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Teorias

Psicológicas:
Existencialismo

Prof.ª Elis Moura Marques


Prof.ª Nislândia Santos Evangelista

Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Elis Moura Marques
Prof.ª Nislândia Santos Evangelista

Copyright © UNIASSELVI 2022

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI.


Núcleo de Educação a Distância. MARQUES, ELIS MOURA.

Disciplina: Teorias Psicológicas: Existencialismo. Elis Moura Marques;


Nislândia Santos Evangelista. Indaial - SC: UNIASSELVI, 2022.

213p.

ISBN Digital 978-65-5466-165-2

“Graduação - EaD”.
1. Teoria 2. Psicologia 3. Existencialismo

CDD 150
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao livro de Teorias Psicológicas: Existencialis-
mo. O conteúdo está dividido em três Unidades, nas quais veremos a base do existen-
cialismo, dialogando com a fenomenologia e a teoria humanista.

Assim, na Unidade 1 “Fundamentos Básicos da Fenomenologia, do Existencia-


lismo e do Humanismo” vamos ver, no Tópico 1, alguns conceitos sobre a fenomenologia
de Husserl, pioneiro na abordagem, a fenomenologia da experiência, do sensível e do
poético, de Merleau-Ponty; e a fenomenologia relacional e do diálogo de Buber. No Tó-
pico 2, veremos alguns conceitos e panoramas gerais, como contexto de surgimento e
alguns autores que representam o existencialismo, dialogando e aproximando com o
diálogo à psicologia. Por último, no Tópico 3, será abordado sobre os conceitos básicos
e os principais autores da corrente humanista, abordando o ser humano a partir de uma
de totalidade e integridade e compreendendo que a condição humana é limitada pela
relação do eu-corpo/outro/mundo, porém tal fato não destitui a liberdade e autonomia.

Na Unidade 2, “Práticas Clínicas de Abordagem Fenomenológica, Existencial e


Humanista: teorias e conceitos básicos”, vamos abordar sobre três abordagens terapêu-
ticas alicerçadas nas teorias fenomenológicas existenciais humanistas. Assim, no Tópi-
co 1, veremos sobre a logoterapia, abordando tanto a vida quando a obra de Viktor Frankl
e também no que diz respeito à análise existencial. No Tópico 2 veremos as discussões
apresentadas por Carl Rogers em sua abordagem centrada na pessoa, o que é um dos
cânones quando pensamos em abordagem humanista na psicologia. Para encerrar esta
Unidade, no Tópico 3 abordaremos sobre o contexto de surgimento e alguns conceitos
básicos da Gestalt-terapia que tem como base as correntes fenomenológicas, existen-
ciais e humanistas.

Na Unidade 3, “Olhares Fenomenológicos Existenciais e Humanistas sobre o So-


frimentos Contemporâneos”, abordando a relação entre as complexidades da atualidade
e a construção de nossa subjetividade. Assim, no Tópico 1 abordaremos sobre transtornos
mentais e expressões do sofrimento humano abordando alguns teóricos que versam so-
bre psicopatologia dentro de uma perspectiva fenomenológica, tirando o foco do sintoma
e colocando no fenômeno, sobretudo Minkowski e Tatossian que são dois representantes
desta discussão. No Tópico 2 veremos sobre algumas repercursões do capitalismo no so-
frimento e a relação destes contextos acelerados e com excesso de positividade, e como
isto recai nos nossos ajustamentos e quais os caminhos comuns e, no entanto, perigosos
a se seguir para “dar conta de tudo”. No Tópico 3, para fecharmos nossa jornada nesta
disciplina, abordaremos alguns olhares interseccionais sobre o sofrimento humano, em
termos de contextos migratórios e discussões de gênero. Bons estudos!

Prof.ª Elis Moura Marques


Prof.ª Nislândia Santos Evangelista
GIO
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No livro didático, você encontrará blocos com informações


adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
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poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
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texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
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acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com
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verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos,
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SUMÁRIO
UNIDADE 1 - FUNDAMENTOS BÁSICOS DA FENOMENOLOGIA, DO
EXISTENCIALISMO E DO HUMANISMO.................................................................................. 1

TÓPICO 1 - FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA FENOMENOLOGIA......................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 FENOMENOLOGIA EM EDMUND HUSSERL.........................................................................4
2.1 O MÉTODO FENOMENOLÓGICO........................................................................................................... 5
2.2 INTENCIONALIDADE.............................................................................................................................8
2.3 O TEMPO................................................................................................................................................ 10
2.4 FENOMENOLOGIA E PSICOLOGIA..................................................................................................... 11
3 A EXPERIÊNCIA FENOMENOLÓGICA EM MEARLEAU-PONTY.........................................11
4 EU-TU-PSICOLOGIA.......................................................................................................... 18
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................... 23
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 25

TÓPICO 2 - FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DO EXISTENCIALISMO..................27


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................27
2 SØREN A. KIERKEGAARD – O EXISTENCIALISMO CRISTÃO.......................................... 28
2.1 OS ESTÁGIOS DA EXISTÊNCIA...........................................................................................................29
3 FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER.......................................................... 30
4 SARTRE – O EXISTENCIALISMO ATEU............................................................................ 33
5 SIMONE DE BEAUVOIR – EXISTENCIALISMO E FEMINISMO.......................................... 36
6 A PSICOLOGIA EXISTENCIAL........................................................................................... 40
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 42
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 43

TÓPICO 3 - FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DO HUMANISMO........................... 45


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 45
2 HUMANISMO..................................................................................................................... 45
3 PSICOLOGIA HUMANISTA................................................................................................ 46
3.1 PRECURSORES DA PSICOLOGIA HUMANISTA............................................................................. 48
3.1.1 Abraham Maslow (1908-1970)..................................................................................................49
3.1.2 Carl Rogers (1902-1987)............................................................................................................50
4 CONCEITOS E CONVERGÊNCIAS..................................................................................... 52
4.1 MOTIVAÇÃO HUMANA.........................................................................................................................53
4.2 CRESCIMENTO PSICOLÓGICO..........................................................................................................54
4.3 PESSOA EM FUNCIONAMENTO PLENO..........................................................................................55
LEITURA COMPLEMENTAR..................................................................................................57
RESUMO DO TÓPICO 3.......................................................................................................... 61
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 62

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 64

UNIDADE 2 — FUNDAMENTOS, TEORIAS E CONCEITOS DE PRÁTICAS CLÍNICAS...........67

TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA LOGOTERAPIA E


ANÁLISE EXISTENCIAL....................................................................................................... 69
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 69
2 A VIDA DE VIKTOR FRANKL E A CONSTRUÇÃO DA LOGOTERAPIA................................70
2.1 A EXPERIÊNCIA EM UM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO NAZISTA ...............................................71
3 UMA NOVA VISÃO ANTROPOLÓGICA................................................................................72
3.1 AUTOTRANSCENDÊNCIA.................................................................................................................... 73
3.2 AUTODISTANCIAMENTO..................................................................................................................... 73
4 LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL ........................................................................73
4.1 LIBERDADE DA VONTADE ................................................................................................................. 74
4.2 SENTIDO DA VIDA................................................................................................................................ 77
4.3 VONTADE DE SENTIDO ..................................................................................................................... 80
4.3.1 Neuroses...................................................................................................................................... 80
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................... 85
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 86

TÓPICO 2 - FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA ABORDAGEM CENTRADA


NA PESSOA (ACP).......................................................................................................................... 89
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 89
2 FASES DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA .......................................................... 90
2.1 FASE NÃO DIRETIVA (1940-1950).....................................................................................................90
2.2 FASE REFLEXIVA (1950-1957).......................................................................................................... 91
2.3 FASE EXPERIENCIAL (1957-1970).................................................................................................... 91
2.4 FASE COLETIVA OU INTER-HUMANA (1970-1987)......................................................................92
3 CONCEITOS CENTRAIS .................................................................................................... 93
3.1 ACEITAÇÃO POSITIVA INCONDICIONAL .........................................................................................94
3.2 COMPREENSÃO EMPÁTICA...............................................................................................................95
3.3 CONGRUÊNCIA.....................................................................................................................................96
4 ESTÁGIOS DO TORNAR-SE PESSOA.................................................................................97
4.1 PRIMEIRO ESTÁGIO..............................................................................................................................98
4.2 SEGUNDO ESTÁGIO.............................................................................................................................98
4.3 TERCEIRO ESTÁGIO.............................................................................................................................99
4.4 QUARTO ESTÁGIO..............................................................................................................................100
4.5 QUINTO ESTÁGIO................................................................................................................................101
4.6 SEXTO ESTÁGIO.................................................................................................................................102
4.7 SÉTIMO ESTÁGIO................................................................................................................................103
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................105
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................106

TÓPICO 3 - FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA GESTALT-TERAPIA................109


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................109
2 APRESENTANDO A GESTALT-TERAPIA E SEUS PERSONAGENS.................................109
3 DE ONDE A GESTALT-TERAPIA PARTE........................................................................... 113
4 COMPREENDENDO A GESTALT-TERAPIA: CONCEITOS BÁSICOS.................................117
4.1 TEORIA DO SELF.................................................................................................................................120
4.2 INTERRUPÇÕES DE CONTATO EM GESTALT-TERAPIA (NEUROSE)....................................... 123
5 GESTALT-TERAPIA EM DIMENSÕES CLÍNICAS.............................................................130
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................134
RESUMO DO TÓPICO 3....................................................................................................... 140
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................142

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 144
UNIDADE 3 — OLHARES FENOMENOLÓGICOS EXISTENCIAIS E HUMANISTAS
SOBRE OS SOFRIMENTOS CONTEMPORÂNEOS...........................................................................149

TÓPICO 1 — TRANSTORNOS MENTAIS E OUTRAS EXPRESSÕES DO


SOFRIMENTO PSICOLÓGICO.............................................................................................. 151
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 151
2 PSICOPATOLOGIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA..................152
2.1 EUGENÈ MINKOWSKI (1885 – 1972)................................................................................................ 154
2.2 ARTHUR TATOSSIAN (1929-1995).................................................................................................. 157
3 COMPREENSÃO FENOMENÓLOGICA DE TRANSTORNOS MENTAIS
CONTEMPORÂNEOS...........................................................................................................160
3.1 TRANSTORNOS DE HUMOR DEPRESSÃO.....................................................................................160
3.2 ANSIEDADE.........................................................................................................................................164
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................170
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................171

TÓPICO 2 - REPERCUSÕES DO CAPITALISMO NA PRODUÇÃO DO


SOFRIMENTO HUMANO...................................................................................................... 173
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 173
2 CAPITALISMO – REALISMO E FANTASIAS FIXADAS..................................................... 174
3 CAPITALISMO BANALIZA OS AJUSTAMENTOS............................................................. 177
4 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: SOMOS HUMANOS OU ROBÔS?........................................ 181
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................190
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 191

TÓPICO 3 - SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E GRUPOS SOCIAIS ESPECÍFICOS:


OLHARES INTERSECCIONAIS............................................................................................193
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................193
2 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS INTERSECCIONAIS E DECOLONIAIS PARA A
COMPREENSÃO DO SOFRIMENTO PSICOLÓGICO............................................................193
3 SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E GRUPOS SOCIAIS EM RISCO.......................................195
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................201
RESUMO DO TÓPICO 3....................................................................................................... 207
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 208

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................210
UNIDADE 1 -

FUNDAMENTOS BÁSICOS
DA FENOMENOLOGIA, DO
EXISTENCIALISMO E DO
HUMANISMO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender alguns conceitos básicos da fenomenologia;

• identificar alguns conceitos básicos do existencialismo;

• compreender alguns conceitos básicos do humanismo;

• relacionar fenomenologia, existencialismo e humanismo com a psicologia.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA FENOMENOLOGIA


TÓPICO 2 – FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DO EXISTENCIALISMO
TÓPICO 3 – FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DO HUMANISMO

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UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS
BÁSICOS DA FENOMENOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
(Alberto Caeiro)

A fenomenologia é uma escola filosófica desenvolvida inicialmente na Alemanha


nos fins do século XIX e início do século XX. Edmund Husserl é denominado como seu
fundador ao lado de alguns outros nomes que também pensaram e contribuíram para
esta escola filosófica como Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty,
Emmanuel Lévinas, Paul Ricoeur, Jacques Derrida, dentre outros (ZAHAVI, 2019). Assim,
trata-se de uma área de grande relevância acadêmica e filosófica, pois influenciou uma
geração de pensadores seja de maneira alinhada ou crítica a ela.

Para isso, contudo, surgem outros questionamentos, tais como: o que é que se
mostra e como se mostra? Para pensarmos a partir de uma lógica fenomenológica, pode-
mos ter alguns direcionamentos, quais sejam (BELLO, 2017): a) a fenomenologia oferece
análises teóricas ligadas ao conhecimento e à ciência que são, em alguma medida, inova-
dores e críticos à lógica tradicional que imperava no momento do seu surgimento.

Ela versa-se sobre conceitos como verdade, evidência, intuição, interpretação,


representação, dentre outros; b) a fenomenologia compreende o sujeito como um ser-no-
mundo tanto em termos de corpo, como de sociedade e de cultura; c) a fenomenologia é
crítica ao objetivismo e o cientificismo; d) a fenomenologia tem influência em diferentes
áreas, como a estética, representações da loucura, relação mãe-filho.

Assim, nos debruçaremos sobre alguns autores e conceitos da fenomenologia,


fazendo o paralelo de como isto se aplica também à psicologia. Assim, estudaremos os
aspectos do fenômeno, do ser, do Dasein, da liberdade, pensando como isso é aplicável
no contexto da psicologia, sobretudo em manejos clínicos.

3
Ter um olhar nítido como um girassol, estar atento ao que se percebe, sabendo
que sempre há possibilidade sentir algo novo, tal como no poema do Alberto Caeiro
heterônimo de Fernando Pessoa. Ficar com o que se mostra, ver o que é passível de ser
visto enquanto se caminha pela estrada, ficando no presente sem negligenciar o passado.

2 FENOMENOLOGIA EM EDMUND HUSSERL


Edmund Husserl é o precursor da fenomenologia. Nascido na República Tche-
ca, filho de abastados comerciantes judeus e convertido ao cristianismo, começou
seus estudos na área da matemática e fez história em seu trabalho na filosofia. Sua
trajetória na filosofia foi muito influenciada por Franz Brentano (1838-1917) e a sua
ideia de intencionalidade.

Figura 1 – FRANZ BRENTANO

Fonte: <https://bit.ly/3zigmfm>. Acesso em: 18 jul. 2022.

Em seus trabalhos iniciais, Sobre o Conceito de Número e Filosofia da


Aritmética, Husserl buscava a clarificação do conceito, ou seja, verificar as marcas que o
conceito designa. Desse modo, seus trabalhos iniciais voltavam-se para a investigação
do que é um número. A esta altura, Husserl recebeu críticas por subjetivar as noções
de matemática e de número, deixando-os demasiado abstratos. Isto o levou a tratar a
matemática não como fenômenos psíquicos ou físicos, mas um objeto ideal. Assim, um
questionamento cabal em Husserl consiste em: como um conhecimento é possível?
Isto, pois, ao buscar clarificar um fenômeno e retornar à base de origem de onde foram
abstraídos, descobre-se que a base já não é a mesma em termos psíquicos (BELO, 2017).

4
Quadro 1 – TRAJETÓRIA DE VIDA DE HUSSERL

CRONOLOGIA
1859 Nascimento de Edmundo Husserl em Prossnitz, na Morávia.
1876 Estuda matemática na Universidade de Leipzig, e dois anos depois, em Berlim.
1883 Obtém seu doutorado em Viena.
1884 Estuda Filosofia na Universidade de Viena.
Inicia atividades docentes na Universidade de Halle. Escreve Sobre o Conceito
1887
de Número. Converte-se ao Cristianismo.
1891 Publica o primeiro volume de Filosofia da Aritmética.
1890 Publica Estudos Psicológicos.
1900 Publica Investigações Lógicas.
1901 Ingressa na Universidade de Göttingen.
1913 Publica Ideias.
1916 Ingressa na Universidade de Freiburg.
1928 Aposenta-se da Universidade de Freiburg.
1929 Publica Lógica Formal e Transcendental.
Realiza Conferências na Sorbonne, depois publicadas com o título de
1930
Meditações Cartesianas.
Com a chegada dos nazistas ao poder, é perseguido por sua origem judaica e
1933
excluído da Universidade, mas prossegue em suas pesquisas.
1935 Realiza conferências em Viena e Praga.
1936 Escreve A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental.
1938 Morte de Edmund Husserl, em Freiburg.

Fonte: Adaptado de Moura (2009)

2.1 O MÉTODO FENOMENOLÓGICO


Méthodo, em grego, significa caminho. Desse modo, um método fenomenológico
é um caminho no qual há necessidade de percorrer, o que já é, em si mesmo, uma
característica da história da filosofia (BELO, 2017).

Quando nos referirmos ao método na fenomenologia, Husserl aponta duas


etapas, a saber: i. a busca do sentido dos fenômenos: a redução eidética; ii. Como o
sujeito busca o sentido: a redução transcendental (BELO, 2017).

Com relação à primeira etapa, ou seja, na busca por compreensão de sentido


das coisas, Husserl aponta que é a compreensão é muito importante, embora nem
todas as coisas sejam imediatamente compreensíveis (BELO, 2017). Nesse sentido, por
exemplo, importa mais o fato de existir do que o sentido do existir.

5
O que importa é o fato. Ocorre, porém, que isso leva a questionamentos sobre
o que seria um fato? É neste ponto que a fenomenologia se coloca de maneira crítica
ao pensamento hegemônico da época, o positivismo, que compreende como fatos as
coisas e os fenômenos que passem pelo crivo das ciências físicas e exatas. Considera-
se, contudo, que nem todas as coisas que existem podem estar sujeitas a validações
científicas objetivas.

Assim, no percurso fenomenológico, a intuição do sentido é o primeiro passo


para a compreensão das coisas. Por isso, nem sempre os métodos positivistas das
ciências naturais e físicas são capazes de captar as delicadezas e as singularidades que
a intuição proporciona (BELO, 2017). Para isso, portanto, é preciso, também, suspender
tudo que não seja o sentido da coisa. Podemos visualizar este esquema a partir da
Figura 2 (Sentir Para Saber).

Figura 2 – SENTIR PARA SABER

Fonte: Belo (2017, p. 25)

Sobre a segunda etapa do percurso fenomenológico, ou seja, o sujeito que


busca o sentido, que faz uma reflexão sobre o existir, trata-se de uma investigação em
que o ponto de partida é o próprio sujeito em análise (BELO, 2017).

Para isso, podemos pensar em exemplos cotidianos que, de certo, também já


ocorreram com você, acadêmico, que diz respeito a quando começamos a reparar e
perceber um objeto que em outro momento não dávamos atenção. É o caso de você
ficar com sede e sentir necessidade de beber água e, partir deste dado, passa a perceber
diversos copos d’águas em diferentes ocasiões que antes, mesmo que tenha visto o
objeto, não refletiu sobre ele, não somos capturados por ele. De todo modo, já havia
em nós um conhecimento prévio, uma experiência perceptiva do copo. Desse modo,
podemos refletir que havia um copo fora, o copo objetivo, mas também havia um copo
dentro você, que permite reconhecer e perceber diversos copos.

6
Toco a caneta, a mesa etc., enquanto toco, há o ato de tocar, estou
tocando, estou vivendo a experiência de tocar. Há uma coisa que é
tocada. Enquanto existência, onde está? Fora! Mas enquanto coisa
tocada, onde está? Dentro! Enquanto tocada, ela se torna minha
(BELO, 2017, p. 27).

Isso, então, diz respeito ao ato perceptivo. Percebemos que estamos com sede,
percebemos um copo, percebemos uma folha, percebemos o toque. Paralelo a isto,
e em correspondência com o a forma que percebemos, passamos refletir, a ter atos
reflexivos, ou seja, temos consciência que tocamos ao tocarmos, que vemos ao vermos e
depois podemos refletir sobre isso, tal como fazemos agora. Podemos perceber isso, tal
como ilustra na Figura 3 (Refletir para Saber)

Figura 3 – REFLETIR PARA SABER

Fonte: Belo (2017, p. 33)

Tendo, então, até agora, percebido e refletido sobre o ato, a sede, sobre ver o
copo e pegar o copo, ou seja, que ver e tocar envolve o objeto externo e o impulso de
ir beber água é algo interno. Tudo isso pode estar na dimensão da consciência, onde
registramos nossos atos, nossas percepções e reflexões.

Nesse sentido, estamos sempre passando pelo corpo, todas as sensações


passam não apenas por nossos cinco sentidos, mas por uma série de outros órgãos
com os quais nem sempre estamos conscientes de seu funcionamento. Não obstante,
ao passo que tudo que percebemos passa pelo corpo, só podemos dizer que temos um
corpo por sentirmos, através de diferentes esferas, a sua existência. Em outros termos,
existe o que é exterior (o objeto), o que é interior (os impulsos) e o terceiro momento, que
é o registro dos atos, o que possibilita que tenhamos consciência deles.

7
2.2 INTENCIONALIDADE
O ponto essencial para a compreensão da intencionalidade de ato é que “toda
consciência é consciência de alguma coisa” (MOURA, 2009, p. 9). Desse modo, tudo que
percebemos é carregado também por nossa história e trajetória, ou seja, a percepção é a
percepção de um percebido. No limite, essa denominação pode soar trivial se olharmos de
maneira demorada, mas se localizarmos na tradição científica de como as coisas e os fenô-
menos eram estudados, há uma crítica em relação ao modelo tradicional da ciência.

Um dos pontos de afastamento da lógica positivista e funcionalista para pensar


a concepção de sujeito, diz respeito ao fato de que, para a fenomenologia, há uma
relação direta entre sujeito e mundo, não se trata, portanto, apenas de uma relação
subjetiva ou de ideias, ao passo que também não é experimental e determinado a priori,
mas é surge sempre no momento.

Para que consigamos fazer o percurso fenomenológico proposto por Husserl,


é necessário que façamos uma suspensão fenomenológica (redução eidética), e isso
consiste em colocar todos os julgamentos e conceitos pré-concebidos em parênteses,
em suspensão, e assim não colocar a priori nos fenômenos que ocorrem (SILVA, 2009).
Isso porque as coisas que existem no mundo estão sempre a aparecer sob diferentes
perspectivas, que tendem a se renovar permanentemente, de forma que não é
possível que extraiamos, dessas coisas, verdades universais ou absolutas. E, por isso,
a importância da redução fenomenológica, para que não imprimamos verdades em um
dado devido aos nossos pensamentos sobre aquilo.

Sobre isso, Husserl afirma: [...] pela epoché fenomenológica, reduzo o meu eu
humano natural e a minha vida psicológica – domínio da minha experiência psicológica
interna – ao meu eu transcendental e fenomenológico, domínio da experiência interna
transcendental e fenomenológica (HUSSERL, 2001, p. 39 apud SILVA, 2009).

Assim, o resultado da epoché fenomenológica vai além do “eu penso”, muito


comum na filosofia positivista, mas também abarca o objeto de pensamento, ou seja,
não é apenas ego cogito, mas também cogito cogitatum (SILVA, 2009). Nesse interim, a
“virada de mesa” da intencionalidade é justamente atribuir uma certa atividade da nossa
consciência, que não é limitada, calculada e definida em categorias e sem surpresas.
Aqui o sujeito não é visto nem de maneira cartesiana nem como uma tábula rasa. A
representação que a consciência opera doa sentido a objetos, coisas, fenômenos (SILVA,
2009). É o caso, por exemplo, se vemos um ipê amarelo, e isto nos traz lembranças
pessoais da nossa infância no período do verão. Ou quando vemos a bandeira do Brasil
e ela não é apenas um pedaço de pano ou de papel, mas representa uma nação que tem
uma linguagem, uma cultura, um povo específico. Ao representarmos, ao simbolizarmos
um objeto, uma imagem, uma ideia, estamos doando sentido que o objetivo per si não
possuiria fora de determinado contexto.

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Pensamos, portanto, a intencionalidade como um fenômeno da ordem da
representação. “Intencionar é tender, por meio de, não importa quais conteúdos, dados
à consciência, a outros conteúdos não dados, é reenviar estes outros conteúdos de
maneira compreensiva” (MOURA, 2009, p. 11). Esse cenário soma-se ao conjunto de
sensações que carregamos e empregamos, efetivamente, sensibilidade nos nossos
atos intencionais. Este ato é denominado noese, designando o momento específico
do “pensamento”, é a partir dele que acessamos as sensações. Então, vemos uma
espécie de “jogo” ou movimento entre sensações e ato doador de sentido. Ademais,
quando pensamos na intencionalidade, podemos vergar tanto no que diz respeito à
intencionalidade interna quando à intencionalidade externa. A intencionalidade interna
diz respeito ao “preenchimento” que fazemos de determinado dado a partir apenas de
uma parte dele. Por exemplo, quando vemos um dado de seis lados, sabemos que ele
tem seis lados, mas não vemos todos os seis lados simultaneamente, pelo contrário,
vemos apenas uma parte do cubo, tendo consciência que não estamos vendo tudo, mas
completamos a imagem e a mensagem a partir do que conhecimento (SILVA, 2009).
Para Husserl, todo objeto tem um horizonte interno de determinação, está atrelado ou
passa a se atrelar com a história daquele que percebe o objeto.

A intencionalidade do horizonte externo dos objetos, por outro lado, representa


todo o contexto que circunda o objeto, todo o mundo representativo dele. Seguindo o
exemplo anteriormente mencionado, o dado de seis lados pode estar em cima de uma
mesa que está numa sala de aula, que está numa escola, que está num município, que
está num estado, que está num país (SILVA, 2009). Nesse sentido, essa intencionalidade
do horizonte externo se apresentará anterior à intencionalidade do objeto interno, pois
representa, propriamente, “o mundo”. Assim, não buscamos decompor e traduzir todas
as partes do objeto, mas fazemos uma análise intencional em que explicitamos os
horizontes do sujeito e do objeto.

A intencionalidade, assim, revela-se como consciência num sentido muito


robusto, no sentido de sempre “ser consciência de algo”, o sujeito sempre vai em direção
a algo (SILVA, 2009). Esta forma de perceber a consciência, por meio da intencionalidade,
coloca a consciência num estado ativo e manifestante de si mesma.

Ao contrário do que pregavam as demais teorias correntes, sobretudo as positi-


vistas, nas quais a consciência era vista como algo passivo, um receptáculo à mercê de
experiências ou fechada em si mesma, na fenomenologia a consciência é o fenômeno.

No intrigado jogo de entrelaçamentos que é a Fenomenologia, o


raciocínio muda para posições tanto mais flexíveis quanto dinâmicas
(e complexas): sujeito e objeto deixam de ser “categorias” estanques,
alocadas em oposições distanciadas, para serem encaradas como
fenômenos, como “aquilo que aparece”, que “surge” igualmente num
movimento, num “sendo”, “tornando-se” – melhor captável num
devir, num via-a-ser (ou fluxo heraclítico) – , o que delimita que a
consciência deixa de ser “parte” de um mundo (ou mesmo “coisa”
desse mundo), para se tornar o próprio ligar do desdobramento

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desse mundo para si, visto que, a partir da intencionalidade, o caráter
estanque de “real” ou “irreal” se dilui em múltiplos significados para
um sujeito na multiplicidade de suas experiências (GOTO, HOLANDA,
COSTA, 2018, p. 126).

É a partir desses imbricamentos que surge a máxima fenomenológica, que


postula sobre o “retorno às coisas mesmas” como um retorno à experiência. Voltar às
coisas mesmas designa tanto voltar a um mundo objeto e casual quanto voltar-se para
um mundo próprio, estando, então, sujeito-e-mundo alojados em si mesmo e sendo
inseparáveis (SILVA, 2009).

Em termos fenomenológico, “Mundo” é uma concretude que foge de uma lógica


objetivista, não se trata meramente de um mundo real, físico e semiótico. Mundo diz
respeito ao correlato entre os atos do sujeito, nos quais os atos se desdobram e como
o fazem. Por isso, o sujeito é no Mundo, é em relação e com intencionalidade e, por
isso, há intrínseca relação entre sujeito (consciência) e mundo, não estando divididos e
separados, mas sendo sempre em relação constitutiva.

2.3 O TEMPO
O tempo fenomenológico, tal como as outras categorias aqui apresentadas,
dialoga com os aspectos objetivos, subjetivos e vividos, ou seja, o tempo não é apenas
objetivo e cronológico, nem sempre nos guiamos pelo compasso do relógio, ainda que
vivamos e compartilhamos de tempos comerciais e horários estabelecidos, como entrar
no trabalho às oito horas da manhã, almoçar ao meio-dia e dormir às onze horas da
noite, nossas experiências não são reduzíeis a essa forma de expressar o tempo.

Caso algo aconteça em nível pessoal e emocional, por exemplo, a morte de


um ente querido, ir ao trabalho às oito da manhã pode ser especialmente penoso de
forma que ao meio-dia não há nenhuma fome para se contatar, e este dia pode dar a
sensação corporal de durar muito mais que 24 horas. Isso dá-se também ao fundo de
vivências do sujeito, que criou uma relação com outro sujeito no mundo de forma que
a partida repentina, por meio da morte, pode colocar novos elementos na forma como
experienciar atividades cotidianas corriqueiras.

Assim, a temporalidade, em Husserl, diz respeito a um fluxo contínuo, no qual,


mais uma vez, se entrelaçam categorias antes tidas como dicotômicas. Assim, num
modo dinâmico e ativo, se relacionam as retenções e as pretensões, ou seja, tanto
as experiências do passado como as experiências almejadas para o futuro, e estas
duas categorias se encontram num presente vivo que toca no passado e no futuro,
simultaneamente com isto relaciona-se sujeito e mundo. Este é o caso da mudança
de percepção que o sujeito pode ter ao experienciar um dia ruim, um dia de luto, pois
acessa tanto o seu fundo de vividos, onde havia vida e o prospecta para um futuro em
que essas experiências não se atualizarão a não ser em nível de memória, modificando,
assim, a forma como se sente em relação ao momento presente.
10
2.4 FENOMENOLOGIA E PSICOLOGIA
De acordo com Goto, Holanda e Costa (2018), Husserl definiu a fenomenologia
como uma “psicologia descritiva” na primeira edição de Investigações Lógicas e
depois, nas outras edições, afasta-se desta denominação, colocando Fenomenologia
e Psicologia como opostas, embora haja também proximidades, considerando que
ambas consideram aspectos da consciência. Ainda neste interim, cabe ressaltar que a
Fenomenologia está próxima de algumas vertentes da psicologia, não de todas, afinal,
é crítica a modelos positivistas e funcionalistas, como explicitamos no início desta
Unidade. Ademais, Husserl também denuncia uma crise da psicologia em que busca
explicar e interpretar os fenômenos psíquicos através de lentes das leis da natureza e,
perdendo, portanto, o sentido originário do psíquico. Em outras palavras, não devemos
reduzir a experiência vivida em apenas um sentido, como o fisiológico, por exemplo.

Assim, uma Psicologia Fenomenológica estaria voltada para a experiência


inteira do sujeito, trazendo os aspectos do seu fundo de vividos, suas expectativas
para o futuro, suas possibilidades do presente, o mundo e as coisas que o circundam,
agregando, assim, os conceitos de intencionalidade, intersubjetividade, temporalidade e
relação sujeito e objeto, para compreendermos o sentido amplo e psíquico da vivência.

Nesse sentido, em grande medida, a Psicologia Fenomenológica afasta-se


da Psicologia hegemônica e positivista que prega por perceber o sujeito de maneira
repartida, em classes universais (GOTO; HOLANDA; COSTA, 2018).

Além disto, há outros autores que continuaram e continuam a debater a


fenomenologia a partir de Husserl, mas também realizando fraturas e desdobramentos,
como o caso de Heiddegger, Satre e Merleau-Ponty. Há abordagens que dialogam e
coadunam com alguns da fenomenologia, tais como: Psicologia Existencial, Gestalt-
terapia, Abordagem Centrada na Pessoa, Logoterapia, dentre outras variações. De todo
modo, estas abordagens estão de acordo com a fenomenologia num sentido ontológico,
concordam com sua visão de mundo, mas não aplicam o método fenomenológico
proposto por Husserl, a rigor (GOTO, HOLANDA; COSTA, 2018).

3 A EXPERIÊNCIA FENOMENOLÓGICA EM
MEARLEAU-PONTY
Maurice Merleau-Ponty é um filósofo francês que viveu entre 1908 e 1961, tem
por influência principal a fenomenologia de Husserl e foi contemporâneo de outros
grandes nomes da filosofia, como Jean-Paul Sartre, Claude Lévi-Strauss, Simone de
Beauvoir, dentre outros (ALVIM, 2018).

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Figura 4 – MERLEAU-PONTY

Fonte: <https://bit.ly/3aTdD2x>. Acesso em: 18 jul. 2022.

No Prefácio do livro Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty elabora alguns


argumentos para a pergunta “o que é fenomenologia?”. O início de seu argumento vai
no sentido de a fenomenologia ser caracterizada por certo essencialismo, por um lado
e, por outro lado, a existência tática permanece o ponto de partida para a compreensão
do homem. Desse modo, não é apenas essencialismo, mas também facticidade (ALVIM,
2018). Outro ponto da característica da fenomenologia é que ela é transcendental,
pensando sobre as condições e possibilidades da existência, suspendendo os juízos e os
posicionamentos pré-filosóficos. Para tal, a fenomenologia é uma disciplina puramente
descritiva, atendo-se ao momento em que o fenômeno emerge.

Um dos pontos centrais do pensamento de Merleau-Ponty é a proposição


de ideias que implicam numa espécie de estrutura, de forma, ou de Gestalt. Afasta-
se do posicionamento de Husserl das ciências, pois acredita que as ciências também
compõem o mundo. Não obstante, ainda seguindo a máxima fenomenológica de voltar
às coisas mesmas, Merleau-Ponty, aponta o momento originário como aquele em que
nasce o sentido (ALVIM, 2018).

Neste ponto, o filósofo pega uma terceira via, distanciando-se de uma direção
intelectualizada e, também, afastando-se de métodos empiristas, ou seja, de um lado
os empiristas defendem que o conhecimento se encontra na observação e, de outro
lado, os racionalistas defendem que se alcança o conhecimento pelo intelecto. Nesse
sentido, boa parte da discussão sobre o conceito do sujeito caminha para esta dicotomia,
na qual, de um lado, um homem como um todo empírico e, por outro lado, um homem
que só se alcança pela via subjetiva (LIMA, 2014). Assim, o a fenomenologia, também em
Merleau-Ponty afasta-se dessa lógica dicotômica.

12
Se Merleau-Ponty afasta-se das vias hegemônicas de sua época – empirismo
e subjetivismo – então busca uma terceira via para pensar o sujeito, e esta via caminha
pela experiência do ser-no-mundo até o ponto onde se origina o sentido. Assim, não
busca nem por um eu transcendental nem empírico, mas busca colapsar estes dois
opostos. Também se deve ao fato de focar na experiência que Merleau-Ponty aproxima-
se da psicologia, pois a ele interessa pensar em termos de comportamento, percepção,
corporeidade, alteridade, dentre outros (ALVIM, 2018). Sobre o comportamento como
estrutura, para Merleau-Ponty, de acordo com Alvim, (2018, p. 156):

A noção de estrutura do comportamento articula três ordens: física/


material, vital/orgânica, humana/simbólica em uma mesma estrutu-
ra na qual não há hierarquias ou determinações. E em que natureza,
cultura e história não estão dicotomizadas e não podem ser reduzidas
uma a outra. Tudo o que vivemos e fazemos é, assim, originado dessa
configuração espontânea, uma estrutura perceptiva, onde o mundo
nos é dado a partir de uma fisicalidade, vitalidade e capacidade hu-
mana de simbolizar como dimensões inseparáveis que se compõem
mutuamente, borrando as fronteiras entre o dentro e o fora, o subjetivo
e o objetivo, a natureza e a cultura, o fisiológico e o psíquico.

Dessa maneira, um manejo clínico vai na direção de compreender os diferentes


modos de existência dos sujeitos, a existência em si vista como um fenômeno
complexo. Um exemplo para compreendermos esta direção de pensamento pode ser
dado a partir da lógica do sintoma. Numa perceptiva fenomenológica, sobretudo a partir
de Merleau-Ponty, o sintoma deve ser descrito a partir de diversas dimensões, como
fisiológica, psíquica e social, não sendo nenhuma destas categorias descartáveis, mas
cada parte que compõe o todo e que faz diferença e presença na forma de existir do
sujeito (ALVIM, 2018).

Esta maneira de olhar concebe, de fato, humanidade para a experiência do


sujeito que, em outros tempos ou a partir de outros olhares, é visto não como ser integral,
mas como uma parte que funciona ou não funciona de acordo com pensamentos
hegemônicos e padronizados. Assim, no limite, numa perspectiva merleaupontyana, o
sintoma é uma expressão do sentido que o sujeito dá para a forma que experiencia a
existência no mundo.

DICA
Acadêmico, na obra A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty utiliza
conceitos da Psicologia da Gestalt para pensar o mundo a partir de formas
e configurações, num emaranhado e integrado de sujeito onde mescla
sujeito, contexto, matéria, história, cultura, dentre outros (ALVIM, 2018). Além
disso, Merleau-Ponty também utiliza de concepções do behaviorismo para
pensar o comportamento humano, e afasta-se de concepções de teorias de
desenvolvimento tal como de jean Piaget e Henry Wallon por ter demasiadas
ideias que se julgam universais. O filósofo fica no campo do comportamento
por ser um nicho capaz de observação e descrição da experiência.

13
Fonte: <https://bit.ly/3chzuAW>. Acesso em: 18 jul. 2022.

Além do comportamento, Merleau-Ponty também se interessou pelo conceito


de percepção e desenvolveu isto no seu trabalho Fenomenologia da Percepção. Nesta
obra, o corpo ocupa um lugar de grande destaque, assumindo que o corpo é a via
de percepção como modo de ser no mundo, e experienciar aspectos como espaço,
motricidade, sexualidade, expressão dentre outros (ALVIM, 2018).

Corpo-e-mundo estão imbricados, juntos, integrados, trata-se de uma


situação concreta e as descrições partem deles. É com o corpo que nos jogamos
no mundo, que comemos, que falamos, que sentimos, que escolhemos, que nos
afastamos, é com o corpo que você lê esse texto agora, por exemplo. Este corpo está
sempre configurado de determinada forma ou estrutura no espaço e no tempo, mas
também sempre em movimento.

Numa lógica merleaupontyana não há interesse em uma filosofia do sujeito,


pois há um entrelaçamento entre sujeito e o mundo e o que se consagra, aqui, é o
sentido (LIMA, 2014). Portanto, não se busca o sujeito transcendental, o homem é o “eu”
corporal e “eu” que pensa e “eu” que sente, simultaneamente. O corpo é uma totalidade
e através dele percebe o mundo, percebe no mundo, que o sujeito se relaciona com os
outros e com as coisas, não é um mero receptor do espaço mundano já existente, mas
é, também, o mundo.

Numa perspectiva merleaupontyana, o ser-no-mundo é o fundo comum entre


o que é psíquico e o que é fisiológico sobre as experiências do corpo (ALVIM, 2018).
O ser-no-mundo, portanto, não é apenas uma soma de reflexos e nem é, por si, uma
representação, mas é uma energia que embora não limite, integra todas as partes numa
via que não se prende a isso ou aquilo, mas é, sempre, tudo.

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Desse modo, o homem é visto como, essencialmente, corpo-consciência-
do-mundo, o que, nas palavras de Lima (2008 p. 4) “[...] o homem é mundo e alma,
simultaneamente, o corpo do homem é não nem coisa pura e nem pura ideia, ele integra
misteriosamente o percebido e o ato de perceber, o em si e o para si, pois está no mundo
e é para o mundo”. Para Merleau-Ponty, o corpo não é objetivo, o corpo é fenomenal
(LIMA, 2014).

Assim, Merleau-Ponty tece seus argumentos pensando a partir da doença,


por ser neste estado que algo inusitado e criativo surge. Em outras palavras, é no
momento de adoecimento que o sujeito foge à norma, às padronizações e às ideias
de universalização.

Assim, o filósofo busca, mais uma vez, uma via alternativa que mostre como a
experiência não é capturada a partir de um pensamento fechado, mas que na experiência
algo foge, algo falha, algo erra. Se uma psicologia positivista busca compreender o
sujeito a partir de leis universais para a saúde e o bem-estar do corpo físico e mentais, a
fenomenologia de Ponty vai na via oposta, pois na doença, na perturbação, no distúrbio,
não há lei universal que vença, pois a partir da dor somos capazes de criar o novo.

Em Merleau-Ponty, o sujeito no mundo é o corpo no mundo, então


o sujeito da percepção é o corpo, porque é ele que percebe, é ele
que sente, é uma unidade perceptiva viva, e não mais a consciência
concebida separadamente da experiência vivida, consciência da
qual provém o conhecimento. O corpo é, então, visto como fonte de
sentidos, ou seja, de significação da relação do sujeito com o mundo,
porém, um sujeito visto na sua totalidade, na sua estrutura de relações
com as coisas ao seu redor, com as coisas que nos cercam. Ao falar
da percepção, Merleau-Ponty chama a atenção para o fato de que o
que é percebido por uma pessoa (fenômeno) acontece num campo
do qual ele faz parte. Ao considerar o sujeito como corpo no mundo,
Merleau-Ponty assinala a importância da experiência perceptiva e
nos mostra que o conhecimento começa no corpo-próprio (LIMA,
2014, p.106).

É nesse sentido que pensamos que não temos um corpo, mas somos o corpo.
A experiência perceptiva é corporal e é instaurada a partir, justamente, da relação com
o mundo, o mundo em sua incompletude, o mundo em desenvolvimento, o mundo das
expressões. Assim, ao invés de pensarmos sob os termos da consciência, do objetivo
e da realidade, descrevemos e sentimos a partir da percepção, ela sendo “a porta para
o mundo” e, ao mesmo tempo, o fundo onde tecemos e armazenamos nossos atos e
nossos hábitos.

O corpo, em Merleau-Ponty tem sua dimensão temporal e espacial. Numa


perspectiva temporal, o corpo explora algumas camadas, tais como habitual/atual ou
anônimo/pessoal, o que pode ter uma carga de ambiguidade que é característica da
forma como o corpo experiencia o tempo. Nesse sentido, esta é uma das essências da
experiência corporal, sendo vão, portanto, lutar contra essa ambiguidade ou pretendê-la
reta e sem fios soltos. O hábito, nesse sentido, diz respeito ao passado vivido do corpo, o

15
que já foi experienciado, o que está no fundo de vividos como possibilidades disponíveis
e, assim, num horizonte de futuro. Quer dizer, o hábito compõe a dimensão do passado
do sujeito. O desenvolvimento de um hábito requer um esforço do corpo como um
todo, uma espécie de consagração motora que visa integrar-se à configuração, à forma
corporal para instaurar-se, também, em seu fundo de vividos e renová-lo a cada dia,
acessá-lo de diferentes formas e possibilidades.

Movimento constante, o mundo é dado a um sujeito sempre como


sumindo e chegando na presença. Um mundo que ele habita e que vê
de dentro. Um mundo visto sempre de uma perspectiva, que jamais
lhe é dado por inteiro e cuja materialidade está sempre escoando,
sumindo pelos horizontes de passado e chegando do horizonte de
futuro. Cada presente vivo tende a apreender a totalidade do tempo
possível, superando a dispersão dos instantes e reintegrando tudo
à existência pessoal, o que, entretanto, não se completa nunca,
gerando uma experiência efêmera de completude da consciência
pelo presente (ALVIM, 2018, p.158).

Com relação à espacialidade, o corpo está sempre situado entre o espaço do


próprio corpo e o espaço exterior. Desse modo, o corpo se movimenta no mundo a
partir do que possível em seu contexto e em seus polos de ação (ALVIM, 2018). Contudo,
esses movimentos não são objetivos nem no que diz respeito ao corpo nem no que diz
respeito ao espaço físico, mas sim por meio do mundo fenomenal situado que dirige o
sujeito para o que tem valor e que, no limite, também faz parte do horizonte de vividos
dele (ALVIM, 2018). Desse modo, espaço, assim como o tempo, está situado no campo
de possibilidades, vivências e experiências que foram tecidas pelo sujeito ao longo de
sua jornada.

Um exemplo para pensarmos a noção de espaço e tempo pode ser o


desenvolvimento motor do sujeito, que inicialmente precisa de uma grande concentração
para fazer algo novo, como começar a andar ou aprender a escrever, tentando, a todo
custo, encontrar um equilíbrio e, ainda assim, errando, falhando e caindo.

No momento de aprendizagem, nada disso chega a ser um pensamento


concreto, pois o sujeito está inteiramente envolvido na ação, com seu corpo a desenvolver
um novo hábito e este, por sua vez, implica em uma reconfiguração motora e novos
elementos para o seu fundo de vividos. Assim, ações como andar ou escrever passam
a ser generalizadas, considerando que grande parte dos corpos humanos conseguem
fazê-lo, torna-se anônimo e impessoal.

É justamente este sentimento de anônimo e genérico que faz com o sujeito


sinta-se pertencente ao mundo, integrado em suas ações, e é assim também que
mantém, em seu corpo, um elo com o passado, com o presente e com perspectivas de
futuro (aprendeu a andar, continua andando e tudo indica que andará no futuro, caso
não haja imprevistos da vida).

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Assim, o corpo é considerado como um centro de ação corporal, é a partir
do corpo que o sujeito pode, que indica qual sua intencionalidade, em qual sentido
espacial e temporal recorrerá, de que forma fará uso criativo das suas possibilidades
e potencialidades, resgatando o passado e apontando para o futuro, isso tudo no
momento presente. Assim, Merleau-Ponty fala de uma visão pré-reflexiva do sujeito,
assumindo uma dimensão sensível da experiência como primeira, como fruto, como
origem. Deste modo, há algo que nos direciona que está antes do reflexo, antes do
sentimento, antes de pensar sobre o que se sente, esta é a dimensão pré-reflexiva e
sensível em que encontramos o sentido.

Para Alvim (2018, p. 159) “em suma, a percepção é um fenômeno dado no ser-
no-mundo; é pré-reflexiva, é pré-objetiva e nasce de um engajamento na situação em
que estamos como corpo habitual nessa espécie de zona comum do anônimo, como
pura aderência ao mundo já feito”.

É, portanto, por meio do corpo que o sujeito tem acesso ao mundo, é o corpo que
faz a mediação com toda e qualquer experiência possível. O corpo funcionaria, então,
como um mediador do mundo, por onde tudo passa através de operações perceptivas.
Nesse sentido, o corpo não é nem coisa nem ideia, mas movimento, sensibilidade e
expressão criadora (LIMA, 2014).

Ser o próprio corpo e a partir dele experienciar e perceber o mundo, ao mesmo


tempo que constitui esse mundo compartilhado com outros corpos e numa gama de
generalidades que renovam. Isso também pode ser apreciado por meio da música que
nos oferece sentido a conceitos e conteúdos complexos da forma como percebemos
nossa existência.

A música Mistério do Planeta, do grupo Novos Baianos, pode nos apresentar


uma perceptiva merleaupontyana e outro modo pelo qual podemos conhecer a filosofia
dos sentidos.

Vou mostrando como sou


E vou sendo como posso
Jogando meu corpo no mundo
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas
Passado, presente
Participo sendo o mistério do planeta
(Moraes Moreira – Mistério do Planeta)

É a partir do corpo que nos jogamos no mundo, que vamos ao encontro, que
unimos passado e presente e participamos, atuando, afetando e sendo afetados do
mundo. É a partir do corpo que manifestamos nossas expressões. Aqui expressões
não são vistas como algo a se colocar para o “lado de fora”, mas é mais um ponto de

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integração do ser-no-mundo no seu bojo de possibilidades, hábitos e generalidades.
A expressão, assim, é o ato corporal da situação, está sempre situada. Eu, com meu
corpo no mundo, convivo e compartilho experiências com outros corpos e vejo este
outro sempre ao meu lado, nunca na minha frente, o outro não é um objeto. Esse é um
caminho para pensar a alteridade, o respeito à diferença e ao outro em sua integralidade,
tema bastante caro para a clínica psicológica.

É no espaço clínico que as diversas formas de expressão do corpo são possíveis,


inclusive pela fala. O espaço clínico como potencialidade para unir arte, ciência e
filosofia, contribuindo e caminhando, lado a lado, para que os sujeitos estilizem seus
modos de existir no mundo, renovando seus hábitos e ampliando sua consciência sobre
como seu corpo age e se joga no mundo de hábitos e singularidades. Desse modo,
podemos pensar na fenomenologia de Merleau-Ponty como uma fenomenologia da
experiência e do sensível, que dialoga com a arte, a poética e coloca o corpo em
movimento para e no mundo.

4 EU-TU-PSICOLOGIA
Mordecai Martin-Buber (1878-1965) nasceu em Viena, mas devido ao divórcio
dos pais, passou a morar com os avós na cidade de Lemberg, na Galícia austríaca. Seu
avô era um conhecido e reconhecido filólogo e uma autoridade judaica. Esta influência
judaica teve grande influência no pensamento, na escrita e na ética de Buber, sobretudo
a partir do hassidismo, uma corrente religiosa do judaísmo.

A principal obra de Buber é intitulada Eu e Tu, publicada em 1923, quando


o autor aborda um princípio dialógico. O dialógico não está atrelado ao diálogo, é
possível que haja uma manifestação de Eu-Tu no silêncio e, ainda assim, ter uma
postura dialógica. Assim, por um lado, podemos pensar na Abordagem Dialógica como
carregando e já impregnada de uma ética, uma postura, um modo de se relacionar e
uma estética no encontro.

As influências de Martin Buber incluem conceitos de base fenomenológica, a


filosofia de Kant e, também, ensinamentos do hassidismo, uma vertente mística que
teve muito destaque na vida e na obra do autor (HOLANDA, 2018).

A tradição do hassidismo é praticamente inteira de modalidade oral, sendo


o próprio Buber um de seus grandes difusores para a linguagem escrita. Assim, é a
religião, sobretudo na vertente do hassidismo, um ponto central para a compreensão
da filosofia de Buber, pois há uma via teológica em seu pensamento (HOLANDA, 2018).

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INTERESSANTE
“O hassisdismo foi um movimento histórico, cultural e religioso, revivalista do
espírito judaico, surgido na Podólia e na Volínia, e sua denominação deriva
do vocábulo hebreu hassid, que significa piedoso, designando uma atitude
diante da vida espiritual. Os aspectos centrais do ensinamento hassídico
podem ser resumidos nas seguintes ideias: crença na universalidade da
presença divina; senso de totalidade da união com Deus; necessidade de
haver alegria no serviço divino e; sentido de comunidade. Ver Deus em
todas as coisas; alcançar Deus por meio de todo ato autêntico” (HOLANDA,
2018, p. 165).

O hassidismo apresenta o próprio evento dialógico: evento entre sujeito humano


e sujeito humano, entre sujeito humano e mundo e entre sujeito humano e Deus, que
constitui a base da filosofia buberiana. Trata-se de uma relação de horizontalidade com
Deus, um resgate do sentimentalismo, da emoção, da alegria em cultuar, adorar e louvar
Deus (HOLANDA, 2018). Esta concepção afasta-se de outras correntes do judaísmo, nas
quais as emoções eram subjugadas ou condenadas.

Em Buber, o que importa é ser-com no mundo, é estabelecer relações com


os princípios de uma ética e uma estética Eu-Tu. Por “mundo” entende-se a própria
intersubjetividade. O humano não é apenas um ser para si, mas é um ser que se projeta
no mundo e se manifesta com o mundo. Desse modo, tanto a palavra quanto a ação
são manifestações do ser na existência. As atitudes Eu-Tu e Eu-Isso estão no cerne da
teoria de Buber, sem suas palavras-princípio, e que são modos de ser relacional.

As palavras-princípio são proferidas pelo ser. Se se diz Tu, profere-se


também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu. Se se diz Isso, profere-se
também o Eu da palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu
só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A palavra-princípio
Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo ser em sua totalidade"
(BUBER, 1979, p. 3).

É na inteireza que existe no encontro Eu-Tu que é possível perceber os entres, as


individualidades, as singularidades e a união, a integração, entre o sagrado e o profano.
É o aceno e o elogio ao mistério que o outro pode ser. O processo terapêutico, nesse
cenário, pode funcionar como uma morada, e o terapeuta é o anfitrião hospitaleiro. Este
movimento de “receber em casa” é exitoso na medida em que o terapeuta consegue
“acolher e honrar o mistério” (CARDELLA, 2015), a tudo que escapa do viés racional,
mecanizado e robotizado. É aquilo que não está no script ou aquilo que está no olhar, na
postura, no silêncio, no entre.

Por esse caminho, também o amor – inclusive na sua dimensão misteriosa – é


um elemento que integra a prática clínica. Não um amor romantizado e ideal construído
socialmente, mas uma atitude amorosa que transforma, que fertiliza a esperança
no outro, o que pode ocorrer através de uma dimensão dialógica, de uma abertura e

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respeito pelo outro, pela possibilidade de um Encontro Eu-Tu. Estar aberto e disponível,
considerando a sociedade alienante que vivemos, pode ser um ponto de encontro com
o inefável e com a cura. É a potência de um Encontro Eu-Tu que é possível a partir do
encontro terapêutico.

Pensando em termos de dores, encontros furtados e busca por uma casa,


podemos recorrer à literatura. Mary Shelley é a escritora do renomado romance gótico
“Frankenstein: ou o prometeu moderno”, escrito, em 1816, quando ela tinha 19 anos e
passava por um período de luto e profunda solidão (ainda que acompanhada). É como se
ela própria se sentisse monstruosa, tendo perdido seu filho ainda bebê e estando numa
relação amorosa que a feria reiteradamente. Foi neste contexto de profundo sofrimento
que o romance foi escrito, como uma tentativa de tradução de si mesma.

Figura 5 – FRANKESTEIN – MARY SHELLEY

Fonte: <https://bit.ly/3v30w5B>. Acesso em: 18 jul. 2022.

No romance, Vitor Frankenstein é o nome do médico que decidiu criar um ser


humano como se fizesse um patchwork, pegando membros de pessoas já mortas e
utilizando a tecnologia elétrica, recém-descoberta da época. Assim nasce uma criatura
recortada, colada a partir da história e do desejo de outros, mas que não recorda o
próprio passado, não tem perspectiva de futuro, mas sente profundamente sua condição
e a rejeição que sofre dos humanos por simplesmente existir. Nas palavras da criatura
(SHELLEY, 2015, p. 211):

Mas onde estavam meus amigos e minhas relações? Não tivera um


pai a testemunhar meus tempos de bebê, nem a bênção de uma
mãe, seus sorrisos e carícias; ou, se tivera, meu passado inteiro agora
era um borrão, um vazio escuro no qual eu nada distinguia. Em minha
lembrança mais remota, sempre fui este mesmo ser, deste tamanho,
desta altura. Até ali jamais vira outro que se assemelhasse a mim ou
quisesse ter alguma relação comigo. O que eu era? A pergunta surgia,
recorrente, e a resposta não passava de resmungos.
20
O que o “monstro” criado por Vitor Frankenstein queria era o amor, o encontro
genuíno com o outro, era a solidariedade e a reciprocidade que ele assistia entre os
humanos. Em suma, o monstro foi criado para ser humano e buscava sua humanidade,
queria companhia, queria uma relação dialógica, buscava pelo Eu-Tu, por ser visto
em sua inteireza, contudo, só encontrava desprezo em seu caminho. Sua existência
assustava os demais. Sem o outro, sem a relação, não havia a construção de significado
da sua vida, afinal, nem mesmo um nome lhe foi dado.

Jefrey Cohen em seu texto “A Cultura dos Monstros: sete teses” elabora uma
ideia de que o corpo do monstro é um corpo cultural. Isso significa, que toda a ideia de
monstruosidade é construída num arsenal cultural.

Assim, constrói-se um ideal de humano e seu antagônico seria a ideia de


monstro. Isso serve para pensarmos os personagens do cinema e da literatura (como
o Frankenstein) ou de lendas míticas, mas também serve para refletirmos sobre quem
são as figuras, em nossa sociedade, que são personificadas como monstruosas ou
que, no limite, passam a perceber a si mesmas como pintadas de monstro (como a
autora Mary Shelley).

