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Fundamentos

Históricos e
Filosóficos
do Direito
Profª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

Indaial – 2021
1a Edição
Elaboração:
Profª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

Copyright © UNIASSELVI 2021

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

L788f

Lixa, Ivone Fernandes Morcilo

Fundamentos históricos e filosóficos do direito. / Ivone Fernandes


Morcilo Lixa. – Indaial: UNIASSELVI, 2021.

236 p.; il.

ISBN 978-65-5663-556-9
ISBN Digital 978-65-5663-555-2

1. Direito moderno. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

CDD 340

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Vivemos um tempo alucinado e alucinante! Distâncias são cada vez menores. A co-
municação nos une em escala planetária em tempo real, mas paradoxalmente nunca esti-
vemos tão sem esperanças e com medo. O cotidiano é de uma pandemia global que causou
a morte e coloca em risco a sobrevivência de milhares de seres humanos em todo planeta.

E assim, nosso cotidiano vai sendo dominado por um crescente medo desenraizado
que se alimenta pelo anúncio do fim das grandes utopias. Nesta segunda década do
século XXI não há definição dos rumos dessa etapa da história vista, por alguns, como
uma autêntica “encruzilhada” que nos obriga a pensar acerca de qual caminho seguir:
civilização ou barbárie. Tempos difíceis e inéditos em que saberes são redefinidos, formas
de poder são reinventadas e maneiras pouco éticas de controle e de geração de riqueza
vão ampliando e aprofundando novas formas de exclusão e perversidades.

É nesse cenário que convidamos você a refletir o Direito Moderno desde a


história e a filosofia.

Talvez você esteja se perguntando: restaria ainda algo a ser repensado? Para quê?
Por quê? Aceitando o desafio de responder algumas dessas perguntas e Inquietações de nos-
so tempo é que apresentamos este livro de Fundamentos Históricos e Filosóficos de Direito.

“Viajando” pelo mundo da história e da filosofia iniciamos nossa conversa.

Na primeira unidade, vamos ter a oportunidade de compreendermos melhor qual


a função da Filosofia e da História e de que maneira desde tais reflexões pode nos ajudar
a compreender melhor os fundamentos e elementos que constituem o Direito Moderno.
Juntos vamos percorrer a história do pensamento ocidental buscando individualizar o
legado de cada momento para as reflexões acerca do justo e do direito.

Na segunda unidade, compreenderemos os fundamentos históricos e filosófi-


cos do direito moderno e finalmente, na terceira unidade, retornamos ao mundo con-
temporâneo e descortinando o véu de nossa ingenuidade desde a criticidade, refletire-
mos sobre os desafios do direito brasileiro contemporâneo.

Sem dúvidas, o estudo proposto é desafiador e um convite para sairmos do lugar


comum, do nosso conforto e aparente segurança. O caminho é difícil, mas necessário,
afinal é preciso nos mantermos apaixonados pelo Direito e com esperança para que
possamos acreditar na transformação. É isso que nos mantém vivos e nos humaniza.

Bons estudos!

Profª Ivone Fernandes Morcilo Lixa


GIO
Olá, eu sou a Gio!

No livro didático, você encontrará blocos com informações


adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
assunto estudado em questão.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos


os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina.
A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um
novo visual – com um formato mais prático, que cabe na
bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada
também digital, em que você pode acompanhar os recursos
adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo
deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura
interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no
texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
também contribui para diminuir a extração de árvores para
produção de folhas de papel, por exemplo.

Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente,


apresentamos também este livro no formato digital. Portanto,
acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com
versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.

Preparamos também um novo layout. Diante disso, você


verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos,
para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os
seus estudos com um material atualizado e de qualidade.

QR CODE
Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e
dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes
completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você
acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar
essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só
aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos.
ENADE
Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um
dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar
do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo
para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
acessando o QR Code a seguir. Boa leitura!

LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conheci-


mento, construímos, além do livro que está em
suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem,
por meio dela você terá contato com o vídeo
da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa-
res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de
auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que


preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 - HISTÓRIA, FILOSOFIA E DIREITO NO PENSAMENTO JURÍDICO
OCIDENTAL........................................................................................................ 1

TÓPICO 1 - O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO


(MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO).................................................................3
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 OBJETIVOS DO ESTUDO DA HISTÓRIA E DA FILOSOFIA DO DIREITO .............................5
3 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS............................................................................... 12
4 O DIREITO DOS POVOS DA MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO..................................... 15
5 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA HERANÇA DA MESOPOTÂMIA................... 23
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................... 26
AUTOATIVIDADE...................................................................................................................27

TÓPICO 2 - O MUNDO GRECO ROMANO E SEU LEGADO.................................................... 29


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 29
2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA ............................................................. 36
3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIAL DE ATENAS........................................ 41
4 O HELENISMO................................................................................................................... 44
5 O LEGADO ROMANO...........................................................................................................47
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 53
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 54

TÓPICO 3 - O DIREITO NO MUNDO MEDIEVAL................................................................... 55


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 55
2 A PATRÍSTICA E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO............................................ 56
3 A CULTURA JURÍDICA MEDIEVAL ................................................................................... 63
4 A HERANÇA CULTURAL PARA A MODERNIDADE............................................................ 65
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................. 66
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................... 69
AUTOATIVIDADE...................................................................................................................70

REFERÊNCIAS....................................................................................................................... 71

UNIDADE 2 — O DIREITO MODERNO E SEUS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS


E FILOSÓFICOS.............................................................................................. 77

TÓPICO 1 — O MEDIEVAL E O LEGADO PARA A MODERNIDADE.........................................79


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................79
2 A REFORMA GREGORIANA: MARCO DO DIREITO CANÔNICO........................................ 82
3 OS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA........................................................ 84
4 O PROCESSO INQUISITORIAL.......................................................................................... 86
5 A CRENÇA NA VERDADE REAL......................................................................................... 92
6 O DIREITO COMUM MEDIEVAL..........................................................................................95
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................ 101
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................102
TÓPICO 2 - A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES.............................103
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................103
2 EXPLANAÇÃO..................................................................................................................103
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................ 114
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 115

TÓPICO 3 - O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO.......................................117


1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................117
2 EXPLANAÇÃO...................................................................................................................117
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................133
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................134

TÓPICO 4 - OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO


MODERNO........................................................................................................ 137
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 137
2 HANS KELSEN E A PURIFICAÇÃO DO DIREITO..............................................................139
3 CRISE E CRÍTICA: OS LIMITES DA RACIONALIDADE JURÍDICA MODERNA.................146
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................154
RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................156
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 157

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................159

UNIDADE 3 — A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO............................165

TÓPICO 1 — AS RAÍZES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA......................................... 167


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 167
2 EXPLANAÇÃO.................................................................................................................. 167
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................ 174
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 175

TÓPICO 2 - A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA................................................ 177


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 177
2 A ESTRUTURA JURÍDICA DO BRASIL COLÔNIA............................................................ 179
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................ 191
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................192

TÓPICO 3 - O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO


NACIONAL........................................................................................................193
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................193
2 A CULTURA JURÍDICA NACIONAL: O BACHARELISMO ................................................196
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................201
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 202

TÓPICO 4 - OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO......................... 203


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 203
2 A DIFÍCIL CONQUISTA DE DIREITOS.............................................................................. 206
RESUMO DO TÓPICO 4....................................................................................................... 208
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 209
TÓPICO 5 - DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS.................................. 211
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 211
2 A NOVA CONDIÇÃO NO COTIDIANO................................................................................213
3 PALEOPOSITIVISMOS, JUSCONSTITUCIONALISMOS E RENOVAÇÃO CRÍTICA
NO BRASIL........................................................................................................................213
4 PENSAMENTO CRÍTICO CONSTITUCIONAL: RENOVAÇÃO POLÍTICA, JURÍDICA
E FILOSÓFICA...................................................................................................................219
5 NOVOS MARCOS FILOSÓFICOS DO DIREITO CONTEMPORÂNEO.................................221
LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................... 226
RESUMO DO TÓPICO 5....................................................................................................... 228
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 229

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................231
UNIDADE 1 -

HISTÓRIA, FILOSOFIA E
DIREITO NO PENSAMENTO
JURÍDICO OCIDENTAL
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a relação História, Filosofia e Direito;

• identificar os objetivos do estudo da História e da Filosofia do Direito;

• observar as características e as contribuições do mundo antigo para o pensamento


jurídico moderno;

• discutir a particularidade do Direito no mundo greco-romano e o legado à


modernidade;

• analisar as particularidades do pensamento jurídico medieval e o legado à


modernidade.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA,


HEBREUS E EGITO)
TÓPICO 2 – O MUNDO GRECO ROMANO E SEU LEGADO
TÓPICO 3 – O DIREITO NO MUNDO MEDIEVAL

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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A TRILHA DA
UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE
PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história, nas distintas etapas e diversas sociedades encontramos
formas de controle e proteção de valores que possibilitam a vida comum. Esses valores,
ou bens jurídicos, são amparados e garantidos por um conjunto de normas jurídicas
definidas conforme a ordem social, política e/ou econômica que se encontra em
contínua mudança, e por esta razão as normas jurídicas vão reconhecendo as alterações
de acordo com a época e as relações definidas no substrato social.

NOTA
A vida social é regida por diversas normas, preceitos, que definem condutas
(morais, religiosas, culturais etc.), dentre as quais as normas jurídicas.
Normas jurídicas são distintas das demais por dois fatores principais:
emanam de uma autoridade política competente e possuem poder
coercitivo. Em outras palavras, em primeiro lugar, as normas jurídicas
são estabelecidas por órgãos ou instituições legítimas politicamente,
portanto, distintas de normas morais. Como segundo fator, as normas
jurídicas são impostas, com uso da força se necessário for, de forma a
persuadir as pessoas a agirem de modo a atender às finalidades ou
objetivos estabelecidos pelos órgãos políticos definidos. Assim, as normas
jurídicas devem ser acatadas e colocadas à disposição dos indivíduos e
da coletividade para fazer valer interesses e necessidades, bem como
proteger seus bens de distintas naturezas e características.

Desde tal perspectiva, surgem algumas perguntas que devemos responder


inicialmente: é possível estudar esse conjunto de normas que vão definindo o direito?
Como estudar esse fenômeno social que chamamos de direito? Para que estudar
direito? As distintas respostas que podem ser dadas recaem em alguns pontos comuns:
a necessidade de conhecer o direito, de determiná-lo, estabelecer a relação com as
ideias e/ou valores e/ou interesses do grupo social em que se insere. Exatamente essa
é a função dos pesquisadores do direito, e desde as investigações vão sendo redefinidos
conceitos operacionais que são utilizados para definir e fundamentar a norma jurídica
adequada do caso concreto.

3
Dessa maneira, vai sendo definida a cultura jurídica de um determinado grupo
em um determinado tempo. Segundo Wolkmer (2007, p. 5), cultura jurídica pode
ser definida como “representações padronizadas da (i)legalidade na produção das
ideias, no comportamento prático e nas instituições de decisão judicial, transmitidas
e internalizadas no âmbito de determinada formação social”. Portanto, o conjunto
de normas e procedimentos, considerados justificáveis e apoiados ou não pela força
instituída, vão padronizando condutas e construindo a concepção de direito. Pode-se
compreender direito como fenômeno sociocultural produzido e reproduzido desde um
contexto histórico.

Pode-se conceituar a História do Direito como parte da História geral


que examina o Direito como fenômeno sociocultural, inserido num
contexto fático, produzido dialeticamente pela interação humana
através dos tempos, e materializado evolutivamente por fontes
históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições
legais reguladoras (WOLKMER, 2007, p. 5).

Vamos, então, percebendo que o campo do estudo da história do direito não


é o da dogmática jurídica, que delimita conceitos desde concepções indiscutíveis e
estáveis, mas um campo partilhado por outras disciplinas (teoria do direito, sociologia
jurídica, antropologia jurídica, ciência política etc.) que permite compreender o contexto
e as forças históricas, sociais, políticas, intelectuais, culturais etc., que definem as
normas jurídicas vigentes.

NOTA
Há autores que diferenciam dogmática de zetética jurídica. Dogmática jurí-
dica pode ser definida como campo de estudo acerca dos conceitos ope-
racionais do direito (“verdades” preestabelecidas) usados para solucionar
na prática controvérsias jurídicas, portanto, é um estudo limitado, a grosso
modo, à norma positivada. A zetética jurídica problematiza os dogmas e
verdades jurídicas, questionando as premissas que definem a dogmática.
Nessa perspectiva, a história do direito estaria no campo da zetética, uma
vez que não apenas problematiza a dogmática jurídica contemporânea,
como busca reconstruir as ideias e práticas jurídicas em determinado con-
texto histórico.

Em síntese, o objetivo da história do direito é compreender a construção do


direito atual, desde a articulação de fatores ao longo do tempo, reexaminando suas
fontes de produção, as concepções, técnicas e instituições que o foram elaborando
e legitimando. Assim, trata-se de um estudo essencialmente crítico que possibilita
interpretar o direito desde a identificação dos valores consolidados e reproduzidos
historicamente.

4
Considerando História não como narrativa de acontecimentos, mas expressão
de experiências humanas que definem mudanças estruturais coletivas que não
tratam simplesmente de investigação sobre personagens individuais, como os “heróis”
ou “personagens”, mas de como a trama da vida move os indivíduos comuns desde
desejos, necessidades, valores e interesses a criarem aspirações coletivas e romperem
com estruturas e modelos dominantes. Trata-se, assim, de romper com o conceito de
que História é uma mera narrativa de atos individuais, mas estudar História desde a
possibilidade de mudanças do presente. É um ato de recusa de verdades absolutas
e destinos imutáveis preestabelecidos, uma forma de adquirirmos a consciência das
forças que nos levam coletivamente a agir desde as experiências vivenciadas.

Mas por que e para quê filosofar sobre o direito e sua história?

Você deve estar se perguntando por que e para que estudar Filosofia, se seu
interesse é Direito? Filosofia não é perda de tempo ou coisa de gente que “viaja” e vive
nas nuvens?

É natural que você pense assim, aliás, muitos perguntam para que serve a
Filosofia. Estamos habituados a nos preocuparmos com o que nos traga recompensas
materiais ou financeiras, afinal, temos apelos todos os dias pela mídia, por exemplo,
a sermos utilitaristas e colocarmos nossa felicidade, bem como o sentido de nossa
existência, na quantidade de coisas e bens que podemos comprar e acumular. Através
da Filosofia aprendemos a conquistar uma felicidade muito particular: descobrir o sentido
das coisas e de nossa própria existência para sermos donos de nosso próprio destino.

A Filosofia está presente em nosso cotidiano mais do que pensamos e tem


influenciado ideias, discursos, ações políticas, conceitos de justiça, por exemplo, sem
percebermos que é a Filosofia que nos permite ter a capacidade de escolhermos e
valorarmos nosso agir, não apenas individualmente, mas com os demais com quem
convivemos. E é isso, afinal, que nos torna civilizados.

Iniciamos um estudo particular que nos vai ajudar a compreender que não existe
nada “natural” no mundo jurídico. Vamos aprender que, embora sendo difícil, devemos
conhecer a origem e a finalidade dos valores que regem o mundo do Direito desde sua
historicidade, para nos tornar menos ingênuos e com mais certezas.

2 OBJETIVOS DO ESTUDO DA HISTÓRIA E DA FILOSOFIA


DO DIREITO
O estudo da história do direito é a possibilidade de descobrir um fascinante
universo, descobrir caminhos que foram percorridos por distintas civilizações ao longo
do tempo e foram encontrando no direito o instrumento necessário para continuarem
a vida em comum. Sem dúvida, nossa formação acadêmica exige compreender o

5
presente desvelando os valores e as práticas jurídicas consolidadas ao longo do
tempo, ampliando, assim, nossa cultura jurídica, sendo o estudo histórico do direito
um importante elemento para o saber formativo e distinto do conjunto de disciplinas
dogmáticas que constituem o ensino jurídico.

O importante historiador do Direito, António Manuel Hespanha, destaca que


enquanto as disciplinas dogmáticas visam “criar as certezas acerca do direito vigente,
a missão da história do direito é problematizar o pressuposto implícito e acrítico das
disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o
necessário, o definitivo” (HESPANHA, 2005, p. 21). A história do direito realiza sua função
ao contribuir para a elaboração de uma perspectiva que compreenda o fenômeno do
direito enquanto produto das relações e contextos sociais – econômicos, políticos etc.
– localizados temporalmente, e assim é assegurada a formação crítica dos juristas.

Em que pese a disciplina de História do Direito estar presente nos cursos


de Direito brasileiros em geral, talvez seja necessário ampliar sua função, sobretudo
quando se tem em conta a necessidade de servir de instrumento de revisão das fontes
legislativas e práticas das instituições jurídicas com vistas a alinhar o direito com as
necessidades e condições sociais.

Em suma, a finalidade essencial da História do Direito é a interpretação


crítico-dialética da formação e da evolução das fontes, ideias
norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando pela
transformação presente do conteúdo legal instituído e buscando
nova compreensão historicista do Direito num sentido social e
humanizador (WOLKMER, 2007, p. 6).

Estudar História do Direito desde uma perspectiva não linear – a que não
concebe a história como acumulação progressiva de saber, mas como rupturas, avanços
e retrocessos –, além da importância para a formação acadêmica, permite identificar
forças e valores que vão conferindo legitimidade ao direito, e para tal tarefa é necessário
estabelecer estratégias e caminhos metodológicos adequados.

NOTA
A concepção linear da história do direito compreende o presente como uma
espécie de “celebração” do passado. O presente como única possibilidade
inevitável do passado, de uma espécie de “padrão” universal de evolução.
A “naturalização” e “sacralização” do presente é uma deformação histórica,
pois o presente não é uma imposição do passado, mas o resultado de
dinâmicas escolhas humanas.
A “neutralização” da história constrói para os juristas uma lógica de direito
abstrata e erudita sem preocupação com a finalidade maior do direito: a
concretização de necessidades e proteção de bens humanos concretos.

6
Em que pese a longa tradição da historiografia formalista nas faculdades de
Direito em fins da década de 60 e ao longo dos anos 70, foi sendo definido um novo
marco metodológico desde a criticidade e revisão dos modelos teóricos consolidados.
Trata-se da emergência de uma corrente mais questionadora dos historiadores,
problematizando a ingenuidade intelectual e a forma através da qual compreendem a
realidade desde modelos deformados meramente teóricos.

Este movimento, denominado Nova história, teve como “força” propulsora


alguns eventos, tais como a renovação do pensamento crítico – “nova teoria crítica”
da Escola de Frankfurt –, que problematizou a neutralidade ideológica, demonstrando
que toda atividade humana é sempre política; a metodologia inovadora da Escola
Francesa dos “Annales” – que contribuiu no campo do estudo do direito para uma visão
interdisciplinar e relacional da história, concebendo a história do direito como parte da
história social. A emergência do pensamento crítico latino-americano com pensadores
como Paulo Freire, Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Antonio Carlos Wolkmer, entre
outros, que são considerados matrizes de internalização da criticidade na cultura jurídica,
representando uma espécie de “via alternativa” mais próxima de nossa realidade. Muitos
outros se somam para uma mutação radical da historiografia em geral e jurídica, em
particular, definindo, assim, uma opção metodológica desmistificadora que inclui a
complexidade e diversidade da vida social no processo de edificação histórica do direito.

DICAS
“Escola de Frankfurt” é uma corrente de pensamento que emerge no
contexto político e histórico muito problemático. Em meio à ascensão do
nazismo na Alemanha e ao stalinismo na Rússia, um grupo de intelectuais
vinculados ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt,
alinhados ao que foi se denominando Teoria Crítica, passa a produzir
obras, pesquisas e análises sociais entre os anos 1920 a 1970 desde um
marxismo heterodoxo. Para conhecer melhor sobre a Escola de Frankfurt
e A Teoria Crítica, você pode consultar http://brasilescola.uol.com.br/
filosofia/a-escola-frankfurt-introducao-historica.htm.

7
NOTA
O nome Escola dos Annales se refere a um grupo de historiadores
liderados por Lucien Febvre e Marc Bloch, que se organizaram
em torno do periódico francês  Annales d'histoire économique
et sociale  (Anais de história econômica e social), no qual eram
publicados seus principais trabalhos. O principal objetivo desses
historiadores era a problematização do positivismo histórico
dominante e o desenvolvimento de um tipo de História que levasse
em consideração novas fontes para a pesquisa histórica, como a
sociologia, a economia, a semiologia etc., considerando a história
como a ciência do presente e não do passado, investigando as
transformações e rupturas sociais ao longo do tempo.

A nova concepção das fontes, funções e concepções de Direito


conduz à revisão crítica da análise e estudo do passado das
instituições jurídicas e das práticas de controle, problematizando o
modelo contemporâneo. Desde aí, o Direito Moderno é compreendido
desde uma nova perspectiva que permite identificar os fatores e
elementos políticos, sociais, econômicos e culturais subjacentes ao
processo histórico desenvolvido entre os séculos XVI a XIX na Europa
que acabou por definir a cultura jurídica dominante nos dias de hoje.
Em síntese, o que atualmente se compreende por Direito é resultado do
contexto histórico europeu moderno organizado desde a consolidação
do capitalismo liberal que foi definindo uma estrutura política e
jurídica estatal centralizada, modelo este que, por conta da expansão
colonizadora, foi colocado em marcha a partir do século XIV.
O fundamento nuclear do Direito Moderno é o individualismo liberal,
expressão maior do valor moral da sociedade burguesa emergente, que
coloca o homem como ser individual autônomo e formalmente livre.
Nessa dinâmica histórica, a ordem jurídica é instrumentalizada como
estatuto de uma sociedade que proclama a vontade individual,
priorizando formalmente a liberdade e a igualdade de seus atores
sociais (WOLKMER, 2007, p. 30).

ESTUDOS FUTUROS
Como adiante será melhor estudado, “Modernidade” é definida como
um modelo civilizatório construído desde a Europa entre os séculos
XIV a XIX, que veio a substituir o modo de vida medieval. Tem, como
características, o predomínio de concepções políticas e jurídicas liberais
individualistas.

8
Considerando a história do direito como campo de estudo que tem como
objetivo a compreensão do presente a partir da revisão crítica do passado, evidencia-se a
finalidade maior de nossos estudos: rever historicamente as experiências do direito com
vistas a adquirir uma consciência do Direito Moderno mais humanizadora e libertária.

Mas e a filosofia? Quais as suas importâncias no estudo do direito?

Vivemos um cotidiano marcado por discursos e práticas que costumamos


rotular de “justas/injustas” ou “certas/erradas”; e não raras vezes nos vemos exigindo
“o que nos é de Direito”. O que exatamente estamos colocando em questão? O que é
o justo e injusto em um mundo marcado por tão profundas contradições e aparente
desesperança?

Os últimos anos do século XX testemunharam grandes mudanças


em toda a face da Terra. O mundo torna-se unificado – em virtude
das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação
humana mundializada. Esta, entretanto, impõe-se à maior parte da
humanidade como uma globalização perversa.
Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma dupla tirania,
a do dinheiro e a da informação, intimamente relacionadas. Ambas,
juntas, fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as
ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam
conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais,
influenciando o caráter das pessoas. A competitividade, sugerida pela
produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais
facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instalam.
Tem as mesmas origens a produção, na base mesma da vida social,
de uma violência estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos
Estados, das empresas e dos indivíduos. A perversidade sistêmica é
um dos seus corolários (SANTOS, 2011, p. 18).

Frases como “isso é uma verdade” já não são ditas com tanta facilidade. As
verdades parecem provisórias. É um tempo em que tudo parece se transformar com
rapidez alucinante. Mal temos tempo de compreender conceitos, valores, ideias ou
comportamentos que repentinamente já são ultrapassados. Como nós, que pensamos
o Direito, podemos lidar com esse aparente “pós tudo” sem cairmos na cilada do senso
comum, dos dogmas ou das verdades midiáticas criadas todos os dias?

NOTA
Dogma é uma “verdade a priori” aceita sem questionamentos. O
dogmatismo ao longo da história resultou em intolerância e opressão.
Em sentido contrário, o pensar crítico é uma postura que visa rever os
dogmas e os contextos teóricos, fáticos, ideológicos e culturais que os
sustentam e os legitimam.

9
Há uma realidade na qual estamos inseridos que exige uma explicação!
Diariamente fazemos escolhas e julgamentos de valores, pois somos movidos por
crenças, valores, preconceitos, enfim, um conjunto de idealizações e representações
tanto individuais como coletivas que nos permite viver em sociedade.

Como diz a filósofa Marilena Chauí (2000, p. 8):

Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças


silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca
questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no
espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na
verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre
verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença
entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do
bem e do mal, da moral, da sociedade.

No esforço de ir além das “verdades postas” é preciso uma atitude reflexiva


metódica, ou seja, é necessário um “distanciamento” da realidade e dos fatos para que
possamos interrogar a nós mesmos e aos conceitos que parecem inquestionáveis.
Neste momento podemos sentir que nossas certezas são questionadas e tudo parece
possível de ser redefinido ou repensado.

É desde aí, desta “atitude reflexiva”, que falamos em “Filosofia”. Desde uma
atitude que permite discutir o que parece óbvio e natural. Claro que refletir sobre as
verdades e a realidade que nos cerca é uma dura escolha. Pode ser que sejamos mais
felizes ou mais otimistas com o superficial, afinal, ser inquieto é não se deixar levar
tão facilmente. É não aceitar passivamente o que nos é oferecido como “alternativa
possível”. Desde a atitude reflexiva descobrimos que não podemos ser felizes a vida
toda e todo o tempo. E essa é talvez a tarefa mais urgente de nosso tempo. Enfrentar o
medo das incertezas é o grande desafio que se coloca diante de nós quando decidimos
assumir uma atitude reflexiva. Devemos ter a coragem de sair do nosso “agradável e
confortável” senso comum. “Acontece que tendemos a descobrir algo agradavelmente
reconfortante quando ouvimos melodias que sabemos de cor” (BAUMAN, 2008, p. 29).

Esse distanciamento das “melodias que sabemos de cor”, das verdades


cotidianas, a fim de assumirmos uma atitude questionadora de si mesmo e desejar
conhecer por que e para que são nossas crenças e sentimentos é que podemos chamar
de atitude filosófica.

A atitude filosófica é o ato de reflexão questionadora própria do filósofo, daquele


que, tendo a consciência de que o saber é sempre provisório e também infinito, renova
e reinventa sempre as perguntas que formula. É assumir o risco de viver sem verdades.

10
Para o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale (2002, p. 5-6):

Filósofo autêntico, e não o mero expositor de sistemas, é, como o


verdadeiro cientista, um pesquisador incansável, que procura sempre
renovar as perguntas que formula, no sentido de alcançar respostas
que sejam ‘condições’ das demais. A filosofia começa com um estado
de inquietação e de perplexidade, para culminar numa atitude crítica
diante do real e da vida.

E é aí que nasce a Filosofia. Um saber metódico e rigoroso que possibilita


chegar à raiz das coisas na interminável e incessante busca do sentido do “ser” e
universo existencial.

NOTA
• Atitude reflexiva: é o ato de pensar as crenças, verdades e sentimentos
de nosso cotidiano de forma profunda e com desejo de conhecer a
essência das coisas.
• Atitude filosófica: é a reflexão própria dos que não se cansam de admirar
as coisas, e são capazes de se distanciar do cotidiano e de si mesmos.
• Por que e para que a reflexão filosófica? Para um agir pessoal e social
intencional e consciente, sabendo o porquê, para que e como são as
coisas, crenças e sentimentos em sua essência.
• A finalidade da reflexão filosófica é permitir um pensar e crer de
forma crítica e livre de preconceitos.
• O filósofo é inimigo de fanatismos e dogmatismos.

É sobre os seguintes campos que se estende o saber filosófico:

• Ética: do grego “ethos” – bons costumes –, diz respeito a escolhas inevitáveis e


inadiáveis quando nos deparamos com condutas e hierarquia de valores que definem
os caminhos a serem seguidos e os que devem ser evitados, levando em conta os
fins a que se destina a justificativa do próprio agir. A Filosofia Ética tem como objeto
de problematização a atitude humana em relação ao coletivo e suas consequências
históricas, sociais e políticas. Em outras palavras, é um campo filosófico preocupado
com o valor do bem e do agir humano que o tem como finalidade última.
• Lógica: tem, como preocupação, as estruturas do pensamento e seus
encadeamentos racionais que permitem conhecer o ser humano e seu mundo
circundante. Através da lógica se discute se as inferências – deduções, as
conclusões obtidas pela relação entre uma coisa e outra – são verdadeiras ou falsas.
• Estética: do termo grego aisthetiké, significa “aquele que percebe”. É o campo da
filosofia que se dedica ao estudo do belo nas manifestações artísticas e naturais; ao
sentimento que desperta no indivíduo quando da sua contemplação.

11
• Epistemologia: termo de origem grega, “episteme”, relacionado com a natureza
e limites do conhecimento humano. Normalmente definida como “Teoria do
Conhecimento” ou “gnosiologia”, que no sentido mais restrito refere-se às condições
– metodológicas e técnicas – sob as quais se produz o conhecimento. Como campo
filosófico relaciona-se às possibilidades de alcançar a verdade no conhecimento.
• Metafísica: do grego “metà” – além de – e “physis” – natureza, física – é um
campo filosófico que discute questões para além do agir e conhecer, envolvendo
discussão acerca da natureza do que se conhece, sobre o que permite indagar
acerca da coisa em si. Metafísica indica o permanente esforço para atingir uma
causa válida e racional para o sentido da existencialidade humana, que tem como
ramo principal a ontologia – que investiga sobre as categorias ou essências do ser.

Agora que já conhecemos os conceitos básicos e essenciais iniciaremos nossa


viagem pela construção do direito ocidental.

3 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS


Desde estudos arqueológicos é possível afirmar que a última espécie humana
sobrevivente desde o Paleolítico Superior – em torno de 9 mil anos – encontrou
nas grandes planícies fluviais e nos sítios litorâneos o ambiente propício para o
desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais. Pouco a pouco, as relações,
unidas por complexas redes de parentesco, tornam-se hierarquizadas e a realização
de tarefas cotidianas, como irrigação, cultivo e colheita, vai dando lugar a formas de
organização social com poderosos mecanismos unificadores de comportamentos, que
se transformam em normas de controle.

A partir do quarto milênio a.C. surgem no Oriente Próximo as primeiras


civilizações: Mesopotâmia, Egito, Palestina, Fenícia e Persa. Estas ocuparam uma região
que ficou conhecida como Crescente Fértil, limitada entre os rios Tigre, Eufrates e Nilo.

12
FIGURA 1 – CRESCENTE FÉRTIL - BERÇO DA CIVILIZAÇÃO

FONTE: <http://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Além da estratégica passagem entre a África, Europa e Ásia, a região possuía


uma rica biodiversidade e a presença de rios que forneciam abundância de água para
irrigação, além de servir de meio de comunicação.

NOTA
Os estados que, atualmente, possuem terras localizadas no Crescente
Fértil, são: Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito, Israel e Palestina, além da
parte sul da Turquia e da área mais ocidental do território do Irã.

A sofisticação técnica, como a astronomia para estabelecer um calendário


preciso para controle da agricultura, matemática e hidráulica para as obras de irrigação
e construção torna-se patrimônio intelectual importante para a sobrevivência do grupo,
e concentra-se nas mãos de grupos ou castas privilegiadas (sacerdotais, guerreiras,
reais...), que terão grupos subalternos, em não raras vezes conquistados pela força
militar, encarregados da sobrevivência própria e dos “eminentes”.

O avanço da agricultura permite a produção de excedentes econômicos


permanentes, uma massa de trabalhadores subalternos produzindo e a dominação
militar assistindo, no interior e entre os grupos, conflitos que deveriam ser neutralizados.

13
A fim de conter ou mesmo neutralizar as forças desagregadoras que colocam em risco
o modo de organização e dominação social, são definidas forças neutralizadoras,
dentre as quais consta o direito. Entretanto, as formas de controle impostas não se
originam somente pela violência física, mas pela aceitação da dominação por conta
da supremacia cultural, pelo estágio organizativo e tecnológico materialmente mais
avançado dos grupos dominantes. Assim, vão se institucionalizando os modos de poder,
dando origem às distintas formas de ordem política e jurídica das antigas sociedades. O
poder político e jurídico nas primeiras civilizações vai assumindo as seguintes funções:

• Garantir a submissão e trabalho compulsório dos grupos subalternos.


• Difundir a ideologia da aceitação obtendo consenso e interiorização das relações
de poder.
• A manutenção do status quo dos grupos privilegiados.

A ideologia de aceitação é fundamental para reduzir, ou mesmo invisibilizar, a


violência coercitiva. Nesta etapa, as cosmogonias religiosas, os arquétipos, foram os
meios mais eficientes para os grupos religiosos desempenharem a função neutralizadora.
Seguramente, por esta razão o poder político e jurídico assume uma natureza sagrada,
mediadora entre as divindades e os humanos. Na clássica obra “A Cidade Antiga”, Fustel
de Coulanges demonstra que a origem do direito antigo está relacionada a rituais,
crenças religiosas e tradições que se impunham acima da vontade dos homens, e os
deuses estavam presentes na vida diária comandando a cidade. Diz Fustel:

A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da ci-
dade, intervinha com igual autoridade em todas as relações que as
cidades tinham entre si. É o que se pode ver observando como os
homens daqueles tempos declaravam guerra, faziam as pazes e ce-
lebravam alianças. Duas cidades eram duas associações religiosas
que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra, não
eram apenas os homens que combatiam; os deuses também toma-
vam parte na luta. E não se julgue que isso seja mera ficção poética.
Houve entre os antigos uma crença muito arraigada e viva, em vir-
tude da qual cada exército carregava consigo seus deuses. Estavam
convencidos de que eles combatiam com os soldados, que os de-
fendiam, e eram por eles protegidos (COULANGES, 2004, p. 181-182).

NOTA
Cosmogonia é especulação, idealização, sobre a origem do mundo
constituída por narrativas mitológicas que se aproximam de religião. Os
mitos, em geral, atribuem a divindades virtudes e poderes indiscutíveis.
Mitos – da palavra grega mytus – são narrativas de múltiplas versões
opostas ao real, mas mantidos vivos e perpetuados pelo grupo social.

14
DICA
Confia a obra A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, em http://
bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20
de%20Coulanges-1.pdf.

Portanto, não é difícil compreender porque nos primórdios da humanidade a na-


tureza religiosa das formas de controle acaba por definir como intérpretes das leis os sa-
cerdotes. As manifestações do direito e as formas de sanção são marcadas por fortes
ritualismos e atos simbólicos que acabam confundindo justiça com magia, e desde aí as
práticas vão avançando de forma dinâmica até a identificação de direito com lei.

Em síntese, dos costumes, do poder doméstico e da religião daqueles “primeiros


tempos” foi se institucionalizando a sucessão hereditária das autoridades reais e
fortalecendo o poder das cidades sobre as aldeias.

Gilissen (2001) indica que as principais características do direito dos povos sem
escrita podem ser:

• A marca do direito dos povos antigos é a diversidade, uma vez que cada comunidade
possuía seus costumes próprios e o isolamento.
• A transmissão das regras de convivência pela tradição oral.
• A forte relação de justiça com religiosidade.
• Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e
generalidade, sendo, em geral, reproduções de casos concretos.
• Identificação de direito com moral e religião.
• As fontes do direito relacionadas a costumes, práticas ancestrais, preceitos verbais etc.

4 O DIREITO DOS POVOS DA MESOPOTÂMIA, HEBREUS


E EGITO
A passagem das formas arcaicas de sociedade para as primeiras grandes
civilizações está relacionada como o surgimento das cidades, a invenção e domínio da
escrita, o advento do comércio e uso de moeda.

Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de


3000 a.C. no Oriente Próximo, na Mesopotâmia e no Egito. Portanto, pouco a pouco a
transmissão oral, que acabou por preservar a memória cultural e identidade dos povos
antigos, adquire forma através da escrita.

15
A seguir consta um dos documentos jurídicos mais antigos escritos da
humanidade. Trata-se do Código de Ur-Nammu, criado por um rei sumério de mesmo
nome, escrito em torno de 2050 a.C., “ano em que Ur-Nammu fez justiça na terra”, que
incluía regras sobre impostos, procedimentos de tribunais e leis cerimoniais. Leis que
se aplicavam somente a mulheres escravas e castigos cruéis, como ter o insolente a
boca lavada com sal, aplicação de multas pecuniárias, embora limitadas e atualmente
absurdas, foram importantes avanços para o estabelecimento de limites ao poder real.

FIGURA 2 – FRAGMENTO DO CÓDIGO DE UR-NAMMU

FONTE: <https://hypescience.com/10-documentos-mais-antigos-do-seu-tipo/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Observe bem o tipo de escrita. Trata-se do que se chama escrita cuneiforme,


em forma de cunha, criada pelos sumérios por volta do ano 3500 a.C. Juntamente com
a escrita egípcia, os hieróglifos formam as mais antigas inscrições escritas em tabuletas
de argila.

16
NOTA
Escrita cuneiforme é o nome dado a certos tipos de escritas feitas com auxílio de cunhas.
Inicialmente, eram marcas bastante simples, posteriormente se tornando mais abstratas e
mais sofisticadas, graças ao trabalho dos antigos escribas. Ajustando a posição relativa da
tabuleta ao estilete, o escriba poderia usar uma única ferramenta para fazer uma grande
variedade de signos.

ESCRITA CUNEIFORME

FONTE: <http://universodahistoria.blogspot.com.br/2010/07/escrita-cuneiforme.
html>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Dos povos do Oriente Próximo, destacam-se:

• Egito: embora não tenham transmitido propriamente códigos, os egípcios legaram


fontes indiretas nos textos sagrados e narrativas literárias e, ainda, foi a primeira
civilização a transmitir um sistema de normas individualistas.
• Mesopotâmia: a região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates foi ocupada
sucessivamente por distintos povos, como os sumérios, acadianos, hititas e assírios,
que redigiram “códigos” com regras de direito bastante sofisticadas e com algum
nível de abstração.
• Hebreus: povo antigo que legou nos Livros Sagrados preceitos jurídicos,
posteriormente perpetuados pela Bíblia cristã.

Brevemente, vamos a seguir destacar alguns aspectos dessas extraordinárias


culturas antigas.

17
A civilização egípcia foi uma das mais influentes na antiguidade. Ao longo
do Vale do Rio Nilo, considerado por Heródoto (484 a.C.- 425 a.C.), o “pai da história”,
como “dádiva dos deuses”, o Egito se edificou como extraordinário reino organizado
em pequenas províncias – nomos – e governado pelo faraó, um deus vivo. Além de
desenvolverem técnicas agrícolas eficazes, eram excelentes matemáticos, experientes
na área da medicina, na astronomia e, sobretudo, legaram para a posteridade preciosas
obras arquitetônicas e de engenharia.

Entretanto, o fato é que, apesar de toda essa grandiosidade e extraordinário


legado no campo do direito, os egípcios foram mais tímidos quando consideramos seus
“vizinhos” do Oriente Próximo, uma vez que o que se espera é que a condição de domínio
cultural e político fosse acompanhada de sofisticação jurídica.

Os poucos documentos propriamente jurídicos que restam, além da péssima


conservação ao longo do tempo, dificultam a reconstrução e sistematização do direito
egípcio antigo. Entretanto, resumidamente pode-se afirmar que a fonte principal do
direito era a vontade do faraó, que contava com um grupo de “conselheiros” presidido
pelo vizir, espécie de chanceler, que administravam um vasto e próspero império. Da
“boca” do faraó era pronunciada o Maat (direito), símbolo da justiça. Ao que parece,
os egípcios acreditavam em uma espécie de lei ou ordem universal eterna basilar
do próprio poder, de natureza divina a qual o faraó tinha o dever de velar. Segundo o
historiador de direito Jonh Gilissen (1995, p. 53):

Maat é o objetivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias.


