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Psicológicas:
Existencialismo
Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Elis Moura Marques
Prof.ª Nislândia Santos Evangelista
213p.
“Graduação - EaD”.
1. Teoria 2. Psicologia 3. Existencialismo
CDD 150
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao livro de Teorias Psicológicas: Existencialis-
mo. O conteúdo está dividido em três Unidades, nas quais veremos a base do existen-
cialismo, dialogando com a fenomenologia e a teoria humanista.
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Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um
dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
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do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
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para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
acessando o QR Code a seguir. Boa leitura!
LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 64
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 144
UNIDADE 3 — OLHARES FENOMENOLÓGICOS EXISTENCIAIS E HUMANISTAS
SOBRE OS SOFRIMENTOS CONTEMPORÂNEOS...........................................................................149
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................210
UNIDADE 1 -
FUNDAMENTOS BÁSICOS
DA FENOMENOLOGIA, DO
EXISTENCIALISMO E DO
HUMANISMO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
1
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
Acesse o
QR Code abaixo:
2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS
BÁSICOS DA FENOMENOLOGIA
1 INTRODUÇÃO
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
(Alberto Caeiro)
Para isso, contudo, surgem outros questionamentos, tais como: o que é que se
mostra e como se mostra? Para pensarmos a partir de uma lógica fenomenológica, pode-
mos ter alguns direcionamentos, quais sejam (BELLO, 2017): a) a fenomenologia oferece
análises teóricas ligadas ao conhecimento e à ciência que são, em alguma medida, inova-
dores e críticos à lógica tradicional que imperava no momento do seu surgimento.
3
Ter um olhar nítido como um girassol, estar atento ao que se percebe, sabendo
que sempre há possibilidade sentir algo novo, tal como no poema do Alberto Caeiro
heterônimo de Fernando Pessoa. Ficar com o que se mostra, ver o que é passível de ser
visto enquanto se caminha pela estrada, ficando no presente sem negligenciar o passado.
4
Quadro 1 – TRAJETÓRIA DE VIDA DE HUSSERL
CRONOLOGIA
1859 Nascimento de Edmundo Husserl em Prossnitz, na Morávia.
1876 Estuda matemática na Universidade de Leipzig, e dois anos depois, em Berlim.
1883 Obtém seu doutorado em Viena.
1884 Estuda Filosofia na Universidade de Viena.
Inicia atividades docentes na Universidade de Halle. Escreve Sobre o Conceito
1887
de Número. Converte-se ao Cristianismo.
1891 Publica o primeiro volume de Filosofia da Aritmética.
1890 Publica Estudos Psicológicos.
1900 Publica Investigações Lógicas.
1901 Ingressa na Universidade de Göttingen.
1913 Publica Ideias.
1916 Ingressa na Universidade de Freiburg.
1928 Aposenta-se da Universidade de Freiburg.
1929 Publica Lógica Formal e Transcendental.
Realiza Conferências na Sorbonne, depois publicadas com o título de
1930
Meditações Cartesianas.
Com a chegada dos nazistas ao poder, é perseguido por sua origem judaica e
1933
excluído da Universidade, mas prossegue em suas pesquisas.
1935 Realiza conferências em Viena e Praga.
1936 Escreve A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental.
1938 Morte de Edmund Husserl, em Freiburg.
5
O que importa é o fato. Ocorre, porém, que isso leva a questionamentos sobre
o que seria um fato? É neste ponto que a fenomenologia se coloca de maneira crítica
ao pensamento hegemônico da época, o positivismo, que compreende como fatos as
coisas e os fenômenos que passem pelo crivo das ciências físicas e exatas. Considera-
se, contudo, que nem todas as coisas que existem podem estar sujeitas a validações
científicas objetivas.
6
Toco a caneta, a mesa etc., enquanto toco, há o ato de tocar, estou
tocando, estou vivendo a experiência de tocar. Há uma coisa que é
tocada. Enquanto existência, onde está? Fora! Mas enquanto coisa
tocada, onde está? Dentro! Enquanto tocada, ela se torna minha
(BELO, 2017, p. 27).
Isso, então, diz respeito ao ato perceptivo. Percebemos que estamos com sede,
percebemos um copo, percebemos uma folha, percebemos o toque. Paralelo a isto,
e em correspondência com o a forma que percebemos, passamos refletir, a ter atos
reflexivos, ou seja, temos consciência que tocamos ao tocarmos, que vemos ao vermos e
depois podemos refletir sobre isso, tal como fazemos agora. Podemos perceber isso, tal
como ilustra na Figura 3 (Refletir para Saber)
Tendo, então, até agora, percebido e refletido sobre o ato, a sede, sobre ver o
copo e pegar o copo, ou seja, que ver e tocar envolve o objeto externo e o impulso de
ir beber água é algo interno. Tudo isso pode estar na dimensão da consciência, onde
registramos nossos atos, nossas percepções e reflexões.
7
2.2 INTENCIONALIDADE
O ponto essencial para a compreensão da intencionalidade de ato é que “toda
consciência é consciência de alguma coisa” (MOURA, 2009, p. 9). Desse modo, tudo que
percebemos é carregado também por nossa história e trajetória, ou seja, a percepção é a
percepção de um percebido. No limite, essa denominação pode soar trivial se olharmos de
maneira demorada, mas se localizarmos na tradição científica de como as coisas e os fenô-
menos eram estudados, há uma crítica em relação ao modelo tradicional da ciência.
Sobre isso, Husserl afirma: [...] pela epoché fenomenológica, reduzo o meu eu
humano natural e a minha vida psicológica – domínio da minha experiência psicológica
interna – ao meu eu transcendental e fenomenológico, domínio da experiência interna
transcendental e fenomenológica (HUSSERL, 2001, p. 39 apud SILVA, 2009).
8
Pensamos, portanto, a intencionalidade como um fenômeno da ordem da
representação. “Intencionar é tender, por meio de, não importa quais conteúdos, dados
à consciência, a outros conteúdos não dados, é reenviar estes outros conteúdos de
maneira compreensiva” (MOURA, 2009, p. 11). Esse cenário soma-se ao conjunto de
sensações que carregamos e empregamos, efetivamente, sensibilidade nos nossos
atos intencionais. Este ato é denominado noese, designando o momento específico
do “pensamento”, é a partir dele que acessamos as sensações. Então, vemos uma
espécie de “jogo” ou movimento entre sensações e ato doador de sentido. Ademais,
quando pensamos na intencionalidade, podemos vergar tanto no que diz respeito à
intencionalidade interna quando à intencionalidade externa. A intencionalidade interna
diz respeito ao “preenchimento” que fazemos de determinado dado a partir apenas de
uma parte dele. Por exemplo, quando vemos um dado de seis lados, sabemos que ele
tem seis lados, mas não vemos todos os seis lados simultaneamente, pelo contrário,
vemos apenas uma parte do cubo, tendo consciência que não estamos vendo tudo, mas
completamos a imagem e a mensagem a partir do que conhecimento (SILVA, 2009).
Para Husserl, todo objeto tem um horizonte interno de determinação, está atrelado ou
passa a se atrelar com a história daquele que percebe o objeto.
9
desse mundo para si, visto que, a partir da intencionalidade, o caráter
estanque de “real” ou “irreal” se dilui em múltiplos significados para
um sujeito na multiplicidade de suas experiências (GOTO, HOLANDA,
COSTA, 2018, p. 126).
2.3 O TEMPO
O tempo fenomenológico, tal como as outras categorias aqui apresentadas,
dialoga com os aspectos objetivos, subjetivos e vividos, ou seja, o tempo não é apenas
objetivo e cronológico, nem sempre nos guiamos pelo compasso do relógio, ainda que
vivamos e compartilhamos de tempos comerciais e horários estabelecidos, como entrar
no trabalho às oito horas da manhã, almoçar ao meio-dia e dormir às onze horas da
noite, nossas experiências não são reduzíeis a essa forma de expressar o tempo.
3 A EXPERIÊNCIA FENOMENOLÓGICA EM
MEARLEAU-PONTY
Maurice Merleau-Ponty é um filósofo francês que viveu entre 1908 e 1961, tem
por influência principal a fenomenologia de Husserl e foi contemporâneo de outros
grandes nomes da filosofia, como Jean-Paul Sartre, Claude Lévi-Strauss, Simone de
Beauvoir, dentre outros (ALVIM, 2018).
11
Figura 4 – MERLEAU-PONTY
Neste ponto, o filósofo pega uma terceira via, distanciando-se de uma direção
intelectualizada e, também, afastando-se de métodos empiristas, ou seja, de um lado
os empiristas defendem que o conhecimento se encontra na observação e, de outro
lado, os racionalistas defendem que se alcança o conhecimento pelo intelecto. Nesse
sentido, boa parte da discussão sobre o conceito do sujeito caminha para esta dicotomia,
na qual, de um lado, um homem como um todo empírico e, por outro lado, um homem
que só se alcança pela via subjetiva (LIMA, 2014). Assim, o a fenomenologia, também em
Merleau-Ponty afasta-se dessa lógica dicotômica.
12
Se Merleau-Ponty afasta-se das vias hegemônicas de sua época – empirismo
e subjetivismo – então busca uma terceira via para pensar o sujeito, e esta via caminha
pela experiência do ser-no-mundo até o ponto onde se origina o sentido. Assim, não
busca nem por um eu transcendental nem empírico, mas busca colapsar estes dois
opostos. Também se deve ao fato de focar na experiência que Merleau-Ponty aproxima-
se da psicologia, pois a ele interessa pensar em termos de comportamento, percepção,
corporeidade, alteridade, dentre outros (ALVIM, 2018). Sobre o comportamento como
estrutura, para Merleau-Ponty, de acordo com Alvim, (2018, p. 156):
DICA
Acadêmico, na obra A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty utiliza
conceitos da Psicologia da Gestalt para pensar o mundo a partir de formas
e configurações, num emaranhado e integrado de sujeito onde mescla
sujeito, contexto, matéria, história, cultura, dentre outros (ALVIM, 2018). Além
disso, Merleau-Ponty também utiliza de concepções do behaviorismo para
pensar o comportamento humano, e afasta-se de concepções de teorias de
desenvolvimento tal como de jean Piaget e Henry Wallon por ter demasiadas
ideias que se julgam universais. O filósofo fica no campo do comportamento
por ser um nicho capaz de observação e descrição da experiência.
13
Fonte: <https://bit.ly/3chzuAW>. Acesso em: 18 jul. 2022.
14
Desse modo, o homem é visto como, essencialmente, corpo-consciência-
do-mundo, o que, nas palavras de Lima (2008 p. 4) “[...] o homem é mundo e alma,
simultaneamente, o corpo do homem é não nem coisa pura e nem pura ideia, ele integra
misteriosamente o percebido e o ato de perceber, o em si e o para si, pois está no mundo
e é para o mundo”. Para Merleau-Ponty, o corpo não é objetivo, o corpo é fenomenal
(LIMA, 2014).
Assim, o filósofo busca, mais uma vez, uma via alternativa que mostre como a
experiência não é capturada a partir de um pensamento fechado, mas que na experiência
algo foge, algo falha, algo erra. Se uma psicologia positivista busca compreender o
sujeito a partir de leis universais para a saúde e o bem-estar do corpo físico e mentais, a
fenomenologia de Ponty vai na via oposta, pois na doença, na perturbação, no distúrbio,
não há lei universal que vença, pois a partir da dor somos capazes de criar o novo.
É nesse sentido que pensamos que não temos um corpo, mas somos o corpo.
A experiência perceptiva é corporal e é instaurada a partir, justamente, da relação com
o mundo, o mundo em sua incompletude, o mundo em desenvolvimento, o mundo das
expressões. Assim, ao invés de pensarmos sob os termos da consciência, do objetivo
e da realidade, descrevemos e sentimos a partir da percepção, ela sendo “a porta para
o mundo” e, ao mesmo tempo, o fundo onde tecemos e armazenamos nossos atos e
nossos hábitos.
15
que já foi experienciado, o que está no fundo de vividos como possibilidades disponíveis
e, assim, num horizonte de futuro. Quer dizer, o hábito compõe a dimensão do passado
do sujeito. O desenvolvimento de um hábito requer um esforço do corpo como um
todo, uma espécie de consagração motora que visa integrar-se à configuração, à forma
corporal para instaurar-se, também, em seu fundo de vividos e renová-lo a cada dia,
acessá-lo de diferentes formas e possibilidades.
16
Assim, o corpo é considerado como um centro de ação corporal, é a partir
do corpo que o sujeito pode, que indica qual sua intencionalidade, em qual sentido
espacial e temporal recorrerá, de que forma fará uso criativo das suas possibilidades
e potencialidades, resgatando o passado e apontando para o futuro, isso tudo no
momento presente. Assim, Merleau-Ponty fala de uma visão pré-reflexiva do sujeito,
assumindo uma dimensão sensível da experiência como primeira, como fruto, como
origem. Deste modo, há algo que nos direciona que está antes do reflexo, antes do
sentimento, antes de pensar sobre o que se sente, esta é a dimensão pré-reflexiva e
sensível em que encontramos o sentido.
Para Alvim (2018, p. 159) “em suma, a percepção é um fenômeno dado no ser-
no-mundo; é pré-reflexiva, é pré-objetiva e nasce de um engajamento na situação em
que estamos como corpo habitual nessa espécie de zona comum do anônimo, como
pura aderência ao mundo já feito”.
É, portanto, por meio do corpo que o sujeito tem acesso ao mundo, é o corpo que
faz a mediação com toda e qualquer experiência possível. O corpo funcionaria, então,
como um mediador do mundo, por onde tudo passa através de operações perceptivas.
Nesse sentido, o corpo não é nem coisa nem ideia, mas movimento, sensibilidade e
expressão criadora (LIMA, 2014).
É a partir do corpo que nos jogamos no mundo, que vamos ao encontro, que
unimos passado e presente e participamos, atuando, afetando e sendo afetados do
mundo. É a partir do corpo que manifestamos nossas expressões. Aqui expressões
não são vistas como algo a se colocar para o “lado de fora”, mas é mais um ponto de
17
integração do ser-no-mundo no seu bojo de possibilidades, hábitos e generalidades.
A expressão, assim, é o ato corporal da situação, está sempre situada. Eu, com meu
corpo no mundo, convivo e compartilho experiências com outros corpos e vejo este
outro sempre ao meu lado, nunca na minha frente, o outro não é um objeto. Esse é um
caminho para pensar a alteridade, o respeito à diferença e ao outro em sua integralidade,
tema bastante caro para a clínica psicológica.
4 EU-TU-PSICOLOGIA
Mordecai Martin-Buber (1878-1965) nasceu em Viena, mas devido ao divórcio
dos pais, passou a morar com os avós na cidade de Lemberg, na Galícia austríaca. Seu
avô era um conhecido e reconhecido filólogo e uma autoridade judaica. Esta influência
judaica teve grande influência no pensamento, na escrita e na ética de Buber, sobretudo
a partir do hassidismo, uma corrente religiosa do judaísmo.
18
INTERESSANTE
“O hassisdismo foi um movimento histórico, cultural e religioso, revivalista do
espírito judaico, surgido na Podólia e na Volínia, e sua denominação deriva
do vocábulo hebreu hassid, que significa piedoso, designando uma atitude
diante da vida espiritual. Os aspectos centrais do ensinamento hassídico
podem ser resumidos nas seguintes ideias: crença na universalidade da
presença divina; senso de totalidade da união com Deus; necessidade de
haver alegria no serviço divino e; sentido de comunidade. Ver Deus em
todas as coisas; alcançar Deus por meio de todo ato autêntico” (HOLANDA,
2018, p. 165).
19
respeito pelo outro, pela possibilidade de um Encontro Eu-Tu. Estar aberto e disponível,
considerando a sociedade alienante que vivemos, pode ser um ponto de encontro com
o inefável e com a cura. É a potência de um Encontro Eu-Tu que é possível a partir do
encontro terapêutico.
Jefrey Cohen em seu texto “A Cultura dos Monstros: sete teses” elabora uma
ideia de que o corpo do monstro é um corpo cultural. Isso significa, que toda a ideia de
monstruosidade é construída num arsenal cultural.
Nas palavras do autor “qualquer tipo de alteridade pode ser ‘construído através’
do corpo monstruoso, mas, em sua maior parte, a diferença monstruosa tende a ser
cultural, política, racial, econômica e social” (COHEN, 2000, p. 32, grifos nossos).
Em outros termos, a diferença só é vista como monstruosa na medida em que os
padrões de normalidade são rígidos a um ponto isotrópico, ou seja, que preza pelo linear
e estável. Numa sociedade que preza pelo homogêneo e pelo ideal, a diferença parece
mesmo monstruosa.
21
do humano para nos humanizarmos” (FRAZÃO, 2020, p. 15), e o personagem teve uma
vida sem contatos e sem casa. A sensibilidade em abrigar questões monstruosas de
si mesmo e do outro pode ser um ponto de morada. Para tal, há sustentação numa
abordagem dialógica e, também, a compreensão social e histórica de quem é apontado
como monstro.
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• A temporalidade, em Husserl, diz respeito a um fluxo contínuo onde, mais uma vez, se
entrelaçam categorias antes tidas como dicotômicas.
• Maurice Merleau-Ponty é um filósofo francês que viveu entre 1908 e 1961, tem por
influência principal a fenomenologia de Husserl e foi contemporâneo de outros
grandes nomes da filosofia.
23
• As influências de Martin Buber incluem conceitos de base fenomenológica, a filosofia
de Kant e, também, ensinamentos do hassidismo, uma vertente mística que teve
muito destaque na vida e na obra do autor.
24
AUTOATIVIDADE
1 A fenomenologia é uma corrente da filosofia que se afasta de uma série de preceitos,
critérios e conceitos da época em que foi fecundada. Sobre a fenomenologia, assinale
a alternativa CORRETA:
a) ( ) V – V – F – V.
b) ( ) F – V – F – V.
c) ( ) V – V – V – F.
d) ( ) V – F – F – V.
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UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS
DO EXISTENCIALISMO
1 INTRODUÇÃO
O Existencialismo é uma corrente que ganha forma, sobretudo, após o término
da Segunda Guerra Mundial, num contexto em que a Europa estava numa crise tanto
política quanto social, econômica, moral e financeira. Isto devido ao cenário pós-guerra
era de desânimo e desespero, sobretudo entre os jovens, que questionavam seu futuro e
suas esperanças, descrente também dos valores burgueses e tradicionais da sociedade
(PENHA, 1990). Por essas vias, os preceitos do existencialismo caíam como uma luva para
o cenário da época, correspondendo e esclarecendo aquele momento histórico, atuando
não apenas de maneira acadêmica, mas ganhando força como um estilo de vida.
INTERESSANTE
O interesse de que o existencialismo se tornou alvo espalhou-se até mesmo
em manifestações genuinamente populares, como o carnaval brasileiro. Em
inícios dos anos cinquenta, seguindo a tradição típica do repertório carnavales-
co de satirizar acontecimentos da atualidade, uma marchinha fez enorme su-
cesso abordando o assunto. A letra da música exaltava a figura de uma mulher
que só aceitava cobrir-se com uma casca de banana nanica, pois tratava-se de
uma "existencialista, com toda razão/só faz o que manda/o seu coração".