Nas palavras do autor “qualquer tipo de alteridade pode ser ‘construído através’
do corpo monstruoso, mas, em sua maior parte, a diferença monstruosa tende a ser
cultural, política, racial, econômica e social” (COHEN, 2000, p. 32, grifos nossos).
Em outros termos, a diferença só é vista como monstruosa na medida em que os
padrões de normalidade são rígidos a um ponto isotrópico, ou seja, que preza pelo linear
e estável. Numa sociedade que preza pelo homogêneo e pelo ideal, a diferença parece
mesmo monstruosa.

O monstro de Frankenstein pode ser visto como a manifestação da diferença,


feita de carne, e denuncia os portões da diferença apenas por existir com seus recortes.
Por outro lado, se pensarmos na autora Mary Shelley, também percebemos o monstro
a partir de uma ótica menos literal e mais emocional que buscava acolhimento, que
buscava um anfitrião e ansiava por ser “recebida”. Assim, a história da autora e trajetória
do seu protagonista fictício se espelham, ambos buscavam por um lar, buscavam
transcender a atitude Eu-Isso, experenciar por um encontro Eu-Tu e serem percebidos
em sua dor.

Nesse sentido, o ambiente terapêutico, a abordagem dialógica, a ética da


morada, um diálogo no entre implica, também, em acolher os diferentes monstros em
seus mistérios e não os matar, mas agir em nome da legitimidade e singularidade da
sua humanidade. No caso de Mary Shelley, encontrou uma voz e uma casa na literatura.
Primeiramente, seus livros levaram a assinatura do marido como autor do romance,
depois passou a ser reconhecida pela autoria do livro e ouvida, de alguma maneira, em
seu grito. No caso do monstro, criação de Vitor Frankenstein, teve o fim da sua vida sem
humanização, sem parceria e compartilhamentos, sem “ser recebido”. Afinal, “precisamos

21
do humano para nos humanizarmos” (FRAZÃO, 2020, p. 15), e o personagem teve uma
vida sem contatos e sem casa. A sensibilidade em abrigar questões monstruosas de
si mesmo e do outro pode ser um ponto de morada. Para tal, há sustentação numa
abordagem dialógica e, também, a compreensão social e histórica de quem é apontado
como monstro.

Desse modo, com o recorte de três autores que abordam a fenomenologia


de maneira própria, ainda que tendo os mesmos preceitos e a mesma base, são
construídos de forma a imprimir também a forma de posicionar de cada autor, levando
em consideração as experiências e as referências que tiveram. Em todos, podemos
pensar através da literatura e relacionar como pensar o sujeito em sofrimento, como
olhar para o que surge também em ambientes terapêuticos.

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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• Edmund Husserl é o precursor da fenomenologia.

• Quando nos referirmos ao método na fenomenologia, Hursserl aponta duas etapas,


a saber: i) a busca do sentido dos fenômenos: a redução eidética; ii) como o sujeito
busca o sentido: a redução transcendental.

• No percurso fenomenológico, a intuição do sentido é o primeiro passo para a


compreensão das coisas.

• O ponto essencial para a compreensão da intencionalidade de ato é que “toda


consciência é consciência de alguma coisa”.

• Para que consigamos fazer o percurso fenomenológico proposto por Husserl, é


necessário que façamos uma suspensão fenomenológica (redução eidética), ou
seja, colocar todos os julgamentos e conceitos pré-concebidos em parênteses, em
suspensão, e, assim, não colocar a priori nos fenômenos que ocorrem.

• A temporalidade, em Husserl, diz respeito a um fluxo contínuo onde, mais uma vez, se
entrelaçam categorias antes tidas como dicotômicas.

• Maurice Merleau-Ponty é um filósofo francês que viveu entre 1908 e 1961, tem por
influência principal a fenomenologia de Husserl e foi contemporâneo de outros
grandes nomes da filosofia.

• Merleau-Ponty também se interessou pelo conceito de percepção e desenvolveu,


isso no seu trabalho Fenomenologia da Percepção.

• Para Merleau-Ponty corpo-e-mundo estão imbricados, juntos, integrados, trata-se


de uma situação concreta e as descrições partem deles.

• Numa perspectiva merleaupontyana, o ser-no-mundo é o fundo comum entre o que


é psíquico e o que é fisiológico sobre as experiências do corpo.

• A principal obra de Buber é intitulada Eu e Tu, publicada em 1923, quando o autor


aborda um princípio dialógico.

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• As influências de Martin Buber incluem conceitos de base fenomenológica, a filosofia
de Kant e, também, ensinamentos do hassidismo, uma vertente mística que teve
muito destaque na vida e na obra do autor.

• É na inteireza que existe no encontro Eu-Tu que é possível perceber os entres,


as individualidades, as singularidades e a união, a integração, entre o sagrado e o
profano. É o aceno e o elogio ao mistério que o outro pode ser.

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AUTOATIVIDADE
1 A fenomenologia é uma corrente da filosofia que se afasta de uma série de preceitos,
critérios e conceitos da época em que foi fecundada. Sobre a fenomenologia, assinale
a alternativa CORRETA:

a) ( ) Trabalha-se com a redução eidética.


b) ( ) O foco é em porque o sujeito pensa.
c) ( ) A ideia de método é completamente descartada.
d) ( ) A fenomenologia busca a previsão dos comportamentos.

2 A fenomenologia trabalha com a ideia de intencionalidade, sendo este um dos


principais conceitos da teoria. Sobre a intencionalidade, assinale a alternativa
CORRETA:

a) ( ) Há a ideia de que toda consciência é consciência de alguma coisa.


b) ( ) Nem tudo que percebemos é devido a nossa história.
c) ( ) O conceito de intencionalidade está em sintonia com as ideias positivistas.
d) ( ) A intencionalidade carrega a ideia de que nossa consciência tem categorias já
estabelecidas e fixas.

3 Merleau-Ponty é um pensador fenomenológico que muito contribuiu para a área, pois


avançou no nível do sensível. Sobre o pensamento deste autor, classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Merleau-Ponty dialoga com temas comuns à psicologia.


( ) O corpo é um elemento central no pensamento merleaupontyano.
( ) O corpo é transcendental e, por isso, não tem dimensão temporal nem espacial.
( ) O conhecimento vem a partir da experiência.

a) ( ) V – V – F – V.
b) ( ) F – V – F – V.
c) ( ) V – V – V – F.
d) ( ) V – F – F – V.

4 O conceito Eu-Tu e Eu-Isso de Martin Buber carrega uma forma de se relacionar


com o outro que tem muita sensibilidade. Considerando a relevância do tema para o
âmbito da psicologia, disserte sobre os conceitos Eu-Tu e Eu-Isso.

5 A redução eidética é um dos pilares da fenomenologia por apresentar uma proposta


que não vai pela via da interpretação. Disserte sobre a redução eidética.

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UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS
DO EXISTENCIALISMO

1 INTRODUÇÃO
O Existencialismo é uma corrente que ganha forma, sobretudo, após o término
da Segunda Guerra Mundial, num contexto em que a Europa estava numa crise tanto
política quanto social, econômica, moral e financeira. Isto devido ao cenário pós-guerra
era de desânimo e desespero, sobretudo entre os jovens, que questionavam seu futuro e
suas esperanças, descrente também dos valores burgueses e tradicionais da sociedade
(PENHA, 1990). Por essas vias, os preceitos do existencialismo caíam como uma luva para
o cenário da época, correspondendo e esclarecendo aquele momento histórico, atuando
não apenas de maneira acadêmica, mas ganhando força como um estilo de vida.

Quando pensamos na palavra “existencialismo”, quase de imediato relacionamos


a outra, “existência” e esta, por sua vez, nos faz pensar em seu contraponto, a essência,
o que é uma contraposição clássica do existencialismo. De todo modo, essência vem
de essentia, do latim, e deriva do verbo “ser”. O conceito de essência costuma estar
relacionado com pensar nas coisas como ela são, chegar ao seu centro. Existência
revida da palavra existentia e existere que significa sair de casa, mostrar-se, exibir-
se num movimento para fora. Nesse sentido, é existencialista toda doutrina que trata
da existência humana tendo um foco, sobretudo individual e concreto, revelando algo
sobre uma existência particular (PENHA, 1990).

INTERESSANTE
O interesse de que o existencialismo se tornou alvo espalhou-se até mesmo
em manifestações genuinamente populares, como o carnaval brasileiro. Em
inícios dos anos cinquenta, seguindo a tradição típica do repertório carnavales-
co de satirizar acontecimentos da atualidade, uma marchinha fez enorme su-
cesso abordando o assunto. A letra da música exaltava a figura de uma mulher
que só aceitava cobrir-se com uma casca de banana nanica, pois tratava-se de
uma "existencialista, com toda razão/só faz o que manda/o seu coração".

Neste tópico veremos, brevemente, a respeito de alguns autores que postularam


e contribuíram para o desenvolvimento da teoria existencialista. Encerraremos este
tópico fazendo alguns paralelos da importância desta linha teórica com a Psicologia.

27
2 SØREN A. KIERKEGAARD – O EXISTENCIALISMO CRISTÃO
Um dos pioneiros pensadores do existencialismo moderno é Søren A.
Kierkegaard (1813-1855) com uma base de meditação religiosa. Kierkegaard foi um
filósofo solitário, e teve fortes influências do seu ambiente de formação e do puritanismo
luterano. Este filósofo cresceu no ambiente e nos princípios rígidos da religião luterana,
nos quais há, como base, o pensamento de que o homem sempre tende a corromper-se
(PENHA, 1990). Nesse sentido, Kierkegaard muito preocupava-se com a ideia de pecado,
embora também tenha experimentado, após a morte de seu pai, os prazeres da vida,
como o consumo de álcool e a exibição de roupas vistosas. Depois desse momento de
experimentações, Kierkegaard retorna aos seus estudos e torna-se um pastor luterano.

Figura 6 – KIERKEGAARD

Fonte: <https://bit.ly/3B5bs6O>. Acesso em: 18 jul. 2022.

Assim, os conflitos e desavenças na vida pessoal do autor contribuíram para a


formação do seu pensamento. Além dos conflitos familiares, também chegou a romper
o noivado que já durava anos, pois acreditava que seu estilo de vida e sua tendência à
solidão não compactuaria com uma vida de matrimônio. Também no campo religioso
Kierkegaard questionou as posições de hierarquia dos outros membros. Relacionamos a
obra de Kierkegaard a sua vida íntima e pessoal, mas também relacionamos ao próprio
contexto de angústia da época, as inquietações latentes do contexto.

Para o referido filósofo, a existência humana não deve ser explicada por meio
de conceitos e esquemas abstratos, pois isto poderia, facilmente, fugir da realidade da
existência humana, pois a realidade humana é carregada de irracionalidade e imprevistos
que, em absoluto, não cabem num sistema pré-estabelecido. Isto porque o indivíduo
está sempre comprometido com a própria realidade (PENHA, 1990). O indivíduo só pode
conhecer aquilo que compõe sua realidade, de modo que a ideia de algo universal não
passa de uma abstração do pensamento. Na lógica de Kierkegaard, o sistema é abstrato
e a vida é concreta e, assim, todo conhecimento se liga à existência, à subjetividade,
mas jamais ao abstrato e ao racional.

28
Assim, o homem é a categoria central da existência, o homem que tem
consciência de sua singularidade, uma existência que dispensa explicações racionais,
tal como pretendiam outras correntes da filosofia, sobretudo em Hegel. Para o filósofo, o
homem é um espírito que sintetiza tanto o finito quanto o infinito, o temporal e o eterno,
a liberdade e a necessidade, ou seja, o espírito é o próprio eu.

2.1 OS ESTÁGIOS DA EXISTÊNCIA


Nesse sentido, a existência do homem está vinculada a três estágios: o estético,
o ético e o religioso. O primeiro estágio, o estético, é quando o homem está em busca
por um sentido para a sua existência por meio dos seus sentidos, sentimentos e
escolhas. Nesta fase, o indivíduo se vê como ser livre e entrega-se aos seus impulsos,
desfrutando o máximo de prazeres e sensações, uma vez que acredita que tudo é fugaz
e passageiro, o indivíduo lança-se ao mundo por meio dos seus sentidos (PENHA, 1990).
Na fase estética, o indivíduo vive sob o signo da escolha, um dos conceitos basilares do
existencialismo. Contudo, esta escolha, para Kierkegaard, apresenta fragilidade no que
fiz respeito à orientação humana, visto que não há nada pré-determinado de como as
escolhas são feitas, já que a existência é individual e singular.

Ao perceber que viver por meio, unicamente, da estética, escolhendo entre


sentidos e prazeres, não traz satisfação, não revela o sentido da existência, e o homem
pode entrar em desespero, tornar-se melancólico e entediado, buscando respostas em
seu passado idealizado. Mesmo a escolha de refugiar-se no passado e resguardar-se
na melancolia não resolve nem satisfaz o problema estético da existência do homem.
Assim, o que era liberdade de sentidos, sensações e prazeres, pode se revelar também
uma forma de prisão numa existência vazia.

Por esse caminho, o indivíduo atormentado e em desespero chega ao segundo


estágio da existência, o ético. O desespero não diminui a existência do indivíduo,
pelo contrário, imprime uma certa superioridade do homem sobre o animal, e, assim,
consegue ter uma atitude menos passiva diante da realidade. O homem descobre
que precisa também responsabilizar-se, precisa estar de acordo com suas demandas
do campo social, pois há regras, normas e convenções. Dessa maneira, o indivíduo
permanece livre, mas há mais limites correspondentes àqueles estabelecidos pela
sociedade (PENHA, 1990). Ainda assim, o estágio ético, com a grande demanda de
exigências sociais, não oferece ao indivíduo o que anseia em sua existência. Por isso,
chega-se ao terceiro estágio, o religioso, no qual alcança uma relação íntima e particular
com o Absoluto. Para isso, o autor faz relação com algumas passagens da Bíblia para
exemplificar como o indivíduo se guia pela fé em detrimento da ética ou da razão, e que
a fé tudo suplanta, pois está acima da razão e da moral.

29
3 FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER
Como vimos, Husserl é conhecido por ser o fundador da Fenomenologia, e
há outros autores que também desenvolveram conceitos na área. Um destes autores
é Martin Heidegger (1898-1975). Heidegger influenciou o pensamento no âmbito
das práticas clínicas, como as ciências psi (psiquiatrias, psicanalises, psicologias,
psicoterapias), nas quais um dos eixos é a análise da existência e a desconstrução do
psíquico, construindo novos sentidos para a existência, numa valorização do mundo
(DUTRA et al., 2018).

Martin Heidegger é um dos principais nomes da psicologia fenomenológico-


existencial e sua obra mais comumente referenciada é Ser e Tempo, publicada
originalmente em 1927 (ROEHE; DUTRA, 2014). É nesta obra que Heidegger apresenta
uma de suas principais ideias, ou seja, como o Ser se manifesta e, para isso, aventura-
se num estudo no qual o ente analisa a si mesmo. Este é um dos diferenciais, da época,
para a Psicologia, pois concebe o homem a partir de si mesmo, a partir dos seus próprios
e singulares termos, sem a necessidade de aplicar classes e categorias universais para
todos os sujeitos sem diferenciação.

Num contexto em que cresciam e fervilhavam as ideias do behaviorismo e da


psicanálise, a psicologia fenomenológica-existencial apresenta uma nova forma de
compreender o sujeito onde, nas palavras de Roehe e Dutra (2014, p. 1006), “ao invés de
respostas condicionadas, ação proativa, tendo em vista projetos pessoais; ao contrário
da dinâmica inconsciente, ênfase na experiência consciente e nas possibilidades
encontradas no mundo”.

Em Ser e Tempo, Heidegger estuda e postula sobre o homem a partir de eventos da


cotidianidade e sem diferenciar corpo e mente, corpo e alma e, também, não estando num
polo oposto aos objetos. Desse modo, pontua, mais uma vez no campo da fenomenologia,
um afastamento da lógica de pensamento cartesiano de Descartes, em que a realidade
e o sujeito eram apresentados e confirmados a partir da racionalidade e, no campo da
psicologia, isso estende-se para compreender os fenômenos psicológicos por uma via de
racionalidade e internalidade, ou seja, o psiquismo (ROEHE; DUTRA, 2014).

Por essa via, que não dicotomiza o sujeito, a descrição fundamental do ser huma-
no, em Heidegger, é como ser-no-mundo, revelando um aspecto intimamente indissociá-
vel entre uma coisa e outra. Compreender que o sujeito é um ser-no-mundo é a primeira
condição para o entendimento do homem. Assim, por meio de uma analítica existencial,
busca-se a unidade da estrutura, busca compreender o sujeito como um todo.

Nesse sentido, o termo empregado para compreender o modo de ser humano


é Dasein que significa, literalmente, ser-aí, ou presença, como é traduzido para o
português. Prefere-se que o termo mantido seja o original para ser fiel ao seu significado,
mas em algumas edições e trabalhos da área, Dasein, ser-aí e Presença são sinônimos.
Nesse bojo conceitual, as características de Dasein são de ordem existencial e dizem
respeito ao modo de ser homem.

30
Os aspectos de como ser homem e de como o Dasein se manifesta pode ser
percebido no cotidiano em que o ser humano se coloca como mais um ente entre os
entes, mais uma pessoa entre as pessoas. Assim, o ser está sempre em jogo, de forma
que a essência do ser humano está, justamente, na sua existência. Ao contrário de
outros entes da natureza que possuem propriedades identificadas na matéria, como a
solidez de uma rocha ou o latido de um cão, a propriedade master do sujeito é existir e
descobrir modos possíveis de ser e, somente isso. E mesmo sendo, estamos projetando
quem ser, de forma que ser é uma questão para nós (ROEHE; DUTRA, 2014).

Como o Dasein está sempre implicado no mundo, está também sempre


envolvido e interessado, pois uma das estruturas existenciais é a disposição afetiva, são
as manifestações ônticas, como o humor. O humor é, aqui, compreendido como a forma
como a pessoa está, como se encontra, como se sente e a pessoa sempre “está alguma
coisa” no sentido de que não há neutralidade, mas está sempre aí, por ser, em essência,
um ser-aí-no-mundo (ROEHE; DUTRA, 2014). E estando no mundo, o sujeito toca e é
tocado por ele, até mesmo o desinteresse, a desimportância, a raiva e a indignação
revelam um modo de ser afetado.

Por esta via, é a partir do humor vinculado ao mundo que o Dasein se aproxima
ou se afasta de determinadas possibilidades, que se interesse ou despreze algum
tema ou tópico, e é a partir deste contato com o mundo que experimenta, também,
outras esferas do humor, sentindo tristeza, orgulho, alegria. Isto é possível graças à
disposição afetiva que o ente manifesta e sem ela o sujeito pode ter dificuldades em
eleger prioridades, pois todas as coisas carregariam um embotamento. O que atrai a
escolha do Dasein é o que interessa, o que importa, é para onde o sujeito demonstra e
manifesta abertura para o mundo (ROEHE; DUTRA, 2014).

Ademais, o Dasein também não se limita ao momento presente, ao aqui-e-


agora, pois não está vinculado, necessariamente, a uma materialidade do presente, o
Dasein existe em possibilidade, existencialmente, pois o modo do ser humano existir
é a partir de suas possibilidades (ROEHE; DUTRA, 2014). Estas possibilidades estão
sempre em relação e em diálogo com outros homens, pois ser-homem também envolve
a presença de outros homens. Este é um dado que não deve ser banalizado, mas levado
em devida consideração, pois o ser humano está sempre localizado em seu contexto
familiar, a uma profissão, a um país, a uma origem, ao uso de determinados objetos em
detrimento de outros.

Em outras palavras, a convivência é, em si mesma, um aspecto existencial do


Dasein, e sua realização pode variar dependendo de cada sujeito, podendo ser plena ou
insatisfatória, habilidosa ou árdua. Não obstante, é devido ao fato de o homem já nascer
num mundo que está pronto e onde sua existência é, desde o início, compartilhada
com outros entes, que o sujeito pode ser solitário, pois só pode ser solitário quem é
originalmente um ser social. Por isso, por vezes, nos chocamos quando vemos alguém
falando sozinho, pois supomos que quem fala, fala com alguém.

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Entretanto, o homem é lançado num mundo-com e se encontra com uma
série de regras e compreensões já estabelecidas que Heidegger designa como sendo
algo impessoal. Este sentido diz respeito ao fato de que a convivência cotidiana e a
rotina compartilhada, como os horários previamente estabelecidos e que praticamen-
te toda uma nação funciona de acordo, absorvem a individualidade, o si mesmo, de
modo que o sujeito não sabe como expressar e fazer sobressair o seu “eu” em meio
a tanta confluência. Na multidão da rotina e da vida cotidiana em que está “todo o
mundo”, há impessoalidade.

Nesse cenário, esse excesso de impessoalidade que exercitamos todos os


dias em comunidade alivia o Dasein de assumir uma responsabilidade individual por
suas escolhas e decisões, uma vez que na sociedade já há, previamente, uma série
de julgamentos e cartilhas sobre como se deve agir, como se deve falar, o que se deve
sentir, ou seja, “o impessoal facilita, nivela e superficializa a convivência cotidiana”
(ROEHE; DUTRA, 2014, p. 110).

É a partir da angústia, contudo, que o sujeito pode afastar-se das identificações


impessoais da vida cotidiana, pois a angústia causa estranheza, a angústia denota a
ausência de um lar, a falta de alicerce. É neste contexto que o Dasein se vê diante de
si mesmo, com sua singularidade, com suas possibilidades, o que não lhe era possível
quando estava imerso no cotidiano e nas rotinas que não permitiam, em meio a tantas
vozes, que visse e ouvisse a si mesmo.

A angústia, assim, possibilita que o Dasein escolha e amplie sua consciência, há


um apelo da consciência para que o sujeito seja recuperado de tanta impessoalidade.

O apelo da consciência indica o estar em dívida do Dasein para com


seu próprio ser. Em dívida para com as possibilidades mais próprias
que se deixa passar, enquanto se vive de acordo com o impessoal.
Perdido na impropriedade do impessoal, o ser humano não responde
por suas possibilidades, deixando-as ao arbítrio da impessoalidade. É
compreendendo o apelo da consciência que o Dasein pode escolher
a si mesmo. A fim de apropriar-se de si mesmo, o Dasein precisa se
responsabilizar por suas escolhas, assumindo a liberdade de escolher
a própria possibilidade de fazer escolhas (RUEHE; DUTRA, 2014, p. 111).

Assim, por meio do acesso à angústia, o sujeito pode anteceder a si mesmo e


se projetar num movimento em que visualiza sua possibilidade existencial última que é
a morte. Contudo, a morte não é encarada como um porvir, como algo que contamos
apenas quando ela chega, no futuro, mas o Dasein é, existencialmente, um ser-para-o-
fim, ao ponto de que se morre constantemente enquanto existe.

Por estas vias, a compreensão do homem como um ser-aí e como um ser-


junto-ao-mundo denuncia, ainda mais, uma lógica de compreensão do sujeito fechada,
acabada, pronta. Em Heidegger o sujeito é visto como uma abertura ao mundo com
suas possibilidades.

32
INTERESSANTE
A biografia de Heidegger é empanada por um acontecimento em que seus adeptos
pretendem reduzir a um mero episódio, e seus opositores consideram a consequência
lógica de suas ideias. Trata-se de sua adesão ao nazismo. Durante vários anos o filósofo
manteve silêncio sobre o assunto. Só em 1966, entrevistado pela revista alemã Der
Spiegel, consentiu em abordá-lo, assim mesmo sob a promessa de as suas declarações
serem divulgadas apenas depois de sua morte, compromisso efetivamente cumprido
pela editora da publicação. Heidegger substituiu Husserl, por recomendação deste, como
titular da cátedra de filosofia da Universidade de Freiburg. Em 1933, com Hitler já no
poder, foi nomeado reitor, segundo ele, indicado pelos próprios professores, convencidos,
então, de que ele era a única pessoa em condições de evitar que a Universidade fosse
desmantelada pela nova ordem política implantada na Alemanha. À frente da reitoria,
Heidegger adere formalmente ao nazismo, ingressando no Partido Nazista. No discurso
de posse, aponta a doutrina nazista como alternativa entre o comunismo e o capitalismo.
Perguntado sobre os motivos que o levaram a retirar a dedicatória a Husserl em Ser
e Tempo, a partir da 5ª edição da obra (1941), Heidegger respondeu que as diferenças
doutrinárias com seu antigo mestre se acentuaram, partindo de Husserl
a iniciativa de romper publicamente a amizade entre os dois. Ademais, a
decisão de eliminar a dedicatória surgiu de um acordo entre Heidegger
e seu editor, desconfiado este de que o livro não seria reimpresso caso
permanecesse a reverência a um filósofo judeu. Heidegger acrescenta
que proibiu qualquer propaganda antissemita dentro da Universidade,
além de impedir que os partidários do nazismo queimassem os livros de
autores contrários ao regime.

FONTE: Adaptado de PENHA, J. O que é existencialismo. São Paulo:


Brasiliense, 1990.

4 SARTRE – O EXISTENCIALISMO ATEU


Sartre foi um filósofo francês e é um dos mais populares autores existencialistas.
Sua obra mais conhecida é O Ser e o Nada, publicada em 1943, durante a Segunda
Guerra Mundial.

Não obstante, a obra O Ser e o Nada é o amadurecimento do autor, com ideias


com as quais já vinha trabalhando, e tem uma leitura mais árida e rebuscada, o que pode
ser difícil para um leitor pouco familiarizado com a filosofia. Com isso, Sartre publicou
uma obra mais palatável para o público mais amplo, denominada O Existencialismo é
um Humanismo.

33
Figura 7 – O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO

Fonte: <https://bit.ly/3IUJWdO>. Acesso em: 18 jul. 2022.

Em O Existencialismo é um Humanismo, Sartre expõe as ideias mais comuns


feitas contra o existencialismo pelos marxistas e pelos católicos. Além disto, discorre
sobre um dos pontos fulcrais no seu existencialismo, que é a ideia de que a existência
precede a essência. O debate entre existência e essência é antigo na filosofia.

A essência de uma coisa é aquilo que essa coisa é. A essência, por


exemplo, da cadeira na qual me encontro sentado no momento que
escrevo este livro é a própria cadeira. Desta essência, participam
todas as demais cadeiras existentes, não importa que tipo tenham
nem de que material foram fabricadas. [...] a essência não implica
obrigatoriamente a existência concreta do objeto no qual penso. E
como se pensássemos em objetos reais e virtuais, isto é, aqueles que
existem efetivamente e aqueles que têm possibilidade de existir. A
existência seria algo de concreto enquanto a essência corresponderia
a algo abstrato (PENHA, 1990, p.25).

Desse modo, podemos pensar em diversos tipos de cadeira, com modelos,


materiais e tamanhos diferentes, e nada disso colocaria em dúvida que aquilo é uma
cadeira. Trata-se, portanto, de uma ideia do que é este objeto, para que ele serve etc.
Entretanto, a cadeira que você, acadêmico, está sentado neste momento é uma cadeira
real, é uma cadeira concreta. Nesse sentido, há uma abstração universal da condição
da cadeira, enquanto essência, e que não precisamos acessar pela via concreta,
necessariamente, mas é apenas a via concreta que, via de regra, a materializa.

A perspectiva do existencialismo ateu, que concebe que a existência precede


a essência, apresenta também um posicionamento crítico quanto à noção de natureza
humana (SANTOS, 2016). Isso devido a algumas correntes filosóficas que, mesmo
renunciando à ideia de Deus, mantiveram a ideia de natureza humana comum a todos
os homens, uma ideia de homem universal, em que todos, tal como uma cadeira, teriam
a mesma essência.

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Pensarmos que a existência precede a essência, implica pensar que primeiro
o homem existe, primeiro o homem descobre-se, primeiro o homem surge no mundo
e só depois é que se define. Em outras palavras, não há uma essência pré-definida
para a realidade humana. Numa visão sartreana, o homem não é previamente definível,
pois, primeiramente, o homem não é nada. Só depois será alguma coisa, e tal como a si
próprio fizer. Trata-se, aqui, do que se faz com o que fizeram da gente. Esta visão, é claro,
contrasta com a ideia existencialista de Kierkegaard sobre atingir o espírito religioso
pois, para Sartre, não há natureza humana, pois não há Deus para concebê-la.

Não há, por conseguinte, nada a priori a definir o homem, nenhum


caráter essencial que o defina como algo dado para sempre. Sua
essência surge como resultante de seus atos, daquilo que ele faz
de si mesmo, algo a se realizar. O homem não é nada mais do que
aquilo que se projeta ser. Tal é o primeiro princípio do existencialismo,
afirma Sartre textualmente. O homem é, antes de mais nada, um
projeto que vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer
coisa podre ou uma couve-flor. Nada existe anteriormente a esse
projeto; nada há no céu inteligível, e o homem, diz Sartre, será, antes
de mais nada, o que tiver projetado ser. Se, no homem a existência
precede a essência, ele será aquilo que fizer de sua vida, não havendo
nada, além dele mesmo, de sua vontade, que determine seu destino
(PENHA, 1990, p. 10).

Portanto, não há ideias inatas sobre o homem quando ele nasce. O homem
extrai suas ideias a partir de sua vivência e sua experiência pessoal. Primeiro o homem
existe e depois, com o caminhar de suas experiências, com o tempo, torna-se isto ou
aquilo, e quem sabe, desenvolve e constrói sua essência. Assim, a essência de cada
homem só aparece em decorrência de sua existência, de como este homem caminhou
pelo mundo, quais escolhas que foram feitas em cada possibilidade. Estes são os atos
quem definem a essência do homem.

A questão da liberdade é um dos pontos centrais na filosofia de Sartre, vinculado


ao seu existencialismo ateu que se distancia de outras correntes do existencialismo que
tem um teor cristão, ou seja, a existência de Deus não é relevante para esta corrente do
existencialismo. Isto porque a existência ou não existência de Deus não altera o ponto
central, que se trata em entregar ao homem o encargo e a responsabilidade por sua
própria existência (SANTOS, 2016). Assim, a liberdade aponta para um modo de ser, para
um para-si.

Na visão sartreana, o homem está condenado a ser livre, pois não criou a si
mesmo e está sozinho no mundo, não tem uma essência originária que o guie em suas
decisões, não pode recorrer nem para fora nem para dentro. Por isso mesmo é livre, livre
para fazer as escolhas que convém, construindo a si próprio e costurando sua essência
no caminhar de sua existência. Isto responsabiliza o homem por sua existência, pois
retira dele qualquer desculpa para suas ações, sem recorrer à moral ou a credo, mas
escolhendo com autenticidade qual caminho deseja.

35
Por esta via, o que ideal é que o homem se abra a possibilidades que permitam
que ele seja, que ele se construa, pois não existem regras ou fundamentos pré-
estabelecidos. O ser é construído, em essência, na medida em que faz a si mesmo. Este
movimento no qual o homem se projeta rumo ao que pode ser é um dos princípios do
existencialismo, em que concomitantemente a liberdade e para-si são construídos.

Assim, a liberdade sartreana revela um projeto que também é uma tomada de


consciência rumo ao que é possível de ser alcançado pelo homem. Contudo, aqui a
liberdade não é um pódio de chegada, nem mesmo se trata de importar-se apenas com
seu desejo desconsiderando os demais. A liberdade sartreana se revela em cada ação
do homem, na forma como se configura, como escolhe, como elege a si, como delibera
suas possibilidades, como sustenta a si, como afeta e é afetado.

5 SIMONE DE BEAUVOIR – EXISTENCIALISMO E FEMINISMO


Simone de Beauvoir (1908-1986), francesa, escreveu na década de 1940 o livro
intitulado “O Segundo Sexo”, com dois volumes, no qual ataca de forma feroz, porém
madura, a ideia patriarcalista da época – que se mantém até hoje – e faz uma análise da
criação do feminino e do masculino, considerando o contexto a que são, desde criança,
inseridos e estimulados (ou não). Dessa maneira, torna-se importante para maior
compreensão do feminino – e de sua construção – o entendimento da contribuição da
autora para a sociedade.

Figura 8 – SIMONE DE BEAUVOIR

Fonte: <https://bit.ly/3ziNVxF>. Acesso em: 19 jul. 2022.

36
Beauvoir (1967) diz que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, desde a mais
tenra infância com olhares, regras e frases socialmente estereotipadas que auxiliam na
alienação da mulher, dificultando a busca por sua própria identidade, não propiciando
subjetividades, mas pelo contrário, atribuindo papéis à mulher que dizem respeito à
opressão e submissão, ressaltando a superioridade masculina desde os primeiros
meses de idade.

Não há referências biológicas para o sentido dado à “fêmea” na sociedade, o


reconhecimento e apreensão do mundo, bem como processo de identificação, são
efetuados por meio do contato com o externo, e não dizem respeito ao órgão sexual
do sujeito. A criança, nos primeiros anos, sente prazer com a sucção ou o morder,
independentemente se pertence ao sexo masculino ou feminino, não há atribuição ao
pênis ou ao clitóris relativo aos prazeres sexuais infantis (BEAUVOIR, 1967). Desde cedo,
a criança recebe influência do mundo social que o cerca e identificar-se-á com o modelo
que foi ensinado, como por exemplo, comportar-se como menino ou como menina,
aprendido em família e ressaltado na escola; também aprenderá, com o desenvolver
da linguagem, a referir-se a ambos os sexos em particular predominantemente ao
sexo masculino em geral; tal processo pode ser deveras confuso para a menina em
desenvolvimento que não ouvirá as sentenças no plural verbalizadas no feminino,
sempre serão faladas no masculino, independentemente da quantidade de meninos ou
meninas que a sentença se refira (MORENO, 1999). Tais aspectos podem contribuir para
uma ideologia conservadora burguesa, na qual a menina passa a habituar-se a essas
normas, aceitando e ajudando a disseminar o androcentrismo predominante.

Nos primeiros anos, a criança, tanto o menino quanto a menina,


comporta-se de maneira muito parecida, com expressões faciais
e necessidades de ser percebido pelos pais, tal como era na fase
anterior ao desmame; com o passar da idade, ocorre o primeiro
problema, diz respeito ao “masculinização” do menino, num sentido
onde não é mais viável que ele sente no colo dos pais e procure por
carinho, pois esses comportamentos são atribuídos à feminilidade.
Ou seja, à menina ainda é permitido, pois é mais frágil e deve demorar
mais a crescer, mas o menino, na realidade deve logo se tornar um
“homenzinho” e não demonstrar fraquezas e carências. Pode parecer,
ao primeiro momento, que se trata de um privilégio concedido
às meninas, porém, é necessário ter a compreensão de que estas
atribuições se referem ao fato de que aos homens estão reservados
papéis maiores e melhores do que aqueles passivos e ofuscado das
mulheres (BEAUVOIR, 1967, p. 11).

Aos meninos, cabe um processo de identificação com o pai de forma muito


mais gratificante, pois são instaladas valorização e virilidade, ambos tão almejados na
sociedade; as meninas, por outro lado, não passam pelo mesmo processo, visto que as
mães não lhe incitam orgulho do sexo em que nascera, na verdade, é como se a menina
não tivesse sexo algum.

37
Então, a menina passa a se preocupar com seu interior, considerando que
não pode encarnar-se de nenhuma parte do seu próprio corpo, em compensação,
é posta uma boneca em suas mãos, onde continuará sendo feito o mesmo de
sempre, a menina identifica-se com a boneca e precisará ser, de fato, uma boneca,
que representa a totalidade de um corpo e funciona como porta para a passividade
e alienação, num sentido onde, tal como diz Beauvoir (1967, p. 20): “a menina embala
sua boneca e enfeita-a como aspira ser embalada e enfeitada”, e nesse contexto,
com a adição de imagens e palavras, aprende o significado de “feia” e “bonita” e, para
agradar, precisa ser utopicamente bonita e compara-se a princesas de contos de
fada, esse narcisismo nasce desde muito cedo na menina, o que também não é algo
biológico, pelo contrário, o contexto social tem grande importância nesse processo,
é um destino posto por instituições que esteve em contato nos primeiro anos; o que
também ocorre com o menino no sentido de comportar-se tal como lhe é esperado,
exibindo músculos e virilidade.

Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência


autônoma e seu "ser-outro"; ensinam-lhe que para agradar é preciso
procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à
sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe
a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos
exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o
mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará
afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia
manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o
mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino
(BEAUVOIR, 1967, p. 22).

Numa infância em que a menina fora sempre reprimida e mutilada, na mocidade


não faz nada senão sonhar sua passividade, aguarda o homem que a possua; obviamente,
o adolescente também sonha com a mulher, mas num caráter bastante diferente, dada
a importância que foi dada à virilidade durante toda a infância, é sabido que ele será
o dono do mundo e a mulher será um complemento, cuidando de si, estando sempre
bela para a sociedade, pois o espelho foi apresentado a ela desde cedo e instalado o
narcisismo, no qual a menina não individualiza, ao invés disso, aliena-se.

É estimulado na sociedade o acúmulo de pretendentes, a família fica


orgulhosa, as colegas da mesma faixa etária invejam a capacidade da adolescente,
e tudo indica que ela seguirá nesse caminho de conquistas por meio da sua própria
imagem (BEAUVOIR, 1967).

No início da puberdade é incitado ao menino que aprenda e se interesse


por assuntos de caráter agressivos ou esportivos. E, mesmo quando adulto, se algo
frustra o homem, ele pode, naturalmente, encontrar a resolução do problema a partir
de brutalidades, é característico de sua virilidade socialmente nata, é sinal de sua
superioridade, não há problema nenhum.

38
A menina, por outro lado, por vezes não é estimulada em nenhuma etapa para
atividades esportivas, nunca estimulada, e a adolescente passa a não acreditar nas
potencialidades de um corpo que nunca experimentara, ao contrário, deve ser preparada
para a meiguice e docilidade, este é seu lugar reservado na sociedade (BEAUVOIR, 1967).

O corpo, para os meninos, é tipo como um sucesso objetivo, a saber, a


preocupação com seus músculos e orgulho que estes últimos podem trazer, enquanto
a mulher tem o próprio corpo com a vergonha embutida desde a infância, todo o aparato
corporal é sinônimo de timidez e embaraço, não é viril.

Com a chegada da menstruação esse horror a si mesma tende a aumentar, pois


são chegadas mensalmente as dores, inchaços e indisposições que parece tornar seu
corpo ainda menos funcional e tal angústia pode corroer o corpo feminino. Paralelo a isso,
ocorre a diminuição de estímulos da família e da sociedade em geral, em comparação
com os estímulos voltados, por exemplo, para irmãos com a mesma faixa etária. A moça
precisa ter controle de si mesma, apresentar-se sempre de forma bem-comportada,
com pouca espontaneidade ou movimentos bruscos e, por esses motivos, muitas vezes
as meninas tendem a preferir a companhia masculina, que parece ser mais solta e livre,
sem preocupações, tendo-os como melhores, incitando em si mesmas a mediocridade
e a preguiça (BEAUVOIR, 1967).

A mulher aprendeu, desde a infância, que é necessário abdicar de si mesma


para poder agradar outrem, é preciso ser fútil, dócil, embelezar-se como uma boneca,
estar dentro dos padrões socialmente aceitos e, só assim, conseguirá agradar aqueles
que lhe interessam, aqueles que deverão possui-la, cuidá-la e quem ela tanto gostará
de ter por perto com noções de poder. Nesse sentido, abdicando do interior de si,
valorizará o externo, o espelho, a beleza; necessitará de elogios, principalmente dos
homens, adorará que as outras pessoas falem sobre ela e suas qualidades externas;
também poderá recorrer a misticismos e magias, só lhe resta sonhar que seu corpo
fará com que homens fiquem aos seus pés e façam suas vontades, pois esta é uma
forma de adquirirem o poder que almejam; por meio de protestos simbólicos, quebra
copos, pratos, grita ao vento, sua forma de agressividade, de dizer não à passividade
(BEAUVOIR, 1967).

A mulher é levada à devoção de si mesma muito mais que o homem,


caracterizando um estado de narcisismo muito claro, no qual “o eu é posto como um
fim absoluto e o sujeito nele foge de si” (BEAUVOIR, 1967, p. 395), a menina desde cedo
se sente frustrada pelas circunstâncias da superioridade masculina, mais tarde, como
mãe, esposa, dona de casa, tem seus afazeres, mas nada disso é, de fato, reconhecido,
então volta para si mesma porque, caso contrário, ninguém mais o fará e é de suma
importância entender que sua educação a encorajou para que voltasse para si mesma.

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DICA

Fonte: < https://bit.ly/3PJPdYb>. Acesso em: 19 jul. 2022.

“Mulher Desiludida”, da Simone de Beauvoir. Ela retrata a dor, o sofrimento, a solidão e


as inseguranças de mulheres, tidas como frágeis e que, com frequência, entregam-se a
cóleras. As personagens do livro sempre ‘encoleram-se’, o que ao mesmo tempo que é um
estado emocional, também foi um surto de doença que matou e destruiu tantos. O primeiro
conto, a mulher, casada e com um filho, vê-se frustrada pelo fato de o filho ter abandonado
a carreira acadêmica a fim de dar cabo a uma carreira política, também influenciado por sua
esposa. A mulher, mãe, sente-se posta de lado, traída, abandonada visto a contramão que
o filho decide pegar. Ela não conseguia aceitar as mudanças do tempo, temia olhar para a
própria velhice, encolera-se contra o esposo e o filho visto que tinha caído ou despossada
do pedestal. O fato do afastamento do filho em relação aos ‘valores familiares’ regados e
alimentados, como a posição à esquerda na política, o horror ao arrivismo, o
desdém às exuberâncias, levou a mulher a rever sua história, a educação que
dera ao filho, o relacionamento com o esposo e a própria carreira acadêmica
e profissional que seguira. Ao fim, ela tinha o apoio, mas precisava dosar o
controladorismo, alimentar a flexibilidade e a desilusão de encarar o filho
como coisa real, concreta e outra, outra coisa que não o que ela escolheu
e decidiu para ela. Foi duro. Às vezes ficamos em teimosias para fazer valer
nossa opinião, e ficamos tanto tempo nisso que nos parece impossível de
romper, de pegar outras lentes. Talvez, por isso mesmo, a vida nos ofereça
grandes rompantes.

6 A PSICOLOGIA EXISTENCIAL
Somado ao cenário social e cultural que funciona pela coerção e busca por
padronizações de corpos, ações e sentimentos, também podemos pensar sobre a visão
que temos de humano e sua constituição. A perspectiva de que a existência precede a
essência é fulcral para a forma como olharemos as violências dos outros e, também, as
nossas. Isto implica em ter uma leitura de uma lógica social eminentemente opressora,
ao passo que também implica em compreendermos que aprendemos determinados

40
posicionamentos, mas que nosso desenvolvimento é constante, logo, não funcionamos
como entidades fixas, estáveis e estanques, mas temos a possibilidade de caminhar de
outros modos, a partir do vislumbre de novos horizontes possíveis para nós e para as
nossas relações.

De um lado, compreendendo o contexto opressor em que vivemos e, de outro


lado, compreendendo que a nossa existência é tecida, fio a fio, a cada instante, assim
olhamos para a teoria da opressão como quem se olha a um espelho. Desse modo, sinto,
avalio e reoriento meu olhar e minha postura sobre as violências que sofri e, assim,
consigo sustentar, acompanhar as travessias contadas e experimentadas por aqueles
que me procuram como terapeuta com a sensibilidade de quem também busca por
novas experiências e afetos.

A importância dessa compreensão para além de teórica, mas também como


ética e como afeto, se revela no respeito que desenvolvemos pela história e pelas
resistências do outro, sem empurrá-lo para um pódio de chegada estabelecido por mim
ou por outrem (RIBEIRO, 1998). Se “quanto menos me empurram ou eu me empurro,
mais eu ando” (RIBEIRO, 1998, p.58), então caminho também com o respeito ao tempo
e à forma de movimento do outro. Este processo, não obstante, é como um ciclo do
espelho, quanto menos eu me empurro, também menos empurro o outro e, assim,
construímos novos modos de andar e perceber os horizontes.

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RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• O Existencialismo é uma corrente que ganha forma, sobretudo após o término da


Segunda Guerra Mundial, na Europa.

• Quando pensamos na palavra “existencialismo”, quase de imediato relacionamos a


outra, “existência” e esta, por sua vez, faz-nos pensar em seu contraponto, a essência,
o que é uma contraposição clássica do existencialismo.

• Um dos pioneiros pensadores do existencialismo moderno é Søren A. Kierkegaard


(1813-1855) com uma base de meditação religiosa.

• Na lógica de Kierkegaard, o sistema é abstrato e a vida é concreta e, assim todo conhe-


cimento se liga à existência, à subjetividade, mas jamais ao abstrato e ao racional.

• Para Kierkegaard a existência do homem está vinculada a três estágios: o estético, o


ético e o religioso.

• Sartre foi um filósofo francês, o qual um dos mais populares autores existencialistas,
e sua obra mais conhecida é O Ser e o Nada, publicada em 1943, durante a Segunda
Guerra Mundial.

• Em O Existencialismo é um Humanismo, Sartre expõe as ideias mais comuns feitas


contra o existencialismo pelos marxistas e pelos católicos.

• A perspectiva do existencialismo ateu que concebe que a existência precede


a essência apresenta também um posicionamento crítico quanto à noção de
natureza humana.

• A liberdade sartreana revela um projeto que também é uma tomada de consciência


rumo ao que é possível de ser alcançado pelo homem.

• Beauvoir (1967) diz que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, desde a mais tenra
infância com olhares, regras e frases socialmente estereotipadas que auxiliam na
alienação da mulher.

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AUTOATIVIDADE
1 Heiddeger, é um dos principais filósofos fenomenológicos-existenciais, e sua obra
tem destaque para quem se debruça na área. Sobre o pensamento de Heiddeger,
assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Dasein implica na liberdade pura do homem.


b) ( ) Há uma separação cabal em o homem e o mundo.
c) ( ) Ser-aí e presença são sinônimos.
d) ( ) O Dasein limita-se sempre ao momento presente.

2 O existencialismo é uma abordagem da filosofia que surge após a Segunda Grande


Guerra, e ganhou destaque na época por estar alinhada ao contexto de seu
surgimento. Sobre o existencialismo, classifique V para as sentenças verdadeiras e F
para as falsas:

( ) O existencialismo questiona a necessidade da existência.


( ) Há correntes cristãs e correntes ateias dentro do existencialismo.
( ) Sartre prega que a essência precede a existência.
( ) Simone de Beauvoir aborda sobre questões de masculinidade.

a) ( ) F – V – F – F.
b) ( ) F – V – V – F.
c) ( ) F – V – F – V.
d) ( ) F – V – V – V.

3 Kierkegaard vincula a existência do homem a três estágios, a partir de sua lógica


existencialista. Sobre estes estágios, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Estético, Ético e Religioso.


b) ( ) Estético, Essência e Ético.
c) ( ) Dasein, Religioso e Essência.
d) ( ) Liberdade, Ética e Religioso.

4 Sartre foi um dos maiores filósofos existencialistas, e atuou também em movimentos


sociais, foi criticado por diversas frentes, mas sua obra segue sendo necessária
no âmbito acadêmico e traz questões para pensarmos nossos posicionamentos e
responsabilidades no mundo. Disserte sobre a questão da liberdade em Sartre.

5 Simone de Beauvoir foi uma filósofa que fez história ao publicar O Segundo Sexo, em
que aborda de maneira existencial a existência da mulher na sociedade europeia do
século XX. Discorra sobre o pensamento desta autora.

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UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS
DO HUMANISMO

1 INTRODUÇÃO
O movimento humanista produziu repercussões importantes na construção de
um novo pensamento psicológico, e contou com a contribuição de diferentes áreas do
conhecimento, como a filosofia, a antropologia, a arte, a religião, e ainda estudos não
ocidentais como o holismo, culminando na criação da psicologia humanista.

A psicologia humanista surge de um movimento de revolução da psicologia,


no qual os teóricos percussores criticaram a postura tradicional das duas correntes
predominantes da época, rotulando-as como mecanicistas e excessivamente centradas
em patologias e disfunções comportamentais, inaugurando a terceira força da psicologia.

Acadêmico, a seguir, no Tópico 3, será apresentado um breve histórico do


movimento humanista e suas diversas facetas ao longo do tempo, a construção da
psicologia humanista e as críticas às correntes predominantemente difundidas na
época, uma síntese da biografia das principais referências da psicologia humanista e,
por fim, alguns conceitos centrais que são contemplados pela referida abordagem.

2 HUMANISMO
Partindo de uma perspectiva histórica, prescindindo de preferências filosóficas
ou religiosas, o termo humanismo pode ser associado a cinco grandes momentos no
que tange a compreensões psicológicas, segundo Gomes, Holanda e Gauer (2004):
humanismo clássico, humanismo romântico, humanismo individual, humanismo social,
e humanismo crítico. O humanismo clássico ou ideal consistiu em um movimento
caracterizado pela defesa da individualidade, da singularidade, e da expressividade
irrestrita, estimulando a liberdade e independência, sendo seu correlato político e social, o
liberalismo. Com relação ao humanismo romântico, que teve seu auge durante os anos
de 1780 e 1830, caracterizou-se pelo movimento filosófico, jurídico, político, econômico
e artístico de defesa da expressão plena dos sentimentos, que para além de defender a
liberdade e a independência, partiu do primado da intuição e do sentimento, que está à
frente da razão e da análise, sendo seu correlato político a revolução francesa.

No que se refere ao humanismo individual foram recuperados, nos anos 1960,


valores como a independência, a dissidência, o hedonismo e a auto expressão. Além
disso, foram resgatados valores que se tornaram referências da psicologia humanista,
como a defesa do valor do ser humano não pela sua produção, mas pelo seu potencial
45
como propõe Abraham Maslow, e na confiança irrestrita na pessoa, defendida por
Carl Rogers. Este movimento produziu repercussões sociais e políticas no campo da
liberdade e igualdade, promovendo a defesa de minorias e da democracia. Apesar de
sua natureza de movimento de contracultura, reproduziu e estimulou ideias capitalistas.

O humanismo social consistiu em um movimento de revolta as injustiças e


desigualdades sociais, principalmente às diferenças de classes. A resistência e luta
contra processos de alienação e dominação histórica e econômica, mobilizou revoluções
populares de inspiração marxista para a tomada de consciência dos diferentes modos e
possibilidades de vida, contrapondo-se ao expansionismo capitalista.

Por fim, o humanismo crítico caracteriza-se por um movimento estruturalista


e pós-estruturalista, consistindo em uma abordagem fundamentalmente técnica
e metodológica, que vislumbra uma redefinição da relação do ser humano consigo
mesmo. Centra-se na reformulação ontológica da condição humana, buscando explicar
a experiência consciente por meio de estruturas fundamentais da própria experiência,
sem prescindir dos valores dos demais humanismos como a exaltação do indivíduo
como criador de seus próprios sentidos.

Como expõe Gomes, Holanda e Gauer (2004, p. 5),

O humanismo não é uma teoria, não é um método, não é uma filosofia,


e nem é uma psicologia. É um movimento implícito na historicidade
das ideias que aflora com maior ou menor intensidade de tempos
em tempos. Enquanto mensagem, alcança uma variedade de grupos,
dos mais diferentes modos, em função de um estado de opressão
individual e social. Enquanto força de mobilização, pode estar na
base da busca individual por mudança de sentido de vida, ou na
mobilização de grandes massas por justiça e reformas sociais.

Tendo em vista o exposto, os humanismos têm premissas em comum, e estão


essencialmente comprometidos com a transformação e melhoria da qualidade de vida,
seja a partir da coletividade, como propõe o humanismo social, seja a partir da promoção
das revoluções individuais como proposto pelo humanismo individual, que alicerçou a
construção da psicologia humanista.

3 PSICOLOGIA HUMANISTA
O movimento conhecido como “terceira força em psicologia”, surgiu na
década de 1960, a partir de um grupo de psicólogos e pensadores progressistas da
época, como reflexo de um descontentamento com abordagens deterministas e
mecanicistas que predominavam nesse período, como a Psicanálise e o Behaviorismo.
A psicologia humanista surgiu oficialmente em 1962, nos Estados Unidos, com o intuito
de desenvolver uma psicologia que abordasse a subjetividade e experiência interna

46
a partir de princípios holísticos, compreendendo o ser humano como um todo, sem
fragmentações em comportamentos e ou dimensões específicas da experiência como
o inconsciente. Como expõe Riveros Aedo (2014, p. 142), a psicologia humanista surge
de um movimento de autores embasados em diferentes saberes,

A Psicologia Humanista não é um sistema ou um pensamento, mas


sim um movimento de constelação, de renomados autores que têm
em comum a expansão da ciência, buscando o conhecimento do
que é propriamente humano em outras disciplinas (antropologia,
filosofia, religião e o estudo da arte dimensão). Além de valer-se de
outras disciplinas, essa nova Psicologia tenta abarcar o homem como
um ser holístico e complementado pelo seu contexto, legitimando
a dimensão subjetiva por meio de um novo objeto da Psicologia: a
experiência interna.

NOTA
Holismo: Smuts (1996) descreve como uma tendência sintética do universo
em evoluir por meio da formação de todos (wholes). A evolução não é
nada, além do que o desenvolvimento gradual em todos compostos por
séries progressivas. Essa formação de todos se dá desde a estratificação
dos princípios inorgânicos até o nível da criação espiritual. O autor
destaca ainda, que a formação da personalidade seria, então, mais um
caso representativo dessa tendência da natureza em evoluir na direção
da composição de todos (LIMA, 2008).

Os psicólogos humanistas posicionaram-se em oposição as duas correntes


predominantes da época, ao considerar que ambas se centralizavam apenas em partes
do ser humano, como o comportamento observável e a dimensão do inconsciente,
sendo ambas apenas uma perspectiva da realidade do ser humano. As críticas as
duas correntes foram construídas sob influência de trabalhos anteriores, como do
neuropsiquiatria Kurt Goldstein, da Psicologia da Gestalt e, ainda, de alguns teóricos da
personalidade como Gordon Allport, Henry Murray e Gardner Murphy.

Para os teóricos da psicologia humanista, a psicanálise consistia em uma


teoria determinista, dogmática e reducionista, além de centrada nas disfunções e
traumas gerados na infância. Abraham Maslow, um dos principais nomes da psicologia
humanista, ressaltava que a construção do método psicanalítico se originou a partir de
estudos sobre neuróticos e psicóticos, portanto, consiste em uma teoria centrada nas
disfunções e perturbações humanas, pouco se aprofundando na dimensão saudável do
ser humano (MASLOW, 1970).

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Assim, a dimensão saudável do ser humano é vista e considerada em oposição
ao funcionamento neurótico e psicótico, reduzindo a experiência humana à polarização
saúde e doença, tendo o princípio central e norteador o adoecimento. O autor defende
uma psicologia com seus estudos voltados às qualidades e características positivas do
ser humano como o altruísmo e a satisfação, portanto, um estudo do indivíduo saudável,
ao invés da psicopatologia.

No que se refere às críticas e oposição da psicologia humanista ao Behaviorismo,


Castañon (2007), descreveu quatro pontos fundamentais:

• A discordância das pesquisas com animais como acesso a uma compreensão


adequada do ser humano. Assim, uma psicologia baseada em dados animais excluiria
aquilo que deveria ser o objeto central dos estudos psicológicos como os processos
e experiências distintamente humanos.
• O desacordo com as exigências na escolha dos temas de pesquisa pautados na
adequação ao método experimental, ao invés de temáticas importantes e relevantes
sobre conhecimentos psicológicos a respeito dos seres humanos.
• A oposição à concepção reativa e mecanicista do ser humano, propondo uma
concepção proativa da natureza humana, inserindo conceitos como da motivação
humana sendo intencional e auto motivada.
• A compreensão do ser humano para além dos comportamentos observáveis, não
sendo possível realizar uma descrição da natureza humana apenas por meio da soma
de comportamentos.