Tem por essência ser o equilíbrio, o ideal, a esse respeito, é por
exemplo fazer que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas.
Como é neste preceito que reside a verdadeira justiça, Maat pode
ser traduzido por Verdade e Ordem, como Justiça propriamente dita.

FIGURA 3 – DEUSA MAAT

FONTE: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur.
html>. Acesso em: 11 abr. 2017.

18
A figura anterior é uma representação da deusa Maat. Observe que está com as
asas abertas, pronta para voar, como a alma dos mortos e acompanhar a barca solar de
seu irmão Rá. Esposa de Tot, possui na cabeça a pena da verdade, que pesava sobre
todos no momento do julgamento do morto quando ela colocava sua pluma sobre um
dos pratos da balança e no outro oposto o coração do falecido. Se os pratos ficassem
em equilíbrio, a alma seguia sua viagem. Se o coração fosse mais pesado, era devolvido
para Ammut (deusa do inferno, criatura parte hipopótamo, parte leão e parte crocodilo)
para ser devorado.

NOTA
Maat: termo de origem copta, que é um sistema de escrita originado no
século IV a.C. no Egito, que expressa uma espécie de idealização filosófica
de justiça relacionada com verdade e ordem, que deveria orientar as
decisões dos governantes.

FIGURA 4 – A PENA DE MAAT É O CONTRAPESO PARA O CORAÇÃO DO MORTO

FONTE: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur.
htm>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Há uma bela estória preservada por antigos papiros que serve como fonte
de compreensão para a prática da justiça egípcia. Trata-se do “Conto do Camponês
Eloquente”, datada de 2070 a.C., que mostra como as palavras sábias e justas convencem
e encantam e que a indignação com a injustiça e com a maldade humana é própria da
condição do homem ao longo da história.

19
NOTA
“Conto do Camponês Eloquente” se trata de um antigo conto que pode ser
sintetizado da seguinte maneira:

Um camponês andava pelo Egito com seu burrico vivendo de pequenos


serviços que prestava.
O camponês andava pelo Egito, com seu jegue, vivendo de pequenos serviços
que prestava nas fazendas, mas ao passar por uma certa propriedade, foi
surpreendido pelo administrador local que, por maldade, queria tomar o
animal do pobre homem. Para lograr êxito, o perverso homem jogou um
longo tecido no chão, forçando o camponês a desviar o caminho e
passar pela plantação, destruindo parte do que pertencia ao
dono da fazenda. O administrador puniu o camponês, retendo
seu animal e os poucos bens que o pobre possuía e o agrediu, certo de
que sairia impune da injustiça que cometera. Inconformado, o camponês
foi até a vila, onde vivia o proprietário da área; foi recebido e fez sua queixa.
O proprietário encantou-se com os argumentos do camponês. Pelo prazer
de ouvir tão bom orador, adiava a solução do caso para poder ouvir os belos
e bons argumentos. Até que, por fim, o camponês recorreu ao faraó, que
também encantado, ordenou que um escriba copiasse os argumentos do
camponês bem-falante.
O caso permanecia aberto. Irritado, o camponês deixou a cidade,
desesperado com a injustiça que sofria, e o dono das terras ordenou que se
capturasse o pobre homem. Para espanto do pobre homem, o proprietário-
juiz atendeu sua súplica, ordenando a devolução do seu animal e dos bens
sequestrados pelo injusto administrador. Determinou também que este
último entregasse ao camponês tudo o que possuía. O administrador
ficou pobre, como o camponês que um dia humilhou. Em recompensa,
o camponês passou a administrar a propriedade.

Em geral, os historiadores costumam considerar que o povo egípcio era adepto


de punições curiosas e cruéis, chegando a serem sádicas. A flagelação era adotada
em muitos casos, assim como o uso de varas para arrancar confissões. Abandono à
voracidade dos crocodilos, estrangulamento, decapitação, embalsamamento vivo e
empalhamento eram formas de execuções.

Muitos autores ressaltam importantes institutos jurídicos, como Família, conside-


rada a célula social por excelência, era restrita ao pai, mãe e filhos menores que ganhavam
emancipação após certa idade; o Testamento, que permitia total liberdade de deixar a sal-
vo a reserva hereditária dos filhos. Os bens móveis e imóveis eram passíveis de alienação,
havendo comum prática de comércio, evidenciando atividade contratual frequente.

Em síntese, a sociedade egípcia dominada pelas castas sacerdotais foi marcada


por toda uma cultura desenvolvida a partir da profunda religiosidade dominada por um
poder teocrático cuja obrigação era preservar o princípio de Maat. Suas crenças e cultos
serviam de base para toda organização política e jurídica, bem como na literatura, arte,
medicina e astronomia.

20
FIGURA 5 – GRAVURA NA PAREDE DO TEMPLO - OFERENDA À MAAT

FONTE: <https://www.projuris.com.br/como-era-o-direito-no-egito-antigo>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Nas paredes dos templos se poderia ver o faraó fazendo suas oferendas a Maat
e aceitando suas dádivas.

Chama-se direito hebraico (Mischpat Ibri) ao conjunto de regras dos antigos


israelitas, povo de origem semita, marcado por sua natureza e origem divina. Desde
o monoteísmo é uma lógica de direito que tem como núcleo a Torah (Pentateuco),
composta por cinco livros sagrados: Gênesis (BereshitI), Êxodo (Shemot), Levítico
(Va-yikra), Números (Ba-midbar) e Deuteronômio (Debarin). São no total 613 leis que
compõem a Torah, sendo 365 preceitos negativos e 248 positivos.

Segundo a tradição, Moisés é a figura-símbolo da nação israelita, escolhido


por Deus para receber a revelação do Decálogo – dez mandamentos –, que acabou se
tornando o grande princípio ético, jurídico e religioso desse povo e assumido pelo
cristianismo.

21
FIGURA 6 – MOISÉS COM AS LEIS - QUADRO DE REMBRANT (MUSEU DE BERLIM)

FONTE: <https://institutopoimenica.com/2012/09/17/moiss-e-as-tbuas-da-lei-rembrandt/>. Acesso em:


11 maio 2017.

Segundo as escrituras sagradas, todo fundamento de justiça é divino e somente


em Deus ela é perfeita e absoluta. Tendo como referência principal o amor ao próximo
e a caridade, o justo é aquele que dá o melhor de si para agir segundo as leis de Deus,
ajudando no progresso da humanidade sem medir esforços para ajudar ao próximo.

As leis hebraicas, assim como outros povos da antiguidade, de caráter civilista,


diziam respeito a negócios entre particulares, ao uso do penhor como garantia de
débito, não permitindo a exploração de seu próximo, razão pela qual alguns bens
imprescindíveis para a sobrevivência eram impenhoráveis, não podendo ser cobrada
dívida no ambiente doméstico para não humilhar a família.

“Se emprestares alguma coisa a teu próximo, não invadirás a casa para te
garantires com algum penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem emprestaste,
te trará fora o penhor” (Dt. 24:10-11). Na Torah, estão os principais institutos jurídicos do
povo hebreu, como:

• Família: de estrutura patriarcal, o pátrio poder era vitalício. As


filhas poderiam ser vendidas como escravas e havia a previsão
de servidão por dívida. A esposa poderia ser comprada e paga
com moedas ou serviços, podendo ser a mulher repudiada, o
que não ocorria com os homens, cuja punição apenas existia em
caso de adultério praticado com mulher casada.
• Sucessão: as mulheres não tinham direito sucessório e apenas o
primogênito tinha direito à herança.

22
• Penal: o conceito de crime e castigo era de natureza religiosa,
tendo como pena comum a morte por apedrejamento. São
considerados crimes graves os delitos contra a divindade –
como idolatria e blasfêmia –, contra seu semelhante – lesões
corporais, homicídio etc. –, delitos contra a propriedade – roubo,
falsificações, furto; os contra a honestidade – adultério, sedução
etc. –, e contra a honra – falso testemunho e calúnia.
• Penas: desde penas corporais, como pena de morte e flagelação,
até a excomunhão, além do uso da famosa pena de talião:
• Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queima-
dura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25).

Destaca-se que o direito talmúdico – doutrina, estudo e interpretação dos


livros sagrados – ainda é pouco estudado em nosso meio acadêmico, o que, por sua
complexidade, sem dúvida, constitui um imenso legado à modernidade, sobretudo pela
sua inserção no cristianismo ocidental, como adiante será estudado.

5 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA HERANÇA


DA MESOPOTÂMIA
A região da Mesopotâmia é a região do Oriente Próximo que legou importantes
escritos com relatos dos povos que lá habitaram desde o IV milênio antes de nossa era.
Os sumérios foram os primeiros habitantes a terem a preocupação de desenvolverem
um sistema de escrita, e por esta razão é possível que eles tenham sido os criadores
dos primeiros códigos. O Código de Ur-Nammu, datado de aproximadamente 2040, é
importante documento histórico constituído de leis registradas em um maciço de pedra
– estela, palavra de origem grega (stela), que significa “pedra erguida” –, em monolitos
com esculturas e/ou textos em relevo.

FIGURA 7 – A ESTELA DE UR-NAMMU

FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/446137906816601475/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

23
Outros códigos foram encontrados na região, tais como as Leis de Eshnunna,
datado de cerca de 1939 a.C., encontrado no sítio arqueológico de Tell Harmal. Bem
como o Código de Lipit-Ishtar em língua suméria, com traços de escrita acádia, escrito
por volta do ano 1860 a.C. Contudo, estudiosos chamam a atenção para o fato de que
esses códigos, chamados de pré-hamurábicos, não formam propriamente um código
no sentido moderno do termo, uma vez que as leis das cidades não eram tratadas em
tais documentos. Além de que, a preocupação em sistematizar e organizar as leis em
códigos é um fenômeno próprio da modernidade, como adiante veremos.

De todos os antigos códigos da Mesopotâmia, sem dúvida, o mais destacado


é o Código de Hamurabi, encontrado em 1902 pelo arqueólogo francês Jacques
de Morgan no atual Irã e, atualmente, encontra-se no Museu do Louvre. Escrito em
letras cuneiformes em um monólito de pedra, é certo que se trata de um conjunto de
leis promulgadas pelo rei Hamurabi (1726 a.C. – 1686 a.C.), que governou a Babilônia
transformando-a em um grandioso império. No preâmbulo do Código, com 282 artigos,
se lê o seguinte texto:

Quando o alto Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos céus,
determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda
a humanidade a Marduc; quando foi pronunciado o alto nome da
Babilônia; quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu
um duradouro reino cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da
terra, por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim Hamurabi, o
excelso príncipe, o adorador dos deuses, para implantar justiça na
terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco
pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo.
Hamurabi, governador escolhido por Bel, sou eu; eu o que trouxe a
abundância à terra; o que fez obra completa para Nippur e Dirilu; o
que deu vida à cidade de Uruk; supriu água com abundância aos
seus habitantes; o que tornou bela a nossa cidade de Brasíppa; o
que encelerou grãos para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em
tempo de necessidade; o que estabeleceu a segurança na Babilônia;
o governador do povo, o servo cujos feitos são agradáveis a Anuit.

A breve leitura nos permite compreender quem foi Hamurabi e suas virtudes
como “executor da justiça”, “escolhido pelos deuses”, de “sabedoria incomparável” e
tantos outros atributos que tornavam seu Código uma autêntica obra-prima para toda
posteridade.

24
FIGURA 8 – CÓDIGO DE HAMURABI

FONTE: <https://i.pinimg.com/564x/42/a1/25/42a125cc95523e92bb0c0dbcd278dbb6.jpg>. Acesso em:


11 abr. 2017.

Na parte superior, está o preâmbulo e a figura de Hamurabi diante do deus sumé-


rio Shamash recebendo o Código, representado por uma régua. A seguir estão dispostos
os artigos que evidenciam institutos jurídicos, como contratos, vendas, arrendamentos,
empréstimos a juros, adoção etc., sendo bastante conhecidas as penas punitivas aplica-
das, que variavam de mutilações à morte na fogueira, por enforcamento e empalamento.
De todos os artigos, o mais conhecido é o 196, que diz: “Se alguém vazou o olho de um
homem livre, ser-lhe-á vazado o seu também”. Repete a famosa lei de Talião, que, como já
vimos, era referência comum nos povos antigos para aplicação das penas.

DICAS
Sugerimos, a você, conhecer melhor todos artigos do Código de Hamurabi,
no site http://www.ebanataw.com.br/roberto/pericias/codigohamurabi.
htm. Você se surpreenderá com a riqueza jurídica desse documento.

Em síntese, estudando brevemente os povos antigos, não é difícil perceber que,


em diferentes momentos da história e sob distintas formas, vamos sempre encontrar um
conjunto de normas que espelham os valores, a cultura, as relações de poder e o modo
de vida da sociedade, e a esse instrumento magnificamente construído vamos chamar
de Direito e Justiça, e em seu nome continuamos a marcha da história e edificamos
nossas civilizações.

25
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• O direito é um fenômeno cultural que surge na medida em que as relações humanas


se tornam mais complexas.

• Nos primórdios da civilização, não há separação entre direito, religião e moral, uma
vez que há uma mesma fonte de produção das normas de regulação social: o
sobrenatural.

• Com diversidade, é possível identificar elementos comuns entre as distintas formas


de direito nos povos antigos.

• Os povos da Mesopotâmia elaboraram os primeiros códigos da humanidade de que


se tem notícia.

• Os hebreus criaram seu direito com base em sua profunda fé e religiosidade


e legaram, através do cristianismo, princípios jurídicos relevantes à sociedade
contemporânea.

• Os egípcios, embora sem a mesma concepção de direito que os demais povos


antigos, possuíam regras de conduta relacionadas com a crença na vida pós-morte.

26
AUTOATIVIDADE
1 Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000 a.C. no
Oriente Próximo, na Mesopotâmia e no Egito. Portanto, pouco a pouco a transmissão
oral, que acabou por preservar a memória cultural e a identidade dos povos antigos,
adquire forma através da escrita. Assinale a alternativa CORRETA, que apresenta
alguns acontecimentos que, estão relacionados com a passagem das formas arcaicas
de sociedade das primeiras grandes civilizações:

a) ( ) Surgimento das cidades, a invenção e o domínio da escrita, o advento do comércio


e uso da moeda.
b) ( ) Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e
generalidade, sendo em geral, reproduções de casos concretos.
c) ( ) Apenas a transmissão das regras de convivência pela tradição oral.
d) ( ) Apenas os costumes do poder doméstico e da religião.

2 Segundo o historiador do direito John Gilissen (2001), os povos sem escrita da anti-
guidade possuem algumas características comuns, como regras jurídicas abstratas,
poucas e limitadas, direito e religião umbilicalmente entrelaçados, dentre outras. So-
bre os povos antigos sem escrita, qual foi a região ocupada pelos que se destacaram?

FONTE: GILISSEN, J. Introdução histórica ao direito. 3. ed.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

a) ( ) O vale do chamado Crescente Fértil.


b) ( ) Os vales e montanhas do Rio Mekong.
c) ( ) O deserto do Saara.
d) ( ) As montanhas dos Andes.

3 A civilização egípcia herdou para a história notável conhecimento no campo da arte,


medicina, engenharia, matemática etc. Foi uma das mais avançadas e complexas
sociedades do mundo antigo. Entretanto, no campo jurídico, propriamente dito, o
legado egípcio foi tímido quando comparado aos povos da Mesopotâmia. Considerando
o aprendizado acerca da cultura egípcia, descreva o conceito de justiça daquela
civilização.

4 O monólito de pedra no qual foi esculpido o Código de Hamurabi foi encontrado no


ano de 1901, em uma expedição arqueológica comandada por Jacques de Morgan,
na atual região do Irã. O Código, entre outras significações que possui, representa
uma importante mudança para os povos da região. Sobre essa mudança, assinale a
alternativa CORRETA:

27
a) ( ) A mudança da tradição oral para a escrita.
b) ( ) A introdução da pena de prisão em substituição da pena de morte.
c) ( ) O fim da crença na origem divina das leis.
d) ( ) A criação do direito a partir do poder político.

28
UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
O MUNDO GRECO ROMANO E SEU LEGADO

1 INTRODUÇÃO
No mundo grego antigo, encontramos a semente das primeiras reflexões
e indagações de natureza filosófica, política e jurídica a partir da qual floresceu o
pensamento ocidental. Por exemplo, no campo da política, a cidade de Atenas legou
ao mundo a ideia de democracia. Grandes pensadores tornaram-se permanente fonte
intelectual a todas as gerações que os seguiram. O modo de vida, a cultura helênica
corporificada nas majestosas obras literárias e os princípios e valores éticos fazem do
antigo mundo grego seguramente um dos berços da humanidade. O mundo grego antigo,
universo helênico, não era uma unidade, mas sim um conjunto de pólis independentes.

FIGURA 9 – GRÉCIA NO SÉCULO V a.C.

FONTE: <http://www-storia.blogspot.com.br/2014/05/as-grandes-guerras-no-mundo-grego.html>. Acesso


em: 11 abr. 2017.

29
A concepção de vida cosmopolita grega, a vida na pólis, desenvolveu-se
lentamente a partir de um processo de sedentarização com a desagregação dos
primitivos clãs. A origem no Período Micênico (1500-1100 a.C.) confunde-se com lendas
e mitos que coincidem com a Idade do Bronze. Ao que se sabe, os antigos habitantes da
região foram os aqueus, cários, jônios e dórios, provavelmente originários da Anatólia,
com vínculos de parentesco que se espalharam após guerras locais. A geografia da
região, caracterizada por montanhas e terras de pouca fertilidade e proximidade com o
mar, fez com que esse povo se expandisse.

NOTA
A península da Anatólia, “terra do hitita”, também conhecida como Ásia
Menor, é banhada pelo mar Negro ao norte, o Mediterrâneo a oeste, o
mar de Mármara a noroeste.

Pode-se sintetizar a evolução histórica grega da seguinte forma:

QUADRO 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA

Período pré-homérico Período inicial de desenvolvimento cretense e minoico.


(1900-1100 a.C.) A sociedade grega como conhecemos ainda não havia surgido.
Este período é descrito pelo poeta Homero, que narra em
Período homérico suas histórias “Ilíada” e “Odisseia” a etapa fundacional do povo
(1100-700 a.C.) grego, em que mito, deuses e semideuses conviviam entre os
homens.
Período de
Etapa sem a utilização da escrita, o que dificulta sua descrição
obscuridade
histórica.
(1150-800 a.C.)
Consolida-se o conceito político de pólis, ao mesmo tempo
Período arcaico
em que é criado o alfabeto fonético e há o desenvolvimento
(800-500 a.C.)
urbano e econômico.
Auge do Império Grego, destacando as cidades-estados de
Período clássico
Esparta e Atenas. Etapa marcada por dezenas de guerras
(500-338 a.C.)
internas (Guerra do Peloponeso) e externas (guerras médicas).
Período helenístico Período marcado pela grande expansão macedônica, fazendo
(338-146 a.C.) fundir-se a cultura grega com outras culturas orientais.
FONTE: A autora

30
Nas distintas pólis, mesmo nas grandes Atenas e Esparta, havia especificidades
quanto aos modelos políticos que vigoraram em inúmeras ocasiões, são eles:

• Tirania: Diferente do que entendemos hoje, a tirania caracterizava-se pela tomada


do poder por um indivíduo nobre que elaborava leis e projetos políticos, alguns para
diminuir as desigualdades sociais, como divisão igualitária da terra e perdão de dívidas.
• Democracia: Grande conceito político legado ao mundo ocidental que se exercia
através da eleição de seus membros sorteados ou escolhidos entre os cidadãos.
• Aristocracia ou oligarquia: Nesse modelo, o cargo de magistrado era hereditário
e predominava a decisão dos conselhos.

Ao longo da história grega floresceram como principais cidades:

• Atenas: Principal cidade com forte desenvolvimento econômico. Berço da


democracia e da filosofia, foi fundada pelo Jônios, liderou a liga das cidades
democráticas (liga de Delos).
• Esparta: Sua grande característica diz respeito à sua educação. Os meninos já eram
treinados e educados com um único propósito: servir Esparta. Quando a criança
completava sete anos de idade, a responsabilidade de orientá-lo não cabia mais aos
seus pais e sim ao Estado espartano.

FIGURA 10 – MENINO TRANSFORMADO EM SOLDADO

FONTE: <http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-quao-dificil-era.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

DICAS
No site a seguir, você encontrará interessantes informações do modo de
vida espartano e quão difícil era viver naquela cidade e naquela época:
http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-
quao-dificil-era.html.

31
Em particular, os atenienses consideravam a vida pública, a vida na pólis, a
forma mais perfeita de convivência humana que deveria ser aprimorada pelos homens.
No período áureo da democracia (entre os anos 580 a 338 a.C.), os cidadãos, homens
livres e iguais, deliberavam sobre seus destinos políticos. A concepção de cidadania
grega é muito distinta da atual. Apenas eram cidadãos os nascidos em Atenas, homens
e maiores de 20 anos, ficando excluídos os estrangeiros (metecos), as mulheres e a
grande massa de escravos.

Para os atenienses, o homem que não era político ou não se interessava pela
política era um inútil.

Reunidos na Ágora, espécie de praça pública, deliberavam com entusiasmo


sobre as grandes questões da pólis, desempenhando o mesmo papel que hoje é
reservado aos Parlamentos de Estado. Esse era o sentido de democracia: o cidadão
decidindo diretamente sobre seu destino. Porém, se compararmos aos dias atuais, o
procedimento não era democrático, uma vez que poucos participavam e decidiam.
Segundo os historiadores, Atenas, por volta do ano 480 a.C., contava com 30.000
cidadãos (homens livres e adultos), 90.000 mulheres e crianças, e mais a grande
massa de escravos e estrangeiros, somando um total de 150.000 habitantes. No auge
dessa civilização, em 430 a.C., Atenas chegou a ter 250.000 habitantes, sendo 40.000
cidadãos, 120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros e 60.000 escravos.

FIGURA 11 – ÁGORA - SÍMBOLO DA DEMOCRACIA

FONTE: <http://pra-pensar.org/wp/blog/2014/04/16/a-democracia-nao-existe-viva-a-democracia/>. Aces-


so em: 11 abr. 2017.

32
Em Atenas, pelas constantes guerras e condições de saúde da época o índice
de mortalidade era muito alto e, consequentemente, a longevidade era baixa. A cada 100
adultos com 20 anos, 70 viviam até 30, 25 até os 60 e somente 7 vivam até os 80 anos.
A mortalidade era maior entre as mulheres porque a gestação e parto eram de alto risco.

Os homens casavam-se, em geral, após o serviço militar, após os 30/40 anos e


as mulheres perto dos 20.

Os escravos trabalhavam ao lado de seus senhores na agricultura, no serviço


doméstico e públicos, como burocratas, recebendo tratamento quase familiar, pouco
se distinguindo dos homens livres, seja pela vestimenta, seja pela cultura ou modos.
Os escravos eram prisioneiros de guerra e de pirataria, vendidos por mercadores
estrangeiros, possivelmente capturados nas guerras. O que chama a atenção de muitos
historiadores é que se tem poucas notícias de rebeliões de escravos, diferente de Roma,
como veremos a seguir.

Nas relações familiares se conhecia o divórcio recíproco, com iguais direitos para
homens e mulheres. Praticavam de maneira legal o abandono de crianças. Diferenciavam-
se na maneira de se vestir, tornando visível a diferença entre pobres e ricos, uma vez que
as roupas tendiam a ser semelhantes para as mesmas classes sociais. Talvez por essa
razão se considerava crime o furto de roupas no ginásio de esporte.

A religiosidade grega era constituída por festivais, rituais, divertimentos,


sacrifícios, oráculos etc. Era um tipo de religiosidade pouco dogmática e pouco
doutrinária. Nos diz Finley (1998, p. 10) que:

O que falta – exceto entre raros pensadores isolados, sem influência


sobre o povo, como por exemplo, Platão e Epicuro – era um conjunto
de doutrinas sistematicamente formulado, um dogma ou um
credo. Assim, podia também ocorrer blasfêmia ou sacrilégio – mau
procedimento para com os deuses, o que lhes provocaria a ira, se não
fosse punido – porém nem ortodoxia nem heresia.

Toda religiosidade grega era inerente ao politeísmo, que foi aumentando pelo
acréscimo ao longo dos séculos de seres sobrenaturais – deuses, semideuses, espíritos,
demônios, heróis etc. – com “personalidades” peculiares. Não era possível conhecer a to-
dos e muito menos descrevê-los. Somente na Teogonia de Hesíodo constam 350 nomes.

33
NOTA
“Teogonia” é um termo que vem do grego “teo” (deus) e “gonia” (nascimento). Poema
épico escrito provavelmente no séc. XIII a.C., possui 1.022 versos, estabelece uma ordem
cronológica e hierárquica entre os deuses e demais entes mitológicos que faziam parte
do imaginário grego da época. Trata-se de uma obra grandiosa, comparada às grandes
narrativas de Homero.

TEOGONIA

FONTE: <https://www.resumoescolar.com.br/historia/teogonia-de-hesiodo/>. Acesso


em: 11 abr. 2017.

Cada comunidade cultuava suas divindades ou deuses protetores, para os


quais havia cultos cívicos e cada família reconhecia a deusa Héstia, protetora do lar.
Obedeciam aos oráculos e participavam das festividades promovidas pelo Estado ao
ar livre. Faziam altares e muitos sacrifícios e nada se prendia a uma autoridade central.
Não havia “igrejas”. Portanto, não havia seres humanos com missão divina. Nos diz
Finley (1998, p. 13) que “a palavra grega hiereus (sacerdote) normalmente se refere
a um celebrante leigo encarregado da administração do culto público”. Em Atenas, o
mais importante celebrante era um Arconte, que recebia o nome de baliseus. Regras e
procedimentos lhe eram impostos e ocupava o cargo por um curto período de tempo.

34
NOTA
“Arconte” eram os antigos magistrados, cargo reservado somente aos
cidadãos e filhos da pólis.

Politicamente, inexistia uma autoridade grega central. As pólis surgiram


no período helênico, que foi a fase áurea. Antes disso, o mundo era constituído por
pequenas comunidades autônomas que se autodenominavam poleis. Ocasionalmente,
faziam alianças entre si para guerrearem entre si ou comercializarem, mas nunca a
ponto de impor seus costumes ou cultura. Portanto, não havia uma uniformidade ou
unidade entre os gregos antigos.

Entendem muitos historiadores que esta autonomia e ausência de autoridade


central contribuía para a preservação do modo de pensar e ser do povo grego, porque
não havia contradição entre o “império” e o “súdito”, o que não despertaria sentimento
ou necessidade de resistência.

Porém, foi a política – vida na pólis – que permitiu florescer a civilização grega a
partir do séc. VIII a.C. Após o longo período chamado de homérico, porque nos é permitido
conhecer através das narrativas épicas de Ilíada e Odisseia, a realeza entra em crise,
cedendo espaço à aristocracia, que se apropria progressivamente das prerrogativas
de poder. Nesta fase, o poder é repartido entre as elites, que o desmembram em três
funções: militar – exercida pelo Polemarco; administrativa – exercida pelo Arconte e
religiosa – exercida pelo Arconte Baliseus.

Neste primeiro momento, o poder começa a sair das mãos da aristocracia


(esfera privada) e vai sendo transferido para a ordem pública. Assim, o poder não é mais
exercido por uma pessoa. O poder – arché – passa a ser uma função cujo exercício é
escolhido por tempo determinado e começa a ser apropriado pelos que possuíam direito
de cidadania. Ao longo da história de Atenas, principalmente entre os séculos VIII e
IV a.C., há uma crescente expansão das prerrogativas políticas para os homens livres,
que vai edificar o grande legado daquela civilização: a democracia, chamada como
isonomia – igualdade perante a lei. Esse regime tornou-se complexo, caracterizado pela
rotatividade de controle e exercício de poder, assegurando a maior participação possível.

Esse regime teve como base as reformas políticas promovidas por Clístenes
(509-508 a.C.), que democratizou os mecanismos de participação, csegundo os quais
cada cidadão, em algum momento de sua vida, seria governante. Dessa maneira,
rompiam-se as barreiras entre governantes e governados e os cidadãos tornam-se
“senhores de seu destino”.

35
É a partir dessas bases que vamos compreender o direito grego, porque é o
direito que estará nas bases de sustentação desse regime.

2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA


É comum se dizer que os gregos, ao contrário dos romanos, na tradição jurídica
pouco legaram ao Ocidente. Essa é uma meia verdade!

Primeiramente, a filosofia grega teve papel relevante para a edificação do


pensamento jurídico moderno. Conforme o estudo da Filosofia do Direito, a concepção
de lei como expressão da vontade de uma coletividade e como regulação da vida comum
na cidade – na pólis – é que norteou a filosofia grega para pensar a ordenação do mundo
a partir da racionalidade. Os sofistas, com seus debates filosóficos, contribuíram para se
pensar sobre as grandes questões humanas, a liberdade e o sentido da justiça. Como se
faz a lei? A quem elas servem e para que servem? Essas questões faziam com que os
sofistas fossem malvistos. Talvez porque ensinavam o que todos deveriam saber: o bem
e o direito à liberdade.

Os debates filosóficos que se aprofundam e se reorientam com Sócrates,


Platão e Aristóteles, que foram além do senso comum, contribuíram para a criação
de um espaço público em que o discurso vai muito além do mito. Até então eram os
poetas-videntes que recebiam das deusas, ligadas à memória (deusa Mnemosyne),
uma iluminação, revelação sobrenatural, que dizia como os homens deveriam tomar
suas decisões segundo a vontade dos deuses. Com os filósofos surge a política e a
ideia de que os homens deveriam seguir as leis e a justiça segundo a vontade de cada
um, expressa publicamente, que deveria convencer aos demais. O diálogo, a palavra
partilhada, passa a conduzir a decisão racional. A política valoriza o humano, seu
pensamento e capacidade de persuasão.

A solidariedade cívica da vida na pólis exige regras universais e justas. Sobre o


assunto, Lima Lopes (2012, p. 22) traz que:

Talvez não seja por acaso que os estoicos no final do século IV a.C.
e nos séculos seguintes completem mais um salto qualitativo na
direção da universalidade. Se acima das solidariedades familiares é
possível construir uma solidariedade cívica, então é possível que haja
uma solidariedade ainda mais universal, cosmopolita. Num mundo
construído pelo império helenístico e depois pelo império romano,
num Mediterrâneo totalmente helenizado, os estoicos vão pregar
uma cidadania universal, um pertencimento ao gênero humano. E
os juristas romanos serão, a seu tempo e a seu modo, influenciados
pelas reflexões estoicas, para falarem de ius gentium.

Lima Lopes (2012) ainda nos esclarece muito bem como os debates filosóficos
acerca da pólis vão edificando uma civilização que será vista pelos estrangeiros e por si
mesmos como um modelo.

36
Compreender o direito e a justiça grega é compreender o próprio modo de vida
na cidade como resultado da superação dos antigos vínculos familiares, portanto, deve-
se estudar o direito grego desde a consolidação da política e da filosofia, uma vez que as
leis e seus fundamentos brotam das relações entre os cidadãos unidos pelo sentimento
de justiça.

Porém, estudar direito grego exige do pesquisador um grande esforço, uma vez
que há precariedade de suas fontes, mas quais são as fontes do direito grego? Para o
historiador Gilissen (1995, p. 11), são cinco as fontes do direito:

• As epopeias de Homero (Ilíada e Odisseia).


• Os discursos e obras literárias e filosóficas.
• As inscrições jurídicas encontradas nas obras arquitetônicas.
• Os fragmentos de leis.

DICAS
Pesquise a respeito da famosa Biblioteca de Alexandria, que reuniu as
maiores obras da antiga Grécia. Diziam que reunia os “livros de todos os
povos da Terra”, chegando a reunir milhares de antigos pergaminhos e
rolos de manuscritos. Diversas narrativas contam acerca da destruição.
Há um interessante filme que, certamente, você gostará, “Alexandria”, em
https://www.youtube.com/watch?v=6UURHhHiIc4.

Por exemplo, na conhecida e clássica obra de Sófocles Antígona, escrita no


século V a.C., Antígona era uma das filhas de Édipo, trágica figura masculina amaldiçoada
pelos deuses por ter assassinado seu pai e, por engano, casado com sua mãe e ter
assumido o trono do pai assassinado. Após a morte de Édipo, conta a estória, irrompe
uma guerra civil e trava-se uma batalha nas portas da cidade de Tebas. Seus dois filhos
comandam facções rivais e travam uma batalha e matam-se. O irmão de Édipo, Creonte,
tio de Antígona, era então senhor da cidade e resolve transformar a morte de Policine, o
irmão que havia lutado contra ele em escárnio, e determina que seu corpo permaneça
insepulto. A morte seria decretada ao que contrariasse tal ordem.

37
FIGURA 12 – ANTÍGONA ENTERRA SEU IRMÃO

FONTE: <http://portfoliocursoevc.blogspot.com.br/2013/04/video-aula-1-contexto-historico-dos.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

Antígona, perturbada pela morte dos irmãos, mas não aceitando que um fosse
sepultado com honras enquanto o outro servisse de comida para os abutres, decide
contrariar o rei. Ela se sente motivada pelo dever normativo que transcende sua posição
de súdita e, entre a obrigação imposta pelo rei e as leis divinas de sepultar seu irmão,
dá ao corpo de Polinice um fim honroso. Quando descoberta, é levada diante do rei
Creonte, que oferece a oportunidade de negar que tivesse conhecimento de sua lei, sua
determinação, a fim de salvá-la do triste fim. De forma corajosa, Antígona nega a oferta
do rei. Leia o belo diálogo:

Creonte: ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não
entendeu? Vai dizer que não sabia?
Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia
ignorá-la? Ela era muito clara.
Creonte: Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?
Antígona: Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou!
Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que
os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas
proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras
leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de
ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de
alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?

Esta magnífica obra nos traz muitas tensões, dentre as quais as “legais”, quais
sejam:

38
• A exigência do Direito Natural frente ao Direito Positivo.
• A imperatividade da norma jurídica.
• O primitivo e incipiente exemplo de desobediência civil.
• O dever do indivíduo para com sua família versus seu dever para com o Estado.
• A subjetividade individual frente às regras objetivas do corpo social.

O drama existencial de Antígona é muito pessoal e as regras do poder instituído


não lhe davam respostas! Será que nos dias de hoje dariam?

Antígona nos fala dos aspectos trágicos e contraditórios da existência humana,


talvez sem solução.

A obra nos serve de início ao estudo do direito grego. Nos ensina que quando
as instituições não oferecem possibilidade de debate e questionamentos, emergem
ambiguidades e abusos de poder.

As leis mais antigas que se conhece são as leis de Drácon, de 621 a.C. Colocam
fim à solidariedade familiar e tornam obrigatório o recurso aos tribunais para os conflitos
entre os clãs. Como já dito, o fim da solidariedade familiar cria as bases para uma
solidariedade cívica, para além do círculo familiar.

FIGURA 13 – DRACO - LEGISLADOR GREGO

FONTE: <http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/draco-o-primeiro-dos-draconianos/#>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

Conhecido pela severidade, lei draconiana passou a ser sinônimo de lei dura, o
primeiro código de Atenas introduziu importantes conceitos do direito penal, tais como:
a diferença entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa.

39
Posteriormente, já entre os anos de 594 e 593 a.C., Sólon cria um novo código
de leis, promovendo ampla reforma institucional, social e econômica. Na economia,
além de incentivar a cultura de oliveiras e vinhas, bem como a exportação de azeite,
atraindo muitos estrangeiros com a promessa de cidadania, obrigou os pais a ensinarem
um ofício a seus filhos, sob pena de ficarem desobrigados a ampará-los na velhice. Criou
o Tribunal da Heliaia, no qual qualquer pessoa poderia recorrer garantindo o princípio
de que a lei está acima de qualquer magistrado. Esse Tribunal julgava tanto causas
públicas como privadas, exceto os crimes de sangue. Seus membros eram os chamados
heliastas e eram escolhidos por sorteios anuais entre os cidadãos. Juridicamente, Sólon
instituiu a igualdade civil e suprimiu a propriedade coletiva dos clãs, além de acabar com
servidão por dívida, estabeleceu institutos importantes como a adoção, testamento etc.

A democracia é uma criação de Sólon. Através de assembleias, os cidadãos


tomavam a justiça em suas mãos e com isso promoviam o debate sobre a justiça e o ético.

Nesse modelo, a retórica era parte essencial para o convencimento daquilo que
cada cidadão defendia e acreditava. O objetivo era persuadir pela força dos argumentos.

Na prática da justiça ateniense não havia advogados, juízes, promotores


públicos; apenas os litigantes, os adversários, se dirigiam aos membros do Tribunal.
Pensar em prática de advocacia naquele tempo era impossível! Seria uma espécie de
cumplicidade para enganar e/ou fraudar. Mesmo assim, havia os chamados “logógrafos”,
que redigiam os discursos que a parte deveria fazer.

Para evitar a corrupção na prática da justiça, os gregos criaram a “delação


premiada”, mas acabou por existir a odiosa figura do falso delator, que recebia o nome
de sicofanta, adjetivo pejorativo e desonroso, que significa caluniador e mentiroso
interesseiro!

Portanto, toda base do direito e da democracia ateniense era a soberania


popular, que era expressa na voz de seus cidadãos, no exercício de suas funções
públicas, no voto nos tribunais e na participação em assembleias e conselhos. Observe
a figura a seguir:

40
FIGURA 14 – ANTIGA ATENAS

FONTE: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/atenas.htm>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

A figura é uma representação da antiga Atenas. Veja que a Ágora – praça


central da cidade – ocupa lugar de destaque. Aí ocorriam os grandes debates políticos.
A arquitetura da época nos diz muito sobre como era o cotidiano da cidade.

3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIAL DE


ATENAS
Como já dissemos, Atenas não somente era a mais importante cidade grega
antiga. Também foi o berço da erudição, da filosofia, do conhecimento, um centro
cosmopolita que alcançou grande desenvolvimento. Em suas ruas circulavam filósofos
e artistas atraídos pela valorização da cultura de seus habitantes.

Chamava a atenção a sofisticada organização judiciária em Atenas, que se


tornou clássica no Ocidente.

Em síntese, havia duas espécies de órgãos de jurisdição: para os crimes públicos


e para casos menos importantes. Estes últimos eram feitos por um magistrado singular
ou poderia ser pedido apelo para Assembleia propriamente (Heliastas), que funcionava
em grupos.

41
Para os crimes públicos:

• Assembleia do Povo: composta por senadores e magistrados populares que


decidiam sobre crimes políticos graves.
• Aerópago: o mais antigo e célebre Tribunal. Julgava crimes apenados com a morte.
• Tribunal dos Efetas: composto por 51 juízes escolhidos pelo Senado, julgava
homicídios não premeditados.
• Tribunal da Heliaia: Assembleia que se reunia em praça pública julgando recursos.

Evidente que a ausência de juristas profissionais e a confusão de leis acabavam


tornando os Tribunais espaços de debates políticos.

Nos tribunais apenas se provava o direito, segundo a lei ou o costume, além dos
fatos. Também não havia uma execução judicial: o queixoso recebia o julgamento e se
encarregava de executá-lo. Não havia polícia judiciária como entendemos nos dias de hoje.

