando um sistema de classificação atual e clinicamente relevante.
O manual aponta que, a partir dos dados fornecidos, cada governo pode “projetar
políticas de saúde pública eficazes e medir seu impacto, alocar recursos, melhorar o
tratamento, melhorar a prevenção ou ser usados para registro clínico” (OMS, 2019, s.p.).
Pela primeira vez na história, a 11ª edição da CID é totalmente eletrônica, fornecendo
acesso a 17.000 categorias diagnósticas, com mais de 100.000 termos de índice de
diagnósticos médicos.

A elaboração da CID-11 se deu a partir de sua utilização ampla, o manual inclui


registros clínicos, coleta e estudo de estatísticas de mortalidade e morbidade, pesquisas
epidemiológicas, estudos de caso, intervenções de segurança e planejamento, atenção
primária etc. A classificação alega oferecer mais do que apenas diagnósticos de doenças
para fins estatísticos, permitindo a codificação de sinais, descobertas, causas de lesões
e danos, doenças raras, dispositivos médicos, medicamentos, anatomia, escalas de
gravidade, histopatologia, trabalho ou atividades esportivas etc. (OMS, 2019).

Atualmente, 117 países relatam causas de morte à OMS, sendo que 70% dos
recursos mundiais em saúde são alocados baseados em dados coletados pela CID. Os
países de baixa e média renda populacional têm seus sistemas de saúde frequentemente
sobrecarregados, com recursos limitados para tratamentos, prevenção e coleta de
informações. Nesse sentido, a CID-11 permite uma ampla coleta de dados e informações
facilitando a distribuição de recursos. Para a OMS, a CID-11 significa:

• Uso mais fácil e melhor qualidade de codificação, com custo mais baixo.
• Estrutura e conteúdo atualizados refletindo o estado da ciência.
• Utilidade aprimorada.
• Incorporação simples em qualquer software.

Além disso, a OMS considera que a 11ª versão da CID fornece atualizações do
conhecimento científico. Desde a primeira edição em 1900, a classificação passou de 179
para 12.000 categorias, demonstrando quanto o conhecimento médico evoluiu. A CID-11
contêm mais de 55.000 classificações únicas e mais de 120.000 derivadas das últimas
descobertas cientificas. Além disso, segundo a OMS, a nova versão da classificação
apresenta outras melhorias, a saber:

• Conceitos contemporâneos de atenção primária.


• Revisão e atualização de condutas que dizem a respeito da segurança do paciente.
• Codificação sobre resistência bacteriana.
• Atualização das informações sobre HIV.
• Seção suplementar para avaliação funcional do paciente antes e após a intervenção.
• Incorporação de diversas doenças raras.
• Os códigos referentes a estresse pós-traumático foram atualizados e simplificados.
• Transtornos dos jogos eletrônicos fazem parte das condições que podem gerar adição.

141
Ainda que esteja em constante melhoria, a CID não escapa a críticas,
especialmente quanto ao fato de que segue um formato “biologicista”, não apresentando
propostas que favoreceram a análise mais aprofundada do processo saúde-doença.
A importância clínica e em áreas administrativas da saúde da CID é inquestionável,
entretanto, as críticas são feitas a partir da adoção deste instrumento como padrão
para o estudo do processo saúde-doença. Alguns autores consideram a classe social
como uma das categorias básicas para estabelecer uma classificação epidemiológica,
enquanto que a CID se restringe à verificação de alterações biológicas ou psíquicas em
uma série de indivíduos (LAURENTI, 1991).

Desde a publicação da “lista de causas de morte” de Graunt, em 1662, passando


por Farr na segunda metade do século XIV e por Bertillon nas primeiras décadas do
século XX, o século XXI é marcado pelas “famílias” de classificações. Segundo Laurenti
(1991), partiu-se da necessidade de obtenção de informações sobre mortalidade para,
assim, chegar à possibilidade de obter informações para todos os níveis de assistência
à saúde. É importante ressaltar que as classificações componentes em “famílias” não
“contemplam a inclusão de variáveis sociais as quais, ainda que importantíssimas para
uma perfeita caracterização do quadro saúde-doença da população, devem ser obtidas por
outros métodos e ‘cruzadas’ com as categorias que se desejar em qualquer uma daquelas
classificações” (LAURENTI, 1991, p. 416).