3.1 PRECURSORES DA PSICOLOGIA HUMANISTA


A construção da psicologia humanista se deu a partir do diálogo de um grupo
de pensadores que compartilharam da mesma inquietude cultural e vivenciaram o
mesmo zeitgeist, sendo alguns deles: Kurt Goldstein, Carl Rogers, Abraham Maslow,
Rollo May, Karen Horney, Aldous Huxley dentre outros. A seguir, será apresentado um
breve histórico da atuação dos principais precursores da psicologia humanista e que
são utilizados como referência da abordagem, como Abraham Maslow e Carl Rogers.

NOTA
Zeitgeist: um termo alemão que descreve um conjunto de opiniões que
dominam um momento específico da história e que, sem que nós nos
apercebamos – de modo inconsciente, determinam o pensamento de
todos os que vivem num determinado contexto (BROZEK; MASSIMI, 2002).

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3.1.1 Abraham Maslow (1908-1970)
Maslow nasceu no Brooklyn, Nova Iorque em 1º de abril de 1908, o primogênito
de sete filhos de uma família imigrante russa. Teve uma infância difícil, com a presença
reduzida de amigos, e intensos conflitos com a mãe e o pai. Ao final da adolescência, em
virtude da pressão da família para se tornar advogado, matriculou-se na Faculdade de
Direito da Universidade de Nova Iorque, 1926.

Chegou a realizar um curso de introdução à psicologia, na Universidade de Cornell,


porém teve uma experiência frustrante na instituição. Em 1930, debruçou-se a estudar psi-
cologia novamente, e para tanto, mudou-se para Madison, para ingressar na Universidade
de Wisconsin, na qual obteve os títulos de bacharel (1930), mestre (1931) e doutor (1934).

Maslow nutria grande interesse pela abordagem psicanalítica proposta por


Alfred Adler. Já em 1935, o autor trabalhou com Edward Thorndike na Universidade
de Columbia, conheceu Kurt Goldstein, e durante sua passagem pela instituição teve
contatos e foi influenciado pela Antropologia de Ruth Benedict e pela Psicologia da Gestalt
de Max Wertheimer. Após sua saída da Universidade de Columbia, Maslow retornou para
Nova Iorque em 1947, e tornou-se docente no Departamento de Psicologia do Brooklyn
College, lecionando durante quatorze anos (CASTELO BRANCO; SILVA, 2017).

Em 1951, foi convidado para atuar como presidente do Departamento de Psico-


logia da Universidade de Brandeis, em Massachessetts, e na referida instituição, cons-
truiu estudos sobre motivação, personalidade e autorrealização. As temáticas desper-
taram interesse de Douglas McGregor, professor de Administração do Massachessetts
Institute of Technology, utilizando os conceitos e ideias maslownianas no mundo dos
negócios, desenvolvendo trabalhos sobre gerenciamento, trabalho autorrealizável, cria-
tividade e liderança (CASTELO BRANCO; SILVA, 2017). Apesar de eleito presidente da
American Psychological Association (APA) em 1966, em virtude da sobrecarga de traba-
lho e da saúde cardíaca debilitada, Maslow necessitou afastar-se da universidade e das
atividades acadêmicas.

Entretanto, aceitou o convite para se tornar resident fellow da Fundação


Laughlin, em Menlo Park, Califórnia, conhecido como o berço estadunidense das ideias
empresariais criativas, em 1969, popularizando suas perspectivas sobre empresas e
gestão de pessoas no Vale do Silício (CASTELO BRANCO; SILVA, 2017).

Em 1970, Maslow chegou a aceitar um cargo superior de residência da Saga


Administrative Corporation, no entanto, sofreu um ataque cardíaco e veio a óbito,
encerrando sua trajetória como psicólogo humanista. Como psicólogo e pesquisador,
deixou ricas contribuições que são aplicadas em diferentes áreas de atuação,
principalmente no mundo empresarial. Suas ideias foram amplamente difundidas,
embasando diversas ações e estratégias profissionais na educação, nas organizações e
empresas, e outros setores, sobretudo sua teoria motivação humana, utilizada até hoje
como referência sobre desenvolvimento pessoal.

49
Tabela 1 – PRINCIPAIS OBRAS DE MASLOW PUBLICADAS E TRADUZIDAS PARA O
PORTUGUÊS BRASILEIRO

Tradução para o português brasileiro


Livro (ano de publicação original)
(ano da publicação)
Motivation and Personality (1954) -
Toward a Psychology of Being (1962) Introdução à Psicologia do Ser (1970)
Religions, Values, and Peak Experiences (1964) -
Maslow no Gerenciamento (2000) / Diário de
Eupsychian Management (1965)
Negócios de Maslow (2003)
The Psychology of Science: a
-
Reconnaissance (1966)
The Farther Reaches of Human Nature (1971) -
Future Visions: the Unpublished Papers of
-
Abraham Maslow (1996)
Total de Traduções 2

Fonte: Castelo Branco e Silva (2017, p. 194)

3.1.2 Carl Rogers (1902-1987)


Carl Rogers nasceu Oak Park, em Illinois, em 8 de janeiro de 1902, sendo
o quarto filho da família, em um total de seis filhos. Durante a infância, teve um bom
desempenho escolar, chegando a ler antes dos 5 anos e a pular de série. Inicialmente,
Rogers graduou-se em ciências físicas e biológicas, em 1924.

Após sua participação em um seminário de teologia, Rogers decidiu estudar


psicologia na Universidade de Columbia e, posteriormente, tornou-se mestre em 1928,
e doutor em Psicologia Clínica e Educacional, pela mesma instituição em 1931. Durante
o doutorado, Rogers trabalhou com crianças e adolescentes carentes, em Rochester,
chegando a publicar seu primeiro livro em 1939, intitulado “O Tratamento Clínico da
Criança-problema”.

Sob orientação de Leta Hollingworth, participou da criação de um inventário


de traços e fatores para avaliar níveis de ajustamento de personalidade. Dedicou-se
ainda, a estudos ao tratamento do organismo e ambiente em relação ao ajustamento
e adaptação (autorregulação), não se prendendo a estruturas e elementos, mas às
funções relacionadas à organicidade das pessoas, rompendo com o paradigma de
estímulo-resposta (CASTELO BRANCO; CIRINO, 2016).

Rogers dirigiu, a partir de 1929, por 12 anos, o Centro de Observação e Orientação


Infantil da Sociedade para Prevenção de Crueldade Contra Crianças, no qual conheceu
Otto Rank, que influenciou sua prática terapêutica.

50
Rank foi um psicanalista que divergia de alguns postulados freudianos, e que
centrou seus estudos no conceito de vontade como força guia no desenvolvimento
da personalidade, e ainda na importância do trauma para a construção das neuroses
e, portanto, a necessidade de se libertar das culpas desenvolvidas por situações
traumáticas. O contato com Rank e suas proposições influenciaram posteriormente o
trabalho desenvolvido pelo autor humanista, sobretudo no que se refere a sua atuação
com crianças traumatizadas.

Ainda no início de sua carreira, Rogers trabalhou com aconselhamento


psicológico, uma modalidade de abordagem psicológica que se diferencia da psicoterapia
por não vislumbrar o enfoque no histórico de vida da pessoa, tão pouco analisar em
termos de sintomas e doenças, o que levaria a um número maior de sessões.

O aconselhamento psicológico implicaria na compreensão da tensão que o


indivíduo sofre a fim de identificar o fator situacional e construir um plano de intervenções
para gerar adaptações e ajustamentos necessários.

Apesar dos anos investidos nessa modalidade de atendimento, questionava o


excesso da utilização de testes psicológico, e a carência do desenvolvimento relacional
(CASTELO BRANCO; CIRINO, 2016).

A partir das diversas influências ao longo de sua carreira, e partindo de


uma postura instigada pelo movimento humanista da época, o autor debruçou-se
a construir uma modalidade de psicoterapia menos diretiva e mais voltada para a
aceitação dos sentimentos das pessoas pelo terapeuta, rompendo com dinâmicas
psicoterapêuticas essencialmente interpretativas, surgindo a Abordagem Centrada
na Pessoa, e que posteriormente foi amplamente difundida e reconhecida pela co-
munidade acadêmica internacional.

Tabela 2 – PRINCIPAIS OBRAS DE ROGERS PUBLICADAS E TRADUZIDAS PARA O


PORTUGUÊS BRASILEIRO

Tradução para o português brasileiro


Livro (Ano de publicação original)
(Ano da publicação)
The Clinical Treatment of The Problem O Tratamento Clínico da Criança
Child (1939) Problema (1978)
Counseling and Psychotherapy (1942) Psicoterapia e Consulta Psicológica (1987)
Counseling With Returned
-
Servicemen (1946)
Client-Centered Therapy (1951) Terapia Centrada no Cliente (1992)
Psychotherapy and Personality
-
Change (1954)

51
Psicoterapia e Relações Humanas: Teoria
Psychotherapie en Menselyke
e Prática da Terapia Não-Diretiva –
Verhoudingen (1959)
Volume 1 (1975)
On Becoming a Person (1961) Tornar-se Pessoa (1976)
Psychotherapie et Relations Humanies: Psicoterapia e Relações Humanas: Teoria
Theorie et Pratique de la Therapie Non- e Prática da Terapia Não-Diretiva –
Directive (1962) Volume 2 (1975)
Person to Person: The Problem of Being De Pessoa Para Pessoa: o Problema de
Human (1967) Ser Humano (1976)
The Therapeutic Relationship and Its
Impact: A Study of Psychotherapy with -
Schizophenics (1967)
Man and Science of Man (1968) O Homem e a Ciência do Homem (1973)
Freedom to Learning: A View of What
Liberdade de Aprender (1973)
Education Might Become (1969)
Encounter Groups (1970) Grupos de Encontro (1978)
Becoming Partners: Marriage and Its Novas Formas do Amor: o Casamento e
Alternatives (1972) Suas Alternativas (1974)
A Way of Being (1980) Um Jeito de Ser (1983)
On Personal Power (1977) Sobre o Poder Pessoal (1979)
Liberdade de Aprender em Nossa
Freedom to Learn for the 80's (1983)
Década (1985)
Carl Rogers: The quiet revolutionary. An
-
Oral History
Total de Traduções 14
Fonte: Adaptada de Castelo Branco e Cirino (2017)

4 CONCEITOS E CONVERGÊNCIAS
Considerando as diferentes faces dos movimentos humanistas e, principalmente,
da psicologia humanista, John Shaffer (1978) destaca que a psicologia humanista pode
ser resumida em cinco pontos principais de convergências:

• alinhamento com a fenomenologia e o existencialismo, sendo o ponto de partida a


experiência consciente;
• abordam o ser humano a partir de uma de totalidade e integridade;
• compreendem que a condição humana é limitada pela relação do eu-corpo/outro/
mundo, porém tal fato não destitui a liberdade e autonomia;

52
• desenvolvem uma metodologia antirreducionista;
• comprometem-se e assumem uma ética fundamentada na abertura para a
experiência, na liberdade e possibilidade de escolher e na capacidade exequível de
reconstrução de sentidos de vida.

A seguir, serão discutidos alguns conceitos centrais que permeiam a constru-


ção de uma abordagem psicológica pautada em princípios da psicologia humanista.

4.1 MOTIVAÇÃO HUMANA


Maslow (1970) desenvolveu, ao longo de sua carreira, a teoria da motivação
humana, que foi popularmente difundida como pirâmide de Maslow. No curso da teoria,
foram estipuladas cinco categorias principais de necessidades humanas, hierarquizadas
conforme a urgência para o atendimento: necessidades fisiológicas, necessidades
de segurança, necessidades de afiliação (pertencimento), necessidades de estima, e
necessidades de autorrealização. O alicerce da pirâmide compreende as necessidades
mais básicas, e o topo da pirâmide consiste em necessidades mais elevadas, conforme
o gráfico a seguir:

Figura 9 – PIRÂMIDE DE MASLOW

Fonte: <https://bit.ly/3IRsfvI>. Acesso em: 11 abr. 2022.

53
• Necessidades fisiológicas: é a base da pirâmide e corresponde às necessidades
mais básicas, como motivações não apreendidas ou naturais. Pode ser descrita
como a ausência de substâncias químicas e nutrientes para o corpo, ou em relação
a condições ambientais que podem colocar o organismo em risco, como calor e frio
excessivo. A motivação para a alimentação, para o sono e repouso, para urinar e
defecar, são exemplos de necessidades fisiológicas.
• Necessidades de segurança: essa é a segunda necessidade fundamental
para a garantia da sobrevivência. Consiste na reação a situações que demandam
proteção, como perigos eminentes e estímulos ameaçadores, sendo uma reação
primordialmente instintiva. No entanto, a reação às necessidades de proteção podem
ser desenvolvidas conforme o contexto, como doenças, desempregos dentre outras
situações que colocam a pessoa em risco.
• Necessidades de afiliação (pertencimento): diferentemente das demais, a
necessidade de segurança não foi considerada por Maslow como fundamental
para a sobrevivência, porém indicou sua relevância para o bem-estar. Consiste
na necessidade de construção de relações interpessoais, ao sentimento de
pertencimento a grupos sociais, e do desejo de relação íntimas e afetivas mútuas.
• Necessidades de estima: no que se refere à necessidade de estima, esta foi dividida
por Maslow em dois momentos: a estima de si e a estima recebida dos outros. A
estima de si relaciona-se ao respeito desenvolvido e atribuído a si mesmo, a partir da
dignidade de vida percebida. Com relação à estima recebida pelos outros, consiste no
desejo por uma boa reputação e status.
• Necessidades de autorrealização: consiste no nível mais elevado da hierarquia
das necessidades, e que representa a potencialidade de realização ao se alcançar o
que se é destinado a ser e se tornar. Como expõe Cavalcanti et al. (2019, p. 3), “implica
realizar suas capacidades e seus talentos, cumprindo com suas vocações. Nesse
sentido, podem ser identificadas como características de pessoas autorrealizadas a
espontaneidade, a criatividade, a autonomia e a resistência à doutrinação”.

As contribuições da teoria da motivação humana, foram largamente utilizadas


em diversos contextos, mas sobretudo no mundo empresarial, na adoção de estratégias
que pudessem contribuir com a construção de um ambiente estimulante e motivacional
para os funcionários de grandes empresas.

4.2 CRESCIMENTO PSICOLÓGICO


Maslow e Rogers defenderam ao longo de sua trajetória profissional, que
autorrealização diz respeito ao caminho a ser percorrido para o crescimento psicológico.
Nesse sentido, o ser humano movimenta-se em direção à saúde, vislumbrando
alcançar o desenvolvimento de todas as suas potencialidades e capacidades. Portanto,
dentro da psicologia humanista, privilegia-se a definição de características do pleno
e saudável exercício da condição humana, divergindo das descrições essencialmente
psicopatológicas de outras correntes da psicologia.

54
No curso do alcance a uma condição plena e saudável, Maslow (1970, p. 225)
descreve o processo de individuação: “A individualidade autêntica pode ser definida, em
parte, por ser capaz de ouvir essas vozes-impulsos dentro do próprio eu, isto é, saber o
que é que o indivíduo realmente quer ou não quer, aquilo para que está apto e para o que
não está apto etc.” Além disso, Maslow cunhou o termo transcendência para descrever o
processo de consciência integral e holística que acompanha o caminho da individuação.

Rogers, avançando e construindo uma abordagem terapêutica que criasse


as condições para o crescimento psicológico, descreve em uma de suas obras
mais populares, Tornar-se Pessoa (1997), as condições que facilitam o processo de
crescimento, e que são imprescindíveis ao psicoterapeuta, como atitudes congruentes,
autênticas, empáticas e de consideração positiva incondicional.

ESTUDOS FUTUROS
Na próxima unidade, as atitudes do psicoterapeuta propostas por Carl
Rogers serão apresentadas em profundidade durante a discussão sobre
a Abordagem Centrada na Pessoa.

Como destacado por Pacheco (2006, p. 38), no que se refere à relação


estabelecida para o cuidado, “é através da compreensão da análise dessas relações, que
se pode respeitar, compreender, sentir e desenvolver uma atitude empática – é o saber
colocar-se no lugar do outro”. Portanto, Rogers apontou para a importância de uma
postura terapêutica de abertura e respeito que, por fim, possibilita o desenvolvimento
saudável e pleno.

4.3 PESSOA EM FUNCIONAMENTO PLENO


A psicologia humanista produziu uma inversão de valores no que se refere ao
conceito de saúde e doença, construindo uma teoria pautada desde o princípio no
desenvolvimento máximo do potencial humano, portanto, partindo de sua dimensão
saudável para compreendê-lo como um todo. Tal postura promoveu o abandono de
características nosográficas das psicopatologias (HOLANDA, 1998).

Maslow (1970) ao teorizar sobre a hierarquia das necessidades humanas, propôs


que a condição de saúde, se dá por meio da satisfação das necessidades básicas. O
processo de adoecimento se instalaria a partir do bloqueio e inibição para atingir a
satisfação. Desse modo, como destaca Pacheco (2006), cada sociedade e cultura pode
promover ou inibir o auto crescimento, e isso implicaria em processos de adoecimento.

55
Rogers (1997) a partir de seus estudos, afirmou que o núcleo básico da
personalidade tende e se voltar para a saúde e bem-estar, sendo essa predisposição
a satisfação da necessidade natural do organismo, direcionado a desenvolver-se e
tornar-se autônomo e maduro, que o autor denominou de tendência atualizante.
Este movimento de atualização que permite que o ser humano garanta condições de
adaptação frente às adversidades do cotidiano, acompanhando esse dinamismo da
vida saudavelmente, e a construção de um clima psicológico adequado, possibilita
a libertação da tendência atualizante para que se torne real, e não apenas potencial
(NEVES, 2016).

Portanto, no cerne da psicologia humanista, compreende-se um ser humano


dotado de uma tendência potente de alcançar seu desenvolvimento psicológico
pleno e com condições para atualizar-se frente à realidade que pode vir a cercear
a satisfação de suas necessidades, impedindo sua autorrealização, culminando em
processos de adoecimento.

Para encerrar este tópico, destaca-se Amatuzzi (2008, p. 17), no que se refere
ao encontro da psicologia com o humanismo,

Quando o humanismo afeta a psicologia, então, resulta daí não uma


teoria específica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar comum
onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes) todos
aqueles psicólogos insatisfeitos com a visão de homem implícita
nas psicologias oficiais disponíveis. O rótulo específico de psicologia
humanista é apenas um episódio, diria momentâneo, de algo que tem
um sentido maior: a presença de uma atitude humanista no interior
da psicologia.

Nesse sentido, a psicologia humanista surge com a necessidade de se construir


uma psicologia que representasse ideais que transcendam a visão de ser humano
fadado a instintos de estímulo e resposta, e a reações das perturbações e traumas
humanos, para, enfim, assumir uma postura comprometida com um ser no mundo
transiente, autônomo, e responsável por suas escolhas, que se direciona e caminha
rumo ao crescimento psicológico e ao bem estar.

56
LEITURA
COMPLEMENTAR
FENOMENOLOGIA: DE VOLTA AO MUNDO-DA-VIDA

Cinthia Dutra Struchiner

A Atitude Fenomenológica

Na contramão do cientificismo, a proposta da fenomenologia é reaprender a ver


o mundo. Como? Desenvolvendo a atitude fenomenológica, o olhar fenomenológico.
Segundo Heidegger, a análise etimológica da palavra fenomenologia revela o seu
sentido mais íntimo: “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como
se mostra a partir de si mesmo” (Heidegger, 2002, p. 65). Fenomenologia é, então, o
estudo das coisas conforme elas se manifestam. Portanto, ver e observar atentamente
o aspecto manifesto das coisas é o melhor modo de acessar a realidade das coisas
mesmas. Este é o primeiro mandamento da fenomenologia: desenvolver uma atitude
atenta e observadora.

Diz-se, desde os gregos, que o filósofo é “todo olhos”, mas “ver” as coisas,
para a fenomenologia, tem um sentido amplo, que vale para todas as modalidades de
percepção, para todos os modos de “dar-se conta de algo”. Assim, ser “todo olhos”, não
quer dizer ser “só visão”, ou intelecto puro.

Em fenomenologia, se “vê” também com os ouvidos e com todos os demais


sentidos, com as mãos, com toda a carne, com o intelecto e, naturalmente, com o coração,
por meio do que sentimos o valor de coisas, pessoas, situações, percebemos emoções,
sentimentos alheios etc. (MONTICELLI, 2002, p. 15). Aliás, esta é uma das grandes
contribuições da fenomenologia: ter trazido à luz a pluralidade dos modos de evidência.

“Ver com clareza”, como dizia Husserl, implica que não haja obscuridade –
ou seja, é preciso que “o interlocutor sempre possa verificar por sua própria conta se
também ‘vê’ aquilo que o fenomenólogo está afirmando como verdadeiro” (MONTICELLI,
2002, p. 15). É sempre um diálogo, no qual é fundamental a possibilidade de verificação.
É importante, também, que haja certa inocência descritiva, sem muito medo de dizer
obviedades. E trabalhar de mãos vazias, sem instrumentos nem parâmetros: nada,
nenhuma teoria, nenhuma técnica lógica ou científica que não possa ser traduzida em
“ver aqui e agora”, pode nos servir neste ato de verificação intuitiva. O fenômeno se
mostra a partir de si mesmo.

57
Existe uma convicção básica que traduz o espírito da fenomenologia: nada
aparece em vão; tudo o que aparece tem um fundamento real (embora nem tudo o
que é real apareça). Também podemos chamar esta tese de princípio da fidelidade ou
“tese da veracidade da percepção” (percepção num sentido amplo, englobando todos
os seus modos: visual, auditivo, tátil etc.). A tese da veracidade da percepção não exclui
a possibilidade do erro, ao contrário, pois é precisamente quando há a possibilidade do
erro que pode existir a possibilidade de verificar e corrigir – e esta é a definição mesma
de experiência, e a partir do que pode se dar a aprendizagem (MONTICELLI, 2002, p. 16).

Vejamos um exemplo ilustrativo desse argumento. Não faz muito tempo, meu
filho de dois anos estava na sua cadeirinha, no banco de trás do carro que eu dirigia,
e o sol forte, incidindo diretamente sobre seu rosto, o incomodava. Evidentemente, o
real (neste caso, o sol) não se mostra para ele em toda a complexidade que se mostra
para mim, mas, fenomenologicamente falando, o que aparece para ele tem também
um fundamento real, embora ainda parcial (aliás, é sempre parcial!), mas que só a partir
da própria experiência poderá ser ampliado e ressignificado. Primeiro ele me pergunta:
“Mãe, por que o sol ‘tá’ no meu olho?” Tentando me esquivar de uma explicação mais
complexa, respondi que era porque o carro estava sem o tapa-sol no vidro traseiro, que
ele mesmo havia rasgado algumas semanas antes. Evidentemente insatisfeito com a
minha resposta, ele insistiu:

– Mãe, tira o sol do céu?


– Não posso, filho.
– Então desliga ele?

Não podemos dizer que a percepção do meu filho não tem um fundamento real.
Se não, vejamos: o sol é alguma coisa que aparece para ele como irradiando uma luz
intensa, mas que neste momento é indesejada. Como, com base em suas experiências
anteriores, ele sabe que o sol nem sempre está no céu, ele supõe que é possível que
um adulto (que em geral consegue fazer coisas que ele não consegue) “o tire do céu”
ou “o desligue”, numa analogia com outros objetos que, assim como o sol, irradiam
luminosidade, mas nem sempre estão acesos (lâmpadas). Segundo o princípio da
veracidade da percepção, conforme acabamos de exemplificar, tudo o que se vê tem
um fundamento real, e segundo o princípio da transcendência, outra tese fundamental
da fenomenologia, nunca se vê tudo. Isso significa simplesmente que nada se mostra
em todos os seus aspectos ao mesmo tempo. Embora eu saiba muito mais a respeito do
sol do que o meu filho de dois anos, o que eu sei do sol é apenas aquilo que se mostra
a mim na minha vivência subjetiva do sol (incluídas aí não só as minhas experiências
“diretas”, mas também as informações que eu venha a adquirir enquanto descobertas
científicas), ou seja: o “objetivo” nunca é tão objetivo assim – tudo é um ponto de vista.

Bem, mas se tudo é real, mas nada se mostra por completo, como eu posso
dizer que conheço alguma coisa? Como fica a questão do rigor na fenomenologia? O
rigor fenomenológico é bastante diferente do rigor da objetividade científica. A ciência

58
não estuda as coisas em sua totalidade, mas as fragmenta, num processo contínuo
de análise, levando a uma necessária dissociação entre esse pensamento científico-
analítico e a experiência vivida das coisas, uma vez que a experiência não é fragmentada:
percebemos totalidades.

O rigor que se espera do fenomenólogo é outro: as coisas são tomadas em


sua totalidade, e a totalidade revela sua extraordinária riqueza e complexidade de
constituição, mas não tolera (sem desaparecer enquanto totalidade) uma ruptura entre
o pensamento que a descreve e a evidência que a anuncia, ou seu modo de presença
(fenômeno). Há, portanto, uma exigência de que o método seja sempre adequado à
natureza do objeto em questão, e não o contrário. Um olhar matemático é adequado
apenas para os objetos matemáticos. Para dar conta da experiência humana, é
necessário um olhar que respeite as peculiaridades e a forma de dar-se deste fenômeno.

Para desenvolver esse olhar, o olhar fenomenológico, é fundamental estar


atento para alguns aspectos que Monticelli (2002) chamou de “virtudes da atitude
fenomenológica”. Em primeiro lugar, é preciso despertar a capacidade de admirar-se
e maravilhar-se com as coisas, com os outros e com a natureza, numa consequente
abertura para encontrar-se com o mundo.

Como na poesia de Fernando Pessoa (sob o pseudônimo de Alberto Caeiro em


O Guardador de Rebanhos):

Sei ter o pasmo essencial


Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
(PESSOA, 2006, p. 34)

Monticelli (2002) enfatiza ainda o papel da humildade na postura fenomenológica.


Humildade significa, aqui, fé nas coisas mesmas, a silenciosa disponibilidade de deixar
que elas falem primeiro, de deixar que o fenômeno se anuncie, antes de impor-lhe o nome
e a teoria. É a capacidade de escuta verdadeira e a disponibilidade para se reconfigurar
diante do “novo” que se apresenta a cada momento. Outro aspecto fundamental da
atitude fenomenológica, segundo a mesma autora, é o respeito pela experiência, a
confiança de que as coisas se mostram como são. Ainda nas palavras do poeta:

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

59
Isso significa, como já mencionado, que não precisamos duvidar dos nossos
sentidos, embora saibamos que as coisas não se mostram por completo: confiança no
que se vê não exclui um sentimento de profundidade e riqueza daquilo que não se vê.

Por fim, para Monticelli (2002), a virtude que precisamos aprender a exercitar,
acima de tudo, é a atenção: a fenomenologia é uma filosofia da atenção. É preciso que
todos os nossos sentidos se mobilizem atentamente para intuirmos a totalidade da
experiência vivida. Por exemplo: para que estas palavras façam sentido, para que o leitor
possa “ver” a essência daquilo que está escrito nestas páginas, e que foi minha intenção
transmitir, é preciso que isto tudo seja mais do que um conjunto de símbolos gráficos
dispostos em tinta num papel. É preciso bem mais do que isso: é preciso atenção. É
preciso que o leitor seja “todo olhos”, mas que também intelecto, audição, olfato,
sensações corporais estejam polarizados naquilo que acontece aqui, neste momento.
Todo o resto é fundo.

Portanto, para “ver” fenomenologicamente, precisamos primeiramente operar


esta mudança de atitude sobre nós mesmos. É a isto o que se chama de abandonar
a atitude natural e adotar a atitude fenomenológica. Trata-se de uma modificação de
comportamento que leva a uma modificação da experiência que temos das coisas e,
consequentemente, a uma modificação do modo como vivemos (MONTICELLI, 2002). É
nesse sentido que, conforme temos afirmado desde o início deste texto, a fenomenologia
vai muito além de sua simples aplicação como um recurso ou instrumento metodológico
para a psicologia. Quando falamos de fenomenologia, estamos necessariamente falando
de vida, de vivência. E a vivência de alguma coisa é sempre, também, uma experiência
de si mesmo.

FONTE: STRUCHINER, C. D. Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida. Revista abordagem


Gestaltática, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 241-246, 2007. Disponível em: https://bit.ly/3yWxPZc.
Acesso em: 19 jul. 2022.

60
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Os humanismos têm premissas em comum, e estão essencialmente comprometidos


com a transformação e melhoria da qualidade de vida, sobretudo a partir da promoção
das revoluções individuais que alicerçaram a construção da psicologia humanista.

• A psicologia humanista surge de um movimento de revolução da psicologia, no


qual os teóricos percussores criticaram a postura tradicional das duas correntes
predominantes da época, inaugurando a terceira força da psicologia. Nesse sentido,
desenvolveu-se uma psicologia que abordasse a subjetividade e experiência interna
a partir de princípios holísticos, compreendendo o ser humano como um todo, sem
fragmentações em comportamentos e ou dimensões específicas da experiência
como o inconsciente.

• Para os psicólogos humanistas, o ser humano movimenta-se em direção à saúde,


vislumbrando alcançar o desenvolvimento de todas as suas potencialidades e
capacidades. Portanto, dentro da psicologia humanista, privilegia-se a definição de
características do pleno e saudável exercício da condição humana.

• Para a construção de uma psicologia humanista, pressupõe-se uma postura de


comprometimento como uma ética fundamentada na abertura para a experiência,
na liberdade e possibilidade de escolher, e na capacidade exequível de reconstrução
de sentidos de vida.

61
AUTOATIVIDADE
1 O humanismo não consiste em uma teoria, método, filosofia, e tão pouco uma
psicologia. Consiste em um movimento implícito na historicidade que surge como
força de mobilização, pode estar na base da busca individual por mudança de sentido
de vida, ou na mobilização de grandes massas por justiça e reformas sociais. Nesse
sentido, em relação aos movimentos humanistas identificados por Gomes, Holanda e
Gauer (2004), assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Humanismo clássico, humanismo transpessoal, humanismo clássico, humanismo


individual, humanismo romântico, humanismo crítico.
b) ( ) Humanismo individual, humanismo clássico, humanismo romântico, humanismo
clássico, humanismo histórico, humanismo crítico.
c) ( ) Humanismo individual, humanismo romântico, humanismo clássico, humanismo
social, humanismo crítico.
d) ( ) Humanismo clássico, humanismo individual, humanismo romântico, humanismo
histórico, humanismo crítico.

2 Psicólogos humanistas posicionaram-se em oposição as duas correntes da psicologia


predominantes na época, ao considerar que ambas se centralizavam apenas em partes
do ser humano, descrevendo apenas uma perspectiva da realidade. No que se refere à
psicologia humanista e à oposição ao Behaviorismo, analise as sentenças a seguir:

I- A psicologia humanista defende a importância das exigências impostas na escolha


dos temas de pesquisa pautados na adequação ao método experimental.
II- A psicologia humanista defende a compreensão do ser humano para além dos
comportamentos observáveis.
III- A psicologia humanista defende uma psicologia baseada em dados animais como o
objeto central dos estudos psicológicos.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

62
3 Maslow, um dos principais precursores do humanismo, desenvolveu uma teoria
sobre a motivação humana, descrevendo a hierarquia de necessidades a serem
atendidas para um funcionamento pleno e saudável, popularmente conhecida
como Pirâmide de Maslow. Em relação as necessidades descritas pelo autor, analise
as sentenças a seguir:

I- A motivação para a alimentação, para o sono e repouso, para urinar e defecar, são
exemplos de necessidades fisiológicas.
II- A necessidade de segurança consiste na reação a situações que demandam prote-
ção, como perigos eminentes e estímulos ameaçadores, sendo uma reação primor-
dialmente instintiva.
III- O nível mais elevado da hierarquia das necessidades, e que representa a potencia-
lidade de realização ao se alcançar o que se é destinado a ser e se tornar, consiste
na necessidade de pertencimento.
IV– O respeito desenvolvido e atribuído a si mesmo, a partir da dignidade de vida
percebida, consiste na necessidade de autorrealização.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e IV estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença III está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente as sentenças I e II estão corretas.

4 A psicologia humanista, diferentemente de correntes da psicologia oriundas da


Psicanálise e do Behaviorismo, compreende o ser humano voltado para além de
respostas a estímulos e a traumas no desenvolvimento, mas destinado a alcançar
seu funcionamento pleno e saudável. Diante do exposto, disserte sobre como a
psicologia humanista compreende o processo de saúde e doença.

5 Conforme destaca Amatuzzi (2008), “o rótulo específico de psicologia humanista


é apenas um episódio, diria momentâneo, de algo que tem um sentido maior: a
presença de uma atitude humanista no interior da psicologia”. Tendo em vista o que
foi e continua sendo postulado pela psicologia humanista, o que é indispensável para
a atuação profissional de quem optar por seguir premissas humanistas? Disserte
sobre o assunto.

FONTE: AMATUZZI, M. M. Por uma psicologia


humana. Campinas: Alínea, 2008.

63
REFERÊNCIAS
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ZAHAVI, D. Fenomenologia para iniciantes. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

66
UNIDADE 2 —

FUNDAMENTOS, TEORIAS
E CONCEITOS DE
PRÁTICAS CLÍNICAS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• conhecer três abordagens terapêuticas alicerçadas nas teorias fenomenológicas


existenciais humanistas;

• compreender a Logoterapia, o histórico de construção da abordagem terapêutica, a


visão antropológica utilizada e principais conceitos;

• conhecer a Abordagem Centrada na Pessoa, as fases de construção da abordagem


terapêutica, os conceitos centrais e as fases do processo terapêutico;

• compreender a teoria da abordagem Gestalt-terapia, seu histórico de formação, as


críticas que alimenta, as referências que sustenta e os conceitos que desenvolve.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE


EXISTENCIAL

TÓPICO 2 – FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA ABORDAGEM CENTRADA NA


PESSOA (ACP)

TÓPICO 3 – FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA GESTALT-TERAPIA

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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A TRILHA DA
UNIDADE 2!

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68
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA
LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL

1 INTRODUÇÃO
A Logoterapia e Análise Existencial foram desenvolvidas por Viktor Frankl,
e permeadas pela experiência de sobrevivência do autor a campos de concentração
nazista durante a segunda guerra mundial. A partir de sua experiência de vida, o autor
adota uma visão de ser humano diferente da utilizada por outros teóricos da época, em
que não restringe o ser humano a uma compreensão biopsicossocial, somando-se a
esta concepção à dimensão espiritual, que não tem relação com religiosidade, mas com
a experiência de transcendência.

A referida teoria é alicerçada na fenomenologia, no existencialismo e o humanismo,


sendo conhecida como a Terceira Escola de Viena, sendo a primeira e segunda escolas
a Psicanálise de Freud e a Psicologia Individual de Adler, respectivamente.

A logoterapia e a análise existencial têm como objetivo promover a compreensão


da experiência imediata com base na motivação do ser humano para a liberdade e para
o encontro com o sentido de vida. As contribuições desenvolvidas por Frankl produziram
impactos positivos sobretudo em um contexto extremo de sofrimento, no período entre
guerras mundial e, ainda, no período pós-guerra, no qual o autor teve um olhar específico
para o fenômeno do suicídio e do vazio existencial.

Acadêmico, no Tópico 1, abordaremos as experiências de vida de Viktor Frankl,


que estão intimamente relacionadas à construção e o foco de sua teoria, como a
sua experiência de sobrevivência e a perda dos membros da família nos campos de
concentração nazista, a sua postulação de uma visão antropológica na qual insere uma
nova dimensão de compreensão da experiência humana, e por fim, alguns conceitos
centrais que compõe a teoria, como a liberdade da vontade que rompe com visões
deterministas de condicionantes biopsicossociais, o sentido da vida que é singular,
mutável e concreto, e ainda a vontade de sentido, que é essa força motriz que mobiliza
a autossatisfação, e que quando frustrada produz neuroses.

69
2 A VIDA DE VIKTOR FRANKL E A CONSTRUÇÃO
DA LOGOTERAPIA
Viktor Frankl nasceu em 26 de março de 1905, em Viena na Áustria, no berço de
uma família judia, que já contava com dois filhos. Filho de um pai funcionário público e
uma mãe responsável pelos cuidados da casa, tiveram uma vida confortável até o início
da Primeira Guerra Mundial, que assim como outras famílias judias, foram acometidos
pela extrema pobreza.

Aquino (2020) destaca que o interesse de Frankl pelo sentido da vida surgiu
ainda na infância, quando com quatro anos já questionava “se a transitoriedade da
vida não aniquila seu sentido” (FRANKL, 1990, p. 112). Na escola, com cerca de 13 aos,
questionava os professores sobre questões relacionadas ao sentido da vida, com
destaque a uma aula de ciências naturais em que indagou sobre o sentido da vida com
seu professor, enquanto este explanava o processo de oxidação e combustão, em que
reduzia a vida a esse processo (AQUINO, 2020).

Durante seu ensino médio, por volta de 1920, Frankl já se aproximava de estudos
da filosofia e psicologia, chegando a ministrar uma palestra aos 16 anos intitulada “O
sentido da vida” em uma conferência na Universidade Popular, em um grupo de trabalho
liderado por Edgar Zilsel, um filósofo pioneiro da sociologia da ciência. Ao fim do ensino
médio, para realizar seu trabalho de conclusão de curso, o autor troca correspondências
com Freud, que o encoraja a continuar escrevendo, e tal incentivo culmina com seu
trabalho de conclusão do ensino médio sob o título “Sobre a psicologia do pensamento
filosófico” em 1923.

Seu interesse por psicologia e filosofia o levou a cursar a faculdade de medicina


da Universidade de Viena de 1924 a 1930, com interesses específicos na temática da
depressão e do suicídio. Em 1924, publicou seu primeiro artigo na International Journal
of Individual Psychology, e em 1928 organizou e ofertou um programa especial de apoio
a estudantes do ensino médio, juntamente com uma equipe de psicólogos, que atuava
principalmente durante a entrega dos boletins escolares.

O sucesso do programa despertou a atenção de autoridades, sobretudo


considerando que, em 1931, o índice de suicídio de estudantes vienenses chegou a zero.
A partir desse marco, o autor foi convidado a palestrar em diversos países da Europa.

Durante a faculdade de medicina, Frankl entrou em contato com o pensamento


de Heidegger, Binswanger, Scheler, Jaspers e Buber, o que produziu considerável
influência em relação à concepção antropológica e filosófica do ser humano. O autor fez
residência em psiquiatria e neurologia, e tornou-se responsável pela ala de um hospital
psiquiátrico em que a demanda principal das pessoas internadas era de ideação suicida,
atendendo mais de três mil mulheres.

70
Em 1938, Frankl já atendia em consultório próprio e era reconhecido como um
profissional que propunha uma nova modalidade de tratamento terapêutico. Nesse
mesmo ano, ocorreu a anexação político-militar da Áustria pelas tropas nazistas
alemãs, e todos os médicos judeus tiveram que fechar seus consultórios, e só podiam
permanecer trabalhando em hospitais específicos para atendimentos de judeus. Apesar
de visto para residir nos Estados Unidos, decide permanecer em Viena, e salva milhares
de pessoas ao se recusar a realizar a eutanásia em pacientes com transtornos mentais.
Em 1940, chegou a ser nomeado como diretor do setor de neurologia do último hospital
em Viena que recebia pacientes judeus, e lá conheceu sua futura esposa, Tilly Grosser,
com quem se casou em 1941. No ano seguinte, a família é capturada, presa e enviada
para campos de concentração.

2.1 A EXPERIÊNCIA EM UM CAMPO DE


CONCENTRAÇÃO NAZISTA
Entre 1942 e 1945, Frankl passou por quatro campos de concentração, dentre
eles Auschwitz, o maior e mais letal campo de concentração nazista da história. Durante
esse período, perdeu o pai, a mãe, o irmão e a esposa grávida, mortos por exaustão, e
sua mãe assassinada na câmera de gás. Apenas sua irmã sobreviveu, pois conseguiu
se refugiar na Austrália.

Durante a experiência no campo de concentração, o autor foi exposto a


inúmeras privações, além da exposição ao trabalho forçado e exaustivo. Todas as
situações de humilhação e violência, e a própria desesperança em um cenário tão
desolador, colocaram suas ideias sobre o sentido da vida à prova. Frankl carregou
consigo para o campo de concentração um manuscrito de um livro, que tinha pretensão
de publicar quando se libertasse, que se perdeu durante sua transferência de campos
de concentração.

No último campo de concentração em que esteve, o autor iniciou a reescrita


desse manuscrito em pequenos pedaços de papel que teve acesso. Quando retornou
a Viena, finalizou a rescrita do livro que ficou mundialmente conhecido Em busca de
sentido, em que conta a sua experiência como psicólogo que passou por quatro campos
de concentração, e inicia dizendo “Este livro não trata de fatos e acontecimentos
externos, mas de experiências pessoais que milhares de prisioneiros viveram de muitas
formas. É a história de um campo de concentração visto de dentro, contada por um dos
seus sobreviventes” (FRANKL, 2008, p. 6).

A descrição sensível e autêntica do autor, tornou essa obra uma grande


referência no que se refere ao sentido da vida, e à experiência de sofrimento e estratégia
de sobrevivência emocional das pessoas que foram submetidas as torturas dos campos
de concentração.

71
Ao retornar para Viena, em 1945, Frankl teve de reconstruir sua vida, após receber
a notícia da morte de seus familiares. Durante esse retorno traumático, o autor chegou
a indagar-se se realmente valeria a pena continuar vivendo. Colocando novamente a
prova suas convicções sobre o sentido da vida, o autor continua a escrita de Em busca
de sentido, que foi publicado em 1946.

Entre 1946 e 1970, atua como chefe do departamento de neurologia de um


hospital em Viena, e conhece sua futura esposa, Eleonor Katharina Shwindt, com
quem se casou em 1947 e teve seus três filhos. Ainda em 1946, tornou-se professor
da Universidade de Viena, responsável pela policlínica de neurologia, e permaneceu
neste cargo por 25 anos. Em 1949, finalizou seu doutorado em filosofia, e escreve uma
tese intitulada A presença ignorada de Deus. Frankl ao longo de sua rica experiência
de vida, escreveu diversos livros e artigos científicos, e suas contribuições produziram
25 títulos honorários.

INTERESSANTE
Para conhecer mais da história de Viktor Frankl e da Logoterapia no Brasil,
visite o site da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial
(ABLAE), acesse em: https://ablae.org.br/portal/public/.

3 UMA NOVA VISÃO ANTROPOLÓGICA


Na logoterapia, a visão de ser humano não se restringe ao ser biopsicossocial,
somando-se a esta concepção a dimensão espiritual ou noética. Como descreve Frankl
(2012, p. 62), “O homem é efetivamente uma unidade e uma totalidade corpóreo-
psíquico-espiritual”. É a partir desta dimensão da existência que conceitos como
liberdade, responsabilidade e preocupação com o sentido da vida são possíveis. Com
relação a essas dimensões, o autor destaca ainda que

O espiritual, todavia, é intransmissível. O psíquico além de


herdado através da disposição genética, é ainda plasmado pela
educação. Chegamos à seguinte formulação: o físico é dado pela
hereditariedade – o psíquico é dirigido pela educação; o espiritual,
contudo, não pode ser educado, tem de ser realizado – o espiritual
“é” só na autorrealização, na ‘realidade da realização’ da existência
(FRANKL, 1978, p. 131).

O autor destaca duas características antropológicas de sua visão de mundo, a


autotranscendência e o autodistanciamento, e destaca que o ser é impelido a se voltar
para algo ou para alguém que não seja ele mesmo, sendo, assim, a essência de sua
existência não está em si mesmo, transcendendo os condimentos biopsicossociais.

72
3.1 AUTOTRANSCENDÊNCIA
Conforme descreve Frankl (2008, p. 135), a autotranscendência diz respeito ao
fato de que o “ser humano sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente
de si mesmo – seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar”. Em outras
palavras, faz parte da essência humana a abertura ao mundo e aos outros, colocar-se
em relação e voltar-se para além ou algo que difere de si mesmo.

Dentro das experiências de vida de Frankl nos campos de concentração,


e, ainda, a partir de sua atuação profissional, em que entrou em contato com
outras pessoas que vivenciaram experiências similares, o autor descreve que a
autotranscendência que permitiu a sobrevivência em contextos tão adversos de vida,
voltando seu olhar para o mundo em busca de sentido, não reduzindo o olhar para
si mesmo. Ainda segundo o autor, as duas manifestações da autotranscendência
consistem na consciência e no amor.

3.2 AUTODISTANCIAMENTO
O autodistanciamento por sua vez, consiste na capacidade do ser humano de
distanciar-se de si mesmo, o que permite se perceber com outros olhos e avaliar e
reavaliar a própria postura diante dos outros. Um exemplo disso é a possibilidade, é o
distanciamento por meio do humor, sorrir apesar das experiências trágicas. “Quando
o sujeito ri de seus problemas provoca uma distância entre o núcleo do seu ‘eu’ e a
situação problemática” (SILVEIRA; MAHFOUD, 2008, p. 572).

Dentro do trabalho na logoterapia, se propõe o fortalecimento da


autotranscendência e autodistanciamento, considerando que a neurose consiste
no fechamento de si, e dificuldade de abertura para a experiência no mundo, logo a
impossibilidade de realizar-se dentro de uma ótica do ser humano essencialmente
voltado para transcender a si mesmo.

4 LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL


A logoterapia e análise existencial podem ser compreendidas como uma
abordagem psicológica que tem como alguns de seus alicerces a fenomenologia, o
existencialismo e o humanismo (AQUINO, 2020). É conhecida como a Terceira Escola
de Viena, sendo a primeira e segunda escolas a Psicanálise de Freud e a Psicologia
Individual de Adler, respectivamente. Aquino (2020, p. 234) destaca alguns pontos
principais que influenciaram a construção da logoterapia identificadas na trajetória de
vida de Frankl,

73
1) os atendimentos nos centros de aconselhamento para jovens
com o intuito de prevenir o suicídio; 2) constituição gradativa de um
sistema de pensamento com bases na filosofia da existência validado
existencialmente nos campos de concentração; e 3) elaboração
de uma metodologia terapêutica fundamentada em casos clínicos,
sobretudo no período pós-guerra.

A logoterapia configura-se na compreensão da experiência imediata com base


na motivação do ser humano para a liberdade e para o encontro com o sentido de vida.
Moreira e Holanda (2010, p. 346), descrevem que Frankl inaugurou um novo campo,
de uma psicoterapia que é voltada ao espírito, portanto “a logoterapia origina-se “do”
espiritual, enquanto a análise existencial se dirige “para” o espiritual”. O conceito de
espírito advém da perspectiva fenomenológica existencial e dialógica que alicerça a
logoterapia, e não se relaciona com um conceito de espírito vinculado à religiosidade.

Como descreve Lima Neto (2013, p. 224), “[...] o caráter espiritual é o elemento
que permite o desdobramento de sentido, caracterizando o ser humano enquanto
possibilidade, se diferenciando de tudo o que o determina [...]”, portanto, o espírito
consiste na dimensão humana que transcende as determinações anímicas do ser
humano, ou seja, “[...] O fator espiritual ressalta a capacidade de decisão do homem,
uma vez que este passa a agir, não apenas inteiramente impulsionado por seus
conteúdos anímicos, mas também orientado por sua espiritualidade” (LIMA NETO,
2013, p. 224). Diante do exposto, a seguir serão apresentados os conceitos centrais da
abordagem terapêutica.

NOTA
Origem do termo: A etimologia da palavra logoterapia (no alemão
Logotherapie) surge de expressões derivadas do grego em que “logos”
significa sentido e “therapeia” significa terapia, cuidado. Por isso a
abordagem ficou conhecida como terapia do sentido de vida.

Fonte: adaptada de https://www.dicio.com.br/logoterapia/.


Acesso em: 19 set. 2022.

4.1 LIBERDADE DA VONTADE


Contrapondo-se a uma postura determinista da época, em que Frankl (2008,
p. 153) descreve como pandeterminismo, “uma visão do ser humano que descarta a
sua capacidade de tomar uma posição frente a condicionantes quaisquer que sejam”,
a logoterapia tem como um de seus princípios fundamentais a liberdade da vontade.

74
Essa postura frente ao ser humano compreende-o como livre e capaz de fazer
escolhas, sendo essas escolhas sempre carregadas de uma responsabilidade inerente,
comungando com postulados existencialistas, tal como já afirmava Sartre (2010), “É o
que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado,
porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no
mundo, é responsável por tudo o que faz” (SARTRE, 2010, p. 7).

Frankl compreende que as pessoas não são livres de condicionantes biopsi-


cossociais, porém o que o autor propõe e afirma é que o ser o humano é livre para se
posicionar frente a esses condicionantes. No que se refere à relação indissociável da
liberdade e da responsabilidade, o autor compreende que a liberdade é

um conceito negativo, que demanda um complemento positivo.


Este é a responsabilidade, que possui dois referentes intencionais.
Pode significar um sentido cuja realização somos responsáveis e,
também, pode dizer respeito a um ser por quem somos responsáveis
(FRANKL, 2011, p. 66).

A responsabilidade implica também um processo de conscientização, em que


Santos (2016), descreve que o ser humano para se conscientizar de sua responsabilidade,
necessita responder a duas questões fundamentais: diante de quem se é responsável
e pelo que o ser humano se sente responsável. Deus e outras entidades religiosas, a
sociedade e suas normas e práticas culturais, e até a própria consciência são exemplos
a respeito de quem o ser humano sente-se responsável. Pelo que o ser humano se
sente responsável, tem relação com os valores concretos que se segue, e as atividades
que contempla o caminho rumo ao sentido de vida atribuído. Portanto, “liberdade,
responsabilidade e consciência são uma tríade da existência humana, do núcleo noético
do ser humano” (SANTOS, 2016, p. 133). A seguir, o mapa conceitual desenvolvido por
Santos (2016) sobre a liberdade da vontade:

75
Figura 1 – Liberdade da vontade
Fonte: Santos (2016, p. 133)

76
4.2 SENTIDO DA VIDA
Consiste no desejo inerente em atribuição de significados para a vida. O
sentido da vida é único, pois cada pessoa atribuirá os seus significados mesmo que se
assemelhe a sentidos partilhados em cada cultura e sociedade, mutável, tendo em vista
as transformações que acontecem ao longo da vida, e concreto, considerando que não
são significados abstratos, mas uma expectativa concreta de satisfação, ou seja, “não
pode haver algo como um sentido universal da vida, mas apenas os sentidos únicos das
situações individuais” (FRANKL, 2011, p. 73). Ainda como descreve o autor,

O sentido da existência, altera-se de pessoa para pessoa e de um


momento para o outro. Jamais, portanto, o sentido da vida humana
pode ser definido em termos genéricos, nunca se poderá responder
com validade geral a pergunta por este sentido. A vida como a
entendemos aqui não é nada vago, mas sempre algo concreto,
de modo que também as exigências que a vida nos faz sempre
são bem concretas. Esta concentricidade está dada pelo destino
do ser humano, que para cada um sempre é algo único e singular.
Nenhum ser humano e nenhum destino pode ser comparado com
outro; nenhuma situação se repete. E em cada situação a pessoa
é chamada a assumir outra atitude. Para a sua situação o concreto
exige dela que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente
o seu destino (FRANKL, 2008, p. 48).

Os sentidos que são compartilhados socialmente são concebidos na logoterapia


como valores, denominados valores de criação, valores de experiência e valores de
atitude. Diferente dos sentidos de vida que são concretos e singulares, os valores são
abstratos e universais.

Os valores de criação dizem respeito à criação e às práticas de atos, ou seja,


“tudo o que ele cria e deixa no mundo, que intervém ou transforma o ambiente e/ou
as pessoas a sua volta” (SANTOS, 2016, p. 138), como, por exemplo, o trabalho. Assim,
não consiste apenas no trabalho a partir da execução de tarefas ou na determinação de
uma profissão, mas ao sentido dado a esses atos em determinado contexto, ou seja, na
forma como se cria, e não simplesmente no que e no quanto se cria (FRANKL, 2003).

Os valores de experiência, por sua vez, consistem na experimentação de


algo ou na experiência com alguém. Essencialmente, refere-se ao que o ser humano
recebe do mundo, “experimentando algo – como a bondade, a verdade e a beleza –,
experimentando a natureza e a cultura ou, ainda, experimentando outro ser humano
em sua originalidade própria – amando-o” (FRANKL, 2008, p. 135). A realização da
experiência do amor pode ser impedida pela decepção e pelo desânimo, expressos
no medo de rejeição e na dificuldade de visualizar um relacionamento amoroso feliz.
A experiência de realização desse fator tem relação também com a experimentação
do belo e da criatividade. Sendo assim, em alguns momentos da vida, o trabalho pode
ser mais significativo, e em outros momentos a experiência de amar e sentir-se amado
pode ser mais relevante e importante.

77
Os valores de atitudes consistem na decisão que se toma frente ao sofrimento
inevitável. Nessa categoria de valor, Frankl (2011) descreve a tríade trágica do sofrimento
humano, a dor, a culpa e a morte, pois, “não há um único ser humano que possa dizer
que jamais sofreu, que jamais falhou e que não morrerá” (FRANKL, 2011, p. 94). Portanto,
esses valores atitudinais referem-se a transformar aspectos negativos da vida, em
potenciais experiências positivas e de crescimento, dotando um novo sentido e postura
em relação à experiência. Como ainda descreve o autor, apesar das adversidades, existe
um sentido incondicional que se denomina suprassentido, o qual, inclusive, ultrapassa a
capacidade intelectual humana.

O que se requer da pessoa não é aquilo que alguns filósofos


existenciais ensinam, ou seja, suportar a falta de sentido da vida; o
que se propõe é, antes, suportar a incapacidade de captar, em termos
racionais, o fato de que a vida tem um sentido incondicional. O logos
é mais profundo que a lógica (FRANKL, 2008, p. 142).

A seguir, o mapa conceitual desenvolvido por Santos (2016) sobre o sentido


da vida:

78
Figura 2 – Sentido da vida

Fonte: Santos (2016, p. 137)

79
4.3 VONTADE DE SENTIDO
A vontade de sentindo diz respeito ao desejo e busca contínua para encontrar
um sentido para a vida, destacado por Frankl (2005, p. 23) como “interesse primário do
ser humano”, portanto, uma força motriz da vida humana. Nesse sentido, o autor indica
que o ser necessita de uma tensão que mobilize uma movimentação do ser para o deve-
ser, e que denominou de noodinâmica.

Essa tensão diverge de conceitos como vontade de poder e vontade de prazer,


descritos por Adler e Freud respectivamente, na qual esses conceitos partem de uma
percepção do ser humano como um sistema fechado, e que as tensões necessitam
ser reduzidas para a garantia de um equilíbrio homeostático. Como descreve o autor,
“o homem tem necessidade de uma tensão específica, ou seja, daquele tipo de tensão
que se estabelece entre o ser humano, de um lado, e, do outro, o sentido que ele deve
realizar” (FRANKL, 2005, p. 87).

Quando a vontade de sentido é frustrada, surge a falta de sentido e um


sentimento de futilidade, um vazio interior que na logoterapia é conhecido como vácuo
existencial, mas que também é conhecido como o vazio existencial. Santos (2016)
descreve que o vácuo existencial pode se apresentar como excessiva preocupação
com a autorrealização, a indiferença e o tédio. Frankl (2012, p. 275) define “o tédio como
uma falta de interesse e a indiferença como uma falta de iniciativa”. E destaca, ainda,
sobre a ausência de um interesse autêntico pelo mundo, sendo proativo no processo de
transformação do mundo que vive.

Em alguns momentos, o vácuo existencial pode ser mascarado por diferentes


tipos de compensação, sobretudo por meio de excessos como o consumismo, a ganância
financeira, uso de substâncias ou até da busca descompensada do prazer sexual
(SANTOS, 2016). Além disso, na logoterapia postula-se que o vazio existencial pode
se apresentar por meio de duas posturas principais, o conformismo e o totalitarismo.
No conformismo, há uma reprodução do que as pessoas comumente fazem, e no
totalitarismo, há um fazer que os outros solicitam que se faça, portanto ambos implicam
em uma postura de desresponsabilização, se omitindo frente à liberdade de escolha.