FIGURA 15 – ORATÓRIA - TRIBUNAL GREGO

FONTE: <https://salmopresente.wordpress.com/2014/05/07/a-teologia-dos-filosofos-gregos-e-a-teolo-
gia-crista/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

42
Afinal, como funcionavam os tribunais?

Como já dissemos, era indigno e imoral receber dinheiro pela defesa de alguém e, por
essa razão, quando isso ocorria, era às escondidas! A ideia era a de que qualquer cidadão po-
deria se apresentar no tribunal perante juízes para receber uma resposta simples: sim ou não.

Foi imenso o legado grego ao direito contemporâneo, tanto nos universais


conceitos de justiça e democracia, como em algumas características essenciais de
nosso direito, tais como:

• A mediação e arbitragem.
• A retórica e eloquência jurídica.
• A transferência de propriedade somente por contrato.
• O julgamento de um cidadão por seus pares, por cidadãos comuns. Prática essencial
da democracia e inventada pelos atenienses.
• Publicidade dos atos processuais como procedimento democrático.
• Diferenciação entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa.

Os vestígios da clássica Atenas – esculturas, arquitetura, escritos etc. – são


suficientes para nos mostrar o quão grandiosa foi aquela civilização. O “mundo grego”
antigo foi portador de profundas mudanças na visão de humanidade, de vida coletiva e
do ser humano sobre si mesmo.

Por evidente que o modo de vida grego não era perfeito! Todavia, não eram mais
selvagens ignorantes e escravos da força das circunstâncias.

O breve trecho transcrito da obra de Aristóteles, “Política”, é o melhor testemunho


e atestado autorizado do que entendiam os gregos por democracia, justiça e liberdade,
sem dúvida, essências da condição de humanidade:

O fundamento do regime democrático é a liberdade; (com efeito, costuma-se dizer que


somente sob esse regime há liberdade, pois esse é o fim para o qual se destina a de-
mocracia). Uma das características da liberdade é ser governado e governar por turnos,
pois a justiça democrática consiste em possuir todos o mesmo numericamente, e não
segundo os seus merecimentos; e isto é justo, forçosamente há de ser soberana a multi-
dão, e o que esta aprovar, por maioria, será justo [...] Outra característica é viver como se
quer, a qual resulta daquela liberdade. Esta é a segunda democracia: não ser governado
por ninguém, se isto for possível, ou se governado por turnos [...] Sendo estes os funda-
mentos da democracia, são procedimentos democráticos os seguintes: todas as magis-
traturas devem ser eleitas entre todos; que todos mandem sobre cada um, e cada um a
seu turno, sobre todos; que as magistraturas sejam providas por sorteio, ou, pelo menos,
aquelas que não requeiram experiência ou habilidades especiais; que não se fundamen-
tem na propriedade, ou na menor possível; que, em princípio, a mesma pessoa exerça
duas vezes alguma magistratura; que as magistraturas sejam de curta duração [...] que a
assembleia tenha soberania sobre todas as coisas [...] (Política, 8,2,1.317a e 1.317b)

43
4 O HELENISMO
“Helenismo” é o nome dado ao período compreendido entre a morte de Alexandre,
o Grande, em 323 a.C., e a anexação da península grega e ilhas por Roma em 146 a.C. Nesta
etapa da história, há uma grande difusão da civilização grega numa vasta área: do
Mediterrâneo oriental à Ásia Central. Representou a concretização do ideal de Alexandre:
o de levar e difundir a cultura grega nos territórios que conquistava. Foi um período áureo
para as ciências. Tempo que marcou a transição para o domínio e apogeu de Roma.

No século IV a.C., após os conflitos causados pela Guerra do Peloponeso, as


pólis gregas sentem de perto o declínio de seu poder. Já não podendo mais garantir a
autonomia de seus territórios, tornaram-se “presa fácil” para povos estrangeiros. Ao norte
da Grécia, a civilização macedônica começava a empreender um projeto expansionista
que, em pouco tempo, foi capaz de assegurar o controle sobre o mundo grego. A partir
desse processo de dominação é que se iniciou o chamado Período Helenístico.

Em três séculos há um processo de transformação na vida dos povos


conquistados. Hábitos são modificados e em especial há o ideal de estabelecer uma
língua comum com a superação do ático puro antigo. Prosperam a filosofia, a arte,
filosofia, arquitetura, medicina etc.

São erguidas grandes cidades e sofisticando-se as já existentes. Tessalônica,


Corinto, Pérgamo, Éfeso, Rodes, entre outras, tornam-se as grandes capitais do mundo.

FIGURA 16 – COLOSSO DE RODES

FONTE: <http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-curiosidades-sobre-o-colosso-de-rodes>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

44
NOTA
Colosso de Rodes – uma das sete maravilhas do mundo antigo.

• Enorme estátua revestida a bronze representava Hélios, o deus grego do Sol. Hélio era
adorado pela população da ilha situada no Mar Egeu, que o via como seu protetor.
• O colosso foi erguido para celebrar a vitória dos gregos contra os macedônios (o povo
que habitava a antiga Macedônia, no norte da Grécia, cujo rei mais célebre foi Alexandre,
o Grande), que tentaram invadir a ilha de Rodes em 305 a.C., liderados pelo rei Demétrio I.
• A construção do monumento seria iniciada menos de dez anos depois, em  294 a.C.
Durante muitos anos, pensou-se que cada pé da estátua ficava de um lado da entrada
do porto da ilha e que os barcos passavam por baixo, mas esta versão foi afastada mais
tarde por estudos arqueológicos, que garantiram que a estátua se situava no cimo de
uma colina.
• O custo do Colosso teria sido suportado pela venda do material de guerra abandonado
pelos macedônios.
• A medida da estátua seria equivalente à de um prédio de dez andares - perto de trinta
metros de altura. O seu peso é estimado em 70 toneladas.
• Calcula-se que tenham sido precisos  doze anos para erguer o Colosso.
Permaneceu em pé pouco mais do que 50 anos. Em 225 a.C. um violento
tremor de terra fê-lo ruir. Mesmo em pedaços, o monumento continuou a
atrair pessoas.
• O que restava do gigante ficou em Rodes até 654 d.C. Nesse ano, os árabes
invadiram a ilha e venderam as ruínas em bronze.
• Até hoje, o Colosso de Rodes continua envolto em um enorme mistério.
Há quem pense que se trata apenas de uma lenda contada pelo povo da
ilha, que foi passando de geração em geração.

FONTE: http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-curiosidades-sobre-o-co-
losso-de-rodes. Acesso em: 11 abr. 2017.

Alexandria passa a ser um grande centro cosmopolita de população heterogênea


com tradicionais famílias egípcias. De uma aldeia de mercenários rudes, Alexandria
se transforma em um grande centro de comércio e navegação. O esplendor de sua
biblioteca atraía um sem-número de jovens, pesquisadores, estudiosos e educadores.

O helenismo carrega em si um paradoxo: ao mesmo tempo em que se assiste


à decadência das cidades-estados, o espírito que dali partiu se expande e se aprimora.
Assim, o velho “mundo grego”, embora fragmentado e dividido pelos grandes generais e
conquistadores que sucederam a Alexandre, sobrevive.

No pensamento dos epicuristas e estoicos, supera-se a preocupação filosófica


dos clássicos pensadores políticos gregos. Na época helênica, os propósitos da reflexão
se dirigem à busca de regras universais capazes de conduzir os homens a uma nova
concepção de mundo e de vida. Busca-se uma “âncora” filosófica para a vida espiritual.

45
Qualquer pessoa minimamente culta deveria adotar atitudes fundadas no culto à
amizade, amabilidade social, prudência, virtude e um modo inabalável e positivo de
seguir a vida.

Epicuro de Salmos e Zenão ensinavam que é necessário nos afastarmos das paixões
e buscar um ponto de equilíbrio para superar o desatino das emoções e o autocontrole
excessivo: o justo está no meio! A serenidade do espírito, diziam, conduz a uma vida feliz.

Séculos depois, essas doutrinas renascem em Roma através de Cícero e Sêneca.

No Ocidente, ao longo da história, nunca se deixou de admirar a extraordinária


e complexa cultura grega. Para nós, juristas, o legado grego, mantido e aprimorado por
Roma, é permanente fonte de compreensão de conceitos universais que se imortalizaram.
Ainda nos dias de hoje, passados muitos séculos, estamos buscando o essencial e
substancial na justiça, ética e direito. A história grega segue entre nós. No entender do
pensador Finley (1998, p. 345):

Quer tivessem uma visão original das coisas porque chegaram


primeiro, quer fosse por acaso que, chegando primeiro, reagissem à
vida com uma perspicácia sem paralelo, os gregos, de qualquer forma,
mantiveram um brilho perene, como se o mundo fosse iluminado por
aquela espécie de luminosidade das seis da manhã sobre o orvalho
indelével na grama. A cultura dos gregos permanece entre nós, porque
esse frescor puro torna-a nosso modelo como a própria juventude.

FIGURA 17 – ATENA - DEUSA DA SABEDORIA, PRUDÊNCIA, CAPACIDADE DE REFLEXÃO, PODER MENTAL,


AMANTE DA BELEZA E DA PERFEIÇÃO

FONTE: <http://www.infoescola.com/mitologia-grega/atena/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

46
5 O LEGADO ROMANO
O legado grego e o helenismo se expandiram e se perpetuaram graças ao
Império Romano a partir do século II a.C., quando Roma leva a cultura e civilização do
Mediterrâneo oriental para o Norte e Oeste europeu.

Roma foi uma das grandes, se não a maior, potência política da história.
A expansão imperial para inúmeros poderosos reinos e cidades, como Cartago e
Macedônia, além de prósperas cidades gregas derrotadas em guerra e que tiveram seus
territórios anexados, fez de Roma, em 150 a.C., “senhora do Mediterrâneo”.

Para os povos conquistados da Europa Central e Ocidental, a expansão imperial


romana trazia consigo, além da cultura, a dominação militar e econômica. Todos
sucumbiam. As cidades gregas que se alastravam pelas costas do Mediterrâneo, as
terras cartaginesas no norte da África e Ibéria ocidental, os territórios etruscos do Norte
da Itália foram dominados. No auge da conquista, mesmo com disputas e crises políticas
internas, os romanos se impunham aos “bárbaros”.

O comércio era intenso. Os mercadores romanos levavam vinho e artigos


diversos por um vasto território que alcançava o sul das ilhas britânicas, e traziam
metais, peles, mel, lã, azeite etc. e comercializavam escravos.

As conquistas eram movidas por ambição, pelas recompensas para os aliados


e pelo ganho financeiro. Na época de Augusto (27 a.C. – 14 a.C.) a tarefa mais urgente
era alimentar uma população de quase 1 milhão de pessoas que viviam em Roma. O
domínio era visto como necessidade de sobrevivência. Para que os imperadores
e senadores pudessem continuar no poder, distribuíam para o povo pão, vinho e os
grandes espetáculos no Coliseu, pois sabiam que a fome e a falta de atenção voltada
para a política trariam distúrbios indesejáveis.

O grande filósofo e orador Marcus Tullius Cicero (106 a.C. - 43 a.C.) afirmava que
Roma ia à guerra por seus mercadores, que muitas vezes eram os próprios membros do
Senado, ou seja, decidiam sobre a guerra porque lucravam com ela.

Observe no mapa a extensão que atingiu o Império Romano ao longo de sua


história de conquistas:

47
FIGURA 18 – IMPÉRIO ROMANO

FONTE: <http://gabinetedehistoria.blogspot.com.br/2015/05/o-mundo-romano-parte-iii.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

Roma legou uma imensa herança ao mundo e em particular ao direito ocidental.


Entre rupturas e reinvenções, o direito romano sobreviveu quando redescoberto
o Corpus Iuris Civili na Idade Média e renascido na doutrina jurídica do século XIX.
Estudando as instituições e institutos romanos, vemos que existem mais diferenças
que semelhanças. Foram cerca de 700 anos de legado! O direito romano, a partir de um
conjunto de normas esparsas que regiam os conflitos dos antigos romanos, ao longo
de mais de 12 séculos, foi sendo reelaborado e permanece nas instituições liberais dos
Estados contemporâneos.

José Cretela Júnior (1998, p. 9), grande estudioso do direito romano, chama
atenção para os diferentes significados da expressão “direito romano”:

A expressão direito romano é empregada ainda para designar as


regras jurídicas consubstanciadas no Corpus Juris Civilis, conjunto
ordenado de leis e princípios reduzidos a um único corpo, sistemático,
harmônico, mas formado de várias partes, planejado e levado a efeito
no século VI de nossa era por ordem do imperador Justiniano, de
Constantinopla, monumento jurídico da maior importância, que
atravessou séculos e chegou até nossos dias.

A divisão do Império Romano em 395, após a morte de Teodósio, entre Império


Romano do Ocidente e Oriente, e a posterior queda como resultado de uma soma de
fatores, tais como o enfraquecimento militar, crise do escravismo e expansão bárbara,
não foram suficientes para colocar fim à cultura e ao direito romano. O grande legado
deve-se a Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus (483 – 565), conhecido como Justiniano
I, imperador do Império Romano do Oriente. De origem humilde, foi nomeado cônsul por
seu tio que o fez sucessor. De inteligência ímpar, tornou o Império Bizantino um esplendor.

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Seu grande mérito foi o de ter conservado, através do trabalho de compiladores,
as obras dos jurisconsultos romanos. Mesmo após o fim de Roma, Justiniano, em 438,
publica sua grande obra: Corpus Juris Civilis. O trabalho era composto por quatro partes
distintas:

• Codex: leis imperiais.


• Digesto (Pandectas): compilação dos mais de 1.500 livros escritos pelos
jurisconsultos, particularmente as obras de Ulpiano, Gaio, Papiniano, Paulo e
Modestino, que elaboravam pareceres e conceitos jurídicos.
• Institutas: espécie de manual para ensino do direito.
• Novelas (Novallae): espécie de constituições imperiais feitas pelo próprio
Justiniano depois da publicação do Codex.

FIGURA 19 – CORPUS JURIS CIVILIS

FONTE: <http://sala2epcd.blogspot.com.br/2014/10/progressao-parcial_23.html>. Acesso em: 11 abr. 2017.

FIGURA 20 – JUSTINIANO

FONTE: <http://sala2epcd.blogspot.com.br/2014/10/progressao-parcial_23.html>. Acesso em: 11 abr. 2017.

49
Embora a expressão Corpus Juris Civilis não tenha sido criada por Justiniano,
mas possivelmente pelo romanista francês Denis Godefroid por volta do ano 1583, em
geral, traduz todo o trabalho composto pelas Institutas, Pandectas, Digesta e Codex.
Graças a esse enorme esforço é que o direito romano foi legado para a posteridade.

Além da lei das XII Tábuas, a Lex Licinia, de 357 a.C., foi feita para permitir o
casamento entre patrícios e plebeus. Para as hostes ou peregrinos (os “estrangeiros”)
eram concedidos alguns direitos – Ius gentium – que regulavam a convivência com
os patrícios. Os não romanos constituíam uma gama imensa de indivíduos, desde as
pessoas livres até os rendidos em guerras.

Em síntese, Roma era um universo fragmentado e complexo que se expressa no


direito. Como chama atenção Juan Ramón Capella (2002, p. 65-66):

O estatuto pessoal não coincidia exatamente com a riqueza: um ci-


dadão romano pobre podia ter em uma província do Império privilégio
de que careciam os ricos do lugar (Paulo de Tarso não deixou de invo-
cá-los quando lhe detiveram as autoridades provinciais judias). A si-
tuação dos escravos era desesperada: muito poucos podiam esperar
passar a serem livres – acaso a velhice, e isso se tratava de pessoas
que houvessem prestado serviços especiais a seus donos –; a mul-
tidão de escravos que se rebelou com Espártaco foi integralmente
exterminada depois da derrota militar (71 a.C.), única ocasião em que
Roma realizou uma guerra de extermínio, claramente “exemplar”.

A rebelião liderada por Espártaco, um valoroso combatente vencido em guerra


que se tornou gladiador e revolucionário, colocou literalmente Roma em colapso.
Chegou a reunir cerca de 90 mil combatentes e após muitas batalhas acabou morto
em combate, enquanto outros seis mil sobreviventes foram crucificados na Via Ápia –
caminho entre Roma e Cápua.

DICAS
Espártaco: a respeito do tema, existem filmes clássicos e alguns sites
interessantes, como http://bit.ly/3Oywak4. Acesse e confira.

Pode-se afirmar que, em linhas gerais, o antigo direito romano se caracterizava


por ser:

1. Parcialmente plural: porque conviviam distintas fontes de regulação para os


distintos indivíduos que habitavam ou circulavam no território romano.

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2. Formalista: desde sua origem os romanos exerciam rituais para dar efetividade e/
ou legitimidade aos atos judiciais.
3. Parcialmente não estatal: havia regulações, normas válidas, que nasciam dos
costumes e tradições dos povos submetidos ao poder imperial romano. Além disso,
era permitido que fossem criados acordos ou pactos entre particulares. Portanto,
o direito não nascia exatamente de uma autoridade, mas entre pactos e práticas
existentes que foram se justificando.
4. Tecnicista: ao longo do tempo, os pretores – magistrados que tratavam de questões
jurídicas, divididos entre urbanos (questões jurídicas da cidade) e peregrinos
(questões jurídicas em áreas rurais), exerciam o cargo por cinco anos – publicavam
Éditos que expressavam princípios, regras e fórmulas processuais que utilizavam
em suas decisões. Aos poucos os Éditos se transformaram em técnicas que se
institucionalizavam através das práticas dos tribunais.

FIGURA 21 – SENADO ROMANO

FONTE: <http://www.laifi.com/laifi.php?id_laifi=5285&idC=79256#>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Roma legou ao direito ocidental importantes institutos jurídicos, principalmente


no direito privado, criado para proteger os interesses dos patrícios. Os conceitos
jurídicos, a retórica e argumentação, bem como os institutos jurídicos constituíram uma
herança imensa e rica.

Embora sofrendo reinvenções de significados, destacam-se os seguintes


institutos jurídicos romanos herdados à contemporaneidade:

• Família: De forma muito distinta da atual, a família romana era o grupo submetido
ao poder do pater familias.
o O casamento tinha uma natureza social e jurídica. Era uma relação entre
homem e mulher sustentado pelo affectio maritalis e tinha a finalidade de gerar
descendentes.

51
o A mulher exercia papel social, mas estava vinculada ao marido por um poder
chamado manus, espécie de poder doméstico que conhecemos como poder
marital. O manus permitia ao homem castigar a mulher e repudiá-la. Com a Lei
das XII Tábuas criou-se uma exceção: o casamento sine manus. Porém, quase
que até recentemente na história, o casamento cum manus foi regra.
o Os romanos conheciam também o divórcio como instituto jurídico. O divórcio
colocava fim ao casamento. Nos tempos mais antigos, o divórcio apenas existia
na forma de repúdio, até que já na república poderia ocorrer por inciativa de
qualquer um dos cônjuges.

• Direitos Reais: O termo “reais” deriva da palavra “res”, que significa “coisa”. Coisa é
tudo aquilo que existe na natureza e pode ser incorporado ao patrimônio. Para os
romanos havia coisas corporais, individuais e autônomas.

Você notará ao estudar Direito Civil como esses conceitos são importantes!

Para os romanos havia três tipos de coisas: res divini iuris (propriedade dos
deuses); res communes omnium (coisas comuns como água e ar) e res publicae (coisas
de propriedade do Estado).

Ainda havia res mancipi (as que necessitam de ato solene para sua transmissão)
e res nec mancipi, móveis, imóveis, divisíveis e indivisíveis etc.

Ainda faziam a distinção entre os institutos da posse e propriedade. Posse é


derivada de uma condição jurídica, por exemplo, um contrato de arrendamento, era uma
condição originada de um fato. Já a propriedade era um poder absoluto sobre a coisa,
uma relação direta do proprietário com o bem. A propriedade derivava de um direito. Não
se tratava de um poder ilimitado, sendo restrito ao interesse de vizinhança, por exemplo,
a servidão, ou mesmo ao interesse público. Criaram os conceitos de servidão, usufruto
e enfiteuse como formas de limitação do direito de propriedade.

DICAS
Busque a diferenciação desses conceitos no direito civil. Há bons
dicionários jurídicos pela internet. Sugere-se https://dicionariojuridico.
online/.

Os romanos legaram os conceitos de Sucessão e Obrigações, que são


institutos jurídicos para regular as relações civis, como você verá ao estudar Direito Civil
Brasileiro.

52
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Os gregos antigos, particularmente, os atenienses, foram os que romperam com o


pensamento mítico.

• Os gregos elaboraram, desde uma cosmogonia, os grandes fundamentos éticos e


filosóficos do direito ocidental.

• Embora com distinções entre as pólis gregas, a relação entre direito, política e
cidadania é a essência do conceito de justiça naquela sociedade.

• O direito romano se constituiu desde relações sociais, políticas e econômicas da


antiga Roma.

• As profundas diferenças sociais entre patrícios e plebeus são as causas centrais da


criação do chamado direito civil romano, que era o direito dos patrícios.

• Os romanos foram “gigantes” na construção dos principais conceitos do direito civil


moderno.

• Há de se compreender o direito romano desde as distintas etapas históricas e


reinvenções pelas quais passou até chegar à modernidade.

53
AUTOATIVIDADE
1 Uma das importantes fontes de estudo do antigo direito grego são as obras literárias,
dentre as quais a clássica obra de Sófocles "Antígona". Escrita no século V a.C., a
obra narra a trágica estória de Antígona que enfrenta um dilema legal após a morte
de seus dois irmãos, tendo que escolher entre o Direito Natural e o Direito Positivo.
Descreva a diferença para os antigos gregos entre Direito Natural e Direito Positivo.

2 O mundo grego antigo conheceu distintas formas de organização e instituições


políticas e jurídicas. Entretanto, de todas as pólis gregas, uma legou para a história
ocidental o modelo de democracia e direito. Sobre essa pólis, assinale a alternativa
CORRETA:

a) ( ) Esparta.
b) ( ) Éfeso.
c) ( ) Macedônia.
d) ( ) Atenas.

3 Os romanos, além de terem edificado um dos maiores impérios da história, legou


ao Direito os institutos do Direito Civil, que foram sistematizados no século V por
Justiniano na obra conhecida como Corpus Iuris Civili. Escreva uma redação com o
tema: O LEGADO DO DIREITO ROMANO PARA O DIREITO CIVIL MODERNO.

4 Na Idade Média, o Direito Romano era mantido pelos estudiosos, sobretudo nas pri-
meiras universidades, como é o caso da Universidade de Bolonha, na Itália e Sala-
manca, na Espanha. Sobre o direito na Idade Média, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O Direito Romano na Idade Média era objeto de estudo dos glosadores e


comentadores.
b) ( ) O Direito Romano era estudado também fora das Universidades, uma vez que
naquela fase era muito grande o número de pessoas que dominavam o latim.
c) ( ) Os romanistas eram apenas os católicos e o estudo do Direito Romano deveria
ser autorizado pelo papa.
d) ( ) O Direito Romano foi mantido pelos árabes muçulmanos, que foram os grandes
estudiosos da filosofia helênica.

54
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
O DIREITO NO MUNDO MEDIEVAL

1 INTRODUÇÃO
A verdadeira desintegração do Império Romano, longo processo que se inicia
em torno do século V, marcado pela divisão do império em Oriente e Ocidente em 476,
a expansão dos reinos bárbaros e a ascensão do cristianismo são fatores que marcam
a entrada do mundo ocidental em um novo estágio civilizatório. A Idade Média será um
longo período histórico marcado pela hegemonia do poder da Igreja, herdeira do legado
filosófico da antiguidade, e relações socioeconômicas feudais. Será uma etapa em que
os valores culturais, ideológicos, políticos e filosóficos se assentarão nos valores cristãos
e pela centralização do poder eclesiástico.

Apesar do legado cultural da antiguidade, a fase medieval é marcada por


profundas diferenças.

Enquanto na Antiguidade os homens eram valorizados por suas


posses, qualidades e por seus feitos heroicos, excluindo os pobres,
mulheres e os escravos, na sociedade cristã ocidental se reconhece
o homem como unidade composta de matéria e espírito. A reviravolta
proporcionada pelo cristianismo ao afirmar que o bem maior não é o
Estado, mas o homem dentro da sociedade, possibilita a edificação da
concepção transcendental de dignidade das ‘modernas declarações
de direito’ (WOLKMER, 2006, p. 38).

FIGURA 22 – SOCIEDADE MEDIEVAL

FONTE: <http://sociedademedieval.weebly.com/>. Acesso em: 11 abr. 2016.

55
Marcada por relações sociais estamentais – ordens/grupos sociais divididos e
sem mobilidade –, a sociedade medieval era um universo profundamente hierarquizado,
no qual a nobreza e o clero detinham o poder, restando aos servos a submissão aos
senhores em troca de proteção e uso da terra para a sobrevivência.

A doutrina cristã vai se definir como o eixo central da moral, ética, leis e
fundamento das instituições políticas e jurídicas desta etapa. É das lições do cristianismo
e dos fundamentos bíblicos aliados à releitura da tradição grega e romana que serão
elaborados os preceitos de direito e justiça.

Durante a Idade Média, no mundo ocidental, predomina uma visão homogênea


de cristianismo fundada em verdades e dogmas difundidos pelos doutores da Igreja. A
filosofia e o direito se submetiam ao controle da teologia cristã e da doutrina da Igreja,
que irão dialogar com pensadores como Platão e Aristóteles.

Aliar fé (pístis) e razão (logos) será o grande esforço desta etapa, que pode ser
sintetizada pelos seguintes elementos caracterizadores:

• A hegemonia do monoteísmo cristão no mundo ocidental.


• A adoção da teoria criacionista – origem do mundo e controle do tempo por Deus.
• O antropocentrismo – assumindo o homem (ser criado à imagem e semelhança de
Deus) lugar privilegiado na história.
• Condição humana marcada pelo pecado cuja redenção depende do perdão divino
condicionado à adoção do modo de vida cristão.
• A incorporação na natureza humana dual platônica – corpo e alma racional – o
espírito (pneuma) que é o elo como o divino através do exercício da fé.
• O sentido do amor divino como único verdadeiro que conduz à redenção.
• Concepção linear e progressiva da história (anunciando o fim com o Juízo Final).

É na Alta Idade Média, entre os séculos V e IX, que serão elaborados os


fundamentos da chamada Patrística, pelos padres (pais) da Igreja, cujos fundamentos
e sistematizações tiveram como objetivo central a criação dos dogmas centrais da
religião cristã que acabarão por institucionalizar a própria fé e, a partir dos princípios
desta fé cristã, extraídos os conceitos de Direito e Justiça que irão nortear as práticas
de controle daquela sociedade.

2 A PATRÍSTICA E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO


Muitos serão os padres que irão assumir a tarefa de edificar os fundamentos da
fé cristã, sendo este período conhecido como Patrística (etapa que se estende entre os
séculos II ao VI). Destes pioneiros da filosofia e teologia cristã, podem ser elencados duas
grandes correntes: os “filiados” à tradição helênica, mais especulativos e de discussões
mais metafísicas da teologia, como São Irineu, São Basílio, Orígenes; e os latinos,

56
de inclinação mais prática, como São Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho.
Entretanto, é em Santo Agostinho que a Patrística encontra o ponto de convergência e
maior complexidade.

FIGURA 23 – SANTO AGOSTINHO (354-430) - MUSEU FITZWILLIAM - CAMBRIDGE

FONTE: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 11 abr. 2016.

Santo Agostinho, ou Aurélio Agostinho, o Bispo de Hipona, é considerado o


grande conciliador entre a filosofia grega e o cristianismo. O conjunto de sua obra tem
como ponto de partida a defesa da revelação da palavra de Deus na Bíblia; desde aí,
produz uma vasta produção cujos trabalhos mais relevantes para o Direito são Confissões
e Cidade de Deus. Na primeira narra sua trajetória de vida, que até sua conversão passa
por inúmeras experiências, dentre as quais o maniqueísmo, que estará presente em seu
pensamento. Sua conversão em 386 representa a absoluta adesão à filosofia enquanto
instrumento de reflexão e compreensão racional da fé.

A concepção agostiniana acerca do justo e injusto pode ser compreendida a


partir da própria teologia aliada à metafísica platônica, tão bem evidenciada na obra
Cidade de Deus. “O tema em Agostinho remete ao estudo do problema da justiça
fundamentalmente à discussão da relação existente entre lei humana (lex temporalem)
e lei divina (lex aeterna), onde está compreendido o estudo das diferenças, influências,
relações etc. existentes entre ambas” (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 173).

Sua concepção de justiça tem no platonismo a principal fonte de inspiração e


justificação. Defende que a justiça humana – falha, transitória, imperfeita e corrupta
– apenas será corrigida pela justiça divina – eterna, perfeita e incorruptível. As leis
humanas, que regulam a relação entre os homens, devem ser inspiradas em leis divinas
que têm como fonte o maior dos legisladores: Deus, que diferentemente dos homens é

57
ilimitado, tudo sabe e tudo vê. Assim, a justiça divina deve comandar e inspirar a justiça
humana, que tem sua origem na própria criação de Deus, mas que por imperfeições e
erros humanos acabou sendo desvirtuada.

Há que se lembrar que na lógica judaico-cristã o pecado original corrompeu o


homem e está na base de todo sofrimento humano. Por sua própria culpa o homem é
corrupto, pois se afastou de seu Criador.

E, nessa ordem de ideias, em que homens, instituições, governos,


julgamentos, ordenações, organizações, comportamentos são
corruptos, também leis são corruptas. Este é o estado de coisas
humano: esse é o estatuto da lei humana. A justiça, portanto, nessa
orientação, é viciada ab origine. A justiça, dentro dessa dimensão,
vem compreendida como algo profundamente marcado pelos
próprios defeitos humanos (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 177).

Embora a preocupação de Agostinho não tenha sido o tema do Direito, o


conjunto de sua obra permite extrair importantes elementos para a compreensão da
política, dos fundamentos e relações entre Direito Natural (divino) e Direito Positivo
(humano), legitimidade do poder político e o sentido da justiça.

Para Truyol Serra (1982, p. 215), Agostinho é pessimista em relação aos homens
– a crença no pecado original que corrompeu sua natureza divina –, o que faz com
que seja necessária a submissão da lei humana à divina, tendo a mesma lógica em
relação ao poder político. Portanto, a verdadeira justiça só será efetiva se alicerçada no
cristianismo e na prática da fé.

Em síntese, pode-se afirmar que sua doutrina possui os seguintes traços


característicos:

• A razão deve ser aliada à fé a fim de que seja possível a iluminação interior.
• Redefine o platonismo – é forte em sua obra o dualismo platônico como corpo/
alma; terreno/divino; imperfeito/perfeito; mutável/imutável etc. – encontrando na
transcendência divina cristã a essência da verdade.
• Desenvolve os grandes dogmas da Igreja, tais como o da Santíssima Trindade, além
da tese do criacionismo.
• Conceito de “mal” como mero resultado degradante do afastamento de Deus pelo
próprio homem.
• Existência concomitante de dois poderes: o Divino – que governa a Cidade Celeste
cujos cidadãos participam e comungam do amor de Deus – e o Humano – onde
vivem os que se afastaram do verdadeiro amor e serão julgados no Juízo Final.

58
ESTUDOS FUTUROS
Na próxima unidade você poderá perceber que são muitos os elementos
do pensamento moderno em que se encontram elementos do
pensamento agostiniano, tais como o conceito de Estado e legitimidade
de poder político.

DICAS
Em http://www.mundodosfilosofos.com.br/agostinho.htm, você poderá
encontrar a biografia de Santo Agostinho.
Verá como o pensamento deste importante filósofo reflete suas
inquietações pessoais e trajetória de vida que o levaram à conversão e a
assumir a tarefa de edificar o fundamento do cristianismo.
Ainda, em https://www.wdl.org/pt/item/11301/, é possível consultar as
obras de Santo Agostinho.

No início do século XII o cristianismo e o poder da Igreja já haviam se consolidado


na Europa, perdendo, assim, urgência, a necessidade de afirmação da teologia cristã
e a autoridade intelectual dos doutores da Igreja, que já estavam consolidadas, não
havendo mais ameaça de nenhuma outra cultura ou forma de paganismo para suas
estruturas de dominação. O clero prosperava e já então era possível dedicar-se mais à
investigação de novas culturas, particularmente as do Império Bizantino e do islamismo,
que souberam preservar os antigos manuscritos da cultura helênica.

Num contexto sem precedentes de aprendizado patrocinado


pela Igreja e sob a influência das forças maiores que animavam a
emergência cultural do Ocidente, estava preparado o cenário para
a mudança radical nos alicerces da concepção cristã: no ventre da
Igreja medieval, a filosofia cristã de negação do mundo elaborada
por Agostinho e baseada em Platão começou a dar lugar a uma
interpretação fundamentalmente diferente de existência, conforme
os escolásticos recapitulavam a evolução intelectual do movimento
de Platão a Aristóteles (TARNAS, 2011, p. 198).

As transformações são desencadeadas desde então, coincidindo com a


redescoberta ocidental de boa parte dos textos de Aristóteles, preservados pela cultura
árabe, e desde então traduzidos para o latim, e com eles também obras da ciência grega,
particularmente a de Ptolomeu.

59
Este inédito episódio, que trouxe uma complexa cosmologia científica e a
sofisticação aristotélica desconhecida, atrai os pensadores da Igreja, em especial os
escolásticos.

A Escolástica é o último período do pensamento cristão medieval, que vai do


começo do século IX até o fim do século XVI, da constituição do sacro romano império
bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da
América (1492). O termo escolástica tem sua origem relacionada à filosofia ensinada
nas universidades, pelos mestres escolásticos. Esta é uma etapa de grande avanço do
ensino superior, as universidades se tornaram centros de discussão, o que chamou a
atenção dos eclesiásticos para o “perigo” das diversidades acerca da verdade cristã.
Até quando, por autorização papal, em 1215, a Universidade de Paris recebe o direito de
autonomia em relação à busca pelo conhecimento.

A preocupação inicial de “contágio” do paganismo filosófico de Aristóteles à fé


cristã acabou tendo efeito não desejado e cada vez mais os “livros proibidos” passavam
a ser objeto de curiosidade e investigação.

DICAS
O clássico filme O Nome da Rosa, baseado no romance homônimo de
Umberto Eco e dirigido por Jean-Jacques Annaud, é uma ficção que
trata exatamente de uma trama diabólica e violenta que se abate sobre
um mosteiro no século XIV, quando valores e dogmas tradicionais do
cristianismo são questionados.
Na biblioteca do mosteiro, são mantidas, às escondidas, obras da filosofia
grega antiga consideradas heréticas, portanto perigosas para a fé cristã.
Aos curiosos, que liam às escondidas, é reservado o pior dos castigos: a
morte por envenenamento.
Caso não tenha assistido, sugerimos que o faça.

É neste ambiente de tensão, entre Fé e Razão, que Tomás de Aquino e seus


discípulos enfrentam, magistralmente, o desafio e aparentes contradições da cultura
grega e o cristianismo, preparando o firme terreno por onde se edificaria a ciência
moderna. A ele foi legada a tarefa de integrar de forma coerente o legado grego à fé
cristã, e, atento às transformações de seu tempo, soube dar “de modo impressionante
a virada do pensamento ocidental sobre seu eixo na Alta Idade Média para uma nova
direção da qual a mente moderna seria herdeira e depositária” (TARNAS, 2011, p. 201).

60
FIGURA 24 – SÃO TOMÁS DE AQUINO

FONTE: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 11 abr. 2016.

Diferentemente dos teólogos tradicionais, Aquino não se opunha às inovações


da ciência, uma vez que reconhecia na natureza a criatividade divina, e conhecê-la
não era nenhuma ousadia, pois Deus ainda permaneceria soberano, uma vez que a
racionalidade humana era dom divino e o exercício da liberdade era dádiva por Ele
concedida.

Estava convencido de que a Razão e a Liberdade tinham valor em si e o objetivo


de ambas era servir mais a Deus. As qualidades humanas eram expressões do próprio
Criador, uma vez que o homem era feito à sua imagem e semelhança.

A obra de Tomás de Aquino é imensa, mas, sem dúvida, a Summa Theologica


é a que expressa de forma sistemática o pensamento cristão e a relação deste com
inúmeras matérias, como antropologia, política, ética e direito. Na concepção tomista,
o homem é um ser naturalmente voltado para a felicidade e o pecado é um agir em
sentido inverso que, pela bondade divina, constitui uma escolha, uma vez que o homem
é um ser livre. A liberdade é a precondição para qualquer ato ser considerado moral, pois
um ato só é humano se for livre, ensinava Aquino.

A liberdade tem, para o pensamento tomista, como pressuposto, o conhecimento


de todas as alternativas para que possa escolher de forma virtuosa. Sendo, portanto, a
obrigação moral de origem natural no ser humano, que deve praticar o bem e evitar o mal.

Os fatores e condições aceitos que se apresentam razoáveis aos homens são:

61
• O homem tem o dever moral de proteger sua vida e sua saúde,
razão pela qual o suicídio e a negligência constituem um erro.
• A necessidade natural de propagar a espécie resulta na
necessidade fundamental de união de um homem e uma mulher.
• Tendo em vista que o homem busca a verdade, seu melhor
meio de consegui-lo consiste em viver em harmonia social com
seus concidadãos, que também estão engajados em tal busca.
Para assegurar uma sociedade ordenada e harmoniosa, as leis
humanas são moldadas de modo que sirvam de diretrizes para
o comportamento da comunidade (MORRISON, 2006, p. 78-79).

Desde aí podem ser compreendidos os princípios que devem reger as leis


humanas, que se originam do estado natural do homem, devendo a razão e a moral
orientarem-se por estas tendências e capacidades. Tais qualidades formam o Direito
Natural, um hábito interior, mas pela insuficiência e incompletude humana é necessário
o Direito Positivo, portanto, obrigação moral imposta pela razão.

A lei nada mais é que um ordenamento da razão tendo em vista o bem comum
promulgado por aquele que tem o encargo de cuidar da comunidade (pergunta 90, r. 4)
(AQUINO, 2001).

Aquino (2001 apud MORRISON, 2006) define a lei na lógica tomista como:

• Lei Eterna: a lei é um ditame da razão prática que emana do governo que rege uma
comunidade perfeita. Portanto, a ideia mesma do governo das coisas em Deus, o
senhor do Universo, tem a natureza de uma lei. E, como a concepção das coisas da
razão divina não está sujeita ao tempo, mas é eterna, conclui-se que essa espécie
de lei deve ser chamada de eterna (pergunta 91, r. 1).
• Lei Natural: a lei natural é a parte da lei eterna que diz respeito especificamente ao
ser humano. Se o homem não pode conhecer a totalidade de Deus, a racionalidade
humana garante sua participação na razão eterna, através da qual ele identifica
uma tendência natural (normativa) à prática de atos e a fins adequados. A lei natural
nada mais é que a participação da criatura racional na lei eterna (pergunta 91, r. 2).
• Lei Humana: as leis escritas – leis humanas – devem derivar de preceitos gerais da lei
natural. Sendo, portanto, o direito um “ditame da razão prática”. A forma de se extrair
as conclusões da lei é semelhante ao que ocorre com a “razão especulativa”. Da
mesma forma que chegamos a conclusões distintas nas ciências, do mesmo modo,
a partir dos preceitos da lei natural, a razão humana deve atingir determinações
mais particulares de certas questões. O que confere à lei sua legitimidade é sua
dimensão moral originada do Direito Natural.
• Lei Divina: sua função é dirigir o homem a seu devido fim, que é revelado nas
Escrituras Sagradas como forma de graça divina para que o homem possa atingir
seus fins espirituais e naturais. A lei divina provém diretamente de Deus e é
conhecida pela fé, esperança e amor.