27
2 SØREN A. KIERKEGAARD – O EXISTENCIALISMO CRISTÃO
Um dos pioneiros pensadores do existencialismo moderno é Søren A.
Kierkegaard (1813-1855) com uma base de meditação religiosa. Kierkegaard foi um
filósofo solitário, e teve fortes influências do seu ambiente de formação e do puritanismo
luterano. Este filósofo cresceu no ambiente e nos princípios rígidos da religião luterana,
nos quais há, como base, o pensamento de que o homem sempre tende a corromper-se
(PENHA, 1990). Nesse sentido, Kierkegaard muito preocupava-se com a ideia de pecado,
embora também tenha experimentado, após a morte de seu pai, os prazeres da vida,
como o consumo de álcool e a exibição de roupas vistosas. Depois desse momento de
experimentações, Kierkegaard retorna aos seus estudos e torna-se um pastor luterano.
Figura 6 – KIERKEGAARD
Para o referido filósofo, a existência humana não deve ser explicada por meio
de conceitos e esquemas abstratos, pois isto poderia, facilmente, fugir da realidade da
existência humana, pois a realidade humana é carregada de irracionalidade e imprevistos
que, em absoluto, não cabem num sistema pré-estabelecido. Isto porque o indivíduo
está sempre comprometido com a própria realidade (PENHA, 1990). O indivíduo só pode
conhecer aquilo que compõe sua realidade, de modo que a ideia de algo universal não
passa de uma abstração do pensamento. Na lógica de Kierkegaard, o sistema é abstrato
e a vida é concreta e, assim, todo conhecimento se liga à existência, à subjetividade,
mas jamais ao abstrato e ao racional.
28
Assim, o homem é a categoria central da existência, o homem que tem
consciência de sua singularidade, uma existência que dispensa explicações racionais,
tal como pretendiam outras correntes da filosofia, sobretudo em Hegel. Para o filósofo, o
homem é um espírito que sintetiza tanto o finito quanto o infinito, o temporal e o eterno,
a liberdade e a necessidade, ou seja, o espírito é o próprio eu.
29
3 FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER
Como vimos, Husserl é conhecido por ser o fundador da Fenomenologia, e
há outros autores que também desenvolveram conceitos na área. Um destes autores
é Martin Heidegger (1898-1975). Heidegger influenciou o pensamento no âmbito
das práticas clínicas, como as ciências psi (psiquiatrias, psicanalises, psicologias,
psicoterapias), nas quais um dos eixos é a análise da existência e a desconstrução do
psíquico, construindo novos sentidos para a existência, numa valorização do mundo
(DUTRA et al., 2018).
Por essa via, que não dicotomiza o sujeito, a descrição fundamental do ser huma-
no, em Heidegger, é como ser-no-mundo, revelando um aspecto intimamente indissociá-
vel entre uma coisa e outra. Compreender que o sujeito é um ser-no-mundo é a primeira
condição para o entendimento do homem. Assim, por meio de uma analítica existencial,
busca-se a unidade da estrutura, busca compreender o sujeito como um todo.
30
Os aspectos de como ser homem e de como o Dasein se manifesta pode ser
percebido no cotidiano em que o ser humano se coloca como mais um ente entre os
entes, mais uma pessoa entre as pessoas. Assim, o ser está sempre em jogo, de forma
que a essência do ser humano está, justamente, na sua existência. Ao contrário de
outros entes da natureza que possuem propriedades identificadas na matéria, como a
solidez de uma rocha ou o latido de um cão, a propriedade master do sujeito é existir e
descobrir modos possíveis de ser e, somente isso. E mesmo sendo, estamos projetando
quem ser, de forma que ser é uma questão para nós (ROEHE; DUTRA, 2014).
Por esta via, é a partir do humor vinculado ao mundo que o Dasein se aproxima
ou se afasta de determinadas possibilidades, que se interesse ou despreze algum
tema ou tópico, e é a partir deste contato com o mundo que experimenta, também,
outras esferas do humor, sentindo tristeza, orgulho, alegria. Isto é possível graças à
disposição afetiva que o ente manifesta e sem ela o sujeito pode ter dificuldades em
eleger prioridades, pois todas as coisas carregariam um embotamento. O que atrai a
escolha do Dasein é o que interessa, o que importa, é para onde o sujeito demonstra e
manifesta abertura para o mundo (ROEHE; DUTRA, 2014).
31
Entretanto, o homem é lançado num mundo-com e se encontra com uma
série de regras e compreensões já estabelecidas que Heidegger designa como sendo
algo impessoal. Este sentido diz respeito ao fato de que a convivência cotidiana e a
rotina compartilhada, como os horários previamente estabelecidos e que praticamen-
te toda uma nação funciona de acordo, absorvem a individualidade, o si mesmo, de
modo que o sujeito não sabe como expressar e fazer sobressair o seu “eu” em meio
a tanta confluência. Na multidão da rotina e da vida cotidiana em que está “todo o
mundo”, há impessoalidade.
32
INTERESSANTE
A biografia de Heidegger é empanada por um acontecimento em que seus adeptos
pretendem reduzir a um mero episódio, e seus opositores consideram a consequência
lógica de suas ideias. Trata-se de sua adesão ao nazismo. Durante vários anos o filósofo
manteve silêncio sobre o assunto. Só em 1966, entrevistado pela revista alemã Der
Spiegel, consentiu em abordá-lo, assim mesmo sob a promessa de as suas declarações
serem divulgadas apenas depois de sua morte, compromisso efetivamente cumprido
pela editora da publicação. Heidegger substituiu Husserl, por recomendação deste, como
titular da cátedra de filosofia da Universidade de Freiburg. Em 1933, com Hitler já no
poder, foi nomeado reitor, segundo ele, indicado pelos próprios professores, convencidos,
então, de que ele era a única pessoa em condições de evitar que a Universidade fosse
desmantelada pela nova ordem política implantada na Alemanha. À frente da reitoria,
Heidegger adere formalmente ao nazismo, ingressando no Partido Nazista. No discurso
de posse, aponta a doutrina nazista como alternativa entre o comunismo e o capitalismo.
Perguntado sobre os motivos que o levaram a retirar a dedicatória a Husserl em Ser
e Tempo, a partir da 5ª edição da obra (1941), Heidegger respondeu que as diferenças
doutrinárias com seu antigo mestre se acentuaram, partindo de Husserl
a iniciativa de romper publicamente a amizade entre os dois. Ademais, a
decisão de eliminar a dedicatória surgiu de um acordo entre Heidegger
e seu editor, desconfiado este de que o livro não seria reimpresso caso
permanecesse a reverência a um filósofo judeu. Heidegger acrescenta
que proibiu qualquer propaganda antissemita dentro da Universidade,
além de impedir que os partidários do nazismo queimassem os livros de
autores contrários ao regime.
33
Figura 7 – O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO
34
Pensarmos que a existência precede a essência, implica pensar que primeiro
o homem existe, primeiro o homem descobre-se, primeiro o homem surge no mundo
e só depois é que se define. Em outras palavras, não há uma essência pré-definida
para a realidade humana. Numa visão sartreana, o homem não é previamente definível,
pois, primeiramente, o homem não é nada. Só depois será alguma coisa, e tal como a si
próprio fizer. Trata-se, aqui, do que se faz com o que fizeram da gente. Esta visão, é claro,
contrasta com a ideia existencialista de Kierkegaard sobre atingir o espírito religioso
pois, para Sartre, não há natureza humana, pois não há Deus para concebê-la.
Portanto, não há ideias inatas sobre o homem quando ele nasce. O homem
extrai suas ideias a partir de sua vivência e sua experiência pessoal. Primeiro o homem
existe e depois, com o caminhar de suas experiências, com o tempo, torna-se isto ou
aquilo, e quem sabe, desenvolve e constrói sua essência. Assim, a essência de cada
homem só aparece em decorrência de sua existência, de como este homem caminhou
pelo mundo, quais escolhas que foram feitas em cada possibilidade. Estes são os atos
quem definem a essência do homem.
Na visão sartreana, o homem está condenado a ser livre, pois não criou a si
mesmo e está sozinho no mundo, não tem uma essência originária que o guie em suas
decisões, não pode recorrer nem para fora nem para dentro. Por isso mesmo é livre, livre
para fazer as escolhas que convém, construindo a si próprio e costurando sua essência
no caminhar de sua existência. Isto responsabiliza o homem por sua existência, pois
retira dele qualquer desculpa para suas ações, sem recorrer à moral ou a credo, mas
escolhendo com autenticidade qual caminho deseja.
35
Por esta via, o que ideal é que o homem se abra a possibilidades que permitam
que ele seja, que ele se construa, pois não existem regras ou fundamentos pré-
estabelecidos. O ser é construído, em essência, na medida em que faz a si mesmo. Este
movimento no qual o homem se projeta rumo ao que pode ser é um dos princípios do
existencialismo, em que concomitantemente a liberdade e para-si são construídos.
36
Beauvoir (1967) diz que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, desde a mais
tenra infância com olhares, regras e frases socialmente estereotipadas que auxiliam na
alienação da mulher, dificultando a busca por sua própria identidade, não propiciando
subjetividades, mas pelo contrário, atribuindo papéis à mulher que dizem respeito à
opressão e submissão, ressaltando a superioridade masculina desde os primeiros
meses de idade.
37
Então, a menina passa a se preocupar com seu interior, considerando que
não pode encarnar-se de nenhuma parte do seu próprio corpo, em compensação,
é posta uma boneca em suas mãos, onde continuará sendo feito o mesmo de
sempre, a menina identifica-se com a boneca e precisará ser, de fato, uma boneca,
que representa a totalidade de um corpo e funciona como porta para a passividade
e alienação, num sentido onde, tal como diz Beauvoir (1967, p. 20): “a menina embala
sua boneca e enfeita-a como aspira ser embalada e enfeitada”, e nesse contexto,
com a adição de imagens e palavras, aprende o significado de “feia” e “bonita” e, para
agradar, precisa ser utopicamente bonita e compara-se a princesas de contos de
fada, esse narcisismo nasce desde muito cedo na menina, o que também não é algo
biológico, pelo contrário, o contexto social tem grande importância nesse processo,
é um destino posto por instituições que esteve em contato nos primeiro anos; o que
também ocorre com o menino no sentido de comportar-se tal como lhe é esperado,
exibindo músculos e virilidade.
38
A menina, por outro lado, por vezes não é estimulada em nenhuma etapa para
atividades esportivas, nunca estimulada, e a adolescente passa a não acreditar nas
potencialidades de um corpo que nunca experimentara, ao contrário, deve ser preparada
para a meiguice e docilidade, este é seu lugar reservado na sociedade (BEAUVOIR, 1967).
39
DICA
6 A PSICOLOGIA EXISTENCIAL
Somado ao cenário social e cultural que funciona pela coerção e busca por
padronizações de corpos, ações e sentimentos, também podemos pensar sobre a visão
que temos de humano e sua constituição. A perspectiva de que a existência precede a
essência é fulcral para a forma como olharemos as violências dos outros e, também, as
nossas. Isto implica em ter uma leitura de uma lógica social eminentemente opressora,
ao passo que também implica em compreendermos que aprendemos determinados
40
posicionamentos, mas que nosso desenvolvimento é constante, logo, não funcionamos
como entidades fixas, estáveis e estanques, mas temos a possibilidade de caminhar de
outros modos, a partir do vislumbre de novos horizontes possíveis para nós e para as
nossas relações.
41
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• Sartre foi um filósofo francês, o qual um dos mais populares autores existencialistas,
e sua obra mais conhecida é O Ser e o Nada, publicada em 1943, durante a Segunda
Guerra Mundial.
• Beauvoir (1967) diz que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, desde a mais tenra
infância com olhares, regras e frases socialmente estereotipadas que auxiliam na
alienação da mulher.
42
AUTOATIVIDADE
1 Heiddeger, é um dos principais filósofos fenomenológicos-existenciais, e sua obra
tem destaque para quem se debruça na área. Sobre o pensamento de Heiddeger,
assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) F – V – F – F.
b) ( ) F – V – V – F.
c) ( ) F – V – F – V.
d) ( ) F – V – V – V.
5 Simone de Beauvoir foi uma filósofa que fez história ao publicar O Segundo Sexo, em
que aborda de maneira existencial a existência da mulher na sociedade europeia do
século XX. Discorra sobre o pensamento desta autora.
43
44
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS
DO HUMANISMO
1 INTRODUÇÃO
O movimento humanista produziu repercussões importantes na construção de
um novo pensamento psicológico, e contou com a contribuição de diferentes áreas do
conhecimento, como a filosofia, a antropologia, a arte, a religião, e ainda estudos não
ocidentais como o holismo, culminando na criação da psicologia humanista.
2 HUMANISMO
Partindo de uma perspectiva histórica, prescindindo de preferências filosóficas
ou religiosas, o termo humanismo pode ser associado a cinco grandes momentos no
que tange a compreensões psicológicas, segundo Gomes, Holanda e Gauer (2004):
humanismo clássico, humanismo romântico, humanismo individual, humanismo social,
e humanismo crítico. O humanismo clássico ou ideal consistiu em um movimento
caracterizado pela defesa da individualidade, da singularidade, e da expressividade
irrestrita, estimulando a liberdade e independência, sendo seu correlato político e social, o
liberalismo. Com relação ao humanismo romântico, que teve seu auge durante os anos
de 1780 e 1830, caracterizou-se pelo movimento filosófico, jurídico, político, econômico
e artístico de defesa da expressão plena dos sentimentos, que para além de defender a
liberdade e a independência, partiu do primado da intuição e do sentimento, que está à
frente da razão e da análise, sendo seu correlato político a revolução francesa.
3 PSICOLOGIA HUMANISTA
O movimento conhecido como “terceira força em psicologia”, surgiu na
década de 1960, a partir de um grupo de psicólogos e pensadores progressistas da
época, como reflexo de um descontentamento com abordagens deterministas e
mecanicistas que predominavam nesse período, como a Psicanálise e o Behaviorismo.
A psicologia humanista surgiu oficialmente em 1962, nos Estados Unidos, com o intuito
de desenvolver uma psicologia que abordasse a subjetividade e experiência interna
46
a partir de princípios holísticos, compreendendo o ser humano como um todo, sem
fragmentações em comportamentos e ou dimensões específicas da experiência como
o inconsciente. Como expõe Riveros Aedo (2014, p. 142), a psicologia humanista surge
de um movimento de autores embasados em diferentes saberes,
NOTA
Holismo: Smuts (1996) descreve como uma tendência sintética do universo
em evoluir por meio da formação de todos (wholes). A evolução não é
nada, além do que o desenvolvimento gradual em todos compostos por
séries progressivas. Essa formação de todos se dá desde a estratificação
dos princípios inorgânicos até o nível da criação espiritual. O autor
destaca ainda, que a formação da personalidade seria, então, mais um
caso representativo dessa tendência da natureza em evoluir na direção
da composição de todos (LIMA, 2008).
47
Assim, a dimensão saudável do ser humano é vista e considerada em oposição
ao funcionamento neurótico e psicótico, reduzindo a experiência humana à polarização
saúde e doença, tendo o princípio central e norteador o adoecimento. O autor defende
uma psicologia com seus estudos voltados às qualidades e características positivas do
ser humano como o altruísmo e a satisfação, portanto, um estudo do indivíduo saudável,
ao invés da psicopatologia.
NOTA
Zeitgeist: um termo alemão que descreve um conjunto de opiniões que
dominam um momento específico da história e que, sem que nós nos
apercebamos – de modo inconsciente, determinam o pensamento de
todos os que vivem num determinado contexto (BROZEK; MASSIMI, 2002).
48
3.1.1 Abraham Maslow (1908-1970)
Maslow nasceu no Brooklyn, Nova Iorque em 1º de abril de 1908, o primogênito
de sete filhos de uma família imigrante russa. Teve uma infância difícil, com a presença
reduzida de amigos, e intensos conflitos com a mãe e o pai. Ao final da adolescência, em
virtude da pressão da família para se tornar advogado, matriculou-se na Faculdade de
Direito da Universidade de Nova Iorque, 1926.
49
Tabela 1 – PRINCIPAIS OBRAS DE MASLOW PUBLICADAS E TRADUZIDAS PARA O
PORTUGUÊS BRASILEIRO
50
Rank foi um psicanalista que divergia de alguns postulados freudianos, e que
centrou seus estudos no conceito de vontade como força guia no desenvolvimento
da personalidade, e ainda na importância do trauma para a construção das neuroses
e, portanto, a necessidade de se libertar das culpas desenvolvidas por situações
traumáticas. O contato com Rank e suas proposições influenciaram posteriormente o
trabalho desenvolvido pelo autor humanista, sobretudo no que se refere a sua atuação
com crianças traumatizadas.
51
Psicoterapia e Relações Humanas: Teoria
Psychotherapie en Menselyke
e Prática da Terapia Não-Diretiva –
Verhoudingen (1959)
Volume 1 (1975)
On Becoming a Person (1961) Tornar-se Pessoa (1976)
Psychotherapie et Relations Humanies: Psicoterapia e Relações Humanas: Teoria
Theorie et Pratique de la Therapie Non- e Prática da Terapia Não-Diretiva –
Directive (1962) Volume 2 (1975)
Person to Person: The Problem of Being De Pessoa Para Pessoa: o Problema de
Human (1967) Ser Humano (1976)
The Therapeutic Relationship and Its
Impact: A Study of Psychotherapy with -
Schizophenics (1967)
Man and Science of Man (1968) O Homem e a Ciência do Homem (1973)
Freedom to Learning: A View of What
Liberdade de Aprender (1973)
Education Might Become (1969)
Encounter Groups (1970) Grupos de Encontro (1978)
Becoming Partners: Marriage and Its Novas Formas do Amor: o Casamento e
Alternatives (1972) Suas Alternativas (1974)
A Way of Being (1980) Um Jeito de Ser (1983)
On Personal Power (1977) Sobre o Poder Pessoal (1979)
Liberdade de Aprender em Nossa
Freedom to Learn for the 80's (1983)
Década (1985)
Carl Rogers: The quiet revolutionary. An
-
Oral History
Total de Traduções 14
Fonte: Adaptada de Castelo Branco e Cirino (2017)
4 CONCEITOS E CONVERGÊNCIAS
Considerando as diferentes faces dos movimentos humanistas e, principalmente,
da psicologia humanista, John Shaffer (1978) destaca que a psicologia humanista pode
ser resumida em cinco pontos principais de convergências:
52
• desenvolvem uma metodologia antirreducionista;
• comprometem-se e assumem uma ética fundamentada na abertura para a
experiência, na liberdade e possibilidade de escolher e na capacidade exequível de
reconstrução de sentidos de vida.
53
• Necessidades fisiológicas: é a base da pirâmide e corresponde às necessidades
mais básicas, como motivações não apreendidas ou naturais. Pode ser descrita
como a ausência de substâncias químicas e nutrientes para o corpo, ou em relação
a condições ambientais que podem colocar o organismo em risco, como calor e frio
excessivo. A motivação para a alimentação, para o sono e repouso, para urinar e
defecar, são exemplos de necessidades fisiológicas.