4.3.1. Neuroses
Destaca-se que o vazio/vácuo existencial não é percebido por Frankl como
uma doença, tampouco tem uma causa patológica. Uma pessoa saudável em uma
perspectiva biopsicossocial, que tenha boas condições socioeconômicas e satisfação
profissional, pode ser acometida pela frustração existencial e experimentar sentimentos
de falta de sentido e vazio interior (FRANKL, 2012). No entanto, o vazio existencial pode
transformar-se em uma neurose noogênica.

80
A neurose noogênica consiste em um adoecimento psicofísico, originada a partir
da dimensão noética. As neuroses podem ser divididas em neurose dominical, neurose
do desemprego e neurose coletiva. A neurose dominical diz respeito à experiência de
ausência de sentido durante o período destinado ao descanso.

Como detalha Frankl (2008), consiste em uma “espécie de depressão que


acomete pessoas que se dão conta da falta de conteúdo de suas vidas quando passa o
corre-corre da semana atarefada e o vazio dentro delas se torna manifesto” (FRANKL,
2020, p. 132). Ao restringir o sentido da vida à execução das atividades diárias, sobretudo
no âmbito profissional, a experiência de um dia livre pode ser carregada pelo desconforto
e sentimento de tristeza, ao se perceber acometido pela sensação que já está presente
ao longo dos dias, mas é camuflada pela execução de tarefas e o sentimento de utilidade.

Com relação à neurose do desemprego, Frankl (2008, p. 164), destaca que


a origem se encontra “numa dupla identificação errônea: estar sem emprego era
considerado o mesmo que ser inútil, e ser inútil era considerado o mesmo que levar uma
vida sem sentido”. Durante sua experiência com pessoas desempregadas, notou que o
trabalho foi associado ao senso de utilidade e de sentido de vida das pessoas. Todavia,
o autor destaca que, possivelmente, esses indivíduos já estavam acometidos de um
vácuo existencial agravado pela situação de desemprego, não sendo a ausência de
emprego o que constituiu a neurose, inclusive pode se tratar de uma neurose dominical
mais permanente.

A neurose coletiva foi discutida por outros autores e autoras, na qual identificou-
se que cada época desenvolve sua forma própria de neurose como forma de adaptação
ao vazio existencial. Frankl (2012, p. 278) descreve a tríade atual da neurose coletiva
que consiste na depressão, dependência química e agressão, em que aponta como
“suicídio no sentido lato do termo, suicídio crônico no sentido da dependência de droga
e, sobretudo, também violência contra os outros”. O autor afirma ainda, no que se refere
ao sentido de vida e ao suicídio, que é mais importante verificar o que afasta o indivíduo
de um potencial risco de suicídio, e como atribuir sentido a sua própria existência e
sobrevivência, do que se debruçar a questionar o porquê do ato. Destaca ainda, que

nem todo caso de depressão pode ser atribuído a um sentimento de


falta de sentido. Tampouco o suicídio – a que a depressão às vezes
leva a pessoa – sempre é resultado de um vazio existencial. Contudo,
mesmo que todo e qualquer caso de suicídio não tenha sido levado a
cabo por causa de um sentimento de falta de sentido, é bem possível
que o impulso de tirar a vida tivesse sido superado se a pessoa tivesse
estado consciente de algum sentido e propósito pelos quais valesse
a pena viver (FRANKL, 2008, p. 165).

À neurose coletiva relaciona-se, ainda, posturas das pessoas adotadas perante


a vida, com destaque a quatro atitudes principais (FRANKL,1990): atitude fatalista,
atitude existencial provisória, atitude coletivista e atitude fanática. No que se refere à
atitude fatalista, o destino é considerado insuperável, sendo o ser humano apenas o

81
produto de combinações sociais e psicofísicas, eximindo-o da responsabilidade pela
própria existência. A atitude existencial provisória, a tendência em viver a partir de
impulsos partindo de um prisma da incerteza do dia de amanhã. A combinação dessas
duas atitudes retira as possibilidades de escolha e responsabilidade por elas, pois não é
possível enxergar um sentido no futuro, pois “[...] se o fatalista não age dado o destino
imutável, o indivíduo do senso provisório alega a inviabilidade do agir por não conhecer
o futuro” (SANTOS, 2016, p. 136).

A atitude coletivista consiste na atribuição da responsabilidade à massa, sendo


o indivíduo insignificante frente às decisões do grupo social, tornando impessoal a
coletividade, e, logo, a responsabilidade não diz respeito ao sujeito, estando passível
ao coletivo.

A atitude fanática por sua vez, nega a diversidade da coletividade, não tolerando
a divergência de posturas e pensamentos, e, logo, a pluralidade. Frankl (1990, p. 46)
aponta para uma correlação entre ambas as atitudes, descrevendo que “o homem que
pensa em moldes coletivistas olvida a sua própria personalidade, o homem induzido
pelo fanatismo não enxerga o ser pessoal do outro, daquele que não sintoniza com o
seu pensamento”. A seguir, o mapa conceitual desenvolvido por Santos (2016) sobre a
vontade de sentido:

82
Figura 3 – Vontade de sentido

Fonte: Santos (2016, p. 134)

83
Por fim, a logoterapia e a análise existencial contribuem de forma significativa
para a compreensão do sofrimento humano, inaugurando um olhar atento às
questões relacionadas ao sentido de vida e ao vazio existencial, sobretudo em um
momento histórico de guerras e pós-guerra, em que a humanidade foi acometida por
questionamentos existenciais.

DICA
Caro acadêmico, você poderá compreender mais dos aspectos do sofrimento
trazido por Viktor Frankl na entrevista disponível em: https://bit.ly/3BBWp2O.

84
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A logoterapia e análise existencial são alicerçadas na fenomenologia, no


existencialismo e no humanismo, conhecida como a Terceira Escola de Viena, sendo
a primeira e segunda escolas a Psicanálise de Freud e a Psicologia Individual de
Adler, respectivamente. Tem como objetivo promover a compreensão da experiência
imediata com base na motivação do ser humano para a liberdade e para o encontro
com o sentido de vida.

• A visão de ser humano na logoterapia não se restringe ao ser biopsicossocial, so-


mando-se a esta concepção a dimensão espiritual ou noética. Destacam-se duas
características antropológicas de sua visão de mundo, a autotranscendência e o au-
todistanciamento, relacionados à transcendência dos condimentos biopsicossociais.

• A liberdade da vontade diz respeito a uma postura frente ao ser humano que o
compreende como livre e capaz de fazer escolhas, sendo essas escolhas sempre
carregadas de uma responsabilidade inerente, rompendo com o pandeterminismo
da época.

• O sentido da vida consiste no desejo inerente em atribuição de significados para a vida.


O sentido da vida é único, pois cada pessoa atribuirá os seus significados, mesmo que
se assemelhe a sentidos partilhados em cada cultura e sociedade, mutável, tendo em
vista as transformações que acontecem ao longo da vida, e concreto, considerando
que não são significados abstratos, mas uma expectativa concreta de satisfação.

• A vontade de sentindo diz respeito ao desejo e busca contínua para encontrar um


sentido para a vida, portanto uma força motriz da vida humana. Quando a vontade de
sentido é frustrada, surge a falta de sentido e um sentimento de futilidade, um vazio
interior que na logoterapia é conhecido como vácuo existencial.

85
AUTOATIVIDADE
1 Na logoterapia, compreende-se que, quando a vontade de sentido é frustrada, surge
a falta de sentido e um sentimento de futilidade, um vazio interior conhecido como
vácuo existencial ou vazio existencial. Este pode se apresentar como excessiva
preocupação com a autorrealização, a indiferença e o tédio. O vácuo existencial em
si, não consiste em uma forma de adoecimento, porém pode vir a se transformar
em formas de neuroses, como a neurose coletiva. Frankl destaca um conjunto de
atitudes adotadas perante a vida, que culminam em neuroses coletivas. Sobre os
tipos de atitudes, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Atitude coletivista; atitude existencial imediata; atitude fatalista e atitude fanática.


b) ( ) Atitude existencial provisória; atitude coletivista; atitude fatalista e atitude fanática.
c) ( ) Atitude cooperativista; atitude existencial imediata; atitude fatalista e atitude fanática.
d) ( ) Atitude existencial provisória; atitude cooperativista; atitude fatalista e atitude fanática.

2 Na logoterapia, a visão de ser humano não se restringe ao ser biopsicossocial,


somando-se à concepção da dimensão espiritual. Frankl descreve que o físico
é dado pela hereditariedade, o psíquico é dirigido pela educação e o espiritual,
contudo, não pode ser educado, tem de ser realizado. Diante do exposto, analise as
sentenças a seguir:

I- A autotranscendência diz respeito ao fato do ser humano sempre apontar e se dirigir


para algo ou alguém diferente de si mesmo, seja um sentido a realizar ou outro ser
humano a encontrar.
II- O autodistanciamento consiste na capacidade do ser humano distanciar-se de si
mesmo, o que permite se perceber com outros olhos e avaliar e reavaliar a própria
postura diante dos outros.
III- É a partir da dimensão noodinâmica da existência que conceitos como liberdade,
responsabilidade e preocupação com o sentido da vida são possíveis.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

86
3 Os sentidos que são compartilhados socialmente são concebidos na logoterapia
como valores, denominados valores de criação, valores de experiência e valores de
atitude. Diferente dos sentidos de vida, que são concretos e singulares, os valores são
abstratos e universais. Diante do exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras
e F para as falsas:

( ) Os valores de experiência consistem na experimentação de algo ou na experiência


com alguém, experimentando algo como a bondade, a verdade e a beleza,
experimentando a natureza e a cultura ou, ainda, experimentando outro ser
humano em sua originalidade própria, como o amor.
( ) Os valores de atitudes, consiste na decisão que se toma frente ao sofrimento
inevitável, portanto, referem-se a transformar aspectos negativos da vida, em
potenciais experiências positivas e de crescimento, dotando um novo sentido e
postura em relação à experiência.
( ) Os valores de criação dizem respeito a criação e práticas de atos, ou seja, tudo o que
se cria e deixa no mundo, que intervém ou transforma o ambiente e/ou as pessoas
ao redor. É um valor que restringe ao trabalho e a determinação de uma profissão.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A logoterapia tem seu alicerce na condição inerente ao ser humano de busca pelo
sentido da vida. A partir das experiências de vida de Frankl, sobretudo sua experiência
de sobrevivência e a perda dos membros da família nos campos de concentração
nazista, o autor postulou e inaugurou uma visão antropológica de ser humano que
transcende a compreensão biopsicossocial, e propôs três dimensões inerentes à
experiência humana, o sentido da vida, a liberdade da vontade, e a vontade de sentido.
Disserte sobre os três conceitos centrais que norteiam a abordagem terapêutica.

5 Frankl dedicou atenção especial ao conceito de vácuo/vazio existencial, no qual


não o compreendia como uma doença, tampouco tendo uma causa patológica.
Compreendia que uma pessoa saudável em uma perspectiva biopsicossocial, que
tenha boas condições socioeconômicas e satisfação profissional, pode ser acometida
pela frustração existencial e experimentar sentimentos de falta de sentido e vazio
interior. A partir disso, construiu o conceito de neurose noogênica. Disserte sobre as
formas de neurose postuladas pelo autor.

87
88
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS DA
ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA (ACP)

1 INTRODUÇÃO
A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) foi proposta por Carl Rogers, e sua
construção foi influenciada pela fenomenologia e o método fenomenológico, o
movimento existencialista e a psicologia humanista, além de outros campos do saber
que Rogers teve contato durante sua trajetória de vida. Ao longo das experiências
profissionais do referido autor, suas compreensões teóricas foram se transformando,
adotando novos conceitos e nomenclaturas, inicialmente sendo conhecida como
aconselhamento psicológico, posteriormente como terapia centrada no cliente quando
foi largamente conhecida, e, por fim, foi reconhecida e intitulada pelo autor como
abordagem centrada na pessoa.

Rogers cunhou uma proposta terapêutica diferenciada das terapias conhe-


cidas e difundidas na época, em que privilegiou sua atenção na relação terapêutica,
atribuindo como função do terapeuta imprimir condições facilitadoras para o cresci-
mento do cliente.

As condições facilitadoras consistem em atitudes imprescindíveis do terapeuta,


para a construção de um espaço em que o cliente se sinta aceito, e a partir disso, possa
acessar autoconceitos enrijecidos, que o impedem de ser como se é. O autor descreve
algumas fases desse processo de crescimento, que transita de uma condição de rigidez
para a fluidez, que possibilita uma expressão mais autêntica e genuína do cliente.

Acadêmico, a seguir, no Tópico 2, serão apresentadas as fases de construção


da abordagem centrada na pessoa, e o que foi privilegiado por Rogers em cada uma
delas, bem como as literaturas de referência publicadas em cada época, os conceitos
fundamentais da teoria rogeriana, as influências da fenomenologia e da psicologia
humanista e as condições facilitadoras que o terapeuta precisa adotar para promover o
processo terapêutico, e, por fim, serão apresentadas as fases do processo terapêutico
descritas pelo autor em um dos livros de referência da abordagem, como pequenas
descrições de casos clínicos conduzidos por Rogers.

89
2 FASES DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA
Carl Rogers, ao longo de sua trajetória de vida, foi atualizando sua proposta
teórica, incluso renomeando em conformidade com as transformações. Inicialmente,
o autor adotou a terminologia de Psicoterapia Não Diretiva ou Aconselhamento Não
Diretivo, descrição utilizada em seu livro Psicoterapia e consulta psicológica, publicado
em 1942. Posteriormente, em virtude de outras experiências vivenciadas, intitulou sua
teoria em Terapia Centrada no Cliente, Ensino Centrado no Aluno, Liderança Centrada
no Grupo e, por último, Abordagem Centrada na Pessoa, descrições utilizadas a partir do
foco de seu trabalho ao longo da vida (MOREIRA, 2010).

Em seu livro Um jeito de ser (1980), Rogers comenta os anos de estudos e


as experiências vivenciadas que corroboraram para a transformação da terminologia
adotada como referência a sua proposta teórica e prática:

A mudança na terminologia utilizada atesta a ampliação do campo


de aplicação: o velho conceito de “terapia centrada no cliente” foi
transformado em “abordagem centrada na pessoa”. Em outras
palavras, não estou mais falando somente sobre psicoterapia, mas
sobre um ponto de vista, uma filosofia, um modo de ver a vida, um
jeito de ser, que se aplica a qualquer situação em que o crescimento
– de uma pessoa, de um grupo, de uma comunidade – faça parte dos
objetivos (ROGERS, 1980, p. 2).

Tendo em vista as transformações de foco teórico e metodológico ao longo do


percurso de vida de Carl Rogers, diferentes autores classificaram e dividiram as fases
de pensamento do autor. Moreira (2010, p. 538) destaca que a divisão mais adotada
atualmente consiste em “três fases referentes à psicoterapia: fase não diretiva (1940-
1950); fase reflexiva (1950-1957); fase experiencial (1957-1970) e uma fase referente à
ACP; fase coletiva ou inter-humana (1970-1987)”. As referidas fases serão apresentadas
a seguir.

2.1 FASE NÃO DIRETIVA (1940-1950)


A primeira fase refere-se à Psicoterapia Não Diretiva, e teve como principal obra
de referência o livro Counseling and psychotherapy, publicada em 1942 nos Estados
Unidos, sendo publicado no Brasil em 1973, como o título Psicoterapia e consulta psico-
lógica. Nessa fase, a técnica da permissividade por meio de uma postura de neutralida-
de foi privilegiada como atitude do terapeuta. O conselheiro, termo utilizado na época,
abdicaria do papel de especialista para que o cliente conduzisse o processo terapêutico,
intervindo minimamente e não direcionando a sessão. O autor descreve que

A responsabilidade básica do counsellor é, então, o estabelecimento


de um ambiente ou um clima que liberte o cliente de forças que
estejam a dificultar o seu crescimento e que se torne possível o
desenvolvimento autoiniciado. Tudo aquilo que o counsellor diga ou

90
faça, todo e qualquer gesto ou expressão facial contribuem para o
ambiente que o cliente sente. O facto de o cliente se sentir livre para
tirar o máximo proveito dos períodos de counselling, depende do tipo
de ambiente que encontre (ROGERS, 2000, p. 22, grifos do original).

Essa modalidade de prática terapêutica teve como base o impulso individual para
o crescimento e para saúde proveniente da psicologia humanista. Foram enfatizados
os aspectos relacionados aos sentimentos e não somente elementos intelectuais, foco
na experiência presente frente às vivências do passado, tendo como ponto central o
indivíduo, rompendo com o foco do processo no problema, além da compreensão da
própria relação terapêutica como uma experiência de crescimento.

2.2 FASE REFLEXIVA (1950-1957)


Nessa fase, foi acentuada que a função do terapeuta era promover o
desenvolvimento do cliente em uma atmosfera desprovida de ameaça e, portanto,
sob condições facilitadoras. Enquanto na fase anterior, o foco é na não diretividade
do processo terapêutico, privilegiando a passividade do terapeuta, nesse segundo
momento há uma centramento no cliente e um papel mais ativo do profissional para
construir as condições ideais de crescimento. Como descreve o autor,

Em termos psicológicos, a finalidade do counsellor é captar da forma


mais sensível e profunda, que lhe for possível, todo o campo de
percepção tal como o cliente o experimenta, com as mesmas relações
de forma-fundo, no grau pleno em que o cliente deseja comunicar
esse campo. Depois de ter captado o quadro de referência interno do
outro, de forma tão completa quanto possível, deve indicar ao cliente
a extensão do que vê através dos seus olhos (ROGERS, 2003, p. 34).

Em 1951, Rogers publica seu livro Psicoterapia centrada no cliente, no qual


é desenvolvida uma teoria sobre as atitudes facilitadoras do processo terapêutico,
destacando a empatia, aceitação positiva incondicional e a congruência. Por meio
destas três condições, o psicoterapeuta pode perceber e compreender o mundo do
cliente na perspectiva dele, respeitando incondicionalmente sua individualidade, e ainda
a importância do terapeuta ser ele mesmo, e corresponder ao que o cliente comunica
de forma autêntica.

2.3 FASE EXPERIENCIAL (1957-1970)


A partir da publicação do livro On becoming a person, que foi publicado no Brasil
apenas em 1976 sob o título Tornar-se pessoa, Rogers demonstra sua aproximação
com o conceito de experimentação de Eugene Gendlin, focalizando a experiência
vivida do cliente, no entanto dando lugar à intervenção do profissional no espaço da
relação intersubjetiva terapeuta-cliente. Segundo Moreira (2010), Gendlin imprimiu
contribuições na teoria rogeriana ao possibilitar uma reinterpretação do conceito de
experiência de positivismo lógico para uma orientação existencialista.
91
Assim, a ênfase central do processo é a vida inter e intrapessoal, sendo a relação
terapêutica um encontro existencial que potencializa o processo. Portanto, “o objetivo
da psicoterapia é ajudar o cliente a usar plenamente sua experiência, no sentido de
promover uma maior congruência do self e do desenvolvimento relacional” (MOREIRA,
2010, p. 540).

O conceito de congruência ou autenticidade também é bastante expresso nessa


fase, pois a relação terapêutica é enfatizada em demasia. Como destaca Moreira (2010)
“O psicoterapeuta deve confiar em seus próprios sentimentos, sendo congruente com
a própria experiência; ou seja, a sua experiência passa a ser entendida como parte da
relação terapeuta-cliente”. Vale destacar que o conceito de autenticidade diz respeito ao
estar presente na experiência da relação terapêutica, e que foi erroneamente associado a
falar de si como forma de expressar a presença autêntica.

2.4 FASE COLETIVA OU INTER-HUMANA (1970-1987)


Em seus últimos 15 anos de vida, Rogers debruçou-se a estudar questões
mais amplas, dentre elas atividades grupais e as relações humanas coletivas, o que
foi transformando sua postura e terminologia, adotando a terminologia/abordagem
centrada na pessoa, rompendo com um processo terapêutico exclusivamente individual.
Seu livro publicado sob o título Um jeito de ser, na década de 80, somado à publicação
de Sobre o poder pessoal, em 1976 nos Estados Unidos e em 1977 no Brasil, demonstram
as transformações nos conceitos e posturas pessoais.

O que entendo por abordagem centrada na pessoa? Este é o tema


principal de toda a minha vida profissional, que foi adquirindo
contornos mais claros a partir da experiência, da interação com outras
pessoas e da pesquisa. Sorrio quando penso nos diversos rótulos
que dei a esse tema no decorrer de minha carreira – aconselhamento
não diretivo, terapia centrada no cliente, ensino centrado no
aluno, liderança centrada no grupo. Como os campos de aplicação
cresceram em número e variedade, o rótulo “abordagem centrada na
pessoa” parece ser o mais adequado (ROGERS, 1980, p. 38).

Ainda, essa fase foi marcada também pela incorporação mais acentuada de
conceitos transcendentes e holísticos, além da aproximação com outros campos do
saber. O autor destaca, ainda, em Um jeito de ser (ROGERS, 1980), os progressos da
época, que promoveram alterações na percepção da realidade vivida, em especial as
descobertas da física quântica e outros campos científicos. Dessa forma, afirma que
há uma convergência entre física teórica e misticismo, principalmente o misticismo
oriental, e que isso leva a “[...] um reconhecimento de que o universo inteiro, no qual
se inclui o homem, é ‘um ballet cósmico’. Sob este prisma, os conceitos de matéria,
tempo e espaço perdem a relevância; existem apenas oscilações” (ROGERS, 1980, p.
127, grifo do original), e conclui, classificando essas transformações de concepção de
mundo como revolucionárias.

92
3 CONCEITOS CENTRAIS
A abordagem centrada na pessoa tem como princípio epistemológico a feno-
menologia e o método fenomenológico, enfatizando a experiência subjetiva e pré-re-
flexiva como critério de conhecimento, e por esse motivo, faz-se necessário a adoção
de uma postura de redução fenomenológica a fim de que crenças e valores sejam sus-
pensos, para que ocorra um encontro genuíno com a experiência vivencial do cliente.

Como destaca Santos (2004), “decorrendo desta atitude fenomenológica, o


papel do terapeuta será, assim, o de, a partir do ponto de vista fenomenal do cliente,
procurar a compreensão da consciência vivencial da experiência de si e do mundo”
(SANTOS, 2004, p. 19).

Outro princípio estruturante da proposta terapêutica, diz respeito ao conceito


de tendência atualizante, oriundo da psicologia humanista. Nesse sentido, o cliente
experiencia uma motivação inerente ao crescimento psicológico, voltado para a
ampliação de suas capacidades e potencialidades. Portanto, o cliente é compreendido
como sensível às condições do meio, que facilitam ou dificultam a expressão genuína,
e que o processo terapêutico consiste na construção de um meio que disponibiliza
condições facilitadoras de crescimento.

A partir do exposto, a relação terapêutica tem um papel fundamental na


construção das condições de crescimento. Rogers destaca ao longo de sua obra, com
maior ou menor grau, a importância da não diretividade do processo terapêutico, ou seja,

Ao terapeuta cabe apenas criar as condições para que, através


daquela relação particular, o indivíduo possa reorganizar-se
reencontrar a sua própria direcção. O poder que lhe é atribuído, e a
inerente responsabilização pelo seu próprio processo de mudança,
representam um estímulo a sua autonomia (SANTOS, 2004, p. 21).

Dessa maneira, a relação terapêutica tem como propósito facilitar o processo de


crescimento do cliente, em que seja possível o restabelecimento do acordo perdido entre
a experiência total da pessoa, e a experiência consciente do self, sendo a última marcada
por elementos da experiência vivida como desejos, sentimentos e necessidades, que
são associadas de maneira distorcida à perda da aceitação e do amor.

Essas distorções na compreensão das experiências vividas, pautam a construção


de processos defensivos de interiorização de valores e normas que definem e classificam
elementos para a aceitação do outro. Portanto, são construídos autoconceitos rígidos
e desatualizados que impendem o cliente de se expressar como deseja, tendo como
ameaça principal, a não aceitação pelo outro.

93
NOTA
O self é compreendido como um campo fenomenológico em que a pessoa
organiza uma percepção e conceito de si mesmo. Assim, constitui-se de
um encontro entre as demandas internas do organismo e as demandas
externas (valores sociais etc.) a ele (GUIMARÃES; SILVA NETO, 2015).

Considerando a importância da aceitação desse outro para com o cliente, a fim


de que seja possível reparar a experiência autêntica do cliente, e assim permitir uma
expressão mais fluida e conectada com uma expressão mais genuína, Rogers (1980, p.
45) propõe algumas atitudes do terapeuta que podem facilitar esse processo:

Os indivíduos possuem dentro de si vastos recursos para a


autocompreensão e para modificação de seus autoconceitos, de
suas atitudes e de seu comportamento autônomo. Esses recursos
podem ser ativados se houver um clima, passível de definição, de
atitudes psicológicas facilitadoras. Há três condições que devem
estar presentes para que se crie um clima facilitador de crescimento.

Portanto, as condições facilitadoras são atitudes adotadas pelo terapeuta,


consideradas imprescindíveis para que o cliente se sinta aceito pelo outro, e a partir
disso, possa fortalecer o seu próprio processo de aceitação de si, rompendo com os
conceitos enrijecidos e desatualizados, e adotando posturas mais satisfatórias e co-
nectadas com os seus desejos. A seguir, serão apresentadas as três condições faci-
litadoras do processo terapêutico: a aceitação positiva incondicional, a compreensão
empática e a congruência.

3.1 ACEITAÇÃO POSITIVA INCONDICIONAL


A postura de aceitação do terapeuta é condição básica central do processo
terapêutico. Tal atitude possibilita o enfraquecimento ou a dissolução dos autoconceitos
estabelecidos ao longo das experiências de vida, promovendo progressivamente uma
postura de aceitação própria do cliente. Rogers (1997, p. 38) descreve que

Por aceitação, quero dizer uma consideração afetuosa por ele


enquanto uma pessoa de autovalia incondicional – de valor,
independentemente de sua condição, de seu comportamento ou
de seus sentimentos. Significa um respeito e apreço por ele como
uma pessoa separada, um desejo de que ele possua seus próprios
sentimentos a sua própria maneira. Significa uma aceitação de suas
atitudes no momento ou consideração pelas mesmas, independente

94
de quão negativas ou positivas elas sejam, ou de quanto elas possam
contradizer outras atitudes que ele sustinha no passado. Essa
aceitação de cada aspecto flutuante desta outra pessoa constitui
para ela uma relação de afeição e segurança.

Um olhar positivo incondicional consiste nessa aceitação genuína que se


mantém constante independentemente daquilo que seja revelado pelo cliente sobre si
mesmo, como os temas abordados, o ritmo do processo, as decisões tomadas, dentre
outros (SANTOS, 2004).

Conforme afirma Rogers (1997, p. 94) sobre a importância da aceitação no


processo terapêutico, “um dos elementos da terapia de que mais recentemente tomamos
consciência é o quanto a terapia é para o cliente, a aprendizagem de uma aceitação
plena e livre, sem receio, dos sentimentos positivos de outra pessoa”. Portanto, por meio
dessa postura, o direito, a diferença e a autonomia são reconhecidos e respeitados, e o
cliente pode experimentar se sentir aceito por alguém apesar do que revela sobre como
se percebe, rompendo com autoconceitos limitantes.

3.2 COMPREENSÃO EMPÁTICA


Ter uma postura empática para Rogers consiste na capacidade de acessar o
mundo do outro a partir de seus olhos, sendo sensível às mobilidades e significações
de suas vivências. É uma busca intencionada e ativa de uma compreensão precisa
e completa do cliente, e tal postura promove a criação de espaços para que outras
experiências possam acender a consciência do cliente, e assim, possibilitando revisões
e ampliações do autoconceito. No entanto, conforme destaca Santos (2004), “para
assimilar na estrutura do self uma atitude, desejo ou tendência comportamental
anteriormente ameaçadores, o seu significado subjetivo e o seu impacto no olhar do
indivíduo para si próprio têm de mudar” (SANTOS, 2004, p. 22). Dessa forma, a atitude
empática frente ao cliente é ferramenta de promoção de transformação, porém é
necessário que, o que foi acessado na consciência seja integrado, ou seja,

quando está em sua melhor forma, o terapeuta pode entrar tão


profundamente no mundo interno do paciente que se torna capaz de
esclarecer não só o significado daquilo que o cliente está consciente
como também do que se encontra abaixo do nível de consciência.
Este tipo de escuta ativa e sensível é extremamente rara em nossas
vidas. Pensamos estar ouvindo, mas muito raramente ouvimos e
compreendemos verdadeiramente, com real empatia. E, no entanto,
esse modo tão especial de ouvir é uma das forças motrizes mais
poderosas que conheço (ROGERS, 1980, p. 39).

A compreensão empática potencializa o crescimento do cliente, pois quando


o terapeuta consegue compreender como o cliente sente, a vivência de seu mundo
interior, e como genuinamente ele é, o cliente também tem a oportunidade de se
perceber, e o processo de mudança pode acontecer.

95
3.3 CONGRUÊNCIA
Ter uma postura congruente frente ao cliente consiste em aceitar e se permitir
viver os sentimentos que emanam do encontro terapêutico. Isso quer dizer que o
terapeuta pode vivenciar os próprios sentimentos de uma forma autêntica, transparente
e sincera na relação, tendo a liberdade, inclusive, de expressar como os sentimentos do
cliente alcançam o terapeuta (BAKERS, 2016).

Rogers (1997, p. 72) relata como foi concebido e construído o significado do


termo congruência

Descobriu-se que a transformação pessoal era facilitada quando


o psicoterapeuta é aquilo que é, quando as suas relações com o
paciente são autênticas e sem máscara nem fachada, exprimindo
abertamente os sentimentos e as atitudes que nesse momento lhe
ocorrem. Escolhemos o termo “congruência” para tentar descrever
esta condição. Com este termo procura-se significar que os
sentimentos experimentados pelo terapeuta lhe são disponíveis,
disponíveis a sua consciência, e que ele é capaz de vivê-los, de ser
esses sentimentos e estas atitudes, que é capaz de comunicá-los se
surgir uma oportunidade disso.

A congruência pode ser compreendida como uma preparação do terapeuta


para a experiência de uma compreensão empática do cliente, e para sua aceitação
incondicional. Nesse sentido, Santos (2004, p. 22) questiona que, se o terapeuta se
posiciona de forma incongruente frente ao cliente, “preso à rigidez das suas próprias
defesas, como conseguirá promover a fluidez do cliente ou estar aberto a sua diversidade
e complexidade?”.

Melhor dizendo, para construir um processo terapêutico que vislumbre uma


ampliação de consciência do cliente, é imprescindível a promoção de uma relação
terapêutica em que a postura do terapeuta seja de respeito ao processo em si e a como
este caminhará no tempo do cliente, mas, sobretudo, uma postura autêntica que pode
espelhar e reverberar no processo do cliente.

Rogers (1994, p. 157) resume as condições necessárias e suficientes para o


processo de mudança:

1) que duas pessoas estejam em contato psicológico; 2) que a


primeira, a quem chamaremos cliente, esteja num estado de
incongruência, estando vulnerável ou ansiosa; 3) que a segunda
pessoa, a quem chamaremos de terapeuta, esteja congruente ou
integrada na relação; 4) que o terapeuta experiencie consideração
positiva incondicional pelo cliente; 5) que o terapeuta experiencie
uma compreensão empática do esquema de referência interno do
cliente e se esforce por comunicar esta experiência ao cliente; 6) que
a comunicação ao cliente da compreensão empática do terapeuta
e da consideração positiva incondicional seja efetivada, pelo menos
num grau mínimo.

96
Por fim, as atitudes facilitadoras do processo terapêutico proposto por Rogers,
promoveram uma nova compreensão da relação terapeuta-cliente, em que ainda há
um princípio estruturante de uma não diretividade, que é expressa no conceito de
compreensão empática no respeito ao tempo e condições do cliente em acessar temas
e experiência, porém há uma concepção de presença ativa do terapeuta e de sua
importância expressa pela congruência do terapeuta e pela sua aceitação incondicional
do cliente. A seguir, serão descritos os estágios do processo terapêutico, conduzido a
partir dessas três condições fundamentais.

NOTA
Cliente ou Paciente? Em Terapia Centrada no Cliente (2003), Rogers
destaca sua motivação para utilizar o termo cliente ao invés de paciente:
“o cliente, como indica o significado do termo, é alguém que vem, ativa
e voluntariamente procurar ajuda, para resolver um problema, mas
sem qualquer intenção de pôr de lado a sua própria responsabilidade
na situação. Foi devido a estas conotações do termo que o adotamos,
uma vez que evita o sentido de estar doente ou de ser o objeto de uma
experiência etc.” (ROGERS, 2003, p. 7).

4 ESTÁGIOS DO TORNAR-SE PESSOA


O processo terapêutico tem como proposta promover um processo de mudança
de um estado de rigidez para um estado de flexibilidade. Para tanto, a condição básica
desse processo de tornar-se pessoa passa pela necessidade que o cliente tem de se
sentir plenamente aceito. No entanto, essa aceitação não condiz com um ponto fixo,
mas como um contínuo, no qual o indivíduo vai da fixidez para a mobilidade, portanto a
mudança consiste em um processo contínuo. Conforme descreve Rogers (1997, p. 149),

Comecei a entender que os indivíduos não se movem a partir de um


ponto fixo ou uma homeotase para um novo ponto fixo, embora um
processo desse gênero seja possível. Mas o contínuo mais significativo
é o que vai da fixidez para a mobilidade, da estrutura rígida para
o fluxo, da estase para o processo. Emite a hipótese provisória de
que, talvez, as qualidades da expressão do cliente pudessem, em
qualquer momento, indicar a sua posição nesse contínuo, indicar
onde se encontra no processo de mudança.

Para descrever esse processo contínuo de mudança, o autor distinguiu sete


fases, em que habitualmente alguns comportamentos se centram em torno de uma
seção do contínuo, e que é pouco provável que o cliente experiencie a fixidez em uma
esfera de sua vida, e uma completa fluidez em outra. Portanto, os estágios sucessivos
do processo da mudança de fixidez para fluidez, consistem na mudança “de um ponto
situado perto do polo estático do contínuo para um ponto situado perto do seu polo

97
‘em movimento’” (ROGERS, 1997, p. 149). Destaca-se que há uma variabilidade no
estágio geral do processo em que o cliente se encontra, em que pode haver frases e
comportamentos característicos de fases diferentes. A seguir, serão descritas as setes
fases do processo de tornar-se pessoa, proposto pelo referido autor.

4.1 PRIMEIRO ESTÁGIO


Esse é o momento em que o cliente não virá de boa vontade à terapia, pois
encontra-se em estágio de fixidez e de distanciamento de sua experiência. Nesta fase,
existem algumas características comuns como:

• recusa de comunicação pessoal, sendo a comunicação pautada em assuntos exteriores;


• sentimentos e significados pessoais não são reconhecidos;
• os constructos pessoais são extremamente rígidos;
• nenhum conflito pessoal é reconhecido como problema pessoal;
• não há desejo de mudança;
• há muitos bloqueios na comunicação interna.

A utilização de frases como “acho que estou perfeitamente bem”, “acho


desnecessário falar tanto de mim”, “não vejo problema nisso”, são muito comuns nessa
fase. Demonstram a rigidez psicológica inerente a essa extremidade do contínuo, e o
pouco, ou mesmo nenhum, reconhecimento do fluxo e do refluxo da sua vida afetiva.

A forma que encontrou para construir a experiência presente foi determinada


pelo seu passado de forma rígida, o que afeta a experiência presente. Assim, a diferen-
ciação das significações pessoais da experiência é sumária ou global, compreendida
sempre por meio de um princípio do preto no branco, determinista. “O indivíduo tem
pouco, ou nenhum, reconhecimento do fluxo e do refluxo da sua vida afetiva. Os cami-
nhos que segue para construir a sua experiência foram determinados pelo seu passado
e não são, de maneira rígida, afetados pelo presente” (ROGERS, 1997, p. 151). Portanto,
essa fase é marcada pela estrutura rígida, ancorada em uma experiência de passado
que determina a experiência presente.

4.2 SEGUNDO ESTÁGIO


O processo de aceitação incondicional vivenciado no espaço terapêutico
possibilita o avanço para o segundo estágio. No entanto, o autor ressalta que a transição
do primeiro estágio para o segundo, geralmente ocorre por meio de terapias lúdicas
e atividades grupais, em virtude da rigidez e dificuldade de aceitar a necessidade
de mudança. A aceitação presente no espaço é experienciada pelo cliente sem a
necessidade de se implicar e comprometer com o processo, e a cada situação vivenciada,
a expressão se torna mais fluida, e se caracteriza por:

98
• a comunicação de tópicos referentes ao não eu começa a ser mais comum;
• são captados possíveis problemas, porém são identificados como exteriores ao eu;
• não há responsabilização pessoal em relação aos problemas identificados;
• quando são descritos sentimentos, são identificados como como objetos passados e
não próprios do eu;
• a experiência fica sempre determinada pela estrutura do passado;
• os conceitos pessoais são rígidos, não reconhecidos como construtos, mas
concebidos como fatos;
• dificuldade de diferenciação de sentimentos e significados pessoais, sendo limitado
e global;
• apesar de algumas contradições serem expressas, há pouco reconhecimento destas
como contradições.

Para ilustrar esse processo de mudança, Rogers (1997, p. 153) descreve algumas
expressões utilizadas durante essa fase como: “a desorganização continua a aparecer
inesperadamente na minha vida”, “suspeito que meu pai sempre tenha se sentido pouco
seguro nas suas relações de negócios”, “o sintoma era... era... estar muito deprimida”. A
partir das afirmações, é possível reconhecer o distanciamento com a própria experiência,
localizando os conflitos como exteriores ao eu ou localizados no passado.

4.3 TERCEIRO ESTÁGIO


Se não houver bloqueios e interrupções do fluxo, e o cliente permanecer
sentindo-se totalmente aceito, há um aumento progressivo na maleabilidade e fluência
da expressão simbólica. Isso pode ser visualizado por meio:

• fluência mais livre da expressão do eu como um objeto;


• expressão das experiências pessoas localizadas como objetos;
• expressão sobre o eu como objeto refletido e que existe primariamente frente aos outros;
• descrição de sentimentos e significados pessoais que não estão presentes;
• dificuldade de aceitação dos sentimentos revelados, descritos como vergonhosos,
anormais e inaceitáveis;
• manifestação de sentimentos que não são reconhecidos como tal;
• as experiências ainda são descritas como passadas e afastadas do eu;
• conceitos pessoais rígidos, porém, já são reconhecidos como constructos e não
como fatos exteriores;
• a diferenciação de sentimentos e significados é mais nítido e menos global;
• já é possível reconhecer as contradições da experiência;
• as decisões pessoais são percebidas como ineficazes.

O autor destaca que muitas pessoas que chegam à terapia em busca de ajuda
psicológica, se encontram nessa fase, em que descrevem sentimentos que não sentem
no momento e explorando o eu como um objeto terceiro.

99
Para ilustrar essa fase, Rogers (1997, p. 157) descreveu as seguintes frases
relatadas por seus clientes: “sentia-me de tal maneira culpado durante a minha
juventude que julgava merecer ser sempre castigado fosse pelo que fosse. Se julgava
que não merecia ser castigado por uma coisa, sentia que o merecia por outra”, “e o
que agora sinto é precisamente o que me lembro de ter sentido quando era criança”.
Essas expressões demonstram os conflitos latentes e as dificuldades de localizar os
sentimentos presentes, sendo percebidos apenas como sentimentos oriundos de
experiências passadas.

4.4 QUARTO ESTÁGIO


Ao passo que o cliente vai se sentindo aceito e compreendido tal como é em
suas experiências, ocorre uma maleabilidade gradual de seus construtos e uma fluência
mais livre de sentimentos, que podem ser percebidos como:

• descrição de sentimentos mais intensos (que não estão presentes);


• os sentimentos são descritos como objeto do presente;
• sentimentos apesar de descritos no presente, por vezes surgem contra o desejo do
cliente;
• desconfiança em experimentar sentimentos no presente, e medo perante a
possibilidade;
• apesar de já ser possível a manifestação dos sentimentos, ainda há pouca aceitação;
• a experiência é menos determinada pela estrutura do passado, menos longínqua;
• há a descoberta de alguns constructos pessoais, de como foram construídos e o
questionamento de sua validade.
• ocorre uma maior diferenciação dos sentimentos, dos constructos, das significações
pessoais e a busca por simbolização exata;
• há uma maior preocupação diante das contradições e incoerências entre a experiência
e o eu;
• há uma tomada de consciência e uma responsabilização perante os problemas
pessoais, porém ainda com certa hesitação;
• o cliente já aceita o risco de uma relação mais estreita e até um certo grau de
afetividade.

O autor ressalta que a quarta e quinta fase consistem em boa parte do processo
terapêutico. Algumas expressões que ilustram essas fases descritas por ele: “fico
desanimado por me sentir dependente, porque isso quer dizer que não acredito em
mim”, “sinto-me preso por alguma coisa. Devo ser eu! Não encontro outra explicação.
Não posso atribuir isso a ninguém. Há este nó... em alguma parte, dentro de mim...”, “isso
é engraçado. Por quê? Ora, porque é um pouco estúpido da minha parte... sinto-me um
pouco inquieto, um pouco embaraçado com isso... e um pouco impotente” (ROGERS,
1997, p. 159, grifo do original).

100
4.5 QUINTO ESTÁGIO
O avanço para a quinta fase é caracterizado pelo acesso a sentimentos que são
percebidos, mesmo que não seja possível exprimir com clareza aquilo que foi sentido.
É possível identificar um acontecimento organísmico em relação às simbolizações e
formulações cognitivas da experiência. O autor destaca, em comparação à primeira fase
e à fase atual, “em primeiro lugar, essa fase está, psicologicamente, a muitos quilômetros
do primeiro estágio descrito. Nesse ponto, muitos aspectos da personalidade do cliente
tornaram-se móveis, ao contrário da rigidez do primeiro estágio” (ROGERS, 1997, p. 163).
As características dessa fase em que há uma proximidade maior com uma expressão
orgânica e em movimento são:

• os sentimentos são experienciados livremente como se acontecessem no presente;


• começam a vir à tona sentimentos que são plenamente experimentados, apesar do
receio e desconfiança;
• princípio de uma compreensão de que vivenciar um sentimento envolve uma
referência direta;
• há uma surpresa e um receio quando aos sentimentos vêm à tona, raramente prazer;
• cada vez mais brota o desejo de experienciar os próprios sentimentos e viver o
verdadeiro eu;
• a vivência já é mais descontraída e não tão distante;
• o modo como os construtos pessoais se constroem já são muito mais maleáveis,
sendo possível uma análise e discussão crítica;
• há uma exatidão na diferenciação dos sentimentos e das significações;
• o cliente aceita cada vez mais enfrentar suas contradições e incongruências com a
experiência;
• há uma aceitação por parte do cliente de sua responsabilidade perante seus
conflitos que necessita enfrentar e uma preocupação sobre como contribui com os
próprios problemas;
• o diálogo interior é mais livre, e tem-se uma melhora na comunicação, diminuindo os
bloqueios.

Algumas frases que ilustram esse estágio, e que demostram o processo


de aceitação das incongruências e aceitação dos sentimentos reais despertados
no presente: “eu esperava ser rejeitado... estou sempre à espera disso... tenho até a
impressão de sentir a mesma coisa com você... Custa-me falar disso, porque queria
ser o melhor que posso com você”, “a verdade é que eu não sou o indivíduo agradável e
tolerante que procuro mostrar que sou. Há coisas que me irritam. Sinto-me ríspido com
as pessoas e sinto-me por vezes egoísta; e não sei por que é que havia de fingir que não
sou assim”, “isso já não tem qualquer importância. Era, no entanto muito importante,
mas não faço a menor ideia por que razão... Sim, é isso! Posso esquecer-me disso
agora... isso não tem importância. Ai, que miséria e que estupidez!” (ROGERS, 1997, p.
160, grifos do original).

101
4.6 SEXTO ESTÁGIO
Nesta fase, há uma compreensão profunda e um reconhecimento autêntico
dos sentimentos e incongruências da experiência. Além disso, há uma maleabilidade e
fluidez na comunicação interior que possibilita uma congruência organísmica com os
sentimentos. Algumas características são descritas a seguir:

• o sentimento que antes era bloqueado, agora é experienciado de forma imediata;


• o sentimento flui para seu fim pleno, sendo experimentado com toda a sua riqueza
num plano imediato;
• o caráter imediato da experiência e o sentimento que constitui seu conteúdo são
aceitos, sendo reconhecidos como algo real e que não necessita ser negado, temido
ou combatido;
• a experiência é vivida subjetivamente e não como objeto de um sentimento;
• o eu já não é mais percebido como objeto;
• há uma maleabilidade fisiológica que acompanha o sentimento;
• há uma comunicação interior livre e com poucos bloqueios;
• a incongruência entre a experiência e a consciência é vivamente experimentada, e
desaparece no interior da congruência;
• o construto pessoal correspondente se transforma durante a experiência, separan-
do-se do quadro de referência estável;
• o momento da vivência integral torna-se uma referência clara e definida;
• há uma compreensão profunda da vivência, não sendo mais reconhecidos problemas
como exteriores ou interiores, mas como uma fase subjetiva de seu conflito.

Nessa fase, em virtude dessa profundidade de consciência, é possível entrar


em contato com diálogos autênticos, como foi descrito por Rogers (1997, p. 167, grifos
do original):

O cliente: Podia mesmo acontecer que eu tivesse uma espécie de


ternura em relação a mim próprio... No entanto, como seria eu capaz
de ser terno, de me preocupar comigo mesmo, pois somos uma
mesma e única coisa? Contudo, sinto isso claramente... Sabe, é como
quem cuida de uma criança. Você quer lhe dar isso e aquilo... Posso
compreender isso quando se trata de outra pessoa... mas nunca
o poderia ver para... mim próprio, que eu pudesse agir assim para
comigo. Será possível que eu queira, agora, tomar realmente conta
de mim, e que isso seja o principal objetivo da minha vida? Isto quer
dizer que eu teria de abordar o mundo como se eu fosse o guardião
do bem mais precioso e mais ambicionado, que este eu estaria entre
esse eu precioso de que eu quero cuidar e o mundo todo... É quase
como se eu me amasse a mim mesmo – entende? – isso é estranho...
mas é verdade.
O terapeuta: Isso parece ser um conceito estranho e difícil de
compreender. Poderia significar: Eu enfrentaria o mundo como se
uma parte essencial da minha responsabilidade fosse cuidar desse
indivíduo precioso que eu sou... que eu amo.

102
O cliente: Com quem eu me preocupo... de quem eu me sinto tão
próximo. Ora, aqui está mais uma coisa estranha.
O terapeuta: Isso só parece esquisito.
O cliente: Sim! E vai mesmo mais longe. A ideia de me amar a mim
próprio e de me preocupar (os seus olhos umedecem-se). Seria uma
coisa muito bonita... muito bonita.

4.7 SÉTIMO ESTÁGIO


No último estágio, já não é mais necessário que o cliente se sinta aceito pelo
terapeuta, apesar da importância disso para chegar até essa fase, pois já é possível
sustentar a aceitação incondicional própria. O cliente já é capaz de saber de forma mais
clara e diferenciada quem é, o que deseja e quais suas atitudes. Algumas características
dessa última fase são descritas a seguir:

• os novos sentimentos são experimentados de modo imediato e com riqueza de


detalhes, na relação terapêutica e fora dela;
• a experiência de sentimentos é utilizada como o ponto de referência;
• há uma confiança crescente e continuada de aceitação pessoal dos sentimentos em
mudança e na sua própria evolução;
• a vivência imediata torna-se a vivência de um processo, sendo experienciada e
interpretada na sua novidade e não como passado;
• o eu torna-se cada vez mais, simplesmente, a consciência subjetiva e reflexiva da
experiência;
• os construtos pessoais são provisoriamente reformulados, até serem revalidados
pela experiência em curso, mantendo-se maleáveis;
• a comunicação interior é precisa, com sentimentos e símbolos bem combinados e
com novos termos para sentimentos novos;
• há a percepção de uma efetiva escolha de novas maneiras de ser.

Dessa forma, quando o cliente alcança o sétimo estágio no seu processo de


transformação, há uma noção de movimento, de fluxo, de mudança, em todos os aspectos
de sua vida psicológica, vivendo os sentimentos com autenticidade, conhecendo-os e
aceitando-os, tal como descreve Rogers (1997, p. 177, grifo do original):

Os modos como constrói a sua experiência estão em permanente


alteração e seus construtos pessoais modificam-se devido a cada
novo acontecimento vivido. A natureza da sua experiência é a de um
processo, sentindo a novidade de cada situação e interpretando-a
de uma maneira nova, recorrendo aos termos do passado apenas na
medida em que o novo é idêntico ao passado. Vive a experiência de
um modo imediato, sabendo ao mesmo tempo que está vivenciando.
Ele aprecia a exatidão na diferenciação dos sentimentos e das
significações pessoais da sua experiência. A comunicação interior dos
diferentes aspectos de si mesmo é livre e sem bloqueios. Comunica-
se livremente nas relações com os outros, e estas relações não
são estereotipadas, mas de pessoa a pessoa. Tem consciência de
si mesmo, mas não como de um objeto. É antes uma consciência

103
reflexiva, uma vida subjetiva da sua pessoa em movimento. Percebe-
se responsável pelos seus problemas. Sente-se, além disso,
plenamente responsável em relação a sua vida em todos os seus
aspectos em movimento. Vive plenamente em si mesmo como um
processo em permanente mudança.

Por fim, a abordagem centrada na pessoa proposta por Carl Rogers, imprimiu
importantes contribuições sobre novas posturas terapêuticas, capazes de potencializar o
processo terapêutico. Ainda, privilegiou-se um novo lugar a ser ocupado pelo terapeuta,
que adota uma postura ativa, porém não diretiva, respeitando o tempo de acesso as
autoconceitos do cliente, e, principalmente, reafirmando essa condição existencial de
se sentir incondicionalmente aceito pelo outro na figura do terapeuta. A teoria rogeriana
permanece atual e é utilizada por um grande número de profissionais da psicologia no
Brasil, e é também utilizada em outras áreas, sobretudo na educação.

DICA
No link a seguir, é possível conferir um vídeo clássico da Abordagem Centrada
na Pessoa, que consiste na condução de um caso clínico realizado por Carl
Rogers, intitulado de Caso Glória. Acesse em: https://www.youtube.com/
watch?v=bIxAQ79RmL4.

104
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Ao longo das experiências profissionais de Rogers, suas compreensões teóricas


foram se transformando, adotando novos conceitos e nomenclaturas, até a utilização
da terminologia atual de Abordagem Centrada na Pessoa (ACP).

• A motivação inerente ao ser humano para o crescimento psicológico por meio da


ampliação de suas capacidades e potencialidades, que advém de uma postura da
psicologia humanista também é impressa na ACP. As influências da fenomenologia
estão presentes, principalmente, na adoção de uma postura de redução
fenomenológica a fim de que crenças e valores sejam suspensos, para que ocorra
um encontro genuíno com a experiência vivencial do cliente.

• O cliente é compreendido como sensível às condições do meio, que facilitam ou


dificultam a expressão genuína, e que o processo terapêutico consiste na construção
de um meio que disponibiliza condições facilitadoras de crescimento, que podem ser
disponibilizadas pelo terapeuta a partir de posturas específicas como a compreensão
empática, a aceitação positiva incondicional e a congruência.

• As condições facilitadoras são atitudes adotadas pelo terapeuta, consideradas


imprescindíveis para que o cliente se sinta aceito pelo outro, e a partir disso, possa
fortalecer o seu próprio processo de aceitação de si, rompendo com os conceitos
enrijecidos e desatualizados, e adotando posturas mais satisfatórias e conectadas
com os seus desejos.

• A ACP contribuiu com um novo olhar terapêutico, em que o terapeuta que adota uma
postura ativa, porém não diretiva, respeitando o tempo de acesso aos autoconceitos
do cliente, e, principalmente, reafirmando essa condição existencial de se sentir
incondicionalmente aceito pelo outro na figura do terapeuta.

105
AUTOATIVIDADE
1 Rogers cunhou uma proposta terapêutica diferenciada das terapias conhecidas
e difundidas na época, em que privilegiou sua atenção na relação terapêutica,
atribuindo como função do terapeuta imprimir condições facilitadoras para o
crescimento do cliente. Com relação à Abordagem Centrada na Pessoa, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) O processo terapêutico consiste na construção de um meio que disponibiliza


condições facilitadoras de crescimento, apesar do cliente não experienciar uma
motivação inerente para crescer.
b) ( ) O processo terapêutico tem como proposta promover um processo de mudança
de um estado de rigidez para um estado de flexibilidade.
c) ( ) A condição básica desse processo de crescimento passa pela necessidade que
o cliente tem de se sentir parcialmente aceito.
d) ( ) Não há uma variabilidade nos estágios sucessivos do processo da mudança do
cliente de fixidez para fluidez.

2 Ao longo de sua trajetória de vida, Carl Rogers foi atualizando sua proposta teórica,
imprimindo novas definições e conceitos a sua teoria, inclusive renomeando
sua abordagem terapêutica. Em virtude das transformações da teoria rogeriana,
diferentes autores dividiram suas produções em fases para sinalizar posturas e
conceitos centrais oriundos de cada época. Sobre as fases descritas por Moreira
(2010), classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

Fonte: MOREIRA, V. Revisitando as fases da


abordagem centrada na pessoa. Estudos de
psicologia, Campinas, v. 27, n. 4, p. 537-544, 2010.

( ) Na fase reflexiva, foi acentuado que a função do terapeuta era promover o


desenvolvimento do cliente em uma atmosfera desprovida de ameaça e, portanto,
sob condições facilitadoras.
( ) Na fase coletiva ou inter-humana, Rogers debruçou-se a estudar questões mais
amplas, dentre elas atividades grupais e as relações humanas coletivas.
( ) Na fase não diretiva, a técnica da permissividade, por meio de uma postura de
neutralidade, foi privilegiada como atitude do terapeuta.
( ) Na fase experimental, a ênfase central do processo é sobre a vida inter e intrapessoal,
sendo a relação terapêutica um encontro existencial que potencializa o processo.

106
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – F – V.
b) ( ) V – F – V – V.
c) ( ) V – V – V – V.
d) ( ) F – F – V – F.

3 O processo contínuo de mudança rumo ao tornar-se pessoa, descrito por Rogers, é


classificado em sete fases, que correspondem à transição do cliente de um estágio
rígido de fixidez a um estágio de fluidez e maleabilidade. Com base na descrição dos
estágios, analise as sentenças a seguir:

I- Rogers ressalta que a transição do primeiro estágio para o segundo, geralmente


ocorre por meio de terapias lúdicas e atividades grupais, em virtude da rigidez e
dificuldade de aceitar a necessidade de mudança.
II- Na quinta fase, a manifestação de sentimentos não é reconhecida como tal, e as
experiências ainda são descritas como passadas e afastadas do eu.
III- Há uma compreensão profunda da vivência na sexta fase, não sendo mais
reconhecidos problemas como exteriores ou interiores, mas como uma fase
subjetiva de seu conflito.
IV- Na sétima fase o eu torna-se cada vez mais simplesmente a consciência subjetiva
e reflexiva da experiência. Apesar disso, os construtos pessoais ainda são fixos e
pouco maleáveis.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

4 A relação terapêutica tem como propósito facilitar o processo de crescimento do


cliente, em que seja possível o restabelecimento do acordo perdido entre a experiência
total da pessoa, e a experiência consciente do self, sendo a última marcada por
elementos da experiência vivida como desejos, sentimentos e necessidades que são
associadas, de maneira distorcida, à perda da aceitação e do amor. Essas distorções
na compreensão das experiências vividas, pautam a construção de processos
defensivos de interiorização de valores e normas que definem e classificam
elementos para a aceitação do outro. Portanto, são construídos autoconceitos
rígidos e desatualizados que impendem o cliente de se expressar como deseja, tendo
como ameaça principal, a não aceitação pelo outro. Rogers descreve três condições
facilitadoras na construção da relação terapêutica que são imprescindíveis para o
processo. Disserte sobre as condições facilitadoras e os impactos de cada uma delas
para o processo terapêutico.