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Em síntese, pode-se compreender a teoria em Tomás de Aquino como parte do
pressuposto de o homem, enquanto ser racional e livre, escolhe sua conduta e, por não
conhecer plenamente os desígnios de Deus, desvia-se do verdadeiro caminho pecando.
Portanto, a autodeterminação que é uma bênção também é motivo da perdição e causa
do mal (ausência do bem).

3 A CULTURA JURÍDICA MEDIEVAL


Desde os primórdios do que iria ser definido como cultura jurídica medieval e
superadas as questões intelectuais e políticas que envolveram a cristandade, proble-
mas específicos na esfera jurídica apenas surgem no século XI, quando o ambiente
econômico, político e urbano do norte da Itália exige uma nova compreensão inte-
lectual da matéria jurídica e da administração da justiça, impulsionando uma cultura
profana acerca do direito orientada não apenas para e pelas autoridades, mas para
um mundo autônomo.

Diante disso, a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e
intemporal da sua própria vida. Os textos da antiguidade eram, por isso, intocáveis no seu
valor, se bem que a sua utilização (aplicação) na vida medieval continuava a constituir
um problema que exigia um enorme e continuado esforço da razão cognitiva. Neste
contexto, a expressão máxima de valor textual era a Sagrada Escritura e os demais de
cunho teológico a ela relacionados. De forma correlata, na esfera jurídica, o texto que
gozava do mesmo status era o Corpus Iuris, que exercia sobre o pensamento jurídico
medieval a força de uma revelação do direito.

É neste ambiente que na primeira metade do século XII o monge Irnerius,


ao iniciar sua cátedra em Direito Justiniano em Bolonha, deu origem à escola dos
glosadores, trabalho posteriormente seguido em distintas partes da Itália e França.

Segundo António Manuel Hespanha (2005, p. 198), “as características mais


salientes e originárias do método bolonhês são a fidelidade ao texto do códex Justiniano
e o caráter analítico e, em geral, não sistemático”. A justificativa para o apego fiel ao texto
é por ser considerado de origem sagrada, por acreditar-se na época que Justiniano
fosse contemporâneo de Cristo, sendo, portanto, inadmissível outra interpretação que
não consistisse num ato de humilde esclarecimento do sentido das palavras.

Assim, o trabalho dos glosadores na interpretação exegética do texto de


Justiniano ia paulatinamente se transformando numa dogmática, por criar uma
linguagem técnica acerca do direito, entretanto, sem a preocupação exclusivamente
prática, mas com objetivo teórico-dogmático, ou seja, de demonstrar a racionalidade de
textos jurídicos sagrados.

63
Este trabalho acabou por influenciar a cultura jurídica da época, em função da
autoridade intelectual destes juristas, que gozavam de um prestígio próximo ao sagrado,
além da exegese textual, um verdadeiro racionalismo contemplativo e puramente
intelectual, que serviu de legitimação do direito positivo moderno, quando é travestido
em “vontade política geral” da nação com finalidade prática sob o comando do Estado.

Na Idade Média, quanto mais prática necessitava ser a interpretação dos textos
jurídicos, mais ia se aproximando de técnicas suficientemente capazes de harmonizar,
construir regras e princípios do que foi sendo definido como dogmática jurídica.
Entretanto, a esta dogmática jurídica faltava o revestimento da “verdade” enquanto
categoria lógica e autônoma.

O avanço no sentido de edificar a moderna cultura jurídica será dado pelos


comentadores, como foram designados os novos “práticos” do direito pré-moderno,
que acabaram por transformar o Direito de Justiniano no direito comum da Europa
(HESPANHA, 2005).

O avanço urbano e mercantil europeu dos séculos XIII e XIV exigia maior
valorização do direito local em relação ao direito comum cultivado pelos letrados. Estes
pós-glosadores, “arquitetos da modernidade” ao lado de Dante, Giotto e Petrarca, foram
os responsáveis em estabelecer a relação entre o jus commune com o jus speciale local.

Este processo acabou por conduzir a uma unidade racional e lógica das distintas
concepções, mas com uma finalidade prática, o que vai ultrapassando os glosadores por
constituir-se numa interpretação menos comprometida com a “sacralidade” dos textos
de Justiniano, além de também fundada numa atitude mais racionalista no sentido de
guiar o pensamento por critérios lógicos tal como haviam sido herdados por Aristóteles.

Entretanto, o direito, tanto para os comentadores, como havia sido para os


glosadores, era considerado um repositório de experiências de natureza indiscutível,
mesmo quando contraditório. Por esta razão, todo trabalho de sistematização foi
realizado segundo uma ordem formalmente preestabelecida, porém, criando inovações
dogmáticas que se tornam permanentes na modernidade.

A inovação no plano interpretativo foi a oposição entre o texto de lei (verba)


e seu espírito (mens). Esta distinção era baseada no princípio medieval da linguagem
segundo o qual as palavras eram invenções humanas feitas para permitir exteriorizar um
pensamento, um espírito, sendo as palavras verdadeiras expressões da alma. O espírito
da lei enquanto valor encontrava apoio, por exemplo, no Digesto, scire leges non est
verba earum tenere sed vim ac potestate (saber as leis não é dominar a sua letra, mas
seu sentido e intenção). Para além desta tarefa era realizado um outro trabalho, mais
importante: a interpretação lógica dos preceitos jurídicos.

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A interpretação lógica partia da concepção de que o texto era a expressão
de uma ideia geral (ratio) tal qual o autor expressou em cada parte, sendo assim, o
texto compreendido a partir da inter-relação do conjunto dos contextos, ou seja, cada
preceito jurídico isolado é compreendido a partir do texto normativo que o constitui – do
instituto jurídico – extraído das ideias formadoras iniciais – a dogmática. A ratio legis
era obtida através de um procedimento lógico dialético, segundo as regras aristotélicas,
que acabava se tornando um processo inovador e, portanto, criativo.

4 A HERANÇA CULTURAL PARA A MODERNIDADE


O saber jurídico edificado pelos comentadores acabou por colocar em marcha
uma lógica que conduziu à unificação interna do ordenamento jurídico, chegando no
século XVI já pronta para sua cientifização. Como lembra Hespanha (2005), o paciente
trabalho dos comentadores tornava viável um movimento de síntese, pelo qual todo o
direito fosse reunido num sistema teórico orgânico submetido a axiomas e regras.

Enfim, estava pronto e logicamente fundamentado um sistema coerente que


poderia adquirir novo status independente da tradição romanística, já sendo possível
avançar no sentido de libertar-se da árdua e laboriosa interpretação dos textos da
antiguidade para sua fundamentação, abrindo-se, assim, o direito para uma perspectiva
racionalista, produto de princípios universais que designam as condições institucionais
de normatizar as relações sociais. Estava definitivamente superada a fase de construção
sistemática do direito.

É o ambiente filosófico do século XVII que vai fornecer elementos para uma
concepção de direito estável e previsível, como a própria razão cartesiana dominante.
Um projeto perseguido pelos juristas modernos que se distinguia do idealizado pelos
romanistas clássicos, para os quais o direito era uma arte orientada por regras prováveis
de estabelecer o justo que admitiam conflito de opiniões. Com a secularização do
conhecimento e a quebra de hegemonia religiosa provocada pela Reforma Luterana,
a validade do direito deveria ser buscada independente da crença religiosa. Com
esta laicização, o fundamento do direito se desloca para valores referenciais laicos,
comuns a todos e válidos pela evidência exclusivamente racional. É assim que se vai
firmando o jusnaturalismo moderno, que se aproxima metodologicamente das ciências
matemáticas, uma tendência de submeter o mundo humano ao mundo da natureza.
Todos os seres regidos pelas mesmas leis e movimentos, enfim, a ordem e certeza do
otimismo cartesiano.

65
LEITURA
COMPLEMENTAR
NOTAS PRELIMINARES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA: POR UMA TEORIA
DA HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL

Gustavo Silveira Siqueira

Segundo António Manuel Hespanha, existem quatro modos principais de enten-


der a História do Direito: História das “fontes do direito”, História da dogmática “jurídica”,
“História das instituições” e a influenciada pela “escola dos Annales”, que aqui intitula-se
História social. A “História das fontes” preocupa-se em estudar as normas jurídicas pro-
mulgadas por determinado Estado. A “História da dogmática” descreve as ideias dos dou-
trinadores, preocupando-se com o desenvolvimento dessas e dos sistemas “de conceitos
utilizados pelos juristas para expor o Direito por eles considerados vigentes”.

Preocupando-se com as leis positivas de determinado Estado, “história


das fontes” é de fundamental importância para que o pesquisador do Direito possa
conhecer as leis que regeram seu país em determinado período histórico, mas, por outro
lado peca, ao se preocupar somente com elas. Não basta o mero conhecimento das
normas jurídicas em determinado período, é necessário conhecer como a sociedade
relacionava-se com essas normas. É necessário perceber a eficácia, a legitimidade e,
em especial, os fundamentos políticos, jurídicos, sociais e econômicos que levaram à
positivação daquelas regras.

A “História da dogmática” poderia tentar suprir essas lacunas, mas o estudo


apenas de conceitos jurídicos em determinados momentos não resolve os mais graves
problemas enfrentados pela “História das fontes”.

A “História da dogmática” pode ser uma história desconectada da realidade, ao


se pautar apenas em grandes homens ou grandes pensadores que analisam os grandes
feitos, e se esquecem dos “pequenos homens” e dos “pequenos feitos”. A grande falha é
que esses modos de entender a História do Direito partem do princípio “de que o modo
de ser da ordem jurídica está dependente da vontade do legislador ou das construções
intelectuais dos juristas, pouco ou nada tendo que ver com os restantes aspectos da
vida social”. Elas sonegam o “estudo social do direito”, sonegam os diversos fatores
relacionados à norma jurídica: em especial, as causas e efeitos das normas jurídicas. As

66
causas, os motivos, os fundamentos da positivação de determinada lei e os efeitos que
essa lei surtiu. Especialmente no Brasil, que vive um constante descompasso entre a
aplicação do Direito e sua positivação, assim como das “ideias jurídicas” e da realidade
social, impõe-se o questionamento desses modelos.

A chamada História das instituições pretende identificar o Direito “não como um


conjunto de normas alheias à realidade social concreta, mas antes com uma regulamentação
da vida”, que “combinando-se e inter-relacionando-se com outros sistemas de valores
(moral, etiqueta, religião) na função, comum a todos eles, de resolver os conflitos sociais
e de dar coesão ao todo social”. Nesse sentido, a História das instituições estuda o Direito
relacionando-o com os fatos sociais, verifica como esse Direito é encarado pela sociedade
e que se relaciona com outros sistemas normativos sociais.

História social pretende, basicamente, superar a História positivista, superar as


barreiras entre diversos setores da História, com a finalidade de estabelecer uma História
global e, em especial, encara “a História não como ciência do passado – como atividade
intelectual que se esgota na erudição ou na busca do exotismo histórico –, mas como
ciência do presente, na medida em que, em ligação com as ciências humanas, investiga
as leis de organização e transformação das sociedades humanas”. Um estudo de
História do Direito, que busca uma visão completa de determinado fenômeno jurídico,
em determinado período social ou que tenta compreender normas que atravessam a
História do direito, não pode deixar de perceber todas essas metodologias. Todas essas
correntes, e outras, devem incomodar o pesquisador da História do direito, para que ele
encontre essas visões não como barreiras, mas como metodologias a serem superadas.
Uma História do Direito, conectada com a realidade brasileira, deve conhecer as leis, deve
conhecer o pensamento jurídico de determinada época, mas deve também perceber
como a sociedade se relacionava com essas normas jurídicas. Sem compreender isso,
não é possível fazer uma História do Direito condizente com as características do Brasil.

Se a intenção é entender como a História do Direito tem reflexos contemporâneos,


é necessário entender quais foram os efeitos daquele direito, naquele tempo histórico.
Não basta citar os artigos das Constituições, sem verificar seu compasso com a realidade,
sua eficácia, sua legitimidade e o motivo da sua positivação.

Assim, a pesquisa da História do Direito torna-se uma pesquisa complexa, tão


complexa quanto é a sociedade humana, mas, principalmente, torna-se uma pesquisa
interdisciplinar. Só com a interdisciplinaridade é possível fomentar uma pesquisa
histórica consciente do direito. O abandono, em especial da sociologia e da antropologia,
pode levar a uma História que não condiz com a realidade e pobre de subsídios, incapaz
de ajudar a compreensão jurídica do presente.

67
Nesse patamar, em um país de contradição, desigualdade e descompasso
das leis e constituições com a realidade, é fundamental a soma de todas essas
metodologias para uma compreensão mais satisfatória da História e do Direito no Brasil,
é uma necessária metodologia consciente, interdisciplinar, crítica, que possa melhor
compreender a cultura jurídica brasileira. Uma cultura extremamente complexa, com
diversas narrativas e tradições que sempre precisam ser “escovadas a contrapelo”,
revisitadas. A percepção dos problemas patrimoniais, individualistas e patriarcalistas,
que só serão conhecidos com uma visão plural, social da cultura jurídica.

FONTE: http://150.162.138.7/documents/download/625;jsessionid=D241B462905014C6D8CD5CE-
D097A2B6F. Acesso em: 24 abr. 2017.

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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Surgem fatores que explicam a predominância do cristianismo na Idade Média.

• Há a consolidação da sociedade medieval e dos elementos caracterizadores.

• Existem características gerais do pensamento jurídico medieval.

69
AUTOATIVIDADE
1 A Idade Média é um longo período histórico que se estendeu entre os séculos V a XV.
Foi uma etapa na qual foram sendo construídos os elementos políticos e jurídicos
que irão predominar na Modernidade. Naquele momento, a ideologia cristã tornou-se
o centro nuclear do poder e da cultura. Entre os fatores relevantes que justificam a
predominância do cristianismo, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O cristianismo acabou por tornar-se uma forte ideologia pela defesa da crença
pagã.
b) ( ) Com a decadência política e religiosa romana a partir dos anos 30 d.C. assiste-se
um afastamento dos grandes valores e ideais de virtude e fé das práticas religiosas,
representando o cristianismo uma forma de restauração da espiritualidade.
c) ( ) A crença cristã floresce porque possui os mesmos cultos de adoração a divindades
romanas.
d) ( ) O cristianismo torna-se uma crença dominante por pregar a concentração de
poder e de riquezas pelas elites religiosas.

2 Na Idade Média, o Direito Romano era mantido pelos estudiosos, sobretudo nas pri-
meiras universidades, como é o caso da Universidade de Bolonha, na Itália e Sala-
manca, na Espanha. Sobre o direito na Idade Média, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O Direito Romano na Idade Média era objeto de estudo dos glosadores e


comentadores.
b) ( ) O Direito Romano era estudado também fora das Universidades, uma vez que naquela
fase era muito grande o número de pessoas que dominavam o latim.
c) ( ) Os romanistas eram apenas os católicos e o estudo do Direito Romano deveria
ser autorizado pelo papa.
d) ( ) O Direito Romano foi mantido pelos árabes muçulmanos, que foram os grandes
estudiosos da filosofia helênica.

3 A Idade Média é o período histórico compreendido entre os séculos V e XV, marcado


por profundas transformações no modo de vida da população europeia, que terá
no cristianismo um dos elementos centrais da cultura, política e ideologia. Disserte
acerca dos fatores que explicam a ascensão e a consolidação do cristianismo a partir
do século IV.

4 O trabalho dos glosadores foi uma das grandes contribuições dos pensadores jurídicos
medievais para o direito moderno, sobretudo a metodologia de estudo e análise dos
textos jurídicos, que acabou por se transformar no "ponto de partida" da moderna
ciência jurídica. Acerca do exposto, escreva uma redação com o tema O LEGADO DOS
GLOSADORES MEDIEVAIS PARA O DIREITO MODERNO.

70
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76
UNIDADE 2 —

O DIREITO MODERNO
E SEUS FUNDAMENTOS
HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar as características do direito medieval e seu legado para a modernidade;

• compreender as particularidades históricas de formação da modernidade;

• discutir os fundamentos do direito moderno;

• analisar bases teóricas, filosóficas e políticas sob as quais se edificou o Positivismo


Jurídico;

• entender a Teoria Kelseniana de Direito, como a bem-sucedida cientifização do


Direito Positivista, bem como os desafios e problemáticas legadas;

• identificar e discutir as bases da Teoria Crítica e da Crítica Jurídica – origens e


propostas.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O MEDIEVAL E O LEGADO PARA A MODERNIDADE


TÓPICO 2 – A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES
TÓPICO 3 – O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO
TÓPICO 4 – OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO
MODERNO

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

77
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

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78
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
O MEDIEVAL E O LEGADO PARA A
MODERNIDADE

1 INTRODUÇÃO
“Direito Canônico” é uma expressão que designa um conjunto de normas jurídicas
cujo objetivo é o de reger o modo de vida dos cristãos. Em 313, quando Constantino
concedeu liberdade para que as autoridades cristãs – papa e bispos – pudessem julgar
seus adeptos, segundo seus preceitos religiosos, iniciou-se um processo de autonomia
que, no século V, ganha absoluta autonomia.

Com a queda do Império Romano e a multiplicidade de poderes medievais, a Igreja


vai assumindo relevância absoluta no exercício do poder político e jurídico. Com esse
aumento de poder e a sofisticação intelectual desenvolvida pelas universidades recém-
criadas, o direito canônico passa a intervir prioritariamente na sociedade como um todo.

DICAS
Há um excelente artigo, que você pode ler acerca do tema, em http://
nemed.he.com.br/projetopandora/2016/10/15/o-nascimento-das-
universidades-medievais/, com o título O Nascimento das Universidades
Medievais: Aspectos sobre a Cultura de Saber na Baixa Idade Média Ocidental.
Leia, você verá como é interessante o funcionamento das universidades
na época e a maneira como influenciaram o pensamento moderno!

A Igreja foi assumindo inúmeras funções até então reservadas ao antigo Império
Romano. Além ter adquirido grande força espiritual, ainda era o poder mais organizado,
através da imensa rede de adeptos.

79
FIGURA 1 – ENSINO MEDIEVAL

FONTE: <http://nemed.he.com.br/projetopandora/2016/10/15/o-nascimento-das-universidades-medie-
vais/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Um dos mais importantes pensadores do direito, Franz Wieacker (1967, p. 67),


destaca: “A Igreja era a força espiritual de longe mais importante; era, ao mesmo tempo,
a mais coerente e a mais extensa organização social da Idade Média; finalmente, a sua
ordem jurídica interna era a mais poderosa da Idade Média, em termos gerais”.

Não há dúvida de que a Igreja e a cristandade têm relevância na formação do


direito medieval e com um grande legado à modernidade.

Como já considerado, o poder da Igreja se expande e se consolida também


porque sua forma de administração territorial foi muito particular, e serviu de modelo para
a organização dos Estados Modernos. Em cada província, por mais distante que fosse,
havia um bispo que mantinha sob seu controle o clero e a paróquia. Sua competência
era imensa e estabelecida a partir de uma rede articulada de padres e laicos – aquele
que não pertence à Igreja como clérigo –, diáconos etc.

A ética cristã, com grande influência do pensamento grego, foi a base do


pensamento jurídico de todo medievo, e sua influência segue até os dias atuais. O direito
canônico teve uma importância crucial na formação e consolidação das instituições
políticas e jurídicas que se sucedem no mundo ocidental. Como veremos, a forma de
organização dos tribunais e a jurisdição são concepções construídas pelo poder papal e
sistematizados pelo direito canônico.

80
Dentre os fatores que colocam em relevo o direito canônico, pode-se destacar:

• O caráter ecumênico da Igreja, que anuncia o cristianismo católico como universal.


• A dominação do direito canônico nas diversas esferas da vida privada, como o
instituto jurídico de família.
• O direito canônico, o objeto de doutrina, tornando-se uma ciência.
• Os canonistas – estudiosos do direito canônico –, uma classe de intelectuais que
criarão conceitos jurídicos absorvidos pelo direito leigo.

Todo direito canônico assenta-se no trabalho dos canonistas que vão aproximar
o direito da teologia cristã construída a partir do texto bíblico e, por esta razão, elaboram
técnicas interpretativas que fundam a moderna hermenêutica jurídica.

NOTA
O termo “canônico” se origina da palavra “canon”, que significa “regra” ou
“régua”, medida. Portanto, direito canônico é composto por um conjunto
de regras de vida cristã.

A interpretação da Bíblia era, a princípio, literal, mas em casos de antinomia –


conflito de normas – eram usados os seguintes critérios:

• Ratione Significationis – sentido obtido a partir da fixação do bem jurídico em


questão.
• Ratione Temporis – lei posterior revoga anterior.
• Racione Loci – lei local revoga a lei geral.
• Rationi Dispensationis – lei especial revoga lei geral.

Note que esses critérios são usados pelos juristas atualmente!

Toda base do direito canônico é o Corpus Iuris Canonici – Código de Direito


Canônico –, que permaneceu em vigor até 1917. Foi elaborado ao longo dos séculos XII
ao XV identificando direito com teologia cristã. Diferente do direito comum, o direito
canônico tem como base a Sagrada Escritura, as decisões dos concílios e dos sínodos
– reuniões/assembleias das autoridades eclesiásticas –; as decisões papais e as leis
relativas à Igreja. Entretanto, há que se lembrar que sempre o direito canônico foi
resultado do trabalho intelectual dos doutores da Igreja, portanto, um trabalho científico.

81
FIGURA 2 – CORPUS IURIS CANONICI

FONTE: <http://legalissistemasjuridicos.blogspot.com.br/2012/09/cuestionario.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

2 A REFORMA GREGORIANA: MARCO DO DIREITO


CANÔNICO
O evento que marca a construção do direito canônico e o poder da Igreja foi a
Reforma Gregoriana. Trata-se de uma grande transformação liderada por Gregório VII
(papa entre 1073 a 1085), cujo objetivo foi promover a absoluta autonomia do poder
papal, uma vez que até este momento a Igreja era uma comunidade espiritual de
natureza estritamente religiosa, mas não jurídica.

Com Gregório VII, cujo nome de origem era Hildebrando, há uma separação entre
sacramentos – preceitos religiosos – e leis, pois não se diferenciavam leis canônicas de
rituais ou liturgias. Além disso, havia uma certa subordinação do papado ao poder civil com a
forte ingerência dos nobres e reis, sobretudo das decisões acerca dos cargos eclesiásticos.

A luta de Gregório será de opor-se à simonia – venda de objetos e cargos


sagrados; ao nicolaísmo – casamento dos clérigos e à nomeação de leigos para altos
cargos da Igreja recebendo benefícios – rendas de terras, paróquias, mosteiros etc. No
ano de 1075 inicia a Reforma que vai se constituir na maior e mais importante revolução
da política da Idade Média, emitindo um documento papal – Dictatus Papae – que
pretendia garantir a liberdade e independência da Igreja.

Foram no total 27 determinações de Gregório, das quais se destacam:

• A Igreja Romana é fundada exclusivamente pelo Senhor.


• Só o bispo de Roma – papa – pode possuir direito universal e pode depor ou nomear
bispos.

82
• Somente o papa pode legislar de acordo com a necessidade do momento.
• Somente os pés do papa podem ser beijados pelos príncipes.
• Somente seu nome pode ser recitado nas igrejas.
• O papa pode depor imperadores.
• Não podem ser convocados concílios ou sínodos sem sua ordem.
• Nenhum capítulo ou livro pode ser chamado de canônico sem sua ordem.
• Nenhum de seus julgamentos pode ser revisto, mas ele pode rever julgamento de
todos.
• A ele, compete dissolver os laços de vassalagem.

Perceba que o documento ataca diretamente o poder dos nobres, que vão
reagir, iniciando uma longa fase de enfrentamento que será conhecida como Guerra
das Investiduras, cujo marco foi a carta redigida por Henrique IV, rei da Inglaterra, que
irá culminar com o rompimento do rei com o papa.

DICAS
Você pode pesquisar a respeito do tema e aprofundar o seu estudo.
Sugere-se: http://adventmedidas.blogspot.com.br/2016/05/a-questao-
das-investiduras.html.

Pode-se afirmar que o plano do Papa Gregório era abolir totalmente a


interferência dos leigos nos assuntos da Igreja e privar os soberanos do direito de
investidura – nomeação – de bispos, abades e do próprio papa, pois com a ordem papal
as nomeações passavam a ser feitas somente pelo papa. Entretanto, acabou por tornar-
se o maior e mais significativo conflito entre a Igreja e os Reinos Medievais.

Ora, na estrutura institucional anterior a Gregório VII alguns insistiam


na sacralidade dos reis. Os reis eram ungidos e se consideravam au-
toridades sacrais. A sagração do rei era uma cerimônia religiosa e
política, simbolicamente, a coroação ou sagração era quase que uma
ordenação religiosa. Sem questionar diretamente a função exercida
pelo rei, a Reforma Gregoriana, no entanto, colocava uma novidade:
afirmava que o rei (ou o imperador) estava dentro da igreja, não acima
(imperator in Ecclesiam, non super Ecclesian) e dentro da Igreja a
autoridade maior era o papa. Por outro lado, o Império na Idade Média
era um poder, e não um território. Era um poder como autoridade
(imperium) e capacidade de governar (jurisdictio), apoiado não pela
submissão de um povo em um território determinado, mas nas rela-
ções interpessoais de submissão e benefício com certos senhores
menores. Era uma rede ou uma cadeia de relações. Não havia buro-
cracias racionalizadas, organizadas propriamente em carreiras. Não
havia cidade capital: esta era onde o imperador ou rei assentasse sua
corte, muitas vezes de maneira provisória, pois os reis e imperadores
viajavam constantemente [...]. O Império era, pois, uma entidade mili-

83
tar/espiritual e não geográfica. Vigorava ainda muitas vezes o princí-
pio da personalidade (ou pessoalidade) das leis e, sobretudo, a força
dos costumes locais (LIMA LOPES, 2012, p. 73-74).

Note que com a Reforma Gregoriana há um desmonte do modelo até então


vigente do exercício de poder, razão pela qual é considerada a primeira revolução do
mundo ocidental. Com esta concepção começa a nascer o conceito de Estado, que
é um ente político que centraliza o poder de legislar e tem caráter universal. Evidente
que o objetivo era o de disciplinar o poder e centralizá-lo exatamente pela dispersão
existente na época.

As consequências foram também de natureza jurídica, uma vez que os juristas,


na época os canonistas, passaram a desempenhar um papel central no exercício do
poder. Desde a publicação do Dictatus Papae de Gregório VII, os canonistas começaram
a criar conceitos e princípios para o exercício e delimitação do poder. Lembre-se que na
Idade Média havia, ao lado do poder da Igreja, o poder dos nobres. Os canonistas criaram
vários conceitos políticos e jurídicos e, desde aí, constitui-se uma nova classe de sujei-
tos: os intelectuais e os burocratas da Igreja. Agora, a ascensão profissional não era mais
pelo nascimento ou merecimento, mas pelo cargo ou ofício que exercia como consequ-
ência de uma formação. O poder não era exercido mais de forma personalizada em um
sistema baseado em lealdade ou fidelidade, mas sim em competências definidas por lei.

FIGURA 3 – PAPA GREGÓRIO VII

FONTE: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/19399/hoje+na+historia+1077+-+impera-
dor+henri+iv+ajoelha-se+aos+pes+do+papa+gregorio+vii.shtml>. Acesso em: 11 abr. 2017.

3 OS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA


É no campo da jurisdição e processo que o direito canônico ganha grande
relevância, sem que se deixe de considerar sua importante contribuição no campo do
direito civil, por exemplo, quanto aos institutos do casamento, família, contrato, além
da formulação da teoria da personalidade jurídica. Como adiante veremos melhor, o
processo canônico legou à modernidade características muito particulares e essenciais,

84
tais como: 1. A condução do processo por profissionais do direito; 2. A uniformização
dos procedimentos; 3. A perspectiva investigativa – inquisitorial; 4. A predominância da
escrita sobre a oralidade com a criação dos “autos” processuais.

Com a Reforma Gregoriana, aos poucos a imposição de penitências impostas


aos fiéis vai se diferenciando das sanções legais como consequência de violação da lei.
As penitências ou revisão da consciência do cristão são próprias do padre, do curador
da alma, e se originam de um foro de consciência. Já as sanções ou penas derivam
do foro judicial que detém o poder de aplicar a lei para normatizar as condutas dos
cristãos como um todo. Desta forma, a jurisdição ou foro judicial passa a ser matéria
comum entre os eclesiásticos e os nobres. Como distingui-las? Frente ao problema,
os canonistas criam a separação de jurisdição tendo como base critérios objetivos –
competência – conforme as pessoas envolvidas no processo e matéria disputada, e
desde tais critérios definia-se a jurisdição – distribuição de justiça.

Os critérios de jurisdição dos tribunais canônicos eram: em razão da pessoa


(ratione personarum) e em razão da matéria (ratione materiae).

• Ex ratione personarum: para os eclesiásticos havia o foro de privilégio absoluto, que


não eram somente os padres, mas todo aquele que exercia uma função eclesiástica.
Os professores e estudantes também eram considerados clérigos. Ainda aqueles
que estavam sob a “proteção da cruz” – os cruzados –, que eram os que lutavam sob
a proteção de Deus. Possuíam também privilégio de foro eclesiástico os miseráveis,
que pediam proteção da Igreja, atendidos por profissionais nomeados pelos bispos.
• Para alguns, o foro de privilégio absoluto – como era o caso dos eclesiásticos – e
para outros, relativo, podendo estes renunciar ao eclesiástico e pedir proteção à
jurisdição secular.
• Ex ratione materiae: algumas matérias deveriam ser tratadas somente em
tribunais eclesiásticos, como era o caso de casamento, por ser um sacramento da
Igreja. As matérias de testamento, ou últimas vontades, porque se acreditava que
havia algo relacionado à salvação da alma. Ainda, os benefícios patrimoniais da
Igreja e os pecados públicos como usura, heresia, adultério etc.

Porém, o grande destaque do direito canônico é no conceito inovador de


processo que, por sua complexidade, exige um estudo mais particular.

85
DICAS
Assista ao filme Em Nome de Deus em https://www.youtube.com/
watch?v=c20mqZUy2VA. Você se encantará com a história – verídica – de
Abelardo e Heloísa. Ele, um professor e intelectual da época medieval,
particularmente da Baixa Idade Média (séculos XI a XV); e ela uma mulher
extraordinária. Não perca!!!!

4 O PROCESSO INQUISITORIAL
Ao se consolidar uma classe de profissionais do direito, também se disseminou
uma forma de solucionar conflitos, uma prática processual cuja marca era a racionalidade
e a técnica. Além de ter introduzido o processo escrito – autos –, que passou a exigir
um corpo notarial, a escrita processual exige termos e fórmulas específicas e, assim, a
lógica de técnica vai assumindo relevância.

Além disso, as fases processuais são organizadas de maneira clara:

• Libellus: queixa apresentada pelo autor a uma autoridade oficial que lê na presença
do réu a acusação ou pedido.
• Exceções: na fase seguinte apresenta-se o que hoje chamamos de preliminares –
qualquer defesa que não seja o mérito propriamente dito – que seriam dilatatórias
ou peremptórias, que poderiam impedir o andamento do processo ou atingir o
próprio direito.
• Litis contestatio: contestação.
• Decisão: feita pelo magistrado resolvendo o mérito.

A nova racionalidade jurídica, introduzida pelo procedimento inquisitorial, tinha


como objetivo o combate ao sistema irracional de provas que predominavam no direito
medieval: os ordálios.

Ordálio, ou juízo de Deus, eram meios de provas em que se invocava a


intervenção divina, aplicando-se “provas” para provar inocência, como as “provas de
fogo” – andar sobre brasa, colocar a mão em óleo fervente etc. – e as comuns, como
afundamento na água fria, ser cortado e não sangrar etc. A partir do século XII ocorre
um abandono progressivo dos ordálios, mesmo pelo direito comum, e a predominância
do modelo inquisitorial. O ordálio era como um “detector de mentira” da época e aquele
que aceitava se submeter a tal prova aceitava suas consequências.

Os canonistas desenvolveram novas maneiras de aceitabilidade das provas:


probabilidade, relevância e materialidade, descartando as provas supérfluas (que já es-
tavam provadas no processo), as impertinentes (que não interessavam), obscuras (que

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não poderiam ser usadas com segurança), as inacreditáveis ou antinaturais (absurdas
e impossíveis de serem aceitas). Portanto, o sistema de provas assenta-se sobre o que
passou a se chamar prova legal, uma vez que sua apreciação dependia de regras pre-
viamente estabelecidas, como o famoso “código processual”, o Manual dos Inquisidores
criado por Nicolau Eymerich. Este Directorium Inquisitorum, de 1376, é uma espécie de
modelo fundacional do direito processual penal moderno que visava perseguir e punir a
todo aquele que representasse uma ameaça ou poder papal, o herege.

FIGURA 4 – DIRECTORIUM INQUISITORUM

FONTE: <https://ativandoneuronios.files.wordpress.com/2011/07/directorium.jpg>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Segundo Eymerich, quem era o herege?

Veja o que diz o referido Manual:

Chamam-se hereges pertinazes e impenitentes aqueles que,


interpelados pelos juízes, convencidos de erro contra a fé, intimados
a confessar e abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem se
agarrar obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser entregues
ao braço secular para serem executados.
Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem intelectual
e efetivamente à heresia, caíram em si, tiveram piedade de si próprios,
ouviram a voz da sabedoria e abjurando dos seus erros e procedimento,
aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor.
Denominam-se hereges relapsos os que, abjurando da heresia e
tornando-se por isso penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir
do momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida,
são entregues ao braço secular para serem executados, sem novo
julgamento. Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a
Igreja lhes concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia. […]

87
Os autores se perguntam sobre que tipo de execução que se deve
aplicar aos relapsos. Devem morrer pela espada ou pela fogueira?
A opinião geral, confirmada pela prática generalizada em todo mundo
cristão, é que devem morrer na fogueira, de acordo com a lei: “Que
os patarinos e todos os hereges, quaisquer que sejam os seus no-
mes, sejam condenados à morte. Serão queimados vivos em praça
pública, entregues em praça pública ao julgamento das chamas”.
(Determinação do imperador Federico e dos Papas Inocêncio IV, Ale-
xandre IV e Clemente IV. Na verdade, a prática veio antes da própria
codificação) É de fundamental importância prender a língua deles ou
amordaçá-los antes de acender o fogo, porque, se têm possibilidade
de falar, podem ferir, com suas blasfêmias, a devoção de quem as-
siste à execução. […]
Os inquisidores devem ser capazes de reconhecer as particularidades
rituais, de vestuário etc., dos diferentes grupos de hereges. […]
É herege quem disser coisas que se oponham às verdades essenciais
da fé.
Também é herege:
a) Quem pratica ações que justifiquem uma forte suspeita
(circuncidar-se, passar para o islamismo…);
b) Quem for citado pelo inquisidor para comparecer, e não
comparecer, recebendo a excomunhão por um ano inteiro;
c) Quem não cumprir a pena canônica, se foi condenado pelo inquisidor;
d) Quem recair numa determinada heresia da qual abjurou ou
em qualquer outra, desde que tenha abjurado;
e) Quem, doente mental ou saudável – pouco importa –, tiver
solicitado o “consolamento”.
Deve-se acrescentar a esses casos de ordem geral: quem sacrificar
aos ídolos, adorar ou venerar demônios, venerar o trovão, se relacio-
nar com hereges, judeus, sarracenos etc.; quem evitar o contato com
fiéis, for menos à missa do que o normal, não receber a eucaristia nem
se confessar nos períodos estabelecidos pela Igreja; quem, podendo
fazê-lo, não faz jejum nem observa a abstinência nos dias e períodos
determinados etc. […] Zombar dos religiosos e das instituições eclesi-
ásticas, em geral, é um indício de heresia. […] Existe indício exterior de
heresia toda vez que houver atitude ou palavra em desacordo com os
hábitos comuns dos católicos (EYMERICH, 1993, p. 39-52).

Portanto, o herege é aquele que se opõe às “verdades” da fé, cuja pena imposta
varia de acordo com o grau de heresia, que vai desde o cumprimento de penitências,
durante certo tempo, até a prisão perpétua ou a reincidência, aplicando-se neste caso
a execução pelo braço dos seculares.

Quem poderia ser testemunha? a) os excomungados; b) os cúmplices do


acusado; c) os infames e pessoas acusadas de quaisquer crimes; d) os hereges que
estiverem contra o acusado. Nunca a favor; e) qualquer infiel e até mesmo judeu; f) os
domésticos (mulher, filhos, parentes e servos) para o acusar, não para inocentar; g) a
testemunha falsa, querendo retratar-se para acusar.

Ao final, como terminava o processo? Quais as “soluções” possíveis?

1. Abjuração (renúncia à fé cristã através de palavras, atos ou mesmo pensamentos


contrários ao autorizado pela Igreja):

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a) suspeita leve: encontram-se leves indícios de heresia. O abjurante pronuncia
determinada fórmula, em língua vulgar, na casa episcopal ou no convento.
b) suspeita grave: não se provou nada, mas há fortes indícios que levam a uma grave
suspeita. Normalmente cumprem alguma penitência ou são levados à prisão, nunca
perpétua.
c) suspeita violenta: também não há provas, nem documentais, nem pela análise dos fatos,
mas há indícios gravíssimos que levam a uma violenta suspeita (algo como heresia
presumida). Cumprem alguma penitência e podem ser levados à prisão perpétua.

2. Absolvição: Depois de responder ao processo e ouvidos os especialistas, o réu é


declarado livre do crime. Não há completa absolvição, apenas se declara que não há
provas suficientes para a condenação.
3. Expiação ou Purgação Canônica: Quando alguém tem fama pela prática de heresia,
mas não se prova nem com testemunhas, nem provas materiais, nem pela confissão.
Considera-se isso uma difamação. O acusado deverá comparecer em determinada
hora, em determinado local, acompanhado de coexpiadores que atestarão sua boa
conduta cristã. Se o difamado não puder cumprir a obrigação, será excomungado,
e poderá cumpri-la no prazo de um ano. Se não conseguir número suficiente de
coexpiadores, será considerado herege e condenado como tal.

A origem da mentalidade inquisitorial já foi objeto de estudo de inúmeros


historiadores e com conclusões não convergentes. A origem mais aceita da Inquisição
tem suas raízes no Império Romano com a cognitio extra ordinem e, posteriormente,
ainda no Direito romano antigo, com a expressão inquisitivo, que representava a
formulação de uma acusação pela autoridade judicial, quando não havia denúncias ou
acusações sustentadas por testemunhas.

A origem histórica está relacionada quando, de forma complementar às


Cruzadas, a partir de 1095, o Papa Urbano II inaugura uma “nova forma” para o “domínio
de Deus”, deflagrando-se, no final do século XII, a Inquisição Medieval.

Em síntese, tratava-se de um movimento político-religioso, em que a Igreja


Cristã arquitetou uma forma de reação à difusão de movimentos heréticos, como o
maniqueís­mo, o valdismo e, mais tarde, o catarismo, com maior preocupação aos cátaros,
uma vez que, apesar de originalmente se concentrarem no sul da França, as suas ideias
começam a se espalhar nas regiões próximas e demonstraram uma impressionante
capacidade de influência.

DICAS
Acerca dos diferentes movimentos de resistência e da centralização
papal, sugere-se, como leitura, o conteúdo do seguinte link: http://cleofas.
com.br/primeiros-movimentos-hereticos-e-os-cataros/.

89
O combate aos cátaros, que foi bastante “eficaz”, permitiu que a Inquisição
assumisse uma natureza legal e jurídica, sendo a primeira forma concreta a partir de sua
codificação no decreto papal Ad abolendam, emanado pelo Papa Lúcio III no ano 1184,
no qual se estabeleceu o primeiro delineamento do procedimento inquisitorial.