4 EXEMPLOS DE CLASSIFICAÇÃO
Apresentaremos, se seguir, as definições de esquizofrenia apresentadas pela
CID-10. Escolhemos a esquizofrenia por se tratar de um dos transtornos estudados na
Unidade 2.

• F20 Esquizofrenia

Segundo a CID-10, os transtornos esquizofrênicos se caracterizam

em geral por distorções fundamentais e características do


pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou
embotados. Usualmente mantém-se clara a consciência e a
capacidade intelectual, embora certos déficits cognitivos possam
evoluir no curso do tempo (CID-10, 1993, s.p.).

Ainda segundo o manual, o transtorno é caracterizado pelo

eco do pensamento, a imposição ou o roubo do pensamento, a


divulgação do pensamento, a percepção delirante, ideias delirantes
de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias
que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa,
transtornos do pensamento e sintomas negativos (CID-10, 1993, s.p.).

142
Como vimos anteriormente, a evolução dos transtornos esquizofrênicos pode
ser contínua ou episódica, com vários episódios seguidos de uma remissão completa ou
incompleta. Um diagnóstico de esquizofrenia não pode ser realizado quando existe uma
doença cerebral manifesta, intoxicação por droga ou abstinência de droga (CID-10, 1993).

DICA
Assista ao vídeo Mudanças na CID-11, disponível em: https://bit.
ly/3CPMAxB. Acesso em: 26 jul. 2021.

Atualmente, as pesquisas têm se preocupado menos com as diferenciações


entre as esquizofrenias e mais com os sintomas de forma ampla. No entanto, a CID-10
ainda apresenta diferenciações claras entre os tipos, a saber:

• F20.0 Esquizofrenia paranoide.


• F20.1 Esquizofrenia hebefrênica.
• F20.2 Esquizofrenia catatônica.
• F20.3 Esquizofrenia indiferenciada.
• F20.4 Depressão pós-esquizofrênica.
• F20.5 Esquizofrenia residual.
• F20.6 Esquizofrenia simples.
• F20.8 Outras esquizofrenias.
• F20.9 Esquizofrenia não especificada.

143
LEITURA
COMPLEMENTAR
ACORDEI DOENTE MENTAL

Eliane Brum

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa


“anormalidade” ser “normal”

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria


– APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da
Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez
mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa
já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno
psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual
têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E
assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também
muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em
“anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.

Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas
modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase
todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se
desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por
uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a
sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento.
Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais
severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar
de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de
Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida
num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante
três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a
cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de
leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um
livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”,
mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio
pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os
transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela


nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se
sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte
de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade
144
justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua
elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando
do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares
da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão
fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está
adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em
que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo
isso junto e mais alguma coisa?

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que
vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer
suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual
utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais,
incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças
da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em
nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que,
para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta,
sim, nunca foi tão feliz – e saudável.

O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que,
vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor
emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente
usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual
foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num
texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos
de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times,
afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está
encolhendo”.

Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado
o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de
“Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que
apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se
refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja
este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no
dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já
excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças.

Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três


modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20
vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo
deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na
tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as
crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria
adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso
ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis”.

145
A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de
diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E
motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo
a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra
Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que
medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora
mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”.

Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre
algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais
que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato
de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser
“normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas
governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam
ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer,
que a definição das doenças mentais está intrinseicamente ligada a uma das indústrias
mais lucrativas do mundo atual.

A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma
de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual
seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um
diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de
duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça
do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e
para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a
pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.

Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é
superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que
tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas
duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos
psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.

Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo


à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que
se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos
e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição
do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é
uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre
normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de
lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe
de ser tudo.

E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e
a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.

FONTE: Adaptado de: <https://bit.ly/3u38ytF>. Acesso em: 23 jul. 2021.

146
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• William Farr (1807-1883) foi um dos primeiros médicos estatísticos a utilizar


classificações de doenças disponíveis em sua época, por volta de 1837. Ainda que
imperfeitas, o médico trabalhou com o objetivo de melhorá-las e padronizá-las para
uso internacional.