• Necessidades de segurança: essa é a segunda necessidade fundamental
para a garantia da sobrevivência. Consiste na reação a situações que demandam
proteção, como perigos eminentes e estímulos ameaçadores, sendo uma reação
primordialmente instintiva. No entanto, a reação às necessidades de proteção podem
ser desenvolvidas conforme o contexto, como doenças, desempregos dentre outras
situações que colocam a pessoa em risco.
• Necessidades de afiliação (pertencimento): diferentemente das demais, a
necessidade de segurança não foi considerada por Maslow como fundamental
para a sobrevivência, porém indicou sua relevância para o bem-estar. Consiste
na necessidade de construção de relações interpessoais, ao sentimento de
pertencimento a grupos sociais, e do desejo de relação íntimas e afetivas mútuas.
• Necessidades de estima: no que se refere à necessidade de estima, esta foi dividida
por Maslow em dois momentos: a estima de si e a estima recebida dos outros. A
estima de si relaciona-se ao respeito desenvolvido e atribuído a si mesmo, a partir da
dignidade de vida percebida. Com relação à estima recebida pelos outros, consiste no
desejo por uma boa reputação e status.
• Necessidades de autorrealização: consiste no nível mais elevado da hierarquia
das necessidades, e que representa a potencialidade de realização ao se alcançar o
que se é destinado a ser e se tornar. Como expõe Cavalcanti et al. (2019, p. 3), “implica
realizar suas capacidades e seus talentos, cumprindo com suas vocações. Nesse
sentido, podem ser identificadas como características de pessoas autorrealizadas a
espontaneidade, a criatividade, a autonomia e a resistência à doutrinação”.
54
No curso do alcance a uma condição plena e saudável, Maslow (1970, p. 225)
descreve o processo de individuação: “A individualidade autêntica pode ser definida, em
parte, por ser capaz de ouvir essas vozes-impulsos dentro do próprio eu, isto é, saber o
que é que o indivíduo realmente quer ou não quer, aquilo para que está apto e para o que
não está apto etc.” Além disso, Maslow cunhou o termo transcendência para descrever o
processo de consciência integral e holística que acompanha o caminho da individuação.
ESTUDOS FUTUROS
Na próxima unidade, as atitudes do psicoterapeuta propostas por Carl
Rogers serão apresentadas em profundidade durante a discussão sobre
a Abordagem Centrada na Pessoa.
55
Rogers (1997) a partir de seus estudos, afirmou que o núcleo básico da
personalidade tende e se voltar para a saúde e bem-estar, sendo essa predisposição
a satisfação da necessidade natural do organismo, direcionado a desenvolver-se e
tornar-se autônomo e maduro, que o autor denominou de tendência atualizante.
Este movimento de atualização que permite que o ser humano garanta condições de
adaptação frente às adversidades do cotidiano, acompanhando esse dinamismo da
vida saudavelmente, e a construção de um clima psicológico adequado, possibilita
a libertação da tendência atualizante para que se torne real, e não apenas potencial
(NEVES, 2016).
Para encerrar este tópico, destaca-se Amatuzzi (2008, p. 17), no que se refere
ao encontro da psicologia com o humanismo,
56
LEITURA
COMPLEMENTAR
FENOMENOLOGIA: DE VOLTA AO MUNDO-DA-VIDA
A Atitude Fenomenológica
Diz-se, desde os gregos, que o filósofo é “todo olhos”, mas “ver” as coisas,
para a fenomenologia, tem um sentido amplo, que vale para todas as modalidades de
percepção, para todos os modos de “dar-se conta de algo”. Assim, ser “todo olhos”, não
quer dizer ser “só visão”, ou intelecto puro.
“Ver com clareza”, como dizia Husserl, implica que não haja obscuridade –
ou seja, é preciso que “o interlocutor sempre possa verificar por sua própria conta se
também ‘vê’ aquilo que o fenomenólogo está afirmando como verdadeiro” (MONTICELLI,
2002, p. 15). É sempre um diálogo, no qual é fundamental a possibilidade de verificação.
É importante, também, que haja certa inocência descritiva, sem muito medo de dizer
obviedades. E trabalhar de mãos vazias, sem instrumentos nem parâmetros: nada,
nenhuma teoria, nenhuma técnica lógica ou científica que não possa ser traduzida em
“ver aqui e agora”, pode nos servir neste ato de verificação intuitiva. O fenômeno se
mostra a partir de si mesmo.
57
Existe uma convicção básica que traduz o espírito da fenomenologia: nada
aparece em vão; tudo o que aparece tem um fundamento real (embora nem tudo o
que é real apareça). Também podemos chamar esta tese de princípio da fidelidade ou
“tese da veracidade da percepção” (percepção num sentido amplo, englobando todos
os seus modos: visual, auditivo, tátil etc.). A tese da veracidade da percepção não exclui
a possibilidade do erro, ao contrário, pois é precisamente quando há a possibilidade do
erro que pode existir a possibilidade de verificar e corrigir – e esta é a definição mesma
de experiência, e a partir do que pode se dar a aprendizagem (MONTICELLI, 2002, p. 16).
Vejamos um exemplo ilustrativo desse argumento. Não faz muito tempo, meu
filho de dois anos estava na sua cadeirinha, no banco de trás do carro que eu dirigia,
e o sol forte, incidindo diretamente sobre seu rosto, o incomodava. Evidentemente, o
real (neste caso, o sol) não se mostra para ele em toda a complexidade que se mostra
para mim, mas, fenomenologicamente falando, o que aparece para ele tem também
um fundamento real, embora ainda parcial (aliás, é sempre parcial!), mas que só a partir
da própria experiência poderá ser ampliado e ressignificado. Primeiro ele me pergunta:
“Mãe, por que o sol ‘tá’ no meu olho?” Tentando me esquivar de uma explicação mais
complexa, respondi que era porque o carro estava sem o tapa-sol no vidro traseiro, que
ele mesmo havia rasgado algumas semanas antes. Evidentemente insatisfeito com a
minha resposta, ele insistiu:
Não podemos dizer que a percepção do meu filho não tem um fundamento real.
Se não, vejamos: o sol é alguma coisa que aparece para ele como irradiando uma luz
intensa, mas que neste momento é indesejada. Como, com base em suas experiências
anteriores, ele sabe que o sol nem sempre está no céu, ele supõe que é possível que
um adulto (que em geral consegue fazer coisas que ele não consegue) “o tire do céu”
ou “o desligue”, numa analogia com outros objetos que, assim como o sol, irradiam
luminosidade, mas nem sempre estão acesos (lâmpadas). Segundo o princípio da
veracidade da percepção, conforme acabamos de exemplificar, tudo o que se vê tem
um fundamento real, e segundo o princípio da transcendência, outra tese fundamental
da fenomenologia, nunca se vê tudo. Isso significa simplesmente que nada se mostra
em todos os seus aspectos ao mesmo tempo. Embora eu saiba muito mais a respeito do
sol do que o meu filho de dois anos, o que eu sei do sol é apenas aquilo que se mostra
a mim na minha vivência subjetiva do sol (incluídas aí não só as minhas experiências
“diretas”, mas também as informações que eu venha a adquirir enquanto descobertas
científicas), ou seja: o “objetivo” nunca é tão objetivo assim – tudo é um ponto de vista.
Bem, mas se tudo é real, mas nada se mostra por completo, como eu posso
dizer que conheço alguma coisa? Como fica a questão do rigor na fenomenologia? O
rigor fenomenológico é bastante diferente do rigor da objetividade científica. A ciência
58
não estuda as coisas em sua totalidade, mas as fragmenta, num processo contínuo
de análise, levando a uma necessária dissociação entre esse pensamento científico-
analítico e a experiência vivida das coisas, uma vez que a experiência não é fragmentada:
percebemos totalidades.
59
Isso significa, como já mencionado, que não precisamos duvidar dos nossos
sentidos, embora saibamos que as coisas não se mostram por completo: confiança no
que se vê não exclui um sentimento de profundidade e riqueza daquilo que não se vê.
Por fim, para Monticelli (2002), a virtude que precisamos aprender a exercitar,
acima de tudo, é a atenção: a fenomenologia é uma filosofia da atenção. É preciso que
todos os nossos sentidos se mobilizem atentamente para intuirmos a totalidade da
experiência vivida. Por exemplo: para que estas palavras façam sentido, para que o leitor
possa “ver” a essência daquilo que está escrito nestas páginas, e que foi minha intenção
transmitir, é preciso que isto tudo seja mais do que um conjunto de símbolos gráficos
dispostos em tinta num papel. É preciso bem mais do que isso: é preciso atenção. É
preciso que o leitor seja “todo olhos”, mas que também intelecto, audição, olfato,
sensações corporais estejam polarizados naquilo que acontece aqui, neste momento.
Todo o resto é fundo.
60
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
61
AUTOATIVIDADE
1 O humanismo não consiste em uma teoria, método, filosofia, e tão pouco uma
psicologia. Consiste em um movimento implícito na historicidade que surge como
força de mobilização, pode estar na base da busca individual por mudança de sentido
de vida, ou na mobilização de grandes massas por justiça e reformas sociais. Nesse
sentido, em relação aos movimentos humanistas identificados por Gomes, Holanda e
Gauer (2004), assinale a alternativa CORRETA:
62
3 Maslow, um dos principais precursores do humanismo, desenvolveu uma teoria
sobre a motivação humana, descrevendo a hierarquia de necessidades a serem
atendidas para um funcionamento pleno e saudável, popularmente conhecida
como Pirâmide de Maslow. Em relação as necessidades descritas pelo autor, analise
as sentenças a seguir:
I- A motivação para a alimentação, para o sono e repouso, para urinar e defecar, são
exemplos de necessidades fisiológicas.
II- A necessidade de segurança consiste na reação a situações que demandam prote-
ção, como perigos eminentes e estímulos ameaçadores, sendo uma reação primor-
dialmente instintiva.
III- O nível mais elevado da hierarquia das necessidades, e que representa a potencia-
lidade de realização ao se alcançar o que se é destinado a ser e se tornar, consiste
na necessidade de pertencimento.
IV– O respeito desenvolvido e atribuído a si mesmo, a partir da dignidade de vida
percebida, consiste na necessidade de autorrealização.
63
REFERÊNCIAS
ALVIM, M. Merleau-Pontu e a psicologia clínica. In: ANTUNEZ, A.; SAFRA, G. Psicologia
clínica da graduação à pós-graduação. Rio de Janeiro: Atheneu, 2018.
BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo: experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1967.
COHEN, J. A Cultura dos monstros: sete teses. In: COHEN, J. Pedagogia dos
monstros: os prazeres e os perigos de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
64
DUTRA, E. et al. Sobre as relações entre o pensamento de Heidegger e as práticas
psicológicas clínicas. In: ANTUNEZ, A.; SAFRA, G. Psicologia clínica da graduação à
pós-graduação. Rio de Janeiro: Atheneu, 2018.
HOLANDA, A. Martin Buber: a vida em diálogo. In: ANTUNEZ, A.; SAFRA, G. Psicologia
clínica da graduação à pós-graduação. Rio de Janeiro: Atheneu, 2018.
65
PACHECO, J. E. P. A pessoa humana e a doença. Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p.
31-44, 2006.
PESSOA, F. Poesia. Alberto Caeiro. São Paulo : Companhia das Letras, 2001.
ROEHE, M.; DUTRA, E. Dasein, o entendimento de Heidegger sobre o modo de ser humano.
Avances en Psicología Latinoamericana, Bogotá, CO, v. 32, n. 2, p. 105-113, 2014.
66
UNIDADE 2 —
FUNDAMENTOS, TEORIAS
E CONCEITOS DE
PRÁTICAS CLÍNICAS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
67
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
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68
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA
LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL
1 INTRODUÇÃO
A Logoterapia e Análise Existencial foram desenvolvidas por Viktor Frankl,
e permeadas pela experiência de sobrevivência do autor a campos de concentração
nazista durante a segunda guerra mundial. A partir de sua experiência de vida, o autor
adota uma visão de ser humano diferente da utilizada por outros teóricos da época, em
que não restringe o ser humano a uma compreensão biopsicossocial, somando-se a
esta concepção à dimensão espiritual, que não tem relação com religiosidade, mas com
a experiência de transcendência.
69
2 A VIDA DE VIKTOR FRANKL E A CONSTRUÇÃO
DA LOGOTERAPIA
Viktor Frankl nasceu em 26 de março de 1905, em Viena na Áustria, no berço de
uma família judia, que já contava com dois filhos. Filho de um pai funcionário público e
uma mãe responsável pelos cuidados da casa, tiveram uma vida confortável até o início
da Primeira Guerra Mundial, que assim como outras famílias judias, foram acometidos
pela extrema pobreza.
Aquino (2020) destaca que o interesse de Frankl pelo sentido da vida surgiu
ainda na infância, quando com quatro anos já questionava “se a transitoriedade da
vida não aniquila seu sentido” (FRANKL, 1990, p. 112). Na escola, com cerca de 13 aos,
questionava os professores sobre questões relacionadas ao sentido da vida, com
destaque a uma aula de ciências naturais em que indagou sobre o sentido da vida com
seu professor, enquanto este explanava o processo de oxidação e combustão, em que
reduzia a vida a esse processo (AQUINO, 2020).
Durante seu ensino médio, por volta de 1920, Frankl já se aproximava de estudos
da filosofia e psicologia, chegando a ministrar uma palestra aos 16 anos intitulada “O
sentido da vida” em uma conferência na Universidade Popular, em um grupo de trabalho
liderado por Edgar Zilsel, um filósofo pioneiro da sociologia da ciência. Ao fim do ensino
médio, para realizar seu trabalho de conclusão de curso, o autor troca correspondências
com Freud, que o encoraja a continuar escrevendo, e tal incentivo culmina com seu
trabalho de conclusão do ensino médio sob o título “Sobre a psicologia do pensamento
filosófico” em 1923.
70
Em 1938, Frankl já atendia em consultório próprio e era reconhecido como um
profissional que propunha uma nova modalidade de tratamento terapêutico. Nesse
mesmo ano, ocorreu a anexação político-militar da Áustria pelas tropas nazistas
alemãs, e todos os médicos judeus tiveram que fechar seus consultórios, e só podiam
permanecer trabalhando em hospitais específicos para atendimentos de judeus. Apesar
de visto para residir nos Estados Unidos, decide permanecer em Viena, e salva milhares
de pessoas ao se recusar a realizar a eutanásia em pacientes com transtornos mentais.
Em 1940, chegou a ser nomeado como diretor do setor de neurologia do último hospital
em Viena que recebia pacientes judeus, e lá conheceu sua futura esposa, Tilly Grosser,
com quem se casou em 1941. No ano seguinte, a família é capturada, presa e enviada
para campos de concentração.
71
Ao retornar para Viena, em 1945, Frankl teve de reconstruir sua vida, após receber
a notícia da morte de seus familiares. Durante esse retorno traumático, o autor chegou
a indagar-se se realmente valeria a pena continuar vivendo. Colocando novamente a
prova suas convicções sobre o sentido da vida, o autor continua a escrita de Em busca
de sentido, que foi publicado em 1946.
INTERESSANTE
Para conhecer mais da história de Viktor Frankl e da Logoterapia no Brasil,
visite o site da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial
(ABLAE), acesse em: https://ablae.org.br/portal/public/.
72
3.1 AUTOTRANSCENDÊNCIA
Conforme descreve Frankl (2008, p. 135), a autotranscendência diz respeito ao
fato de que o “ser humano sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente
de si mesmo – seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar”. Em outras
palavras, faz parte da essência humana a abertura ao mundo e aos outros, colocar-se
em relação e voltar-se para além ou algo que difere de si mesmo.
3.2 AUTODISTANCIAMENTO
O autodistanciamento por sua vez, consiste na capacidade do ser humano de
distanciar-se de si mesmo, o que permite se perceber com outros olhos e avaliar e
reavaliar a própria postura diante dos outros. Um exemplo disso é a possibilidade, é o
distanciamento por meio do humor, sorrir apesar das experiências trágicas. “Quando
o sujeito ri de seus problemas provoca uma distância entre o núcleo do seu ‘eu’ e a
situação problemática” (SILVEIRA; MAHFOUD, 2008, p. 572).
73
1) os atendimentos nos centros de aconselhamento para jovens
com o intuito de prevenir o suicídio; 2) constituição gradativa de um
sistema de pensamento com bases na filosofia da existência validado
existencialmente nos campos de concentração; e 3) elaboração
de uma metodologia terapêutica fundamentada em casos clínicos,
sobretudo no período pós-guerra.
Como descreve Lima Neto (2013, p. 224), “[...] o caráter espiritual é o elemento
que permite o desdobramento de sentido, caracterizando o ser humano enquanto
possibilidade, se diferenciando de tudo o que o determina [...]”, portanto, o espírito
consiste na dimensão humana que transcende as determinações anímicas do ser
humano, ou seja, “[...] O fator espiritual ressalta a capacidade de decisão do homem,
uma vez que este passa a agir, não apenas inteiramente impulsionado por seus
conteúdos anímicos, mas também orientado por sua espiritualidade” (LIMA NETO,
2013, p. 224). Diante do exposto, a seguir serão apresentados os conceitos centrais da
abordagem terapêutica.
NOTA
Origem do termo: A etimologia da palavra logoterapia (no alemão
Logotherapie) surge de expressões derivadas do grego em que “logos”
significa sentido e “therapeia” significa terapia, cuidado. Por isso a
abordagem ficou conhecida como terapia do sentido de vida.
74
Essa postura frente ao ser humano compreende-o como livre e capaz de fazer
escolhas, sendo essas escolhas sempre carregadas de uma responsabilidade inerente,
comungando com postulados existencialistas, tal como já afirmava Sartre (2010), “É o
que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado,
porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no
mundo, é responsável por tudo o que faz” (SARTRE, 2010, p. 7).
75
Figura 1 – Liberdade da vontade
Fonte: Santos (2016, p. 133)
76
4.2 SENTIDO DA VIDA
Consiste no desejo inerente em atribuição de significados para a vida. O
sentido da vida é único, pois cada pessoa atribuirá os seus significados mesmo que se
assemelhe a sentidos partilhados em cada cultura e sociedade, mutável, tendo em vista
as transformações que acontecem ao longo da vida, e concreto, considerando que não
são significados abstratos, mas uma expectativa concreta de satisfação, ou seja, “não
pode haver algo como um sentido universal da vida, mas apenas os sentidos únicos das
situações individuais” (FRANKL, 2011, p. 73). Ainda como descreve o autor,
77
Os valores de atitudes consistem na decisão que se toma frente ao sofrimento
inevitável. Nessa categoria de valor, Frankl (2011) descreve a tríade trágica do sofrimento
humano, a dor, a culpa e a morte, pois, “não há um único ser humano que possa dizer
que jamais sofreu, que jamais falhou e que não morrerá” (FRANKL, 2011, p. 94). Portanto,
esses valores atitudinais referem-se a transformar aspectos negativos da vida, em
potenciais experiências positivas e de crescimento, dotando um novo sentido e postura
em relação à experiência. Como ainda descreve o autor, apesar das adversidades, existe
um sentido incondicional que se denomina suprassentido, o qual, inclusive, ultrapassa a
capacidade intelectual humana.