Após seguiram-se as bulas papais Licet ad capiendos (1233) e Ad Exstirpanda


(1252), ambas de autoria do Papa Gregório IX, e a bula Clementina Saepe (1306), de
autoria do Papa Clemente V, que ampliaram a perseguição aos hereges.

NOTA
A palavra heresia se origina do grego (αιρετικός), que significa escolha.
Com a autêntica manipulação imposta pela Inquisição, tornou-se um
termo genérico e depreciativo que inclui aleatoriamente qualquer
conduta considerada contrária, nova ou simplesmente diferente do
estabelecido pelo poder. O objetivo primor­ dial não era a imposição
da sanção ao suposto infrator, mas era um instrumento que impunha,
através do medo generalizado, uma forma única de visão de mundo, de
estruturação dos poderes oficiais e de estratificação social, sustentada
pelos argumentos religiosos, criados pelos doutores da Igreja.

Até que, a partir do ano de 1438, com a descoberta de reuniões sabáticas na


região dos Alpes, inicia-se a implacável caça às feiticeiras. Sob o álibi de “combate ao
diabo” e suas diversas manifestações, a Igreja empreendeu uma das maiores e mais
cruéis expressões de intolerância, perseguindo intelectuais independentes, mulheres,
judeus, mouros ou qualquer outro “inconveniente” ao poder.

NOTA
Os sabás – sabbats – eram festas populares em que se comemoravam
as mudanças das estações do ano. Consistiam em antigos rituais de
celebração à natureza que eram vistos, aos olhos da Igreja, como práticas
demoníacas.

Em nome do combate ao diabo e às suas diversas manifes­tações, a Igreja


operou um combate, uma batalha irrestrita e intolerante à diversidade de opiniões e de
crenças, enfim, às diferenças.

90
A visão de uma sociedade cristã unificada e ordenada era um ideal
para os líderes da Igreja. A cristandade era concebida como um todo
integrado e hierárquico. Qualquer pessoa ou grupo que levasse uma
vida religiosa fora da estrutura eclesiástica estabelecida era por
definição um herege e sujeito à disciplina punitiva das autoridades
seculares à qual a Igreja recorria. Falhas morais ou indiscrições
pessoais não eram consideradas como problemas religiosos de
vulto dentro dessa estrutura. A Igreja tinha um oportuno sistema
de absolvição, que era capaz de cuidar desses assuntos por parte
do clero e do laicato igualmente. O que era repreensível era a vida
religiosa praticada fora das ordens e da disciplina da Igreja (IRVIN;
SUNQUIST, 2004, p. 506).

A Inquisição medieval se instalou em vários reinos, mas foi na Espanha, em


1239, que deixou as maiores cicatrizes, como uma “obra” dos reis católicos Isabela de
Castilha e Fernando d’Aragão e teve como efeito a unificação dos reinos.

Os reis, Isabela e Ferdinando, iniciam a expulsão dos judeus e, em seguida,


os mulçumanos, que há séculos viviam na região, a fim de ser estabelecida a unidade
nacional do jovem Estado espanhol. “Preocupados” com a conversão dos judeus e
temerosos com o surgimento de uma classe média poderosa, intuíram um Tribunal do
Santo Ofício, que consistiu em instrumento eficaz na manutenção do controle social e
na preservação da hegemonia política recém-conquistada, sob o argumento de que os
hereges representavam um risco para o Estado Cristão Espanhol. Assim, por insistência
dos reis espanhóis, em 1º de novembro de 1478, a bula Exigit sinceras devotionis
affectus, emanada do Papa Sisto IV, concede aos reis católicos a prerrogativa de
designar dois ou três bispos ou sacerdotes seculares ou regulares, desde que maiores
de 40 anos, de conduta irrepreensível e detentores de títulos acadêmicos pertinentes,
para desempenhar o papel de inquisidores nas cidades e nas dioceses de seus reinos.

Após esse início, e ao que parece com medo de perder o apoio bélico da
Espanha, o Papa Sisto IV, já arrependido pelo poder que foi dado aos reis católicos,
tenta retroceder, mas já não era possível. Para a Igreja, a solução foi a nomeação do
frei dominicano Tomás de Torquemada como inquisidor-geral dos reinos de Castilha e
Aragão, em outubro de 1483. Toquemada foi o mais implacável e terrível dos inquisidores
e sua nomeação marca o início de uma nova fase da Inquisição.

91
FIGURA 5 – TOMÁS DE TORQUEMADA

FONTE: <https://www.biografiasyvidas.com/biografia/t/torquemada.htm>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Sem dúvida, a Inquisição foi um excelente braço do poder real, especialmente


entre os séculos XVI e XVII, quando serviu de principal instrumento para preservação do
poder dos soberanos e legitimar suas ações. Portanto, não resta dúvida de que religião,
moral e direito estavam visceralmente ligados, e por esta razão os dogmas divinos eram
as matrizes que acabam por estruturar a ordem jurídico-política do Estado.

A obsessão por absoluta e inquestionável homogenia religiosa é o que explica


esse fenômeno central na regulação da vida social, política e moral, e base do Estado,
permitindo uma manipulação ideológica e impondo um eficaz mecanismo de terror que
dominava as mentes e os corpos. Sem dúvida, acabou por ser uma das formas de poder
mais tenebrosas e nefastas que a humanidade assistiu.

5 A CRENÇA NA VERDADE REAL


A busca da verdade real era a finalidade do processo inquisitório e se constitui
em um dos pilares dogmáticos centrais. O termo “inquisição” – que significa “inquérito”,
investigação minuciosa – já nos permite compreender o que sustentava todo
procedimento, e assim, justifica-se a violação de direitos em prol da verdade.

Com a certeza da infalibilidade do processo e da verdade é possível compreender


a razão do uso de meios condenáveis, aos olhos da atualidade, para “revelar” o “oculto”,
o “não dito”. Integridade física, liberdade, dignidade, segurança jurídica etc., eram sem
importância ou bens menores quando comparados à necessidade de busca da verdade.

92
Como consequência da certeza da existência da verdade real e ao sistema de
provas legais, a tortura ocupa um papel central no processo, pois a tortura era o meio
privilegiado de obtenção da verdade através da confissão, a rainha das provas.

A partir do século XIII, alguns reinos – Estados –, como Espanha e França,


adotam a prática dos tormentos. A expansão da tortura como método de apuração da
verdade acompanhou o movimento político de combate aos hereges. Inicialmente, o
primeiro decreto foi o Licet ad capiendos de Gregório IX (1233), e usado na Bula Ad
extirpanda (1252) de Inocêncio IV, para aplicação da tortura por juízes civis em todos
processos contra os suspeitos de heresia. Até que com a Bula Multorum querela de
Clemente V, a tortura também se instala nos tribunais do Santo Ofício.

Em 1487 é publicado o Malleus Malleficarum – Martelo das Feiticeiras –, de


autoria de dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, e reconhecido
pela bula papal Summis desiderantes affectibus, que consistia numa espécie de “manual
para diagnóstico de feitiçarias”, tendo minuciosas descrições dos meios e modos de
inflição dos suplícios aos acusados de bruxaria para obtenção da verdade. Assim,
as instruções de tortura, muito mais do que um conjunto de regras, serviram como
divulgação do método e estímulo para ação dos inquisidores, exaltando o sucesso das
técnicas de “apuração” da verdade. De certa forma, os inquisidores passaram a acreditar
em sua missão salvadora e de que o método era “abençoado” e, portanto, infalível, até
porque a “confissão brotava” dos lábios dos supliciados.

FIGURA 6 – MALLEUS MALLEFICARUM - MARTELO DAS FEITICEIRAS

FONTE: <http://www.espada.eti.br/n1676b.asp>. Acesso em: 11 abr. 2017.

93
Não havia limites para os tormentos! Ao contrário! O inquisidor não poderia ser
negligente na aferição da verdade!

O ponto culminante do processo era o Auto de Fé. Um autêntico espetáculo


público em que se reproduzia o juízo final com a execução do herege. Progressivamente,
o Auto de Fé tornou-se a maior demonstração de poder, quando o rei e os inquisidores
ocupavam os balcões centrais para desfrutarem da espetacular crueldade. No dia da
execução o penitente deveria usar um tipo de vestimenta – sambenito – com uma
espécie de mitra de papelão na cabeça, em geral com uma inscrição do crime cometido.

FIGURA 7 – PINTURA DE FRANCISCO RIZI - AUTO DE FÉ NA PRAÇA MAIOR

FONTE: <https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/auto-de-fe-en-la-plaza-mayor-de-madrid/
8d92af03-3183-473a-9997-d9cbf2557462>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Em síntese, a Inquisição foi e até certo ponto é uma mentalidade que permanece
viva, consistiu em um movimento político-religioso que em nome do combate ao
demônio promoveu a perseguição indiscriminada e intolerante à diversidade, seja de
crença ou opiniões. Sem dúvida, uma estrutura de poder mantida pelo terror.

Veja um trecho do prefácio da tradução do livro Manual do Inquisidor, feito


pelo importante teólogo brasileiro Leonardo Boff, que nos diz que a crença na verdade
absoluta nos leva à intolerância:

94
NOTA
A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-obsessivo
do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que exis­te nas relações
internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade de fiéis se confessa
santa e pecadora. Se assim é, então aqui é o pecado institucional que
ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador
até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes,
ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a
ser um lugar de exercício de liberdade e de experimenta­ção
da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em
que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de
que foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar
o sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior
da comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiên­cias
do evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mun­do,
onde se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e
de amor de Deus.
A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isso significa que
não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supér­flua.
Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patolo­gia e
concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir.
Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões
religiosas diferentes nas sociedades humanas.

FONTE: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/inquisidor/prefa-
cio.htm. Acesso em: 11 abr. 2017 (grifos nosso).

Esse breve texto nos leva a pensar se nos dias de hoje não estamos também a
vivenciar uma perigosa escalada da intolerância, cujas consequências poderão ser um
retrocesso, não é?

6 O DIREITO COMUM MEDIEVAL


No período medieval, como já vimos, durante a Idade Média, os costumes
bárbaros, a legislação romana e os decretos papais conviviam de tal maneira que parecia
impossível a unificação do direito. Com o feudalismo se consolidando, o renascimento
cultural do século XII, a criação das universidades, a rearticulação do comércio, entre
outros fatores, permitem uma nova expressão da cultura jurídica que paulatinamente vai
criando uma unidade no pensamento jurídico que no século XVI permite o surgimento
do jus commune (direito comum) em toda Europa, não como conteúdos normativos
iguais, mas com características comuns no uso do direito que vai chegar até os três
primeiros séculos da modernidade. Portanto, é mais uma forma homogênea de se
construir o conhecimento jurídico do que semelhanças normativas e procedimentais.

95
O incipiente capitalismo mercantil nos séculos XIV e XV produziu a necessidade
de regulação dos interesses dos particulares e as leis vão ganhando reconhecimento
como direito em si e a definição de direito comum vai sendo referenciada como jus
proprium. No século XII, a realidade da cultura europeia se modifica completamente e,
nesse contexto, surge o interesse pelos clássicos, sobretudo pela forma de vida urbana
que começa a surgir e o contato com o mundo árabe, porque mais do que mercadorias,
o mundo oriental havia conservado e traduzido as obras de Aristóteles através dos
filósofos árabes Averróis e Avicena, produzindo-se, assim, uma espécie de sincretismo.

Neste mesmo período se fortalecem as universidades europeias, até porque


ensinar era uma das funções principais dos eclesiásticos. Ao lado do ensino primário
e secundário, são estabelecidas escolas superiores, cujo objetivo era o ensino
enciclopédico. Estas universidades se transformarão em autênticas corporações, até
que, em 1221, é usado o termo “universidade” em Paris para designar a comunidade de
mestres e de estudantes parisienses (universitas magistrorum et scholarium).

Em Bolonha – Itália – o estudo do direito se divide entre o direito canônico e


o civil. O direito canônico era estudado a partir do Decreto de Graciano, das Decretais
de Gregório IX, as Clementinas e as Extravagantes. Já no direito civil se estudava
essencialmente o Digesto, as Institutas e as Novelas do Código de Justiniano.

Este estudo do direito romano renascido vai se estender para as demais


universidades, que se diferenciam quanto aos métodos de estudo. Por exemplo, os
glosadores e comentadores no século XII e XIII, os pós-glosadores ou comentadores
nos séculos XIV e XV e os humanistas dos séculos XVI e XVII.

Portanto, nas universidades, o direito canônico era estudado juntamente com


o direito romano, com exceção da França, onde apenas se estudava direito canônico,
pois os reis franceses temiam que o estudo do direito romano pudesse significar uma
subordinação ao Sacro Império.

Nesta etapa destaca-se o trabalho dos glosadores, que formam a primeira


classe de estudiosos pré-modernos, que surgem com Irnério no século XII, em Bologna.
Dedicaram-se, sobretudo, ao estudo do direito romano através de uma metodologia que
tinha como principal objetivo preservar o texto ao explicitar o seu sentido.

A glosa (do grego palavra, voz) é uma observação, consideração simples sobre
o texto fiel a ele. O objetivo é comprovar que o texto jurídico é um instrumento da razão
e autoridade, sem que tivesse qualquer finalidade na vida prática. O elemento literal é
o ponto central do trabalho. Inicialmente, as glosas eram utilizadas para explicar uma
palavra do texto. Os glosadores estenderam sua função para explicar toda a frase. O
trabalho, de toda forma, como uma espécie de tradução literal. As glosas menores eram
feitas nas entrelinhas do texto e as maiores eram ao lado, à margem. A grande pretensão
era tornar evidente a verdade irrefutável da autoridade do texto através da razão.

96
FIGURA 8 – GLOSA MEDIEVAL

FONTE: <https://www.definicionabc.com/comunicacion/glosa.php>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Observe o trabalho dos glosadores demonstrado. A glosa é um breve comentário


que busca ser bem fiel ao texto.

A metodologia desenvolvida pelos glosadores acaba se transformando em um


marco inicial da ciência jurídica moderna.

A metodologia dos glosadores simboliza um marco no estudo do direito como


ciência, ao definir categorias, institutos, enfim, elevar o estudo do direito de simples
repetição ao status de ciência. Como se verá, o traço essencial do racionalismo jurídico
moderno foi a pretensão de elaborar uma teoria do direito, êxito alcançado a partir da
secularização da cultura medieval.

A concepção moderna de Direito, portanto, é resultado de sua desvinculação do


sagrado e do divino, que tratava de fundamentar a verdade. Sem dúvida, os glosadores
deram origem à classe dos juristas modernos: os conciliadores. Estes, contemporâneos
de grandes nomes do Renascimento, como Dante, Giotto e Petrarca, foram os arquitetos
da modernidade europeia, criando o Direito Comum na Europa e as bases para o que
viria a ser o Direito Moderno.

97
DICAS
A respeito do tema, para aprofundar os seus estudos, leia o interessante texto
Humanismo, Renascimento e Revolução Científica em http://educacao.globo.
com/historia/assunto/modernidade-na-europa/humanismo-renascimento-
e-revolucao-cientifica.htm. Você compreenderá o nascimento da ciência
moderna.

Os juristas, por sua importância e influência como uma segunda classe de


intelectuais formada da Idade Média ao lado dos clérigos, impulsionados pelo humanismo,
que se coloca como uma nova experiência na qual o sentido humano é renovado, e
em meio à Reforma Luterana do século XV, que propõe uma forma de interpretação
independente das autoridades católicas, vivenciam uma “viragem” da ciência jurídica no
sentido da sistematicidade interna e construção de conceitos e princípios gerais.

Em meio ao ambiente cultural e filosófico da Baixa Idade Média, o ensino jurídico


sofre um novo redimensionamento. O objetivo passa a ser a demonstração da validade
e autoridade implícita nos textos jurídicos.

Os juristas medievais desta nova etapa, também influentes diplomatas e


administradores, não apenas foram os primeiros a reivindicar a soberania dos príncipes,
com base nas fontes do absolutismo, como também, a partir da técnica jurídica
formal, como análise lógica da realidade utilizada nas questões políticas, fornecem um
“instrumental racionalizado” para as formas de poder que vinham se delineando com
o surgimento do capitalismo burguês-mercantilista. Os juristas, por serem os únicos a
dominar as operações lógicas, foram os únicos capazes de criar simultaneamente um
direito de caráter universal, racional e objetivo baseado em deduções comprováveis
logicamente e conceitos políticos que acabaram por dissolver as formas de poder da
Idade Média.

Observe a gravura a seguir, feita a partir de um texto do século XV que reproduz


uma reunião de doutores da Universidade de Paris.

Veja como há uma forte presença da lógica da autoridade doutoral e a hierarquia!

98
FIGURA 9 – UNIVERSIDADE MEDIEVAL

FONTE: <http://medievalimago.org/2014/08/23/a-universidade-medieval-um-enorme-e-significativo-lega-
do/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Apesar das reformas jurídicas levadas a cabo pelos glosadores e comentadores,


permanece a ideia de Direito como um conjunto de normas que o intérprete pouco pode
alterar. Por ser a ordem jurídica um dado indiscutível, fundada numa ordem prefixada
autoritariamente, a atualização e a sistematização do direito são tomadas como mera
tarefa técnico-interpretativa, orientada por instrumentos lógico-dogmáticos.

O trabalho de atualização e sistematização do Direito exigido pelo cenário


mercantilista, desenvolvido principalmente pelos comentadores sob a ótica
interpretativa do direito romano-justiniano, aliado ao avanço político que caminhava
no sentido da centralização do poder dos príncipes, o resultado foi a monopolização do
Direito pelo Estado. Nesta ótica, a ordem jurídica como conjunto normativo de origem
ligada à tradição dotada de autoridade deixava ao jurista apenas a tarefa de interpretar
esse conjunto normativo segundo a necessidade de atualização e sistematização.

O trabalho dos juristas da época consiste, basicamente, em interpretação


contrapondo o texto de lei (verba) a seu espírito (mens) – sentido oculto a ser “revelado”,
com base na concepção filosófica medieval em que a palavra “é a manifestação do
conhecimento humano” – encerram a verdade, o que está na alma do homem –. Por

99
conta disso, o domínio de técnicas interpretativas, como único meio de estabelecer o
“espírito” encerrado no texto normativo, possibilitava a rejeição de qualquer interesse
normativo oposto, a exemplo da interpretação restritiva utilizada em certos momentos
para as regras que não poderiam ser aceitas, por “excederem à vontade racional do
legislador”, e em outros, aceitas ampliativamente, de acordo com o interesse e utilidade.

É exatamente esse trabalho que irá desenvolver a sistematização do direito


moderno, particularmente a concepção de que direito é um sistema normativo legal
que pode ser compreendido cientificamente através de técnicas específicas. Os juristas
medievais desenvolveram um trabalho de sistematização, a partir da interpretação
lógica. Inicialmente, a lógica como procedimento interpretativo foi aplicada aos textos
bíblicos, considerando o texto como expressão de uma ideia geral (ratio) presente
em toda sua extensão, por isso, cada parte do texto é compreendida a partir de sua
integração no conjunto, o que permite a “extração” dos preceitos isolados.

Entretanto, como veremos a seguir, apenas sob o paradigma da legalidade – a


lei como tecnologia disciplinar das relações sociais – estabelecido a partir dos séculos
XVIII e XIX, é que se coloca o direito enquanto modelo técnico-racional de orientação
da prática jurídica. Assim, o direito torna-se uma ciência objetiva cuja interpretação e
aplicação devem ser orientadas por critérios metodológicos específicos de cientificidade.

O processo de racionalização da prática jurídica moderna não pode ser compre-


endido isoladamente, mas como parte integrante de um amplo processo de racionaliza-
ção que se transformou na marca da sociedade ocidental a partir do século XVIII.

Em síntese, é sob os fundamentos do direito comum, do ius commune, que se


perpetuarão as transformações políticas e jurídicas da modernidade. Tomando como base
o direito, cuja autoridade e universalidade encontravam respaldo na própria ideia de Im-
pério, irá ser esfacelada a unificação medieval da cristandade, abrindo caminho para a
afirmação do direito dos Estados cujo processo de consolidação passa a exigir gradual
concentração das funções administrativa, legislativa e judiciária, como veremos adiante.

100
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• Há características e elementos que edificaram o Direito Canônico Medieval.

• Surgiu o legado do Direito Canônico para o pensamento jurídico moderno.

• Ocorreram origens políticas e ideológicas dos Tribunais Canônicos e o Processo


Inquisitorial.

101
AUTOATIVIDADE
1 O Direito Canônico é um conjunto de normas jurídicas que regulam o modo de vida
cristã, elaborado por um grupo de intelectuais - os canonistas - cujo papel é o de auxiliar
o poder papal a elaborar um sólido conjunto de legislações. Com Gregório VII, firma-se o
poder político da Igreja, levando a uma ampliação das antigas normas. Paulatinamente
é elaborado um importante Código que servirá de fundamento jurídico da Igreja até os
dias de hoje. Sobre esse código, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Trata-se do Corpus Iuris Civile.


b) ( ) Trata-se do Código de Bartolomeu.
c) ( ) Trata-se do Corpus Iuris Canonici.
d) ( ) Trata-se do Corpus Iuris Papalis.

2 Direito Canônico é uma expressão que designa um conjunto de normas jurídicas cujo
objetivo é o de reger o modo de vida dos cristãos. Sobre os fatores que colocaram em
relevo o direito canônico, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) O caráter ecumênico da Igreja - que anuncia o cristianismo católico como universal.


( ) A dominação do direito canônico nas diversas esferas da vida privada - como o
instituto jurídico de família.
( ) O direito canônico foi objeto de doutrina e tornou-se uma ciência.
( ) A escrita cuneiforme foi muito usada nas escrituras canônicas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V - F - V - F.
b) ( ) V - V - V - F.
c) ( ) V - V - F - V.
d) ( ) F - V - V - V.

3 Direito Canônico é uma expressão que nomina um conjunto de normas e procedimentos


jurídicos que possuem como objetivo reger o modo de vida cristão. A Igreja, inicialmente
restrita ao campo religioso, vai paulatinamente assumindo papel político e jurídico. Dis-
serte sobre os fatores que explicam a ascensão do poder político e jurídico papal.

4 O direito medieval tem como característica principal ser pluralista. Em outras palavras,
durante a Idade Média convivam distintos e complexos sistemas normativos, dentre
os quais destacaram-se o Direito Canônico e o Direito Bárbaro. O Direito Canônico,
como resultado da convergência de inúmeros fatores, acabou tornando-se um direito
hegemônico em relação aos demais. Escreva uma redação com o tema O DIREITO
CANÔNICO MEDIEVAL COMO EXPRESSÃO DO PODER POLÍTICO DA IGREJA.

102
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE
TRANSFORMAÇÕES

1 INTRODUÇÃO
Antes de iniciarmos nosso estudo sobre o direito moderno, vamos começar
identificando o cenário, o contexto, a partir do qual se edifica toda lógica jurídica
predominante até os dias de hoje.

“Modernidade” é a designação genérica de um complexo conjunto de


transformações cujos efeitos acabaram colocando a Europa como centro de um projeto
civilizatório hegemônico. Trata-se de um processo paradigmático inédito que reorientou
as múltiplas relações da vida cotidiana e suas formas tradicionais de racionalização,
carregando consigo distintas faces.

Externamente, ou seja, para além da Europa, desde a América Latina e África, a


modernidade pode ser interpretada como construção do mito criado a partir do século
XV acerca da existência de um centro histórico mundial portador de uma concepção
política de ordem econômica, política e social civilizadora.

2 EXPLANAÇÃO
Como vimos, em momentos históricos anteriores os impérios ou sistemas
culturais coexistiam entre si, e apenas com a expansão europeia, que atinge a América
no século XV e o Oriente no XVI, é que o planeta se torna o “lugar” de uma “única”
história mundial (DUSSEL, 2000, p. 46). Na face interna, desde a Europa, modernidade
é uma forma de emancipação de racionalização civilizada da humanidade. Um discurso
que oculta a irracionalidade de dominação que justifica seu próprio mito.

A expansão colonizadora da Europa é uma das faces da modernidade, trata-se


de um processo de dominação cultural e política que edificou uma universalização do
direito europeu.

103
FIGURA 10 – TRATADO DE TORDESILHAS

FONTE: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=897>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Para Dussel (2000), o mito da modernidade, uma prática irracional de violência,


é fundado nas seguintes crenças:

1. a civilização eurocêntrica moderna se autocompreende como a


mais desenvolvida e superior;
2. em troca desta superioridade lhe é imposta a exigência moral de
desenvolver os povos mais primitivos, rudes e bárbaros;
3. este processo de educação civilizadora deve ser conduzido pela
Europa;
4. como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, se necessário
for e em último caso, a violência pode ser utilizada em nome do
progresso (justificando-se, assim, a “guerra justa” colonial);
5. o processo civilizatório produz vítimas, mas como a violência é
inevitável há um heroísmo intrínseco neste sacrifício salvador;
6. portanto, o bárbaro não é vítima, mas sim o culpado dos sacrifícios
necessários, já que o “civilizado” é inocente por ser nobre sua
missão;
7. portanto, o processo civilizatório possui “custos” para os povos
atrasados (imaturos), para as raças escravizáveis e para todo débil
(DUSSEL, 2000, p. 49).

104
Em síntese, “modernidade” é um paradigma múltiplo, ambíguo e complexo que
enfeixa em si relações de dominação desenvolvidas mundialmente desde o século XV,
cujo impulso foi a autoelaboração europeia, a construção da concepção de Europa, de
um imaginário de “progresso” linear e universal.

Sem dúvida, a tirania de poder, com sua “missão civilizadora”, ocultada pelo
discurso justificador da modernidade, constituiu-se numa prática “racionalizadora” de
um mito alimentado interna e externamente pelo mundo europeu ao mesmo tempo
em que era definitivamente superado o passado medieval. Assim, “mundo moderno”
é produto da aproximação entre a burguesia secularizada europeia e as necessidades
do capitalismo que acabou por oferecer os contornos do padrão mundial de poder que
construiu o modelo civilizatório hegemônico.

A origem da palavra “moderno” é bastante esclarecedora. Modernus, derivado


de modo (recente, há pouco), é uma palavra tardia na língua latina. Foi utilizada em fins
do século V como antônimo de antiquus, criando termos como modernitas (tempos
modernos) e moderni (homens de nosso tempo) que passaram a ser comuns após o
século X (KUMAR, 1997).

Portanto, a palavra “modernidade” é uma criação cristã medieval. O sentido de


moderno medieval era daquilo que se opunha ao mundo antigo pagão imerso em trevas
e em uma concepção naturalista segundo a qual o tempo era cíclico e reprodutivo. A
noção de tempo humano, regular e repetitivo, compartilhava do caráter cíclico de toda
matéria criada. Era admitida mudança, mas não a novidade (KUMAR, 1997). A noção de
tempo na antiguidade é a própria eternidade imutável.

No entanto, “no Renascimento se inicia uma nova situação que supera o


tradicional desprezo do indivíduo enquanto ente visível da ação social começando a se
alterar, com a própria possibilidade da extroversão” (SCLIAR, 2003, p. 42).

No quadro emocional instável do homem do Renascimento combinam-se


três vertentes primordiais posteriormente acentuadas na via própria do processo de
construção da modernidade.

IMPORTANTE
É importante que haja a consciência de que o processo de construção
da modernidade é difuso, sendo caracterizado pelo seu caráter lento e
irregular de gestação que começa a ocorrer precursoramente nos séculos
XI e XII, caracterizado por um lento e irregular desenvolvimento do mercado
de trocas comerciais e a aceleração do processo de racionalização que
até então era muito lento (FONSECA, 2002).

105
Conjugam-se, respectivamente, a tendência à inovação, à aventura e à
descoberta. Nessa nova condição histórica, ainda não capitalista do Renascimento,
a característica acentuada é a mercantilização. Nesta lógica de mercantilização, sem
limites ou obstáculos que não sejam profanáveis pela acumulação, o sagrado se reifica,
se coisifica, se aliena e todo universo humano adquire valor de troca.

Nesse sentido, o sentimento do individualismo, a potencialização da extroversão


criativa e sua monetarização tornam-se correntes. Na arte e na literatura surge,
ao contrário da Antiguidade ou da Idade Média, um novo contexto no qual a autoria
não é mais ignorada ou mencionada como um rótulo sem maior significação. Porém,
a sociedade renascentista possui ainda um modelo incapaz de romper com o legado
clássico e reconstruí-lo rumo ao futuro.

A modelagem cultural renascentista imprime a forma de mercadoria com a


contraposição do produto do artesão oposto ao do gênio da obra de arte, agora também
integrado nos circuitos comerciais difundidos pelos mecenatos e diferenciado pelo
traço da sua condição individual como trabalhador.

Uma das questões essenciais desse período é o da formação do indivíduo como


um dos elementos vitais para a compreensão do homem fragmentado nas relações
sociais controladas pelo capital, com a consequente escalada do individualismo que
marcou o advento da modernidade.

Rompeu-se com a concepção do indivíduo visto de forma pejorativa ou


desnecessária em sociedades do passado, como a da Grécia antiga, caracterizada pelo
culto coletivista da pólis; na Idade Média tal conceituação também era dispensável
devido ao caráter da vida comunitária essencialmente provincial ou local.

Contudo há um sentido da Renascença que impulsiona a modernidade. As


experiências socialmente partilhadas pelo cotidiano, paulatinamente a partir dos séculos
XIV e XV, espelham a emergência de uma nova racionalidade.

Na Europa, vai sendo desenhado o cenário de um novo modo de vida no qual a


dimensão humana se descobre e, desafiando a ordem medieval, redefine seu significado
existencial, abandonando definitivamente a posição secundária em relação ao poder
divino e à natureza. O prodigioso esforço de superar a tradição medieval até então
dominante conduziu a uma nova concepção e valoração do humano, inaugurando
um novo momento histórico. Chama atenção Richard Tarnas (2000) que é equivocado
imaginar essa fase como produto tão somente de luz e esplendor, já que vai sendo
construída em meio a convulsões sociais e desastres fatais, como a Guerra dos Cem
Anos, que parecia interminável e destruidora, e a Peste Negra que, em meados do
século XIV, havia dizimado um terço da população europeia.

106
Se, de um lado, a coragem para divergir dos preconceitos dominantes ia
emancipando o espírito humano, de outro, o cotidiano parecia avassalador. Professores
eram perseguidos quando não professavam a mesma fé do monarca e o debate
teológico, com a Reforma, assume destaque no meio universitário. Institucionalmente,
perdem o papel de liderança intelectual para as academias, que passaram a ser o centro
de produção cultural a partir do século XVII. Nesse ambiente ainda as fogueiras da
Inquisição ardiam sem parar!

NOTA
As academias eram grupos de indivíduos já com conhecimento que se
reuniam para discutir sobre suas experiências, hipóteses e conhecimentos,
aproximando-se de um “clube de amadores” de um certo tema, arte ou
ciência. Esses indivíduos não pertenciam à academia para obter um
título, mas para livremente investigar e discutir, o que não era possível no
ambiente universitário.

Como parte desse ambiente, praticava-se como nunca magia negra e flagelação
grupal. A Igreja, pedra angular do modelo social, para muitos era mais um centro de
corrupção e decadência do que um exemplo de integridade moral. O cenário era visto
mais como apocalíptico do que inovador.

Nesse contexto, a recuperação do conhecimento e a revolução da cultura co-


meçam a ser considerados ponto de partida para a construção do novo espírito humano.
Um espírito que ia justificando e impulsionando o domínio econômico e político europeu
para além de suas fronteiras. As inovações técnicas se alastram e permitem a visuali-
zação de um novo horizonte existencial, por exemplo, a bússola magnética, a pólvora, o
relógio mecânico e a imprensa. Inovações que provocam a expansão do mundo conhe-
cido, uma nova relação com o tempo e a expansão da secularização do conhecimento.

Simultaneamente, se construía um novo ethos cultural para uma sociedade que


começa a conceber-se como definitivamente civilizada. Neste contexto, novos valores
são ressaltados, dentre os quais o individualismo assume relevância. Desaparecera
o ideal cristão medieval que dissolvia o indivíduo na coletividade. A figura do herói
santificado paulatinamente é trocada pela do aventureiro rebelde capaz de pensar
como gênio numa vida de serviço ao Estado, comércio e conhecimento. O desejo de
prosperidade econômica e social deixava de ser pecado, tornando-se virtude.

Esse é o ambiente de um novo ator social com mais confiança em sua própria
capacidade de discernimento do que nas autoridades. Orgulhoso de sua própria razão
e ciente de que seria capaz de compreender e controlar o mundo circundante sem
depender de nenhuma divindade onipotente.

107
FIGURA 11 – OS PRECURSORES DO ILUMINISMO - RENÉ DESCARTES, FRANCIS BACON, JONH LOCKE E
ISAAC NEWTONFO

FONTE: <http://historiadomundo.uol.com.br/idade-moderna/precursores-do-iluminismo.htm>. Acesso em:


11 abr. 2017.

A realidade parecia transformar-se num ritmo alucinante. Copérnico, no século


XVI, com a teoria heliocêntrica e a órbita planetária, havia iniciado um movimento
antidogmático seguido por Tycho Brahe, Kepler e Galileu, entre outros, que viria a abalar
o princípio de autoridade, até então, base do poder papal.

Isaac Newton, no século XVII, dá um passo definitivo para a criação de uma teoria
geral da dinâmica. Em meados do mesmo século, Huygens elaborou a teoria ondulatória
da luz. Em 1628, são publicadas as descobertas de Harvey sobre a circulação do sangue.
Robert Boyle, em 1661, supera definitivamente os alquimistas no campo da química e
retoma a teoria dos átomos de Demócrito. Giordano Bruno, em 1660, é queimado na
fogueira por divulgar a teoria heliocêntrica e por suas convicções teológicas serem
consideradas heréticas. Acreditava que a Sagrada Escritura deveria ser obedecida como
ensinamento moral e não como astronômico. A revolução da ciência abria possibilidade
para a certeza epistemológica e consenso objetivo e, ao mesmo tempo, a lógica da
previsão experimental e metodológica científica ia assumindo como redentora social.

No século XVII, na Inglaterra, Francis Bacon proclama a necessidade de um novo


método capaz de substituir o antigo silogismo, encontrando na indução uma resposta.
Suas ideias são explicitadas em 1620, com a publicação do Novum Organum, que, como

108
o nome sugere, vem a substituir o antigo Organon aristotélico. Apesar dos equívocos
teóricos, defende o postulado de que um método adequado, o empírico, permitiria
a compreensão dos princípios e mecanismos que regem os fenômenos naturais, e
finalmente, a natureza poderia ser dominada.

Enquanto isso, na França, René Descartes, em meio à crise do ceticismo filosófico


francês e como fruto do racionalismo crítico, busca criar critérios irrefutáveis para a
certeza do conhecimento. Por ser um excelente matemático, acreditava que apenas
o rigor metodológico da geometria e aritmética poderia conduzir a um conhecimento
absoluto e verdadeiro no campo filosófico. Partindo da crença na consciência individual
e do comportamento metódico da dúvida, conclui que a única certeza é a certeza
da dúvida. O sujeito pensante existe – cogito, ergo sum – e tudo demais pode ser
questionado. Nesta ótica, o conhecimento seguro é o que pode ser obtido a partir do
princípio primeiro do cogito; usando a dúvida, o experimento e a hipótese, a ciência
avançaria. A razão humana torna-se a suprema autoridade e a única capaz de obter
uma compreensão racional do mundo circundante.

Descartes conferiu um novo sentido à palavra Método: passou a significar


proposta de verificação da verdade de uma proposição que exclui o erro. Méthode é um
conceito já conhecido, existente na cultura helênica, para a qual significava, segundo
Hans-Georg Gadamer, um caminho capaz de conduzir ao que se quer conhecer
(GADAMER, 1999).

IMPORTANTE
Defendendo a supremacia da racionalidade humana sobre a natureza,
assim escreve Bacon: Já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza...
De fato, somos da opinião de que se os homens tivessem à mão uma
adequada história da natureza e da experiência, e a ela se dedicassem
cuidadosamente, e se, além disso, se impusessem duas precauções:
uma, a de renunciar às opiniões e noções recebidas; outra, a de coibir,
até o momento exato, o ímpeto próprio da mente para os princípios mais
gerais e para aqueles que se acham próximos; e se assim procedessem,
acabariam, pela própria e genuína força de suas mentes, sem nenhum
artifício, por chegar à nossa forma de interpretação. A interpretação é,
com efeito, a obra verdadeira e natural da mente, depois de liberta de
todos os obstáculos. Mas com os nossos preceitos tudo será mais rápido.

FONTE: BACON, F. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da


interpretação da natureza. São Paulo: Abril, 1973. p. 95.

109
Na modernidade, Descartes estabeleceu a ideia de método unitário, funcionan-
do como paradigma de validade para todo conhecimento, de certificação universal em
razão das condições formais de procedimento. Criou o início de intrincadas e indisso-
lúveis questões que viriam a ser discutidas pelas gerações de teóricos que o seguiram,
produzindo, assim, uma pluralidade de problemas que transcenderam a individualidade
de qualquer pensador e acabaram por entrelaçarem-se naquilo que se chamou de pen-
samento científico moderno: a combinação entre conhecimento técnico-científico e a
forma de racionalizar o kosmos circundante.

Assim, foi sendo definida uma nova cosmologia profana dentro da qual
simultaneamente o ser humano descobria o movimento planetário e mudava seu
eixo existencial: de um universo aristotélico-cristão hierárquico, finito e estático
para um cosmo de significados múltiplos e absolutamente novos (TARNAS, 2000). O
mundo tornara-se secular e mutante. Com a teoria darwiniana demonstrava-se que a
transformação era o estado permanente da natureza em luta para o desenvolvimento e
supremacia dos mais fortes e não fruto benevolente de um plano transcendental.

A ciência tornava a realidade neutra. Apenas as evidências empíricas e a análise


racional poderiam ser legítimas bases epistemológicas.

De forma definitiva eram rompidos os vínculos com o passado medieval e


inaugurada uma era em moldes absolutamente novos, anunciando o alvorecer de um
progresso humano infinito. O ingresso em um tempo futuro expandido de forma infinita,
um tempo para progressos sem precedentes na evolução da humanidade (TARNAS, 2000).

Nesses novos tempos, o passado não tinha mais sentido em ser revivido, apenas
compreendido como forma de perspectiva para o futuro. A autoridade da tradição é
abolida. O conceito de moderno inclui a independência e a inovação. Talvez, por esta
razão, o conceito de modernidade é de abertura; de contínua ideia de inovação.

Entre os séculos XVIII e XIX, na Europa, quando a ciência já havia assumido


uma instância superior, para além do bem e do mal (SOUZA SANTOS, 2006), finalmente,
os tempos modernos ganhavam vida (KUMAR, 1997) e o irreversível processo de
secularização tornou a ciência um novo meio de redenção social e político, acreditando
que ao transformar os problemas sociopolíticos em questões técnicas, as soluções
seriam mais eficientes.

O modelo de racionalidade sob o qual se edificou a ciência moderna,


essencialmente orientada pelos postulados das ciências naturais que se estendeu às
ciências sociais emergentes, no entender de Boaventura de Souza Santos (2006, p.
61), acabou por se constituir num modelo totalitário, universal, já que “nega o caráter
racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos princípios

110
epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”. Essa é a característica essencial
e diferenciadora do modelo paradigmático de conhecimento que vem a substituir
hegemonicamente todos os que o antecederam.

A insurgente confiança epistemológica construía a crença na possibilidade da


unidade e verdade, e, simultaneamente, a definitiva superação do modo de vida medieval.