• Uma nova classificação, apresentada em 1893 por Bertillon, distinguia as doenças


gerais das doenças localizadas em um órgão ou região específica do corpo. A
Classificação Bertillon de Causas de Morte, como ficou conhecida, foi aprovada e
adotada por diversos países, inclusive fora da Europa como nos Estados Unidos e no
México.

• Em 1948, a OMS assumiu a responsabilidade pela organização do sistema de


classificação, que passou a ser desenvolvido de forma mais previsível.

• A 11ª edição da CID foi apresentada na Assembleia Mundial da Saúde, em 2019, e será
implementada de forma integral a partir de janeiro de 2022. A OMS definiu a última
versão da classificação como o “padrão internacional para o registro sistemático,
relatório, análise, interpretação e comparação de dados de mortalidade e morbidade”
(OMS, 2019, s.p.).

147
AUTOATIVIDADE
1 A classificação de Bertillon teve sua primeira revisão em 1900, a partir de uma
conferência internacional realizada em Paris, na qual 26 países se reuniram e adotaram
uma nova versão que identificava as causas de morte em 179 grupos. Em 1948, a
OMS assumiu a responsabilidade pela organização desse sistema de classificação,
que passou a ser desenvolvido de forma mais previsível. Com relação às primeiras
edições da CID, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A conferência internacional decidiu que a classificação passaria por revisões a


cada cinco anos.
b) ( ) As primeiras cinco versões do manual haviam sido publicadas em dois volumes,
assim como das versões atuais.
c) ( ) Ainda que tenha sofrido diversas modificações, a sexta revisão ainda não contava
com uma seção de transtornos psiquiátricos.
d) ( ) A quinta conferência, realizada em 1938, reconheceu a necessidade de classificar
as doenças para melhorar as estatísticas de mortalidade apresentadas pela
classificação atual.

2 Ainda que a classificação tenha surgido como um instrumento estatístico para


enumerar e analisar as causas de morte, ou seja, não incluía doenças não letais, a
partir da sexta edição a classificação foi expandida visando classificar a morbidade
além da mortalidade. Quanto às versões da CID, analise as sentenças a seguir:

I- A sétima versão, publicada em 1955, limitou-se à correção de pequenos erros


contidos na versão anterior.
II- A oitava versão sofreu mudanças mais radicais do que a versão anterior, ainda assim,
a estrutura básica e a forma de encarar a classificação das doenças permaneceu
inalterada.
III- A partir da nona versão publicada em 1977, a classificação passou a focar apenas
nos aspectos da morbidade, sem se importar tanto com a mortalidade.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

148
3 A 11ª edição da CID foi apresentada na Assembleia Mundial da Saúde, em 2019, e
será implementada de forma integral a partir de janeiro de 2022. A OMS definiu a última
versão da classificação como o “padrão internacional para o registro sistemático,
relatório, análise, interpretação e comparação de dados de mortalidade e morbidade”
(OMS, 2019, s.p.). Sobre a 11ª versão da CID, classifique V para as sentenças verdadeiras
e F para as falsas:

( ) A CID-11 apresenta conceitos contemporâneos de atenção primária.


( ) Ainda que o conhecimento científico tenha avançado significativamente, não foi
possível a incorporação de diversas doenças raras.
( ) A CID-11 permite uma ampla coleta de dados e informações facilitando a
distribuição de recursos de saúde entre os países ricos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) V – V – F.

4 A OMS considera que a 11ª versão da CID fornece atualizações do conhecimento


científico, desde a primeira edição em 1900, a classificação passou de 179 para 12.000
categorias, demonstrando quanto o conhecimento médico evoluiu. Ainda que esteja em
constante melhoria, a CID não escapa a críticas, especialmente quanto ao fato de
que segue um formato “biologicista”. Disserte sobre as principais críticas feitas a CID.

5 A CID-11 contém mais de 55.000 classificações únicas e mais de 120.000 derivadas


das últimas descobertas científicas. Além disso, segundo a OMS, a nova versão
da classificação apresenta outras melhorias. Disserte sobre as principais melhorias
apresentadas pela CID-11, citando, pelo menos, três delas.

149
REFERÊNCIAS
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AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de


transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2016.

ASSUMPÇÃO JUNIOR, F. B. Fundamentos de Psicologia - Psicopatologia


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psiquiatria: estudo comparativo sobre o DSM. Vínculo, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 1-15,
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DUNKER, C. Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, São Paulo,


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150
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WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o


aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.

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