107
5 Rogers (1997, p. 177) ao comentar a última fase do processo terapêutico, descreve
que o cliente “vive plenamente em si mesmo como um processo em permanente
mudança”. A partir do exposto, disserte brevemente sobre as características e
diferenciações comparando a primeira e a última fase do processo terapêutico.

Fonte: ROGERS, C. Tornar-se pessoa. 5. ed. São


Paulo: Martins Fontes, 1997.

108
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS
DA GESTALT-TERAPIA

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, a Gestalt-terapia compõe o bojo de abordagens com base
fenomenológica e tem tido sua importância e visibilidade em franco crescimento no
Brasil, atualmente. Esta abordagem surgiu no caldo da contracultura da década de
1960, e se coloca de maneira crítica e questionadora frente a algumas formas de olhar
o contato do indivíduo com o mundo e com seu próprio sofrimento. Desse modo,
apresenta uma releitura e uma nova ética ontológica, com uma dimensão prática e
relacional enfatizada.

Desse modo, serão apresentados alguns percursos desta abordagem, como


quais suas fontes de referência, a saber: a psicologia da Gestalt, o pensamento oriental,
a fenomenologia de Husserl, a teoria organísmica de Goldstein, a teoria de campo de
Kurt Lewin, dentre outros. Além disso, também veremos quais críticas a Gestalt-terapia
se fertiliza, do ponto de vista de quais tipos de manejos clínicos e psicológicos afastou-
se para consolidar-se.

Ainda neste viés, veremos alguns conceitos-chave da abordagem, como o fluxo


de figura e fundo, awareness, teoria do self, neurose, resistência, formas de interrupção
de contato (confluência, introjeção, projeção, retroflexão, proflexão, deflexão, egotismo).
Em Gestalt-terapia, a concepção de self não corresponde a uma estrutura fixa e
universalizada, mas algo que ocorre no campo e, também, se coloca em movimento,
ativo e atento. Por último, veremos brevemente o diagnóstico numa modalidade
processual e linear, o que se alinha ao pensamento da abordagem como um todo.

2 APRESENTANDO A GESTALT-TERAPIA E
SEUS PERSONAGENS
A Gestalt-terapia (GT) tem sua fecundação em meio às teorias humanistas
e existencialistas, trazendo para a psicologia uma outra forma de perceber e se
relacionar com o homem que se afasta daquelas formas difundidas pela psicanálise e
pelo behaviorismo, abordagens vanguardistas da época (FRAZÃO, 2013). Num sentido
diferente, a Gestalt com sua base humanista, enfatiza a capacidade de autorregulação
do indivíduo, focando em suas potencialidades para crescimento e criatividade.

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Foi no ano de 1951 que Frederick Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline
publicaram o livro cânone e marco para a área. De acordo com Frazão (2013), “o livro
era fruto das anotações que Perls trouxera da África e, também, dos debates ocorridos
no chamado Grupo dos Sete, composto por Isadore From, Paul Goodman, Paul Weiz,
Sylvester Eastman, Elliot Shapiro, Laura Perls e Fritz Perls.” (FRAZÃO, 2013, p. 13). No ano
de 2022 a Gestalt-terapia completa 70 anos de vida.

DICA
“Gestalt-terapia” é o livro fundador e oficial da abordagem, desenvolvido por Frederick
Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman (comumente abreviados como Perls, Hefferline,
Goodman). É um livro que oferece as diretrizes da Gestalt-terapia em termos ontológicos e
com desenvolvimento de conceitos. Este é um livro inicial e essencial para a compreensão
da teoria, estando as novas produções na área ancoradas a esta obra.

Figura – Livro: Gestalt-terapia (Perls, Hefferline, Goodman)

Figura – Livro: Gestalt-terapia (Perls, Hefferline, Goodman)

A construção deste livro, que é a principal fonte de referência da Gestalt-


terapia, é fruto do encontro entre diferentes teóricos, onde cada qual teve uma
participação e um tipo de influência teórica. Vamos, brevemente, apresentar os três
autores do livro em questão.

Frederick Perls, nascido em 1934 na Alemanha, imigrou para a África do Sul


em 1934 fugindo do contexto nazista, considerando que também era judeu. Saiu da
África do Sul também devido ao contexto político do apartheid. Indo morar nos Estados
Unidos, por volta de 1946, frequentava ambientes onde também se encontravam
boêmios, intelectuais e ativistas contracultura da época (FRAZÃO, 2013).

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Paul Goodman é um intelectual formado em Letras, conhecido por ser um
ativista gay anarquista, tendo reconhecimento teórico e político na área. Faz uma
interlocução entre filosofia alemã e filosofia estadunidense. Tinha um foco voltado para
a educação, lecionando para o que seria correspondente ao ensino médio, nos Estados
Unidos. Acreditava que o processo de escolarização, de alguma maneira, interrompia
alguns processos criativos da criança. Uma de suas maiores bases é William Reich e
suas propostas políticas na psicanálise.

Laura Perls foi uma psicóloga com fortes influências existencialistas de


Kierkegaard e Heidegger e os fenomenólogos Husserl e Scheler (FRAZÃO, 2013). O seu
doutorado foi na área da Psicologia da Gestalt e foi aluna de Max Wetheimer, um dos
precursores desta área da psicologia. Além disso, Laura também trabalhava com Kurt
Goldstein, responsável pela teoria organísmica, um dos pilares da Gestalt-terapia.

Figura 4 – Laura Perls, Fritz Perls, Paul Goodman

Fonte: https://bit.ly/3Uq7X1P. Acesso em: 19 set. 2022.

No Brasil, a Gestalt-terapia surge com mais proeminência a partir da década de


1970, no auge da ditadura militar. A produção e a releitura do pensamento gestáltico,
para se aplicar ao contexto brasileiro, tem fervilhado com novas personalidades e novas
críticas que nos convidam a pensar, sempre, no momento presente. Atualmente, há
mais de sessenta livros publicados, além de uma série de revistas e artigos que também
contribuíram para o desenvolvimento da área.

A Gestalt-terapia, além de beber da fonte de existencialistas, humanistas e


fenomenológicos, além da dimensão corporal de Reich, também apresenta fortes
influências do pensamento oriental, a saber, do taoísmo e do zen-budismo (TICHA, 2013).

O Taoísmo é originário da China, personificado em Lao Tsé que, vivendo entre


os séculos VII e VI a.C., apresenta uma filosofia em que a realidade é sempre formada
por opostos que não se excluem, mas pelo contrário, compõe-se de maneira mútua,
harmônica e equilibrada. São opostos, mas também são complementares.

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Se o mundo concorda sobre a beleza, é porque existe a feiúra.
Se todos concordam sobre o bem, é porque existe o mal.
O “ser” e o “não ser” nascem um do outro;
O difícil e o fácil são complementares;
O longo e o curto nascem por comparação;
O alto e o baixo são interdependentes;
O som e o silêncio estão em mútua harmonia;
O anterior e o posterior são correlativos.
É por isso que o Sábio entrega-se ao não agir, e ensina silenciosamente.
As coisas inumeráveis são feitas sem a menor palavra.
A natureza dá nascimento, mas nada possui.
Ela age, mas não existe nenhuma submissão.
Ela tem mérito, mas não reclama.
O fato de que ela nada pretende a torna indispensável (TSE, 2001, p.
26, apud TICHA, 2013, p. 95).

Em outras palavras, é a partir da integração entre as partes, entre yin e yang,


entre masculino e feminino, entre luz e sombra que se experiencia o Uno, o absoluto,
o todo. Não se busca, portanto, a eliminação de uma parte, a não aceitação ou a
hierarquização de uma sobre a outra, mas busca-se compreender e deixar-se ser levado
pelo que surge em cada momento, experimentando polos opostos que compõe a si.

O budismo é oriundo da Índia no século VI a.C. e compõe em seu bojo uma série
de conceitos do hinduísmo quando chega à China (TICHA, 2013). A meditação é um dos
principais pontos da prática budista, visto que não há aqui uma concepção a respeito
de Deus tal como nos moldes que se apresenta em outras doutrinas ou religiões. A
meditação é uma prática que visa acalmar a agitação da mente, mas que se alcança por
meio de uma prática e exercício constantes.

Dentro do arcabouço de práticas e éticas do budismo, o sofrimento está em seu


cerne, estando inerente à condição humana, e a partir dele podemos acessar questões
psicológicas, como o crescimento, o nascimento, o adoecimento, a morte. Trata-se de um
estilo de pensamento e ética perante a vida mais do que uma religião. Por uma outra via,
a proposta do budismo busca pelo religare, ou seja, a religação entre homem e divino.

Além disto, o conceito de impermanência também faz parte da linha de


pensamento do budismo, no sentido em que se percebe a vida em constante movimento,
tudo está em constante devir, nada se mantém como está, nada permanece, tudo
sempre muda. Absolutamente todas as coisas que existem no mundo são transitórias,
nada fica permanentemente inalterável e buscar pela permanência é o que no budismo
se chama de apego. O indivíduo apegado, nesses termos, vislumbra o próprio sofrimento,
visto que não aceita o caráter impermanente das coisas, o fluxo da vida.

Estas concepções sobre a existência humana que abarcam a mutabilidade


de tudo, as possibilidades de ficar no aqui e no agora, a aceitação do sofrimento não
como punição, mas como possibilidade para viver um livre fluir vão ao encontro das
concepções de ser humano da Gestalt-terapia. Isto pois, também na Gestalt-terapia,
busca-se a integração dos opostos, busca-se a criatividade que pode ser alcançada a
partir de um ponto zero que estaria entre opostos.

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O equilíbrio, em GT, volta-se mais para a capacidade e habilidade de movimentar-
se para, assim, atingir o crescimento, do que fixar numa forma socialmente aceitável,
mas individualmente rígida.

3 DE ONDE A GESTALT-TERAPIA PARTE


Em “Ego, fome e agressão”, Frederick Perls apresenta algumas críticas à
psicanálise e alguns novos conceitos, com os quais baseia e elabora também a
construção da Gestalt-terapia. Nesse sentido, como passo inicial, desenvolve o
conceito de “indiferença criativa”, o que endossa outros modos de perceber os
fenômenos (PERLS, 2002). O conceito de indiferença criativa é um exemplo da
influência oriental no pensamento gestáltico, pois dialoga com partes opostas entre si
que são, na verdade, complementares.

Ao invés de partir de uma teoria estruturalista que surge com uma série de a
prioris e regras de causa e efeito, Perls (2002) defende o pensamento diferencial, o
que tem como base o método dialético. Assim, desloca os questionamentos de “por
quê?” para “como?”, não estabelecendo explicações nem aplicando uma nomenclatura
universal, mas contextualizando as experiências de forma holística.

DICA
Indicamos o primeiro livro de Fritz Perls tecendo críticas à psicanálise e a partir do qual
fertilizou ideias para a construção da Gestalt-terapia. Este trabalho representa o início de
uma mudança radical e é primordial para o conhecimento dos primórdios da teoria. Uma
das metáforas utilizadas por Perls diz respeito à alimentação e à nutrição,
num sentido onde é necessário que o alimento seja destruído por meio da
mastigação para que seja digerido e nutrido pelos outros órgãos do corpo.
Isto representa um dos princípios da Gestalt-terapia, em que novidade e
rotina andam de mãos dadas. E para que haja crescimento algo do que já
está estabelecido precisa ser destruído/agredido, precisa alcançar uma nova
forma. Desse modo, também podemos refletir sobre como somos nutridos,
que tipo de relação estabelecemos com a comida e com o mundo que nos
cerca, o que nós ingerimos sem mastigar, impedindo, assim, o crescimento
saudável do corpo.

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Figura – Ego, fome e agressão, Perls

Fonte: https://bit.ly/3LpJXbd. Acesso em: 19 set. 2022.

Além do método dialético que se propõe a partir de opostos e sínteses,


a psicologia diferencial também dialoga com a perspectiva fenomenológica de
intencionalidade, na qual consciência é sempre consciência de alguma coisa (TSALLIS,
2014). O deslocamento do “por quê?” para o “como” também ressalta uma suspensão de
juízos, um retorno às coisas mesmas, uma observação do fenômeno, sabendo, contudo,
que não há possibilidade de uma redução absoluta. Neste cenário, outras formas de
sentir e perceber podem ser delineadas, com as especificidades, temporalidades,
materialidades e espacialidades de cada contexto (TSALLIS, 2014).

A Gestalt-Terapia também tem como uma de suas bases a Psicologia da


Gestalt, que tem como um dos princípios a noção de que nossa percepção se orienta
a partir do princípio de figura-fundo (FRAZÃO, 2013). Isso corresponde às totalidades
que se apresentam de diferentes formas dependendo das circunstâncias. Desse modo,
dependendo do contexto, algo que até então se encontrava indistintamente num fundo,
torna-se proeminente e enfático, ou seja, torna-se figura.

Esse fluxo é uma constante em nossas vidas, de forma que também dialoga
com nossas necessidades. O que é figura em um momento surge num sentido de
ser “resolvida”, de ter um fechamento de Gestalten e, com essa necessidade satisfeita,
retorna a um fundo distinto. Isto ocorre tanto num nível de necessidades orgânicas
básicas, como fome e sede, como também em níveis mais subjetivos, o que está sempre
contextualizado no campo do sujeito (FRAZÃO, 2013). Figura e fundo integram a
totalidade da Gestalt.

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Assim, as necessidades que surgem para o indivíduo podem perturbar o
equilíbrio estabelecido, de modo que o indivíduo buscará reestruturar-se por meio
de contato ou de fuga, interagindo com o meio. Não obstante, as necessidades
são inúmeras e ocorrem simultaneamente (física, psicológica, sociais, espirituais),
o indivíduo estabelece uma hierarquia de necessidades, uma espécie de escala de
valores, e atende à necessidade que é prioritária naquele momento (CARDELLA, 2014).
A necessidade prioritária é o que chamamos de “figura” e as demais necessidades
permanecem no “fundo” do indivíduo até que estas também se tornem prioritárias e,
portanto, “figuras”.

A fenomenologia de Edmund Husserl, que vimos na Unidade 1, também oferece


contributos para uma teoria e uma prática em Gestalt-Terapia. Além seus fundamentos
afastarem-se de uma lógica positivista e cartesiana, na perspectiva husserliana a
consciência representa movimento e ação, o que também apresenta um caráter não
reflexivo, considerando que os aspectos sensórios são anteriores ao modo reflexivo.

Desse modo, há em nós uma recepção do mundo em termos de sensibilidades


corpóreas – que é a forma primeira como os fenômenos chegam. Por estas vias, o
fenômeno não é uma entidade pura que está em um ser ou em outro, pois está sempre
diante do indivíduo, o fenômeno, assim, dá-se no encontro (MOURA, 2015).

O fenômeno, como algo que acontece no encontro e não como algo


intrínseco no indivíduo, também pode ser percebido nas nossas relações, de maneira
geral, e na prática clínica gestáltica, como um convite. Isso também se relaciona
com a noção de tempo a partir, não de chronos – o senhor que mede o tempo em
horas, datas e compromissos – mas de kairós, o deus do tempo oportuno, o deus das
estações. Desse modo, kairós apresenta um tempo subjetivo que pode ser concebido
a partir das percepções de fenômenos, dos encontros que a pessoa vivencia em seus
horizontes de passado e de futuro. Uma compreensão do tempo de forma kairótica
representa, também, uma ampliação da consciência, um pertencimento ao presente,
uma percepção das coisas por elas mesmas.

Nesse sentido, na GT o foco é sempre na consciência e no que se mostra


presente, o que, nos termos da abordagem, é o que se mostra como figura. O que não
é figura, corresponde ao fundo do sujeito. Neste campo psicológico, o que é figural e o
que é fundo pode mudar, dependendo de uma série de fatores e contextos.

No entanto, quando uma situação se faz figura (se torna presente), ela representa
uma situação em aberto, uma gestalten, que busca fechamento. Nesse sentido, algo
toca o indivíduo que o faz movimentar a estrutura e as prioridades do seu próprio
campo. A partir desses termos, podemos pensar na GT como uma terapia do contato,
do cuidado, da relação.

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Seguindo essa linha de raciocínio, a normalidade é a capacidade
adaptativa do indivíduo frente às diversas situações de sua vida. Haverá́
doença à medida que o indivíduo responder inadequadamente à
determinada situação, colocando em risco a sua própria sobrevivência
e/ou a do outro. Assim sendo, saúde é um processo de construção
mútua, pois indivíduo e mundo, organismo e meio coexistem
necessariamente, atualizando-se concomitantemente, passando da
esfera do possível para a do real (BOAVENTURA, 2013, p. 83).

A Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, outra das bases da Gestalt-Terapia, tem


como proposta uma visão de indivíduo unificado, integrado, não dividido em partes, não
separado por blocos e compartimentos. Não obstante, a importância em reconhecer
as partes dá-se justo pelo fato de que uma interferência nas partes também afeta o
todo. Nesse sentido, o organismo sempre busca a organização, a sua homeostase e
autorregulação.

Considerando, contudo, que o indivíduo está sempre imbricado a um contexto,


(um meio social, um ambiente), este também interfere nas suas possibilidades de
ação, ou seja, as potencialidades de autorregulação do organismo também dependem
ou dialogam com as condições possíveis a depender do ambiente. Nesse contexto, o
organismo está estruturado em termos de figura e fundo e numa ação contínua do
indivíduo para movimentos perceptivos, de forma que nem figura nem fundo são
estáticos, pelo contrário, podem são elásticos e flexíveis, caso haja abertura para tal,
ou seja, as figuras que se tornam proeminentes no fundo do indivíduo dizem respeito
às necessidades do organismo, e há uma configuração e atualização da configuração
deste cenário de maneira constante. Com a necessidade satisfeita, surgem outras
necessidades e, novamente, o fundo e a figura se reorganizam.

A autorregulação do organismo é o acordo do organismo com o meio para


alcançar um todo integral e harmonioso (WALLEN, 1977). Este processo pode dar-se
como uma busca por desejos e satisfações que podem deparar-se com frustrações
no meio do caminho e estas, por sua vez, podem abrir espaço para a criatividade, que
é explorar novas possibilidades do campo. Esses movimentos são denominados de
“ajustamento criativo”, que diz respeito a uma adaptação ao meio de forma criativa tanto
em relação ao ambiente quanto aos desejos e necessidades do indivíduo. Na prática,
em meio a uma ou a tantas frustrações, o indivíduo pode desenvolver comportamentos
disfuncionais e neuróticos que o fazem se perceber longe da realização almejada,
focando de maneira mais enfática na frustração já cristalizada.

O comportamento neurótico não satisfaz as necessidades do indivíduo,


podendo cristalizar figura e fundo, interrompendo um fluxo figura-fundo e impedindo
o processo de autorrealização ou o fechamento da Gestalt (WALLEN, 1977). Com isso,
a harmonia e homeostase do organismo ficam comprometidas. Um dos problemas da
cristalização é o esvaziamento das experiências outras, que seriam possíveis pelo viés
da novidade e de novos caminhos em detrimento a um repertório que se repete numa
rotina tediosa que não atende às necessidades nem aos desejos. Não obstante, um

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comportamento neurótico pode ter sido, em alguma altura, um modo criativo de lidar
com alguma demanda do campo que permanece quando pode haver outros recursos à
disposição do indivíduo, mas que este não contata. Esses processos de organização do
organismo em busca de satisfação são dinâmicos, mudam constantemente, de forma
que é necessário que haja atualizações do indivíduo e sua configuração para utilizar os
próprios recursos e ajustes criativos.

INTERESSANTE
Há uma série de vídeos documentais que mostram a forma como Perls
trabalhava no manejo clínico. Boa parte desses vídeos são retirados de
workshops com Gestalt-terapeutas. No link a seguir, você pode acessar uma
dessas experiências, que é uma dose de estímulo para quem quer seguir a
área: https://bit.ly/3Snkpxs.

4 COMPREENDENDO A GESTALT-TERAPIA:
CONCEITOS BÁSICOS
A palavra awareness poderia ser traduzida como “estar consciente de”, mas não é
utilizada a tradução na íntegra, para que não se confunda com a ideia de uma consciência
já pré-estabelecida. A awareness é uma perspectiva da consciência pautada no fluxo da
experiência e do sensível no aqui-agora. Esta perspectiva tem alicerce numa teoria de
campo, não sendo dualista nem determinista, lançando possibilidades do indivíduo ser e
estar afetado, e de que forma as novidades são (ou não) contatadas (ALVIM, 2014).

Quando pensamos em awareness o que importa é o sentir, estar aberto para ser
e estar afetado. O sentido é dado na experiência. Para tal, há certa passividade, estar
com o “coração aberto” para assimilar uma novidade, envolve, até mesmo, uma certa
lentidão, uma não interpretação imediata e nem uma reflexão apurada. Isto porque a
awareness está na ordem do sensível (ALVIM, 2014). Muitas vezes para sentir e perceber,
é necessário um olhar mais atento, um passo mais vagaroso. Isso também se relaciona
com o vazio fértil, a partir do qual a expansão da awareness é, efetivamente, germinada.

Entretanto, é a partir dos contatos que a awareness é possível. O contato é o


anseio pela novidade, pois aquilo que é sempre igual e rotineiro não é objeto do contato.
O contato tem quatro fases, a saber (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997): pré-
contato, processo de contato ou contatando, contato final e pós-contato. Pré-contato
tem o corpo como figura e fundo, sem definição clara. Na segunda fase, contatando,
as excitações são o fundo e a figura são as possibilidades percebidas. Na terceira
fase, contato final, a figura percebida ocupa quase todo o self, concretizando alguma

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ação ou movimento. O pós-contato é a assimilação da novidade, o crescimento, a
transformação a partir do encontro com a novidade. Estas são as etapas de contato
saudáveis, contudo, os contatos de má qualidade também interferem na forma de figura
que se cria, podendo ser confusa e sem vigor.

Figura 5 – Fases de contato

Fonte: Badin (2018, p. 23)

A partir desta figura, percebemos que o contato está presente e permeando


nossas experiências em diversos níveis. Além disso, a ideia de “fronteira de contato”
é uma das pedras angulares da Gestalt-terapia, estando, como todos os conceitos da
abordagem, intimamente relacionado às demais propostas da teoria. Nesse sentido,
se para haver awareness é necessário que haja contato e é a partir do contato entre
indivíduo e meio que surgem novas trocas possíveis com a novidade, então podemos
pensar também a partir da ideia de “fronteira de contato” como uma espécie de “lócus”
do contato, onde indivíduo e meio, organismo e ambiente se relacionam. Para Perls,
Hefferline e Goodman (1997, p. 41):

A experiência se dá na fronteira entre organismo e seu ambiente,


primordialmente a superfície da pele e os outros órgãos de resposta
sensorial e motora. A experiência é função desta fronteira, e
psicologicamente o que é real são as configurações “inteiras” deste
funcionar, com a obtenção de alguns significados e a conclusão de
alguma ação.

Não obstante, a fronteira não é algo geográfico, não há um lugar prédeterminado,


a fronteira não é algo fixo e não pertence ao indivíduo. A fronteira muda de acordo com o
momento, com as demandas, com fatores que, às vezes, não estão sob responsabilidade
do indivíduo, mas que atua com e sobre ele (SALOMÃO; FRAZÃO; FUKUMITSU, 2014).
Assim, a fronteira é algo que ocorre “entre”.

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A fronteira é o lugar da experiência, é onde se dá o encontro entre indivíduo
e meio. Para PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997), a fronteira de contato pode ter
analogia à pele humana, que delimita o indivíduo e o mundo que o cerca, embora sempre
em interação. Nesse sentido, para Salomão; Frazão; Fukumitsu (2014, p. 38):

O funcionamento da fronteira pode ser comparado ao funcionamento


da membrama citoplasmática – que envolve as células para que elas
não percam o líquido ou elementos, sendo responsável por sua relação
com o meio extracelular. A membrana é seletiva e semipermeável;
deixa entrar o que é nutritivo, mantém o conteúdo do meio intracelular
estável e elimina o que não é mais necessário. Essa organização
intercelular em processo é semelhante a todas as outras situações de
fronteira vividas no relacionamento entre as pessoas.

Por estas vias, quando pensamos num indivíduo saudável, suas fronteiras de
contato possuem plasticidade e permeabilidade, ainda que elas não sejam fixas, nem
absolutas, adaptando às necessidades da relação organismo/meio (SALOMÃO; FRAZÃO;
FUKUMITSU, 2014). Em outras palavras, a fronteira de contato é a awareness de uma nova
situação no campo, de forma que as funções da fronteira implicam, essencialmente, em
lidar com a novidade e com as diferenças, pois é a partir disso que nos possibilitamos
o crescimento e o desenvolvimento (SALOMÃO; FRAZÃO; FUKUMITSU, 2014). Portanto,
quando há comprometimento na fronteira de contato, pode haver comprometimento
nas funções de ajustamento criativo que podem passar a ser disfuncionais, afinal,
quando a interação com o meio é prejudicada, de alguma maneira, as possibilidades de
reconfiguração são limitadas.

O ajustamento criativo, em todos nós, é uma busca, é um processo dinâmico


que está constantemente interagindo entre organismo e ambiente para o alcance
de satisfação e autorrealização. Dito de outro modo, quando o indivíduo se ajusta
criativamente, ele está vivendo uma vida com fluxo, com movimento, colocando asas
nas suas raízes e raízes nas suas asas (CARDELLA, 2014).

Não obstante, o ajustamento criativo não implica uma ruptura com tudo que
já é conhecido, mas busca uma sustentação de um reposicionamento do indivíduo no
campo, recriando a sua forma. É a partir dos ajustes criativos que o indivíduo se afirma
no mundo, que se pessoaliza, que se subjetiva, que se apropria de si e se diferencia do
outro (CARDELLA, 2014).

Assim, quando os indivíduos se ajustam ao meio apenas na modalidade de


rotina e adaptação, com acomodação e resignação, conformismo e cristalização de
ações, então não há criatividade, tratando-se de um campo estéril (CARDELLA, 2014).
A criatividade empregada num ajustamento implica, em alguma medida, a agressão
e a destruição de velhas estruturas, pois é assim que conseguiremos transformá-
las, assimilá-las. Para Perls (2002), engolir sem mastigar pode ser nocivo ao corpo e,
portanto, à saúde do indivíduo, de forma similar, também é prejudicial ajustar-se sem

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assimilar. Assim, pode-se utilizar uma nova energia para um velho problema, isto é
ajustamento criativo. Desse modo, o aparecimento dos sintomas (ou seja, os sintomas
como figura) é uma forma de ajustamento do indivíduo em busca de autorrealização.
Ocorre que esse ajustamento pode figurar-se de forma que interrompa o fluxo do
indivíduo, representando também os sintomas.

O terapeuta, em Gestalt, não observa e apreende a partir da interpretação da


vida e dos afetos do sujeito, mas a partir de uma abertura para o fenômeno, em busca
de aceitar o sujeito em sua totalidade e singularidade. Este é o exercício em GT que, por
ser essencialmente um convite à abertura, ao inacabado e ao incerto, combina com os
termos de um acompanhamento terapêutico.

4.1 TEORIA DO SELF


É por meio do contato que qualquer organismo cresce, como o contato
com a comida, com o amor, com a agressão, com os conflitos, as aprendizagens, as
percepções, os movimentos, dentre outros (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997). O
contato dá-se sempre no campo, sempre no meio, sempre localizado na fronteira que
é, essencialmente, onde ocorre qualquer experiência. Isto importa para pensarmos em
termos gestálticos que fogem de uma lógica individualista, e, assim, passamos a pensar
a experiência e a realidade sempre em paralelo com a teoria de campo.

Para a Gestalt-terapia, o self é considerando como um complexo sistema de


contatos pelos quais o indivíduo passa para ajustar-se em seu campo. Desse modo,
o self estaria intimidante relacionado com o contato, ou seja, de forma alguma o self
deve ser considerado como uma estrutura física dos indivíduos (PERLS, HEFFERLINE,
GOODMAN, 1997). Por esta compreensão, em termos de Gestalt-terapia, não pensamos
a partir da elaboração “seja você mesmo”, mas a partir da provocação “entre em contato
com sua realidade, porque o self dá-se apenas no contato” (PERLS, HEFFERLINE,
GOODMAN, 1997, p. 179).

Em situações de contato, o self é a força que forma a Gestalt no


campo; ou melhor, o self é o processo de figura/fundo em situações
de contato. A sensação desse processo formativo, a relação dinâmica
entre o fundo e a figura é o excitamento: este é o sentimento da
formação de figura-fundo em situações de contato, à medida que a
situação inacabada tende ao seu completamento. De forma inversa,
visto que o self existe não como instituição fica, mas especialmente
como processo de ajustamento a problemas mais intensos e difíceis,
quando essas situações estão inertes ou se aproximam do equilíbrio,
o self é reduzido (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997 p. 180).

Consideramos, então, que o self é espontâneo, tendo como função a construção


de significados que tecemos, enquanto nos desenvolvemos e crescemos. Como o
desenvolvimento e o crescimento não são estáveis, logo, o self não o é, pelo contrário, o

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self representa pura potencialidade de autorregulação. Não obstante, a principal função
do self é fazer ajustamentos criativos, o que o reafirma como entidade nem ativa e
nem passiva, mas num “modo médio – embora sempre engajado na situação do campo
(BANDÍN, 2018).

A partir desses termos, portanto, temos a noção do self em diferenciar-se do


que comumente é abordado em outras vertentes da psicologia.

Quadro 1 – Noções de self

Self segundo a Gestalt-terapia Self segundo outras abordagens


É uma função do campo É uma instância intrapsíquica
É uma função de contato É individual e pessoal
É a formação figura-fundo
É um fenômeno na fronteira de contato e
É uma “coisa” que tem “limites”
pertence ao organismo e ao meio
É espontâneo e flexível É estável
É “modo médio” É ocioso
É temporal É espacial
Busca a novidade É cuidadosamente atento
É um pequeno fator, mas fundamental, na Identifica-se com o espiritual e com o
interação organismo-meio transpessoal
Confere significado à existência Confere “nobreza” ao ser humano
É ecológico e holístico É individualista e isolado

Fonte: Bandín (2018, p. 18)

Dito em outras palavras, o self não é uma entidade que se fixa no sujeito de
maneira imutável, não se trata do “eu”, em si, mas um processo muito pessoal sempre
em relação com o campo. Desse modo, não se trata apenas de “ser”, mas de “ser no
mundo” (GINGER; GINGER, 1995), conforme percebido também pela fenomenologia.

Considerando estes aspectos iniciais do self na abordagem gestáltica, e a com-


preensão de que “o estudo da maneira como uma pessoa funciona em seu meio é o
estudo do que acontece na fronteira de contato entre o indivíduo e seu meio” (PERLS;
HEFFERLINE; GOODMAN, 1997 p. 10), partiremos para analisar o modo de seu funciona-
mento a partir de três instâncias e suas respectivas funções: o id, o eu e a personalidade.

A função “id” diz respeito àquelas pulsões internas e necessidades vitais,


expressando-se fundamentalmente através do corpo. É por meio do id que sabemos
quando sentimos fome, quando estamos relaxados ou excitados (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997).

121
Por esta via, o id imprime nossos atos automáticos, como respirar, andar ou
outra atividade que façamos habitualmente e já não colocamos ali tanta atenção, visto
que “o corpo já sabe o caminho”. Em outras palavras, é como se o id agisse sobre o
organismo, considerando que muitas vezes não o percebemos, de forma que há uma
passividade nesta relação.

A função “eu” diz respeito à ideia de responsabilidade que o sujeito tem


em escolher contatar ou não determinado campo. Trata-se de um modo ativo
e sensorialmente atento, com consciência de si e seu sistema motor (PERLS;
HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). A função “personalidade” diz respeito a um sistema
de atitudes que o indivíduo adota em suas relações. Trata-se, em suma, da nossa
autoafirmação e admissão de quem somos, considerando que esta função é a camada
verbal do self, a parte que vai responder a uma indagação ou reagir num conflito
(PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). A personalidade tem autonomia de escolher e
sustentar seus desejos, sendo a parte responsável do self. Trata-se de como o sujeito
vê a se próprio, sua autoimagem, a partir do qual cria, para si, a noção de identidade.
Não obstante, num funcionamento neurótico, a personalidade tende a estabelecer
alguns conceitos errôneos sobre si próprio.

Devido a essas três funções, o self apresenta diferentes níveis de intensidade,


dependendo da situação.

[...] as vezes, eu não me reconheço em uma reação que não é habitual


em mim, como quando um momento de afeto “me invade”. Em outros
momentos, meu self “se dissolve” numa intensa “confluência”: dança,
êxtase, orgasmo... ou, ao contrário, num estado de “férias” interior, de
“vazio fértil”, antes da emergência de uma nova figura que mobilizara
minha atenção (GINGER; GINGER, 1995, p. 128).

A saúde e a doença, nesse sentido, estariam em diálogo (ou na ausência


de diálogo) com as funções do self. Assim, a psicose, por exemplo, representa uma
perturbação na função id, ou seja, não há disponibilidade ou sensibilidade excitamentos,
sejam internos (perceptivos) ou externos (proprioceptivas). Esta estrutura não responde
claramente nem ao meio nem ao organismo, dificultando a possibilidade de ajustamentos
criativos. Por outro lado, a neurose diz respeito a uma perturbação na função ego ou
na função personalidade, ou seja, o indivíduo tem dificuldade em escolher, decidir e/ou
sustentar a atitude adequada em cada situação.

No caso da neurose, o indivíduo pode receber e perceber as necessidades


externas e as respostas do meio (função id), mas segue elaborando as mesmas
respostas não atualizadas. Neste caso, também não há ajustamentos criativos, pois as
ações estão postas em respostas obsoletas, não oferecendo atualização ou novidade,
mas enrijecida.

122
Para Belmino (2020, p. 19) “a neurose contemporânea é, talvez, uma função
saudável, necessária para que possamos minimamente sobreviver em um mundo que, de
tão indecifrável, obriga-nos a criar cada vez mais estratégias de fazer da natureza algo
previsível e controlado.

4.2 INTERRUPÇÕES DE CONTATO EM GESTALT-


TERAPIA (NEUROSE)
No campo da Gestalt-terapia, percebemos a vida ocorrendo através dos contatos
que estabelecemos desde nossa chegada no mundo. Ocorre, porém, que o organismo
pode agir como se estivesse em situação de perigo e emergência, mesmo quando não
há esse risco objetivo. Neste ponto, percebe-se as funções de contato perturbadas ou
interrompidas, de forma que o organismo sente dificuldade, em termos de manipulação
e orientação, inibindo também sua excitação e espontaneidade.

Dito de outro modo, muitos atos que nos parecem irracionais fazem parte do
repertório do indivíduo em busca de sua autorregulação, o que também informa como
o organismo vai para o contato e como busca sua satisfação. Com esta interrupção de
contato, sintomas são desenvolvidos para que consigamos manter nossa vitalidade e
expressão (LATNER, 1999). Assim, as resistências informam, ao mesmo tempo, tanto
o aspecto saudável, como quando o sujeito busca sua autorregulação, e o aspecto
disfuncional, como quando não consegue obter satisfação, pois suas formas de contato
estão cristalizadas e obsoletas.

A resistência, portanto, está no bojo da formação da neurose, indicando a


cristalização da forma de contato tal como quando havia uma ameaça ou perigo. Nesse
interim, há algumas formas de interrupção de contato que informam mais dados sobre
como o organismo vai para o meio ou se retrai. Nesse sentido, em Gestalt-terapia não se
busca ir contra as resistências ou atacá-las de maneira direta, ao contrário, elas devem
ser respeitadas, pois o indivíduo só se defende, porque sente-se ameaçado. Sem a
excitação e a espontaneidade que permitem o contato com o novo, o fluxo de formação
de figura/fundo fica comprometido e o acesso aos recursos tanto do meio quanto de si
próprios parecem indisponíveis (SCHILLINGS, 2014).

Na prática, percebemos em nós e/ou nos nossos clientes, que as gestalten


inacabadas são numerosas e ocorrem simultaneamente. Para lidar com as gestalten
inacabadas, podemos utilizar de mecanismos de defesa ou evitação de contato, o que
pode ser saudável ou patológico, dependendo da intensidade, da possibilidade de ajuste
criativo, da maleabilidade, do momento, dentre outros fatores (GINGER; GINGER, 1995).

Esses mecanismos ou interrupções de contato não são vistos de forma


vilanizada pela Gestalt, nem se tem como objetivo, necessariamente, a supressão ou
extinção deles, mas a consciência da sua existência. Um dos objetos da prática a partir

123
da Gestalt é a ampliação da awareness, da consciência, de forma que o cliente perceba
de maneira mais explícita seu próprio modo de funcionamento. Estes mecanismos são:
confluência, introjeção, projeção, retroflexão, deflexão, proflexão e egotismo.

A confluência diz respeito à ausência de fronteira de contato, como uma


espécie de “fusão” entre organismo e meio ou entre organismo e o outro. Isto ocorre
no caso da criança que não se diferencia da própria mãe nos primeiros anos de vida.
Em ocorrências saudáveis, o sujeito pode experimentar a retração e encontrar novas
formas de assumir sua singularidade, expressando seus desejos e satisfazendo suas
necessidades, ou seja, delimitando suas fronteiras (GINGER; GINGER, 1995). Caso a
confluência delineie-se de modo crônico, pode ser o caso de um quadro patológico
(neurótico ou patológico).

Além desses aspectos, também podemos pensar a confluência em termos


sociais, como casos de fanatismo ou sectarismo que impedem o contato com tudo que
é diferente, buscando conversar, apenas, sobre o objeto de interesse. Esses aspectos
sociais podem dizer respeito aos sistemas religiosos, políticos ou morais que guiam o
sujeito e o enrijecem, de modo que a separação abrupta com esse modelo também
pode gerar sofrimentos para o sujeito. Para a Gestalt, a sociedade em que vivemos é
neurótica, de modo que precisamos sempre buscar novos ajustes criadores para poder
desfrutar de saúde num ambiente doente.

O trabalho voltado para a consciência da confluência volta-se, portanto, para as


fronteiras do self e o desenvolvimento da segurança e confiança do sujeito em assumir
e sustentar sua própria singularidade, separando-se e diferenciando-se do meio e/ou
dos seus pares. Para tal, diversos exercícios podem ser postos em práticas, envolvendo
o corpo, a fala ou os símbolos, como trabalhar o ritmo, a arte ou o confronto.

A introjeção faz parte da socialização de todos nós em sociedade, está na base


da educação das crianças. Trata-se das regras e dos deveres assimilados do mundo
exterior, como certas ideias, certas moralidades e certas crenças. Para Perls (2002) se
introjetamos, ou seja, se engolimos tudo que nos é dado sem a devida mastigação, sem
a devida digestão, isto pode causar-nos um revés no corpo.

Desse modo, para que a assimilação ocorra, é também necessário que haja um
processo de desestruturação. Isso dá-se, pois Perls (2002) aborda a agressão como
importante fonte de desenvolvimento e de colocação do sujeito no mundo.

“devemos amar e respeitar nossos pais” mas... “devemos “matar” os


mais para podermos crescer”... “devemos sempre dizer a verdade ao
cônjuge” mas... “não devemos fazer o cônjuge sofrer inutilmente”
“devemos saber nos privar em função dos filhos” mas... “devemos,
principalmente, estar felizes e satisfeitos para darmos aos filhos um
exemplo de desenvolvimento”
“sejam espontâneos”... mas “não acreditem no que eu digo” (GINGER;
GINGER, 1995, p. 130).

124
Nesse viés, o ponto da introjeção em nível patológico diz respeito, justamente,
ao fato de engolir estruturas inteiras sem que fosse feita uma mastigação das ideias,
hábitos, dogmas e rotinas estabelecidos. O que se busca, portanto, é a independência e
a responsabilidade do sujeito por suas próprias ações.

A projeção, por outro lado, é o avesso da introjeção. Isso porque, a projeção


se caracteriza pela tendência a atribuir ao meio e ao outro a responsabilidade, a atitude
e/ou a agressividade que tem origem no self, ou seja, “enquanto na introjeção o self
é invadido pelo mundo exterior, na projeção é, pelo contrário, o self que transborda e
invade o mundo exterior” (GINGER; GINGER, 1995, p. 135). Não obstante, algum nível
de projeção é saudável para todos nós, pois é a partir dela que entramos em contato e
compreendemos o outro, buscando imaginar o que o outro sente.

Assim, a projeção caracteriza-se como patológica quando desenvolvida de


maneira sistemática e habitual, quando há sempre a culpabilização do meio por eventos
que ocorrem no self, sendo o mundo exterior uma espécie de campo de batalha para
o indivíduo. O trabalho terapêutico, nesses casos, o trabalho em grupo, pode ser viável
para que o projetor perceba seu papel quando está em relação, assim, se o indivíduo
projeta algo como “vocês não me valorizam e não gostam de mim”, no grupo terapêutico
pode ser “esclarecedor fazê-lo nomear precisamente quem, no grupo, exprime esse
sentimento e em quais sinais ele precisa se apoiar para sua constatação” (GINGER;
GINGER, 1995, p. 136).

A retroflexão imprime-se quando o indivíduo volta contra si mesmo a energia


que gostaria de fazer aos outros. Em grande medida, este é um processo saudável, pois
demonstra educação social, maturidade e autocontrole. Há sinais de patologia, como
com os outros mecanismos, quando o indivíduo apresenta isso de maneira crônica e
habitual, podendo inibir seus desejos, como nos casos de somatização, que acarretam
efeitos colaterais para o corpo como espasmos no estômago podendo gerar úlcera para o
caso de excesso de controle da raiva (GINGER; GINGER, 1995).

As formas de interrupção de contato, além de dizerem algo sobre o funcionamento


do sujeito, também nos informam sobre a sociedade em que este sujeito está vinculado.
Isto dá-se, pois, a retroflexão é um processo em que a pessoa interrompe um fluxo de
energia pelo medo da agressão que seria necessária para transformar e assimilar uma
novidade (ALVIM, 2010). A pessoa que retroflete fica com o medo da destruição, como se
algum desastre fosse acontecer caso ela não mantenha as coisas como estão, por isso,
a pessoa volta essa energia para si mesma.

As manifestações neuróticas são também manifestações da neurose social e


cultural onde vivemos. Desse modo, a retroflexão cai como uma luva para o modelo
capitalista e consumista que se apresenta.

125
Assim, vivemos numa sociedade onde se reforça a independência e a
autossuficiência como um critério de preparação para vida. Com isso, há uma apologia
para o individualismo e a para a solidão, num sentido em que o indivíduo se vê sozinho e
acredita em sua própria autossuficiência para resolver qualquer problema (ALVIM, 2010).

Por esta via, uma pessoa que retroflete é como se desse um passo para trás,
como se voltasse ao lugar de onde partiu que, no caso, é ela mesma (ALVIM, 2010). Uma
suposta “origem” para a retroflexão seria, justamente, uma repressão da agressividade
em situações tais como, “não pode agredir”, “tens que apenas obedecer”, engole o choro”,
“não responda aos mais velhos”. Dessa maneira, uma série de ações espontâneas, que
indicariam a ação do sujeito perante o mundo, foram interrompidas a tal ponto que,
na vida adulta, interrompe a si próprio sem que nenhuma outra pessoa ou autoridade
precise fazer por ele. Por isso, pensamos na retroflexão como alguém que quer fazer
a si próprio o que gostaria de fazer com o outro ou com o mundo e, ainda, fazer em si
mesmo o que gostaria que o mundo fizesse para ele (ALVIM, 2010). O sentimento de
inadequação, portanto, é gritante.

Nesse sentido, uma pessoa que interrompe seu fluxo na retroflexão, num
sentido geral, tem um perfil dinâmico, realizador e enérgico, são aquelas pessoas que
tudo resolvem e tudo fazem, aproximando-se das figuras de autoridade que em outro
momento eram seus algozes. Para Alvim (2010, p. 185) “[...] a agressividade emprestada
para a autoridade interna é a arrogância de alguém que foi humilhado” num sentido onde
toda a performance de realização e sucesso trata-se de uma necessidade de pequenas
vitórias em busca do valor próprio perdido. Nesse sentido, a pessoa também pode se
tornar muito competitiva, tendo sempre a necessidade de ganhar todas e quaisquer
discussões e batalhas.

A retroflexão combina e se ajusta aos moldes capitalistas uma vez que este
modelo dá a possibilidade de o sujeito comprar – por meio do seu poder de consumidor
– para si o que o dinheiro puder oferecer, desde carros, roupas, restaurantes, tudo que
demanda um status e que informe ao mundo o que este sujeito pode (ALVIM, 2010). Este
cenário apresenta, portanto, a busca pelo valor pessoal de quem conquista a própria
fortuna, ao passo que, também, revela o lugar da solidão deste sujeito que se apoia em
objetos e se afasta das relações com o mundo de maneira inteira, mas que também
envolve risco, envolve lidar com o diferente e com as frustrações que isso acarreta.

A sociedade capitalista e competitiva que forja um tipo de


individualismo, está cheia de slogans para serem introjetados:
“faça você mesmo”; “olho no concorrente”, “olho por olho, dente por
dente”; “toma lá, dá cá”; “bateu, levou”. Tais slogans são sintomas
de desajuste social, materialismo e violência. Assim, a retroflexão
pode ser considerada um sintoma do modelo de funcionamento do
sistema atual (ALVIM, 2010, p. 187).

126
O trabalho terapêutico, portanto, acontece no sentido de trabalhar as
expressões das emoções de forma ampliada e catártica, como permitir liberar raivas e
mágoas nunca elaboradas como “raiva proibida contra um dos pais mortos, vivenciado
como “culpado de abandono”” (GINGER; GINGER, 1995, p.138). De maneira esquemática,
podemos pensar nos mecanismos apresentados até aqui, da seguinte forma (GINGER;
GINGER, 1995 p. 139, grifos do original):

- na confluência, a fronteira de contato é abolida;


- na introjeção, o mundo exterior me invade;
- na projeção, eu invado o mundo exterior;
- na retroflexão, eu invado meu próprio mundo interior.
Por exemplo:
“nós nos amamos com loucura” é uma confluência;
“deve-se amar o parceiro, e só ele” é uma introjeção;
“ninguém me ama”, é uma projeção;
“eu me amo”, traduz uma retroflexão.

A deflexão diz respeito a uma fuga, evitação de contato, o que pode ser uma
estratégia saudável de adaptação e como se desenvolver de forma patológica quando
cristalizada. A proflexão é quando se faz ao outro o que gostaria que fizessem consigo,
num misto de projeção e retroflexão. O egotismo diz respeito a um senso e um interesse
de si próprio, numa espécie de hipertrofia do ego; este mecanismo é utilizado no próprio
trabalho terapêutico, visto que objetivo é o cliente voltar-se para si mesmo de forma
mais autônoma (GINGER; GINGER, 1995).

Figura 6 –­ Esquema sobre interrupções de contato e organismo-meio

confluência introjeção projeção retroflexão deflexão proflexão egotismo

os outros =
meio

fronteira
de contato

eu-mesmo
organismo

Fonte: Ginger e Ginger (1995, p. 139)

Considerando os aspectos do self, suas funções e seus mecanismos, pensa-


se no trabalho terapêutico na abordagem gestática questionando e observando qual
a função do self ativada nas situações com os clientes, além de como e quando essa
interrupção funciona, qual interrupção de contato é utilizada.

Para a abordagem gestáltica, tanto na neurose como na psicose há elasticidade


da formação figura/fundo de forma que pode haver rigidez (fixação) ou uma ausência de
formação de figura, o que corresponde à repressão (BANDÍN, 2018).

127
Assim, neurose, para a Gestalt-terapia, diz respeito ao acúmulo de gestalten
inacabadas decorrentes de necessidades não satisfeitas (GINGER; GINGER, 1995).
Ambas interferem no funcionamento e nas possibilidades de contato entre organismo
e meio. Nesses casos, ao invés de crescimento e desenvolvimento, há estagnação e
regressão, de forma que os ajustes criativos se tornam obsoletos e a pessoa encontra-
se em franco sofrimento, com fome de relação e emoções (BANDÍN, 2018).

O Gestalt-terapeuta Jean-Marne Robine apresenta estas formas de contato em


seu livro “O self desdobrado: perspectiva de campo em Gestalt-terapia”, no qual aborda
tanto seu caráter funcional quanto as flexões que aparecem em cada momento. Isto
importa para lembrarmos que todas as formas de contato podem ser saudáveis, o que
as torna disfuncionais é a cristalização que pode causar sofrimento e estagnação do
fluxo figura e fundo do sujeito.

Quadro 2 – Formas de contato

FORMAS DE CONTATO CARACTERÍSTICA FLEXÕES


Ausência de início.
Não formação de figura.
Ansiedade de individuação.
Sem figura. Não assumir o desejo.
Emergência de uma
Fisiologia 1ª e 2ª (corpo) como Não levar a experiência
figura
fundo. do plano fisiológico para o
Versus
Sensação corporal, estímulo, psicológico.
CONFLUÊNCIA
necessidade, desejo, apetite etc. Efeito no corpo.
Psicossomática. Hipocondria.
Sublimação: atividade física ou
artística (ex.: tatuagens)
Formação de figura.
Despertar do desejo.
Coerção incompatível com
Introjeção: processo, modalidade
excitação.
Excitação do próprio de contato.
Não reconhecimento do desejo.
desejo Introjeto: conteúdo (se manifesta
Deslocar o instinto ou desejo
versus por diversas modalidades, como
potencial e adotar o desejo do
INTROJEÇÃO projeção, retroflexão etc.).
outro.
Introjeção sadia ocorre fora de
Não há assimilação.
todo o contexto coercitivo.

128
Recusa não consciente
Formação de figura: energia do (negação, impossibilidade)
organismo e do ambiente. de se apropriar do afeto, da
Excitação do desejo ganha emoção, do sentimento e
forma e dá lugar ao(s) objeto(s) das representações que o
possível(is). acompanham. (p. 126)
Figura passa do organismo (o Afetos desapropriados
campo) para o meio (o outro), do são atribuídos ao outro, as
interior para o exterior. características do ambiente
Percepção do ambiente
Deslocar-se para o exterior. Ex- não são percebidas, pois o
Versus
movere. E-moção. ambiente é restrito a imagens
PROJEÇÃO
Aceitação da excitação e virtuais fabricadas pelo próprio
confrontação com o ambiente. indivíduo (p. 126).
Capacidade de imputar à Ex.: paranoia, negação,
experiência em curso alguns sexismo, racismo, homofobia,
conhecimentos ligados a certezas rígidas da constituição
experiências adquiridas de um objeto fóbico, culpa
anteriormente. neurótica, superstições
e crenças, mitologias e
mitomanias, ciúmes...
Desenvolver certa agressividade
para o “ir para”.
O “ir para” pode gerar angústia ao
ponto de interromper o contato.
Quando a agressão (ad-
Agressividade (ir para, id-
gressere) não pode ser
gressere): poder benéfico da
manifestada, ela pode se
expressão pessoal e de criação
converter em hostilidade ou
da qual dispõe o ser humano.
Ir para voltar-se contra si mesmo.
A retroflexão pode pausar a
Versus Autoagressão, automutilação,
ansiedade da agressividade,
RETROFLEXÃO masturbação, obsessões por
voltando-se para si mesmo.
doenças, psicossomáticas,
Controle de si, ligado à
suicídio, masoquismo
intervenção da vontade.
compulsão ao fracasso e ao
O medo pode desencadear
remorso.
retroflexão.
Os conflitos que provocam a
retroflexão estão próximos da
superfície.
Ansiosos diante do soltar-se,
diante da perda do controle,
ansiosos ao se abrirem para o
Soltar
Uma forma específica de outro, diante de um possível
Versus
retroflexão. abandono posterior. Reduzem o
EGOTISMO
ambiente a conhecimentos que
possam ampliar seu controle e
seu poder.

Fonte: adaptado de Robine (2006)

Essa separação didática é importante. Contudo, na prática, não há interrupção


em apenas uma dessas formas, pois pensa-se em termo de sequência. Não pensamos
que uma pessoa é a interrupção de contato, portanto, não há “o introjetor” ou “o projetor”,
mas processos como “projeção de introjetos”, “projeção de retroflexos” etc. (SCHILLINGS,

129
2014). Visto que, a interrupção em uma forma de contato também interfere no todo, não
sendo nunca algo isolado, mas expressando o estilo e a forma do organismo ir para o
meio. Podemos pensar nesse caráter de neurose, resistência e formas de interrupção
de contato como estando sempre relacionadas à ansiedade, ao medo e à frustração.

Para se compreender a neurose de maneira cíclica e não de forma rígida,


podemos pensar também em termos de camadas de neurose, nas quais se percebe a
transformação na forma do organismo ir para o contato e o meio, manipular e orientar
seus desejos e satisfações. Há cinco camadas de neurose, onde a primeira seria o
desempenho de papéis ou camada postiça, a qual revela a necessidade de aceitação do
meio, agindo de acordo com o que é esperado para si.

A segunda camada da neurose é denominada fóbica, e, com ela, há evitação


do sofrimento e da frustação ao não assumirmos quem somos. Assim, surge também
a terceira camada, impasse, na qual não novos dados são acessados, mas ainda não há
suporte necessário para o movimento. Com o impasse, surge a quarta camada, que é a
implosão, na qual contemos a energia e invertemos o afeto. Na última camada, a explosiva,
a energia contida na quarta camada é liberada e toma forma expressiva e autêntica.

Assim, a Gestalt-terapia apresenta uma visão ampla e complexa da neurose


que não coloca o indivíduo em categorias pré-estabelecidas nem o reduz a um sintoma,
mas entende a interrupção no processo de contato como parte do comportamento
que, quando visto a partir do todo, tem uma coerência dentro da própria configuração
do indivíduo.

Dessa forma, precisamos ter a responsabilidade, enquanto terapeutas, para que


compreendamos a teoria e tenhamos suporte e sustentabilidade na nossa prática, mas
que também tenhamos o cuidado de como manejar as resistências do consulente sem
atacá-las. Para isso, é preciso que olhemos também para nossas próprias formas de
resistência em terapia e/ou em supervisão.

5 GESTALT-TERAPIA EM DIMENSÕES CLÍNICAS


Há algumas peculiaridades quando pensamos no diagnóstico clínico em Gestalt-
terapia, pois este afasta-se da lógica hegemônica estabelecida. Isso se deve, dentre
outras coisas, devido à concepção tanto de homem quanto de processo terapêutico
que se tem no âmbito da Gestalt-terapia.

Como vimos até aqui, a concepção ontológica em GT implica numa compreensão


de homem total, inteiro, integral, então, no limiar de sentimentos emocionais agravados,
devemos considerar, ainda assim, esta totalidade, vendo como uma forma que o sujeito
encontrou e inventou para se relacionar com o mundo e, sendo esta, uma parte do
sujeito, não representando sua totalidade.

130
Por essas vias, o diagnóstico não deve ser eliminado do processo terapêutico,
visto que os diagnósticos estão ancorados em critérios estabelecidos de maneira
que oferecem a comunalidade de determinados sintomas. A problemática disso é
justamente o que falta de singularidade nos critérios e nos manuais estatísticos de
diagnóstico. Assim, o diagnóstico não é descartado, em respeito e em legitimidade com
as comunalidades, mas os sintomas também devem ser contextualizados, sem que haja
um fechamento de diagnóstico, necessariamente (FRAZÃO, 2015).

É preciso que se compreenda, no processo diagnóstico, a singularidade


existencial de cada pessoa, compreender como o sintoma e a queixa se encaixam no
sistema de crenças e na configuração relacional do cliente.

Muitas vezes o sintoma tem uma função no campo do sujeito, de forma que é
papel do psicoterapeuta ficar atento aos detalhes do contexto e as formas pelas quais o
indivíduo se ajusta e vai para o contato com o mundo. Lembrando que, para a Gestalt-
terapia, um diagnóstico implica num ajustamento criativo disfuncional, trata-se sempre
da forma que o sujeito encontrou de fazer contato com o mundo.