78
Figura 2 – Sentido da vida
79
4.3 VONTADE DE SENTIDO
A vontade de sentindo diz respeito ao desejo e busca contínua para encontrar
um sentido para a vida, destacado por Frankl (2005, p. 23) como “interesse primário do
ser humano”, portanto, uma força motriz da vida humana. Nesse sentido, o autor indica
que o ser necessita de uma tensão que mobilize uma movimentação do ser para o deve-
ser, e que denominou de noodinâmica.
4.3.1. Neuroses
Destaca-se que o vazio/vácuo existencial não é percebido por Frankl como
uma doença, tampouco tem uma causa patológica. Uma pessoa saudável em uma
perspectiva biopsicossocial, que tenha boas condições socioeconômicas e satisfação
profissional, pode ser acometida pela frustração existencial e experimentar sentimentos
de falta de sentido e vazio interior (FRANKL, 2012). No entanto, o vazio existencial pode
transformar-se em uma neurose noogênica.
80
A neurose noogênica consiste em um adoecimento psicofísico, originada a partir
da dimensão noética. As neuroses podem ser divididas em neurose dominical, neurose
do desemprego e neurose coletiva. A neurose dominical diz respeito à experiência de
ausência de sentido durante o período destinado ao descanso.
A neurose coletiva foi discutida por outros autores e autoras, na qual identificou-
se que cada época desenvolve sua forma própria de neurose como forma de adaptação
ao vazio existencial. Frankl (2012, p. 278) descreve a tríade atual da neurose coletiva
que consiste na depressão, dependência química e agressão, em que aponta como
“suicídio no sentido lato do termo, suicídio crônico no sentido da dependência de droga
e, sobretudo, também violência contra os outros”. O autor afirma ainda, no que se refere
ao sentido de vida e ao suicídio, que é mais importante verificar o que afasta o indivíduo
de um potencial risco de suicídio, e como atribuir sentido a sua própria existência e
sobrevivência, do que se debruçar a questionar o porquê do ato. Destaca ainda, que
81
produto de combinações sociais e psicofísicas, eximindo-o da responsabilidade pela
própria existência. A atitude existencial provisória, a tendência em viver a partir de
impulsos partindo de um prisma da incerteza do dia de amanhã. A combinação dessas
duas atitudes retira as possibilidades de escolha e responsabilidade por elas, pois não é
possível enxergar um sentido no futuro, pois “[...] se o fatalista não age dado o destino
imutável, o indivíduo do senso provisório alega a inviabilidade do agir por não conhecer
o futuro” (SANTOS, 2016, p. 136).
A atitude fanática por sua vez, nega a diversidade da coletividade, não tolerando
a divergência de posturas e pensamentos, e, logo, a pluralidade. Frankl (1990, p. 46)
aponta para uma correlação entre ambas as atitudes, descrevendo que “o homem que
pensa em moldes coletivistas olvida a sua própria personalidade, o homem induzido
pelo fanatismo não enxerga o ser pessoal do outro, daquele que não sintoniza com o
seu pensamento”. A seguir, o mapa conceitual desenvolvido por Santos (2016) sobre a
vontade de sentido:
82
Figura 3 – Vontade de sentido
83
Por fim, a logoterapia e a análise existencial contribuem de forma significativa
para a compreensão do sofrimento humano, inaugurando um olhar atento às
questões relacionadas ao sentido de vida e ao vazio existencial, sobretudo em um
momento histórico de guerras e pós-guerra, em que a humanidade foi acometida por
questionamentos existenciais.
DICA
Caro acadêmico, você poderá compreender mais dos aspectos do sofrimento
trazido por Viktor Frankl na entrevista disponível em: https://bit.ly/3BBWp2O.
84
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• A liberdade da vontade diz respeito a uma postura frente ao ser humano que o
compreende como livre e capaz de fazer escolhas, sendo essas escolhas sempre
carregadas de uma responsabilidade inerente, rompendo com o pandeterminismo
da época.
85
AUTOATIVIDADE
1 Na logoterapia, compreende-se que, quando a vontade de sentido é frustrada, surge
a falta de sentido e um sentimento de futilidade, um vazio interior conhecido como
vácuo existencial ou vazio existencial. Este pode se apresentar como excessiva
preocupação com a autorrealização, a indiferença e o tédio. O vácuo existencial em
si, não consiste em uma forma de adoecimento, porém pode vir a se transformar
em formas de neuroses, como a neurose coletiva. Frankl destaca um conjunto de
atitudes adotadas perante a vida, que culminam em neuroses coletivas. Sobre os
tipos de atitudes, assinale a alternativa CORRETA:
86
3 Os sentidos que são compartilhados socialmente são concebidos na logoterapia
como valores, denominados valores de criação, valores de experiência e valores de
atitude. Diferente dos sentidos de vida, que são concretos e singulares, os valores são
abstratos e universais. Diante do exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras
e F para as falsas:
4 A logoterapia tem seu alicerce na condição inerente ao ser humano de busca pelo
sentido da vida. A partir das experiências de vida de Frankl, sobretudo sua experiência
de sobrevivência e a perda dos membros da família nos campos de concentração
nazista, o autor postulou e inaugurou uma visão antropológica de ser humano que
transcende a compreensão biopsicossocial, e propôs três dimensões inerentes à
experiência humana, o sentido da vida, a liberdade da vontade, e a vontade de sentido.
Disserte sobre os três conceitos centrais que norteiam a abordagem terapêutica.
87
88
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA
ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA (ACP)
1 INTRODUÇÃO
A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) foi proposta por Carl Rogers, e sua
construção foi influenciada pela fenomenologia e o método fenomenológico, o
movimento existencialista e a psicologia humanista, além de outros campos do saber
que Rogers teve contato durante sua trajetória de vida. Ao longo das experiências
profissionais do referido autor, suas compreensões teóricas foram se transformando,
adotando novos conceitos e nomenclaturas, inicialmente sendo conhecida como
aconselhamento psicológico, posteriormente como terapia centrada no cliente quando
foi largamente conhecida, e, por fim, foi reconhecida e intitulada pelo autor como
abordagem centrada na pessoa.
89
2 FASES DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA
Carl Rogers, ao longo de sua trajetória de vida, foi atualizando sua proposta
teórica, incluso renomeando em conformidade com as transformações. Inicialmente,
o autor adotou a terminologia de Psicoterapia Não Diretiva ou Aconselhamento Não
Diretivo, descrição utilizada em seu livro Psicoterapia e consulta psicológica, publicado
em 1942. Posteriormente, em virtude de outras experiências vivenciadas, intitulou sua
teoria em Terapia Centrada no Cliente, Ensino Centrado no Aluno, Liderança Centrada
no Grupo e, por último, Abordagem Centrada na Pessoa, descrições utilizadas a partir do
foco de seu trabalho ao longo da vida (MOREIRA, 2010).
90
faça, todo e qualquer gesto ou expressão facial contribuem para o
ambiente que o cliente sente. O facto de o cliente se sentir livre para
tirar o máximo proveito dos períodos de counselling, depende do tipo
de ambiente que encontre (ROGERS, 2000, p. 22, grifos do original).
Essa modalidade de prática terapêutica teve como base o impulso individual para
o crescimento e para saúde proveniente da psicologia humanista. Foram enfatizados
os aspectos relacionados aos sentimentos e não somente elementos intelectuais, foco
na experiência presente frente às vivências do passado, tendo como ponto central o
indivíduo, rompendo com o foco do processo no problema, além da compreensão da
própria relação terapêutica como uma experiência de crescimento.
Ainda, essa fase foi marcada também pela incorporação mais acentuada de
conceitos transcendentes e holísticos, além da aproximação com outros campos do
saber. O autor destaca, ainda, em Um jeito de ser (ROGERS, 1980), os progressos da
época, que promoveram alterações na percepção da realidade vivida, em especial as
descobertas da física quântica e outros campos científicos. Dessa forma, afirma que
há uma convergência entre física teórica e misticismo, principalmente o misticismo
oriental, e que isso leva a “[...] um reconhecimento de que o universo inteiro, no qual
se inclui o homem, é ‘um ballet cósmico’. Sob este prisma, os conceitos de matéria,
tempo e espaço perdem a relevância; existem apenas oscilações” (ROGERS, 1980, p.
127, grifo do original), e conclui, classificando essas transformações de concepção de
mundo como revolucionárias.
92
3 CONCEITOS CENTRAIS
A abordagem centrada na pessoa tem como princípio epistemológico a feno-
menologia e o método fenomenológico, enfatizando a experiência subjetiva e pré-re-
flexiva como critério de conhecimento, e por esse motivo, faz-se necessário a adoção
de uma postura de redução fenomenológica a fim de que crenças e valores sejam sus-
pensos, para que ocorra um encontro genuíno com a experiência vivencial do cliente.
93
NOTA
O self é compreendido como um campo fenomenológico em que a pessoa
organiza uma percepção e conceito de si mesmo. Assim, constitui-se de
um encontro entre as demandas internas do organismo e as demandas
externas (valores sociais etc.) a ele (GUIMARÃES; SILVA NETO, 2015).
94
de quão negativas ou positivas elas sejam, ou de quanto elas possam
contradizer outras atitudes que ele sustinha no passado. Essa
aceitação de cada aspecto flutuante desta outra pessoa constitui
para ela uma relação de afeição e segurança.
95
3.3 CONGRUÊNCIA
Ter uma postura congruente frente ao cliente consiste em aceitar e se permitir
viver os sentimentos que emanam do encontro terapêutico. Isso quer dizer que o
terapeuta pode vivenciar os próprios sentimentos de uma forma autêntica, transparente
e sincera na relação, tendo a liberdade, inclusive, de expressar como os sentimentos do
cliente alcançam o terapeuta (BAKERS, 2016).
96
Por fim, as atitudes facilitadoras do processo terapêutico proposto por Rogers,
promoveram uma nova compreensão da relação terapeuta-cliente, em que ainda há
um princípio estruturante de uma não diretividade, que é expressa no conceito de
compreensão empática no respeito ao tempo e condições do cliente em acessar temas
e experiência, porém há uma concepção de presença ativa do terapeuta e de sua
importância expressa pela congruência do terapeuta e pela sua aceitação incondicional
do cliente. A seguir, serão descritos os estágios do processo terapêutico, conduzido a
partir dessas três condições fundamentais.
NOTA
Cliente ou Paciente? Em Terapia Centrada no Cliente (2003), Rogers
destaca sua motivação para utilizar o termo cliente ao invés de paciente:
“o cliente, como indica o significado do termo, é alguém que vem, ativa
e voluntariamente procurar ajuda, para resolver um problema, mas
sem qualquer intenção de pôr de lado a sua própria responsabilidade
na situação. Foi devido a estas conotações do termo que o adotamos,
uma vez que evita o sentido de estar doente ou de ser o objeto de uma
experiência etc.” (ROGERS, 2003, p. 7).
97
‘em movimento’” (ROGERS, 1997, p. 149). Destaca-se que há uma variabilidade no
estágio geral do processo em que o cliente se encontra, em que pode haver frases e
comportamentos característicos de fases diferentes. A seguir, serão descritas as setes
fases do processo de tornar-se pessoa, proposto pelo referido autor.
98
• a comunicação de tópicos referentes ao não eu começa a ser mais comum;
• são captados possíveis problemas, porém são identificados como exteriores ao eu;
• não há responsabilização pessoal em relação aos problemas identificados;
• quando são descritos sentimentos, são identificados como como objetos passados e
não próprios do eu;
• a experiência fica sempre determinada pela estrutura do passado;
• os conceitos pessoais são rígidos, não reconhecidos como construtos, mas
concebidos como fatos;
• dificuldade de diferenciação de sentimentos e significados pessoais, sendo limitado
e global;
• apesar de algumas contradições serem expressas, há pouco reconhecimento destas
como contradições.
Para ilustrar esse processo de mudança, Rogers (1997, p. 153) descreve algumas
expressões utilizadas durante essa fase como: “a desorganização continua a aparecer
inesperadamente na minha vida”, “suspeito que meu pai sempre tenha se sentido pouco
seguro nas suas relações de negócios”, “o sintoma era... era... estar muito deprimida”. A
partir das afirmações, é possível reconhecer o distanciamento com a própria experiência,
localizando os conflitos como exteriores ao eu ou localizados no passado.
O autor destaca que muitas pessoas que chegam à terapia em busca de ajuda
psicológica, se encontram nessa fase, em que descrevem sentimentos que não sentem
no momento e explorando o eu como um objeto terceiro.
99
Para ilustrar essa fase, Rogers (1997, p. 157) descreveu as seguintes frases
relatadas por seus clientes: “sentia-me de tal maneira culpado durante a minha
juventude que julgava merecer ser sempre castigado fosse pelo que fosse. Se julgava
que não merecia ser castigado por uma coisa, sentia que o merecia por outra”, “e o
que agora sinto é precisamente o que me lembro de ter sentido quando era criança”.
Essas expressões demonstram os conflitos latentes e as dificuldades de localizar os
sentimentos presentes, sendo percebidos apenas como sentimentos oriundos de
experiências passadas.
O autor ressalta que a quarta e quinta fase consistem em boa parte do processo
terapêutico. Algumas expressões que ilustram essas fases descritas por ele: “fico
desanimado por me sentir dependente, porque isso quer dizer que não acredito em
mim”, “sinto-me preso por alguma coisa. Devo ser eu! Não encontro outra explicação.
Não posso atribuir isso a ninguém. Há este nó... em alguma parte, dentro de mim...”, “isso
é engraçado. Por quê? Ora, porque é um pouco estúpido da minha parte... sinto-me um
pouco inquieto, um pouco embaraçado com isso... e um pouco impotente” (ROGERS,
1997, p. 159, grifo do original).
100
4.5 QUINTO ESTÁGIO
O avanço para a quinta fase é caracterizado pelo acesso a sentimentos que são
percebidos, mesmo que não seja possível exprimir com clareza aquilo que foi sentido.
É possível identificar um acontecimento organísmico em relação às simbolizações e
formulações cognitivas da experiência. O autor destaca, em comparação à primeira fase
e à fase atual, “em primeiro lugar, essa fase está, psicologicamente, a muitos quilômetros
do primeiro estágio descrito. Nesse ponto, muitos aspectos da personalidade do cliente
tornaram-se móveis, ao contrário da rigidez do primeiro estágio” (ROGERS, 1997, p. 163).
As características dessa fase em que há uma proximidade maior com uma expressão
orgânica e em movimento são:
101
4.6 SEXTO ESTÁGIO
Nesta fase, há uma compreensão profunda e um reconhecimento autêntico
dos sentimentos e incongruências da experiência. Além disso, há uma maleabilidade e
fluidez na comunicação interior que possibilita uma congruência organísmica com os
sentimentos. Algumas características são descritas a seguir:
102
O cliente: Com quem eu me preocupo... de quem eu me sinto tão
próximo. Ora, aqui está mais uma coisa estranha.
O terapeuta: Isso só parece esquisito.
O cliente: Sim! E vai mesmo mais longe. A ideia de me amar a mim
próprio e de me preocupar (os seus olhos umedecem-se). Seria uma
coisa muito bonita... muito bonita.
103
reflexiva, uma vida subjetiva da sua pessoa em movimento. Percebe-
se responsável pelos seus problemas. Sente-se, além disso,
plenamente responsável em relação a sua vida em todos os seus
aspectos em movimento. Vive plenamente em si mesmo como um
processo em permanente mudança.
Por fim, a abordagem centrada na pessoa proposta por Carl Rogers, imprimiu
importantes contribuições sobre novas posturas terapêuticas, capazes de potencializar o
processo terapêutico. Ainda, privilegiou-se um novo lugar a ser ocupado pelo terapeuta,
que adota uma postura ativa, porém não diretiva, respeitando o tempo de acesso as
autoconceitos do cliente, e, principalmente, reafirmando essa condição existencial de
se sentir incondicionalmente aceito pelo outro na figura do terapeuta. A teoria rogeriana
permanece atual e é utilizada por um grande número de profissionais da psicologia no
Brasil, e é também utilizada em outras áreas, sobretudo na educação.
DICA
No link a seguir, é possível conferir um vídeo clássico da Abordagem Centrada
na Pessoa, que consiste na condução de um caso clínico realizado por Carl
Rogers, intitulado de Caso Glória. Acesse em: https://www.youtube.com/
watch?v=bIxAQ79RmL4.
104
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• A ACP contribuiu com um novo olhar terapêutico, em que o terapeuta que adota uma
postura ativa, porém não diretiva, respeitando o tempo de acesso aos autoconceitos
do cliente, e, principalmente, reafirmando essa condição existencial de se sentir
incondicionalmente aceito pelo outro na figura do terapeuta.
105
AUTOATIVIDADE
1 Rogers cunhou uma proposta terapêutica diferenciada das terapias conhecidas
e difundidas na época, em que privilegiou sua atenção na relação terapêutica,
atribuindo como função do terapeuta imprimir condições facilitadoras para o
crescimento do cliente. Com relação à Abordagem Centrada na Pessoa, assinale a
alternativa CORRETA:
2 Ao longo de sua trajetória de vida, Carl Rogers foi atualizando sua proposta teórica,
imprimindo novas definições e conceitos a sua teoria, inclusive renomeando
sua abordagem terapêutica. Em virtude das transformações da teoria rogeriana,
diferentes autores dividiram suas produções em fases para sinalizar posturas e
conceitos centrais oriundos de cada época. Sobre as fases descritas por Moreira
(2010), classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:
106
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – F – V.
b) ( ) V – F – V – V.
c) ( ) V – V – V – V.
d) ( ) F – F – V – F.
107
5 Rogers (1997, p. 177) ao comentar a última fase do processo terapêutico, descreve
que o cliente “vive plenamente em si mesmo como um processo em permanente
mudança”. A partir do exposto, disserte brevemente sobre as características e
diferenciações comparando a primeira e a última fase do processo terapêutico.
108
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS
DA GESTALT-TERAPIA
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, a Gestalt-terapia compõe o bojo de abordagens com base
fenomenológica e tem tido sua importância e visibilidade em franco crescimento no
Brasil, atualmente. Esta abordagem surgiu no caldo da contracultura da década de
1960, e se coloca de maneira crítica e questionadora frente a algumas formas de olhar
o contato do indivíduo com o mundo e com seu próprio sofrimento. Desse modo,
apresenta uma releitura e uma nova ética ontológica, com uma dimensão prática e
relacional enfatizada.
2 APRESENTANDO A GESTALT-TERAPIA E
SEUS PERSONAGENS
A Gestalt-terapia (GT) tem sua fecundação em meio às teorias humanistas
e existencialistas, trazendo para a psicologia uma outra forma de perceber e se
relacionar com o homem que se afasta daquelas formas difundidas pela psicanálise e
pelo behaviorismo, abordagens vanguardistas da época (FRAZÃO, 2013). Num sentido
diferente, a Gestalt com sua base humanista, enfatiza a capacidade de autorregulação
do indivíduo, focando em suas potencialidades para crescimento e criatividade.