Nesse contexto, é edificado um modelo de racionalidade que rompe com o


senso comum, negando qualquer conhecimento fundado tão somente na prática.
Partindo da concepção de mundo-máquina, herança da física newtoniana, consolida-
se a concepção de dominação através do conhecimento como resultado da adoção
de critérios metodológicos adequados e precisos, tendo como pressuposto certeza da
existência da ordem, previsibilidade e estabilidade.

A explosão que estilhaçou a imagem medieval teológica e geocêntrica de


mundo, igualmente modificou o ideal de vida teórica, tornando a ciência uma grandeza
autônoma (GADAMER, 1999). A permanente autossuperação do conhecimento
produzido pela investigação faz da ciência um empreendimento desafiador e ilimitado
cujo caminho de investigação metódica é a própria certificação da razão (GADAMER,
1999). A partir de então, a tarefa dos diversos campos do conhecimento é colocar-se
nessa “trilha segura”, na qual o saber torna-se produto de uma teoria fundada em rígidos
critérios metodológicos.

Nesse contexto, a imagem de mundo, elaborada a partir da autoconsciência


humana, faz com que a própria interpretação da realidade adquira um sentido pragmático.
Em outras palavras, o agir, enquanto produto compreensivo, passa a pressupor o uso
adequado de uma operação técnica.

O modelo de racionalidade que foi sendo construída desde o Renascimento no


mundo europeu, a partir do século XIX adquire o status de modelo global de racionalidade
científica, alastrando-se para os diversos campos do conhecimento, colonizando
culturas e sociedades, sobretudo ocidentais. Tal modelo é representado melhor pelo
positivismo, em suas distintas vertentes, que, para Souza Santos (2006, p. 25), assenta-
se nas seguintes ideias fundamentais:

[...] distinção entre sujeito e objeto e entre natureza e sociedade ou


cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptí-
veis de formulação matemática; uma concepção da realidade domina-
da pelo mecanicismo determinista e da verdade como representação
transparente da realidade; uma separação absoluta entre o conhe-
cimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras
formas de conhecimento, como o senso comum ou estudos humanís-
ticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação
das “causas últimas”, consideradas metafísicas, e centrada na mani-
pulação e transformação da realidade estudada pela ciência.

111
Toda reflexão epistemológica moderna assentou-se neste paradigma, que
demonstrava ser capaz de formular princípios organizativos da ordem natural e social.
Esse modelo de racionalidade deve ser compreendido como parte essencial do grande
projeto civilizatório da modernidade, que segundo Souza Santos (2006), é assentado
sobre dois pilares – o da regulação e da emancipação – cada um dos quais constituído
por três princípios ou lógicas.

O pilar da regulação, construído pela concepção de Estado – que encontra


sua justificativa nas concepções contratualistas –, o princípio de mercado – formulado
sobretudo pelas concepções capitalistas liberais, e o princípio da comunidade – tal como
concebido teoricamente por Rousseau. O pilar da emancipação assentado nas lógicas
de racionalidade tal como expressas por Max Weber: a estético-expressiva das artes
e literatura, a cognitiva instrumental da ciência e tecnologia e a racionalidade moral-
prática da ética e direito (SOUZA SANTOS, 2006).

O grande esforço, sobretudo ocidental, em edificar uma civilização


institucionalmente racionalizada e objetivamente avaliada transmuta-se num
imenso e ambicioso projeto social global que carregava consigo a promessa de um
desenvolvimento harmônico e recíproco entre os pilares da regulação e emancipação,
capaz de racionalizar completa e simultaneamente a vida coletiva e individual. À ciência
coube o papel central de controlar e administrar qualquer possibilidade de excessos,
desvios ou défices, considerados como situações passíveis de serem resolvidas de forma
eficiente, convertendo-se, assim, a ciência em força produtiva com critérios de eficácia
e eficiência que se tornaram hegemônicos, ao ponto de colonizarem gradualmente os
critérios racionais das outras lógicas emancipatórias (SOUZA SANTOS, 2006).

112
NOTA
O importante autor contemporâneo Boaventura de Sousa Santos escreve acerca dos
“sintomas” da crise do pensamento científico moderno. Perceba como o autor coloca a
impotência da ciência para os tempos que se vão anunciando.
Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus
pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já
não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do
futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. Quando,
ao procurarmos analisar a situação presente das ciências no seu conjunto,
olhamos para o passado, a primeira imagem é talvez a de que os progressos
científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos
que nos precederam desde o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos,
nascemos, até ao próprio século XIX, não são mais que uma pré-história
longínqua. Mas se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificamos
com surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e
mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos
viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos
do século XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marx e
Durkheim a Max Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein.
E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos
ainda no século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece
antes de terminar. E se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar
no futuro, do mesmo modo duas imagens contraditórias nos ocorrem
alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos
conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de
comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda
hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de
começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre
os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais
verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer
que o século XXI termine antes de começar.

FONTE: http://bit.ly/3OEiGn4. Acesso em: 11 abr. 2017.

Lendo o trecho anterior, que você tem disponível na íntegra pela internet, somos
levados a pensar se, realmente, a ciência, enquanto conhecimento em si, é capaz de
solucionar os males do nosso tempo.

113
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A Modernidade é um contexto político, histórico e cultural no qual irá se edificar uma


nova racionalidade jurídica.

• Com o rompimento com o poder político papal e a emergência dos Estados Modernos,
há a secularização do conhecimento e a concepção de ciência substituindo a
ideologia cristã.

• Ocorrem a relevância e a contribuição dos distintos pensadores para a edificação do


saber moderno e a redefinição do Direito.

114
AUTOATIVIDADE
1 O advento da Modernidade modificou profundamente o modo de vida e os valores
da sociedade europeia a partir do século XIV. Sobre as transformações no campo
jurídico, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A origem do Direito do Trabalho com a Revolução Industrial.


b) ( ) A elaboração do Direito Previdenciário com as Revoluções Burguesas.
c) ( ) O movimento pela codificação do direito.
d) ( ) A elaboração do Código de Justiniano.

2 O Estado Moderno é edificado como ente político e jurídico desde a fragmentação


da ordem medieval a partir do século XVI na Europa Ocidental. Foram inúmeras as
transformações que promoveram o crescimento das cidades, o fortalecimento da
burguesia e o avanço tecnológico. Acerca das características do Estado Moderno,
analise as sentenças a seguir:

I- Promove condições necessárias para o desenvolvimento e a manutenção das


relações públicas e privadas.
II- É capaz de manter a validade das normas jurídicas através da legitimidade política.
III- Produz uma aceitação do sistema sociopolítico liberal, capitalista e burguês.
IV- Desempenha uma função desintegradora da ordem social e política moderna.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e IV estão corretas.


b) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.
c) ( ) Somente a afirmação II está correta.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

3 O modelo político liberal moderno é resultado histórico da formação de um tipo de


poder estruturado na Europa durante os séculos XV, XVI e XVII, trata-se de uma forma
política moldada dentro de um processo de centralização e concentração ocorrido
nesses séculos. Acerca das fases que se desdobraram nesse período, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Absolutista, liberal e social.


b) ( ) Liberal, neoliberal e econômica.
c) ( ) Neoliberal, econômica e social.
d) ( ) Religiosa, liberal e social.

115
4 Considere a cena a seguir, do filme Tempos Modernos, de 1936, de Charles Chaplin:

FONTE: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-1832/fotos/detalhe/?cmediafile=20067818>.
Acesso em: 3 abr. 2018.

Pergunta-se: Considerando o estudo realizado acerca do pensamento moderno, o que


a figura anterior lhe sugere quanto à relação ser humano X tecnologia?

116
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO
JURÍDICO

1 INTRODUÇÃO
Para compreendermos o direito moderno como resultado de todo um processo
histórico e filosófico acumulado, há que se partir da compreensão da racionalização
jurídica moderna, o que pressupõe inseri-la no amplo processo ético-filosófico e técnico-
produtivo da ordem capitalista liberal que emergiu da sociedade ocidental europeia
no século XVIII, culminando na consolidação de uma nova ordem social, econômica e
política, fundada nos valores e interesses da classe burguesa.

2 EXPLANAÇÃO
Se inicialmente o liberalismo constituiu um instrumento revolucionário capaz
de enfrentar o Antigo Regime Absolutista, com o apoio das camadas populares que
acreditavam na possibilidade de construção de uma sociedade livre, justa e fraterna,
com a apropriação do poder político e econômico pela elite burguesa, os ideais
revolucionários são mantidos unicamente no plano formal, excluindo-se da prática
qualquer ação comprometida com a distribuição da riqueza e a democratização política.

Afirma Wolkmer (1994) que, das expressões valorativas, a que mais se encontra
integrada ao liberalismo é o individualismo. No modelo liberal, o individualismo assume
caráter diferenciado de outras experiências históricas, como o cristão, naturalista,
racionalista e anarquista, por estabelecê-lo não como um “valor em si”, mas como “valor
absoluto”, que concebe e prioriza o homem em sua absoluta autonomia não apenas
frente ao poder estatal, mas a qualquer forma de organização institucional.

Sob tal ótica, foi produzido um modelo político monopolizado capaz de assegurar
e reproduzir os interesses liberais individualistas do capitalismo burguês, aliado a um
tipo específico de instrumental jurídico capaz de garantir sua legitimidade e efetividade.

O modelo político liberal moderno é resultado histórico da formação de um tipo


de poder estruturado na Europa durante os séculos XV, XVI e XVII, que veio a suceder
o político-jurídico medieval. Trata-se de uma forma política moldada dentro de um
processo de centralização e concentração ocorrido nesses séculos, que se desdobrou
através de distintas fases: absolutista, liberal e social.

117
Entende Heller (s.d., p. 158) que “[...] é patente o fato de que durante meio
milênio, na Idade Média, não existiu o Estado no sentido de uma unidade de dominação,
independentemente no exterior e interior que atuara de modo contínuo com meios de
poder próprios, e claramente delimitada pessoal e territorialmente”.

Para o referido autor, o modelo de poder político da Idade Média é entendido


como “estamental” (as funções encontravam-se repartidas entre a Igreja, os nobres
proprietários de terra, os cavalheiros e outros privilegiados), sendo os reinos e territórios
da Idade Média, tanto no interior como no exterior, unidades de poder político apenas
excepcionalmente, já que o poder estava limitado em seu interior pelos inúmeros
depositários de poder feudal, e no exterior pela Igreja e Imperador.

Como já vimos, além de que, na fase medieval, era desconhecida a ideia de uma
pluralidade de Estados soberanos coexistindo com uma igual consideração jurídica, não
conhecendo o Estado feudal uma relação de súdito de caráter unitário, como atualmente
o compreendemos.

Portanto o Estado «moderno» se origina em um processo de


alterações que incluem a exaustão do sistema socioeconômico feudal
e o advento do capitalismo; incluem também o surgimento de uma
nova vida urbana, em contraste com a existência predominantemente
rural do medievo e em consonância com a ascensão de um novo tipo
social que viria a ser denominado burguesia (SALDANHA, 1987, p. 8).

A ordem política e social medieval, por sua descentralização e fragmentação,


permitiu a coexistência de distintas e complexas ordens jurídicas legítimas num mesmo
espaço social, o que será definitivamente abolido pelo Estado Moderno, que irá impor
uma ordem jurídica monista, considerando o Estado como a fonte monopolizadora de
produção do Direito, tendo as demais fontes apenas legitimidade derivada.

Há de salientar-se que, dentro dessa realidade jurídica pluralista, num plano


superior, colocou-se o Direito Canônico, por estar diretamente vinculado à autoridade
religiosa, critério último para a validação das demais ordens jurídicas, como consequência
do princípio agostiniano de subordinação da ordem terrena à ordem divina.

Paulatinamente, com o avanço da ordem mercantilista e a necessidade de


proteger juridicamente os interesses da burguesia comercial, associam-se as ideias
individualistas e capitalistas a partir do século XVI, abrindo caminho para um “novo”
estilo de vida que foi capaz de transformar a estrutura social, jurídica e econômica
do mundo medieval ocidental, delineando um novo homem com consciência do valor
da personalidade e da liberdade individual, rompendo-se com as regras morais e
religiosas da Idade Média. Assim, começa a entrar em colapso a antiga estrutura jurídica
descentralizada, passando a ser sucedida pela consolidação mais genérica, sistemática
e unitária de um Direito Mercantil (WOLKMER, 1994).

118
No plano político, o Estado Moderno, de forma oposta ao do poder medieval,
constitui-se de dois processos paralelos que paulatinamente o vão consolidando: O pro-
cesso de centralização, quando se passou do poder disperso e local para um po-
der situado em um foco central nas mãos do monarca; e a formação de uma nova
concepção política de que o poder deve ter legitimidade e representatividade.

Tal modelo político desenvolveu-se por conta da conjugação de fatores que


se desenvolveram historicamente através de estágios “demarcados por mutações
revolucionárias” fundamentais, que são: absolutista, liberal e social, sendo que cada
fase é caracterizada por um tipo, uma figura conceitual genérica provinda da unificação
de certos traços de um objeto.

DICAS
Para melhor compreender esta fase da história, procure ler a respeito
das Revoluções Burguesas. Há muito material disponível na internet.

FIGURA 12 – REVOLUÇÃO INGLESA

FONTE: <https://cafedahistoria.wordpress.com/2012/04/12/revolucoes-burguesas-a-revolucao-inglesa/>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

119
O adjetivo liberal, tomado em sua concepção política, que vem a caracterizar
o modelo que sucede ao absolutista, deve ser compreendido a partir dos movimentos
político-sociais pré-napoleônicos do século XIX; apesar de antes ter a Inglaterra exemplos
de correntes e instituições tipicamente liberais, associado a um credo jusnaturalista,
diferencia-se substancialmente do antigo. Para o jusnaturalismo predominou uma
concepção objetiva – existência de leis eternas, correlatas de uma racionalidade
inerente às coisas e oriundas do domínio do nous e de sua obra, o cosmos.

Com o pensamento moderno emerge a noção de direito subjetivo (que sobreveio


já com o cristianismo), emergindo uma concepção plural e individual de direitos naturais.
Na versão liberal, o contratualismo representa um “legado”, um ponto de partida para a
ideia de necessário acordo de vontades para a legitimação de poder.

Somente um poder consentido seria legítimo – aqui sem diferenciar-


se legitimidade e validade – e tal consentimento deveria provir de
todos, ou seja, de cada um dos contratantes, cada qual livre e racional
em sua condição humana. Tal liberdade viria a ser proclamada nas
declarações constitucionais do liberalismo, dando aval ao poder
consentido e outorgado, e reconhecida e protegida pelo Estado
(SALDANHA, 1987, p. 29).

O paradigma legalista, enquanto legitimação de qualquer ação social, tanto


no individual quanto no plano político, a partir da previsão legal – conjunto normativo
escrito de caráter geral e abstrato – que obedece a um modelo técnico-racional e
produzida unicamente pelo Estado, traz como um de seus corolários o princípio do
primado da lei. Esta é uma invenção do século XIX que vem na esteira das revoluções
burguesas, que vincula a teoria da soberania popular e da representação parlamentar
como reação à concepção absolutista de Estado.

Para a burguesia em ascensão, a defesa de seus interesses – livre circulação


de bens, de pessoas, liberdade de comércio e direito de propriedade – passava pela
necessidade de impor ao Estado o primado da lei como garantia a violações a tais
direitos. Tal paradigma foi apropriado pelas distintas ordens jurídicas ocidentais de
maneira diferenciada, conferindo-lhe fisionomia própria. Assim, por exemplo, na França
a lei positivada é a condição de existência de direitos, enquanto que na Alemanha de
Weimar, sob o efeito do socialismo, se cria a ideia de que a lei escrita cria o perigo de
restringir direitos ao invés de garanti-los, preferindo-se operar a distinção entre lei
formal e lei material (AUER, s.d.).

O paradigma da legalidade, ao ser transformado em ideologia jurídica, se converte


num princípio hermenêutico moderno, pois cria a ficção da possibilidade de vincular o
abstrato ao concreto, o geral ao particular, reforçando a ideia de coerência da ordem
jurídica. Auer (s.d., p. 135), tomando ideologia no sentido gramsciano, a define como
“[...] um sistema lógico de ideias que circulam na sociedade e que constituem outras
tantas normas de comportamento difusas, parcialmente conscientes e parcialmente

120
inconfessas”. Tal ideologia jurídica, tendo por finalidade promover a coesão do grupo
social, organizando a consciência individual em função de padrões de universalidade,
justiça, equidade e previsibilidade, torna legítima a organização jurídica posta, criando
um “consenso” que permite um agir social.

A citação a seguir retratará o que é o paradigma da legalidade, que vem a ser o


conceito-chave do direito moderno.

O princípio da legalidade canaliza e estrutura a lei. A lei pode ser vaga,


imprecisa, fluida e indeterminada, pois o princípio da legalidade
consegue a proeza de fazer aparecer como conformes a esta fluidez
os mais diversos atos de aplicação individual e concreta. Garantindo
uma ligação tanto normativa como lógica entre o abstrato e o
concreto, entre o geral e o individual, a legalidade funda e reforça
a ideia de uma coerência da ordem jurídica. Ela pinta a imagem
reconfortante, porque previsível, de um mundo jurídico fechado
e ordenado, em que tudo está no seu lugar, em que a conclusão
decorre naturalmente do jogo das premissas maior e menor, em que
o geral e o abstrato antecipam um juízo hipotético sobre o concreto
que, por sua vez, os confirma etc. Em suma, a ideia de uma lógica da
ordem jurídica é essencialmente ideológica e esta ideia alimenta-
se, nomeadamente, do princípio da legalidade (AUER, s.d., p. 136).

Esse milagroso paradigma é legitimado pela crença positivista enquanto atitude


científica que “[...] encontra na observação científica dos fenômenos a explicação da
realidade, excluindo toda especulação metafísica. Esta observação é uma experiência
da realidade a partir da qual será dada a explicação (empirismo vem da experiência)”
(MIAILLE, 1989, p. 275).

Essa corrente de pensamento foi o resultado da incorporação do modelo


epistemológico adotado pelas ciências naturais às “ciências do espírito”, pressupondo
que todo saber, para ser válido, deveria se basear na observação direta da realidade
empírica, rejeitando qualquer especulação metafísica, substituindo a autoridade e a
especulação filosófica pela observação e pela experiência, pretendendo objetivar o
conhecimento.

Segundo Hespanha (1997), no plano jurídico, esse movimento vinha ao encontro


da pretensão de colocar fim tanto à incerteza e ao casuísmo do modelo jurídico
tradicional quanto à proliferação de sistemas especulativos sobre direito natural que
haviam surgido ao longo do século XVIII.

Ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à religião e


à moral, como contra a sua identificação com especulações de tipo
filosófico como as que eram correntes nas escolas jus racionalistas.
Contra uma coisa e contra a outra proclamava-se a necessidade de
um saber dirigido para coisas positivas (HESPANHA, 1997, p. 174).

No pensamento jurídico fixaram-se duas correntes doutrinárias de matriz


positivista a partir do século XIX: o positivismo legalista, representado pela Escola
Exegética, e o positivismo formalista científico, cuja precursora foi a Escola Histórica.

121
O positivismo em sua vertente legalista, que acaba sendo dominante na prática
jurídica, reduz o direito à lei e admite como única fonte de direito o criado por um
legislador estatal. Já a segunda “[...] deduzia as normas jurídicas e sua aplicação a partir
do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder
a valores ou objetivos extrajurídicos (por exemplo, religiosos, sociais ou científicos) a
possibilidade de confirmar ou infirmar as soluções jurídicas” (WIEACKER, s.d., p. 492).

Embora não possam as duas concepções ser confundidas por possuírem


diferentes matrizes filosóficas e políticas, ambas rejeitam qualquer fundamentação
metafísica do direito, conferindo-lhe o status de um saber científico especializado e
autônomo, que deve utilizar métodos objetivos e verificáveis à semelhança das ciências
naturais. A tal credo soma-se a pretensão de conferir a esse saber um caráter de
universalidade e de progressiva perfeição, já que esta fase coincide com o período
áureo da expansão colonialista europeia que difundia e impunha a cultura, e por via
de consequência, o modelo jurídico desenvolvido na Europa Ocidental às diferentes
partes do mundo, combatendo e dizimando, em nome do “progresso, modernidade
e da civilização”, todas as formas de organização social, política e jurídica dos povos
conquistados, convencida de sua supremacia.

A codificação representou a consolidação do positivismo jurídico como discurso


predominante no período de formação da ciência jurídica moderna. Esse movimento
inovador e revolucionário no plano jurídico-formal vem na esteira da ideologia liberal
burguesa e no triunfo dos princípios da Revolução Francesa, rompendo definitivamente
com a antiga ordem estamental sobre a qual se assentava o Antigo Regime.

FIGURA 13 – CÓDIGO CIVIL FRANCÊS

FONTE: <https://viajepordois.wordpress.com/2013/09/12/waterloo/>. Acesso em: 11 abr. 2017.

122
O princípio básico desse novo paradigma jurídico, coerente com a concepção
de que o estudo do Direito deve ser restringido à experiência constatada, consiste em
identificar e reconhecer apenas como Direito o produzido pelo Estado, o único com
existência objetiva – jus positum – que, com segurança, pode ser instrumento de
planificação e manutenção da sociedade.

O movimento da codificação, produto da simbiose do jus racionalismo com


o iluminismo, alastrou-se pela Europa Ocidental a partir do século XIX, e, apesar da
multiplicidade de circunstâncias que justificam sua ocorrência, possui, no dizer de
Wieacker (s.d., p. 366), “um idêntico perfil espiritual”.

Os códigos modernos pretenderam uma “planificação social” através da


reordenação sistemática da matéria jurídica, tendo como pressuposto a convicção
iluminista de que o estágio civilizatório da sociedade seria alcançado com uma forma
de governo fundada na razão e na “vontade geral”. O projeto geral para a edificação de
um modelo social fundado na ética natural vinha sendo delineado pelo Direito Natural,
que, a partir do século XVII, encontrou um ambiente filosófico para uma redefinição no
sentido de conceber o Direito Natural estável fundado na razão.

O pensamento dos juristas que buscavam um “direito certo e seguro” encontrou no


poder da razão individual a possibilidade de descoberta das regras do justo fundado numa
ordem racional, o que iria conduzir no sentido de tornar o direito positivo o “mais certo”.

A ideia do direito natural, neste novo sentido, vem a impor-se


decisivamente na cultura jurídica europeia do século XVII. De alguma
forma, o novo direito natural, fundado na razão, é o correspondente
do antigo direito natural, fundado na teologia. O pensamento social e
jurídico laicizara-se. O que não é estranho ao facto de, pela primeira
vez, se ter quebrado a unidade religiosa da Europa (com a Reforma) e
de se ter entrado em contato com povos totalmente alheios à tradição
religiosa europeia. E, com esta laicização, o fundamento do direito
passara a residir em valores laicos, comuns a todos os homens, como
as evidências racionais (HESPANHA, 1997, p. 150).

Esse novo conceito de Direito Natural, que passa a dominar o pensamento dos
juristas, traz como consequência a construção de sistemas jurídicos que têm como
ponto de partida os direitos inatos do indivíduo. A concepção individualista de homem,
apesar de remontar ao nominalismo, teve no cartesianismo e no empirismo um novo
impulso, onde os direitos individuais, imutáveis e necessários são definidos pela própria
natureza humana.

123
NOTA
A filosofia nominalista, ao contrário da tradição filosófica clássica que
conferia existência real ao homem como inserido em estruturas sociais,
considerava o homem enquanto um ser isolado, sem outros direitos e
deveres senão aqueles reclamados pela sua natureza individual ou pela
sua vontade.

Do cartesianismo é absorvida a ideia de o homem como ser que busca a verdade


através da razão, detentor de dois direitos naturais inerentes: usar livremente a razão na
produção do conhecimento e de pautar sua ação em princípios ditados pela razão. O em-
pirismo transcende o cartesianismo ao idealizar o homem não apenas como um ser racio-
nal, mas comandado por instintos concretos (perpetuação, conservação...) que deveriam
ser garantidos e satisfeitos, já que constituíam um Direito Natural (HESPANHA, 1997).

É assim superada a concepção aristotélico-tomista de Direito Natural pela


convicção na natureza individual do homem e na observação dos impulsos que o levam
à ação, emergindo um novo conceito de sociedade e de ordem social.

[...] Perante a sua necessidade “natural” de agir racionalmente ou de


agir instintivamente, a sociedade aparecida até mesmo como um obs-
táculo, pois nela não era possível dar livre curso a estes impulsos sem
chocar com os desígnios de ação dos outros”. É exatamente esta a
firme crença dos pensadores jus racionalistas que defendem o Estado
como forma de organização social e de limite dos direitos naturais.
De facto, levado pela consideração dos interesses da vida em
comum, para a qual se sentiam inclinados (Grócio), ou pelo medo de
um estado de natureza em que a satisfação dos impulsos naturais
gerava contínuas lutas (Hobbes), os homens celebram entre si um
pacto, pelo qual limitam a sua liberdade natural, entregando na mão
dos governantes o poder de editar regras de convívio obrigatórias. É
o «contrato social», cujos germes já se encontram em Suarez, mas
cuja teoria é agora amplamente desenvolvida.
A teoria do «contrato social» não deu lugar somente às teorias
democráticas que tiveram seu epílogo na Revolução Francesa. Ele
foi igualmente adequado a fundamentar o «despotismo iluminado»,
típico das monarquias e principados europeus do século XVIII. Tudo
dependia, de facto, do conteúdo do contrato, pois os jus naturalistas
acabavam, como se vê, por depor todo direito positivo nas mãos dos
membros da coletividade. E então, é da vontade arbitrária destes
que a lei vem, em última análise, a depender. E bem pode acontecer
que, atentos aos perigos do estado de natureza, os homens decidam
depor todos os seus direitos na mão do príncipe, a fim de que este
zele, com o pulso livre, pelo bem comum e pela felicidade individual
(Hobbes) (HESPANHA, 1997, p. 151-152).

124
Com o jus racionalismo é aberta uma nova fase no pensamento jurídico. De
um lado, a nova convicção de “natureza humana” eterna e imutável confere valor
universal do Direito, o que explica a “exportação” dos códigos, notadamente o Código
Civil napoleônico como subsidiário ou principal, para regiões culturalmente distintas,
representando um verdadeiro movimento revolucionário. E de outro, o divórcio definitivo
entre Direito Natural e Direito Positivo, vindo este último a ser considerado como o
único Direito, sendo que, no dizer de Bobbio (1993, p. 23), “[...] a partir deste momento,
o acréscimo de adjetivo «positivo» ao termo «direito» torna-se um pleonasmo, mesmo
porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina
segundo a qual não existe outro direito se não o positivo”.

As codificações sistemáticas do Direito significaram o “triunfo da razão” que


pretenderam a positivação de um modelo de Direito ensinado nas universidades desde
o século XI, “o direito justo”, mostrando os juristas a disposição em admitirem a inovação
de ser o soberano competente para afirmar o Direito.

Na verdade, é reconhecido o poder do Estado para expor os princípios da lei


natural: trata-se, como diz Cambecérès – jurista francês do século XIX que elaborou o
Código Civil de 1804 –, de estabelecer um código de natureza sancionado pela razão e
garantido pela liberdade, poder este que, uma vez admitido, facilmente é afastado de
tal fim, já que o “legislador”, como personificação do Estado, servindo-se de tal poder,
independentemente de qualquer preocupação com “leis naturais”, serve-se da nova
mentalidade para ter na lei positivada um eficiente instrumento de controle social.

Na França revolucionária do século XIX, o movimento da codificação veio a


mudar radicalmente o conceito de Direito, fazendo verdadeira “tábula rasa” da ordem
jurídica anterior. Ao criar uma nova mentalidade que identifica Direito com os códigos, os
juristas desenvolvem um instrumental técnico de interpretação e aplicação do Direito,
seguindo uma orientação exegética.

No dizer de Bobbio (1993, p. 83), a técnica exegética consiste em “[...] assumir


pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo
legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do
próprio Código”. Portanto, a chamada Escola da Exegese pretendia reduzir o direito à lei,
levando a cabo os objetivos revolucionários burgueses.

Como disse o decano Aubry, em 1857, em um relatório oficial sobre o


espírito do ensino da Faculdade de Direito em Paris: Toda a lei, tanto no
espírito quanto na letra, com uma ampla aplicação de seus princípios
e o mais completo desenvolvimento das consequências que dela
decorrem, porém nada mais que a lei, tal a divisa dos professores do
Código de Napoleão (PERELMAN, 1998, p. 31).

125
Apesar de já ter a Assembleia Nacional Constituinte de 1790 concebido um
projeto de código que sintetizasse um novo direito revolucionário, apenas em 1804,
com o Consulado e sob a influência de Napoleão I, é que o Código Civil teve uma versão
definitiva, seguindo-se o Código de Processo Civil (1806), Código Comercial (1807),
Código Penal (1810), dentre outros. Essa fase de promulgação dos códigos inaugura
a instauração da Escola da Exegese, que, segundo Perelman (1998), vem seguida de
duas outras fases distintas: uma fase de apogeu até cerca de 1880, e uma de declínio,
que termina em 1890 com a obra de Gény, anunciando o fim do pensamento exegético.
Os códigos napoleônicos consumaram definitivamente a doutrina jus racionalista ao
“positivar a própria razão” e a concretização legislativa da volonté générale.

A lei sistematizada nos códigos adquire o monopólio de manifestação do direito. Já


não havia lugar para outras fontes de direito. O direito doutrinal havia sido incorporado nos
códigos. A Revolução rompeu definitivamente com o passado, instituindo uma nova ordem
política e jurídica, desvinculando-se, assim, do Direito tradicional. A jurisprudência não tinha
mais sentido como fonte de Direito na medida em que aos juízes cabia apenas o poder
de aplicar a lei e não estabelecer o Direito (HESPANHA,1997). Esta compreensão jurídica,
predominante na França do século XIX, forjou juristas (Duranton, Demolombe, Troplong)
cujas obras doutrinárias se limitavam a expor e a interpretar os artigos dos códigos.

A Escola da Exegese estava intimamente ligada ao ambiente político


e jurídico francês, ou seja, a um Estado nacional revolucionário, em
corte com o passado, dotado de órgãos representativos e que tinha
empreendido uma importante tarefa de codificação. Isto determina
a disseminação dos princípios desta escola noutros países,
retardando-a, nomeadamente, nos casos em que estes requisitos
não estivessem realizados (HESPANHA, 1997, p. 178).

Tal saber jurídico que dominou a Europa na primeira metade do século XIX,
segundo Bobbio (1993, p. 84-89), possui como características fundamentais:

1. A inversão das relações tradicionais entre Direito Natural e Direito


Positivo.
2. O monismo jurídico.
3. A interpretação e aplicação da lei fundada na intenção do
legislador.
4. O culto à lei e o princípio da autoridade.

Até fins do século XVIII, predominava uma concepção dualista em que o Direito
era definido individualmente em duas esferas distintas: o Direito Natural e o Direito
Positivo, diferenciados quanto à gradação de superioridade ao longo da formação
histórica do pensamento jurídico.

Na Antiguidade Clássica, como vimos, o Direito Natural era considerado


hierarquicamente inferior ao Positivo, concebido como Direito comum (koinós nómos),
enquanto o Direito Positivo era o particular.

126
Já na Idade Média, o Direito Natural é visto como “a lei escrita por Deus presente
no coração dos homens”, como afirma São Paulo, na Sagrada Escritura, o que gera a
inversão da relação entre as duas espécies de Direito, tendência que impregnou o
pensamento jus naturalista de que considerou o Direito Natural superior ao Positivo.
Contudo, apesar de tais distinções, ambos eram considerados como legítimos.

Com o pensamento exegético, embora sem a coragem de negar completamen-


te, o Direito Natural passa a ser de menor importância e sem significado prático. No
dizer de Demolombe, um dos idealizadores do Positivismo Jurídico, o Direito Natural
só importa ao jurista quando é inserido na lei, fazendo, assim, uma inversão própria do
pensamento positivista, ao desconsiderar o Direito Natural como referencial de validade
ao Direito Positivo.

O jurisconsulto não deve se prender a um modelo mais ou menos per-


feito, a um tipo mais ou menos ideal; [...] o direito natural, para ele,
não é sempre o melhor, nem o mais excelente; mas o direito natural
possível, praticável, realizável é aquele, sobretudo, que se conforma
e se assimila melhor ao espírito, aos princípios e às tendências gerais
da legislação escrita; e eis por que penso que é sempre nessa mesma
legislação que é necessário atingir, diretamente ou indiretamente, to-
das as regras das soluções jurídicas (Bonnecase) (BOBBIO, 1993, p. 85).

Bobbio (1993) salienta que a Escola da Exegese eliminou a ideia de aplicação


subsidiária do Direito Natural no caso de lacuna do Direito Positivo, já que, apesar
de o Art. 4º, do Código de Napoleão, admitir a função subsidiária do Direito Natural,
a interpretação deste artigo é alterada. Partindo do princípio da completude do
ordenamento jurídico, o juiz não necessita de meio subsidiário para resolver conflitos: “o
juiz não pode legalmente pretender que a lei não lhe proporciona os meios para resolver
a causa que lhe é submetida” (Bonnecase), além de dever o juiz considerar improcedente
qualquer pedido que não “previsto em lei” (BOBBIO, 1993, p. 86)

Quanto à segunda característica apontada por Bobbio, o monismo jurídico,


ou princípio da onipotência do legislador, segundo Wolkmer (1994, p. 40), tal doutrina
resulta da inter-relação entre:

A suprema racionalização do poder do soberano e a positividade


formal do Direito [...], conferindo, ao Estado, o monopólio de produção
das normas jurídicas, transformando o Estado em único agente
legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de
relações sociais que se vão impondo.

O Estado Liberal Moderno, conforme já considerado, é definido em função


de ser um modelo político ao mesmo tempo per leges (faz a lei) e sub leges (sob o
controle da lei), contorno que foi conferido pela congruência entre a legalidade estatal e
a centralização burocrática, que atribui a seus órgãos institucionais diferentes poderes
– legislar e julgar através de regras jurídicas abstratas e genéricas, sistematizadas no
Direito Positivo.

127
É exatamente com a Escola da Exegese que ocorre a mais íntima simbiose entre
o Direito e o Estado, não apenas no sentido de reconhecer como única fonte de Direito
o Estado, mas sobretudo, por admitir como o único verdadeiro o Direito Estatal.

Tendo presente a consolidação do modo de produção capitalista e a


definição da burguesia como segmento social hegemônico, impõe-se,
a partir de uma arquitetura lógico-formal unitária, o princípio de que
toda sociedade tem apenas em único Direito, e que este «verdadeiro»
Direito, instrumentalizado por regras positivamente postas, só pode
ser produzido através de órgãos e de instituições reconhecidos e/
ou oficializados pelo Estado. Constrói-se, assim, a segurança, a
hierarquia e a certeza de um arcabouço de normatividade dogmática
fundado no plano lógico de que só existe um Direito, o Direito Positivo
do Estado (WOLKMER, 1994, p. 54).

A concepção estatal de Direito gera, necessariamente, o princípio da


onipotência do legislador, que não significa tão-somente a negação do Direito Natural,
mas também, no dizer de Bobbio (1993, p. 86), “a negação de todo tipo de direito positivo
diferente daquele posto pela lei, como o direito consuetudinário, o direito judiciário e
principalmente o direito científico”.

Dura lex, sed lex, um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei
(Mourlon). Esta máxima do pensamento exegético deixa evidente que a interpretação e
aplicação da lei devem ser submetidas à razão expressa na lei, a razão de um Estado Legislador.

Como decorrência da sacralização do Direito Estatal fundado no princípio da


onipotência do legislador, vincula-se uma terceira crença, ou característica, do pensamento
exegético: a interpretação e aplicação da lei com base na intenção do legislador.

A ficção jurídica de um legislador onipotente e detentor de “uma vontade”


expressa no texto legal é fruto do pensar dogmático positivista, que compreende o texto
da lei como expressão da mens legislatoris (vontade do legislador). Pressupondo os
códigos como instrumento capaz de garantir a certeza das relações sociais e o Direito
como fato objetivado e delimitado nestes códigos, via de consequência, a interpretação
e aplicação do Direito deveria ser centralizada na determinação unívoca e precisa do
sentido expresso no texto legal, operando-se com a segurança e certeza como valores
prioritários desse modelo de cientificização.

Para dar conta da perspectiva formalista e lógica da ciência jurídica,


definitivamente o intérprete não pode operar senão o que lhe é dado, que são as
proposições normativas e sistematicamente organizadas nos códigos.

Esta preocupação cientificista, herdada pelos juristas do século XVIII, se explica


pelo conceito sistemático de Direito, que se resume em um conjunto de elementos
estruturados pelas regras da dedução.

128
Nesse sentido, interpretar significa, sob tal ótica, estabelecer o sentido imanente
da norma na totalidade do sistema tal qual foi previsto pelo legislador, distinguindo-se a
vontade real e vontade presumida.

Busca-se a vontade real do legislador no caso em que a lei disciplina


efetivamente uma dada relação, mas tal disciplinamento não fica
claro a partir do texto da lei (então se busca, mediante investigações
de caráter essencialmente histórico, o que o autor da lei pretendia
efetivamente dizer); busca-se, em contrapartida, a vontade presumida
do legislador (o que se resolve, em última análise, numa ficção jurídica),
quando o legislador se omitiu em regular uma dada relação (lacuna
da lei). Então, recorrendo à analogia e aos princípios gerais do direito,
procura-se estabelecer qual teria sido a vontade do legislador, se ele
tivesse previsto o caso em questão (BOBBIO, 1993, p. 87).

Finalmente, a última característica assinalada por Bobbio (1993), o culto à lei e


o princípio da autoridade ocorrem da identificação do Direito com a lei que submete o
intérprete, como “profissão de fé” (Demolombe), ao culto das disposições legais, a um
excessivo apego à lei e à vontade do legislador nela expressa, conferindo ao texto legal
um poder inerente – a fetichização.

É pressuposto do pensamento exegético a impossibilidade de colocar em


discussão a justeza “da palavra” do legislador expressa no texto legal. A Escola da Exegese
foi sustentada por seus expoentes, comentadores do Código, cujos entendimentos
serviram de dogma aos juristas.

As teorias jurídicas estruturadas na Europa durante o século XIX, apesar de


possuírem como vínculo comum o objetivo de viabilizar e consolidar o novo paradigma
político e social voltado para os interesses da burguesia triunfante, não constituíam uma
unidade de soluções metodológicas.

A Alemanha, em fins do século XVIII, que ocupava lugar de destaque no


cenário do pensamento jurídico europeu, além de não ter sido palco da experiência
revolucionária burguesa, não conhecia o modelo político do Estado Nacional. Na Europa,
a crença no racionalismo e no liberalismo revolucionário difundia a convicção de que
os Estados Modernos deveriam ordenar sua ordem jurídica através de uma codificação
monopolizadora.

Nas raízes dos movimentos políticos contratualistas, o Estado (e o Direito


Codificado) era idealizado como fruto de um contrato social racional a-histórico,
portanto, como forma universal e a-cultural, indiferente às particularidades históricas
e culturais.

Era isto que uma cultura de raízes nacionais, ancorada nas especifi-
cidades culturais dos povos, não podia aceitar. Uma organização po-
lítica e jurídica indiferenciada, exportável, universalizante, aparecia,
quando confrontada com os particularismos das tradições nacionais,
como um artificialismo a rejeitar (HESPANHA, 1997, p. 181).

129
É contra essa visão artificial e intemporal de Estado e Direito que pensadores,
como Gustav Hugo (1764-1844), Friedrich Carl V. Savigny (1779-1861) e G.F. Puchta (1798-
1846), buscam fontes não estaduais e não legislativas do direito, compreendendo a
sociedade como um organismo sujeito à evolução histórica, onde a tradição do passado
condiciona naturalmente o presente. Esta natural e peculiar evolução, sob tal ótica,
possuiria como elemento permanente e atuante o “espírito do povo” (Volksgeist), que
daria sentido e unidade a todas formas de manifestação cultural das diferentes nações.