Diagnóstico processual é um termo cunhado por Lilian Frazão no II Encontro


Nacional de Gestalt-terapia, em 1989, realizado em Minas Gerais. Considerar o
diagnóstico sempre como processo faz parte também da dinâmica terapêutica, onde
constantemente há a pergunta sobre o que está acontecendo e a serviço de que, ou
seja, qual a função do que está acontecendo.

Desse modo, além de se observar e identificar os ajustamentos disfuncionais,


aqueles que estão cristalizados e padronizados, também se observa os ajustamentos
que são criativos e funcionais, revelando a possibilidade e potencialidade da pessoa.
Assim, o foco não está apenas num diagnóstico, mas em toda a dinâmica de figura e
fundo apresentada pelo sujeito. Por isso, um pensamento de diagnóstico processual
revela algo sobre como a pessoa está no momento, considerando os diversos fatores e
mudanças que ocorrem na sua vida. Isso não estabelece rótulos, nem mesmo aponta
para o todo da pessoa a partir apenas de uma de suas partes.

O que aparece no relato do paciente é uma figura que se insere


num fundo, e por fundo entendo a história de vida do cliente,
suas experiências, seus relacionamentos passados (em especial
as relações primárias significativas), seus sucessos e insucessos
nas mais diferentes áreas (profissional, afetiva, social etc.), suas
potencialidades e seus limites. É preciso compreender a relação
entre aqui e agora e lá e então; do passado com o presente; entre a
figura/queixa e o fundo, pois é a relação/figura/fundo que dá sentido
à figura (FRAZÃO, 2015, p. 69).

Com estes dados, ressalta-se, ainda mais, o quanto o processo diagnóstico


é delicado e o quanto, em Gestalt-terapia a busca é sempre pelo sujeito inteiro, pela
compreensão de como se configura este fluxo entre figura e fundo, quais gestalten estão
buscando fechamento. Dito de outro modo, implica em compreender a história passada
131
e presente da pessoa, pois o aqui e o agora é um reflexo de quais aprendizagens e
quais contatos e interrupções de contato o sujeito passou e se ajustou até o momento
presente. Além do conhecimento explícito da história de vida do sujeito, em Gestalt-
terapia as linguagens empregadas são multifacetadas, quando todos os dados que o
cliente mostra, fenomenologicamente, devem ser considerados. Desse modo, observa-
se a expressão verbal e não verbal do sujeito, a forma como a voz sai, para onde vão
seus olhos, de que maneira está sua respiração, de que modo resiste em algum tema,
segura o choro, aperta as mãos.

Tudo isto deve ser contextualizado, forma e conteúdo. Por isso, desde o primeiro
contato algo já acontece em termos de relação terapêutica, como foi marcada a sessão,
como o cliente chega.

INTERESSANTE
A Gestalt-terapeuta Mônica Alvim, reconhecida e influência profissional da
área, também professora nos cursos de formação no Brasil, apresenta um
pouco da dimensão corporal que pode ser lida em Gestalt-terapia. A gestaltista
trabalha a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (que vimos na Unidade 1)
e de dimensões artísticas. Acesse em: https://bit.ly/3dqRzxG.

Assim, o diagnóstico processual se pressupõe singular e não linear nem


hierárquico. Embora os padrões comuns de sintomas diagnósticos sejam considerados,
se olhados de maneira descontextualizada, pode representar um perigo e, no limite,
uma violência para com a pessoa que está em sofrimento e em busca de respostas.

Em Gestalt-terapia busca-se a ampliação da awareness, compreender como as


coisas acontecem em detrimento do porquê, e isto aplica-se também para o processo
diagnóstico, num sentido de oferecer elementos que deem ao sujeito a consciência
e novas criatividades para lidar e reconfigurar suas formas de contatar o mundo e se
relacionar com os outros.

Por isso, importa que o terapeuta não tenha uma ideia a priori do seu cliente,
tomando cuidado para não ser invasivo, mas demonstrando interesse, com respeitosa
curiosidade, desenvolver uma escuta e uma presença atentas.

Assim, também está implicado o que é dito e o que é ouvido que impacta no
cliente, o que chama atenção, o que intriga, em que parte do diálogo ele muda de
assunto, como está a voz, como está a expressão ou repressão da afetividade. Além
disso, também devemos nos atentar para aqueles conteúdos que são omitidos, coisas
que o paciente não conta, como fases da vida ou relações das quais nunca entra em
contato no momento terapêutico.

132
Tive um paciente cuja aparência chamou minha atenção: alto, forte
e musculoso. Falava o mínimo possível e respondia laconicamente
às minhas perguntas. A razão que o levara a procurar psicoterapia
não era clara para mim, e mesmo quando eu lhe perguntava a única
resposta que obtinha era que o médico dissera que “ele precisava”.
Dei-me conta que ele não havia mencionado nada de sua vida
afetiva e sexual. Perguntei-lhe a esse respeito e ele me contou que
era impotente. Este era na realidade o motivo que o levara a buscar
terapia e só foi possível chegar a ele pela percepção da omissão
(FRAZÃO, 2015, p. 69).

Desse modo, é a sensibilidade com olhar e escuta muito atentos que dão forma
ao diagnóstico processual, percebendo o que é dito, o que não é dito, o que é falado
de maneira espontânea, o que é repetido sessão após sessão. Todos estes elementos
perceptivos servem de dados para o terapeuta de como é a forma e configuração dessa
pessoa, eles se entrecruzam, se imbricam na prática clínica, não sendo nenhum deles
isoladamente determinante para um fechamento diagnóstico.

Ressalta-se, ainda, a extrema relevância em olhar para os aspectos funcionais,


saudáveis e potenciais do cliente, pois esta é uma das chaves da Gestalt-terapia, onde o
terapeuta percebe as formas, os recursos e os sucessos que o indivíduo alcançou. Este
é um cuidado importante que o terapeuta tem com seu consulente, construindo por
meio de uma relação respeitosa e amorosa para resgatar o contato com a autenticidade
e criatividade do sujeito para lidar com suas figuras e seus fundos.

Assim, a Gestalt-terapia apresenta novas formas e outras éticas no manejo


clínico, com uma escuta sensível, mas também com uma dimensão prática e política
que busca pela ampliação de consciência do sujeito de seus próprios fluxos sem cair
em rótulos ou slogans psicologizantes. A experiência dá-se na fronteira de contato, e
é a partir disso que o trabalho do terapeuta gestaltista é fertilizado, ou seja, na relação
com o outro.

133
LEITURA
COMPLEMENTAR
SER-EM-RELAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO DAS TERAPIAS
FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS OU RELACIONAIS

Walter Ribeiro

Para compreendermos melhor o que está acontecendo com a evolução das


psicoterapias hoje, é indispensável estudarmos a evolução dos paradigmas utilizados no
entendimento do ser humano e, como consequência, as possibilidades, as dificuldades e
as limitações de atuar sobre ele.

Esse problema talvez seja maior nas abordagens inacabadas por vocação e
essência, como as que abraçamos e defendemos, cujo paradigma científico-filosófico,
além disso, ainda luta com resistências cientificistas, essencialistas, apesar de o modelo
desses cientistas ter sido superado em quase todas as frentes científicas, a começar
pela física.

Fazemos parte do grande movimento artístico-científico-filosófico que se


acentuou na passagem do século XIX para o século XX e que visava (visa) à superação
do pensamento mecanicista do século XIX; movimento ocorrido notadamente na Europa
continental. Esse movimento surgido e profundamente enraizado na Europa continental,
se espalhou e se desenvolveu por todo o mundo, tendo de enfrentar, por isso, muitos
choques com culturas e pensamentos diferentes e, com frequência, radicalmente
opostos. Essa dificuldade parece ter passado despercebida ou foi escamoteada por
quase todos os teóricos que pensaram as novas formas de psicoterapia.

Na psicologia, Carl Rogers foi a grande exceção. A sua educação no positivismo


lógico americano não conseguiu impedir (como consegue com a maioria dos outros
psicólogos) que sua excepcional sensibilidade percebesse diretamente o ser humano
(portanto, sem a intermediação de preconceitos anteriores) ao longo do seu extenso e
intenso contato com as pessoas. Essa postura e esse tipo de contato possibilitaram-lhe
a percepção de que esse tipo de relação leva a pessoa a se encolher, se disfarçar, se
defender, mantendo e/ou acentuando as neuroses, e que tipo de relação as leva para
outro lado, o lado da cura.

Com essa invulgar capacidade – a partir de dados empíricos – foi chegando à


essência do comportamento humano que, não por acaso ou por mera coincidência, é a
mesma essência a que chegaram os grandes teóricos europeus por caminhos teóricos.

134
Assim, já com as bases de sua teoria prática assentadas, ao entrar em
contato com a existencial-fenomenologia, disse: Fiquei surpreso ao constatar, aí
pelo anos de 1951, que a direção de meu pensamento e os aspectos centrais de meu
trabalho terapêutico poderiam ser acertadamente classificados como existenciais e
fenomenológicos. Parece estranho que um psicólogo americano possa se encontrar em
semelhante companhia (AMATUZZI, 1989, p. 91).

Esse feliz encontro de uma prática confirmada com a teoria nos conforta e
anima e, claro, nos preocupa à medida que vemos milhares de pessoas imitando Rogers
sem sua sensibilidade e sem o seu gênio, por um lado, e sem teoria nenhuma que dê
sustentação ao seu fazer, por outro. O desastre tem sido e é inevitável porque, afinal,
os Rogers são raríssimos. A Gestalt-terapia, como todos sabemos, veio diretamente da
vertente teórica alemã: por isso Laura Perls, por exemplo, chama de europeus ou homens
da Renascença os dois Pauls (Goodmand e Weiz), raríssimos na América, segundo ela.

Ainda, sabemos que esses gênios enfrentaram (e enfrentam) uma oposição


ferrenha, oposição essa que se fundamenta em valores e crenças profundamente
encrustados em nós todos, a cada um, opositores mais ou menos inconscientes dessas
ideias. [quando temos alguma ideia dessa resistência (começamos a nos tornar aware
para os gestaltistas) e, vencendo a negação, aceitamos a existência da defensividade
desse setor opositor interno, tiramos um pouco de sua força).

Outro agravante: nós, psicólogos, por causa da ênfase quase exclusiva que se
deu por tantos anos ao intra, ainda somos, em geral, negligentes ou pouco competentes
ao considerar a força das diferenças e preconceitos culturais e ambientais, apesar do
muito que se tem feito nos últimos anos em várias ciências e abordagens psicológicas
para reparar esse exagero.

Com o objetivo de apenas pincelar o problema, voltemos aos últimos anos do


século passado e primeiro deste, quando se acirrou a sistematização da luta contra as
opiniões que se dividiam (como incrivelmente acontece até hoje) entre duas posições
por igual essencializadas que, de maneira simplificada, podemos chamar de posições
subjetivistas e posições objetivistas. Guerra velha que se acentuou na época.

A principal novidade de então foi a sistematização da visão que mais tarde Mas-
low chamaria de terceira Força, efetuada notadamente pelo matemático-filósofo Ed-
mundo Husserl, o “fundador da Fenomenologia no sentido moderno” (MERLEAU-PONTY,
1973, p. 19). Essa influência atingiu, por exemplo, os primeiros criadores da Gestalt-tera-
pia que se formaram nesse período, nesse clima; influência exercida diretamente pelos
psicólogos da Gestalt e, talvez mais ainda, por Kurt Goldstein; e, indiretamente, por toda
a cultura europeia continental da época.

135
Uma das formas de negação, talvez a mais perigosa, é a aceitação rápida e
superficial, apenas no nível de opinião racional. Por exemplo, cada vez se acentua
mais que somos fenomenológico-existenciais. Entretanto, a maioria dos autores dessa
afirmação tem uma noção muito superficial, quando a tem, do que é esse modo de
pensar e de conceber o ser humano. Enfim, não volta às origens para realmente saber
do que está falando e, se volta, o faz apenas com o pensamento racional, insuficiente
para entender nossas abordagens.

Parte integrante desse movimento, talvez o maior mérito, por exemplo, da


Gestalt-terapia seja sua posição de denúncia e combate às conflitantes dualidades;
o seu firme posicionamento contra os OU e a adesão decisiva do E: somos isso E
aquilo, consciência E corpo, razão E emoção, e assim por diante. Dessa forma, toca de
maneira prática no ponto crucial da nossa concepção do conceito de normalidade e,
ao mesmo, em como opera os processos de desvio e/ou interrupção do crescimento
normal; como, ainda, possibilita a criação de poderosos instrumentos clínicos como
a atitude de compreensão clara e confirmadora que possibilita o trabalho pessoal de
integração criativa de polaridades conflitantes. Felizmente para nós, não precisamos
nos tornar filósofos, temos o que necessitamos para desenvolver uma visão existencial-
fenomenológica do ser humano e do mundo. Basta, inicialmente, não esquecermos que
não somos de geração espontânea e que ninguém tem geniais insights a partir do nada.
Não existe isso. Ninguém extrai algo do nada. Todo movimento cultural, de qualquer
espécie, só se desenvolve a partir de uma certa maturação anterior, necessidade de um
solo, de um determinado estado de prontidão propiciado pelo seu momento histórico,
pelo momento histórico da evolução da cultura, a fim de que possa ser intuído, elaborado,
enfim, para que possa vir à luz. Sem falar da grande defensividade em geral.

Dessa forma, os pensadores são aqueles que captam as questões fundamentais


do seu tempo histórico e refletem sobre elas, propondo, por vezes, algumas soluções
que, no momento de sua apresentação, dificilmente são compreendidas e muito menos
aceitas, por conflitarem com frequência com os preconceitos conservadores da época.
O artista, geralmente por suas intuições, parece captar esse clima, essa prontidão, até
mesmo antes dos cientistas e dos filósofos. O melhor exemplo que posso encontrar
de uma visão do ser humano e do mundo como a nossa, e de certa forma anterior à
elaboração, à sistematização dos grandes pensadores, é a do poeta Fernando Pessoa. É
tão marcante em sua obra a diferença entre os mundos em que cada um vive por causa
das diferenças perceptivas que as consequentes emoções eliciadas em cada um, em
cada momento, e vice-versa, num processo de constante retroalimentação, que o poeta
se dividiu em quatro para assinar sua obra. Gostamos de dizer que os poemas assinados
por ele, quando se sentia Alberto Caeiro, foram escritos quando sua visão e emoção a
respeito do Eu, do Outro e do mundo estava ainda mais próxima da nossa.

136
É claro que ele também não tirou isso do nada. Além de sua ímpar vocação
poética, estava afinado com os problemas e as tentativas de solução propostas em
seu tempo, enfim, com a prontidão do seu momento histórico e, para estar a par do
conhecimento de sua época, leu, por exemplo, pensadores como Descartes, Kant,
Nietzsche e outros.

Além dos pensadores, é claro que precisamos estar sempre atentos às des-
cobertas de outras ciências ou abordagens que evoluem com rapidez crescente. Des-
cobertas e achados que quase invariavelmente vêm apontando para a importância do
contextual e da liberdade. Por exemplo, o recente livro do psicólogo americano Weward
L. Deci, com os seus corajosos e contundentes experimentos sobre os diferentes efei-
tos da motivação extrínseca e intrínseca, experimentos que confrontam o clássico pen-
samento autoritário sobre o assunto.

Ainda, como se trata de visão extremamente rica e atrativa do ser humano e do


mundo, nossa forma de ver se espalhou muito depressa e meio desordenadamente por
adeptos entusiásticos (e não raro brilhantes), mais ou menos afoitos, pouco convertidos
e, portanto, nada profundos, por todas as áreas da cultura; e hoje apresenta-se com
um sem-número de nomes e caras, muitas delas bastante deformadas, o que vem
constituindo em mais um grave fator de dificultação, ou menos, de impedimento para a
compreensão de sua essência.

A atitude diante dessa postura e das descobertas que a apoiam é paradoxal:


por um lado, anima os especialistas nos estudos e nas possibilidades de intervenção
nas relações, pois lhes dá um poder muito maior (se a maioria dos problemas advém
das relações, elas – por exemplo, a relação terapêutica, também podem ter maior
influência sobre eles); e, por outro, um medo, uma negação diante do aumento da
responsabilidade (pela consciência de que somos os fazedores de nossa história) que
esse mesmo acréscimo de poder traz. Além, é claro, dos naturais medos e da evitação
de entrar em contato com a história de nossas próprias relações e com os problemas
por elas causados em nós.

Para nosso uso e proteção, contra os labirintos em que podemos nos embrenhar,
evitamos o detalhamento das múltiplas facetas com que essa corrente se apresenta (o
que, para ser feito com competência e profundidade, talvez ocupasse o resto de nossa
vida (e, com o essa postura de autoproteção, vamos tentar extrair desse movimento
global o que nos é essencial e nos interessa mais de perto, deixando o detalhamento
para os especialistas, filósofos. E, indiscutivelmente, a grande marca dessa “novidade”
é a que nos mais interessa, é o resgate tanto do subjetivismo que o objetivismo nega,
quanto do objetivismo, por sua vez, negado pelo subjetivismo. Esse resgate nos obrigou,
obviamente, a privilegiar de maneira crescente a relação.

137
A sua contextualização é cada vez mais imprescindível para entender o ser
humano e os seus problemas. O difícil é que essas relações começaram muito cedo
para delas termos memória. Memórias que, além disso, evitamos por frequentemente
serem traumáticas e dolorosas. Por exemplo, se considerarmos que essas relações se
iniciaram na vida intrauterina (VERNY, 1989), então poderemos imaginar a dificuldade
do problema, complicando um pouco mais ainda: se pensarmos na possibilidade
muito plausível de que, de alguma forma, houve e há transmissão das experiências
durante toda a história da humanidade, aí sim é que sentiremos a necessidade absoluta
de desenvolver as indispensáveis modéstia e humildade, para encarar essa nossa
pretenciosa e, com frequência, arrogante profissão.

Essa compreensão do ser humano como resultado, como integração criativa dos
seus processos e dos ajustes possíveis nas suas relações, nos levou a relativizar e rever
alguns conceitos; notadamente, a ver as coisas menos em termos de preto ou de branco,
de céu ou de inferno. A “política da certeza” passou a sofrer derrotas sucessivas e cada
vez maiores. Com isso, se estabeleceu, como já dissemos, a substituição da disjuntiva
OU pela aditiva E. Nas terapias de hoje, essa substituição, essa visão globalizada do ser,
é imprescindível tanto para os fundamentos teóricos como para o trabalho clínico.

Por meio desse resgate, passou-se a encarar a verdade como produto do


encontro. O ser só pode ser pensado em relação, em contato, obviamente, então, só
pode ser entendido se contextualizado, uma vez que é impensável sem o seu meio,
sem a sua história, sem as suas vivências passadas e sem os seus sonhos a respeito do
futuro, embora, é claro, só tenhamos acesso a eles no presente, no aqui e agora.

Esse paradigma é visceralmente revolucionário porque afeta não apenas


nossas opiniões racionais, mas nossos valores mais arraigados, nossos preconceitos
mais velhos e irredutíveis e, principalmente, nossa segurança, nossa necessidade de
controle e estabilidade. É por isso que até hoje causa reações, por vezes violentas, em
quase todos nós. Tão violentas que, muitas vezes, “escolhemos” não percebê-lo, não
entendê-lo na sua essência, apenas das contundentes descobertas a seu favor em
todas as ciências, em todos os campos.

As sociedades não querem, e talvez não possam assumir esses achados em


sua radicalidade. Também não queremos (ou não podemos); isso poderia nos tornar
incomodamente corresponsáveis por muito sofrimento, que preferimos atribuir a outras
pessoas ou causas; a nossa autoimagem poderia ser afetada ou, como tanto repete
Alice Miller, poderia nos pôr em contato com nossas próprias histórias pessoais e,
possivelmente, muita dor reprimida, o que evitamos com tanto empenho.

Somos, pois, inelutavelmente, seres-em-relação: crescemos, nos desenvolve-


mos, nos constituímos e nos formamos nela. Somos ajustes, a integração criativa de
nossas idiossincrasias em confronto com as forças e as possibilidades externas. Como
essas relações jamais foram tranquilas ou ideais nesse mundo de guerras (e precisa-

138
mos, nelas, ser aceitos e amados), utilizamos toda a nossa gama perceptiva, toda nossa
sabedoria para sobreviver o melhor que pudermos e, assim, nos distorcemos, nos alie-
namos o quanto for necessário para nos adaptar da melhor forma possível a esses pro-
cessos relacionais. Não é demais lembrar que esses ajustes, quando ocorrem, são sem-
pre criativos e até saudáveis, tanto se os ambientes forem favoráveis ou desfavoráveis.
Saudáveis porque foram o melhor dos possíveis naquele momento e naquele contexto.

Fonte: RIBEIRO, W. Existência essência. São Paulo: Summus, 1998.

139
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• A Gestalt-terapia (GT) tem sua fecundação em meio às teorias humanistas e


existencialistas.

• Frederick Perls, Paul Goodman e Laura Perls são os três autores precursores da
Gestalt-terapia, lançando o livro fundador e oficial da abordagem.

• A Gestalt-terapia tem influências do pensamento oriental.

• A Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, outra das bases da Gestalt-Terapia, tem como
proposta uma visão de indivíduo unificado, integrado, não dividido em partes, não
separado por blocos e compartimentos.

• Na GT o foco é sempre na consciência e no que se mostra presente, o que, nos


termos da abordagem, é o que se mostra como figura.

• A autorregulação do organismo é o acordo do organismo com o meio para alcançar


um todo integral e harmonioso.

• O comportamento neurótico não satisfaz as necessidades do indivíduo, podendo


cristalizar figura e fundo, interrompendo um fluxo figura-fundo e impedindo o
processo de autorrealização ou o fechamento da Gestalt.

• A awareness é uma perspectiva da consciência pautada no fluxo da experiência e do


sensível no aqui-agora.

• A fronteira de contato é uma espécie de “lócus” do contato, onde indivíduo e meio,


organismo e ambiente se relacionam.

• O ajustamento criativo é uma busca, é um processo dinâmico que está


constantemente interagindo entre organismo e ambiente para o alcance de
satisfação e autorrealização.

• Para a Gestalt-terapia, o self é considerando como um complexo sistema de contatos


pelos quais o indivíduo passa para ajustar-se em seu campo.

140
• A resistência está no bojo da formação da neurose, indicando a cristalização da forma
de contato tal como quando havia uma ameaça ou perigo.

• Formas de interrupção de contato: confluência, introjeção, projeção, retroflexão,


deflexão, proflexão e egotismo.

• Em Gestalt-terapia utiliza-se pensamento de diagnóstico processual que diz algo


sobre como a pessoa está no momento.

141
AUTOATIVIDADE
1 A Gestalt-terapia é uma abordagem da psicologia que surgiu num contexto de
contracultura e tem algumas diversas bases teóricas que contribuíram para seus
fundamentos. Sobre as bases da Gestalt-terapia, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A Psicanálise foi a principal referência dos criadores da Gestalt, pois estes


também eram psicanalistas.
b) ( ) A noção de figura-fundo foi extraída de teorias de design contemporâneo.
c) ( ) A fenomenologia é referência para pensar a temporalidade.
d) ( ) A Psicologia da Gestalt surgiu a partir da Gestalt-terapia.

2 A Gestalt-terapia oferece um novo arsenal conceitual e novas formas de perceber o


sujeito, tendo um foco primordial na saúde, não na doença. Sobre os conceitos da
Gestalt-terapia, classifique as sentenças em V para Verdadeiro e F para Falso:

( ) A awareness traz uma noção de consciência que implica ser afetado pelas experiências.
( ) O contato e a fronteira de contato são conceitos equivalentes.
( ) O ajuste criativo demanda potência e contato com a novidade no campo.
( ) A autorregulação busca sempre a separação entre organismo e meio.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) V – V – F – V.
c) ( ) F – F – V – F.
d) ( ) V – F – F – V.

3 A teoria do self na Gestalt-terapia afasta-se das noções tradicionais que estudam os


sujeitos. Sobre a teoria do self, analise as sentenças a seguir:

I- O self tem como funções: id, eu(ego), personalidade.


II- O self é uma estrutura basicamente inconsciente.
III- O self relaciona-se com o campo buscando rotina.
IV- O self é espontâneo, flexível e holístico.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) As sentenças I e IV estão corretas.
c) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.
d) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.

142
4 Para a Gestalt-terapia, o fluxo de crescimento e desenvolvimento do indivíduo
pode ser interrompido a partir das formas como ocorre o contato organismo/meio.
A confluência é uma das formas de interrupção de contato, escreva como ocorre
esse mecanismo.

5 A Gestalt-terapia afasta-se de outras abordagens hegemônicas da Psicologia e


busca fontes de referência como o pensamento oriental, ainda que utilize termos e
conceitos oriundos da psicanálise e, também, considere aspectos do behaviorismo
em sua construção. Desse modo, também há uma visão e uma ética não hegemônicas
em relação ao diagnóstico oferecido à pessoa em atendimento. Disserte sobre o
diagnóstico processual em Gestalt-terapia.

143
REFERÊNCIAS
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147
148
UNIDADE 3 —

OLHARES FENOMENOLÓGICOS
EXISTENCIAIS E HUMANISTAS
SOBRE OS SOFRIMENTOS
CONTEMPORÂNEOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a abordagem fenomenológica nos transtornos mentais;

• conhecer alguns autores fenomenológicos que tratam a psicopatologia;

• refletir sobre as demandas do capitalismo na subjetividade contemporânea;

• conhecer olhares interseccionais na demanda psicológica.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – TRANSTORNOS MENTAIS E OUTRAS EXPRESSÕES DO SOFRIMENTO


PSICOLÓGICO

TÓPICO 2 – REPERCUSSÕES DO CAPITALISMO NA PRODUÇÃO DO SOFRIMENTO HUMANO

TÓPICO 3 – SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E GRUPOS SOCIAIS ESPECÍFICOS: OLHARES


INTERSECCIONAIS

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

149
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!

Acesse o
QR Code abaixo:

150
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
TRANSTORNOS MENTAIS E OUTRAS
EXPRESSÕES DO SOFRIMENTO
PSICOLÓGICO

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, o estudo das psicopatologias ou do sofrimento humano sob uma
perspectiva fenomenológica e existencial apresenta flexões em relação ao modo
clássico e hegemônico que se percebe e classifica estes fenômenos. Uma dessas
flexões diz respeito ao afastamento de uma lógica predominantemente nosológica
do sofrimento humano. Desse modo, a compreensão do sofrimento humano parte de
outras ordens, tentando abarcar os conceitos já estudados até aqui, como a relação do
sujeito com o tempo, com o espaço, com os outros, com o mundo e consigo mesmo.
Assim, coloca-se a vivência dos indivíduos num primeiro plano em detrimento das
características gerais dos sintomas.

Portanto, a busca não se dá por princípios e regras semelhantes a outras


abordagens teórico-científicas onde o que se preza é a etiologia, a descrição, o
prognóstico e se deixa para um fundo homogeneizado o próprio sujeito (KARWOWSKI,
2015). A fenomenologia não privilegia um conhecimento científico em detrimento da
experiência vivida pelo sujeito, isso implica que nem ela mesma – a fenomenologia –
coloca-se antes da experiência. Assim, em última instância, a relação da fenomenologia
com a psicopatologia é mais da ordem da implicação do que da aplicação, pois parte-se
da reflexão de cada vivência em lugar de descrições específicas de cada transtorno.

Isso revela, outrossim, um desconforto do próprio estudioso em psicopatologia


fenomenológica na busca por certezas e caminhos oficiais para a intervenção
(KARWOWSKI, 2015). O que a fenomenologia nos ensina, contudo, é que os caminhos
são trilhados na relação, no momento presente, compreendendo o outro a partir dos
termos que ele mesmo apresenta à realidade, olhando e percebendo o outro como um
todo e não o amarrar e reduzi-lo a sintomas que são apenas parte desse todo sempre
em movimento.

É relembrando estes aspectos básicos do pensamento fenomenológico que


iniciamos a Unidade 3, onde serão abordados temas a respeito do sofrimento humano
a partir de teóricos que tragam e discutam essas visões sensíveis que requerem muita
reflexão e presentificação. Abordaremos, a seguir, a compreensão fenomenológica do
sofrimento humano a partir de dois fenomenólogos da psicopatologia, Eugene Minkowski
e Arthur Tatossian. Em seguida falaremos sobre a compreensão da depressão e da
ansiedade em uma perspectiva fenomenológica.

151
2 PSICOPATOLOGIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA
FENOMENOLÓGICA
O termo “psicopatologia” foi e ainda é usado em diferentes sentidos e para
designar diferentes tipos de comportamento. É estudado a partir de diversas abordagens
e autores, o que sempre é atualizado, considerando que a história e a cultura estão
sempre em movimento e, portanto, os termos e conceitos para pensar e aplicar o que é o
“normal” e o que é “patológico” também se atualizam. Pode-se falar, de uma maneira geral,
que o campo da psicopatologia inclui uma variedade de fenômenos que associamos,
historicamente, como “doença mental” (DALGALARRONDO, 2019). Estes fenômenos
incluem vivências, estados mentais e padrões comportamentais que apresentam tanto
uma esfera individual e singular, uma dimensão própria e, por outro lado, conexões
complexas com ideias da psicologia sobre normalidade (DALGALARRONDO, 2019).

Dito de outra forma, não se pode compreender ou explicar tudo o que


existe em um ser humano por meio de conceitos psicopatológicos.
Assim, ao se diagnosticar Van Gogh como esquizofrênico (ou
epiléptico, maníaco-depressivo ou qualquer que seja o diagnóstico
formulado), ao se fazer uma análise psicopatológica de sua biografia,
isso nunca explicará totalmente sua vida e sua obra. Sempre resta algo
que transcende à psicopatologia e mesmo à ciência, permanecendo
no domínio do mistério (DALGALARRONDO, 2019, p. 28).

INTERESSANTE
Acadêmico, você conhece a história e a obra de Vicent Van Gogh? Considerado um dos maiores
pintores de todos os tempos, Van Gogh produziu mais de 2 mil obras durante seus 37 anos de
vida. Seu legado é tão representativo que, em 1973, em Amsterdã, na Holanda, seu país-natal,
foi criado um museu para abrigar suas criações. O artista foi caracterizado por alguns como
um homem incompreendido, atormentado, intempestivo e com distúrbios
comportamentais. Outra curiosidade diz respeito ao fato de que o artista não
tinha reconhecimento, nem em termos simbólicos e artísticos, nem em termos
materiais enquanto era vivo. A fama e o reconhecimento de seu trabalho
vieram apenas no post mortem. Uma de suas obras mais famosas, Noite
Estrelada, é a única pintura noturna da série de obras que criou a partir da
vista do quarto do hospício Asilo Saint-Paul, onde estava internado nos últimos
anos de sua vida. Desse modo, podemos olhar para este artista a partir de
diferentes perspectivas, e, para uma perspectiva fenomenológica, olhar apenas
para os sintomas do seu sofrimento seria apenas uma parte do seu todo.

152
Noite Estrelada – Van Gogh

FONTE: https://arteeartistas.com.br/noite-estrelada-a-obra-prima-de-vincent-van-gogh/.
Acesso em: 7 out. 2022.

Em O Nascimento da Clínica, Michel Foucault aborda como a medicina tem sua


base na análise e observação clínica dos casos, desenvolvendo a descrição de sinais e
sintomas para que se possa fechar um diagnóstico. Isso coloca os pensamentos e os
quadros clínicos de maneira classificatória, em seu início. Com o decorrer do tempo,
no entanto, a medicina desenvolve uma perspectiva experimental e científica, o que
consolidará a clínica moderna, pautada, sobre tudo, na anatomia e na patologia do
século XIX, sob forte influência dos pensamentos iluministas que saúdam a razão e o
controle total do corpo como sinal de civilização.

Por outro lado, contudo, a construção de uma compreensão fenomenológica


da psicopatologia transcorreu de uma forma gradual, a partir da aproximação com
outras áreas do saber como a filosofia, além da psiquiatria e psicologia, sendo
conhecida posteriormente como psicopatologia fenomenológica. A 63ª Sociedade
Suíça de Psiquiatria de Zurique, que ocorreu em 1922, é considerada um marco na sua
constituição, na qual Ludwig Binswanger, considerado um dos grandes precursores
do pensamento psicopatológico fenomenológico, apresentou seu trabalho intitulado
La Phenomenologie e Eugène Minkowski, que consistiu em um estudo de caso sobre
melancolia esquizofrênica (DOURADO; MOREIRA; MELO, 2006).

A compreensão de processos psicopatológicos a partir de um viés


fenomenológico decorre de uma insatisfação com os critérios nosológicos utilizados
pela psiquiatria na época, que generalizavam e reduziam a expressão do sofrimento
humano a categorias frias e estigmatizantes, e tendo em vista a proposta da
fenomenologia de ruptura com perspectivas objetivantes do sofrimento humano.
Conforme descreve Karwowski (2015, p. 63),

153
Não existem descrições específicas de cada um dos transtornos
mentais, de maneira que seja possível categorizá-los em suas etio-
logias, prognosticá-los e oferecer terapêuticas. Se há quem assim o
faça, opera opostamente a que o uso rigoroso do método fenome-
nológico observa. Oferece a fenomenologia, antes e, no entanto, um
caminho para repensar as estruturas fundamentais do ser homem,
que no seu exame e constituição revelem e impliquem aspectos
psicopatológicos, ao mesmo tempo em que, ante a leitura fenome-
nológica das ocorrências ditas normais, sejam evocadas condições
referentes às manifestações psicopatológicas. [...] o estudo da psi-
copatologia numa perspectiva fenomenológica, antes de oferecer
uma posição segura para intervenções nas psicopatologias, propõe
reflexões fundamentais sobre aspectos ontológicos do humano que,
integrados na Antropologia Filosófica específica da fenomenologia,
permitam elaborações de instrumentos interventivos precisos e afi-
nados com a cotidianidade do ser homem Talvez, no rigor reflexivo
levado a fundo e a termo pelo método fenomenológico, se produzam
mais dúvidas do que certezas, mais caminhos possíveis do que vias
oficiais, revelando, ele mesmo, sua semelhança com a insegurança e
provisoriedade da própria existência humana.

Nesse sentido, a psicopatologia fenomenológica tem como característica


essencial a busca pela compreensão do vivido psicopatológico e suas condições de
possibilidade, rompendo com o pensamento essencialmente sintomático dos quadros
de adoecimento psicológico. Sendo assim, “A distinção entre sintoma e fenômeno está
no bojo da imersão da fenomenologia no campo psicopatológico e representa uma via
de construção e delimitação de um modelo de clínica fenomenológica que se sustenta
sobre e na experiência” (BLOC; MOREIRA, 2013). Alguns nomes são referência dentro
das discussões sobre a psicopatologia fenomenológica, como Eugenè Minkowski e
Arthur Tatossian.

2.1 EUGENÈ MINKOWSKI (1885 – 1972)


Psiquiatra e psicólogo russo-polonês, é um dos pioneiros na introdução do
pensamento fenomenológico husserliano na prática da psiquiatria, Eugène Minkowski
(1885-1972) colocou os estudos psicopatológicos em outras esferas, dando espaço e
vazão para o vivido e não apenas para aspectos técnicos, além de colocar o fenômeno
do tempo a partir de novas perspectivas no que diz respeito aos transtornos mentais
(FAIZIBAIOFF; ANTÚNEZ, 2015). Nascido em 17 de abril de 1885 em São Petersburgo,
numa família judaico-polonesa, realiza seus estudos em Varsóvia e Munique, dedicou-
se à medicina, à matemática e à filosofia. Trabalhou por um período numa casa de
saúde para doentes mentais e manteve-se no caminho da psiquiatria no seu percurso
profissional, dando ênfase sobretudo ao tema da esquizofrenia.

154
Figura 1 – Eugene Minkowski

Fonte: http://www.fenomenoestrutural.com.br/2016/03/04/eugene-minkowski/.
Acesso em: 7 out. 2022.

Minkowski trabalha com a ideia do tempo no sentido de que, na atualidade e


na sociedade em que vivemos, é uma questão no nosso cotidiano, pois toda nossa
organização social está em detrimento também da organização do tempo, como
calendários, relógios, o horário comercial, a hora do almoço, o fim de semana como
sendo um tempo de descanso etc. (MINKOWSKI, 2011). Desse modo, procuramos no
tempo um ponto de fixo de localização espacial, procuramos colocar o tempo num
sentido concreto e objetivo.

Assim também funciona a clínica, mas no sentido de desorientação do tempo,


pois sempre há de interrogar os pacientes de um hospital, por exemplo, em relação
a sua data de nascimento, desde quando está no hospital, entre outros eventos que
marquem e localizem o profissional em qual manejo tomar (MINKOWSKI, 2011). Portanto,
aqui também se pensa a partir de um tempo mensurável e assimilado ao espaço, o que
tem como referência o trabalho de Bergson sobre o tempo.

INTERESSANTE
Henri Bergson (1859 – 1941) foi um filósofo e diplomata francês que se
dedicou ao estudo e à escrita sobre noções de temporalidade que coincide
com a forma fenomenológica de perceber o tempo no sentido em que tudo
se finda, onde o tempo fornece um movimento, uma transitoriedade. Em
vista disso, Bergson aborda sobre um tempo espacializado, no sentido de
ser uma forma de buscar medir o tempo em relação com o espaço, embora
isso, de maneira alguma, dê conta do tempo da experiência e da subjetividade
individual. Assim, por um lado, há o tempo mecânico e, por outro lado, há o
tempo da consciência. Para saber mais sobre Bergson, veja o filósofo Franklin
Leopoldo falando sobre neste vídeo da Casa do Saber: https://www.youtube.
com/watch?v=9AWIqw4hynM.

155
Em termos psicopatológicos, o tempo é marcado por uma desorientação junto
com uma desorientação no espaço e, assim, é como se substituída a realidade por uma
espécie de mundo fictício (MINKOWSKI, 2011). Assim, o tempo mensurável e visto de
maneira objetiva também escapa no cotidiano mesmo em situações que não sejam
de ordem psicopatológica. Para ilustrar isso, Minkowski (MINKOWSKI, 2011, p. 88) cita o
exemplo de uma interação com seu filho, na época com seis anos de idade:

Quando meu filho tinha seis anos, habitualmente eu o acompanhava


à escola; nós tomávamos o café da manhã juntos, depois eu fumava
um cigarro e, em seguida, saíamos em direção à escola. Um dia, tendo
me levantado mais tarde do que de costume, eu disse ao meu filho,
que bebia tranquilamente seu leite: “apresse-se, meu pequeno, pois
senão nos atrasaremos”. A resposta não tardou: “mas, papai, me disse
meu filho, não podemos estar atrasados, você ainda nem fumou seu
cigarro”. A criança certamente havia registrado a sucessão regular
de certos acontecimentos, ele dispunha incontestavelmente de
noções de ordem temporal, apesar de que a ideia completamente
desenvolvida de um tempo abstrato escoando independentemente
dos acontecimentos que se desenrolavam diante dele e aos quais ele
se reportava, ainda faltavam para ele.

É nesse sentido que a esfera do tempo ocupa a ordem singular, não se trata
do tempo mensurável e nem da desorientação patológica, mas da forma como cada
um vivencia o tempo no mundo. Além disso, a vida em sociedade também coloca o
tempo de forma tão dinâmica que as imagens, as quais vemos repetidas, em termos
de calendários e datas específicas, fazem com que não se tenha tempo de parar, de
meditar ou de refletir sobre qualquer ponto de apoio.

Para pensar o tempo, Minkowski utiliza o termo devir, como “esse oceano
movente, misterioso, grandioso e poderoso que eu vejo ao redor de mim, em mim, em
todo lugar, em uma palavra, quando medito sobre o tempo” (MINKOWSKI, 2011, p. 89).
Nesse sentido, aponta tanto para o caráter fluido e passageiro, irremediavelmente, do
tempo, ao passo que também se considera sua progressão a um futuro que ainda não
está pronto, embora sempre sedento. O devir, por seu turno, sempre deixa que algo
escape, que algo bagunce, que algo não se complete sem por isso ser desmerecido, é
impessoal, está sempre a transformar-se.

O problema em conceituar o devir é justamente o fato de que ele sempre escapa,


o fato de que seu diferencial está no seu caráter irracional, errático (MINKOWSKI, 2011).
Assim, para o autor, o tempo é como o devir, embora esteja localizado, atualmente, de
maneira objetiva que se tenta mensurar em termos cronológicos. Carregamos, assim,
uma tensão entre a essência do tempo e a forma como o construímos em sociedade,
sendo esta segunda parte igualmente legítima.

Ao colocar o tempo dessa maneira, apresenta-se uma espécie de estrutura


temporal de cada pessoa, pessoal, íntimo. No encontro entre duas pessoas, cada uma
vai ter uma forma de lidar, manejar, compreender, organizar ou desorganizar seu próprio
tempo. Esta concepção no campo clínico serve como um trampolim para a avaliação em
156
psicopatologia, deixando-o muito mais relacional e necessariamente fenomenológico
(FILHO, 2015). Isso porque uma atitude fenomenológica requer, necessariamente, uma
sintonia que existe na diferença do eu paro com o outro e com o mundo, e ao acessar,
reconhecer e respeitar esta diferença é possível, então, construir a relação de maneira
mais autêntica.

Essas compreensões temporais de Minkowski são essenciais na vivência


clínica, tendo relevância tanto com pacientes com sintomas psicóticos quanto
pacientes com sintomas ansiogênicos (FILHO, 2015). Nestas situações, a noção de
tempo do sujeito pode estar desorganizada, de forma que o tempo vivido e o contato
com a realidade apresentam uma alteração, sendo possível que esta alteração também
se mostre presente na relação do sujeito com o tempo mensurável e com noções
espaciais (FILHO, 2015).

Ter uma postura fenomenológica no psicodiagnóstico trata-se exatamente


de considerar as diferenças substanciais dos tempos vividos por cada ser, o que não
está inscrito nas abordagens padrões da psiquiatria clássica, onde o que se preza é o
tempo mensurável e o sintoma. Um dos pontos altos do pensamento de Minkowski é o
campo da vida afetiva, não apenas a percepção, pois o que se valoriza é de ordem muito
singular, pessoal e vivido. Dessa forma, estar junto ao paciente, compreender o sentido
que ele confere à própria existência, a forma como entra em contato com o mundo
é muito mais permeado por complexidade e muito mais fenomenológica do que uma
descrição de tempos e sintomas compulsórios (FILHO, 2015).

Assim, correspondendo ao olhar fenomenológico, o sujeito acometido por uma


doença mental deve ser visto como um modo de ser diferente, como uma outra forma
de lidar com o tempo vivido que escapa das formas padrões e tradicionais que se está
acostumado. Portanto, a psicopatologia deve colocar-se, na teoria e na prática, como a
psicologia do patológico e não como uma patologia do psicológico. Humaniza-se o olhar
e a forma de se relacionar-se com este outro, que é, sempre, diferente de mim.

2.2 ARTHUR TATOSSIAN (1929-1995)


Foi um psiquiatra francês, que incitou diversas reflexões acerca do adoecimento
mental, sobretudo no que se refere à compreensão de diferentes fenômenos
psicopatológicos e de diferentes práticas clínicas psicológicas e psiquiátricas. Seus pais
são de origem armênia e migraram para a França em 1921, em virtude da perseguição
pelos turcos. Apesar das dificuldades materiais, que o fizeram ter de dedicar tempo para
auxiliar a mãe no comércio da família em virtude do falecimento de seu pai em 1943, foi
um jovem estudioso que concluiu seu bacharelado em filosofia em 1947, aos 18 anos
(BLOC; MOREIRA, 2013).

157
Figura 2 – Artur Tatussian

Fonte: https://www.mjw-fedition.com/nous-connaitre/. Acesso em: 7 out. 2022.

Iniciou seus estudos médicos em 1950, e em 1952 já se tornou interno dos


hospitais de Marselha, chegando a receber uma medalha de ouro dos Hospitais de
Marselha, sendo nomeado Chefe de Clínica em 1958. Nessa época, construiu importantes
contribuições no campo da neurologia e neuropsiquiatria, sobretudo em virtude do seu
contato frequente com Pierre Mouren. Entre 1959 a 1967 ficou encarregado do curso de
psicopatologia na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Aix-en-Provence, e foi
responsável pelo curso de Neuropsiquiatria Infantil do Instituto de Biometria Humana
e de Orientação Profissional. Em 1972, dirigiu Serviço de Psiquiatria do Hospital Sainte
Marguerite, e tornou-se Médico-Chefe do 5º setor de Bouches-du-Rhône (BLOC;
MOREIRA, 2014).

Ao longo de sua carreira na psiquiatria, o autor sempre demonstrou especial


preocupação com uma compreensão do ser humano em sua totalidade. Entre os períodos
de 1957 a 1970, publicou diversos trabalhos, entre eles sua tese de doutorado, sendo
o primeiro estudo fenomenológico francês de um caso de esquizofrenia. Seu trabalho
sofreu grandes influências dos postulados de Husserl, Heidegger, Binswanger, Kuhn, e
em especial dos conceitos da Daseinsanálise, pouco conhecida na França na época.
Nos anos seguintes, Tatossian escreveu diversos trabalhos no campo da fenomenologia
e da psiquiatria, abarcando temas relacionados a psicoses, depressão, mania, dentre
outras expressões de adoecimento. Conforme descreve Bloc e Moreira (2013, p. 186),

Para Tatossian, uma abordagem fenomenológica não poderia


ser entendida como um novo olhar que se integraria com outras
abordagens psicopatológicas, mas sim como o próprio campo da
experiência em si mesma, sendo validada somente por ela mesma em
uma atitude de “ver”, buscando uma lógica natural e intersubjetiva.
Ou seja, é com uma atitude fenomenológica que se atinge esta
experiência, o fenômeno da forma como se apresenta, sendo a teoria
um aliado posterior importante para compreender o vivido do outro.

158
Desse modo, um dos pontos centrais no trabalho de Tatossian é a flexão entre
sintoma e fenômeno na clínica psicopatológica (BLOC; MOREIRA, 2013). Na clínica
tradicional, o que é valorizado é o sintoma, o que sinaliza um processo somático e
patológico que tem uma ordem de causa e efeito mais ou menos bem delimitado, sendo
relativamente fácil de descrever e compreender em termos de origem e causa. Por outro
lado, o fenômeno não é tão categorizável, pois parte da experiência vivida do paciente,
não sendo reduzível a adjetivas.

O problema em se considerar apenas o sintoma em nível físico/anatômico é que


se aparta da experiência subjetiva do paciente, como se ele próprio não fizesse parte da
produção desse sintoma. Esta percepção reduzida ao sintoma coloca o indivíduo num
lugar de passividade na construção e na transformação de sua própria vida e sofrimento,
em que a doença se anuncia a partir do sintoma e não ao contrário (BLOC; MOREIRA,
2013). A psicopatologia do sintoma ancora-se na inferência garantida pela memória e
por manuais de diagnóstico psiquiátricos que são feitos, basicamente, a partir de uma
listagem de sintomas.

Outro problema em se enfatizar o sintoma em detrimento no fenômeno está


no fato de que o sintoma é apenas uma parte da gama de informações e experiências
vividas pelo paciente. Neste sentido, Tatossian (BLOC; MOREIRA, 2013) é um grande
crítico a este modelo inferencial pois considera que o paciente nem sequer chega a
ser percebido nem ouvido, uma vez que se busca apenas preencher figurinhas de
sintomas. Por isso o autor propõe um outro modelo de diagnóstico fenomenológico: o
modelo perceptivo.

A proposta de Tatossian vai no sentido de perceber o paciente de maneira global


e integral, por isso se valoriza o fenômeno em detrimento do sintoma. Aqui os elementos
semiológicos e nosológicos não ganham destaque devido a atitude fenomenológica de se
abster de pré-julgamentos numa entrevista clínica com uma pessoa em sofrimento mental
(BLOC; MOREIRA, 2013). Isso porque se o sintoma é apenas uma parte do fenômeno,
então olhar apenas para ele é enxergar, de igual modo, apenas uma parte do paciente e,
com isso, as possibilidades de manejo ficam defasadas ou se tornam ineficientes.

Por um lado, o fenômeno é muito menos que o sintoma na capacidade


de se mostrar, por se colocar sob a forma e estilo de vida do paciente
e por não ter valor como índice que permitiria inferir a existência de
uma doença. Mas, por outro, ele é muito mais que o sintoma, no
sentido da amputação da experiência, por distanciar-se de tudo
aquilo que está presente e que não se configura como característica
intrínseca do paciente e está ligado, por exemplo, a aspectos culturais
ou situacionais (BLOC; MOREIRA, 2013, p. 33).

Por se prezar pelo todo do paciente e por não reduzir sua existência aos
sintomas, não se diagnostica a esquizofrenia ou a depressão, por exemplo, mas sim a
esquizofrenicidade e a depressividade, expressando assim que se trata de uma parte do

159
todo. Assim, o distúrbio do paciente pode ser percebido com e no sintoma ao invés de
depois ou a partir dele. Assim também o próprio clínico consegue dialogar e transmitir a
mensagem de que estamos sempre em movimento, não oferecendo uma compreensão
precoce nem percebendo o paciente de maneira estática (BLOC; MOREIRA, 2013).

Nesse sentido, um problema ou distúrbio psicopatológico jamais expressa por


completo uma ausência de autonomia e de liberdade, não havendo uma ideia de loucura
integral, como se nada na experiência vivida do sujeito fosse válida e legitimada. Assim,
a própria loucura é, legitimamente, um modo de ser do indivíduo, um meio pelo qual ele
se expressa no mundo. Por isso a liberdade é sempre um elemento a ser considerado no
processo de tratamento, pois isso caminha de mãos dadas com a autonomia, que é um
dos objetivos dos tratamentos com pessoas em sofrimento psicopatológico.

3 COMPREENSÃO FENOMENÓLOGICA DE
TRANSTORNOS MENTAIS CONTEMPORÂNEOS
Para compreendermos os transtornos mentais contemporâneos a partir da
perspectiva fenomenológica, podemos pensar, como temos visto com Mikowski e
Tatossian, na mudança do ponto de partida, ou seja, aqui se olha o todo, aqui não se
privilegia o sintoma, mas busca-se compreender a forma como sujeito lida com o seu
próprio tempo, com sua própria insegura, como se coloca no mundo em descompasso
com o tempo do mundo, em desorientação com o espaço que lhe é oferecido.

Assim também é um olhar lançado para a depressão e ansiedade onde, por um


lado, tem características expostas nos manuais para que se estabeleçam os critérios
diagnósticos que guiam nossas práticas. Por outro lado, tem a visão fenomenológica
que busca compreender como este indivíduo maneja sua existência, como abdica
de sua liberdade e autonomia, como limita suas possibilidades de escolhas para os
termos do sofrimento e da angústia. E, imbricado a tudo isso, devemos considerar
também as contingências e opressões que somos todos sujeitos compartilhando a
existência num mundo hiper acelerado que organiza e compartimenta nossos tempos
e nossas subjetividades.

3.1 TRANSTORNOS DE HUMOR DEPRESSÃO


Atualmente o fenômeno da depressão é uma questão de saúde pública, sendo
necessário que haja uma compreensão para além do ponto de vista epidemiológico e
fármaco e possamos olhar também sob uma perspectiva que contempla e compreensão
e o nível de sofrimento envolvido. É necessário que pensamos não apenas em termos
de doenças e nosologias, mas em termos de um sofrimento vital que acomete o sujeito
e penetra em todas as instâncias de sua vida.

160
Precisamos, assim, localizar o fenômeno ao seu campo contextual e isso
também se aplica aos casos de depressão. Isso porque, por um lado, faz parte da vida
a questão do sentido e não sentido, experienciar, eventualmente, uma ausência de
sentido (TÁVORA, 2017). Por outro lado, contudo, a sociedade em vivemos é fascinada
pelo progresso científico e tecnológico de forma que promete sempre uma atualização
para conforto e satisfação constantes e instrumentalizada, apressada, como quem
busca uma felicidade compulsória numa prateleira de supermercado.

Nos manuais de referência para os critérios diagnósticos há uma relação de


sintomas físicos que a o indivíduo pode sentir, tais como concentração e atenção
reduzidas, autoestima rebaixada, sentimento de inutilidade, noção de tempo distorcida,
alteração no sono e no apetite (TÁVORA, 2017). Nesse sentido, há sentimentos
depressivos, ajustamentos depressivos e há a depressão maior que corresponde à
melancolia e representa um estado mais agravado do estado depressivo. Melhor dizendo,
o indivíduo pode ter um ajustamento depressivo sem que tenha, necessariamente, um
quadro clínico de depressão, depende-se sobretudo de como se dá a experiência da
pessoa em termos de sofrimentos e prejuízos as suas relações.

Também se deve considerar, contudo, que esse sentimento vasto e intenso de


desânimo pode acontecer depois de ocorrer uma perda significativa na vida do indivíduo,
de forma que a análise deve ser cuidadosa e minunciosa para que não se patologize uma
experiência válida e legítima de sofrimento devido a um luto (TÁVORA, 2017). Uma das
máximas em fenomenologia diz respeito ao fato de que “quando um paciente descreve
seu mundo, descreve a si mesmo e quando descreve a si próprio, está descrevendo o
mundo e suas relações (TÁVORA, 2017).

Arthur Totassian ofereceu grandes contribuições para o estudo da depressão,


onde ele faz apontamentos para a diferença entre um sofrimento normal ou uma
experiência melancólica. Nesse sentido, um sofrimento normal que todos nós
experienciamos é desconfortável e estranho para quem o vive (LEITE; MOREIRA, 2009).
Ao propor que se faça um estudo da relação entre afetividade e sofrimento melancólico
discorre que é como se nem mesmo a tristeza atingisse o sujeito, pois nem isso ele
alcança, ficando apenas com o sentimento de vazio, uma não-vontade de viver (LEITE;
MOREIRA, 2009).

O ajustamento depressivo é um modo de lidar com certas situações


da vida. Quando triste, a pessoa conserva recursos pessoais. Isso
pode acontecer, por exemplo, após a perda de um parceiro ou de
um emprego. Nesse caso, o ajustamento depressivo leva a uma
economia de esforço e à conservação de recursos. Ele capacita a
pessoa a parar, considerar a situação mudada e tomar uma decisão
com base em estratégias alternativas; regula economicamente o
investimento pessoal e ajuda a controlar o impulso em direção ao
esforço improdutivo. A depressão como possibilidade de retiro
(TÁVORA, 2017, p. 226).

161
Assim, devemos considerar que a tristeza é um estado de rebaixamento dos
afetos que pode variar em níveis de intensidade e, geralmente, surge em decorrência
de eventos que foram doloridos e sofridos. Na tristeza também se sente angústia e,
também, há choro, é passageira e o indivíduo consegue manejar seu funcionamento
global (NOGUEIRA, 2017). A depressão maior – melancolia – implica em sentir-se como
apartado de si e do mundo, com um descompasso amplo e profundo, podendo haver a
tristeza, mas havendo também um desânimo e desinteresse geral pela vida.

Assim, a melancolia deve ser caracterizada como um distúrbio do humor e não


do sentimento, uma vez que o sentimento imprime uma ação, um movimento afetivo
em direção a qualquer coisa, enquanto o humor tem um caráter mais passivo, como se
fosse alheio à vontade do sujeito (TATOSSIAN, 2006). O humor impregna-se na totalidade
do indivíduo, o que é característico da melancolia, enquanto a depressão representa
sobretudo uma tristeza. A melancolia não precisa, necessariamente da tristeza, num
sentido onde a melancolia não prioriza a tristeza para existir, mas sim a totalidade da
experiência do indivíduo (TATOSSIAN, 2006), ou seja, o sujeito melancólico carrega a
incapacidade de ser triste, nas palavras de Tatossian (2006, p. 121) “aquele que pode
ainda ser triste não é verdadeiramente melancólico e pode-se reconhecer o término
ou a fraca intensidade de uma fase em que o paciente pode novamente ou ainda ser
triste”. O que se experimenta na melancolia é uma alteração na afetividade-contato
fazendo com que o indivíduo não comporte nenhum tipo de movimento, permanecendo
sem desencadeamento. Esta imobilização é tamanha, que o indivíduo sabe que mesmo
na tristeza é um potencial por representar um sentimento, e o sujeito melancólico não
alcança os sentimentos mobilizadores de ação.