109
Foi no ano de 1951 que Frederick Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline
publicaram o livro cânone e marco para a área. De acordo com Frazão (2013), “o livro
era fruto das anotações que Perls trouxera da África e, também, dos debates ocorridos
no chamado Grupo dos Sete, composto por Isadore From, Paul Goodman, Paul Weiz,
Sylvester Eastman, Elliot Shapiro, Laura Perls e Fritz Perls.” (FRAZÃO, 2013, p. 13). No ano
de 2022 a Gestalt-terapia completa 70 anos de vida.
DICA
“Gestalt-terapia” é o livro fundador e oficial da abordagem, desenvolvido por Frederick
Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman (comumente abreviados como Perls, Hefferline,
Goodman). É um livro que oferece as diretrizes da Gestalt-terapia em termos ontológicos e
com desenvolvimento de conceitos. Este é um livro inicial e essencial para a compreensão
da teoria, estando as novas produções na área ancoradas a esta obra.
110
Paul Goodman é um intelectual formado em Letras, conhecido por ser um
ativista gay anarquista, tendo reconhecimento teórico e político na área. Faz uma
interlocução entre filosofia alemã e filosofia estadunidense. Tinha um foco voltado para
a educação, lecionando para o que seria correspondente ao ensino médio, nos Estados
Unidos. Acreditava que o processo de escolarização, de alguma maneira, interrompia
alguns processos criativos da criança. Uma de suas maiores bases é William Reich e
suas propostas políticas na psicanálise.
111
Se o mundo concorda sobre a beleza, é porque existe a feiúra.
Se todos concordam sobre o bem, é porque existe o mal.
O “ser” e o “não ser” nascem um do outro;
O difícil e o fácil são complementares;
O longo e o curto nascem por comparação;
O alto e o baixo são interdependentes;
O som e o silêncio estão em mútua harmonia;
O anterior e o posterior são correlativos.
É por isso que o Sábio entrega-se ao não agir, e ensina silenciosamente.
As coisas inumeráveis são feitas sem a menor palavra.
A natureza dá nascimento, mas nada possui.
Ela age, mas não existe nenhuma submissão.
Ela tem mérito, mas não reclama.
O fato de que ela nada pretende a torna indispensável (TSE, 2001, p.
26, apud TICHA, 2013, p. 95).
O budismo é oriundo da Índia no século VI a.C. e compõe em seu bojo uma série
de conceitos do hinduísmo quando chega à China (TICHA, 2013). A meditação é um dos
principais pontos da prática budista, visto que não há aqui uma concepção a respeito
de Deus tal como nos moldes que se apresenta em outras doutrinas ou religiões. A
meditação é uma prática que visa acalmar a agitação da mente, mas que se alcança por
meio de uma prática e exercício constantes.
112
O equilíbrio, em GT, volta-se mais para a capacidade e habilidade de movimentar-
se para, assim, atingir o crescimento, do que fixar numa forma socialmente aceitável,
mas individualmente rígida.
Ao invés de partir de uma teoria estruturalista que surge com uma série de a
prioris e regras de causa e efeito, Perls (2002) defende o pensamento diferencial, o
que tem como base o método dialético. Assim, desloca os questionamentos de “por
quê?” para “como?”, não estabelecendo explicações nem aplicando uma nomenclatura
universal, mas contextualizando as experiências de forma holística.
DICA
Indicamos o primeiro livro de Fritz Perls tecendo críticas à psicanálise e a partir do qual
fertilizou ideias para a construção da Gestalt-terapia. Este trabalho representa o início de
uma mudança radical e é primordial para o conhecimento dos primórdios da teoria. Uma
das metáforas utilizadas por Perls diz respeito à alimentação e à nutrição,
num sentido onde é necessário que o alimento seja destruído por meio da
mastigação para que seja digerido e nutrido pelos outros órgãos do corpo.
Isto representa um dos princípios da Gestalt-terapia, em que novidade e
rotina andam de mãos dadas. E para que haja crescimento algo do que já
está estabelecido precisa ser destruído/agredido, precisa alcançar uma nova
forma. Desse modo, também podemos refletir sobre como somos nutridos,
que tipo de relação estabelecemos com a comida e com o mundo que nos
cerca, o que nós ingerimos sem mastigar, impedindo, assim, o crescimento
saudável do corpo.
113
Figura – Ego, fome e agressão, Perls
Esse fluxo é uma constante em nossas vidas, de forma que também dialoga
com nossas necessidades. O que é figura em um momento surge num sentido de
ser “resolvida”, de ter um fechamento de Gestalten e, com essa necessidade satisfeita,
retorna a um fundo distinto. Isto ocorre tanto num nível de necessidades orgânicas
básicas, como fome e sede, como também em níveis mais subjetivos, o que está sempre
contextualizado no campo do sujeito (FRAZÃO, 2013). Figura e fundo integram a
totalidade da Gestalt.
114
Assim, as necessidades que surgem para o indivíduo podem perturbar o
equilíbrio estabelecido, de modo que o indivíduo buscará reestruturar-se por meio
de contato ou de fuga, interagindo com o meio. Não obstante, as necessidades
são inúmeras e ocorrem simultaneamente (física, psicológica, sociais, espirituais),
o indivíduo estabelece uma hierarquia de necessidades, uma espécie de escala de
valores, e atende à necessidade que é prioritária naquele momento (CARDELLA, 2014).
A necessidade prioritária é o que chamamos de “figura” e as demais necessidades
permanecem no “fundo” do indivíduo até que estas também se tornem prioritárias e,
portanto, “figuras”.
No entanto, quando uma situação se faz figura (se torna presente), ela representa
uma situação em aberto, uma gestalten, que busca fechamento. Nesse sentido, algo
toca o indivíduo que o faz movimentar a estrutura e as prioridades do seu próprio
campo. A partir desses termos, podemos pensar na GT como uma terapia do contato,
do cuidado, da relação.
115
Seguindo essa linha de raciocínio, a normalidade é a capacidade
adaptativa do indivíduo frente às diversas situações de sua vida. Haverá́
doença à medida que o indivíduo responder inadequadamente à
determinada situação, colocando em risco a sua própria sobrevivência
e/ou a do outro. Assim sendo, saúde é um processo de construção
mútua, pois indivíduo e mundo, organismo e meio coexistem
necessariamente, atualizando-se concomitantemente, passando da
esfera do possível para a do real (BOAVENTURA, 2013, p. 83).
116
comportamento neurótico pode ter sido, em alguma altura, um modo criativo de lidar
com alguma demanda do campo que permanece quando pode haver outros recursos à
disposição do indivíduo, mas que este não contata. Esses processos de organização do
organismo em busca de satisfação são dinâmicos, mudam constantemente, de forma
que é necessário que haja atualizações do indivíduo e sua configuração para utilizar os
próprios recursos e ajustes criativos.
INTERESSANTE
Há uma série de vídeos documentais que mostram a forma como Perls
trabalhava no manejo clínico. Boa parte desses vídeos são retirados de
workshops com Gestalt-terapeutas. No link a seguir, você pode acessar uma
dessas experiências, que é uma dose de estímulo para quem quer seguir a
área: https://bit.ly/3Snkpxs.
4 COMPREENDENDO A GESTALT-TERAPIA:
CONCEITOS BÁSICOS
A palavra awareness poderia ser traduzida como “estar consciente de”, mas não é
utilizada a tradução na íntegra, para que não se confunda com a ideia de uma consciência
já pré-estabelecida. A awareness é uma perspectiva da consciência pautada no fluxo da
experiência e do sensível no aqui-agora. Esta perspectiva tem alicerce numa teoria de
campo, não sendo dualista nem determinista, lançando possibilidades do indivíduo ser e
estar afetado, e de que forma as novidades são (ou não) contatadas (ALVIM, 2014).
Quando pensamos em awareness o que importa é o sentir, estar aberto para ser
e estar afetado. O sentido é dado na experiência. Para tal, há certa passividade, estar
com o “coração aberto” para assimilar uma novidade, envolve, até mesmo, uma certa
lentidão, uma não interpretação imediata e nem uma reflexão apurada. Isto porque a
awareness está na ordem do sensível (ALVIM, 2014). Muitas vezes para sentir e perceber,
é necessário um olhar mais atento, um passo mais vagaroso. Isso também se relaciona
com o vazio fértil, a partir do qual a expansão da awareness é, efetivamente, germinada.
117
ação ou movimento. O pós-contato é a assimilação da novidade, o crescimento, a
transformação a partir do encontro com a novidade. Estas são as etapas de contato
saudáveis, contudo, os contatos de má qualidade também interferem na forma de figura
que se cria, podendo ser confusa e sem vigor.
118
A fronteira é o lugar da experiência, é onde se dá o encontro entre indivíduo
e meio. Para PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997), a fronteira de contato pode ter
analogia à pele humana, que delimita o indivíduo e o mundo que o cerca, embora sempre
em interação. Nesse sentido, para Salomão; Frazão; Fukumitsu (2014, p. 38):
Por estas vias, quando pensamos num indivíduo saudável, suas fronteiras de
contato possuem plasticidade e permeabilidade, ainda que elas não sejam fixas, nem
absolutas, adaptando às necessidades da relação organismo/meio (SALOMÃO; FRAZÃO;
FUKUMITSU, 2014). Em outras palavras, a fronteira de contato é a awareness de uma nova
situação no campo, de forma que as funções da fronteira implicam, essencialmente, em
lidar com a novidade e com as diferenças, pois é a partir disso que nos possibilitamos
o crescimento e o desenvolvimento (SALOMÃO; FRAZÃO; FUKUMITSU, 2014). Portanto,
quando há comprometimento na fronteira de contato, pode haver comprometimento
nas funções de ajustamento criativo que podem passar a ser disfuncionais, afinal,
quando a interação com o meio é prejudicada, de alguma maneira, as possibilidades de
reconfiguração são limitadas.
Não obstante, o ajustamento criativo não implica uma ruptura com tudo que
já é conhecido, mas busca uma sustentação de um reposicionamento do indivíduo no
campo, recriando a sua forma. É a partir dos ajustes criativos que o indivíduo se afirma
no mundo, que se pessoaliza, que se subjetiva, que se apropria de si e se diferencia do
outro (CARDELLA, 2014).
119
assimilar. Assim, pode-se utilizar uma nova energia para um velho problema, isto é
ajustamento criativo. Desse modo, o aparecimento dos sintomas (ou seja, os sintomas
como figura) é uma forma de ajustamento do indivíduo em busca de autorrealização.
Ocorre que esse ajustamento pode figurar-se de forma que interrompa o fluxo do
indivíduo, representando também os sintomas.
120
self representa pura potencialidade de autorregulação. Não obstante, a principal função
do self é fazer ajustamentos criativos, o que o reafirma como entidade nem ativa e
nem passiva, mas num “modo médio – embora sempre engajado na situação do campo
(BANDÍN, 2018).
Dito em outras palavras, o self não é uma entidade que se fixa no sujeito de
maneira imutável, não se trata do “eu”, em si, mas um processo muito pessoal sempre
em relação com o campo. Desse modo, não se trata apenas de “ser”, mas de “ser no
mundo” (GINGER; GINGER, 1995), conforme percebido também pela fenomenologia.
121
Por esta via, o id imprime nossos atos automáticos, como respirar, andar ou
outra atividade que façamos habitualmente e já não colocamos ali tanta atenção, visto
que “o corpo já sabe o caminho”. Em outras palavras, é como se o id agisse sobre o
organismo, considerando que muitas vezes não o percebemos, de forma que há uma
passividade nesta relação.
122
Para Belmino (2020, p. 19) “a neurose contemporânea é, talvez, uma função
saudável, necessária para que possamos minimamente sobreviver em um mundo que, de
tão indecifrável, obriga-nos a criar cada vez mais estratégias de fazer da natureza algo
previsível e controlado.
Dito de outro modo, muitos atos que nos parecem irracionais fazem parte do
repertório do indivíduo em busca de sua autorregulação, o que também informa como
o organismo vai para o contato e como busca sua satisfação. Com esta interrupção de
contato, sintomas são desenvolvidos para que consigamos manter nossa vitalidade e
expressão (LATNER, 1999). Assim, as resistências informam, ao mesmo tempo, tanto
o aspecto saudável, como quando o sujeito busca sua autorregulação, e o aspecto
disfuncional, como quando não consegue obter satisfação, pois suas formas de contato
estão cristalizadas e obsoletas.
123
da Gestalt é a ampliação da awareness, da consciência, de forma que o cliente perceba
de maneira mais explícita seu próprio modo de funcionamento. Estes mecanismos são:
confluência, introjeção, projeção, retroflexão, deflexão, proflexão e egotismo.
Desse modo, para que a assimilação ocorra, é também necessário que haja um
processo de desestruturação. Isso dá-se, pois Perls (2002) aborda a agressão como
importante fonte de desenvolvimento e de colocação do sujeito no mundo.
124
Nesse viés, o ponto da introjeção em nível patológico diz respeito, justamente,
ao fato de engolir estruturas inteiras sem que fosse feita uma mastigação das ideias,
hábitos, dogmas e rotinas estabelecidos. O que se busca, portanto, é a independência e
a responsabilidade do sujeito por suas próprias ações.
125
Assim, vivemos numa sociedade onde se reforça a independência e a
autossuficiência como um critério de preparação para vida. Com isso, há uma apologia
para o individualismo e a para a solidão, num sentido em que o indivíduo se vê sozinho e
acredita em sua própria autossuficiência para resolver qualquer problema (ALVIM, 2010).
Por esta via, uma pessoa que retroflete é como se desse um passo para trás,
como se voltasse ao lugar de onde partiu que, no caso, é ela mesma (ALVIM, 2010). Uma
suposta “origem” para a retroflexão seria, justamente, uma repressão da agressividade
em situações tais como, “não pode agredir”, “tens que apenas obedecer”, engole o choro”,
“não responda aos mais velhos”. Dessa maneira, uma série de ações espontâneas, que
indicariam a ação do sujeito perante o mundo, foram interrompidas a tal ponto que,
na vida adulta, interrompe a si próprio sem que nenhuma outra pessoa ou autoridade
precise fazer por ele. Por isso, pensamos na retroflexão como alguém que quer fazer
a si próprio o que gostaria de fazer com o outro ou com o mundo e, ainda, fazer em si
mesmo o que gostaria que o mundo fizesse para ele (ALVIM, 2010). O sentimento de
inadequação, portanto, é gritante.
Nesse sentido, uma pessoa que interrompe seu fluxo na retroflexão, num
sentido geral, tem um perfil dinâmico, realizador e enérgico, são aquelas pessoas que
tudo resolvem e tudo fazem, aproximando-se das figuras de autoridade que em outro
momento eram seus algozes. Para Alvim (2010, p. 185) “[...] a agressividade emprestada
para a autoridade interna é a arrogância de alguém que foi humilhado” num sentido onde
toda a performance de realização e sucesso trata-se de uma necessidade de pequenas
vitórias em busca do valor próprio perdido. Nesse sentido, a pessoa também pode se
tornar muito competitiva, tendo sempre a necessidade de ganhar todas e quaisquer
discussões e batalhas.
A retroflexão combina e se ajusta aos moldes capitalistas uma vez que este
modelo dá a possibilidade de o sujeito comprar – por meio do seu poder de consumidor
– para si o que o dinheiro puder oferecer, desde carros, roupas, restaurantes, tudo que
demanda um status e que informe ao mundo o que este sujeito pode (ALVIM, 2010). Este
cenário apresenta, portanto, a busca pelo valor pessoal de quem conquista a própria
fortuna, ao passo que, também, revela o lugar da solidão deste sujeito que se apoia em
objetos e se afasta das relações com o mundo de maneira inteira, mas que também
envolve risco, envolve lidar com o diferente e com as frustrações que isso acarreta.
126
O trabalho terapêutico, portanto, acontece no sentido de trabalhar as
expressões das emoções de forma ampliada e catártica, como permitir liberar raivas e
mágoas nunca elaboradas como “raiva proibida contra um dos pais mortos, vivenciado
como “culpado de abandono”” (GINGER; GINGER, 1995, p.138). De maneira esquemática,
podemos pensar nos mecanismos apresentados até aqui, da seguinte forma (GINGER;
GINGER, 1995 p. 139, grifos do original):
A deflexão diz respeito a uma fuga, evitação de contato, o que pode ser uma
estratégia saudável de adaptação e como se desenvolver de forma patológica quando
cristalizada. A proflexão é quando se faz ao outro o que gostaria que fizessem consigo,
num misto de projeção e retroflexão. O egotismo diz respeito a um senso e um interesse
de si próprio, numa espécie de hipertrofia do ego; este mecanismo é utilizado no próprio
trabalho terapêutico, visto que objetivo é o cliente voltar-se para si mesmo de forma
mais autônoma (GINGER; GINGER, 1995).
os outros =
meio
fronteira
de contato
eu-mesmo
organismo
127
Assim, neurose, para a Gestalt-terapia, diz respeito ao acúmulo de gestalten
inacabadas decorrentes de necessidades não satisfeitas (GINGER; GINGER, 1995).
Ambas interferem no funcionamento e nas possibilidades de contato entre organismo
e meio. Nesses casos, ao invés de crescimento e desenvolvimento, há estagnação e
regressão, de forma que os ajustes criativos se tornam obsoletos e a pessoa encontra-
se em franco sofrimento, com fome de relação e emoções (BANDÍN, 2018).
128
Recusa não consciente
Formação de figura: energia do (negação, impossibilidade)
organismo e do ambiente. de se apropriar do afeto, da
Excitação do desejo ganha emoção, do sentimento e
forma e dá lugar ao(s) objeto(s) das representações que o
possível(is). acompanham. (p. 126)
Figura passa do organismo (o Afetos desapropriados
campo) para o meio (o outro), do são atribuídos ao outro, as
interior para o exterior. características do ambiente
Percepção do ambiente
Deslocar-se para o exterior. Ex- não são percebidas, pois o
Versus
movere. E-moção. ambiente é restrito a imagens
PROJEÇÃO
Aceitação da excitação e virtuais fabricadas pelo próprio
confrontação com o ambiente. indivíduo (p. 126).
Capacidade de imputar à Ex.: paranoia, negação,
experiência em curso alguns sexismo, racismo, homofobia,
conhecimentos ligados a certezas rígidas da constituição
experiências adquiridas de um objeto fóbico, culpa
anteriormente. neurótica, superstições
e crenças, mitologias e
mitomanias, ciúmes...
Desenvolver certa agressividade
para o “ir para”.
O “ir para” pode gerar angústia ao
ponto de interromper o contato.
Quando a agressão (ad-
Agressividade (ir para, id-
gressere) não pode ser
gressere): poder benéfico da
manifestada, ela pode se
expressão pessoal e de criação
converter em hostilidade ou
da qual dispõe o ser humano.
Ir para voltar-se contra si mesmo.