FIGURA 14 – OS DOIS GRANDES NOMES DO POSITIVISMO JURÍDICO

FONTE: <http://www.duhaime.org/LawMuseum/LawArticle-1164/1814-The-Thibaut-Savigny-Controver-
sy-German-Codification-v-Common-Law.aspx>. Acesso em: 11 abr. 2017.

O processo de construção do positivismo na Alemanha, segundo Bobbio (1993),


foi precedido pela desagregação dos “mitos” jus naturalistas ligados à concepção filosófica
racionalista – a filosofia iluminista de matriz cartesiana, tarefa que coube ao historicismo
na primeira metade do século XIX –, que tem sua origem na Escola Histórica do Direito.

NOTA
O historicismo, como tendência de pensamento que se opõe ao
raciocínio puro e abstrato, dividiu-se em diversos ramos, designando
várias reações contra as doutrinas racionalistas. Pode-se distinguir três
correntes: o historicismo filosófico de Schelling e Hegel, o historicismo
político dos teóricos da restauração e o historicismo jurídico. Apesar
de considerar as importantes relações e interdependência entre as
diferentes correntes, há que se destacar o historicismo jurídico. A
respeito do historicismo alemão nas suas diferentes vertentes, leia
DEL VECCHIO, G. Lições de Filosofia. Coimbra: Arménio Amado
– Editor, 1979 e LARENZ, K. Metodologia da Ciência do Direito.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s.d.

130
Como decorrência das condições específicas do processo histórico e da
concepção predominante no pensamento jurídico alemão em rejeitar o Estado como
única fonte do direito e sua forma legislativa, é na filosofia da cultura organicista e
evolucionista somada ao ambiente cultural do romantismo alemão, que a Escola
Histórica vai buscar como pressuposto da ordem jurídica a ideia de que a sociedade,
assim como um ser vivo, é um todo orgânico submetido a um processo de evolução
histórica que é individualizado em cada povo.

Esse processo evolutivo histórico, neste entendimento, é movido por uma força,
ou um “espírito contínuo e atuante”: o espírito do povo (Vosksgeist), que confere unidade
e sentido a todas manifestações culturais de uma nação, sendo o direito uma dessas
formas de manifestação, e, portanto, é o resultado da ação deste agente nuclear.

A partir desse pressuposto, assiste-se à construção do pensamento jurídico


alemão positivista na primeira metade do século XIX, que, sob o ponto de vista
hermenêutico, servirá como base para a concepção formalista e organicista de
interpretação e aplicação do Direito.

O primeiro passo de desmistificação do jus naturalismo deu-se com Gustav


Hugo. Como sugere o título da sua obra Tratado do Direito Natural como Filosofia do
Direito Positivo, escrita em 1798, entende-se que o direito natural não pode ser mais
concebido como sistema normativo independente do direito positivo, mas como filosofia
do direito positivo. Com tal afirmação, reduzindo o direito natural e filosofia ao direito
positivo, efetua a passagem do jus naturalismo para o jus positivismo.

Na obra referida, quando se discutem as fontes do direito, ao colocar a questão


central do que é direito, o autor responde não acreditando na “sabedoria” jus racionalista
do legislador e sua “fábrica de leis”: Na crítica que Hugo lançou ao jus racionalismo
a-histórico e seus legisladores, buscou construir uma ciência jurídica autônoma,
empírica e filosófica, propondo uma sistematização interna da qual seria possível a
construção conceitual dos conteúdos do direito positivo, antecipando as contribuições
levadas pela Escola Histórica.

A reação ao movimento de codificação, considerado como fator de destruição e


não de construção do direito, conduzirá à valorização dos elementos consuetudinário e
doutrinal do direito e não ao direito legislado, como pretendia o pensamento legalista-
exegético, o que é evidenciado no debate travado entre Savigny e Antônio Frederico
Justo Thibaut (1772-1840). Thibaut, no ensaio Sobre a Necessidade de um Direito Civil
Geral para a Alemanha (Heidelberg, 1814), defende a necessidade da codificação do
direito com uma perfeição formal – normas jurídicas enunciadas de maneira clara e
precisa – e substancial – normas capazes de regular todas as relações sociais – como
forma de unificação da Alemanha e avanço no pensamento jurídico. Bobbio (1993, p. 59)
interpreta o estudo de Thibaut como:

131
[...] nos institutos fundamentais do direito se encontra uma disciplina
universal [...], e assim subverte a clássica argumentação da escola
histórica. Enquanto para esta a codificação [...] é algo artificial e
arbitrário, para Thibaut, ao contrário, as diversidades locais do direito
não têm nada de natural, sendo unicamente devidas ao arbítrio dos
vários príncipes de tais universidades.

A reação de Savigny, já conhecido como grande jurista, é manifestada no mesmo


ano com a publicação “Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência”,
quando declara não ser contrário à codificação, mas que as condições históricas e
culturais da Alemanha, que eram de decadência, inviabilizavam a construção de uma
obra de tal importância. Para Savigny, a maneira pela qual iria superar os entraves do
pensamento jurídico e político alemão não era a codificação, mas antes “promover
vigorosamente o renascimento e o desenvolvimento do direito científico, isto é, a
elaboração do direito por obra da ciência jurídica” (BOBBIO, 1993, p. 62).

Tal discussão evidencia o antilegalismo como característica central do


pensamento jurídico alemão, que prioriza os elementos consuetudinário e doutrinal
como referenciais na construção da ciência jurídica. O costume é valorizado exatamente
por ser manifestação natural e espontânea do direito e a doutrina pelo entendimento
da escola histórica que entendia serem os intelectuais capazes de revelar de maneira
sistemática e organizada “o espírito do povo”.

O idealismo científico formal serviu como fundamento da crença de que o direito,


tal qual as ciências naturais, é regido por princípios gerais apreendidos empiricamente.
Por via de consequência, torna-se insondável a justeza das decisões, na medida em
que se trata de uma operação mental lógica (apenas verdadeira ou falsa) independente
da valoração do conteúdo e da finalidade das decisões, já que a interpretação se limita
à correta subsunção através de um ato lógico. Com esta noção elimina-se do sistema
jurídico a possibilidade de lacunas, sendo que o trabalho do juiz em aparente lacuna
seria de “revelar” a solução já existente no próprio sistema.

Uma concepção objetivista de interpretação jurídica: se o direito se constitui num


sistema coerente de conceitos manifestados no direito positivado, o sentido das normas
seria conferido pelo próprio sistema. Portanto, o sentido da norma, diferentemente do
entendido pelo legalismo exegético, não seria obtido estabelecendo-se a “vontade do
legislador”, mas de sua inserção no contexto sistemático normativo, ou seja, um sentido
objetivamente dado.

132
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• O Direito Moderno se constrói, também, como um saber técnico-científico acerca


da norma.

• Positivismo Jurídico é a expressão que designa a concepção moderna de direito


segundo a qual o único direito válido é o direito estatal.

• O Positivismo Jurídico encontra, na codificação moderna, a maior expressão de


racionalidade e de previsibilidade.

• Para o Direito moderno, há uma aproximação entre Direito e Lei.

133
AUTOATIVIDADE
1 "Positivismo jurídico" é uma expressão que designa a moderna concepção de direito
segundo a qual o único direito legítimo é o direito positivo. Entende-se por Direito
Positivo o direito posto pelo poder político, que, na modernidade, é aquele produzido
pelo Estado. Acerca do positivismo jurídico, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Para o positivismo jurídico, direito natural e direito positivo são sinônimos.


b) ( ) Para o positivismo jurídico, o direito natural possui uma função secundária e
subsidiária, servindo como fonte valorativa da norma jurídica.
c) ( ) No positivismo jurídico, predomina o monismo jurídico que é o reconhecimento
de uma única fonte de produção do direito legítimo.
d) ( ) Direito Positivo é uma expressão não utilizada pelo positivismo jurídico.

2 O positivismo jurídico é uma concepção de direito que pressupõe a aceitação da


fictícia figura do legislador. Trata-se de uma idealização que limita o uso arbitrário do
poder. Sobre essa idealização, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Centraliza a criação da lei nas mãos do poder judiciário.


b) ( ) Pressupõe a concepção política de contratualismo ou vontade geral.
c) ( ) Funda-se no princípio da legalidade autorizada pelo judiciário.
d) ( ) O legislado é uma mera figura de retórica judicial e não existe politicamente.

3 A cultura jurídica nacional possui uma forte tradição monista. O monismo jurídico é
uma das faces visíveis do positivismo jurídico, elaborado a partir dos séculos XVIII e
XIX, sobretudo com a formação e consolidação dos Estados Nacionais. Acerca do
monismo jurídico, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Apenas reconhece como direito a lei e não os princípios jurídicos.


b) ( ) Reconhece como fonte de direito somente o Estado.
c) ( ) Entende que os códigos são a única fonte de direito.
d) ( ) Apenas os juízes monocráticos podem promover a tutela jurisdicional.

4 A fim de fixar melhor o estudo realizado, considere a figura a seguir:

134
FONTE: <http://www.acarlosoliveira.com/2017/04/12/dura-lex-sedlex-a-lei-e-dura-mas-e-a-lei/>.
Acesso em: 11 abr. 2021.

A frase “a lei é dura, mas é a lei” constitui uma das máximas do positivismo jurídico. Pergunta-
se: qual a relação entre os fundamentos do positivismo jurídico e a referida frase?

135
136
UNIDADE 2 TÓPICO 4 -
OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO
PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

1 INTRODUÇÃO
Por meio dos estudos já realizados compreendemos conceitos fundamentais de
história e filosofia do Direito; bem como a trajetória histórica do pensamento filosófico
pré-moderno. Este é o momento de nos aproximarmos da atualidade e refletirmos acerca
dos elementos, características e fundamentos da Filosofia Moderna do Direito com vistas
a compreendermos a legitimidade do Direito contemporâneo, discutindo os desafios
que se colocam ao jurista e visualizarmos formas de superação de problemáticas que
dificultam a efetividade da justiça.

A concepção moderna de Direito é o resultado de uma convergência de fatores


e elementos sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais cuja maior expressão
é o liberalismo, que em sua vertente filosófica é, em síntese, uma concepção doutrinária
que, com base em ideias iluministas elaboradas entre os séculos XVII e XVIII na Europa,
defende a não intervenção do Estado no controle da economia e da vida social.

Para Bobbio (2000, p. 17), “o liberalismo é uma concepção política segundo


a qual o Estado possui poderes e funções limitados, se contrapondo, portanto, ao
Estado Absolutista”. Entretanto, destaca Bobbio (2000), que o modelo liberal passou
historicamente por inúmeras transformações, havendo uma diferenciação entre as
distintas etapas do liberalismo, que foram desde a absoluta não intervenção estatal – na
sua versão clássica – até uma intervenção necessária a fim de impedir a dominação dos
mais fortes sobre os mais fracos – liberalismo social. Salienta ainda que o pressuposto
filosófico do liberalismo é a doutrina dos direitos do homem, segundo a qual todos os
homens, independentemente de sua condição ou origem, são portadores de direitos
essenciais, como a vida, liberdade, autodeterminação, segurança, felicidade, entre
outros. São esses os direitos que devem ser assegurados pelo Estado, sendo este ente
político o único poder legítimo de definir o que “é Direito” e “de direito”.

A lógica liberal, em suas múltiplas faces e versões, que vão desde o liberalismo
filosófico até o político e econômico, tornou-se o principal ideário do mundo moderno.
Uma análise histórica e política mais atenta permite compreender o liberalismo, defendido
pelas revoluções burguesas que destituíram a nobreza do poder e romperam com o
poder político papal desde os séculos XVII e XVIII, como defesa de valores individuais
burgueses bastante convenientes para os interesses da burguesia que emergia e se

137
consolidava naquele momento histórico. Sem dúvida, eram necessários meios de
legitimação das novas formas de aquisição e concentração de riquezas que iam sendo
elaboradas e uma justificação racional deste novo modelo de vida e de mundo que
estava nascendo.

Dentre os pensadores iluministas que elaboraram as bases do liberalismo


moderno podem ser destacados: John Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778), Jean-
Jacques  Rousseau  (1712-1778), David Hume (1711-1776), Adam Smith (1723-1790),
Immanuel Kant (1724-1804), dentre outros.

O Iluminismo, no qual o Direito Moderno é edificado, pode ser resumidamente


compreendido a partir das seguintes características:

• Valorização da razão acima da fé, devendo ser o conhecimento acerca da natureza,


da sociedade e da política, produto da investigação e experiência objetiva.
• Forte oposição ao absolutismo político e aos privilégios da nobreza e da Igreja.
• Defesa da liberdade na política, economia e escolha religiosa incluindo a igualdade
de todos perante a lei, uma vez que “Os homens nascem e são livres e iguais em
direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. (Art.
1º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789).
• Defesa dos interesses individuais, naturais e inerentes à condição humana.

Particularmente, para o Direito interessa também a forma e dinâmica de


estruturação de poder que foi elaborada e consolidada.

A organização centralizadora de poder que se institui sob a forma


secularizada monárquica de Estado absolutista transforma-se no
Estado nacional, liberal e representativo do século XVIII, gerenciador
das leis do livre mercado do liberalismo econômico e tutor das
relações de competição privada.
[...]
Neste novo cenário de rupturas e de gradual secularização está que
a nascente ciência jurídica moderna não só se revela como produção
de uma específica formação social e econômica, mas, principalmente,
consolida-se no processo de junção histórica entre a legalidade estatal
e a centralização burocrática. Trata-se da tendência, que acabaria
sendo predominante, do Direito identificado com a legislação posta
pela autoridade revestida de poder máximo e, ainda mais, o Direito
como criação do Estado (WOLKMER, 2006, p. 107-108).

É sob esta perspectiva que é elaborado o Direito Moderno e a lógica de saber


acerca do direito, como já anteriormente estudado, marcadamente centralizada no
positivismo jurídico.

138
NOTA
O positivismo jurídico acabou por eliminar todas as especulações
idealizadas e metafísicas acerca do direito, reduzindo Direito às
categorias de legalidade vigentes. Nesta ótica, a formalização do
positivismo jurídico encontra legitimidade na explicação da objetividade
coercitiva, na previsibilidade e segurança jurídica.

Conclui-se que:

• A concepção jurídica normativa moderna é elaborada desde a existência e forma de


organização do Estado.
• O positivismo jurídico foi a melhor e mais sofisticada elaboração concreta da lógica
de Direito Moderno.
• Tem, como grande característica, o formalismo legal.
• O processo de codificação do século XIX foi o mais eficiente instrumento de
legitimação e operacionalidade do Direito.

2 HANS KELSEN E A PURIFICAÇÃO DO DIREITO


Na perspectiva moderna, compreender o Direito se reduz à reprodução do texto
legal, tornando o trabalho do jurista uma mera exegese limitada à subsunção do texto
legal ao fato da vida social desde um raciocínio lógico dedutivo.

O paradigma da subsunção é o modelo de racionalidade jurídica que vai dominar


a prática do direito na perspectiva positivista. Trata-se de uma concepção que entende
que a aplicação do direito ao caso concreto é resultado de um pensamento silogístico
no qual o juiz fixa:

• o fato como premissa maior;


• o sistema normativo como premissa menor;
• o direito do caso concreto como conclusão necessária e inquestionável.

Esse modelo pressupõe:

• o direito sendo um sistema autossuficiente e coerente;


• o raciocínio lógico é a metodologia adequada para fixar o justo do caso concreto;
• há possibilidade de distinção entre fato (premissa maior) e direito (premissa menor);
• a decisão, justo do caso concreto, é resultado do necessário e inquestionável
“enquadramento” (subsunção), extraindo daí os efeitos legais e jurídicos para o caso
concreto.

139
Observe que a base e justificativa dessa ideia é que o direito posto (direito
positivo) tem a capacidade de resolver todos os casos concretos e a atividade jurídica
é um ato neutro (independente de valores morais e éticos) e imparcial. Resume-se na
famosa frase: “Dê-me o fato que te darei o direito”!

Ainda que se possa discutir se o Direito é uma ciência própria ou um saber


da prática, a verdade é que desde o início do século XX poucos foram os autores que
ousaram desafiar esse paradigma hegemônico, especialmente após o advento da obra
“Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen, pensador que se esmerou em demonstrar como
a pureza metodológica do Direito é a principal característica de sua cientificidade.

Como veremos adiante, essa “pureza” é exatamente o objeto maior de crítica do


positivismo jurídico.

Afirma, Jesus Antonio de La Torre Rangel, que “[...] um dos maiores problemas
da ciência do Direito é a sua arbitrariedade, por ser constituída de leis arbitrárias que
se modificam com o tempo, pois uma mera palavra do legislador converte bibliotecas
inteiras em lixo” (2006, p. 32).

O direito, nessa perspectiva, é transformado em uma ciência dogmática estática,


reservando ao jurista o papel de reprodutor de códigos e leis, eliminando qualquer
discussão acerca dos valores, interesses e necessidades sociais que estão subjacentes
à norma jurídica e como isso, além de empobrecer o papel do direito, o transforma em
instrumento de reprodução de uma ordem política posta.

Antes de irmos adiante, vamos, brevemente, compreender o pensamento e a


importância de Hans Kelsen.

FIGURA 15 – HANS KELSEN

Hans Kelsen – jurista e filósofo nascido em 11 de


outubro de 1881, na cidade de Praga (Boêmia austríaca),
pertencente ao então Império Austro-húngaro. Falecido
em 19 de abril de 1973 em Berkeley, Califórnia-EUA. Um
dos mais importantes e discutidos pensadores do direito
contemporâneo.

FONTE: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/42/paginas-da-historia-hans-
-kelsen-158859-1.asp>. Acesso em: 11 abr. 2016.

140
Em meio à profunda crise teórica em fins do século XIX e início do XX, Kelsen é
um marco divisório para o positivismo jurídico, inaugurando o chamado normativismo
positivista e superando a esgotada concepção exegética.

Com base na sólida e rigorosa metodologia científica e constitucionalista


– tendo redigido a Constituição da Áustria –, inaugura a técnica de controle de
constitucionalidade através de tribunal específico.

IMPORTANTE
Controle da constitucionalidade é um dos conceitos centrais para o direito contemporâneo.
Trata-se de técnica de verificação de adequação vertical que obrigatoriamente deve existir
entre as normas infraconstitucionais e a Constituição. É uma análise crítica comparativa
entre o ato legislativo/normativo e a Constituição, tendo como pressuposto que no Estado
de Direito nenhum desses atos pode ferir ou contrariar a Lei Fundamental.
A base política e jurídica do controle de constitucionalidade é o pressuposto de
supremacia da Constituição escrita, por tratar-se de norma fundamental que
se sobrepõe a todas as demais e ter seu procedimento de criação – o poder
constituinte originário é um ato político e não jurídico – distinto dos demais.
Em síntese, ao que está em desacordo com a Constituição, ponto máximo
do vértice do sistema normativo, deve ser declarada a não possuir validade
política e jurídica.
Os pressupostos para o controle da constitucionalidade são, basicamente: a
existência de uma Constituição rígida, escrita e que não pode ser modificada
por procedimentos infraconstitucionais; e a existência de um órgão/tribunal
que garanta a supremacia constitucional.

Kelsen contribui decisivamente para a autonomia científica do Direito, sobretudo


com a publicação da obra Teoria Pura do Direito, em 1934 – com segunda edição em
1960 –, sendo esta a mais destacada produção do autor ao lado de “Teoria Geral do
Direito e do Estado” e “Teoria Geral das Normas” (obra póstuma).

A Teoria Pura do Direito é a obra pioneira que distingue duas esferas distintas: o
fenômeno jurídico – manifestação social e valorativa do Direito – e a ciência do Direito –
entendimento técnico procedimental científico desta manifestação. E é nesta distinção
que vamos encontrar a base da teoria kelseniana, qual seja: direito e moral.

Segundo tal perspectiva, o órgão julgador (Estado) não está legitimado a julgar
de acordo com convicções políticas/morais, mas sim de acordo com o sentido do fato
dado pelas normas estatais. É nesta dimensão que deve ser compreendida a famosa
dicotomia “ser”, mundo dos fatos/da vida social; e “dever ser”, direito positivado/o fato
como deve ser; ou seja, a preocupação de Kelsen é diferenciar o direito como é (vigente)
da valoração moral do conteúdo ou sentido normativo.

141
ATENÇÃO
O “dever ser” é sempre produto de uma vontade política legítima e o “ser” é
produto da vontade politicamente sem legitimidade.

Alguém pode exigir que outro faça ou deixe de fazer algo por entender
moralmente justo (prescrever uma ação ou omissão), mas não pode obrigar ao sujeito
fazer ou deixar de fazer o que quer. Por quê? Exatamente porque não possui legitimidade
política para tal exigência. E a ciência do Direito permite a abstração do direito do mundo
dos fatos sociais.

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito


positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do
Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais
ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio
objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito?
Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito,
ou como deve ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito [...].
De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem se
confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria
política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de
estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma
estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende
delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-
lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas
porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece
a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos
pela natureza do seu objeto (KELSEN, 2006, p. 1).

Lendo atentamente as primeiras palavras da obra, não é difícil concluir que o


objetivo de Kelsen é depurar o Direito, entendido exclusivamente como Direito Positivo,
de outras formas de conhecimento, compreendendo-o como ciência em si mesma.
Para Bittar e Almeida (2001, p. 324):

Com os pilares teóricos fixados no método positivista é que Kelsen


(Teoria Pura do Direito) procurou delinear uma Ciência do Direito
desprovida de qualquer outra influência que lhe fosse externa.
Assim, alhear o fenômeno jurídico de contaminações exteriores
à sua ontologia seria conferir-lhe cientificidade. Nesse sentido, o
isolamento do método jurídico seria a chave para a autonomia do
Direito como ciência. Dessa forma, por meio das ambições de sua
teoria, ter-se-ia uma descrição do Direito que correspondesse
apenas a uma descrição pura do Direito.

142
Fica evidente em Kelsen que a atividade do jurista é, a partir de um sistema
normativo previamente definido, chegar à norma do caso concreto, não cabendo
nesta análise os valores que antecedem a elaboração da norma. Exatamente por esta
concepção é que Direito e Estado seriam “duas faces” de uma mesma “moeda”.

Outro conceito-chave da teoria kelseniana é o conceito de validade da norma.

Validade deve ser compreendida como a qualidade e condição da norma


quando ela é emanada de um órgão político competente e se elaborada de acordo com
o procedimento, modo, hierarquia, estrutura e lógica prevista pelo ordenamento jurídico.

ATENÇÃO
Validade não significa que a norma é certa ou errada, justa ou injusta; mas
elaborada de acordo com os pressupostos estabelecidos de maneira formal
pelo sistema normativo.

A validade normativa deve ser compreendida a partir do fundamento de validade


de todo sistema normativo: a norma hipotética fundamental (Grundnorm). A recíproca
e hierárquica relação de validade entre as normas que compõem o sistema é definida a
partir do fundamento último de validade de todo ordenamento jurídico, formando uma
espécie de “pirâmide” cujo vértice é a norma fundamental.

Segundo uma teoria jurídica positivista, a validade do Direito


positivo se apoiar numa norma fundamental que não é uma norma
posta mas uma norma pressuposta e que, portanto, não é uma
norma pertencente ao Direito positivo cuja validade objetiva é
por ela fundamentada, e também no fato de, segundo uma teoria
jusnaturalista, a validade do Direito positivo se apoiar numa norma
que não é uma norma pertencente ao Direito positivo relativamente
ao qual ela funciona como critério ou medida de valor, podemos ver
um certo limite imposto ao princípio do positivismo jurídico (KELSEN,
2006, p. 238).

Há um pressuposto de validade de todo sistema, uma norma não jurídica, mas


política, que estabelece uma espécie de estrutura hierárquica de normas onde, em tal
escalonamento, no ápice, ponto mais alto da hierarquia, há uma última norma que não
é a norma constitucional de um Estado, mas um pressuposto inexistente fisicamente,
mas existente logicamente.

143
Claro que esse conceito é um dos grandes problemas da teoria de Kelsen! Qual
o pressuposto de validade, norma hipotética fundamental, justo? Qualquer sistema que
a define é justo? Para Kelsen essa não é uma questão jurídica e sim política.

Todo sistema hierárquico requer um “ponto final” de referência para não


regressar ad infinitum, além de que, se não há um pressuposto de validade, pode ser
aceito qualquer um. O que se pode afirmar é que o limite de validade aceito pelo pacto
social são os valores que constituíram a ordem constitucional, e é a partir daí que deve
raciocinar o jurista, funcionando como um princípio/fundamento de legitimidade de
todo sistema.

Desde esse conceito de validade não é difícil compreender que Kelsen nos leva
a compreender que Direito é um sistema de normas hierarquicamente definidas desde
a ordem política e jurídica estabelecida segundo um pressuposto de validade, norma
hipotética fundamental, e que permite o controle de constitucionalidade das normas.

Para Fábio Ulhoa Coelho (2001, p. 43-44), a validade da norma, portanto, está
condicionada a três pressupostos:

• Competência da autoridade que a editou, derivada da norma


hipotética fundamental.
• Mínimo de eficácia, possibilidade de produzir os efeitos jurídicos
a que se destina, sendo irrelevante a sua inobservância episódica
ou temporária – porque as normas jurídicas não perdem a
validade por ‘desuso’.
• Eficácia global da ordem de que é componente.

Como se conclui, o método kelseniano tem que ser compreendido como a busca
de uma tentativa de autonomia da ciência do Direito, não como o estudo ou a teoria de
uma ordem jurídica particular, mas compreender as estruturas sobre as quais se constrói
o Direito Positivo e a universalização destas estruturas. Exclui-se qualquer preocupação
sociológica ou juízo acerca do justo, uma vez que o que importa para a Teoria Pura é
compreender os pressupostos de validade, vigência e eficácia da norma jurídica.

A ciência, para Kelsen, deve, por exemplo, diferenciar-se da política.


O político e o jurídico devem ser separados para que a ciência jurídica
não se contamine com elementos de natureza política, correndo o
risco de perder sua independência. A ciência não é ciência de fatos,
de dados concretos, de acontecimentos, de atos sociais. A ciência,
para Kelsen, é a ciência do dever-ser, ou seja, a ciência que procura
descrever o funcionamento e o maquinismo das normas jurídicas
(BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 330).

Isso significa que o objeto do Direito nessa concepção pode e deve ser estudado
como algo diverso/separado dos fenômenos sociais e estudar a ciência jurídica é
independente da realidade social. Esta é uma das grandes problemáticas do positivismo

144
jurídico, devendo o jurista limitar-se ao Direito posto, estabelecido pelas relações de
poder, não observando as questões valorativas, éticas ou sociais que o conduziriam à
realidade social.
O Direito normativo/dogmático, e somente este, é seu objeto de
estudo. Diante disso, o jurista não precisa ficar indiferente no que
diz respeito a valores éticos, morais e sociais; ele pode criticar o
Direito positivo e esforçar-se para modificá-lo, alcançando assim
sua reforma e a estruturação de algumas normas quando julgar
necessário (LIXA; SPAREMBERGER, 2016, p. 36).

O postulado central do positivismo é a crença epistemológica de que o


sentido do justo está expresso na letra da lei. Como parte integrante da mesma
crença, os ideais de plenitude, coerência, universalidade e a temporalidade do
sistema normativo permitem, enquanto instância racional, a elaboração de ficções
hermenêuticas, como a “vontade do legislador” e “vontade da lei", de múltiplas
funções práticas e ideológicas. Inicialmente estes postulados justificam a atividade
compreensiva do direito como ato formal, excluindo qualquer possibilidade de
criação por parte do intérprete e inferência de elementos substanciais, em nome da
igualmente ficção “segurança jurídica” (LIXA, 2013).

Em tal perspectiva, as aparentes ambiguidades, insuficiências, lacunas, ou até


mesmo contradições do sistema, poderiam ser solucionadas com critérios hermenêuticos
adequados e análise mais detalhada do significado do texto legal. Esta “flexibilidade
dogmática” seria necessária para resolver as dificuldades práticas, solucionadas com
a reportação do intérprete à mente do legislador, compreendendo o caso concreto tal
qual teria sido previsto ou poderia resolver o elaborador da lei (LIXA, 2013).

Enfim, o postulado da vontade do legislador permitiria ao intérprete superar


os silêncios, imprecisões e contradições do texto legal, mantendo as exigências
procedimentais do formalismo em sua aplicação.

Distintas teorias elaboradas sob o rótulo de “hermenêutica jurídica”, assim como


admitem a “vontade do Estado” como instância política legítima de produção do direito,
característica maior do positivismo jurídico, identificam esta como instância racional do
direito, o “espírito da lei” ou “espírito do legislador”. Correntes que chegam a soluções
técnicas e conclusões normativas próximas, tratando a norma jurídica como algo
pensado e concebido fora do sujeito, cuja operacionalidade depende de um processo
racional formalista capaz de reproduzir a ordem jurídica-política instituída.

Assim, a operacionalidade técnica do sistema normativo acaba por identificar


metodologia da ciência jurídica com procedimento interpretativo, confundindo-se a esta
metodologia, e por vezes absorvendo, com o ato hermenêutico. Trata-se, sobretudo, de

145
uma racionalidade cognitiva-instrumental específica do direito moderno que pretende
solucionar o problema básico da atividade jurídica como a correta e segura determinação
do sentido prático da ordem normativa.

O desafio kelseniano de depurar a ciência jurídica acaba por deixar em aberto os


fundamentos da interpretação e aplicação normativa ao demonstrar que a interpretação
é um ato de decisão, de vontade ou mesmo de poder político. Esta afirmação acaba
por criar um vazio epistemológico para as tradicionais teses de segurança jurídica,
neutralidade, objetividade e previsibilidade penosamente mantidas desde o século XIX
e que serão revistas pelas correntes críticas do Direito (LIXA, 2013).

3 CRISE E CRÍTICA: OS LIMITES DA RACIONALIDADE


JURÍDICA MODERNA
A razão libertadora, um dos mais audaciosos projetos da Modernidade, foi
idealizada desde seu início para carregar em si um conjunto de representações e
perspectivas que pareciam representar a realização de um grande sonho da humanidade.

O projeto da modernidade foi construído graças a um enorme esforço


intelectual de pensadores iluministas que pretendiam desenvolver
uma ciência objetiva, uma moralidade e uma concepção de lei
que fossem universalmente válidas pela intrínseca lógica de suas
proposições gerada pelo acúmulo de conhecimento produzido por
sujeitos livres e criativos aliados pelo objetivo comum de buscar
emancipação e enriquecimento (HABERMAS, 1992, p. 109-110).

Esta racionalidade aplicada à organização social prometia como resultado


a certeza de uma sociedade estável, democrática e justa. Assim, a justificativa de
necessidade de submissão social e política à razão científica era a promessa de
segurança definitiva contra qualquer imprevisibilidade do mundo natural, e com tal
discurso justificador a ciência submeteu a natureza em toda sua dimensão (a humana
e não humana).

Entretanto, como pondera Harvey (1993, p. 23), “há uma suspeita de que o
projeto iluminista estava condenado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca
de emancipação num sistema universal de opressão em nome da liberdade humana, e
esta espécie de tragédia anunciada tornou-se realidade no início do século XX”.

O otimismo, em relação aos frutos da ciência, foi dolorosamente rompido pelos


eventos que marcaram o século XX. Sem dúvida, a maior catástrofe humana foi a Segunda
Guerra Mundial, cuja lembrança, com os episódios de Auschwitz e Hiroshima, tornou-

146
se insuportável. Nos anos 50 a Europa, e com ela boa parte da humanidade, deixou de
acreditar no futuro e, como consequência, a ciência perde grande parte da autoridade
que até então possuía. Essa desilusão não pode ser dissociada das guerras mundiais.

A entrada para o século XX rapidamente tornou-se um desencanto, ficando


evidente que a Modernidade, com suas grandes promessas, havia se transformado em
um projeto fracassado.

Segundo dados oficiais, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), embora


nem todos os continentes tenham sido palco dos conflitos, o número de mortos atingiu
a cifra de 15 a 65 milhões de pessoas. Nem todos foram mortos diretamente em campos
de batalha, mas com seus “efeitos colaterais”, como a “Gripe Espanhola” que se alastrou
pelo mundo.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o número de mortos estimados


é de 40 a 72 milhões de pessoas, sendo 62% civis (alguns em campos de concentração
por sua etnia, condição física, sexualidade etc.; outras, vítimas de armas de destruição
em massa, como a bomba atômica). São por demais conhecidas as imagens desoladoras
dessa trágica fase da história.

Já no fim da Segunda Guerra Mundial, durante o conhecido Julgamento de


Nuremberg no dia 25 de novembro de 1945, oficiais nazistas foram levados a julgamento
por diferentes ações, como extermínio em massa, tortura, privação de liberdade de civis,
experimentos com seres humanos etc.

NOTA
Nuremberg é um momento histórico em que o positivismo jurídico é
colocado em questão. Os acusados alegavam, em sua defesa, que estavam
agindo sob a égide do Direito e proteção de um Estado Constitucional.

Vamos ler a transcrição de parte da sentença que reproduz a defesa dos


acusados:

[...] A defesa propõe a tese de que estes indivíduos cometeram


atos que, independentemente do valor ou desvalor moral, foram
perfeitamente legítimos de acordo com a ordem jurídica do tempo e
local em que foram realizados. Os acusados, segundo essa tese, eram
funcionários públicos estatais que agiram em plena conformidade
com as normas jurídicas vigentes, determinadas por órgãos legítimos
do Estado nacional socialista. Não só estavam autorizados a fazer
o que fizeram, como também, em alguns casos, eram legalmente
obrigados a fazê-lo. A defesa nos relembra um princípio elementar
de justiça, que a civilização que nós representamos aceitou há

147
muito tempo e que o próprio regime nazista ignorou: esse princípio,
usualmente enunciado com a expressão latina ‘nullun crimen, nulla
poena sine lege pravia’, proíbe impor uma pena por um ato que não
era proibido pelo direito vigente no momento de seu cometimento
(SANTIAGO NINO, 2010, p. 20-21, grifos nosso).

A atrocidade e o extermínio de milhões de seres humanos foram feitos sob


a proteção da lei. Seriam então atos legais e justos? Esta era a discussão central! O
resultado você já sabe: todos foram condenados! E desde aí o positivismo jurídico não
mais encontra defensor.

Para compreender todo o julgamento também devemos ler parte da sentença


condenatória, que é uma das críticas mais contundentes ao positivismo jurídico:

O princípio moral de que as normas jurídicas vigentes devem ser


obedecidas e aplicadas é um princípio plausível, visto que está
vinculado a valores como segurança, ordem, coordenação de
atividades sociais etc., mas é absurdo pretender que ele seja o único
princípio moral válido. Há outros princípios igualmente válidos, como
os que consagram o direito à vida, à integridade física, à liberdade
etc. Em certas circunstâncias excepcionais, a violação desses
últimos princípios, em que se incorreria se fossem respeitadas
as regras jurídicas, seria tão drástica e grosseira que justificaria a
desobediência ao princípio moral que prescreve ater-se ao direito
vigente. Essas circunstâncias ocorreram durante o regime nazista, e
não se pode duvidar que os funcionários desse regime não podiam
justificar em termos morais as atrocidades que cometeram com base
no fato de estarem elas autorizadas ou prescritas pelo direito vigente
(SANTIAGO NINO, 2010, p. 29).

DICAS
Acerca da discussão a respeito dos atos de extermínio cometidos pelo
regime nazista serem ou não legítimos, há dois filmes excelentes que
recomendamos:
O Leitor, filme teuto-americano de 2008, dirigido por Stephen Daldry e
baseado no romance Der Vorleser, de 1995, do escritor alemão Bernhard
Schlink.
Hannah Arendt, filme de drama teuto-francês de 2012, uma obra biográfica
sobre a filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt, envolvida
em um dos grandes julgamentos de nazistas da história e sobre o qual
ela posicionou-se de maneira inesperada, mas própria de um filósofo e
cientista político.

148
O positivismo jurídico, diante do desencanto com o projeto civilizatório da
Modernidade, perda de perspectiva, era previsível desde o início da modernidade,
implícito nas suas incompatíveis promessas anunciadas de controle, previsibilidade, paz
social, “ordem e progresso” sem fim etc.

A razão moderna embrionariamente carregava consigo a exigência de uma


crítica. Crítica que, como afirma Foucault (s.d., p. 35), é uma atitude própria da civilização
moderna, um movimento

[...] pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre


seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade;
pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da
indocilidade refletida. A crítica teria, essencialmente por função,
o desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma
palavra, a política da verdade.

A razão herdada do século XIX que havia possibilitado uma ciência positiva
assentada numa lógica instrumental e a edificação do Estado como aparato legítimo
de racionalização da economia e da sociedade pode ser apontada como a causa do
surgimento de um movimento crítico na Alemanha da primeira metade do século XX,
que demonstrou os elos entre a ingenuidade do saber científico com as formas de
dominação construídas pela sociedade moderna. A empreitada da Escola de Frankfurt
de deslocar a crítica para a esfera do poder permitiu compreender a falsa ideia que o
saber possui de si mesmo e como a aproximação desmedida entre ambos – saber e
poder – produziu consequências desastrosas e irremediáveis.

A Teoria Crítica, como enfrentamento à lógica de ciência positiva, surge em


um momento histórico de otimismo na realização da revolução operária. A Revolução
Russa de 1917 e os levantes operários alemães de 1918 e 1923 davam mostras de que a
Revolução do Proletariado não era uma utopia, mas um projeto político e social possível.
O novo horizonte teórico construído a partir das obras de Lukács e Korsch, importantes
pensadores revolucionários, representava alternativa ao leninismo e sua concepção
naturalista da história. Na Alemanha, forças reacionárias organizam-se, em 1933, no
Partido Nacional Socialista, permitindo que Hitler chegasse ao poder. Instaura-se um
período de perseguição e aniquilamento da organização operária.

149
FIGURA 16 – THEODOR ADORNO E MAX HORKHEIMER

Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer


(1895-1973), dois grandes expoentes da Escola
de Frankfurt, com Walter Benjamin,  Herbert
Marcuse, Jürgen Habermas e outros.

FONTE: <http://brasilescola.uol.com.br/cultura/industria-cultural.htm>. Acesso em: 11 abr. 2016.

A Teoria Crítica, que acabou por nominar o movimento dos intelectuais vinculados
à Escola de Frankfurt, tem sua origem em 1937, quando Max Horkheimer a utiliza num
escrito (Teoria Tradicional e Teoria Crítica) para indicar um ideário contraposto ao paradigma
cartesiano. Ao todo são cerca de 12 ensaios publicados entre os anos de 1933 e 1940, na
maioria, escritos durante seu exílio em Nova York.

O projeto de aliar a teoria marxista com as distintas disciplinas da ciência social


através de uma metodologia fecunda e orientada filosoficamente representava, para
Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, uma forma de mediação
necessária a partir do esgotamento no século XIX das premissas idealistas da filosofia
da história hegeliana, que, até então, representavam a tradição teórica capaz de aliar
análise empírica da realidade e reflexão filosófica, mas esvaziadas por terem sido
absorvidas pelo positivismo e a metafísica contemporânea.

A base da Teoria Crítica de pensar uma filosofia da história a partir da pesquisa


social, buscando meios cognitivos que possam mediar as relações sociais com uma
ideia transcendental de razão, conduziu a uma sistemática crítica ao positivismo como
tentativa metodológica de visualizar um conceito interdisciplinar de pesquisa.