Mas a incapacidade invade grandemente a tristeza e os sentimen-


tos; radical e geral, atinge toda ação: comer, beber, dormir, trabalhar,
falar, fazer amor. É por isso que explicação da anestesia afetiva para
uma inibição da alegria e da tristeza, devido à intensidade mesma
dos sentimentos vitais – depressão e euforia – é muito limitada (TA-
TOSSIAN, 2006, p. 122).

O afastamento é uma das marcas do sujeito melancólico, o que Tatossian


(LEITE; MOREIRA, 2009) denomina como depressividade, uma tristeza vital que alcança
todo o corpo do sujeito. Assim, o sujeito melancólico vive a indisposição em todas as
partes de si, localiza-se a tristeza na cabeça, nos vividos corporais, no sentido de sentir
desconforto em existir naquele corpo representado por constantes dores de cabeça,
aperto no peito, dor de garganta, para citar alguns exemplos (TATOSSIAN, 2006).

O corpo visto como um corpo-portador ou um corpo-suporte é sentido de


forma pesarosa na melancolia, como se a afetividade do indivíduo fosse aniquilada, não
sendo reconhecida pelo sujeito. Desse modo, o que corpo carrega, se não afetividade
nenhuma, trata-se apenas de um peso, no sentido de que o corpo é para si apenas

162
uma carga insuportável, quase como se esse corpo melancólico fosse dominado pela
gravidade: cai, fica pra baixo (TATOSSIAN, 2006). Por isso mesmo a melancolia representa
um estado que atinge mais do que uma tristeza, considerando que a tristeza já é uma
expressão de um sentimento.

Com esse corpo pesado, quase insustentável, o melancólico anda pelo mundo
levando a sério demais suas identidades, seus papéis sociais e abdicando de sua própria
subjetividade e liberdade (TATOSSIAN, 2006). Considerando estes aspectos, há também
a impossibilidade de o melancólico relacionar-se autenticamente com outro como
indivíduo, pois estas experiências são mediadas pelo corpo e pela afetividade que são
dois aspectos anestesiados na melancolia (LEITE; MOREIRA, 2009).

DICA
Acadêmico, a compreensão da angústia e do tempo estagnado na melancolia
pode ser visto através do filme Melancholia, escrito e dirigido por Lars Von
Trier. O filme, desde o seu início, lento, quase parado, gerando no espectador
a ideia de que as coisas estão “demorando muito para acontecer”. Justine é a
personagem que sofre de depressão, tendo consciência do peso que tem sido
carregar o próprio corpo e se relacionar com os demais, chega a pedir desculpa
por não ter acesso e expressão de afetividade. De maneira metafórica, o filme
mostra a chegada de um planeta fictício chamado Melancholia que iria colidir
com a terra e todos iriam, iminentemente, morrer. Assista ao trailer do filme
para aguçar seu interesse: https://www.youtube.com/watch?v=6IZGwvxhXvw.

A relação com o tempo vivido, na melancolia, é sentido com uma profunda


estagnação, como se perdesse o elo pessoal. Esse tempo vivido é o tempo subjetivo,
não o tempo do relógio, mas o tempo vivido de ordem subjetiva que, neste caso,
representa um não-poder e, por isso, o melancólico fundamentalmente é não-poder
comer, pensar, trabalhar, sair, passear, mas, ainda assim registrar constantemente
e cruelmente essa sua incapacidade. Por isso, no bojo da melancolia também há a
tentativa, o ensaio da ação.

Essa angústia na melancolia tem como base este não-poder muito mais do
que sentimento de culpa ou insegurança. A culpa pode estar presente no estado da
melancolia, assim como a tristeza, mas o ponto fulcral é a ausência de movimento,
é o não-poder (TATOSSIAN, 2006). O modo de ser-no-mundo na experiência da
depressividade no indivíduo melancólico passa pelos modos como consegue relacionar-
se com o corpo e com as representações de tempo e espaço. Visto que, há tanto o corpo
pesado, como um tempo vivido de maneira estagnada, como um espaço vazio, tudo isso
na impossibilidade de presença e encontro (LEITE; MOREIRA, 2009).

163
Consideramos o indivíduo a partir de múltiplos aspectos que compõem seu
momento presente; a história social e a história individual pregressa, as estruturas
sociais, a cultura, as vivências de tempos singulares, em detrimento de um pensamento
universalista da ciência tradicional. Assim, em termos fenomenológicos, a compreensão
da depressão se dá por vias que priorize o contato com a experiência vivida da pessoa
deprimida, compreendendo-o em sua forma total ao invés de recortada por sintomas
aparentes (LEITE; MOREIRA, 2009).

Não obstante, é imperativo que o processo terapêutico com essas pessoas parta
de um profundo respeito pelo tempo delas, de maneira permanente e paciente e, com
isso, a pessoa também pode reavaliar como leva seu próprio tempo (NOGUEIRA, 2017). É
na relação que a transformação se constrói, pois, é quando a pessoa se sente cuidada
que ela mesma se implica no seu processo de cura, descobrindo que tem possibilidades
de escolha que possam suportar a si mesmo e estabelecendo conexões de rede para
apoios de outrem.

3.2 ANSIEDADE
A ansiedade, em linhas gerais, representa uma dor ou a possibilidade de uma dor
que, muitas vezes, sinaliza mudanças que o organismo precisa realizar para continuar
seu crescimento. Atualmente, vivemos num contexto onde todos já sentimos, em menor
ou maior grau, algum nível de ansiedade, revelando a importância e a frequência dela
na sociedade atualmente. A ansiedade por ser um “problema” cada vez mais acentuado,
também revela uma sociedade que não consegue ficar com o desconforto. Pensar em
termos etiológicos, em fenomenologia, não costuma ser uma via que se recorre, uma
vez que não se considera ou se busca uma causa para um adoecimento existencial, pois
compreende-se o indivíduo para além de seus aspectos mentais e que, caso surja um
adoecimento, ele foi um desenvolvimento dado a partir do contexto e do contexto entre
indivíduo e meio.

Rollo May (1909-1994), um dos principais psicólogos de base fenomenológica


que discute a ansiedade, em seu livro O Significado da Ansiedade, aponta algumas
características da ansiedade normal que dizem respeito a uma reação proporcional à
ameaça objetiva, não envolve repressão ou outros tipos de conflito e não precisa de
mecanismos e defesas neuróticas para lidar com ela MAY, 1977). Nesse sentido, todos
nós experimentados uma ansiedade normal, embora nem sempre nos demos conta,
afinal, perto do que se sente numa ansiedade neurótica, ela passa despercebida
facilmente. De todo modo, o manejo de uma ansiedade normal é gerenciado de forma
tranquila, sem tanta demanda de energia.

A ansiedade sempre vai revelar um ponto de tensão com o sistema de crenças


e valores do indivíduo, mas na vivência do ser humano são essas experiências que são
potenciais para o crescimento e desenvolvimento humano. Uma ansiedade normal
experienciada e compartilhada entre muitos diz respeito à morte (MAY, 1977). Ter uma
164
ansiedade em relação à morte não implica, necessariamente, num quadro de depressão
ou de ansiedade neurótica, pelo contrário, a consciência de que eventualmente não
compartilharemos o dia a dia com nossos semelhantes pode servir de gás e estímulo
para aproveitar a vida de maneira mais consciente no momento presente, além de poder
gerar mais responsabilidade consigo, com suas relações e com o mundo (MAY, 1977).

Por outro lado, a ansiedade neurótica vai implicar outras mobilizações energéticas
sendo sempre desproporcional ao perigo objetivo, envolvendo repressão dos desejos e
sendo gerida através de mecanismos neuróticos para dar conta da realidade. Contudo,
esta é uma visão objetiva da ansiedade. Se formos olhar a partir da perspectiva da pessoa
que está em sofrimento, a reação vai ser proporcional à ameaça subjetiva vivida naquele
momento. Assim, a dificuldade da pessoa encontra-se inteiramente no plano subjetivo,
pois precisa lidar com ameaças que também o são (MAY, 1977).

Assim, considera-se a ansiedade como um excesso de agitação, uma espécie


de sobressalto que se dá na iminência de que “algo” pode acontecer, como quem se
coloca pronto para enfrentar um perigo. Ao menos é isso que acontece com o corpo
(BRITO, 2021). Além disso, outros aspectos podem ser percebidos, como os aspectos
neurovegetativos e hormonais ligados à tensão, ou alteração do ritmo cardíaco, alteração
no sono e no apetite, sudorese, agitação, sensações de aperto no perto e falta de ar.

A quantidade de eventos psicossomáticos que ocorrem em decorrência da


ansiedade revela uma situação em que o corpo se coloca numa prontidão para lidar com
alguma ameaça sentida – real ou não. Em outras palavras, a ansiedade é uma forma de
defesa que desenvolvemos, serve para nos proteger e não deve ser vista sempre como
um problema a ser eliminado (BRITO, 2021). A ansiedade é sempre uma mensagem,
ao invés de tentar deletar a mensagem antes de ler, o ideal é traduzi-la, aproximar-se,
perceber qual o idioma utilizado, qual a forma e conteúdo.

A ansiedade apoia-se numa fantasia de futuro, este é o contato estabelecido,


ou seja, o contato vem a partir de um lugar ficcional, que não aconteceu e não se sabe
se acontecerá. Isso revela, também, a instabilidade a que somos acometidos, sem a
certeza de constância, pois tudo está sempre a mudar. Em terras fenomenológicas, a
importância que é dada é no sentido de verificar a qualidade de contato que a pessoa
tem consigo mesma, com o ambiente e com o fenômeno que gera a ansiedade (BRITO,
2021). Não é, portanto, algo individual que pode ser eliminado através de estratégias
mecânicas, mas que revela sempre como é a relação entre sujeito e mundo, no sentido
de quais recursos em relação à ansiedade cada pessoa tem disponível para si, se
consegue arriscar-se numa nova empreitada porque confia nas possibilidades de futuro
e essa confiança pode estar relacionada com o histórico de ansiedade dessa pessoa
com o mundo (BRITO, 2021).

165
Por estas vias, já sabemos que a ansiedade é algo que todos nós, seres humanos,
temos. Qual a diferença entre uma ansiedade normal e uma ansiedade patológica?
Qual a diferença entre ansiedade e medo, considerando que os dois fenômenos são
similares? Um dos pontos dessa diferenciação é o fato de que a ansiedade está baseada
numa fantasia de futuro, enquanto o medo corresponde ao momento presente, a algo
que representa o aqui e o agora. Além disso, no medo há clareza de qual perigo está
impresso no meio e como podem e devem ser removidos. Assim, o medo é carregado de
ação, pois há clareza do que ocorre no meio (BRITO, 2021). Por outro lado, na ansiedade
há paralização, sendo a opção mais comum a fuga do conflito, a fuga do risco, a fuga do
contato com a novidade, o que é muitas vezes o que o corpo está pedindo através do
desconforto gerado pela ansiedade.

Para além dessas diferenciações, também importa pensar a ansiedade a partir


de termos possíveis para o diálogo, ao invés de concebê-la sempre a partir de um
olhar patologizante. A ansiedade revela-se em momentos em que as expectativas são
pessimistas ou catastróficas, o que muitas vezes ocorre apenas em nível de pensamento
(fantasia) sobre possibilidades de ameaças. Nesse sentido, sempre se teme um futuro
ou uma destruição de si ou do campo, ou há o risco de perder o sentido da própria
existência, o risco de sentir um vazio, uma solidão, um fim (BRITO, 2021).

Quando isso tudo gera sofrimento ao indivíduo ele sente isso de maneira muito
intensa e fatal, mas ainda assim escolhe a ansiedade como estratégia de defesa, pois
nem sempre se consegue, com facilidade, a harmonia entre o que vive e o que se pensa.
Assim, há seis critérios que podem guiar o olhar quando se pensa em ansiedade sob
uma perspectiva fenomenológica, a saber: a) relações interpessoais; b) temporalidade;
c) espacialidade; d) corporeidade; e) dar-se conta e; f) vida afetiva (BRITO, 2021).

Na construção das relações interpessoais a ansiedade pode aparecer através


da insegurança ou da necessidade de controle do contexto ou de si, o risco que não se
quer correr ocorre nestas áreas, gerando uma tensão no contato. Já no que diz respeito
à temporalidade, a dificuldade de ficar no momento presente, no aqui-e-agora é uma
característica central da ansiedade, onde o indivíduo está sempre a criar expectativas
imbuídas de fantasia que representam a tensão entre o agora e o depois (BRITO, 2021).
Este descompasso temporal também é uma característica da nossa cultura, onde há
uma preocupação constante com os horários, o relógio, o tempo cronológico, o que
pode dificultar ainda mais o estar no presente.

Com relação à espacialidade, a manifestação da ansiedade vai se revelar na


insegurança para ocupar determinados espaços, sobretudo os novos, gerando muita
tensão do sujeito no meio. Isso pode condicionar a forma como a pessoa se coloca e
caminha no ambiente, com passos curtos ou longos, a que distância se disponibiliza
para o outro (BRITO, 2021). A corporeidade é sentida de maneira especialmente tensa
na ansiedade, uma tensão muscular desproporcional, o que representa o excesso

166
de controle e a dificuldade em relaxar e descarregar o que for preciso para manter o
organismo em equilíbrio. Não obstante, muitas pessoas tem dificuldade em reconhecer
o que acontece com o próprio corpo, pois o corpo não é mais espontâneo, não há
contato com as próprias demandas e necessidades (BRITO, 2021).

O perfeccionismo e o medo da rejeição ou humilhação são características que


podem estar relacionadas à manifestação da ansiedade na conscientização de si do
sujeito, uma vez que o que alimenta a pessoa é o excesso de cobrança, que pode ou não
vir de uma exigência ambiental carregada de tensões, não permitido o erro, as dúvidas,
os desvios (BRITO, 2021). Na vida afetiva, a ansiedade pode se manifestar através da
dificuldade em reconhecer, confiar e se entregar aos sentimentos, aos ambientes e/
ou às relações, entre outras coisas, por não ter certeza de como serão recebidos pelo
outro. Sobre isso, devemos lembrar que todos os sentimentos são válidos, embora eles
também não sejam uma escolha; a escolha que fazemos é como vai ser nossa ação
em relação ao que sentimentos, por isso dizemos que ruim não é o sentimento, mas a
escolha em como lidar com este sentimento.

Além disso, um ponto para pensarmos a ansiedade sob a perspectiva


fenomenológica, é considerar os aspectos em volta da liberdade, pois estes dois tópicos
andam sempre lado-a-lado. Na ansiedade há sempre uma possibilidade de escolha e,
por isso mesmo, há um conflito interior ou um conflito no ambiente de forma que se
este conflito se delinear com cada vez maior confronto, então, mais ansiedade pode ser
gerada (BRITO, 2021). Esse conflito que surge a partir da possibilidade de uma escolha
também pode ser visto como uma novidade que surge em meio à rotina e pode trazer
novos ares para a existência do sujeito, mas isso implica, também, na ideia de segurança
que o indivíduo amarrou para si.

Por essas vias, é muito recorrente que, em casos de ansiedade, a pessoa tenda
a renunciar à própria liberdade a fim de minimizar os efeitos da ansiedade e, assim,
apegam-se às tendências de dogmas e moralidades, o que geralmente é pouco
autêntico e não corresponde à necessidade de suas próprias demandas (BRITO, 2021).
A isso soma-se a ideia de obediência acrítica, que é muito comum nos tempos que
correm, ligada às religiões ou autoritarismo. Contudo, etimologicamente, obedecer
está relacionado com ouvir com atenção o que o outro diz e, desse modo, é possível
colocarmos a obediência não apenas num lugar de opressão, mas também num lugar
que dialogue com a liberdade e dê mais recursos para lidar com a ansiedade. Nesse
sentido, uma obediência saudável oferece espaço para a desobediência.

Assim, aqueles que optam por abrir mão de sua autonomia, não escolhendo
o que sua existência necessita, mas terceirizando esta escolha em nome de regras
impostas por si ou pelo meio, tendem a experimentar a ansiedade que revela,
precisamente, esse conflito entre o que se deseja e o que se escolhe. Assim, abdicando
da autonomia, há três possibilidades geradoras de ansiedade patológica: o cálculo de
riscos, a conformidade cega ou a revolta (BRITO, 2021).

167
O primeiro, o cálculo de riscos é uma forma de desobedecer nas escuras, como
quem confia que ninguém estará olhando, por exemplo, dirigir acima da velocidade
permitida ou passar no sinal vermelho. Brito (2021) compartilha a experiência de um
atendimento a um cliente, um homem com 50 anos, que relatava que estava cansado
em esconder sua homossexualidade. Este homem era casado, pais de duas meninas,
gostava da sua família, mas se sentia sempre vivendo uma vida dupla, considerando
que já reconhecia onde e como sentia prazer, reconhecia qual era a demanda que fazia
sentido para a sua existência. Assim, esse cliente escolhia sempre a via de cálculo de
riscos que envolvia, neste caso, as traições, ida às saunas, utilização de aplicativos de
encontros, entre outros. Além disso, o que se percebeu no processo terapêutico foi o
fato de que esta atitude de cálculo de riscos ocorria em diversas áreas da sua vida,
numa postura de quem prefere agradar e obedecer a uma figura de autoridade que,
neste caso, era o seu pai.

A outra possibilidade geradora de ansiedade patológica é a conformidade


cega, quando a pessoa delega a responsabilidade por suas escolhas a outra pessoa
ou entidade, abdicando de si mesmo em detrimento de outro. E a terceira possiblidade
geradora de ansiedade é a revolta, que imobiliza novas formas de perceber e manejar
as escolhas e os conflitos internos. De todo modo, essas três formas de encarar a
ansiedade – cálculo dos riscos, conformidade cega e revolta – estão submersas em
regras e obediências do que se deveria fazer, do que se considera que é o certo fazer,
sem que se verifique as necessidades do próprio organismo e da própria existência.

Para a perspectiva que aqui estamos, a ansiedade vai representar um sinal de


que a pessoa precisa realizar alguma mudança em sua vida e isso, geralmente, inclui
alguma mudança no meio, a atualização dos valores, a transformação das relações. O
sofrimento, nesse sentido, é um sinal para chamar a atenção para a necessidade de
mudança que a pessoa resiste ou nem sequer toma consciência que de necessita. E
esse processo, deve ficar claro, não é rápido, não está dentro da lógica capitalista de
aceleração, mas pelo contrário, requer paciência, requer um lento caminhar.

Para o processo terapêutico o acesso aos afetos e sentimentos é algo


experienciado. Não há, nesse sentido, nem sentimento bom nem sentimento ruim,
dependemos sempre de como a situação é vivida para cada pessoa. Como dito
anteriormente, não escolhemos o que sentimos, mas escolhemos como direcionamos
esses sentimentos (BRITO, 2021). Os sentimentos existem em nós, nascem em nós e
invadem todas as instâncias, corpo, mente, tudo é um só na concepção fenomenológica.
Por isso mesmo, nos tempos atuais é difícil sentir, pois o sentimento é da ordem do
descontrole, do irracional, mobiliza todo o nosso corpo, enfim, gera ansiedades. Uma
pessoa que dispõe de saúde e exercesse sua autonomia e liberdade, consegue dar
vazão para seus sentimentos, dando-lhes a devida atenção e reconhecimento. O grito
dos sentimentos vai numa lógica onde ou nós aprendemos e crescemos com eles ou os
reprimimos. Reprimir os sentimentos está de acordo com a lógica capitalista atual que
necessita de controle e produtividade constantes.

168
Atualmente, a ansiedade patológica tem um lugar na classificação diagnóstica
dos transtornos e manuais psiquiátricos, sendo conhecida como um transtorno de
ansiedade. A prevalência dos transtornos de ansiedade tem crescido cada vez mais.
Atrelado a este dado, temos uma sociedade que tem muitas dificuldades em lidar com
o sofrimento, recorrendo ao uso medicamentoso para problemas que são contextuais
(SOUSA; WURLITZER; MOREIRA, 2021).

Assim, o caminho de uma ansiedade patológica para uma ansiedade saudável


passa pela noção de tempo que a pessoa tem vivenciado. Se estiver muito arraigada ao
tempo mensurável a qual Minkowski se referia e, com isso, não dá espaço para novas
criatividades, não se conecta com seu próprio tempo vivido. O trabalho com ansiedade
envolve, geralmente, um processo de presentificação, no sentido mesmo de estar no
momento presente concentrado com o fenômero que acontece no aqui e agora (BRITO,
2021). Assim, a partir da presentificação, também é potente que se tome consciência
de como se lida com os trânsitos entre os diferentes tempos e diferentes ritmos que
se sente e se transita pelo cotidiano, nas mais diferentes esferas. A ansiedade, quando
pensamos em termos de tempos, indica uma tensão na relação entre presente futuro.
Não obstante, a tensão é necessária para o crescimento, ou seja, ficar e sustentar o
desconforto faz parte do processo de crescimento.

Com isso, o que se estimula numa perspectiva fenomenológica em relação à


ansiedade, é o contato da pessoa com o mundo de maneira consciente. Consciência
de si, do seu ritmo, da sua pontecialidade, dos seus sentimentos, suas dores e seus
desconfortos. Nesse processo de consciência, também se descobre a coragem, pois a
ansiedade é uma busca pela coragem, de alguma maneira. É a coragem um ingrediente
secreto no processo de ansiedade patológica para a ansiedade saudável, pois é com ela
que se enfrenta o risco de se colocar em posição de mudança nas suas relações e no
seu ambiente.

169
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A compreensão de processos psicopatológicos a partir de um viés fenomenológico


decorre de uma insatisfação com os critérios nosológicos.

• A psicopatologia fenomenológica tem como característica essencial; a busca pela


compreensão do vivido psicopatológico e suas condições de possibilidade.

• Minkowski trabalha com a ideia do tempo no sentido de que, na atualidade e na


sociedade em que vivemos, é uma questão no nosso cotidiano.

• Na clínica importa mais o tempo vivido do que o tempo mensurável.

• Ter uma postura fenomenológica no psicodiagnóstico trata-se, exatamente, de


considerar as diferenças substanciais dos tempos vividos por cada ser.

• Arthur Tatossian apresenta a flexão entre sintoma e fenômeno na clínica


psicopatológica.

• A proposta de Tatossian se refere ao sentido de perceber o paciente de maneira


global e integral, por isso se valoriza o fenômeno em detrimento do sintoma.

• Arthur Totassian ofereceu grandes contribuições para o estudo da depressão,


onde ele faz apontamentos para a diferença entre um sofrimento normal ou uma
experiência melancólica.

• A melancolia deve ser caracterizada como um distúrbio do humor e não do sentimento.

• A ansiedade sempre vai revelar um ponto de tensão com o sistema de crenças e


valores do indivíduo, mas na vivência do ser humano são essas experiências que são
potenciais para o crescimento e desenvolvimento humano.

• A ansiedade apoia-se numa fantasia de futuro, este é o contato estabelecido, ou seja,


o contato vem a partir de um lugar ficcional.

170
AUTOATIVIDADE
1 Eugenè Minkowski é um dos principais nomes para pensarmos na psicopatologia
de base fenomenológica. Sobre os conceitos e abordagens deste autor, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Considera o tempo mensurável de maior relevância que o tempo vivido.


b) ( ) Dá ênfase e importância aos aspectos nosológicos da doença mental.
c) ( ) O tempo vivido caminha por vias subjetivas.
d) ( ) Devir e tempo mensurável andam lado a lado.

2 Arthur Tatossian, psiquiatra francês, oferece um olhar fenomenológico para o


processo de avaliação e diagnóstico em saúde mental a partir de uma perspectiva
crítica à clínica psiquiátrica tradicional. Sobre isso, assinale V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:

( ) A valorização do fenômeno em detrimento do sintoma é característica da clínica


tradicional.
( ) A partir do sintoma, é possível perceber o todo do paciente.
( ) Autonomia e liberdade estão sempre presentes no indivíduo, ainda que rebaixados.
( ) A leitura, a partir do soma, oferece um caráter de passividade do sujeito.

a) ( ) F – F – V – V.
b) ( ) F – V – V – V.
c) ( ) V – F – V – V.
d) ( ) V – V – V – V.

3 Ao estudarmos os transtornos de humor, nos deparamos com o conceito de melan-


colia desenvolvido por Arthur Tatossian. Descreva a melancolia nesta perspectiva.

4 A ansiedade é um dos temas mais recorrentes na atualidade, com demandas


frequentes no ambiente psicoterapêutico, apresentando tanto uma via saudável e
necessária ao nosso dia a dia como também seu aspecto neurótico que demanda
sofrimento do sujeito. Discorra sobre a diferença entre ansiedade normal e
ansiedade patológica.

171
5 A ansiedade relaciona-se com a ideia de liberdade e autonomia do sujeito e como ele
é capaz de manejá-las para alcançar as demandas que o organismo e o ambiente
exigem. Sobre a ansiedade, assinale apenas a opção correta:

a) ( ) Há sempre uma fantasia de futuro catastrófico.


b) ( ) É lugar comum que o sujeito com comportamento ansioso abra mão da própria
liberdade.
c) ( ) A ansiedade revela sempre a desobediência do sujeito.
d) ( ) Calcular riscos é um elemento que as pessoas com comportamento ansioso são
incapazes de fazer.

172
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
REPERCUSÕES DO CAPITALISMO NA
PRODUÇÃO DO SOFRIMENTO HUMANO

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, como já discutimos anteriormente, a fenomenologia versa-se
sobre conceitos como verdade, evidência, intuição, interpretação, representação,
dentre outros. Além disso, a fenomenologia compreende o sujeito como um ser-no-
mundo tanto em termos de corpo, como de sociedade e de cultura, portanto, é crítica
ao objetivismo e o cientificismo (BELLO, 2017). Desse modo, a fenomenologia já surge
como crítica ao modelo capitalista de se relacionar com o mundo, considerando que
este sustenta-se na razão e nos conhecimentos técnicos-científicos, prezando sempre
por uma objetividade.

Considera-se que a ciência, ao prezar pela razão em primeiro plano, com um


pensamento objetivo afasta-se de dimensões sensíveis que dizem respeito à experiência
real da consciência. Deste modo, a experiência do indivíduo consigo mesmo, com o
mundo e com os outros tem tons artificiais, uma vez que não tem sido mediado com
intencionalidade e sentido, mas com domínio da técnica (BORBA, 2015).

A psicologia, nesse sentido, nasce e cresce embebida desse cenário oriundo das
ciências naturais, enfatizando o viés físico e biológico dos fenômenos e alinhando-se,
num primeiro momento, ao método experimental elaborado em laboratórios, afastando-
se do mundo da vida, do sensível e da filosofia. Dito de outra forma, ciência que preza
pelo saber técnico-científico, sendo uma das bases do pensamento capitalista e a
psicologia, estando neste bojo de conhecimentos científicos à serviço do sistema.

A fenomenologia de Husserl, por outro lado, diz respeito a uma consciência


intencional e é isso que move o homem em suas múltiplas representações de linguagem,
seja verbal, corporal ou através de atitudes. Assim, pensar o capitalismo sob a égide da
fenomenologia implica em colocar holofotes críticos nos modos de se relacionar com o
mundo que este sistema induz, a saber: vínculos esvaziados, diálogos escassos, ênfase
em aspectos materiais, entre outros.

Além disso, como temos visto nesta unidade, a consideração e respeito ao


tempo vivido são máximas em fenomenologia e, no sistema capitalista, o indivíduo é
imerso a um tempo geral, mensurável e objetivo que descompassa e, no limite, aliena
suas próprias necessidades. Nesse contexto, trata-se de um sistema em vigor que age
diretamente na forma como experienciamos nosso cotidiano.

173
2 CAPITALISMO – REALISMO E FANTASIAS FIXADAS
O capitalismo é o sistema financeiro atual onde, em sua base, está a geração
e subsequente apropriação das mais diversas crises, seja ela econômica, social ou de
subjetividade em tempos de aceleração e excesso. Vivemos numa época de elogio ao
excesso, à razão, ao técnico-científico, ao artificializado, o que, em essência são ótimo
ingredientes para formar uma crise (BORBA, 2015). Não obstante, haja no capitalismo
um bojo de artifícios que geram tensões, há também caminhos onde o indivíduo tenha
a sensação de que está burlando esta crise, seja por meio de livros de autoajuda, seja
pelo uso de medicação, procurando acalmar suas angústias (BORBA, 2015). Em outras
palavras, o capitalismo cria condições para o sofrimento e consegue lucrar com meios
para burlar este sofrimento.

No capitalismo há sempre a manutenção dos lucros, sejam eles juros, perda de


valores, degradação do meio ambiente ou lucros de manipulação ideológica. Além disso,
o capitalismo também pode ser caracterizado por: “a) produção voltada para mercados;
b) relações monetárias; c) existência de grandes empresas; d) preocupação com o lucro
e acumulação de capital; e) livre iniciativa; f) relações assalariadas de produção e; g)
monetarização da vida humana” (BORBA, 2015, p. 95)

Em seu livro Realismo Capitalista, Mark Fisher (2020) aponta que, apesar desse
termo ter sua origem na pop art alemã, pelo contrário, agora se apresenta de forma muito
mais expansiva e ampla, que penetra em nosso cotidiano e em nossa subjetividade,
nossa socialização, nossa saúde e, no limite, também nosso adoecimento. O realismo
do capitalismo, na perspectiva de Fisher, diz respeito, na verdade, a uma sensação de
beco sem saída, onde não cabe nenhuma esperança e qualquer fiapo que surja pode ser
apenas uma representação de mais uma ilusão perigosa.

Para ilustrar seu pensamento e sustentar seus argumentos sobre o realismo


capitalista, o autor utiliza a analogia expressa em filmes, o que demonstra, exatamente,
essa linha entre o que é real e o que é construção de uma ficção compartilhada da nossa
sociedade atual. Nesse sentido, podemos pensar numa analogia para o capitalismo
a partir do filme A Coisa onde é representado por uma figura alienígena monstruosa,
gigante e plástica que suga para seu interior qualquer coisa que entre em contato.
Desse modo, a coisa, que é o capitalismo, também age, aderindo para si mesmo as
ideias mais controversas, fazendo caber as diferentes singularidades, fazendo piada e
construindo um cansaço diário com sua lógica própria.

174
Figura 3 – Capa do filme A Coisa

Fonte: https://www.itapemafm.com.br/filme-o-enigma-do-outro-mundo-ganhara-reboot-com-
aval-de-john-carpenter. Acesso em: 10 out. 2022.

Assim, o capitalismo, embora seja visto como essa figura quase de outro
planeta, acaba por se colocar na vida e nas subjetividades de maneira decisiva e alocar
para si mesmo os pensamentos que se dizem anticapitalistas. Desse modo, tal como
coloca Fisher (2020), é mais fácil acreditarmos no fim do mundo do que conceber o fim
do capitalismo, e, expressamente, isso representa como lidamos com esse sistema
que faz com que nossos horizontes de futuro estejam sempre comprometidos com a
lógica capitalista.

Podemos perceber a acepção do anticapitalismo no bojo do capitalismo,


por exemplo, no filme Wall-E, onde o planeta terra foi dizimado, ou seja, não há mais
vida humana no planeta. Esta dizimação foi em decorrência, justamente, das ações
do homem sobre a natureza em tempos de capitalismo, representada, no filme, por
uma megacorporação chamada Buy n Large. Os seres humanos, nesse contexto,
estão resididos em outro planeta, mas totalmente aparatados da ideia que temos
de humanidade hoje, pois não se locomoviam com o próprio corpo nem conheciam
a natureza do planeta terra, alimentando-se apenas de produtos feitos a partir de
experiências químicas.

175
Figura 4 – Wall-E

FONTE: https://www.disneyplus.com/pt-br/movies/wall-e/5G1wpZC2Lb6I. Acesso em: 10 out. 2022.

Este filme, mostrando, de maneira ao mesmo tempo crua e sátira, o fim da


humanidade no planeta terra, representa o termo do realismo capitalista apresentado
por Fisher (2020), pois convida o espectador a participar e, no limite, identificar-se
com aquilo, sentir raiva da megacorporação, repensar sobre seus modos de consumo
e, ainda assim, assistir isso num cinema enquanto bebe Coca-Cola. A isso chama-se
“interpassividade”, no sentido que o filme performa uma crítica ao capitalismo que nós
sentimos e reproduzimos e, assim, também nos sentimos autorizados a consumir e
viver de acordo com a lógica capitalista.

Com isso, percebemos o quanto o sistema capitalista em vigor abraça para si


toda e qualquer ideia que surja, mesmo que algumas dessas ideias sejam, em teoria, a
representação de uma anomalia ou uma problemática do sistema. Com relação a isso,
também entra o debate da saúde mental, uma vez que a quantidade de pessoas que
possuem um diagnóstico de alguma doença mental cresce vertiginosamente ao ponto
de que é naturalizado (FISHER, 2020). A resposta compulsória a este aumento de casos
de sofrimentos emocionais que são taxados e categorizados em termos de diagnósticos
de doenças e transtornos, é, entre outras coisas, a medicalização, pois isso representa
uma resposta ao corpo químico e biológico quando, muitas vezes, a demanda não parte
apenas do corpo enquanto máquina, mas enquanto um corpo que vive num sistema
que oprime, esmaga e estressa o cotidiano do trabalhador.

Desse modo, pensar em diagnósticos psiquiátricos, transtornos mentais,


sofrimentos emocionais, entre outros, a partir apenas da ótica da bioquimicalização é,
também, pensar nisso tudo fora de um eixo político e crítico. Assim, considerar apenas
a via química e biológica é individualizar um problema que é social, e isso gera grandes
vantagens para a lógica capitalista de, como no filme A Coisa, sugar para si mesmo o
que é sua antítese (FISHER, 2020). A vantagem, em termos de capitalismo recai sobre
o lucro que pode ser gerado e, nesse caso, as multinacionais farmacêuticas têm tido

176
expressivo crescimento e relevância na nossa forma de vida atual. Com uma perspectiva
crítica sobre o contexto atual das doenças e dos sofrimentos emocionais, não se duvida
de que haja uma instância neurológica, mas o que se questiona é a atribuição a isso
apenas como sua causa.

É óbvio que toda doença mental tem uma instância neurológica, mas
isso não diz nada sobre a sua causa. Se é verdade que a depressão
é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda resta a
ser explicado são as razões pelas quais indivíduos em específico
apresentam tais níveis, o que requereria uma explicação político-
social (FISHER, 2020, p. 36).

Este cenário desemboca num contexto social onde as subjetividades


vivem neste limbo de interpassividade ansiosa e agitada, com múltiplos estímulos a
todo momento e uma grande dificuldade em manter o foco. Nesse sentido, aqueles
diagnósticos mais comuns, atualmente, também representam algo no campo social
alimentado pelo capitalismo, uma vez que é um sistema que alimenta a aceleração
de processamentos, o excesso de novidade sem tempo de assimilação, o sentimento
constante de incertezas. Não é à toa, portanto, que os indivíduos se sintam também
cada vez mais esgotados, cansados e desestimulados em tentar dar conta de todas
as propostas visuais, auditivas e sensoriais que chegam a todo instante. Por exemplo,
é possível que, enquanto você esteja lendo agora, haja alguns outros vários estímulos
simultâneos como música, TV, ou mesmo a tela pela qual você está lendo.

3 CAPITALISMO BANALIZA OS AJUSTAMENTOS


O capitalismo, em parte devido aos seus excessos, não promove a reflexão da
pessoa consigo mesma, enfatizando as relações técnico-científicas e afastando-se de
seus modos genuínos de sentir sua essência e relacionar-se com o mundo e com os
outros (BORBA, 2015). A forma como se delineia o cenário político, social e econômico
de uma sociedade também revela as nuances de como a subjetividade dos sujeitos
pode se configurar. Assim, pensamos em termos de ajustamentos possíveis e cabíveis,
considerando sempre os contextos em que as situações estão alocadas. Uma forma de
ajustamento que se encaixa na lógica capitalista, que tudo suga e reaproveita, é a partir
da banalização de si (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014).

Por esses meios que o sujeito realiza a banalização de suas demandas,


isentando-se de responsabilidades que implicassem num comprometimento consigo e
com o social. Esta banalização tem como referência “a banalização do mal” utilizado pela
filósofa Hannah Arendt em relação ao julgamento do nazista Adolf Eichman ocorrido
em Jerusalém, em 1962. Eichman foi acusado de pertencer a um grupo de nazistas
organizados durante a Segunda Guerra Mundial que envolvia os crimes de genocídio
contra judeus e contra a humanidade.

177
O ponto diz respeito, justamente, ao fato de Adolf Eichman representar um
homem comum, burocrático e técnico que cumpre apenas suas funções que são
determinadas por ordens que vem de seus superiores. Não se tratava, portanto, de
homem monstruoso e maquiavélico, cheio de planos para como matar ou aniquilar
pessoas. Nesse sentido, não se tratava de estupidez, mas de irreflexão. O desejo de
ascensão profissional fazia com Eichman apenas cumprisse o que fosse ordenado sem
questionar e sem se responsabilizar.

DICA
A obra de Hannah Arendt intitulada “Eichmann em Jerusalém” acompanha o julgamento do
nazista, pós segunda guerra mundial e a autora realiza uma análise, para, além de atribuir
adjetivos pejorativos e colocar o indivíduo sob a marca do mal, contextualizar como mesmo
esta dita maldade foi banazalida em nome de burocracias do sistema, em nome de obedecer
às autoridades. Assim, ao passo de compreendermos os contextos em que surgem os
fenômenos, também devemos observar e estimular, em nós e nos outros, a responsabilidade
com o mundo.

Eichmann em Jerusalém

Fonte: https://www.seboterapia.com.br/eichmann-em-jerusalem-
hannah-arendt. Acesso em: 10 out. 2022.

O ponto está, portanto, na implicação que é responsabilizar-se pelas


consequências dos seus atos, ainda que eles estejam imbuídos desse outro social que
pode ser um outro capitalista que anestesia qualquer sentir. Um ajustamento banal
refere-se ao momento em que a pessoa aliena sua possibilidade e seus interessantes em
prol do consumo em massa amplamente disponível a todos nós. Nesse sentido, é como
se a pessoa, ela mesma aprisionada numa lógica capitalista, transforma a si própria num
objeto de consumo de massa (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014).
178
O capitalismo, em sua fase atual, capitalismo de consumo, propõe
ao homem contemporâneo dia a dia um mergulho nos “prazeres” da
técnica, da mercadoria e do progresso. Ao se permitir manter-se em
atitude ingênua e natural, o homem concorda com sua condição de
objeto do sistema e não de sujeito, permite-se transformar-se em
mercadoria e promove o deslocamento sentido da vida, dela própria,
para a pose e o acúmulo de mercadorias e objetos de consumo
(BORBA, 2015, p. 90).

Revela-se, assim, que o capitalismo é expert em crises em diversos níveis,


financeiro, político, de valores e de subjetividade. Assim, o indivíduo abre mão de si
para entregar-se a uma racionalidade técnica e ficar à mercê da cultura de massa,
“onde os objetos e as coisas banais passam a ter mais sentido que ele próprio. Ele
próprio é, no capitalismo de consumo, não mais um contemplador da mercadoria, mas
a própria mercadoria” (BORBA, 2015, p. 100). Este cenário configura-se numa pessoa
que se colocou em situação de sujeito-mercadoria, onde o sujeito não reconhece mais
seus próprios desejos, ambições e projetos de forma que apenas reproduz e repete
o que está massificado na sociedade. Com essa ausência de vontades, o que resta a
esses sujeitos é desfrutar de imagens produzidas para programas de TV, como reality
shows, aplicativos de relacionamento, uso de substâncias que alteram a consciência
como álcool, maconha, cocaína, entre outros, além de sites de pornografia (MÜLLER-
GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014).

Além disso, em nível de responsabilidade, também são sujeitos que esvaem


de projetos e lutas de natureza política e econômica, optando por promessas fáceis e
efêmeras, como jogos de azar e previsões místicas (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-
GRANZOTTO, 2014). Este cenário revela sujeitos apegados às rasas possibilidades de
ocupar um lugar que se sinta exercendo um lugar de cidadania e política, onde consiga
acessar e descobrir quais são seus próprios desejos e, a partir daí, remanejá-los de
maneira mais autêntica. Dito de outra forma, no caso desses ajustamentos banais
onde o indivíduo transforma a si próprio em gadgets inutilizados, não respondendo
nem manipulando e nem pedindo ajuda, apenas substituem a consciência de si por um
consumo supérfluo, como se a partir disso alcançassem uma ausência de sentimentos.

Não querem sentir nada: tomam analgésico para a dor, antidepres-


sivos para a tristeza, reguladores de humor para a alegria, indutores
de sono para o sono, cafeína para a vigília. Também não querem fazer
nada: alienam-se na sorte e no azar em vez de trabalhar, consomem
em vez de se divertir, usam jargões em vez de se comunicar, ves-
tem-se com tecnologia – fones de ouvido, telefones, games – para
se conectar a nada. Tampouco querem refletir em representações
sociais que lhes valessem identidades das quais se orgulhassem:
mostram-se em restos de semblante – piercing, silicones, múscu-
los “bombados”, tatuagens tênis de marca etc. – para não ser vistos;
ficam-se em imagens pelas quais não precisam responder, pois as
comunidades virtuais não exigem “opinião”, “debate”, “reflexão” de
seus seguidores. Acompanham a vida alheia sem o risco de ser inter-
pelados, já que a vida do outro retratado em álbuns e filmes postados
na internet não toma conhecimento de minha existência (MÜLLER-
-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014, p. 208).

179
Se, por um lado, é necessário que os indivíduos, em sociedade, responsabilizem-
se pelas consequências de seus atos, por outro lado, numa instância psicológica,
podemos pensar nesses atos como uma forma de resistência do sujeito frente à exigência
capitalista que está sempre a nos atormentar num convite incessante para que sejamos
sujeitos consumidores em detrimentos de nossos reais excitamentos, identificações,
identidades e desejos (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014).

Não obstante, esta banalização das próprias demandas pode ser percebida
como uma forma de ajustamento criador, considerando o que seria possível e o que
estaria disponível no contexto do sujeito sob a égide do outro capitalista (MÜLLER-
GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014). Nesse sentido, o sujeito encontra-se
sob uma espécie de pressão onde não consegue satisfazer as expectativas desse
outro capitalista, pois, neste caso, as demandas jamais cessam e, ao mesmo tempo,
também o indivíduo não dá conta de acessar quais são os seus próprios desejos, uma
vez que está “atolado” pelas demandas frequêntes e efêmeras impostas pelo sistema
capitalista (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2014). É por isso que essas
banalidades das demandas podem servir como forma de resistência, uma vez que a
possibilidade encontrada é a fuga do conflito, é a alienação a partir do consumo de
massa, transformando a si mesmo em mercadoria também.

Se a partir de uma perspectiva fenomenológica, existencial, que considera o


campo, esta banalização de si, esta produção de si mesmo em mercadoria pode ser um
ajustamento criador, então, não se pensa que o caminho seja retirar todo o objeto de
alienação banal do indivíduo que pode ser uso de drogas legais ou ilegais, vídeo game,
filmes e séries, vícios, misticismo etc. Isso deve ser considerando como uma resposta do
indivíduo ao campo, como o que o indivíduo considerou que era possível para ajustar-
se no meio e obter algum tipo de satisfação do campo. O que ocorre, porém, é que
satisfação se torna cada vez mais escassa.

Nesses casos, uma forma de manejo é a redução de danos, pois se trabalha,


justamente, respeitando os limites da pessoa que está sendo atendida, e pode mobilizar
alternativas de se colocar neste mundo atual e exigente em termos de subjetividade.
Por esta perspectiva, a redução de danos busca o enfoque sobre os motivos que
aumentam a dependência do sujeito, compreender seu contexto, seu sofrimento e sua
solidão. Assim, pensa-se a partir do sentido de que a busca pela banalidade/droga é
também uma busca pela sobrevivência possível em determinados contextos, por isso,
não necessariamente objetiva-se, em todos os casos, indiscriminadamente, sobre a
suspensão do uso (SOUZA, 2019).

Desse modo, a partir das estratégias de redução de danos, há uma via contrária
às linhas terapêuticas que exigem a abstinência como única forma de tratamento, pois
esta perspectiva pode obliterar a compreensão do terapeuta sobre o contexto do sujeito
e pode, desde o início, impor ao paciente a retirada da única estratégia que ele conseguiu
encontrar em meio ao caos (SOUZA, 2019). Assim, no caso de banalizações relacionadas a

180
transtornos alimentares ou formações disruptivas, a estratégia de intervenção do clínico
pode consistir em encorajar esse sujeito a lidar com suas demandas reais. Por exemplo,
“[...] a anorexia (em que o sujeito despreza a família, a comunidade e a sociedade sem
precisar se posicionar) e a bulimia (em que o sujeito se posiciona de maneira tal que
ninguém possa saber)” podem ser trabalhadas no sentido do sujeito autorizar-se a sentir
e expressar seus afetos contra esse “outro social” que muitas vezes é representado por
alguém da família.

É por isso que, no atendimento a anoréxicos, por exemplo, costuma


dar muito resultado apartá-los dos acompanhantes (em geral paren-
tes cuidadores), autorizando a raiva que possa haver contra estes.
Na bulimia, da mesma forma, costumam ter êxito as intervenções em
que tentamos deslocar para o domínio da palavra a violência contida
no ato de provocação do vômito (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-
-GRANZOTTO, 2014, p. 215).

A autonomia, a responsabilidade, o lugar de protagonista na história da própria


vida devem ser aspectos considerados nos ajustamentos banais. Por estas vias, pode
ser resgatado e revisto, nos ajustamentos banais, o modo como o sujeito se revolta,
se indigna, cria, se coloca e se reconhece no aqui e no agora (MÜLLER-GRANZOTTO;
MÜLLER-GRANZOTTO, 2014). Devem ser aspectos estimulados no processo terapêutico.

É preciso que haja sensibilidade para estar e acompanhar os sujeitos em seus


sofrimentos políticos e antropológicos, em situações de franca vulnerabilidade social,
emocional e psíquica. A partir do sensível e da sincera travessia, pode ser possível
encontrar vias e brechas para que o sujeito reestabeleça sua autonomia e sua capacidade
de ser e existir no mundo para além da banalização de suas próprias demandas.

4 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: SOMOS HUMANOS


OU ROBÔS?
Acadêmico, você já ouviu falar em medicalização da vida? Ou em medicalização
escolar? A partir de uma perspectiva da ciência médica, a medicalização ocorre devido a
um processo de saúde-doença, onde o indivíduo é o centro e privilegia-se uma abordagem
biológica. No entanto, este termo tem sido cunhado para designar um processo que tem
ocorrido de forma cada vez mais intensa que consiste na transformação de questões
sociais e políticas em questões médicas, dessa forma, procura-se causas e explicações
a partir de uma perspectiva biológica, orgânica ou “natural” (COLLARES; MOYSÉS, 1994).
Nesse sentido, compreende-se, em partes, porque a medicalização sempre parte também
de problemas apresentados como se fossem individuais e essencialmente orgânicos.

A medicalização diz respeito a uma produção de lugares, um dispositivo de


funcionamento que produz determinados tipos de subjetividades que estão ancoradas
em discursos científicos. Nesse cenário, a escola é um ambiente propício e fértil tanto para

181
a produção de discursos científicos quando para a abertura de um espaço que produz
subjetividades, onde os sujeitos são realocados para determinadas formas dependendo
da forma como expressa seu comportamento, estando sob a égide da “anormalidade”.

A terminologia Medicalização da vida foi inicialmente utilizada por


Ivan Illich, em seu livro A Expropriação da Saúde para descrever a
inserção crescente dos saberes médicos, e seu aparato denominado
de progresso científico, em campos da vida individual que passam a
ser submetidos a explicações e intervenções médicas. Ivan Illich dis-
cute como uma mentalidade médica vai se alastrando e influenciando
todas as relações sociais; esse processo ele chama de medicalização
da vida. Ao longo de sua obra, descreve alguns dos sintomas sociais
definidos como sendo consequências do processo de medicalização
da vida. Illich interpreta esses sintomas como males típicos de uma
civilização superindustrializada e, ainda, afirma que essa ampla inter-
venção médica na vida cotidiana acaba por causar muitos prejuízos
à sociedade, sendo um deles o que o autor chama de iatrogênese
(iatros – médico; genesis – origem). Esse termo refere-se à epidemia
de enfermidades produzidas pela intervenção médica. Enfermidades
que não teriam aparecido se não houvesse aplicação de tratamentos
recomendados pelos médicos. Trata-se de um processo complexo de
ser identificado, mas que evoca a circularidade produtora que con-
grega o ato de cuidar, o uso dos instrumentos do cuidado – medica-
ção ou palavra – e a produção de novas fragilidades associadas ao
adoecimento, como a resistência corporal a determinados tratamen-
tos ou a identificação patológica em determinadas práticas sociais
(CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015 p. 1083).

Numa via similar, embora não-dicotômica, a medicalização da vida está atrelada


à produção de saberes e de verdades numa sociedade onde diversas esferas sociais,
políticas e práticas sociais do senso comum são embasadas nesses discursos de “verdade”,
de forma que o corpo e a vida seguem disciplinados e governados (MOYSÉS; COLLARES,
2013). Nesse ponto, vale ressaltar que quando pensamos numa “medicalização da vida”
ou em uma “medicalização da vida escolar” não estamos atribuindo à intervenção de
fármacos e psicofármacos para curar determinadas doenças; pelo contrário, trata-se
da intervenção medicamentosa/química para “regular” e “ajustar” o que se considera
fora de ordem ou das expectativas impostas. Assim, os discursos médicos e científicos
difundidos como verdade encontram eco nas subjetividades dos indivíduos e nas práticas
sociais, configurando uma sociedade que é controlada a partir da via medicamentosa.

ATENÇÃO
Acadêmico, você sabe a diferença entre medicalização e medicação? Quando
criticamos a ideia de medicalização nos referimentos ao uso em excesso de
algumas substâncias, sobretudo psicofármacos, para sanar dores emocionais
que não são reconhecidas como um quadro de alguma doença. E a medicação
trata-se do procedimento necessário a quem precisa desta utilização devido
aos sintomas apresentados, ou seja, medicar é necessário, medicalização é o
excessivo e patologizante.

182
Nesse interim, diversas áreas contribuem para a difusão dessas práticas,
além da medicina, como a psiquiatria, a psicologia e a pedagogia, que produzem
conhecimentos e práticas que revelam um julgamento moral sobre modos de ser e de
aprender que estejam aquém daqueles determinados por manuais e classificações, ou
seja, é, efetivamente, o modo como o indivíduo se expressa, se apresenta, se veste,
anda, com quem anda, como fala e como se comporta, além da forma como se dá
seu processo de aprendizagem, como constrói relações, qual o seu ritmo e quais as
suas potencialidades, que está em jogo. Não se trata, portanto, apenas de atributos ou
explicações hereditárias ou genéticas, mas numa via contrária, busca-se explicações
de ordens biológicas para legitimar um discurso e uma prática que está voltada,
essencialmente, para como o sujeito se apresenta e se relaciona com o mundo.

Com a ideia de medicalização sob uma perspectiva individual, as questões


sociais acabam por ser omitidas e, na prática, medicalizadas de forma cada vez mais
crescente nas sociedades ocidentais. Com isso, há um reducionismo biológico, pois se
considera que questões sociais podem ser explicadas, reduzidas e eliminadas a partir
de manejos de questões e características individuais. Não obstante, as circunstâncias
sociais, econômicas, políticas, históricas e geográficas são deixadas para segundo
plano, como se influenciassem o mínimo na vida das pessoas e o indivíduo passa a ser
responsabilizado por sua condição, per si, sem a devida consideração por seu contexto,
sendo o contexto sociopolítico eliminado do jogo de avaliações e análises dos casos.

Essa visão mecânica e biológica de compreender a vida no mundo e na escola


está carregada de um sistema de preconceitos que, em grande medida, naturalizamos.
Nesse bojo de concepções, a Educação não fica de fora e vem sendo medicalizada em
escala crescente, dando ênfase para o fracasso escolar e a não-aprendizagem, que
passam a ser consideradas sob uma ótica individualizante.

De que maneira ocorre a patologização do fracasso escolar?


Basicamente sob duas vertentes: • O fracasso escolar seria uma
consequência da desnutrição; obviamente, essa apresentação só
ocorre para as crianças da classe trabalhadora. • O fracasso escolar
seria o resultado da existência de disfunções neurológicas, incluindo-
se aqui a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os distúrbios
de aprendizagem, a dislexia; inicialmente essa forma restringia-
se às crianças das classes média e alta, porém, atualmente, está
disseminada inclusive entre a classe trabalhadora, criando uma
situação no mínimo esdrúxula - uma mesma criança ser rotulada
de deficiente mental por desnutrição e de disléxica (COLLARES;
MOYSÉS, 1994, p. 27).

O problema do excesso de medicalização tem sido uma preocupação que tem


tomado diferentes profissionais da área da saúde e da saúde mental. O Conselho Federal
de Psicologia (2012) lançou uma nota, assinada por diferentes entidades políticas, para
que servisse de subsídio para a companha “Não à Medicalização da Vida”. Nesta nota,
a ideia é que se critique o uso compulsório da medicação para tratar de problemas que
nem sequer são patologias e que muitas vezes não são também um problema, mas um
sentimento, um desconforto, uma ansiedade, entre outros.
183
Em um ponto mais amplo, a medicalização da vida cotidiana pode transformar
sensações e sentimentos em sintomas de doença, como sinais de insônia e tristeza
serem caracterizados como distúrbios ou depressão (MEIRA, 2012). Não obstante, para
uma avalanche de diagnósticos surge, também, uma avalanche de tratamentos que
podem prejudicar a saúde mental e física dos indivíduos. Certamente, esta situação,
onde os medicamentos ganham vez e são cada vez mais legitimados no ambiente
escolar, oferece vantagens às empresas farmacêuticas que estão adentrando, cada vez
mais, no âmbito da doença mental.

Outro problema do excesso de medicalização diz respeito a uma idealização,


uma fantasia, de que a resolução dos problemas cotidianos pode ser alcançada, por
inteiro, por meio de uma intervenção medicamentosa (MEIRA, 2012). Certamente
devemos considerar os casos que os medicamentos são necessários, mas quando
se trata de saúde mental, devemos sempre lembrar que as causas e as intervenções
não devem ser apenas orgânicas, pois estão sempre localizadas em um contexto mais
amplo que influencia a continuidade de determinados “problemas” ou dificuldades.

DICA
O alienista

Fonte: https://www.adegustadora.com.br/produtos/produtos/
livros/oalienista/x4y8d8wbz312.jpg. Acesso em: 10 out. 2022.

184
O livro “O Alienista”, de Machado de Assis (2005), conta a história do Dr. Simão Bacamarte
que passou estudar as ciências médica, “o recanto psíquico, o exame de patologia cerebal”
(p.1), fundou na cidade de Itaguaí, a Casa Verde, para o “recolhimento dos loucos”. O Dr.
Bacamarte chegou ao tal ponto de suas análises que em uma data altura da história mais da
metade da população da cidade estava enclausurada por não estar de acordo com algum
padrão estabelecido pelo próprio médico ou pelos manuais que ele seguia. Em um tom
crítico, a história coloca em questão a medicalização, a patologização, o internamento e as
teorias cientificistas. Em um afã de buscar uma personalidade sem nenhum desvio, baseado
num ideal de perfeição, o Dr. Bacamarte descobriu que esta seria uma impossibilidade e que
talvez, portanto, o louco fosse ele próprio.

Assim, o medicamento, muitas vezes, se apresenta como um “salvador” das


situações e pode significar, na verdade, uma espécie de controle dos corpos atrelado a
um projeto neoliberal. Nesse sentido, concordamos com Meira (2012, p. 8) quando diz:
“Não se trata, obviamente, de criticar a medicação de doenças, nem de negar as bases
biológicas do comporta­mento humano. O que se defende é uma firme contraposi­ção
em relação às tentativas de se transformar problemas de viver em sintomas de doenças
ou de se explicar a sub­jetividade humana pela via estrita dos aspectos orgânicos.”

Com isso, o Dr. Bacamarte, do Alienista de Machado de Assis, nos deixa um


grande aprendizado, que não há necessidade de colocar tudo sempre a partir de uma
única norma, e nos deixa atentos em relação a nossa prática para que não façamos da
escola a Casa Verde, de Itaguaí.