A retroflexão pode pausar a
Versus Autoagressão, automutilação,
ansiedade da agressividade,
RETROFLEXÃO masturbação, obsessões por
voltando-se para si mesmo.
doenças, psicossomáticas,
Controle de si, ligado à
suicídio, masoquismo
intervenção da vontade.
compulsão ao fracasso e ao
O medo pode desencadear
remorso.
retroflexão.
Os conflitos que provocam a
retroflexão estão próximos da
superfície.
Ansiosos diante do soltar-se,
diante da perda do controle,
ansiosos ao se abrirem para o
Soltar
Uma forma específica de outro, diante de um possível
Versus
retroflexão. abandono posterior. Reduzem o
EGOTISMO
ambiente a conhecimentos que
possam ampliar seu controle e
seu poder.
129
2014). Visto que, a interrupção em uma forma de contato também interfere no todo, não
sendo nunca algo isolado, mas expressando o estilo e a forma do organismo ir para o
meio. Podemos pensar nesse caráter de neurose, resistência e formas de interrupção
de contato como estando sempre relacionadas à ansiedade, ao medo e à frustração.
130
Por essas vias, o diagnóstico não deve ser eliminado do processo terapêutico,
visto que os diagnósticos estão ancorados em critérios estabelecidos de maneira
que oferecem a comunalidade de determinados sintomas. A problemática disso é
justamente o que falta de singularidade nos critérios e nos manuais estatísticos de
diagnóstico. Assim, o diagnóstico não é descartado, em respeito e em legitimidade com
as comunalidades, mas os sintomas também devem ser contextualizados, sem que haja
um fechamento de diagnóstico, necessariamente (FRAZÃO, 2015).
Muitas vezes o sintoma tem uma função no campo do sujeito, de forma que é
papel do psicoterapeuta ficar atento aos detalhes do contexto e as formas pelas quais o
indivíduo se ajusta e vai para o contato com o mundo. Lembrando que, para a Gestalt-
terapia, um diagnóstico implica num ajustamento criativo disfuncional, trata-se sempre
da forma que o sujeito encontrou de fazer contato com o mundo.
Tudo isto deve ser contextualizado, forma e conteúdo. Por isso, desde o primeiro
contato algo já acontece em termos de relação terapêutica, como foi marcada a sessão,
como o cliente chega.
INTERESSANTE
A Gestalt-terapeuta Mônica Alvim, reconhecida e influência profissional da
área, também professora nos cursos de formação no Brasil, apresenta um
pouco da dimensão corporal que pode ser lida em Gestalt-terapia. A gestaltista
trabalha a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (que vimos na Unidade 1)
e de dimensões artísticas. Acesse em: https://bit.ly/3dqRzxG.
Por isso, importa que o terapeuta não tenha uma ideia a priori do seu cliente,
tomando cuidado para não ser invasivo, mas demonstrando interesse, com respeitosa
curiosidade, desenvolver uma escuta e uma presença atentas.
Assim, também está implicado o que é dito e o que é ouvido que impacta no
cliente, o que chama atenção, o que intriga, em que parte do diálogo ele muda de
assunto, como está a voz, como está a expressão ou repressão da afetividade. Além
disso, também devemos nos atentar para aqueles conteúdos que são omitidos, coisas
que o paciente não conta, como fases da vida ou relações das quais nunca entra em
contato no momento terapêutico.
132
Tive um paciente cuja aparência chamou minha atenção: alto, forte
e musculoso. Falava o mínimo possível e respondia laconicamente
às minhas perguntas. A razão que o levara a procurar psicoterapia
não era clara para mim, e mesmo quando eu lhe perguntava a única
resposta que obtinha era que o médico dissera que “ele precisava”.
Dei-me conta que ele não havia mencionado nada de sua vida
afetiva e sexual. Perguntei-lhe a esse respeito e ele me contou que
era impotente. Este era na realidade o motivo que o levara a buscar
terapia e só foi possível chegar a ele pela percepção da omissão
(FRAZÃO, 2015, p. 69).
Desse modo, é a sensibilidade com olhar e escuta muito atentos que dão forma
ao diagnóstico processual, percebendo o que é dito, o que não é dito, o que é falado
de maneira espontânea, o que é repetido sessão após sessão. Todos estes elementos
perceptivos servem de dados para o terapeuta de como é a forma e configuração dessa
pessoa, eles se entrecruzam, se imbricam na prática clínica, não sendo nenhum deles
isoladamente determinante para um fechamento diagnóstico.
133
LEITURA
COMPLEMENTAR
SER-EM-RELAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO DAS TERAPIAS
FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS OU RELACIONAIS
Walter Ribeiro
Esse problema talvez seja maior nas abordagens inacabadas por vocação e
essência, como as que abraçamos e defendemos, cujo paradigma científico-filosófico,
além disso, ainda luta com resistências cientificistas, essencialistas, apesar de o modelo
desses cientistas ter sido superado em quase todas as frentes científicas, a começar
pela física.
134
Assim, já com as bases de sua teoria prática assentadas, ao entrar em
contato com a existencial-fenomenologia, disse: Fiquei surpreso ao constatar, aí
pelo anos de 1951, que a direção de meu pensamento e os aspectos centrais de meu
trabalho terapêutico poderiam ser acertadamente classificados como existenciais e
fenomenológicos. Parece estranho que um psicólogo americano possa se encontrar em
semelhante companhia (AMATUZZI, 1989, p. 91).
Esse feliz encontro de uma prática confirmada com a teoria nos conforta e
anima e, claro, nos preocupa à medida que vemos milhares de pessoas imitando Rogers
sem sua sensibilidade e sem o seu gênio, por um lado, e sem teoria nenhuma que dê
sustentação ao seu fazer, por outro. O desastre tem sido e é inevitável porque, afinal,
os Rogers são raríssimos. A Gestalt-terapia, como todos sabemos, veio diretamente da
vertente teórica alemã: por isso Laura Perls, por exemplo, chama de europeus ou homens
da Renascença os dois Pauls (Goodmand e Weiz), raríssimos na América, segundo ela.
Outro agravante: nós, psicólogos, por causa da ênfase quase exclusiva que se
deu por tantos anos ao intra, ainda somos, em geral, negligentes ou pouco competentes
ao considerar a força das diferenças e preconceitos culturais e ambientais, apesar do
muito que se tem feito nos últimos anos em várias ciências e abordagens psicológicas
para reparar esse exagero.
A principal novidade de então foi a sistematização da visão que mais tarde Mas-
low chamaria de terceira Força, efetuada notadamente pelo matemático-filósofo Ed-
mundo Husserl, o “fundador da Fenomenologia no sentido moderno” (MERLEAU-PONTY,
1973, p. 19). Essa influência atingiu, por exemplo, os primeiros criadores da Gestalt-tera-
pia que se formaram nesse período, nesse clima; influência exercida diretamente pelos
psicólogos da Gestalt e, talvez mais ainda, por Kurt Goldstein; e, indiretamente, por toda
a cultura europeia continental da época.
135
Uma das formas de negação, talvez a mais perigosa, é a aceitação rápida e
superficial, apenas no nível de opinião racional. Por exemplo, cada vez se acentua
mais que somos fenomenológico-existenciais. Entretanto, a maioria dos autores dessa
afirmação tem uma noção muito superficial, quando a tem, do que é esse modo de
pensar e de conceber o ser humano. Enfim, não volta às origens para realmente saber
do que está falando e, se volta, o faz apenas com o pensamento racional, insuficiente
para entender nossas abordagens.
136
É claro que ele também não tirou isso do nada. Além de sua ímpar vocação
poética, estava afinado com os problemas e as tentativas de solução propostas em
seu tempo, enfim, com a prontidão do seu momento histórico e, para estar a par do
conhecimento de sua época, leu, por exemplo, pensadores como Descartes, Kant,
Nietzsche e outros.
Além dos pensadores, é claro que precisamos estar sempre atentos às des-
cobertas de outras ciências ou abordagens que evoluem com rapidez crescente. Des-
cobertas e achados que quase invariavelmente vêm apontando para a importância do
contextual e da liberdade. Por exemplo, o recente livro do psicólogo americano Weward
L. Deci, com os seus corajosos e contundentes experimentos sobre os diferentes efei-
tos da motivação extrínseca e intrínseca, experimentos que confrontam o clássico pen-
samento autoritário sobre o assunto.
Para nosso uso e proteção, contra os labirintos em que podemos nos embrenhar,
evitamos o detalhamento das múltiplas facetas com que essa corrente se apresenta (o
que, para ser feito com competência e profundidade, talvez ocupasse o resto de nossa
vida (e, com o essa postura de autoproteção, vamos tentar extrair desse movimento
global o que nos é essencial e nos interessa mais de perto, deixando o detalhamento
para os especialistas, filósofos. E, indiscutivelmente, a grande marca dessa “novidade”
é a que nos mais interessa, é o resgate tanto do subjetivismo que o objetivismo nega,
quanto do objetivismo, por sua vez, negado pelo subjetivismo. Esse resgate nos obrigou,
obviamente, a privilegiar de maneira crescente a relação.
137
A sua contextualização é cada vez mais imprescindível para entender o ser
humano e os seus problemas. O difícil é que essas relações começaram muito cedo
para delas termos memória. Memórias que, além disso, evitamos por frequentemente
serem traumáticas e dolorosas. Por exemplo, se considerarmos que essas relações se
iniciaram na vida intrauterina (VERNY, 1989), então poderemos imaginar a dificuldade
do problema, complicando um pouco mais ainda: se pensarmos na possibilidade
muito plausível de que, de alguma forma, houve e há transmissão das experiências
durante toda a história da humanidade, aí sim é que sentiremos a necessidade absoluta
de desenvolver as indispensáveis modéstia e humildade, para encarar essa nossa
pretenciosa e, com frequência, arrogante profissão.
Essa compreensão do ser humano como resultado, como integração criativa dos
seus processos e dos ajustes possíveis nas suas relações, nos levou a relativizar e rever
alguns conceitos; notadamente, a ver as coisas menos em termos de preto ou de branco,
de céu ou de inferno. A “política da certeza” passou a sofrer derrotas sucessivas e cada
vez maiores. Com isso, se estabeleceu, como já dissemos, a substituição da disjuntiva
OU pela aditiva E. Nas terapias de hoje, essa substituição, essa visão globalizada do ser,
é imprescindível tanto para os fundamentos teóricos como para o trabalho clínico.
138
mos, nelas, ser aceitos e amados), utilizamos toda a nossa gama perceptiva, toda nossa
sabedoria para sobreviver o melhor que pudermos e, assim, nos distorcemos, nos alie-
namos o quanto for necessário para nos adaptar da melhor forma possível a esses pro-
cessos relacionais. Não é demais lembrar que esses ajustes, quando ocorrem, são sem-
pre criativos e até saudáveis, tanto se os ambientes forem favoráveis ou desfavoráveis.
Saudáveis porque foram o melhor dos possíveis naquele momento e naquele contexto.
139
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• Frederick Perls, Paul Goodman e Laura Perls são os três autores precursores da
Gestalt-terapia, lançando o livro fundador e oficial da abordagem.
• A Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, outra das bases da Gestalt-Terapia, tem como
proposta uma visão de indivíduo unificado, integrado, não dividido em partes, não
separado por blocos e compartimentos.
140
• A resistência está no bojo da formação da neurose, indicando a cristalização da forma
de contato tal como quando havia uma ameaça ou perigo.
141
AUTOATIVIDADE
1 A Gestalt-terapia é uma abordagem da psicologia que surgiu num contexto de
contracultura e tem algumas diversas bases teóricas que contribuíram para seus
fundamentos. Sobre as bases da Gestalt-terapia, assinale a alternativa CORRETA:
( ) A awareness traz uma noção de consciência que implica ser afetado pelas experiências.
( ) O contato e a fronteira de contato são conceitos equivalentes.
( ) O ajuste criativo demanda potência e contato com a novidade no campo.
( ) A autorregulação busca sempre a separação entre organismo e meio.
142
4 Para a Gestalt-terapia, o fluxo de crescimento e desenvolvimento do indivíduo
pode ser interrompido a partir das formas como ocorre o contato organismo/meio.
A confluência é uma das formas de interrupção de contato, escreva como ocorre
esse mecanismo.
143
REFERÊNCIAS
ALVIM, M. Pode deixar que eu resolvo: retroflexão e contemporaneidade. Revista de
Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 183-188, 2010.
BANDÍN, C. Como o rio que flui, passa e está sempre presente: a teoria do self na
Gestalt-terapia. In: ROBINE, J. (org.). Self: uma polifania de Gestalt-terapeutas
contemporâneos. São Paulo: Escuta, 2018.
144
FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.
Petrópolis: Vozes, 2008.
145
ODDONE, H. Prefácio. In: BELMINO, M. (org.). Gestalt terapia e atenção psicossocial.
Porto Alegre: PLUS Simplíssimo, 2020.
PERLS, F., HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt terapia. São Paulo: Summus, 1997.
146
TSALLIS, A. C. Indiferença criativa: uma possibilidade pragmática do método
fenomenológico. In: FRAZÃO, L. M.; FUKUMITSU, K. O. (org.) Gestalt-terapia:
conceitos fundamentais. São Paulo: Summus, 2014.
147
148
UNIDADE 3 —
OLHARES FENOMENOLÓGICOS
EXISTENCIAIS E HUMANISTAS
SOBRE OS SOFRIMENTOS
CONTEMPORÂNEOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
149
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!
Acesse o
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150
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
TRANSTORNOS MENTAIS E OUTRAS
EXPRESSÕES DO SOFRIMENTO
PSICOLÓGICO
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, o estudo das psicopatologias ou do sofrimento humano sob uma
perspectiva fenomenológica e existencial apresenta flexões em relação ao modo
clássico e hegemônico que se percebe e classifica estes fenômenos. Uma dessas
flexões diz respeito ao afastamento de uma lógica predominantemente nosológica
do sofrimento humano. Desse modo, a compreensão do sofrimento humano parte de
outras ordens, tentando abarcar os conceitos já estudados até aqui, como a relação do
sujeito com o tempo, com o espaço, com os outros, com o mundo e consigo mesmo.
Assim, coloca-se a vivência dos indivíduos num primeiro plano em detrimento das
características gerais dos sintomas.
151
2 PSICOPATOLOGIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA
FENOMENOLÓGICA
O termo “psicopatologia” foi e ainda é usado em diferentes sentidos e para
designar diferentes tipos de comportamento. É estudado a partir de diversas abordagens
e autores, o que sempre é atualizado, considerando que a história e a cultura estão
sempre em movimento e, portanto, os termos e conceitos para pensar e aplicar o que é o
“normal” e o que é “patológico” também se atualizam. Pode-se falar, de uma maneira geral,
que o campo da psicopatologia inclui uma variedade de fenômenos que associamos,
historicamente, como “doença mental” (DALGALARRONDO, 2019). Estes fenômenos
incluem vivências, estados mentais e padrões comportamentais que apresentam tanto
uma esfera individual e singular, uma dimensão própria e, por outro lado, conexões
complexas com ideias da psicologia sobre normalidade (DALGALARRONDO, 2019).
INTERESSANTE
Acadêmico, você conhece a história e a obra de Vicent Van Gogh? Considerado um dos maiores
pintores de todos os tempos, Van Gogh produziu mais de 2 mil obras durante seus 37 anos de
vida. Seu legado é tão representativo que, em 1973, em Amsterdã, na Holanda, seu país-natal,
foi criado um museu para abrigar suas criações. O artista foi caracterizado por alguns como
um homem incompreendido, atormentado, intempestivo e com distúrbios
comportamentais. Outra curiosidade diz respeito ao fato de que o artista não
tinha reconhecimento, nem em termos simbólicos e artísticos, nem em termos
materiais enquanto era vivo. A fama e o reconhecimento de seu trabalho
vieram apenas no post mortem. Uma de suas obras mais famosas, Noite
Estrelada, é a única pintura noturna da série de obras que criou a partir da
vista do quarto do hospício Asilo Saint-Paul, onde estava internado nos últimos
anos de sua vida. Desse modo, podemos olhar para este artista a partir de
diferentes perspectivas, e, para uma perspectiva fenomenológica, olhar apenas
para os sintomas do seu sofrimento seria apenas uma parte do seu todo.
152
Noite Estrelada – Van Gogh
FONTE: https://arteeartistas.com.br/noite-estrelada-a-obra-prima-de-vincent-van-gogh/.
Acesso em: 7 out. 2022.
153
Não existem descrições específicas de cada um dos transtornos
mentais, de maneira que seja possível categorizá-los em suas etio-
logias, prognosticá-los e oferecer terapêuticas. Se há quem assim o
faça, opera opostamente a que o uso rigoroso do método fenome-
nológico observa. Oferece a fenomenologia, antes e, no entanto, um
caminho para repensar as estruturas fundamentais do ser homem,
que no seu exame e constituição revelem e impliquem aspectos
psicopatológicos, ao mesmo tempo em que, ante a leitura fenome-
nológica das ocorrências ditas normais, sejam evocadas condições
referentes às manifestações psicopatológicas. [...] o estudo da psi-
copatologia numa perspectiva fenomenológica, antes de oferecer
uma posição segura para intervenções nas psicopatologias, propõe
reflexões fundamentais sobre aspectos ontológicos do humano que,
integrados na Antropologia Filosófica específica da fenomenologia,
permitam elaborações de instrumentos interventivos precisos e afi-
nados com a cotidianidade do ser homem Talvez, no rigor reflexivo
levado a fundo e a termo pelo método fenomenológico, se produzam
mais dúvidas do que certezas, mais caminhos possíveis do que vias
oficiais, revelando, ele mesmo, sua semelhança com a insegurança e
provisoriedade da própria existência humana.
154
Figura 1 – Eugene Minkowski
Fonte: http://www.fenomenoestrutural.com.br/2016/03/04/eugene-minkowski/.
Acesso em: 7 out. 2022.
INTERESSANTE
Henri Bergson (1859 – 1941) foi um filósofo e diplomata francês que se
dedicou ao estudo e à escrita sobre noções de temporalidade que coincide
com a forma fenomenológica de perceber o tempo no sentido em que tudo
se finda, onde o tempo fornece um movimento, uma transitoriedade. Em
vista disso, Bergson aborda sobre um tempo espacializado, no sentido de
ser uma forma de buscar medir o tempo em relação com o espaço, embora
isso, de maneira alguma, dê conta do tempo da experiência e da subjetividade
individual. Assim, por um lado, há o tempo mecânico e, por outro lado, há o
tempo da consciência. Para saber mais sobre Bergson, veja o filósofo Franklin
Leopoldo falando sobre neste vídeo da Casa do Saber: https://www.youtube.
com/watch?v=9AWIqw4hynM.
155
Em termos psicopatológicos, o tempo é marcado por uma desorientação junto
com uma desorientação no espaço e, assim, é como se substituída a realidade por uma
espécie de mundo fictício (MINKOWSKI, 2011). Assim, o tempo mensurável e visto de
maneira objetiva também escapa no cotidiano mesmo em situações que não sejam
de ordem psicopatológica. Para ilustrar isso, Minkowski (MINKOWSKI, 2011, p. 88) cita o
exemplo de uma interação com seu filho, na época com seis anos de idade:
É nesse sentido que a esfera do tempo ocupa a ordem singular, não se trata
do tempo mensurável e nem da desorientação patológica, mas da forma como cada
um vivencia o tempo no mundo. Além disso, a vida em sociedade também coloca o
tempo de forma tão dinâmica que as imagens, as quais vemos repetidas, em termos
de calendários e datas específicas, fazem com que não se tenha tempo de parar, de
meditar ou de refletir sobre qualquer ponto de apoio.
Para pensar o tempo, Minkowski utiliza o termo devir, como “esse oceano
movente, misterioso, grandioso e poderoso que eu vejo ao redor de mim, em mim, em
todo lugar, em uma palavra, quando medito sobre o tempo” (MINKOWSKI, 2011, p. 89).
Nesse sentido, aponta tanto para o caráter fluido e passageiro, irremediavelmente, do
tempo, ao passo que também se considera sua progressão a um futuro que ainda não
está pronto, embora sempre sedento. O devir, por seu turno, sempre deixa que algo
escape, que algo bagunce, que algo não se complete sem por isso ser desmerecido, é
impessoal, está sempre a transformar-se.
157
Figura 2 – Artur Tatussian
158
Desse modo, um dos pontos centrais no trabalho de Tatossian é a flexão entre
sintoma e fenômeno na clínica psicopatológica (BLOC; MOREIRA, 2013). Na clínica
tradicional, o que é valorizado é o sintoma, o que sinaliza um processo somático e
patológico que tem uma ordem de causa e efeito mais ou menos bem delimitado, sendo
relativamente fácil de descrever e compreender em termos de origem e causa. Por outro
lado, o fenômeno não é tão categorizável, pois parte da experiência vivida do paciente,
não sendo reduzível a adjetivas.
Por se prezar pelo todo do paciente e por não reduzir sua existência aos
sintomas, não se diagnostica a esquizofrenia ou a depressão, por exemplo, mas sim a
esquizofrenicidade e a depressividade, expressando assim que se trata de uma parte do
159
todo. Assim, o distúrbio do paciente pode ser percebido com e no sintoma ao invés de
depois ou a partir dele. Assim também o próprio clínico consegue dialogar e transmitir a
mensagem de que estamos sempre em movimento, não oferecendo uma compreensão
precoce nem percebendo o paciente de maneira estática (BLOC; MOREIRA, 2013).
3 COMPREENSÃO FENOMENÓLOGICA DE
TRANSTORNOS MENTAIS CONTEMPORÂNEOS
Para compreendermos os transtornos mentais contemporâneos a partir da
perspectiva fenomenológica, podemos pensar, como temos visto com Mikowski e
Tatossian, na mudança do ponto de partida, ou seja, aqui se olha o todo, aqui não se
privilegia o sintoma, mas busca-se compreender a forma como sujeito lida com o seu
próprio tempo, com sua própria insegura, como se coloca no mundo em descompasso
com o tempo do mundo, em desorientação com o espaço que lhe é oferecido.
160
Precisamos, assim, localizar o fenômeno ao seu campo contextual e isso
também se aplica aos casos de depressão. Isso porque, por um lado, faz parte da vida
a questão do sentido e não sentido, experienciar, eventualmente, uma ausência de
sentido (TÁVORA, 2017). Por outro lado, contudo, a sociedade em vivemos é fascinada
pelo progresso científico e tecnológico de forma que promete sempre uma atualização
para conforto e satisfação constantes e instrumentalizada, apressada, como quem
busca uma felicidade compulsória numa prateleira de supermercado.
161
Assim, devemos considerar que a tristeza é um estado de rebaixamento dos
afetos que pode variar em níveis de intensidade e, geralmente, surge em decorrência
de eventos que foram doloridos e sofridos. Na tristeza também se sente angústia e,
também, há choro, é passageira e o indivíduo consegue manejar seu funcionamento
global (NOGUEIRA, 2017). A depressão maior – melancolia – implica em sentir-se como
apartado de si e do mundo, com um descompasso amplo e profundo, podendo haver a
tristeza, mas havendo também um desânimo e desinteresse geral pela vida.
162
uma carga insuportável, quase como se esse corpo melancólico fosse dominado pela
gravidade: cai, fica pra baixo (TATOSSIAN, 2006). Por isso mesmo a melancolia representa
um estado que atinge mais do que uma tristeza, considerando que a tristeza já é uma
expressão de um sentimento.
Com esse corpo pesado, quase insustentável, o melancólico anda pelo mundo
levando a sério demais suas identidades, seus papéis sociais e abdicando de sua própria
subjetividade e liberdade (TATOSSIAN, 2006). Considerando estes aspectos, há também
a impossibilidade de o melancólico relacionar-se autenticamente com outro como
indivíduo, pois estas experiências são mediadas pelo corpo e pela afetividade que são
dois aspectos anestesiados na melancolia (LEITE; MOREIRA, 2009).
DICA
Acadêmico, a compreensão da angústia e do tempo estagnado na melancolia
pode ser visto através do filme Melancholia, escrito e dirigido por Lars Von
Trier. O filme, desde o seu início, lento, quase parado, gerando no espectador
a ideia de que as coisas estão “demorando muito para acontecer”. Justine é a
personagem que sofre de depressão, tendo consciência do peso que tem sido
carregar o próprio corpo e se relacionar com os demais, chega a pedir desculpa
por não ter acesso e expressão de afetividade. De maneira metafórica, o filme
mostra a chegada de um planeta fictício chamado Melancholia que iria colidir
com a terra e todos iriam, iminentemente, morrer. Assista ao trailer do filme
para aguçar seu interesse: https://www.youtube.com/watch?v=6IZGwvxhXvw.
Essa angústia na melancolia tem como base este não-poder muito mais do
que sentimento de culpa ou insegurança. A culpa pode estar presente no estado da
melancolia, assim como a tristeza, mas o ponto fulcral é a ausência de movimento,
é o não-poder (TATOSSIAN, 2006). O modo de ser-no-mundo na experiência da
depressividade no indivíduo melancólico passa pelos modos como consegue relacionar-
se com o corpo e com as representações de tempo e espaço. Visto que, há tanto o corpo
pesado, como um tempo vivido de maneira estagnada, como um espaço vazio, tudo isso
na impossibilidade de presença e encontro (LEITE; MOREIRA, 2009).
163
Consideramos o indivíduo a partir de múltiplos aspectos que compõem seu
momento presente; a história social e a história individual pregressa, as estruturas
sociais, a cultura, as vivências de tempos singulares, em detrimento de um pensamento
universalista da ciência tradicional. Assim, em termos fenomenológicos, a compreensão
da depressão se dá por vias que priorize o contato com a experiência vivida da pessoa
deprimida, compreendendo-o em sua forma total ao invés de recortada por sintomas
aparentes (LEITE; MOREIRA, 2009).
Não obstante, é imperativo que o processo terapêutico com essas pessoas parta
de um profundo respeito pelo tempo delas, de maneira permanente e paciente e, com
isso, a pessoa também pode reavaliar como leva seu próprio tempo (NOGUEIRA, 2017). É
na relação que a transformação se constrói, pois, é quando a pessoa se sente cuidada
que ela mesma se implica no seu processo de cura, descobrindo que tem possibilidades
de escolha que possam suportar a si mesmo e estabelecendo conexões de rede para
apoios de outrem.
3.2 ANSIEDADE
A ansiedade, em linhas gerais, representa uma dor ou a possibilidade de uma dor
que, muitas vezes, sinaliza mudanças que o organismo precisa realizar para continuar
seu crescimento. Atualmente, vivemos num contexto onde todos já sentimos, em menor
ou maior grau, algum nível de ansiedade, revelando a importância e a frequência dela
na sociedade atualmente. A ansiedade por ser um “problema” cada vez mais acentuado,
também revela uma sociedade que não consegue ficar com o desconforto. Pensar em
termos etiológicos, em fenomenologia, não costuma ser uma via que se recorre, uma
vez que não se considera ou se busca uma causa para um adoecimento existencial, pois
compreende-se o indivíduo para além de seus aspectos mentais e que, caso surja um
adoecimento, ele foi um desenvolvimento dado a partir do contexto e do contexto entre
indivíduo e meio.
Por outro lado, a ansiedade neurótica vai implicar outras mobilizações energéticas
sendo sempre desproporcional ao perigo objetivo, envolvendo repressão dos desejos e
sendo gerida através de mecanismos neuróticos para dar conta da realidade. Contudo,
esta é uma visão objetiva da ansiedade. Se formos olhar a partir da perspectiva da pessoa
que está em sofrimento, a reação vai ser proporcional à ameaça subjetiva vivida naquele
momento. Assim, a dificuldade da pessoa encontra-se inteiramente no plano subjetivo,
pois precisa lidar com ameaças que também o são (MAY, 1977).
165
Por estas vias, já sabemos que a ansiedade é algo que todos nós, seres humanos,
temos. Qual a diferença entre uma ansiedade normal e uma ansiedade patológica?
Qual a diferença entre ansiedade e medo, considerando que os dois fenômenos são
similares? Um dos pontos dessa diferenciação é o fato de que a ansiedade está baseada
numa fantasia de futuro, enquanto o medo corresponde ao momento presente, a algo
que representa o aqui e o agora. Além disso, no medo há clareza de qual perigo está
impresso no meio e como podem e devem ser removidos. Assim, o medo é carregado de
ação, pois há clareza do que ocorre no meio (BRITO, 2021). Por outro lado, na ansiedade
há paralização, sendo a opção mais comum a fuga do conflito, a fuga do risco, a fuga do
contato com a novidade, o que é muitas vezes o que o corpo está pedindo através do
desconforto gerado pela ansiedade.
Quando isso tudo gera sofrimento ao indivíduo ele sente isso de maneira muito
intensa e fatal, mas ainda assim escolhe a ansiedade como estratégia de defesa, pois
nem sempre se consegue, com facilidade, a harmonia entre o que vive e o que se pensa.
Assim, há seis critérios que podem guiar o olhar quando se pensa em ansiedade sob
uma perspectiva fenomenológica, a saber: a) relações interpessoais; b) temporalidade;
c) espacialidade; d) corporeidade; e) dar-se conta e; f) vida afetiva (BRITO, 2021).
166
de controle e a dificuldade em relaxar e descarregar o que for preciso para manter o
organismo em equilíbrio. Não obstante, muitas pessoas tem dificuldade em reconhecer
o que acontece com o próprio corpo, pois o corpo não é mais espontâneo, não há
contato com as próprias demandas e necessidades (BRITO, 2021).
Por essas vias, é muito recorrente que, em casos de ansiedade, a pessoa tenda
a renunciar à própria liberdade a fim de minimizar os efeitos da ansiedade e, assim,
apegam-se às tendências de dogmas e moralidades, o que geralmente é pouco
autêntico e não corresponde à necessidade de suas próprias demandas (BRITO, 2021).
A isso soma-se a ideia de obediência acrítica, que é muito comum nos tempos que
correm, ligada às religiões ou autoritarismo. Contudo, etimologicamente, obedecer
está relacionado com ouvir com atenção o que o outro diz e, desse modo, é possível
colocarmos a obediência não apenas num lugar de opressão, mas também num lugar
que dialogue com a liberdade e dê mais recursos para lidar com a ansiedade. Nesse
sentido, uma obediência saudável oferece espaço para a desobediência.
Assim, aqueles que optam por abrir mão de sua autonomia, não escolhendo
o que sua existência necessita, mas terceirizando esta escolha em nome de regras
impostas por si ou pelo meio, tendem a experimentar a ansiedade que revela,
precisamente, esse conflito entre o que se deseja e o que se escolhe. Assim, abdicando
da autonomia, há três possibilidades geradoras de ansiedade patológica: o cálculo de
riscos, a conformidade cega ou a revolta (BRITO, 2021).
167
O primeiro, o cálculo de riscos é uma forma de desobedecer nas escuras, como
quem confia que ninguém estará olhando, por exemplo, dirigir acima da velocidade
permitida ou passar no sinal vermelho. Brito (2021) compartilha a experiência de um
atendimento a um cliente, um homem com 50 anos, que relatava que estava cansado
em esconder sua homossexualidade. Este homem era casado, pais de duas meninas,
gostava da sua família, mas se sentia sempre vivendo uma vida dupla, considerando
que já reconhecia onde e como sentia prazer, reconhecia qual era a demanda que fazia
sentido para a sua existência. Assim, esse cliente escolhia sempre a via de cálculo de
riscos que envolvia, neste caso, as traições, ida às saunas, utilização de aplicativos de
encontros, entre outros. Além disso, o que se percebeu no processo terapêutico foi o
fato de que esta atitude de cálculo de riscos ocorria em diversas áreas da sua vida,
numa postura de quem prefere agradar e obedecer a uma figura de autoridade que,
neste caso, era o seu pai.
168
Atualmente, a ansiedade patológica tem um lugar na classificação diagnóstica
dos transtornos e manuais psiquiátricos, sendo conhecida como um transtorno de
ansiedade. A prevalência dos transtornos de ansiedade tem crescido cada vez mais.
Atrelado a este dado, temos uma sociedade que tem muitas dificuldades em lidar com
o sofrimento, recorrendo ao uso medicamentoso para problemas que são contextuais
(SOUSA; WURLITZER; MOREIRA, 2021).
169
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
170
AUTOATIVIDADE
1 Eugenè Minkowski é um dos principais nomes para pensarmos na psicopatologia
de base fenomenológica. Sobre os conceitos e abordagens deste autor, assinale a
alternativa CORRETA:
a) ( ) F – F – V – V.
b) ( ) F – V – V – V.
c) ( ) V – F – V – V.
d) ( ) V – V – V – V.
171
5 A ansiedade relaciona-se com a ideia de liberdade e autonomia do sujeito e como ele
é capaz de manejá-las para alcançar as demandas que o organismo e o ambiente
exigem. Sobre a ansiedade, assinale apenas a opção correta:
172
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
REPERCUSÕES DO CAPITALISMO NA
PRODUÇÃO DO SOFRIMENTO HUMANO
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, como já discutimos anteriormente, a fenomenologia versa-se
sobre conceitos como verdade, evidência, intuição, interpretação, representação,
dentre outros. Além disso, a fenomenologia compreende o sujeito como um ser-no-
mundo tanto em termos de corpo, como de sociedade e de cultura, portanto, é crítica
ao objetivismo e o cientificismo (BELLO, 2017). Desse modo, a fenomenologia já surge
como crítica ao modelo capitalista de se relacionar com o mundo, considerando que
este sustenta-se na razão e nos conhecimentos técnicos-científicos, prezando sempre
por uma objetividade.
A psicologia, nesse sentido, nasce e cresce embebida desse cenário oriundo das
ciências naturais, enfatizando o viés físico e biológico dos fenômenos e alinhando-se,
num primeiro momento, ao método experimental elaborado em laboratórios, afastando-
se do mundo da vida, do sensível e da filosofia. Dito de outra forma, ciência que preza
pelo saber técnico-científico, sendo uma das bases do pensamento capitalista e a
psicologia, estando neste bojo de conhecimentos científicos à serviço do sistema.
173
2 CAPITALISMO – REALISMO E FANTASIAS FIXADAS
O capitalismo é o sistema financeiro atual onde, em sua base, está a geração
e subsequente apropriação das mais diversas crises, seja ela econômica, social ou de
subjetividade em tempos de aceleração e excesso. Vivemos numa época de elogio ao
excesso, à razão, ao técnico-científico, ao artificializado, o que, em essência são ótimo
ingredientes para formar uma crise (BORBA, 2015). Não obstante, haja no capitalismo
um bojo de artifícios que geram tensões, há também caminhos onde o indivíduo tenha
a sensação de que está burlando esta crise, seja por meio de livros de autoajuda, seja
pelo uso de medicação, procurando acalmar suas angústias (BORBA, 2015). Em outras
palavras, o capitalismo cria condições para o sofrimento e consegue lucrar com meios
para burlar este sofrimento.
Em seu livro Realismo Capitalista, Mark Fisher (2020) aponta que, apesar desse
termo ter sua origem na pop art alemã, pelo contrário, agora se apresenta de forma muito
mais expansiva e ampla, que penetra em nosso cotidiano e em nossa subjetividade,
nossa socialização, nossa saúde e, no limite, também nosso adoecimento. O realismo
do capitalismo, na perspectiva de Fisher, diz respeito, na verdade, a uma sensação de
beco sem saída, onde não cabe nenhuma esperança e qualquer fiapo que surja pode ser
apenas uma representação de mais uma ilusão perigosa.
174
Figura 3 – Capa do filme A Coisa
Fonte: https://www.itapemafm.com.br/filme-o-enigma-do-outro-mundo-ganhara-reboot-com-
aval-de-john-carpenter. Acesso em: 10 out. 2022.
Assim, o capitalismo, embora seja visto como essa figura quase de outro
planeta, acaba por se colocar na vida e nas subjetividades de maneira decisiva e alocar
para si mesmo os pensamentos que se dizem anticapitalistas. Desse modo, tal como
coloca Fisher (2020), é mais fácil acreditarmos no fim do mundo do que conceber o fim
do capitalismo, e, expressamente, isso representa como lidamos com esse sistema
que faz com que nossos horizontes de futuro estejam sempre comprometidos com a
lógica capitalista.
175
Figura 4 – Wall-E
176
expressivo crescimento e relevância na nossa forma de vida atual. Com uma perspectiva
crítica sobre o contexto atual das doenças e dos sofrimentos emocionais, não se duvida
de que haja uma instância neurológica, mas o que se questiona é a atribuição a isso
apenas como sua causa.
É óbvio que toda doença mental tem uma instância neurológica, mas
isso não diz nada sobre a sua causa. Se é verdade que a depressão
é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda resta a
ser explicado são as razões pelas quais indivíduos em específico
apresentam tais níveis, o que requereria uma explicação político-
social (FISHER, 2020, p. 36).
177
O ponto diz respeito, justamente, ao fato de Adolf Eichman representar um
homem comum, burocrático e técnico que cumpre apenas suas funções que são
determinadas por ordens que vem de seus superiores. Não se tratava, portanto, de
homem monstruoso e maquiavélico, cheio de planos para como matar ou aniquilar
pessoas. Nesse sentido, não se tratava de estupidez, mas de irreflexão. O desejo de
ascensão profissional fazia com Eichman apenas cumprisse o que fosse ordenado sem
questionar e sem se responsabilizar.
DICA
A obra de Hannah Arendt intitulada “Eichmann em Jerusalém” acompanha o julgamento do
nazista, pós segunda guerra mundial e a autora realiza uma análise, para, além de atribuir
adjetivos pejorativos e colocar o indivíduo sob a marca do mal, contextualizar como mesmo
esta dita maldade foi banazalida em nome de burocracias do sistema, em nome de obedecer
às autoridades. Assim, ao passo de compreendermos os contextos em que surgem os
fenômenos, também devemos observar e estimular, em nós e nos outros, a responsabilidade
com o mundo.
Eichmann em Jerusalém
Fonte: https://www.seboterapia.com.br/eichmann-em-jerusalem-
hannah-arendt. Acesso em: 10 out. 2022.