A perspectiva de uma medicalização da vida escolar relaciona aspectos


que não estão adequados à norma estabelecida pela escola a uma causa orgânica.
Dito de outra forma, classifica-se os indivíduos que não alcançam padrões e regras
estabelecidos socialmente como “doentes” ou “transtornados” sem que se avalie com
cuidado as próprias normas e exigências estabelecidas, a priori, e pretensamente
uniforme para todos, negando, assim, as possibilidades de alteridade, singularidade e
originalidade que todos carregamos. Desse modo, “grandes questões políticas e sociais
são artificialmente transformadas em um problema do indivíduo” (CHRISTOFARI;
FREITAS; BAPTISTA, 2015, p. 1087).

Com esse discurso, ao perceber as crianças como incapazes de aprender


e atribuir esse fato a causas apenas biológicas, o lado pedagógico e criativo das
intervenções para a aprendizagem fica em detrimento de uma intervenção recheada
de saberes médicos (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015). Este é o meio que, em
nossa sociedade, patologiza-se aqueles que a escola não compreende ou não alcança
e, além disto, os culpabiliza.

As doenças da não-aprendizagem criam uma demanda dirigida


aos serviços de saúde, às intervenções específicas; nem sempre
tais intervenções são propostas com o intuito de potencializar
a capacidade dos alunos, mas, em muitos casos, apenas visam
transformar o aluno produzido pelo discurso da anormalidade

185
em um sujeito mais próximo possível da norma. O processo de
medicalização acalma conflitos. Se o suposto problema está no
aluno, ninguém tem culpa da sua doença. O discurso direcionado ao
aluno comumente sintetiza: não é caso para o pedagógico, mas para
a saúde (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015, p. 1088).

No ambiente educacional, a medicalização pode ser usada como uma produção


social de doenças que busca explicar questões de não-aprendizagem em alunos que
não se enquadram ao que foi previamente padronizado de acordo com sua faixa etária,
gênero e classe. Para o exemplo de uma criança que não leu e não sabe escrever, a
tendência geral é procurar explicações e causas orgânicas até que se encontre um
diagnóstico e a intervenção fica baseada no diagnóstico e no acompanhamento
terapêutico (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015). Além disso, geralmente os
profissionais da saúde e da educação consideram irrelevante a participação da escola
para uma intervenção pedagógica, afinal, nessa lógica, o problema é orgânico, portanto,
individual e isolado.

Em pesquisa realizada com profissionais da educação e da saúde, Collares e


Moysés (1994) investigaram sobre as causas do fracasso escolar e constataram que
todos os entrevistados, independentemente da área de atuação, relacionavam o fracasso
escolar às crianças e às famílias que, historicamente, o fracasso escolar foi construído
em cima de normas e réguas estabelecidas que deixam à margem os indivíduos que
não têm acesso a bens e materiais.

Ainda na mesma investigação, as autoras constataram que todos os entrevistados


consideravam que o fracasso e a dificuldade de aprender estavam localizados em
fatores biológicos. O fato de as crianças terem esses “problemas biológicos” é a causa
das dificuldades no sistema educacional brasileiro, como desnutrição e disfunção
neurológica. Alguns trechos da fala dos profissionais entrevistados na pesquisa de
Collares e Moysés (1994, p. 64):

“Hiperativa é criança com problema neurológico. Não pára, nada a


satisfaz, distraídas, dispersas, incomodam ...”
“Dislexia é uma doença neurológica, que se caracteriza pela grande
dificuldade em aprender a ler e escrever.”
“As crianças não conhecem, não discriminam, não têm sequência de
ideias, não têm coordenação motora.”
“A hiperatividade é uma doença neurológica que dificulta a
aprendizagem.”

Nesse sentido, a vulgarização e a naturalização da situação das crianças é


biologizada de forma que os profissionais apresentam um pensamento cristalizado
baseado em premissas recheadas de preconceito. Por esta via, as autoras Collares e
Moysés (1994) discutem sobre a legitimidade dos instrumentos padronizados para avaliar
os conhecimentos e as habilidades das crianças. Visto que, os testes padronizados
apresentam uma crença na possibilidade de avaliar o potencial intelectual da pessoa
baseada no que ela já deve fazer, já deve ter aprendido.

186
Este método desconsidera que uma atividade é ensinada e transmitida por um
grupo social e isso representa uma série de valores históricos e políticos de determinado
grupo, o que é essencialmente um valor de classe. Por esta via, “ao assumir que as
expressões das classes sociais privilegiadas são as superiores, as corretas, o que se
está assumindo é uma determinada concepção de sociedade e de homem, fundada
na desigualdade e no poder, em que alguns homens são superiores a outros, algumas
raças são superiores a outras” (MOYSÉS, COLLARES, 2013, p. 65).

Uma lógica não medicalizante e não patologizante da aprendizagem consideraria


como fundamental aprender a olhar, olhar a criança, perceber o que ela tem, o que ela
gosta e o que ela pode. Assim, sem um instrumento já previamente definido, sem uma
linha de chegada determinada a priori, é possível perceber, com muito mais amplitude,
as expressões que a criança já adquiriu. Esta perspectiva inverte o jogo de diagnóstico,
pois não é o aprendente quem tem que responder o que profissional quer, mas é o
profissional que deve se ater às expressões, aos gostos e aos valores das crianças.

Ao invés de buscar o defeito, a carência da criança, o olhar procura


o que ela já sabe, o que tem, o que pode aprender a partir daí. O
profissional tenta, mais que tudo, encontrar o prisma pelo qual a
criança olha o mundo, para ajustar seu próprio olhar. Sabendo que
existem limites para seu olhar, que está sujeito a erros, pois não
está lidando com verdades absolutas. Esta proposta de avaliação
tem um requisito essencial: profissionais mais competentes, com
conhecimentos mais sólidos e profundos sobre o desenvolvimento
da criança, sobre o conceito de normalidade, profissionais que não se
satisfaçam com visões parciais, estanques, que não tenham medo
de suas próprias angústias (COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 68).

A via de ensinar e aprender sem que haja de antemão um ponto de chegada, um


pódio limite. Ou, ao contrário, um modo de aprender que não precise ser demarcado por
linhas específicas que prendem as possibilidades da criança em criar e imaginar outras
coisas, experienciar outros modos de maturar informações. Quando olhamos a partir
da alteridade, não da falta, não da ausência, não da doença, vemos mais necessidade
e mais potência num encontro do que, muitas vezes, na necessidade de intervenção
medicamentosa para casos de problemas comportamentais.

Nesse sentido, o Brasil é um dos países que mais apresenta diagnóstico de


TDAH em crianças e, também nessa linha, é o segundo maior consumidor mundial de
metildenidato (Ritalina, Concerta); a venda destes medicamentos tem crescido cada
vez mais em “ritmo assombroso: 71.000 caixas em 2000; 739.000 em 2004; 1.147.000
em 2008; em 2010 as vendas passaram de 2 milhões de caixas” (MOYSÉS; COLLARES,
2013 p. 68).

Um fato interessante sobre esses medicamentos e sobre as anfetaminas


é que sua ação é muito semelhante ao da cocaína, sendo, portanto, um poderoso
psicoestimulante. A ação é semelhante, pois a estrutura química vai pelo mesmo
caminho, ou seja, de aumentar os níveis de dopamina no cérebro (MOYSÉS; COLLARES,

187
2013). A dopamina é um neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Assim,
este medicamento “libera” índices muito altos de dopamina de uma única vez por efeito
do medicamento, podendo ocorrer, por isso, uma dessensibilização em situações do
cotidiano que poderiam gerar prazer (MOYSÉS; COLLARES, 2013), como interações
sociais, afetos e, no caso das crianças, brincadeiras. Neste quadro, a sensação de bem-
estar e prazer está condicionada ao efeito do medicamento em um quadro de transtorno
que nem mesmo apresenta uma etiologia.

Como efeito colateral do uso sistemático de metilfenitado, pode ocorrer


alterações no desenvolvimento do cérebro (MOYSÉS; COLLARES, 2013). Assim, outro
dado curioso diz respeito ao fato de que, nos manuais que detalham as característica do
indivíduo com TDAH, aborda-se sobre a possibilidade de adicção por parte dos indivíduos
acometidos desse mal; contudo, o uso prolongado de um medicamento que pode alterar
o desenvolvimento do cérebro devido a excessiva (e às vezes desnecessária) liberação
de dopamina implica, também, na busca constante pelo prazer gerado a partir de altas
descargas de dopamina. Nesse sentido, se a medicação de metilfenitado é retirada aos
18 anos, em muitos casos, o indivíduo pode recorrer a outras substâncias que gerem um
efeito semelhante daquele gerado em decorrência da intervenção medicamentado que
foi resultado de um diagnóstico com base em comportamentos fora da norma.

As reações adversas do metilfenidato são inúmeras e bastante


graves, ao contrário do que se costumam afirmar os que defendem
seu uso. Afetam todos os aparelhos e sistemas do corpo humano,
com destaque para o sistema nervoso central (psicose, alucinações,
agitação, convulsão, insônia etc.); sistema cardiovascular (arritmia,
hipertensão, taquicardia etc.); e o sistema endócrino-metabólico
(alteração dos hormônios controlados pela neurohipósise) (MOYSÉS;
COLLARES, 2013, p. 75).

Somado a esses quadros de efeito colateral, há alguns autores que também


questionam sobre o quadro de TDAH em si, por não apresentar dados etiológicos
consistentes e por se basear, sobretudo, em comportamentos inadequados e, por
isso mesmo, a crítica quanto ao uso desses medicamentos, sobretudo em crianças,
é ainda mais intensa. Visto que, se não há de fato uma evidência neurológica para
esses casos, então o tratamento medicamentoso é essencialmente para controle do
comportamento. Alguns respondem a essas críticas, contudo, alegando que todos
os medicamentos apresentarão efeitos colaterais e que o uso de metilfenitado seria
justificável considerando o bom desempenho dos indivíduos após utilizá-lo.

Contudo, em pesquisa realizada, em 2011, pela Agency For Helthare Research


and Quality (AHRQ), do Departamento of Health and Human Service, investigou-
se sobre os resultados de diferentes pesquisas sobre os tratamentos de crianças e
adultos com o diagnóstico de TDAH (MOYSÉS; COLLARES, 2013). Este levantamento de
dados sobre o tratamento de TDAH tratou-se de uma metanálise, que é uma pesquisa
que estuda outras pesquisas, como um levantamento do campo para compreender

188
como a área está. Os pesquisadores analisaram cerca de dez mil pesquisas sobre
o tratamento de TDAH e destas apenas doze (12) foram de fato somada ao corpus,
pois todas as outras não apresentavam dados científicos coerentes ou satisfatórios
(MOYSÉS; COLLARES 2013).

Transformar em doenças mentais sonhos, utopias, devaneios, ques-


tionamentos, discordâncias; abortá-los com substância psicoativas
pode resultar em impossibilidades de futuro diferente. Podemos es-
tar legando a nossos filhos e netos, como bem disse Victor Guerra, o
genocídio do futuro (MOYSÉS; COLLARES, 2013, p. 19).

Assim, devemos refletir sobre nossas práticas, para que não sejam tão
apressadamente classificatórias nem busquem tão facilmente causas e explicações
necessariamente biológicas para os modos de ser que talvez não compreendamos. A
aprendizagem e o comportamento podem se apresentar e se desenvolver de formas
vastamente diversas e complexas. Com um cenário de excesso de diagnósticos que
limitam tanto a aprendizagem quanto o comportamento, e apenas um modo de ser e
desenvolver-se, as crianças e os adolescentes são especialmente afetados, justamente,
por comporem uma fase da vida onde, nas sociedades contemporâneas, se busca, cada
vez mais, padronizar, normatizar, homogeneizar e patologizar.

Além disso, essa forma compulsória de tratar os diferentes afetos que sentimos,
no limite, também despolitiza as discussões necessárias no bojo do capitalismo que
tende a racionalizar e a biologizar problemas que são, em essência, sociais. Desse modo,
quando se promete ao indivíduo um estado de harmonia e equilíbrio constantes, apenas
tranquilidade e nunca conflito, apenas controle e organização e nunca imprevisto, há
uma desumanização, há uma aproximação com a ideia e a expectativa que temos em
relação aos robôs (BELMINO, 2020). “Se, em algum passado recente, existiam literaturas
nas quais os robôs queriam ter sentimentos e se tornar humanos, hoje os humanos
querem seus sentimentos mais adequadamente adaptados” (BELMINO, 2020, p. 231).

Sempre precisamos localizar a análise que fazemos ao contexto empregado e, no


nosso caso da medicalização da vida, há um lucro mercadológico que envolve indústrias
farmacêuticas, as quais têm um nicho cada vez mais ampliado para o tratamento de
doenças e transtornos mentais (BELMINO, 2020). Também os documentos orientativos
e normativos das práticas em saúde mental revelam a problemática dos diagnósticos
e medicalização compulsórios. Isso dá-se pois, de acordo com Belmino (2020, p. 231),
o Royal London College of Psychiatric apontou que desde a aplicação do DSM-IV tem-
se produzido “pelo menos três epidemias: 1) o Transtorno Bipolar; 2) o transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade; e 3) o Autismo Infantil”. Esta lógica de se produzir
mais diagnósticos acarreta um lucro maior, necessário para “abastecer” e ministrar
psicofármacos a mais e mais pessoas.

189
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Pensar o capitalismo sob a égide da fenomenologia implica em colocar holofotes


críticos nos modos de se relacionar com o mundo que esse sistema induz, a saber:
vínculos esvaziados, diálogos escassos, ênfase em aspectos materiais, entre outros.

• O capitalismo é o sistema financeiro atual onde, em sua base, está a geração e


subsequente apropriação das mais diversas crises, seja ela econômica, social ou de
subjetividade, em tempos de aceleração e excesso.

• Aqueles diagnósticos mais comuns, atualmente, também representam algo no


campo social alimentado pelo capitalismo, o excesso de novidade sem tempo de
assimilação, o sentimento constante de incertezas.

• Uma forma de ajustamento que se encaixa na lógica capitalista que tudo suga e
reaproveita é a partir da banalização de si.

• Que o capitalismo é expert em crises em diversos níveis, financeiro, político, de valores


e de subjetividade.

• Banalização das próprias demandas pode ser percebida como uma forma de
ajustamento criador.

• Essas banalidades das demandas podem servir como forma de resistência.

• A medicalização diz respeito a uma produção de lugares, um dispositivo de


funcionamento que produz determinados tipos de subjetividades, que estão
ancoradas em discursos científicos.

190
AUTOATIVIDADE
1 O livro “O Alienista”, de Machado de Assis, conta a história do Dr. Bacamarte, que
interna mais de cinquenta por cento da população da cidade, pois percebia em todos
um nível de desvio de personalidade, considerando todos anormais. Esta perspectiva
de compreender a vida e a saúde está relacionada com:

a) ( ) Percepções de progresso e evolução que normatizam os comportamentos.


b) ( ) Ideias que surgiram nos anos 2000 sobre testes de personalidade.
c) ( ) Ideologias descontruídas sobre o saber e o parecer médico.
d) ( ) Não existe relação entre a obra do autor e os contextos sociais.

2 Ivan Illich, no livro A Expropriação da Saúde foi quem cunhou o termo “medicalização
da vida” onde, nesta mesma obra, descreve alguns exemplos de consequência da
medicalização da vida. Sobre o tema, classifique V para as sentenças verdadeiras e F
para as falsas:

( ) A medicalização da vida surgiu como crítica ao progresso científico.


( ) A medicalização da vida é comum em civilizações superindustrializadas.
( ) A medicalização da vida não pode causar nenhum dano aos indivíduos e à sociedade.
( ) A medicalização da vida é o pensamento médico em todas as outras esferas sociais.

Assinale apenas a opção CORRETA:


a) ( ) F – V – F – V.
b) ( ) V – F - V – F.
c) ( ) F – F – V – V.
d) ( ) V – V – F – F.

3 Os ajustamentos banais correspondem à realidade atual, onde as pessoas se vinculam


não com o próprio desejo, mas com uma espécie de alienação de si. Sobre o exposto,
assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Os ajustamentos banais são baseados na ideia de Banalidade do Mal de Simone


de Beauvoir.
b) ( ) Os ajustamentos banais representam o indivíduo como mercadoria.
c) ( ) Ampliação de awareness implica num ajustamento banal.
d) ( ) Fazer tatuagens ou ir à academia são formas de desbanalizar o sofrimento.

191
4 O Transtorno de Déficit de Atenção / Hiperatividade tem sido um dos mais
diagnosticados no brasil na última década. Para o TDAH há o tratamento
farmacológico que, predominantemente, trata-se do metilfenidato. Descreva sobre
este medicamento, efeitos, tempo de duração, para que é utilizado e quais as
problemáticas em volta do seu uso.

5 O Realismo Capitalista, de Mark Fisher, apresenta algumas metáforas e ideias para


compreendermos a configuração e o padrão que o capitalismo alcançou hoje em dia a
tal ponto que é mais fácil considerar a possibilidade do fim do mundo do que o fim do
capitalismo. Relacione o capitalismo com o filme A Coisa e com o filme Wall-E.

192
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E GRUPOS
SOCIAIS ESPECÍFICOS: OLHARES
INTERSECCIONAIS

1 INTRODUÇÃO
Para a construção de uma práxis psicológica crítica que compreende a
complexidade das relações sociais e seus impactos na produção do sofrimento
psicológico e no desenvolvimento de transtornos mentais, faz-se necessário uma leitura
da realidade social apoiada em diferentes áreas do conhecimento, para ultrapassar uma
postura biomédica do sofrimento psicológico e adentrar uma perspectiva holística e
que compreende o ser humano em sua totalidade, conforme proposto pelas teorias
alicerçadas nas abordagens fenomenológicas existenciais humanistas.

Uma atuação psicológica com responsabilidade social requer o comprometimento


com a transformação da realidade social, considerando que ao desumanizar as
pessoas através de estratégias históricas e estruturais de dominação, exploração e
exclusão social, são produzidas formas de sofrimento que culminam em transtornos
mentais. Portanto, reconhecer o racismo, a misoginia, o sexismo, a homofobia, a
transfobia, a xenofobia, como fatores de risco para a saúde mental é comprometer-se
profissionalmente com a visibilização dessas formas de sofrimento e com a ruptura de
comportamentos e práticas colonizadoras e desumanizantes.

Acadêmico, no Tópico 3, abordaremos sobre as contribuições dos estudos


interseccionais e decoloniais para a compreensão do sofrimento psicológico, e
posteriormente será abordado como alguns marcadores sociais tais como gênero,
classe, raça/etnia, sexualidade e nacionalidade/territorialidade, se relacionam com a
produção do sofrimento psicológico.

2 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS INTERSECCIONAIS


E DECOLONIAIS PARA A COMPREENSÃO DO
SOFRIMENTO PSICOLÓGICO
Para compreender como as relações humanas são construídas e significadas,
e as repercussões na produção do sofrimento psicológico, os estudos interseccionais
e decoloniais imprimem significativas contribuições para uma visão ampla, histórica e
contextualizada das relações sociais e das relações de poder. Como já discutido por

193
Hooks (2019), pobreza, racismo e gênero criam lugares de exclusão social por razões
e de formas diferentes e, tendo em vista as diferenciadas formas de opressão, se faz
necessário identificá-las e nomeá-las a fim de se traçar planos políticos que atendam às
necessidades de cada grupo social a partir de suas especificidades.

A interseccionalidade se propõe a compreender como as categorias sociais


se encontram e produzem impactos nas relações sociais. Como descrevem Collings e
Bilge (2020, p. 16), “a interseccionalidade investiga como as relações sociais de poder
influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como
as experiências individuais na vida cotidiana. Não se trata de hierarquizar marcadores
sociais, mas, sobretudo, buscar compreender como os sistemas interagem e operam,
tais como classe, raça/etnia, gênero, orientação sexual, nacionalidade etc.

Os estudos decoloniais buscam compreender como essas diferenças sociais


foram historicamente construídas como fruto do colonialismo. Quijano (1992, p. 12)
descreve que “[...] a estrutura colonial de poder produziu uma discriminação social
que foi posteriormente codificada como 'racial', étnica, 'antropológica' ou nacional,
dependendo dos momentos, dos agentes e das populações envolvidas”. Sendo assim,
as marcas do colonialismo, figuradas na colonialidade, perpassam o reconhecimento da
humanidade do ser (colonialidade do ser), a produção do saber (colonialidade do saber)
e o controle político (colonialidade do poder).

A colonialidade do poder é descrita por Souza (2021, p. 22), como reafirmação da


exploração e do conflito, “[...] que estarão presentes na incessante busca pelo controle e
dominação do trabalho e de todos os seus processos”. A colonialidade do ser e do saber
consiste na afirmação do “não ser”, e como descreve Carneiro (2003), esse “outro” que
é percebido como periférico e atrasado, que historicamente foram e são escravizados e
mortos, epistemologicamente e fisicamente. Portanto, seus corpos e saberes produzidos
são desconsiderados.

Nesse sentido, como afirmam Passos, Santos e Espinoza (2020, p. 151), os


estudos interseccionais e decoloniais tem sua importância assegurada tendo em
vista a compreensão da complexidade das relações sociais e seus impactos na
produção do sofrimento psicológico, pois ao se identificar os eixos de subordinação
“[...] compreendem-se os aspectos estruturais fundantes dessas condições, e, por fim,
propõe-se o rompimento com essas estruturas e formulam-se outras maneiras de
garantir a proteção de direitos violados em razão da raça e do gênero”.

A desigualdade social gerada por essas relações de poder instituídas através de


categoriais sociais, já vem sendo discutida dentro da literatura de base fenomenológica
existencial humanista enquanto produtora do sofrimento humano. Como descreve
Hoepfner (2015, p. 180-181),

194
A exclusão passando a ser vista como causadora de sofrimento
abre possibilidades de intervenção, o que significa aceitar que
cada sujeito possui capacidades de criar novas possibilidades para
sua vida. O que se quer propor são práticas baseadas no trabalho
coletivo, com corresponsabilidades, de forma compartilhada com
outros profissionais, incluindo a família e pessoas da comunidade
dos sujeitos. Compreender e identificar o sofrimento permite analisar
as formas sutis de espoliação humana por trás da aparência de
uma sociedade integrada. Portanto, para entender como se dão
as práticas de exclusão e criar novas formas de intervenção nas
práticas de produção de saúde e inclusão social é de fundamental
importância compreender que as desigualdades sociais são
construídas historicamente por uma sociedade, produzindo a
injustiça e a exploração.

Por fim, reconhecer e visibilizar que as dinâmicas das relações sociais pautadas
em lógicas colonizadoras que imprimem relações de poder e definem grupos passíveis
de exploração e exclusão, é comprometer-se com uma postura profissional que rompe
com o processo de desumanização que produz sofrimento psicológico e culmina no
desenvolvimento de transtornos mentais.

3 SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E GRUPOS SOCIAIS EM RISCO


Conforme exposto anteriormente, as relações sociais são, historicamente,
pautadas e construídas a partir de categorias sociais que reproduzem a colonialidade
impressa nas relações humanas, e que endossam processos de exclusão social indicando
quem serão as pessoas relegadas a vivenciá-los. Historicamente as mulheres, pessoas
empobrecidas e racializadas, dissidentes das normas da cisheteronormatividade,
migrantes e refugiadas, dentre outras categoriais sociais são relegadas ao sofrimento
ético político, que limitam o acesso a condições justas e dignas de vida através do racismo,
xenofobia, sexismo, misoginia, homofobia, transfobia etc., desumanizando e destinando
um lugar de inferioridade a esses corpos. Como convoca Alvim (2019, p. 887),

[...] não nos é recomendado tapar os olhos para evitar ver o que nos
inquietaria ao olharmos, mas, ao contrário disso, lançarmo-nos na
aventura do encontro na fronteira, apostando na premissa gestáltica
do encontro com a diferença que é o melhor modo de combater a
polarização e a invisibilização.

Para combater a invisibilização dessas formas de sofrimento, é imprescindível


compreender como essas relações de poder se desenham na realidade social,
reproduzido através de categorias sociais como gênero, classe, raça/etnia, sexualidade,
nacionalidade/territorialidade etc.

No que se refere às relações de gênero, Scott (1995) ao problematizar esse


marcador social como uma categoria útil de análise histórica, conceitua-o em duas partes
inter-relacionadas e analiticamente diferenciadas: gênero como elemento constitutivo
de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e, ainda, uma

195
forma primária de dar significado às relações de poder. Esses conceitos normativos são
expressos nas práticas educativas, nas concepções científicas, nas doutrinas religiosas,
nos posicionamentos políticos, nas condutas jurídicas, as quais são atravessadas pela
oposição binária fixa que determina de maneira categórica o significado de homem e
mulher. Ainda segundo a autora (1995, p. 92),

O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder


político tem sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz
referência ao significado da oposição homem/mulher; ele também o
estabelece. Para proteger o poder político, a referência deve parecer
certa e fixa, fora de toda construção humana, parte da ordem natural
ou divina. Desta maneira, a oposição binária e o processo social das
relações de gênero tornam-se parte do próprio significado de poder;
pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o
sistema inteiro.

Hirata (2010, p. 5) afirma que “o gênero é um organizador chave da globalização


neoliberal”, portanto consiste em um dos eixos centrais que organiza a experiência no
mundo social, sendo que os impactos dessas relações estabelecidas não estão restritos
às mulheres, e, inclusive, não sendo possível compreender as mulheres dentro de uma
categoria homogênea. Portanto, para além de compreender as diferenças entre mulheres
e homens, é necessário avançar na compreensão das experiências das mulheres em suas
diversidades, que impactam aspectos específicos como mercado de trabalho, relações
familiares e vida social, sobretudo quando interseccionado com outras categorias sociais
como raça/etnia, classe, sexualidade, nacionalidade/territorialidade etc.

IMPORTANTE
Para aprofundar os conhecimentos sobre as relações de gênero e a divi-
são sexual do trabalho, dentre outros temas que abarcam as experiên-
cias das mulheres no Brasil, indicamos o curso Feminismo e Democracia
conduzido pela cientista política, professora e pesquisadora da Universi-
dade de Brasília (UnB) Flávia Biroli. Acesse em: https://www.youtube.com/
watch?v=vkTD-ddwhlQ.

Lugones (2014) destaca a importância de ir além da identificação dos eixos de


subordinação que atravessam as experiências das mulheres, rompendo com as raízes da
subalternidade. A autora, propõe uma forma de compreender as opressões vivenciadas
por mulheres subalternizadas, que descreve como colonialidade do gênero, que opera

[...] através de processos combinados de racialização, colonização,


exploração capitalista, e heterossexualismo. Minha intenção é enfocar
na subjetividade/intersubjetividade para revelar que, desagregando
opressões, desagregam-se as fontes subjetivas-intersubjetivas

196
de agenciamento das mulheres colonizadas. Chamo a análise da
opressão de gênero racializada capitalista de "colonialidade do
gênero". Chamo a possibilidade de superar a colonialidade do gênero
de "feminismo descolonial" (LUGONES, 2014, p. 940-941).

Passos, Souza e Espinoza (2020, p. 164), defendem, ainda, que apesar de o


gênero ser um marcador que evidencia as diferenças e hierarquias postas, a experiência
primeira da colonização é a condição de não humanidade imposta, ou seja, “[...] ao se
reivindicar a visibilidade em relação ao gênero para o subalternizado, é necessário, antes,
reclamar sua humanidade”. Nesse princípio de desumanização, a diversidade torna-
se arma para classificar e distinguir quem serão as pessoas consideradas humanas,
e logo, quem terão seus direitos fundamentais e acesso a condições dignas de vida
assegurados, e quem sucumbirá a subempregos, miséria e violência. Esse processo de
desumanização é descrito por Cardella (2017) com a destituição da morada humana que
se localiza nas relações sociais objetificando pessoas, portanto

o sofrimento de não poder ser humano; de não poder viver no tempo,


que é o tempo das experiências, o tempo de nascer, o tempo de
crescer, de envelhecer, e de morrer; o sofrimento também aparece
como ausência de lugar, seja nas relações humanas, no corpo, ou
na natureza, que não são mais moradas do humano, mas coisas
(CARDELLA, 2017, p. 116).

Nesse sentido, para a construção de um controle político de manutenção


da hierarquização dos corpos, constrói-se uma visão de um “Outro”, localizado na
inferioridade e subalternização, e completamente distante de uma perspectiva de
alteridade e semelhança. E esse “Outro” é relegado a condição de sub-humanidade,
como destaca Santos (2016, p. 21):

A concepção de humanidade centrada no Ocidente não é possível


sem um conceito de sub-humanidade (um conjunto de grupos
humanos que não são totalmente humanos, sejam escravos,
mulheres, povos indígenas, trabalhadores migrantes, muçulmanos).
É por isso que afirmo que a humanidade é uma tarefa. Essas ideias
de sub-humanidade caminham juntas com as da humanidade de tal
maneira que as duas pertencem uma à outra em nosso patriarcado
colonial capitalista.

No que se refere à classe, reafirma-se que gênero e raça estão profundamente


relacionados às condições de acesso a meios de vida. A disparidade salarial entre
homens e mulheres é apenas uma das facetas do cenário das desigualdades alicerçadas
em uma lógica colonial e capitalista. Além do “acesso ao trabalho remunerado se dá
de forma diferenciada não apenas entre homens e mulheres, mas para diferentes
grupos de mulheres” (BIROLI, 2016, p. 735), são relegados espaços específicos de
atuação para cada grupo social, como destaca Hirata (2014), as pessoas que trabalham
com ocupação relacionadas ao cuidado de pessoas, sobretudo crianças e idosos, e
atividades domésticas “são em sua maioria as mais pobres, as menos qualificadas, de
classes subalternas, imigrantes (HIRATA, 2014, p. 67)”.

197
O racismo, por sua vez, também imprime marcas profundas na experiência
de vida das pessoas racializadas. Além de consistirem os grupos sociais mais
empobrecidos do país, pessoas negras e originárias de povos indígenas sofrem com
a exclusão social, que atravessa desde o acesso à educação e à saúde que considere
e valorize suas singularidades e práticas tradicionais, ainda encontram desafios no
acesso ao mercado de trabalho, e, consequentemente, condições justas de vida
material. Como afirma Arrelias (2020, p. 106-107),

A construção histórica do Brasil, como nação, é fortemente


baseada em uma estrutura racista, que impõe um modus operandi
branco europeu e norte americano de institucionalização de
todos os aspectos da vida. Desta maneira, silencia-se ou mesmo
nega-se qualquer possibilidade de existência fora de uma lógica
brancocêntrica. Negritude e indigenitude passam a ser formas de vida
onde não há reconhecimento ou possibilidade de humanidade para
negros e indígenas escravizados oficialmente até 1888 e mantidos
em condições precárias e desiguais de vida após esse fato histórico
e até os dias atuais, reinventadas. Todas as situações de violências
às suas condições de vida são concretizadas em uma estrutura de
campo vivencial considerada incivilizada, e cujas possibilidades de
ser em um mundo pautado por aspectos civilizatórios europeus são a
única condição possível de existência enquanto ser humano.

IMPORTANTE
Entenda um pouco mais sobre racismo estrutural e seus impactos para a
população negra no Brasil. Acesse em:

https://www.youtube.com/watch?v=lryL8ZAMq-E.
https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU.

Pessoas dissidentes das cisheteronormatividades também estão potencial-


mente expostas ao sofrimento psicológico produzido por essas relações de poder. A co-
munidade LGBTQIAP+ sofre de violências simbólicas e reais, que impede uma expres-
são livre e autêntica desse grupo social. Como aponta Barros (2020), essa repulsa pelos
corpos considerados marginais por desviarem-se das normalizações, implica em um
processo de exclusão social que desumaniza, até ao ponto de aniquilá-las. Em um dos
países que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo, o sofrimento de se reconhecer
como gay, lésbica, bissexual, não binário, trans etc. transcende a aceitabilidade social, e
adentra o temor em perder a própria vida.

198
INTERESSANTE
No documentário Sobre vivências, pessoas da comunidade LGBTQIAP+
compartilham histórias de vidas atravessadas pela experiência do preconceito
em virtude de seus gêneros e sexualidades, e os impactos em sua saúde
mental. Acesse em: https://www.youtube.com/watch?v=3HpfRWEYVqM.

A ascensão das migrações internacionais reacende um alerta sobre os processos


de opressões vivenciados por algumas categorias sociais, que são intensificados
quando se encontram com outros marcadores sociais, como gênero, raça/etnia, classe,
nacionalidade etc. Como afirma Marques (2020, p. 104),

Reconhecer pessoas migrantes e refugiadas como parte de nossa


experiência de campo atual é participar do processo de resgate de
suas humanidades, que foram usurpadas, sobretudo daquelas que
necessitaram migrar forçadamente e que estão expostas a diversas
outras formas de violência em seu novo contexto de vida, como a
desumanizante xenofobia.

No que se refere à nacionalidade, Pozza (2016) destaca os impactos no processo


de acolhimento das pessoas migrantes e refugiadas a partir do país de origem e de destino,
existindo uma clara distinção entre pessoas que migram dos países do norte global, em
relação às migrantes do sul global, e que, inclusive, as últimas são relegadas a exercer
atividades laborais socialmente desprestigiadas independentemente da qualificação
profissional. Assim, não se pode prescindir de conhecer sobre as experiências concretas
de pessoas subalternizadas do sul global, a fim de não romantizar e, tampouco, exotizar
a experiência de opressão.

INTERESSANTE
A série Ser Brasil – Migrantes e Refugiados apresenta as histórias, os
trabalhos e os sonhos de pessoas migrantes e refugiadas que buscaram
uma nova vida no Brasil. São nove episódios que contam as histórias de
pessoas venezuelanas, sírias, haitianas, bolivianas e peruanas, e os desafios
enfrentados para acessar o mercado de trabalho. Acesse em: https://www.
youtube.com/watch?v=DSycF8o_xFA.

A experiência do encontro com o outro, que reconhece e valida nossa experiência


social consiste no ápice das relações humanas. A violência que permeia nossas relações
sociais alicerçadas em estratégias históricas de relações de poder, implica em um

199
processo de desumanização e coisificação do outro, relegando-o ao não lugar, ao não
pertencimento, e a todo o processo de sofrimento de não ser percebido como gente,
ao ser legitimada a exploração, violência e exclusão desses corpos. Como afirma Gimbo
(2020, p. 38),

Sabemos que a relação eu-outro, máxima buberiana do encontro


possível, é formadora e necessária. Diante de outras pessoas,
identificamo-nos no movimento em que reconhecemos as diferenças,
as (as)simetrias, o desejo de sermos compreendidos e amados. Nós
nos inscrevemos na linguagem para tentar compartilhar e trocar
com nossos semelhantes (mas não só com eles), para compor e dar
sentido à vida, que tem duração incerta. Na ânsia de encontrar a boa
medida da vida, de não viver sós, operamos em extremos, corremos
o risco de perder o fio, repetimos sem questionar.

Adotar uma postura interseccional e decolonial frente ao sofrimento psicológico


é assegurar que processos de opressão/dominação/exclusão sejam visibilizados,
rompendo com a desumanização que atravessa as experiências humanas. O processo
de transformação social pressupõe a identificação dos eixos de subordinação, mas
também a construção de ferramentas que promovam a emancipação social de grupos
historicamente e estrategicamente invisibilizados e excluídos socialmente, através da
colonialidade que atravessa a experiência social.

Por fim, compreender que esse processo de desumanização é responsável pela


produção do sofrimento psicológico, é adotar uma postura profissional crítica e coerente
com a complexidade das relações humanas, rompendo com posturas individualizantes
e essencialmente reducionistas. As teorias fenomenológicas existenciais humanistas
têm como prisma central a compreensão da experiência humana em sua totalidade e,
portanto, não se pode prescindir de uma leitura frente ao processo de exclusão social que
domina as vivências humanas, especialmente a vida de alguns grupos historicamente
negligenciados e relegados à subordinação.

200
LEITURA
COMPLEMENTAR
REFLEXÕES DA CLÍNICA GESTÁLTICA SOBRE RELAÇÕES RACIAIS

Lívia Arrelias

RACISMO COMO ESTRUTURANTE DO CAMPO VIVENCIAL

O racismo é um projeto de controle de vidas que se estrutura através de


aspectos histórico-sociais nos âmbitos político, jurídico, ideológico e econômico. Ele
possibilita a hierarquização dos grupos humanos, dentro de uma sociedade racializada,
de forma a legitimar privilégios a brancos e naturalizar a violência e a morte de pretos
e indígenas, sem causar dor ou arrependimento. Existências negras e indígenas –
cisgênero, transgênero e gêneros diversos – não encontram eco em uma sociedade
estruturada no racismo, no binarismo de gênero branco e na misoginia.

Para Moore (2012), o racismo é uma realidade histórica que se fundamenta


no fenótipo para criar uma realidade política, cultural e econômica de exclusão de
grupos específicos e o privilégio existencial de outros. E é através do fenótipo que se
estruturam as práticas sociais de deslegitimação de elementos sociais não brancos,
animalizando corpos pretos e indígenas, diminuindo o valor de aspectos culturais de
origem africana e indígena, territorializando os espaços urbanos e rurais segundo os
seus usos, criminalizando corpos e territórios segundo sua ocupação pseudo-humana.

O fenótipo é um elemento objetivo, real, que não se presta à negação


ou à confusão. É ele, não os genes, que configura os fantasmas que
nutrem o imaginário social; que serve de linha de demarcação entre
os grupos raciais e como ponto de referência em torno do qual se
organizam as discriminações “raciais” (MOORE, 2012, p. 19).

A presença do passado histórico é vivenciada ainda hoje nas formas de


funcionamento das diversas instituições sociais, públicas, privadas ou mais íntimas,
atualizando as formas de opressão daquele período. As experiências cotidianas
dos diferentes grupos racializados são concretizadas de acordo com o lugar social
que ocupam, de forma cíclica, apesar das lutas e resistências históricas de negros e
indígenas. Contudo, a não racialização de brancos, que dominam todos os espaços
de produção e manutenção de poderes econômicos, ideológicos, jurídicos e políticos,
mantém os grupos negros e indígenas no lugar da coisificação e animalização, sem
que seja possível separar esses conceitos de suas subjetividades. Os fatos históricos se
sobrepõem, portanto, às maneiras como se constituem existencialmente nesse campo
estruturado no racismo (SANTOS; LIMA, 2009).

201
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o
resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma
humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse
chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção
de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, que
guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos (KRENAK,
2019, p. 11).

Conceder a si próprio o lugar de ser humano universal fez dos colonizadores


europeus experts em programar e praticar violências contra os povos categorizados
como inferiores, segundo seus interesses particulares de exploração e dominação. As
características fenotípicas foram o mote que lhes permitiu sustentar concretamente
este lugar de detentores privilegiados de saberes e narrativas sobre a humanidade. Esse
posicionamento diante de uma realidade criada por e para si estruturou a sociedade
brasileira desde o início da colonização, por meio de percepções e atitudes intra e
interindividuais e institucionais do grupo branco, a partir de uma lógica que coloca o
racismo como regra, e não exceção, de todas as formas possíveis de estabelecimento
de contato. Práticas sistêmicas de racismo são possíveis graças a uma organização
muito bem intrincada, que opera nos níveis ideológico, político, jurídico e econômico, os
quais são acionados de forma integrada para a manutenção e recrudescimento, quando
necessário, da concretização do racismo (ALMEIDA, 2018).

Em termos ideológicos, o racismo opera de forma a ser naturalizado tanto


historicamente quanto no cotidiano institucional e intraindividual. Nascimento (2016)
apresenta uma série de estratégias históricas que o Brasil, enquanto nação, desenvolve
para criar um imaginário estanque hierarquizado sobre os lugares sociais de negros,
indígenas e brancos na estrutura social brasileira, como o mito da democracia racial,
práticas hipersexualizadoras de corpos negros (masculinos e femininos cisgênero), a
falsa abolição, as teorias científicas eugenistas, o processo de imigração de grupos
europeus específicos, a precarização das condições de vida da população negra ex-
escravizada, as leis de criminalização da cultura negra, o embranquecimento cognitivo
e cultural, dentre outros. Importante destacar que os povos originários não são citados
nessas reflexões, entre outros fatores, por ser aquele um período em que se difundia a
ideia de extinção ou aculturação desses povos (década de 1970), ou, ainda, de que só
havia povos indígenas na região amazônica, território não visibilizado por esse autor ou
por grande parte do movimento negro da época.

O racismo em seu aspecto ideológico é criado e reforçado pelos meios de


comunicação, pelos sistemas educacionais, culturais e religiosos, especialmente
cristãos. “Os privilégios de ser considerado branco não dependem do indivíduo
socialmente branco reconhecer-se ou assumir-se como branco, e muito menos de sua
disposição em obter a vantagem que lhe é atribuída” (ALMEIDA, 2018, p. 50). É suficiente
que este indivíduo simplesmente não se manifeste a respeito de relações raciais e
racismo, que manterá seus privilégios intocados.

202
Dessa forma, gestalticamente falando, é possível refletir sobre os lugares
socialmente percebidos e ideologicamente construídos de corpos racializados. Uma
vez que “o corpo está ligado intencionalmente ao mundo e é parte fundamental para a
‘aparição’ do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 205), a existência hierarquizada só faz
sentido e se mantém porque visibilizada e naturalizada a partir do olhar e da estética
de quem a institui – o corpo branco. Os impedimentos institucionalizados de pessoas
negras e indígenas de narrarem a si, de se apossarem de suas vozes e estéticas permite
a manutenção de inscrições sociais desses corpos a partir do olhar colonizador branco.
E é neste jogo social fortemente racializado que se mantêm as violências e políticas de
morte, determinando quem pode viver e em que circunstâncias, e quem deve morrer
sem causar comoção. [...]

ENCONTRO CLÍNICO – CONTATO NO CAMPO

É na outra pessoa que eu concretizo a minha existência: “a presença e o olhar


do outro são essenciais para que nos fundemos. Nosso existir demanda o testemunho
do outro” (FRAZÃO, 2017, p. 26). No encontro com pessoas brancas, esta existência não
tem sido concretizada por pessoas negras e indígenas, pois o racismo, simplesmente,
não permite essa realização existencial. Ele impede a constituição de si como pessoas,
pois a destruição de corpos negros e indígenas enquanto indivíduos existentes faz
parte do projeto de genocídio organizado por brancos para viabilizar o projeto colonial-
capitalista. A lógica de pensamento racional do ocidente impõe a necessidade de pensar
para existir, retirando a potencialidade do corpo sensorial enquanto base de existência
ancestral negro-africana e indígena. O racismo favorece esse lugar de negação a partir
da exacerbação do racional.

As experiências existenciais são vividas como violentas desde antes do


nascimento de pessoas negras e indígenas, que passam por elas de formas diferentes
segundo seus marcadores existenciais de gênero. Mulheres e homens, cis ou
transgêneros e pessoas de gênero fluido são constantemente atravessadas pela não
existência provocada pelo racismo, enquanto brancos, também independentemente de
gênero, vivem seus privilégios (especificamente intragrupos de gênero), distanciando-
se da mutualidade, do acolhimento e da validação do “entre” dialógico. O atendimento e o
acompanhamento clínico de negros e indígenas torna-se muito difícil diante de pessoas
brancas e, também, de pessoas negras e indígenas não conscientes politicamente de
suas existências racializadas, ou seja, embranquecidas.

Para Frazão (2017, p. 26), nossa função primordial e essencial na clínica


gestáltica é o acolhimento, a confirmação e a validação da outra pessoa tal como ela
se apresenta, “em suas angústias, alteridade, diversidade e singularidade existencial”.
O olhar confirmador é a ação concreta da clínica gestáltica. Confirmação é postura
ética “que envolve o olhar fundante do terapeuta e, também, a confirmação do ser do
paciente que cada um pode apossar-se de si, ser belo, único e singular em seu pleno
existir” (FRAZÃO, 2017, p. 27). A prática clínica da Gestalt-terapia, neste posicionamento
ético, proporciona...

203
[...] nos dispormos como suporte e ajuda ao outro em questões tão
íntimas e delicadas quanto as nossas próprias vicissitudes; com
a possibilidade de utilizar a palavra falada, a escuta respeitosa e
acolhedora para fazer da relação psicoterapêutica um campo seguro
para que o cliente expresse-se e experimente-se em suas formas
de ser-no-mundo; a inclusão de nossa subjetividade para, também
a partir dela, empreender intervenções geradas naquilo que nos
atravessa, em termos de afetos, sensações e saber técnico a respeito
do contato com o cliente, transformando esses elementos em
perguntas e apontamentos que visam a ampliar o olhar e a percepção
deste sobre si, sobre suas escolhas (MENEZES, 2017, p. 143).

Para Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 46), “a realização de uma gestalt


vigorosa é a própria cura”. Mas isso só será possível se incluirmos a quem delega a
si, colonialmente, o lugar naturalizado de definir todas as possibilidades de existência
humana: brancos. Para Bento (2002, p. 26) “o silêncio, a omissão ou a distorção que há
em torno do lugar que o branco ocupou e ocupa, de fato, nas relações raciais brasileiras”
ainda se configura como um ponto importante a ser tensionado para podermos pensar
em, efetivamente, praticar uma clínica gestáltica que priorize existências dignas em
uma perspectiva política de campo para negros e indígenas.

A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é


uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais
no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só
ele é estudado, dissecado, problematizado (BENTO, 2002, p. 26).

Além disso, os silenciamentos de corpos e existências indígenas precisam ser


questionados, de forma a estabelecer reflexões, produções técnicas e intervenções da
Psicologia e da Gestalt-terapia, mais amplas.

Para Hycner (1988, p. 22), uma psicoterapia dialógica “se refere ao fato de
que a existência humana, em seu nível mais fundamental é inerentemente relacional”,
e o racismo, a misoginia e a transfobia potencializam essa violência que impede ou
dificulta o reconhecimento de alteridades e, nesse sentido, de existências fora da
norma branca cisgênero.

Alteridade significa o reconhecimento da singularidade e nítida sepa-


ração do outro em relação a nós, sem que fique esquecida nossa re-
lação e nossa humanidade comum subjacente. A pessoa é um fim em
si mesma e não um meio para atingir um fim (HYCNER, 1988, p. 24).

Em relações mediadas pelo racismo, simplesmente não há possibilidade de


reconhecimento da alteridade fora do grupo branco. Enquanto fenômeno de campo,
o racismo, o sexismo e a transfobia violentam a existência do polo mais fragilizado da
relação devido ao não reconhecimento e à não validação da sua humanidade. O outro
polo, por sua vez, trabalha em favor da manutenção da dor emocional, da neurose de
quem já está sofrendo.

204
Segundo Lewin, o comportamento não depende nem do passado, nem do futuro,
mas, do campo presente (LEWIN, 1965). Nesse sentido, os lugares sociais de privilégio
(brancos) e de violência (negros e indígenas) vivenciados no momento presente são
estruturados enquanto formas de contato possíveis em uma sociedade que se nega a
reconhecer e a resolver seus problemas com o racismo. E, assim, compartilhamos de
um fundo comum generalizado que nos atravessa de formas muito singulares, mas que
impede de nos constituirmos como seres plenos – estabelecendo contatos vigorosos
e com reconhecimento e validação de alteridades, de criação de possibilidades outras
(SILVA; BAPTISTA; ALVIM, 2015).

O racismo impede ou dificulta que pessoas pretas e indígenas se vejam, se


considerem, se expressem integralmente como seres humanos, pois são destituídos
de suas humanidades pela estruturação racista. Então, se tornam fenômenos
incompreensíveis, pois incompletos ou deformados pelo olhar branco sistematizador
das possibilidades sociais. O saber a ser revisto – e, quem sabe, reaprendido – é o da
clínica psicológica tradicional, que é branca europeia e norte americana. Portanto,
questionar e rever estes a priori é necessário, uma vez que os mecanismos tradicionais
de compreensão, planejamento e ação diante da realidade que vivemos, hoje, não
são suficientes para a reorganização das vidas, já que práticas racistas ainda estão
fortemente presentes nas configurações relacionais intersubjetivas, interferindo nos
conceitos e formas próprias de cada pessoa ver a si mesma (SANTOS; LIMA, 2009).

Ações presentes para um futuro talvez menos tenebroso envolvem compreender


que “a dinâmica própria do racismo se desenvolve dentro do universo de atitudes,
valores, temores e, inclusive, ódios – mesmo quando inconfessos – infiltrando-se em
cada poro do corpo social, político, econômico e cultural” (MOORE, 2012, p. 226). São
diversas as possibilidades de intervenções e, na clínica gestáltica, temos o corpo como
experiência primeira, concreta no mundo. E aqui me refiro tanto ao corpo de clientes/
usuários/pacientes/ consulentes quanto o corpo de psicoterapeutas. Esse encontro, o
que se estabelece no entre, naquele campo específico...

Os efeitos do encontro de corpos negros ou indígenas com corpos brancos


não são passíveis de racionalização simples. Foram quase quatrocentos anos de
escravização, com práticas de violências cruéis e cada vez mais tornadas públicas
(exemplo: as atrocidades cometidas pelo rei Leopoldo, no Congo Belga; as práticas
de castração de homens negros escravizados que se “atreviam” a formar família com
mulheres negras, também escravizadas). Depois, são mais de uma centena de anos
de tentativa de apagamentos dessas violências, com legalização ideológica, jurídica e
econômica de atrocidades, humilhações e torturas praticadas por brancos.

Quebrar cinco séculos de violências transgeracionais envolve vivenciar afetivo-


emocionalmente, na carne, toda essa dor, raiva, medo, angústia e outros nomes possíveis
– e não tem como isso acontecer de forma amena. Se for externalizada, possui uma
configuração muito específica. Se for internalizada, essa manifestação inabitual que

205
emerge espontaneamente apresentará outra configuração. A possibilidade de a pessoa
negra ou indígena ser acolhida e validada diante de corpos brancos e embranquecidos,
portanto, exigirá um posicionamento há muito negligenciado desde a formação em
Psicologia, e isso também precisa ser levado em consideração no trabalho clínico.

FONTE: adaptada de ARRELIAS, L. Reflexões da clínica gestáltica sobre relações raciais.


In: NASCIMENTO, L. C. S.; VALE, K. S. (org.). Sentidos em Gestalt-terapia: novas vozes,
outros olhares. Ponta Grossa: Atena, 2020. p. 93-109.

206
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Para compreender como as relações humanas são construídas e significadas, e as


repercussões na produção do sofrimento psicológico, os estudos interseccionais e
decoloniais imprimem significativas contribuições para uma visão ampla, histórica e
contextualizada das relações sociais e das relações de poder.

• A interseccionalidade se propõe a compreender como as categorias sociais se


encontram e produzem impactos nas relações sociais. Não se trata de hierarquizar
marcadores sociais, mas, sobretudo, buscar compreender como os sistemas
interagem e operam. Os estudos decoloniais buscam compreender como essas
diferenças sociais foram historicamente construídas como fruto do colonialismo.

• Reconhecer e visibilizar que as dinâmicas das relações sociais pautadas em lógicas


colonizadoras que imprimem relações de poder e definem grupos passíveis de
exploração e exclusão, é comprometer-se com uma postura profissional que rompe
com o processo de desumanização que produz sofrimento psicológico e culmina no
desenvolvimento de transtornos mentais.

• A desigualdade social gerada por essas relações de poder instituídas através


de categoriais sociais, já vem sendo discutida dentro da literatura de base
fenomenológica existencial humanista, enquanto produtora do sofrimento humano.
Compreender que esse processo de desumanização é responsável pela produção
do sofrimento psicológico, é adotar uma postura profissional crítica e coerente com a
complexidade das relações humanas, rompendo com posturas individualizantes e
essencialmente reducionistas.

207
AUTOATIVIDADE
1 Os estudos interseccionais e decoloniais imprimem significativas contribuições para
uma visão ampla, histórica e contextualizada das relações sociais e das relações
de poder. Os estudos decoloniais buscam compreender como essas diferenças
sociais foram historicamente construídas como fruto do colonialismo. A partir do
que foi discutido anteriormente, assinale a alternativa CORRETA em relação a divisão
conceitual da colonialidade:

a) ( ) Colonialidade do ser; Colonialidade política; Colonialidade do saber.


b) ( ) Colonialidade do saber; Colonialidade do ser; Colonialidade do poder.
c) ( ) Colonialidade política; Colonialidade do saber; Colonialidade do poder.
d) ( ) Colonialidade do poder; Colonialidade do ser; Colonialidade política.

2 Reconhecer o racismo, a misoginia, o sexismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia,


como fatores de risco para a saúde mental é comprometer-se profissionalmente com
a visibilização dessas formas de sofrimento e com a ruptura de comportamentos e
práticas colonizadoras e desumanizantes. Os estudos interseccionais consistem em
uma ferramenta que imprime importantes contribuições para a avaliação da realidade
social. Nesse sentido, analise as sentenças a seguir:

I- O foco de investigação da interseccionalidade se trata de como as relações sociais


de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade.
II- A interseccionalidade se propõe a compreender como as categorias sociais se
encontram e produzem impactos nas relações sociais.
III- Os estudos interseccionais compreendem os marcadores sociais a partir de uma
dinâmica hierárquica dentro do processo de interação entre as categoriais sociais.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Historicamente, as mulheres, pessoas empobrecidas e racializadas, dissidentes


das normas da cisheteronormatividade, migrantes e refugiadas, dentre outras
categoriais sociais são relegadas ao sofrimento ético político, que limitam o acesso a
condições justas e dignas de vida através do racismo, xenofobia, sexismo, misoginia,
homofobia, transfobia etc., desumanizando e destinando um lugar de inferioridade a
esses corpos. Com relação a essas categorias sociais, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:

208
( ) Apesar de não consistirem em grupos sociais mais empobrecido do país, pessoas
negras e originárias de povos indígenas sofrem com a exclusão social que atravessa
desde o acesso à educação e à saúde que considere e valorize suas singularidades e
práticas tradicionais, ainda encontram desafios no acesso ao mercado de trabalho.
( ) O gênero é um organizador chave da globalização neoliberal, consistindo em um dos
eixos centrais que organiza a experiência no mundo social, sendo que os impactos
dessas relações estabelecidas não estão restritos às mulheres, e, inclusive, não
sendo possível compreender as mulheres dentro de uma categoria homogênea.
( ) Para compreender os impactos no processo de acolhimento das pessoas migrantes
e refugiadas a partir do país de origem e de destino, não há necessidade de distinção
entre pessoas que migram dos países do norte global, em relação às migrantes do
sul global.
( ) A comunidade LGBTQIAP+ sofre de violências simbólicas e reais, que impede uma
expressão livre e autêntica desse grupo social. Em um dos países que mais mata
pessoas LGBTQIAP+ no mundo, o sofrimento de se reconhecer pessoa LGBTQIAP+
transcende a aceitabilidade social, e adentra o temor em perder a própria vida.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F – V.
b) ( ) V – F – V– F.
c) ( ) F – V – F– V.
d) ( ) F – F – V– V.

4 As relações sociais são historicamente pautadas e construídas a partir de categorias


sociais que reproduzem a colonialidade impressa nas relações humanas, e que
endossam processos de exclusão social indicando quem serão as pessoas relegadas
a vivenciá-los. Diante do exposto, disserte sobre como atuar profissionalmente diante
desse cenário de exclusão social.

5 Para a construção de um controle político de manutenção da hierarquização


dos corpos, constrói-se uma visão de um “Outro”, localizado na inferioridade e
subalternização, e completamente distante de uma perspectiva de alteridade e
semelhança. Como descreve Quijano (1992, p. 12) “[...] a estrutura colonial de poder
produziu uma discriminação social que foi posteriormente codificada como 'racial',
étnica, 'antropológica' ou nacional, dependendo dos momentos, dos agentes e
das populações envolvidas”, ou seja, esse “Outro” é relegado a condição de sub-
humanidade alicerçada nas categorias sociais codificadas na colonialidade. Disserte
sobre o processo de coisificação das pessoas e das relações humanas como
produtoras do sofrimento psicológico.

Fonte: QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad-


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