179
Se, por um lado, é necessário que os indivíduos, em sociedade, responsabilizem-
se pelas consequências de seus atos, por outro lado, numa instância psicológica,
podemos pensar nesses atos como uma forma de resistência do sujeito frente à exigência
capitalista que está sempre a nos atormentar num convite incessante para que sejamos
sujeitos consumidores em detrimentos de nossos reais excitamentos, identificações,
identidades e desejos (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014).
Não obstante, esta banalização das próprias demandas pode ser percebida
como uma forma de ajustamento criador, considerando o que seria possível e o que
estaria disponível no contexto do sujeito sob a égide do outro capitalista (MÜLLER-
GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014). Nesse sentido, o sujeito encontra-se
sob uma espécie de pressão onde não consegue satisfazer as expectativas desse
outro capitalista, pois, neste caso, as demandas jamais cessam e, ao mesmo tempo,
também o indivíduo não dá conta de acessar quais são os seus próprios desejos, uma
vez que está “atolado” pelas demandas frequêntes e efêmeras impostas pelo sistema
capitalista (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014). É por isso que essas
banalidades das demandas podem servir como forma de resistência, uma vez que a
possibilidade encontrada é a fuga do conflito, é a alienação a partir do consumo de
massa, transformando a si mesmo em mercadoria também.
Desse modo, a partir das estratégias de redução de danos, há uma via contrária
às linhas terapêuticas que exigem a abstinência como única forma de tratamento, pois
esta perspectiva pode obliterar a compreensão do terapeuta sobre o contexto do sujeito
e pode, desde o início, impor ao paciente a retirada da única estratégia que ele conseguiu
encontrar em meio ao caos (SOUZA, 2019). Assim, no caso de banalizações relacionadas a
180
transtornos alimentares ou formações disruptivas, a estratégia de intervenção do clínico
pode consistir em encorajar esse sujeito a lidar com suas demandas reais. Por exemplo,
“[...] a anorexia (em que o sujeito despreza a família, a comunidade e a sociedade sem
precisar se posicionar) e a bulimia (em que o sujeito se posiciona de maneira tal que
ninguém possa saber)” podem ser trabalhadas no sentido do sujeito autorizar-se a sentir
e expressar seus afetos contra esse “outro social” que muitas vezes é representado por
alguém da família.
181
a produção de discursos científicos quando para a abertura de um espaço que produz
subjetividades, onde os sujeitos são realocados para determinadas formas dependendo
da forma como expressa seu comportamento, estando sob a égide da “anormalidade”.
ATENÇÃO
Acadêmico, você sabe a diferença entre medicalização e medicação? Quando
criticamos a ideia de medicalização nos referimentos ao uso em excesso de
algumas substâncias, sobretudo psicofármacos, para sanar dores emocionais
que não são reconhecidas como um quadro de alguma doença. E a medicação
trata-se do procedimento necessário a quem precisa desta utilização devido
aos sintomas apresentados, ou seja, medicar é necessário, medicalização é o
excessivo e patologizante.
182
Nesse interim, diversas áreas contribuem para a difusão dessas práticas,
além da medicina, como a psiquiatria, a psicologia e a pedagogia, que produzem
conhecimentos e práticas que revelam um julgamento moral sobre modos de ser e de
aprender que estejam aquém daqueles determinados por manuais e classificações, ou
seja, é, efetivamente, o modo como o indivíduo se expressa, se apresenta, se veste,
anda, com quem anda, como fala e como se comporta, além da forma como se dá
seu processo de aprendizagem, como constrói relações, qual o seu ritmo e quais as
suas potencialidades, que está em jogo. Não se trata, portanto, apenas de atributos ou
explicações hereditárias ou genéticas, mas numa via contrária, busca-se explicações
de ordens biológicas para legitimar um discurso e uma prática que está voltada,
essencialmente, para como o sujeito se apresenta e se relaciona com o mundo.
DICA
O alienista
Fonte: https://www.adegustadora.com.br/produtos/produtos/
livros/oalienista/x4y8d8wbz312.jpg. Acesso em: 10 out. 2022.
184
O livro “O Alienista”, de Machado de Assis (2005), conta a história do Dr. Simão Bacamarte
que passou estudar as ciências médica, “o recanto psíquico, o exame de patologia cerebal”
(p.1), fundou na cidade de Itaguaí, a Casa Verde, para o “recolhimento dos loucos”. O Dr.
Bacamarte chegou ao tal ponto de suas análises que em uma data altura da história mais da
metade da população da cidade estava enclausurada por não estar de acordo com algum
padrão estabelecido pelo próprio médico ou pelos manuais que ele seguia. Em um tom
crítico, a história coloca em questão a medicalização, a patologização, o internamento e as
teorias cientificistas. Em um afã de buscar uma personalidade sem nenhum desvio, baseado
num ideal de perfeição, o Dr. Bacamarte descobriu que esta seria uma impossibilidade e que
talvez, portanto, o louco fosse ele próprio.
185
em um sujeito mais próximo possível da norma. O processo de
medicalização acalma conflitos. Se o suposto problema está no
aluno, ninguém tem culpa da sua doença. O discurso direcionado ao
aluno comumente sintetiza: não é caso para o pedagógico, mas para
a saúde (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015, p. 1088).
186
Este método desconsidera que uma atividade é ensinada e transmitida por um
grupo social e isso representa uma série de valores históricos e políticos de determinado
grupo, o que é essencialmente um valor de classe. Por esta via, “ao assumir que as
expressões das classes sociais privilegiadas são as superiores, as corretas, o que se
está assumindo é uma determinada concepção de sociedade e de homem, fundada
na desigualdade e no poder, em que alguns homens são superiores a outros, algumas
raças são superiores a outras” (MOYSÉS, COLLARES, 2013, p. 65).
187
2013). A dopamina é um neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Assim,
este medicamento “libera” índices muito altos de dopamina de uma única vez por efeito
do medicamento, podendo ocorrer, por isso, uma dessensibilização em situações do
cotidiano que poderiam gerar prazer (MOYSÉS; COLLARES, 2013), como interações
sociais, afetos e, no caso das crianças, brincadeiras. Neste quadro, a sensação de bem-
estar e prazer está condicionada ao efeito do medicamento em um quadro de transtorno
que nem mesmo apresenta uma etiologia.
188
como a área está. Os pesquisadores analisaram cerca de dez mil pesquisas sobre
o tratamento de TDAH e destas apenas doze (12) foram de fato somada ao corpus,
pois todas as outras não apresentavam dados científicos coerentes ou satisfatórios
(MOYSÉS; COLLARES 2013).
Assim, devemos refletir sobre nossas práticas, para que não sejam tão
apressadamente classificatórias nem busquem tão facilmente causas e explicações
necessariamente biológicas para os modos de ser que talvez não compreendamos. A
aprendizagem e o comportamento podem se apresentar e se desenvolver de formas
vastamente diversas e complexas. Com um cenário de excesso de diagnósticos que
limitam tanto a aprendizagem quanto o comportamento, e apenas um modo de ser e
desenvolver-se, as crianças e os adolescentes são especialmente afetados, justamente,
por comporem uma fase da vida onde, nas sociedades contemporâneas, se busca, cada
vez mais, padronizar, normatizar, homogeneizar e patologizar.
Além disso, essa forma compulsória de tratar os diferentes afetos que sentimos,
no limite, também despolitiza as discussões necessárias no bojo do capitalismo que
tende a racionalizar e a biologizar problemas que são, em essência, sociais. Desse modo,
quando se promete ao indivíduo um estado de harmonia e equilíbrio constantes, apenas
tranquilidade e nunca conflito, apenas controle e organização e nunca imprevisto, há
uma desumanização, há uma aproximação com a ideia e a expectativa que temos em
relação aos robôs (BELMINO, 2020). “Se, em algum passado recente, existiam literaturas
nas quais os robôs queriam ter sentimentos e se tornar humanos, hoje os humanos
querem seus sentimentos mais adequadamente adaptados” (BELMINO, 2020, p. 231).
189
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• Uma forma de ajustamento que se encaixa na lógica capitalista que tudo suga e
reaproveita é a partir da banalização de si.
• Banalização das próprias demandas pode ser percebida como uma forma de
ajustamento criador.
190
AUTOATIVIDADE
1 O livro “O Alienista”, de Machado de Assis, conta a história do Dr. Bacamarte, que
interna mais de cinquenta por cento da população da cidade, pois percebia em todos
um nível de desvio de personalidade, considerando todos anormais. Esta perspectiva
de compreender a vida e a saúde está relacionada com:
2 Ivan Illich, no livro A Expropriação da Saúde foi quem cunhou o termo “medicalização
da vida” onde, nesta mesma obra, descreve alguns exemplos de consequência da
medicalização da vida. Sobre o tema, classifique V para as sentenças verdadeiras e F
para as falsas:
191
4 O Transtorno de Déficit de Atenção / Hiperatividade tem sido um dos mais
diagnosticados no brasil na última década. Para o TDAH há o tratamento
farmacológico que, predominantemente, trata-se do metilfenidato. Descreva sobre
este medicamento, efeitos, tempo de duração, para que é utilizado e quais as
problemáticas em volta do seu uso.
192
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E GRUPOS
SOCIAIS ESPECÍFICOS: OLHARES
INTERSECCIONAIS
1 INTRODUÇÃO
Para a construção de uma práxis psicológica crítica que compreende a
complexidade das relações sociais e seus impactos na produção do sofrimento
psicológico e no desenvolvimento de transtornos mentais, faz-se necessário uma leitura
da realidade social apoiada em diferentes áreas do conhecimento, para ultrapassar uma
postura biomédica do sofrimento psicológico e adentrar uma perspectiva holística e
que compreende o ser humano em sua totalidade, conforme proposto pelas teorias
alicerçadas nas abordagens fenomenológicas existenciais humanistas.
193
Hooks (2019), pobreza, racismo e gênero criam lugares de exclusão social por razões
e de formas diferentes e, tendo em vista as diferenciadas formas de opressão, se faz
necessário identificá-las e nomeá-las a fim de se traçar planos políticos que atendam às
necessidades de cada grupo social a partir de suas especificidades.
194
A exclusão passando a ser vista como causadora de sofrimento
abre possibilidades de intervenção, o que significa aceitar que
cada sujeito possui capacidades de criar novas possibilidades para
sua vida. O que se quer propor são práticas baseadas no trabalho
coletivo, com corresponsabilidades, de forma compartilhada com
outros profissionais, incluindo a família e pessoas da comunidade
dos sujeitos. Compreender e identificar o sofrimento permite analisar
as formas sutis de espoliação humana por trás da aparência de
uma sociedade integrada. Portanto, para entender como se dão
as práticas de exclusão e criar novas formas de intervenção nas
práticas de produção de saúde e inclusão social é de fundamental
importância compreender que as desigualdades sociais são
construídas historicamente por uma sociedade, produzindo a
injustiça e a exploração.
Por fim, reconhecer e visibilizar que as dinâmicas das relações sociais pautadas
em lógicas colonizadoras que imprimem relações de poder e definem grupos passíveis
de exploração e exclusão, é comprometer-se com uma postura profissional que rompe
com o processo de desumanização que produz sofrimento psicológico e culmina no
desenvolvimento de transtornos mentais.
[...] não nos é recomendado tapar os olhos para evitar ver o que nos
inquietaria ao olharmos, mas, ao contrário disso, lançarmo-nos na
aventura do encontro na fronteira, apostando na premissa gestáltica
do encontro com a diferença que é o melhor modo de combater a
polarização e a invisibilização.
195
forma primária de dar significado às relações de poder. Esses conceitos normativos são
expressos nas práticas educativas, nas concepções científicas, nas doutrinas religiosas,
nos posicionamentos políticos, nas condutas jurídicas, as quais são atravessadas pela
oposição binária fixa que determina de maneira categórica o significado de homem e
mulher. Ainda segundo a autora (1995, p. 92),
IMPORTANTE
Para aprofundar os conhecimentos sobre as relações de gênero e a divi-
são sexual do trabalho, dentre outros temas que abarcam as experiên-
cias das mulheres no Brasil, indicamos o curso Feminismo e Democracia
conduzido pela cientista política, professora e pesquisadora da Universi-
dade de Brasília (UnB) Flávia Biroli. Acesse em: https://www.youtube.com/
watch?v=vkTD-ddwhlQ.
196
de agenciamento das mulheres colonizadas. Chamo a análise da
opressão de gênero racializada capitalista de "colonialidade do
gênero". Chamo a possibilidade de superar a colonialidade do gênero
de "feminismo descolonial" (LUGONES, 2014, p. 940-941).
197
O racismo, por sua vez, também imprime marcas profundas na experiência
de vida das pessoas racializadas. Além de consistirem os grupos sociais mais
empobrecidos do país, pessoas negras e originárias de povos indígenas sofrem com
a exclusão social, que atravessa desde o acesso à educação e à saúde que considere
e valorize suas singularidades e práticas tradicionais, ainda encontram desafios no
acesso ao mercado de trabalho, e, consequentemente, condições justas de vida
material. Como afirma Arrelias (2020, p. 106-107),
IMPORTANTE
Entenda um pouco mais sobre racismo estrutural e seus impactos para a
população negra no Brasil. Acesse em:
https://www.youtube.com/watch?v=lryL8ZAMq-E.
https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU.
198
INTERESSANTE
No documentário Sobre vivências, pessoas da comunidade LGBTQIAP+
compartilham histórias de vidas atravessadas pela experiência do preconceito
em virtude de seus gêneros e sexualidades, e os impactos em sua saúde
mental. Acesse em: https://www.youtube.com/watch?v=3HpfRWEYVqM.
INTERESSANTE
A série Ser Brasil – Migrantes e Refugiados apresenta as histórias, os
trabalhos e os sonhos de pessoas migrantes e refugiadas que buscaram
uma nova vida no Brasil. São nove episódios que contam as histórias de
pessoas venezuelanas, sírias, haitianas, bolivianas e peruanas, e os desafios
enfrentados para acessar o mercado de trabalho. Acesse em: https://www.
youtube.com/watch?v=DSycF8o_xFA.
199
processo de desumanização e coisificação do outro, relegando-o ao não lugar, ao não
pertencimento, e a todo o processo de sofrimento de não ser percebido como gente,
ao ser legitimada a exploração, violência e exclusão desses corpos. Como afirma Gimbo
(2020, p. 38),
200
LEITURA
COMPLEMENTAR
REFLEXÕES DA CLÍNICA GESTÁLTICA SOBRE RELAÇÕES RACIAIS
Lívia Arrelias
201
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o
resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma
humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse
chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção
de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, que
guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos (KRENAK,
2019, p. 11).
202
Dessa forma, gestalticamente falando, é possível refletir sobre os lugares
socialmente percebidos e ideologicamente construídos de corpos racializados. Uma
vez que “o corpo está ligado intencionalmente ao mundo e é parte fundamental para a
‘aparição’ do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 205), a existência hierarquizada só faz
sentido e se mantém porque visibilizada e naturalizada a partir do olhar e da estética
de quem a institui – o corpo branco. Os impedimentos institucionalizados de pessoas
negras e indígenas de narrarem a si, de se apossarem de suas vozes e estéticas permite
a manutenção de inscrições sociais desses corpos a partir do olhar colonizador branco.
E é neste jogo social fortemente racializado que se mantêm as violências e políticas de
morte, determinando quem pode viver e em que circunstâncias, e quem deve morrer
sem causar comoção. [...]
203
[...] nos dispormos como suporte e ajuda ao outro em questões tão
íntimas e delicadas quanto as nossas próprias vicissitudes; com
a possibilidade de utilizar a palavra falada, a escuta respeitosa e
acolhedora para fazer da relação psicoterapêutica um campo seguro
para que o cliente expresse-se e experimente-se em suas formas
de ser-no-mundo; a inclusão de nossa subjetividade para, também
a partir dela, empreender intervenções geradas naquilo que nos
atravessa, em termos de afetos, sensações e saber técnico a respeito
do contato com o cliente, transformando esses elementos em
perguntas e apontamentos que visam a ampliar o olhar e a percepção
deste sobre si, sobre suas escolhas (MENEZES, 2017, p. 143).
Para Hycner (1988, p. 22), uma psicoterapia dialógica “se refere ao fato de
que a existência humana, em seu nível mais fundamental é inerentemente relacional”,
e o racismo, a misoginia e a transfobia potencializam essa violência que impede ou
dificulta o reconhecimento de alteridades e, nesse sentido, de existências fora da
norma branca cisgênero.
204
Segundo Lewin, o comportamento não depende nem do passado, nem do futuro,
mas, do campo presente (LEWIN, 1965). Nesse sentido, os lugares sociais de privilégio
(brancos) e de violência (negros e indígenas) vivenciados no momento presente são
estruturados enquanto formas de contato possíveis em uma sociedade que se nega a
reconhecer e a resolver seus problemas com o racismo. E, assim, compartilhamos de
um fundo comum generalizado que nos atravessa de formas muito singulares, mas que
impede de nos constituirmos como seres plenos – estabelecendo contatos vigorosos
e com reconhecimento e validação de alteridades, de criação de possibilidades outras
(SILVA; BAPTISTA; ALVIM, 2015).
205
emerge espontaneamente apresentará outra configuração. A possibilidade de a pessoa
negra ou indígena ser acolhida e validada diante de corpos brancos e embranquecidos,
portanto, exigirá um posicionamento há muito negligenciado desde a formação em
Psicologia, e isso também precisa ser levado em consideração no trabalho clínico.
206
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
207
AUTOATIVIDADE
1 Os estudos interseccionais e decoloniais imprimem significativas contribuições para
uma visão ampla, histórica e contextualizada das relações sociais e das relações
de poder. Os estudos decoloniais buscam compreender como essas diferenças
sociais foram historicamente construídas como fruto do colonialismo. A partir do
que foi discutido anteriormente, assinale a alternativa CORRETA em relação a divisão
conceitual da colonialidade:
208
( ) Apesar de não consistirem em grupos sociais mais empobrecido do país, pessoas
negras e originárias de povos indígenas sofrem com a exclusão social que atravessa
desde o acesso à educação e à saúde que considere e valorize suas singularidades e
práticas tradicionais, ainda encontram desafios no acesso ao mercado de trabalho.
( ) O gênero é um organizador chave da globalização neoliberal, consistindo em um dos
eixos centrais que organiza a experiência no mundo social, sendo que os impactos
dessas relações estabelecidas não estão restritos às mulheres, e, inclusive, não
sendo possível compreender as mulheres dentro de uma categoria homogênea.
( ) Para compreender os impactos no processo de acolhimento das pessoas migrantes
e refugiadas a partir do país de origem e de destino, não há necessidade de distinção
entre pessoas que migram dos países do norte global, em relação às migrantes do
sul global.
( ) A comunidade LGBTQIAP+ sofre de violências simbólicas e reais, que impede uma
expressão livre e autêntica desse grupo social. Em um dos países que mais mata
pessoas LGBTQIAP+ no mundo, o sofrimento de se reconhecer pessoa LGBTQIAP+
transcende a aceitabilidade social, e adentra o temor em perder a própria vida.
209
REFERÊNCIAS
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T. Redução de Danos: conceitos e práticas. São Paulo: UNIVESP, 2019.
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