O sistema ideal é o sistema unitário da ciência que, nesse sentido, é


todo-poderoso. E porque no objeto tudo se resolve em determinações
intelectuais, o resultado não representa nada consistente e material:
a função determinante, classificadora e doadora de unidade é a única
que fornece a base para tudo, e a única que todo esforço almeja.
[...] Segundo esta lógica, o progresso da consciência da liberdade
consiste propriamente em poder expressar cada vez melhor, na
forma de quociente diferencial, o aspecto do mundo miserável que
se apresenta aos olhos do cientista (HORKHEIMER, 1989, p. 38).

150
A essa tradição, Horkheimer dá o nome de “Teoria Tradicional” ou hipotético-
dedutiva. A “Teoria Crítica” é crítica da “Teoria Tradicional” sob um ponto de vista
ético. Admitindo a impossibilidade de abandono absoluto com as realizações teóricas
passadas, diferencia ambas propostas quanto à atitude do sujeito, ou seja, na relação
do cientista para com a sociedade.

ATENÇÃO
A Teoria Crítica é uma concepção teórica que não perde de vista seu
contexto social de origem e sua possibilidade de aplicação prática,
pretendendo cumprir a tarefa de transformação radical da ordem social
existente.

FIGURA 17 – PENSADORES DA ESCOLA DE FRANKFURT E IDEALIZADORES DA TEORIA CRÍTICA

FONTE: <mosqueteirasliterarias.comunidades.net/a-escola-de-frankfurt>. Acesso em: 11 abr. 2016.

Tal proposta exigia uma permanente reflexão no sentido de esclarecer seu papel
no processo histórico, o que até então não era metodologicamente possível pela rígida
divisão entre filosofia e ciência.

A Teoria Crítica, buscando edificar o pensador social num agente de


transformação, parte da eliminação da natural separação entre indivíduo e sociedade na
medida em que, reconhecendo os limites de sua base social, busca um comportamento
orientado para uma emancipação do todo social. A intenção do comportamento crítico
é ultrapassar o da práxis social dominante.

151
O projeto da Teoria Crítica não desejava ser messiânico no sentido de propor um
novo modelo político, mas o de desalienação como possibilidade de emancipação. E é
exatamente aí que o conhecimento encontra seu lugar: o de admitir como pressuposto
de racionalidade a permanente dinâmica social, articulando, assim, a reflexão teórica com
o processo histórico-social. Em outras palavras, o objeto privilegiado da Teoria Crítica
é a investigação acerca da articulação dialética entre os processos de conhecimento e
transformação social. A pretensa isenção defendida pela Teoria Tradicional se mostrava
insustentável e deveria ser repudiada pelas consequências contra os humilhados da
história. Havia servido de perverso instrumento de legitimação de formas alienantes e
alienadas de formas de vida humana, legitimando racionalmente o enigma da “servidão
voluntária”.

Os desdobramentos da “Escola de Frankfurt” e da “Teoria Crítica” são tão vastos


que é uma tarefa quase impossível estabelecer uma unidade teórica. Talvez o mais
apropriado seja considerar as tendências progressivamente estabelecidas e mantidas
graças à perseverança do “espírito crítico” que ultrapassou distintos momentos do século
XX. O primeiro período encerra-se pelo confronto com o fascismo, quando o Instituto
é fechado, em março de 1933, por ser considerado responsável pelas “tendências
hostis” ao Estado nazista. Inicia-se um período histórico de ameaça não apenas para
os membros do Instituto, mas da própria civilização ocidental. A amarga experiência
psicológica e intelectual do exílio produziu um estado de espírito que é espelhado nos
escritos dos teóricos críticos que observam o mal desejando compreender por que a
humanidade mergulhava num novo tipo de barbárie ao invés de chegar a um estágio
mais humano.

Como nunca foi possível admitir-se uma unidade na Escola de Frankfurt,


sobretudo nos primeiros momentos, não se pode falar em seu declínio. Teoria Crítica
e Escola de Frankfurt em sentido mais amplo, independente de Adorno e Horkheimer,
foram símbolos institucionais de um pensamento dedicado à luta contra todas formas
de dominação, mantendo dentro da tradição marxista uma permanente abertura para
com múltiplos diálogos teóricos. O grande projeto de um conhecimento interdisciplinar
de uma sociedade emancipada. Seus elementos mais consistentes sempre foram a firme
posição ética, a angústia com o destino da humanidade e a preocupação humanista
com o futuro da civilização ocidental, e, neste sentido, a Teoria Crítica representou
um ideário irradiador, serve como documento de constatação da desintegração da
sociedade liberal burguesa europeia moderna, escrito, em não raras vezes, de maneira
trágica por pensadores rebeldes desta mesma sociedade.

Em síntese, como produto do cenário filosófico de fins da primeira metade do


século XX, marcado pelo pessimismo e descrença do pós-guerra, tornou-se urgente a
tarefa de lançar um novo olhar sobre um mundo alienado, aniquilado e sem esperança
emancipatória. É neste contexto que deve ser compreendida a Escola de Frankfurt e a
Teoria Crítica, como defesa de uma insurgência contra o positivismo que pretende aliar
o conhecimento científico acerca dos fatos sociais à reflexão filosófica (FREITAG, 1986).

152
Esse é o ponto de partida para uma oposição às profundas contradições sociais
e as formas de pensamento que as legitimam, que foi assumido por Theodor Adorno e
Max Horkheimer, que defenderam a Teoria Crítica como alternativa e espécie de libelo
fundamental de oposição ao capitalismo através do qual assume-se o compromisso
com a construção de uma sociedade justa e livre.

Os defensores da Escola de Frankfurt fazem uma nítida separação entre teoria


científica e teoria crítica. Diferem quanto ao seu fim na medida em que as teorias
científicas têm o propósito de fazer “uso instrumental” do mundo exterior, capacitando
seus agentes para controlar e cumprir de forma eficaz os fins escolhidos, ao passo que a
Teoria Crítica pretende emancipação e esclarecimento, tomando a reflexão crítica como
forma de libertação das coações ocultas do saber hegemônico.

Ainda diferem quanto à estrutura cognitiva. As teorias científicas são


objetificantes por não serem em si parte do domínio que pretendem conhecer. Por outro
lado, a Teoria Crítica é autorreferente, na medida em que ela própria é objeto do que
descreve. Finalmente, diferem quanto à aceitabilidade cognitiva. As teorias científicas
requerem confirmação empírica através da observação e experimentação, enquanto a
Teoria Crítica é aceita reflexivamente.

Um traço marcante da Teoria Crítica é a oposição ao positivismo e ao empirismo,


destacando e denunciando a crescente racionalidade instrumental e tecnológica que
toma conta da sociedade ocidental como forma de dominação. A observação de que
o mundo é reduzido a objeto de exploração técnica é relacionada pelos pensadores da
Teoria Crítica ao método elegido pelas Ciências Sociais, considerando a consciência
científica a principal fonte de declínio cultural através do qual a humanidade ingressou
numa nova barbárie.

153
LEITURA
COMPLEMENTAR
O JUIZ E A JURISPRUDÊNCIA – UM DESABAFO CRÍTICO

Amílton Bueno de Carvalho

O novo juiz (é possível?)

Marcado pelo meu local de fala (daí porque suspeito), entendo que o papel do juiz
é muito forte como agente criador da jurisprudência, evidente que sem descaracterizar
a importância do provocador, detonador, balizador, de todo o processo de onde emerge
o ato decisório: o advogado e o promotor de justiça. Daí porque pretendo demonstrar
como vislumbro este pequeno burguês com sede de poder que em determinado
momento de sua vida ingressa na “casta da magistratura”.
 
Fique claro: as eventuais críticas à magistratura representam, antes de mais
nada e acima de tudo, profunda declaração de amor a ela: acredito que o juiz pode e deve
ser agente do processo de democratização da sociedade e com potencialidade muito
maior do que os próprios pensadores percebem. É amor e não ódio (ou “amoródio”, como
diria um psicanalista). É respeito e não desdém, é confiança na dignidade da função.

Tenho que para que o Juiz possa se completar tanto no plano individual, quanto
como agente social, há requisitos que me parecem indispensáveis e que têm sido
omitidos tanto por aqueles que olham a magistratura de fora, quanto por aqueles que
pretendem ver a magistratura a partir de seu próprio local de fala.
 
Os que miram desde fora – como regra – dão menor importância ao juiz. É tido
como mero aplicador da lei, ou instrumento do poder dos doutrinadores que necessitam,
para provar suas “verdades”, que os magistrados as cumpram, ou, finalmente (e agora
dentro do Poder Judiciário), como cumpridores de ordens do Tribunal, via jurisprudência.
Enfim, instrumento de ponta do dono da lei ou do dono do saber ou da hierarquia do
Poder. Por outro lado, os próprios críticos não têm dado real importância à atividade
específica do julgador: o juiz é conservador, não crítico, alienado.
 
Outrossim, e n’outra ponta, quando o julgador fala de si mesmo emerge discurso
efetivamente alienado dando a si próprio ares de divindade. O exemplo palmar desta
ótica (aqui manifestada com todo o respeito) é a “Prece de um Juiz”, do magistrado
aposentado João Alfredo Medeiros Vieira, vertido para quinze línguas. E assim começa
a prece: “Senhor! Eu sou o único ser na terra a quem tu deste uma parcela da tua

154
onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes. Diante de mim
as pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra obedecem, ao meu
mandado se entregam… Ao meu aceno as portas das prisões se fecham… Quão pesado
e terrível é o fardo que puseste em meus ombros!… E quando um dia, finalmente, eu
sucumbir e já então como réu comparecer à Tua Augusta Presença para o último juízo,
olha compassivo para mim. Dita, senhor, a tua sentença. Julga‑me como um Deus. Eu
julguei como homem”.
 
O texto se explica por si só. E o que é pior: nós (juízes e povo) acreditamos na
ideia do mito juiz‑divindade. Não nos ocorre sequer a possibilidade de não existir Deus
(como ficaria o sentido da prece?), ou de que o poder de condenar ou absolver passa
muito mais pelo que quer a autoridade policial; que as pessoas inclinam‑se perante o
juiz por receio e não por respeito (aliás, nós sabemos que nem o advogado gosta de juiz:
lisonjeia‑o apenas para aguçar sua onipotência); que as portas da prisão dependem mais
da correlação de forças que ocorre no presídio ou da boa ou má vontade do carcereiro;
que o fardo é pesado (?) mas nem tanto como o daquele que passa fome!

FONTE: https://ensaiosjuridicos.wordpress.com/2013/04/11/o-juiz-e-a-jurisprudencia-um-desabafo-criti-
co-amilton-bueno-de-carvalho/. Acesso em: 24 abr. 2016.

155
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu:

• O positivismo jurídico é o resultado de uma convergência de fatores teóricos, políticos


e sociais cujo resultado foi a redução do Direito ao Direito Estatal, negando as
demais fontes produtoras da norma jurídica bem como produzindo uma separação
entre Direito e Moral.

• A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, publicada nas primeiras décadas do


século XX, é um divisor de águas no Positivismo Jurídico e na racionalidade jurídica
moderna, inaugurando uma nova etapa – normativismo jurídico – bem como uma
nova concepção acerca do saber jurídico, a cientifização do direito.

• Os eventos que se seguiram a II Guerra Mundial – o holocausto e os regimes ditatoriais


– deixaram evidente a necessidade de rever a aproximação entre Direito e Moral e
desde aí passa a ser marcante uma concepção acerca do que se convencionou
chamar de Teoria Crítica do Direito.

156
AUTOATIVIDADE
1 "Positivismo jurídico" é uma expressão que designa a concepção hegemônica de
Direito Moderno, elaborada desde o contexto europeu do século XIX e define o que é
Direito. Sobre o positivismo jurídico, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) 'Direito Positivo' é uma expressão que na atualidade significa 'Direito Posto' pelo
poder político, ou seja, pelo Estado.
b) ( ) A expressão 'positivismo jurídico' deriva da expressão de 'positivismo' em sentido
filosófico.
c) ( ) Trata-se de uma corrente doutrinária que deu origem ao que vai se denominar de
positivismo jurídico e sua principal característica é o distanciamento do legalismo.
d) ( ) Para uma melhor concepção acerca dos conceitos de positivismo jurídico, há que
se afastar dos referenciais teóricos de legalidade e moralidade.

2 A Idade Moderna compreendeu um período histórico de grandes transformações


sociais e políticas. O novo modelo social advindo deste processo trouxe consigo o
Direito Moderno, estruturado com base no positivismo jurídico e a predominância do
legalismo. Acerca do paradigma do Direito Moderno, analise as sentenças a seguir:

I- Direito Positivo, Positivismo Jurídico e Positivismo Filosófico são termos semelhantes,


genéricos, que se relacionam e complementam.
II- Positivismo jurídico é uma concepção teórica, política e filosófica de Direito
reducionista, que se tornou paradigma dominante do Direito.
III- O Direito Moderno é construído com base na racionalidade técnico-científico, como
um conjunto de normas objetivas, técnicas e legítimas, capazes de promover
segurança jurídica e previsibilidade nas relações humanas.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente a sentença I está correta.


b) ( ) Somente a sentença III está correta.
c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
d) ( ) As sentenças II e III estão corretas.

3 A "Teoria Crítica" acabou por nominar o movimento dos intelectuais, que embora
distanciados em muitos aspectos, possuem como ponto de convergência o marxismo.
Entretanto, há um grupo de pensadores que na década de 11930 se reúne em torno
do Instituto de Pesquisa Social, cujos trabalhos são relacionados ao Direito com a
razão instrumental moderna injusta e repressora. Os trabalhos produzidos acabam
por identificar uma corrente de pensamento que acabou sendo conhecida como:

157
a) ( ) Escola de Frankfurt.
b) ( ) Escola Clássica.
c) ( ) Escola de Roma.
d) ( ) Escola de Firenze.

4 Após o estudo realizado sobre Positivismo Jurídico e o pensamento de Hans Kelsen,


abordado neste tópico, responda: Qual o sentido de “Pureza” do Direito defendido por
Kelsen?

158
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da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

TARNAS, R. A epopeia do pensamento ocidental – Para compreender as ideias


que moldaram nossa visão de mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Ltda., 2011.

TOUCHARD, J. História das ideias políticas. São Paulo: Publicações Europa-


América, s.d.

TRUYOL Y SERRA, A. História da Filosofia do Direito e do Estado. Madrid: Alianza


Editorial, 1982.

VENANCIO FILHO, Al. Das arcadas ao bacharelismo – 150 anos de ensino jurídico
no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1982.

VIOTTI DA COSTA, E. Liberalismo brasileiro, uma ideologia de tantas caras. Folha de São
Paulo de 24.02.1985. In: WOLKMER, A. C. História do Direito no Brasil. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2007.

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Gulbenkian, s.d.

WOLKMER, A. C. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva,


2015.

WOLKMER, A. C. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 8. ed. São Paulo:


Saraiva, 2012.

WOLKMER, A. C. História do Direito no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

163
WOLKMER, A. C. Síntese de uma história das ideias jurídicas – Da antiguidade
clássica à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.

ZEA, L. Discurso desde a marginalização e a barbárie. São Paulo: Garamond, 2005.

ZIZEK, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2012.

164
UNIDADE 3 —

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DO DIREITO BRASILEIRO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar a origem moderna do direito brasileiro como parte do processo de


expansão colonial europeia;

• particularizar as distintas etapas políticas e jurídicas do Brasil, identificando as


características e elementos identificadores;

• compreender a construção do direito brasileiro contemporâneo e suas funções


políticas e sociais;

• discutir os desafios do direito brasileiro contemporâneo frente à necessidade de


garantir a ordem constitucional democrática.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – AS RAÍZES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA


TÓPICO 2 – A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA
TÓPICO 3 – O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL
TÓPICO 4 – OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
TÓPICO 5 – DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

CHAMADA
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165
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A TRILHA DA
UNIDADE 3!

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166
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
AS RAÍZES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA

1 INTRODUÇÃO
Iniciaremos nosso estudo acerca do direito brasileiro buscando refletir acerca
da experiência histórica nacional, vivenciada a partir do século XVI, discutindo a
possiblidade de vislumbrar novas trajetórias, pactos e compromissos exatamente
em um momento em que se coloca a necessidade de repensar a cultura jurídica
brasileira. Nossa análise, desde um olhar decolonial, compreendendo a reflexão sobre
a experiência histórica do Brasil.

NOTA
Como veremos mais adiante nesta unidade, a palavra “decolonial” se
refere a uma corrente de pensamento crítico que nasceu em fins do
século XX e tem como característica central a busca de novos paradigmas
políticos e jurídicos construídos desde a realidade de interesses locais,
objetivando a construção de uma autonomia política e intelectual. O
termo “decolonial” é utilizado para designar estudos acerca das raízes
históricas e políticas das profundas desigualdades sociais dos povos e
nações periféricas que foram áreas de dominação e exploração histórica
desde os séculos XIV e XV.

2 EXPLANAÇÃO
A origem do que atualmente entendemos por direito é produto de um processo
histórico inicial de colonização que acabou por construir um modelo, um “padrão” de
poder político e jurídico que marcou profundamente a cultura e as relações de poderes
nacionais.

É na tentativa de visibilizar os elementos que construíram a cultura jurídica


nacional que se pretende retomar brevemente sua construção histórica, lembrando,
como diz Wolkmer (2007, p. 1), que as retomadas dos estudos históricos ganham
significado quando “[...] se tem em conta a necessidade de repensar e reordenar uma
tradição normativa, objetivando depurar criticamente determinadas práticas sociais,
fontes fundamentais e experiências pretéritas que poderão, no presente, viabilizar o
cenário para um processo de conscientização e emancipação”.

167
IMPORTANTE
Neste momento de estudo nossa pretensão é analisar a especificidade
da cultura jurídica no contexto histórico-político, delineado a partir da
invenção do Brasil no século XVI.

Para iniciar nosso estudo, vamos voltar ao ano de 2000, quando haviam sido
passados 500 anos do “descobrimento” do Brasil. Na época, a filósofa Marilena Chauí
(2001, p. 57) descontrói o “mito do descobrimento Brasil” afirmando que, assim como a
América não estava à espera de Colombo, o Brasil não estava, aqui, à espera de Cabral.

Antes de mais nada, “Brasil” é uma invenção histórica e cultural da metrópole


portuguesa e parte do projeto do capitalismo mercantil europeu, que simultaneamente
alargavam as fronteiras do visível, trazendo novas mercadorias, e as do invisível, novos
semióforos.

NOTA
O termo “semióforo” é utilizado por Marilena Chauí para designar uma
imagem que vincula o visível ao invisível – ao imaginado – que permanece
e é reproduzido pelas elites intelectuais para dar sentido e vínculo entre
o real e o imaginário. A invenção de uma nação, em geral, passa por um
processo de construção de semióforos, tais como “a vontade de Deus”,
“missão salvadora”, “obra de heróis” etc., e dessa forma a gênese histórica
é negada e esvaziada, tornando o irreal em real, nascendo o mito.
No caso do Brasil, o mito, o invisível, sempre foi o da “missão civilizadora
dos europeus”.

Portanto, não foi a “vontade de Deus” que conduziu os súditos de Dom Manuel
até as terras brasileiras, mas sim os interesses econômicos da classe de comerciantes
europeus da época.

As conquistas coloniais europeias do século XV aparecem como desdobramento


da expansão do capitalismo mercantil, constituindo o ponto de partida para edificação
do projeto da Modernidade.

Como já vimos na Unidade 2, “Modernidade” compreendida externamente, desde


o mundo não europeu, pode ser interpretada como construção do mito criado a partir
do século XV acerca da existência de um centro histórico mundial portador

168
de uma concepção política de ordem econômica, política e social civilizadora:
A Europa. Portanto, o projeto civilizador da modernidade trouxe consigo relações de
dominação desenvolvidas mundialmente desde o século XV, alimentadas por um falso
discurso legitimador de “progresso” linear e universal, que para os povos colonizados
significou dominação e extermínio.

Em síntese, a expansão colonialista europeia do século XV não resultou


da necessidade de ocupação de novos espaços por excesso populacional, mas foi
propositalmente provocada por uma burguesia comercial definida pelo importante
historiador Caio Prado Júnior (1975, p. 13) como “sedenta de lucros, e que não encontrava
em seu espaço pátrio satisfação à sua desmedida ambição”.

FIGURA 1 – INVASÃO DO NOVO MUNDO

FONTE: <https://acasadevidro.com/2012/09/25/a-america-nao-foi-descoberta-a-invasao-europeia-do-no-
vo-mundo-segundo-todorov>. Acesso em: 21 abr. 2017.

DICAS
Segue um site que trará um breve resumo da obra A Conquista da América
– A Questão do Outro, de Tzvetan Todorov, publicada pela Editora Martins
Fontes. Leia! Você terá uma visão do “descobrimento” sob o ponto de
vista da população dominada: https://acasadevidro.com/2012/09/25/
a-america-nao-foi-descoberta-a-invasao-europeia-do-novo-mundo-
segundo-todorov.

169
Os diversos fatores políticos que culminaram com a ascensão ao trono português
da Casa de Aviz no século XIV favoreceram o fortalecimento da burguesia comercial
lusitana, que logo tratou de iniciar um movimento de expansão externa, iniciada com a
tomada de Ceuta em 1415, e desde então, não mais parou.

Bosi (1993, p. 12) analisa a colonização brasileira distinguindo dois processos


colonizadores:

• Aquele relacionado com o mero povoamento e o que conduz


à exploração do solo, relacionado à expansão populacional,
entendido como “ato de habitar e o ato de cultivar”.
• E o processo iniciado a partir do século XVI no qual havia o acrés-
cimo de algo: um traço de dominação, de aventura, de conquista.

Entretanto, nem sempre o colonizador concebendo a si mesmo como um


simples conquistador.

Em 1556, quando era difundida a Lenda Negra sobre a colonização ibérica na


América, a Espanha proibia o uso das palavras conquista ou conquistadores, impondo a
substituição por descobrimento ou colonizadores.

Portanto, o processo de ocupação, ironicamente chamado de descobrimento,


não ocorreu por expansão demográfica como na antiguidade havia ocorrido com os
gregos pelo Mediterrâneo entre os séculos VIII e VI a.C., “[...] ela é a resolução de carências
e conflitos de matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre
a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo
civilizatório” (BOSI, 1993, p. 13).

Em tal processo era necessário cultivar não apenas a terra, mas “cultivar” seres
humanos, práticas, símbolos, valores capazes de garantir um estado de coexistência
social, enfim, uma cultura.

Sem dúvida, a produção da cultura colonialista exigiu o domínio de


outros humanos, de sujeitá-los a padrões de dominação. Talvez essa seja uma
possibilidade de se compreender por que a partir do século XVIII as noções de
cultura e progresso se confundem e se misturam. Assim, colonizar era cultivar
a terra e os seres humanos.

Nesse sentido, o processo de expansão comercial europeu, chamado de


“colonização”, se insere no momento de superação do modo de vida medieval, quando um
grupo ascendente e enriquecido – burguesia mercantil – orquestra as transformações
econômicas, sociais e políticas que culminam com a formação dos Estados Modernos e
consolidação do capitalismo.

Assim, os elementos essenciais para a compreensão da relação colônia-


metrópole, com a consequente criação de um aparato jurídico, são, entre outros:

170
• A expansão da economia europeia mercantil.
• O esforço dos Estados Modernos metropolitanos em transformar as colônias em
instrumentos de expansão desse poder.

Na transformação dos antigos reinos medievais em Estados modernos,


unificados e centralizados, abrem-se os caminhos ultramarinos que permitem a inserção
desses Estados no processo de exploração, viabilizando a construção de seus impérios
coloniais.

Portanto, a “moldura do sistema” que explica a organização produtiva colonial


e suas implicações na vida social não se limita à atividade colonizadora, mas de ajustar
a colônia de forma especializada, “concentrando os fatores na produção de alguns
poucos produtos comerciáveis na Europa, as áreas coloniais se constituem ao mesmo
tempo em outros tantos centros consumidores dos produtos europeus” (NOVAIS, 1976,
p. 58). Com esta relação monopolizadora criam-se os mecanismos de apropriação
e concentração dos lucros. Assim, a invenção do Brasil teve um sentido. Brasil, no
entendimento de Schwartz (2000, p. 105):

[...] Desde sua origem, tem sido tanto uma ideia como um lugar.
Significou coisas diferentes para pessoas diferentes e o próprio
termo tem sido redefinido e reinterpretado para refletir as diferentes
discrepâncias entre pessoas de variadas extrações e posições sociais.
O Brasil, enquanto ideia, foi frequentemente mais um projeto do que
uma realidade, às vezes geográfica, às vezes nacionais ou até social.

O projeto do colonizador conferiu um sentido à invenção brasileira: tratava-se


de instalar uma produção semicapitalista, em larga escala.

A grande lavoura açucareira, pelo modo de exploração, nas palavras de Sérgio


Buarque de Holanda (2000, p. 49), “é de natureza perdulária e caracteriza o objetivo
metropolitano: servirem-se da terra ao máximo, mas sem muitos sacrifícios, como
usufrutuários”.

Embora Portugal, desde o século XVII, ter sido incorporado no sistema


capitalista como periférico, sem ter assumido lugar central, chegando ele próprio a ser
um país dependente – sobretudo da Inglaterra –, a subordinação colonial constitui-se
no elemento central de construção da identidade cultural brasileira, reproduzindo as
relações de poder de uma metrópole periférica e subalterna.

Por essa razão, pode-se afirmar que o colonialismo português foi diferenciando
e se caracteriza por ter sido manipulado segundo os desejos e necessidades de outras
metrópoles, sobretudo a inglesa.

Bosi (1993), na tentativa de mapeamento da formação econômica-social


do Brasil-Colônia, descreve como características fundamentais da ordem então
estabelecida os seguintes aspectos:

171
1. A predominância de uma camada de latifundiários com interesses atrelados a
grupos mercantis europeus, o que permitia dependência estrutural, impedindo a
dinamização de um capitalismo mais avançado internamente, reproduzindo-se um
modelo capitalista colonial específico, limitado a uma esfera mercantil dependente.
2. Como parte da lógica latifundiária vinculada aos interesses dos traficantes negreiros
africanos, a força de trabalho foi constituída essencialmente por escravos cuja única
alternativa não era a passagem para o trabalho assalariado, mas a fuga e resistência
nos quilombos, ou ainda, como parte de uma lógica perversa, a alforria, alternativa
para a resistência, representava o ingresso numa vida marginal ou de condição de
submissão como agregado. A condição foi sempre da dependência e exploração.
3. A estrutura política-jurídica vai sempre representar os interesses dos proprietários
locais, os homens bons, mas com poder limitado aos interesses reais. A competência
de nomear o governador geral com mandato de quatro anos era da coroa portuguesa,
sendo incluído no poder do governador a competência militar e administrativa
segundo critérios determinados pelos regimentos, cartas e ordens régias. O
corpo burocrático de funcionários reais – provedores, ouvidores, procuradores,
intendentes... – tem a ação controlada diretamente por Lisboa (a partir de 1642 pelo
Conselho Ultramarino). Com o avanço da estrutura colonial, vão sendo transferidos
magistrados metropolitanos, juízes de fora, que se sobrepunham aos eleitos nas
vilas. A permanente tensão entre os interesses locais e metropolitanos será o fator
de crise instalada a partir do século XVIII, que com a independência como tentativa
de sua superação, servirá de fortalecimento do mandonismo local legitimado pelos
bacharéis que servirão de representantes dos donos do poder.
4. O exercício de cidadania é limitado tanto pelo Estado Absolutista Metropolitano como
pelo poder interno, inexistindo qualquer representação ou mecanismo de garantia
para o conjunto da população, situação que pouco se altera com a independência,
pois o que se instala é um modelo político censitário e indireto.
5. A cultura eclesiástica, sobretudo a jesuíta empenhada numa prática missionária
supranacional, ganha espaço no início do processo de colonização, quando a
moeda corrente era a ideia do papel evangelizador da expansão metropolitana.
Posteriormente, de uma atividade marginal irá sucumbir sob a pressão do avanço
bandeirante e do exército metropolitano, restando, assim, a função educacional
junto aos filhos das elites locais.
6. A formação de uma cultura letrada estamental que não permitia a mobilidade
vertical, com raros casos de apadrinhamento, predominando, assim, uma massa
analfabeta caracterizando uma rígida linha divisória entre uma cultura oficial e uma
cultura popular.

A partir desse “mapeamento” é possível compreender as raízes da cultura


brasileira como resultado de uma lógica agrária, latifundiária e escravista, marcada por
uma imensa distância entre o que exigiam da terra e o que a ela davam em troca.

172
A ilimitada exploração interna como regra necessária para a submissão externa.
Portanto, a gestão da colônia deveria ser feita através da metrópole cujo “norte” foi a
efetivação dos princípios mercantilistas e o núcleo a formação e manutenção de um
sistema monopolista.

Como lembra Wolkmer (2007, p. 38), era a forma encontrada pela metrópole de
impedir que outras nações europeias “pusessem em risco, com a concorrência, aqueles
privilégios advindos da restrição comercial, tão lucrativas aos comerciantes portugueses
que não encontravam, no seu espaço, satisfação para sua ambição”.

Portanto, como parte integrante do universo colonial brasileiro formou-se um


tipo de poder político e jurídico destituído de qualquer identidade com os interesses
internos, já que se formou com a incorporação do aparato burocrático e profissional
lusitano. Por outras palavras, como extensão da coroa portuguesa constituiu-se uma
forma de poder legitimada pelos senhores da terra, os donos locais do poder.

173
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• As bases históricas do direito brasileiro foram definidas a partir do processo moderno


de colonização.

• A colonização brasileira teve, como sentido, promover a acumulação de lucros na


metrópole portuguesa, e por esta razão, a ordem política e jurídica nacional foi
elaborada a partir desse interesse externo.

• A implantação de um modelo de produção na colônia brasileira, a partir do século XVI,


foi sustentada por um modelo político e jurídico específico, inicialmente chamado
“direito brasileiro”.

174
AUTOATIVIDADE
1 Leia com atenção o texto a seguir e responda à questão proposta.

O eurocentrismo é a perspectiva de conhecimento que foi elaborada sistematicamente


a partir do século XVII na Europa, como expressão e como parte do processo de
eurocentralização do padrão de poder colonial/moderno/capitalista. Em outros termos,
como expressão das experiências de colonialismo e de colonialidade do poder, das
necessidades e experiências do capitalismo e da eurocentralização de tal padrão de
poder. Foi mundialmente imposta e admitida nos séculos seguintes, como a única
racionalidade legítima.

Em todo caso, como a racionalidade hegemônica, o modo dominante de produção de


conhecimento. Para o que interessa aqui, entre seus elementos principais é pertinente
destacar, sobretudo, o dualismo radical entre “razão” e “corpo” e entre “sujeito” e
“objeto” na produção do conhecimento; tal dualismo radical está associado à propensão
reducionista e homogeneizante de seu modo de definir e identificar, sobretudo na
percepção da experiência social, seja em sua versão a-histórica, que percebe isolados
ou separados os fenômenos ou os objetos e não requer por consequência nenhuma
ideia de totalidade, seja na que admite uma ideia de totalidade evolucionista, orgânica
ou sistêmica, inclusive a que pressupõe um macro sujeito histórico. Essa perspectiva de
conhecimento está, atualmente, em um de seus mais abertos períodos de crise, como
o está toda a versão eurocêntrica da modernidade.

FONTE: QUIJANO, A. Colonialidade, poder, globalização e


democracia. Revista Novos Rumos, v. 17, n. 37, p. 4-25,
2002.

Considerando o estudo realizado e a leitura do texto anterior, responda à seguinte


questão: É possível estabelecer alguma relação entre o processo de colonização
brasileiro do século XVI e a construção do conhecimento jurídico nacional? Fundamente
a sua resposta.

175
176
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

1 INTRODUÇÃO
Como vimos, Portugal, no século XV, juntamente a demais países europeus,
como Espanha e Inglaterra, reuníram condições técnicas, bem como interesses
econômicos e políticos que permitiram o processo de expansão do domínio europeu.

É evidente que havia uma grande disputa entre os reinos metropolitanos da


época sobre as terras “descobertas” e as “a serem descobertas”, especialmente sobre as
riquezas que possuíam. Seguramente, por esta razão, as terras brasileiras já eram alvo
de interesse, sobretudo, de Espanha e Portugal, o que explica a existência de Tratados
entre tais países mesmo antes da “chegada” de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de
1500. Destacam-se os seguintes Tratados:

1. Tratado de Toledo: celebrado em 6 de março de 1480, que dava a Portugal a


exclusividade sobre as terras e águas ao sul das Ilhas Canárias.
2. Bula Inter Coetera: de 4 de maio de 1493, expedida pelo Papa Alexandre VI que
conferia à Espanha o direito exclusivo sobre todas as terras que estivessem a oeste
de uma linha imaginária a 100 léguas de Açores e Cabo Verde.
3. Tratado de Tordesilhas: de 7 de junho de 1494, que estabeleceu um meridiano
divisório a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde, sendo a leste pertencente a
Portugal e oeste a Espanha.

FIGURA 2 – TRATADO DE TORDESILHAS

FONTE: <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-de-tordesilhas.htm>. Acesso em: 11 abr. 2017.

177
Portanto, a “descoberta” do Brasil não foi “mero acaso”, mas parte de um projeto
de conquista. Porém, para os portugueses, ávidos por ouro, prata e mercadorias que
pudessem alimentar o comércio europeu, encontraram uma população dispersa que
vivia de caça e coleta.

NOTA
Na clássica obra O Povo Brasileiro, o antropólogo Darcy Ribeiro descreve o contato entre
os indígenas brasileiros e os portugueses:
Os
 índios
 perceberam
 a
 chegada
 do
 europeu
 como
 um acontecimento
 espanto-
so, só
assimilável
em
 sua
 visão
mítica
 do
mundo.
Seriam
gente
de
 seu deus
sol, o
cria-
dor – Maíra
–,
que
vinha
milagrosamente
sobre
as
ondas do mar grosso. Não havia como
interpretar seus desígnios, tanto podiam ser ferozes como pacíficos, espoliadores
ou da-
dores.
Provavelmente, seriam
 pessoas
 generosas,
 achavam
 os
 índios. Mesmo
porque
no seu mundo, mais belo era dar que
receber.
Ali,
ninguém
jamais
espoliara
 ninguém
e
a

pessoa
alguma
 se
 negava
louvor
 por
 sua
 bravura
e
 criatividade. Visivelmente,
 os
 recém-
-chegados,
 saídos
 do
 mar,
 eram feios,
 fétidos
e
infectos.
Não
havia
como
negá-lo.
É
cer-
to
que,
depois
do
banho
e
 da comida, melhoraram
 de
 aspecto e
 de
 modos.
 Maiores te-
rão
 sido,
 provavelmente,
as
esperanças
do
que
os
temores
daqueles
primeiros
índios.

Tanto
assim
é
que
muitos
deles
embarcaram
confiantes
nas primeiras
naus, crendo
 que

seriam
levados
a
Terras
 sem
Males,
morada
 de
Maíra.
Pouco
mais
tarde,
essa
visão
idílica
se
dissipa.
Nos anos seguintes, se anula e
reverte-se no
 seu
 contrário:
 os
 índios
 começam
 a
 ver
 a
 hecatombe
 que
caíra sobre eles. Maíra, seu deus, estaria
 morto?
 Como
 explicar
 que
 seu

povo
 predileto
 sofresse tamanhas
 provações?
 Tão
 espantosas
 e
 terríveis

eram
elas,
que
para
muitos
índios
melhor
fora
morrer
do
que
viver.
Mais
tarde,
com
a
destruição
das
bases
da
vida
social
indígena,
a
nega-
ção
de
todos os
 seus
 valores,
 o
 despojo,
 o
 cativeiro,
 muitíssimos
 índios

deitavam
em
suas
redes
e
se
deixavam morrer, como
só
eles
têm
o
po-
der
de fazer. Morriam
 de tristeza,
 certos
 de que
 todo
 o
 futuro
 possível

seria
 a
 negação
mais
horrível
do
passado,
uma
vida
indigna de
ser
vivi-
da
por
gente verdadeira.

FONTE: RIBEIRO, D. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. 2. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 42-43.

Nas palavras do referido autor, não é difícil perceber a razão da aparente fácil
dominação do invasor: os indígenas eram gentis, não viviam movidos pela cobiça e foram
facilmente atraídos pelos facões, espelhos e bugigangas com que eram enganados.

O resultado foi fatal! Nessa história, houve perdedores e não foram os invasores
portugueses.

Sem o menor pudor, os nativos foram considerados objetos desprovidos de


qualquer direito. As imensas massas de nações indígenas tiveram exterminadas suas
organizações sociais e os invasores impuseram seu sistema jurídico, pouco ou nada
restando, no caso do Brasil, dos costumes ancestrais de gestão de conflitos.

178
A enorme distância da metrópole, a falta de acesso e a absoluta falta de
estrutura administrativa eram fatores que iam fortalecendo o poder dos donos do poder
local. Seguramente é por esta razão que desde nossa origem não há uma clara distinção
entre o poder público e poder privado por parte das elites.

2 A ESTRUTURA JURÍDICA DO BRASIL COLÔNIA


No primeiro período da colonização, que vai até 1549, a preocupação central
era a de garantir a posse da terra, tendo sido adotado um arcaico sistema chamado de
Capitanias Hereditárias, constituído pela doação de extensas faixas de terra a nobres
portugueses que quiseram, por conta própria, explorar a terra e promover o povoamento.
O sistema era feudal e toda administração jurídica e política ficava sob a responsabilidade
do donatário. Na verdade, a “gestão da justiça” era marcada por abusos e arbitrariedades
sem qualquer burocratização de procedimentos, uma vez que, na prática, era o dono da
terra que legislava, julgava e aplicava as penas que bem entendesse.

Seguramente, esse ilimitado arbítrio e ausência de controle é um dos fatores


que explica o fracasso do sistema de capitanias, com exceção das de São Vicente e
Pernambuco.

Em 1549, na tentativa de resgatar o controle é instaurado pela coroa o Governo


Geral, que assume amplas responsabilidades burocráticas e fiscais, tendo no comando o
Governador Geral, possibilitando a formação de uma tímida justiça colonial administrada
por um pequeno grupo de burocratas que vieram a serviço do governador.

A instituição do sistema de Governo-Geral, como forma de centralizar o poder


e solucionar o problema do fracasso do sistema de capitanias e a invasão estrangeira,
aumenta a possibilidade de criação de um corpo burocrático, destacando-se o Ouvidor-
Geral como símbolo da justiça local.

Durante todo o período colonial vigorava o sistema jurídico metropolitano, ou


seja, as Ordenações Reais, compostas pelas seguintes Ordenações:

1. Ordenações Afonsinas: concluídas em 1446, foram elaboradas por ordem de D.


João I da Dinastia de Avis e eram divididas em cinco livros:

o Livro I: relativo aos regimentos dos cargos públicos (régios e municipais),


compreendendo governo, fazenda, justiça e exército.
o Livro II: Direito eclesiástico, jurisdição e privilégio dos donatários, prerrogativa da
nobreza e estatuto dos mouros e judeus.
o Livro III: Processo civil.
o Livro IV: Direito Civil.
o Livro V: Direito e Processo Penal.

179
2. Ordenações Manuelinas: concluídas em 1521, trataram de incorporar as modifica-
ções advindas do processo de expansão colonial e as novas leis que continuaram a
ser editadas. Também eram compostas por cinco Livros, tratando mais diretamente
de direito marítimo, contratos e mercadores, sem mudanças no direito e sistema pe-
nal, que permanecia um sistema de torturas e horrores medievais, com aplicação de
tortura e penas corporais como a pena de morte.

3. Ordenações Filipinas: de 1603, representa a unificação das Ordenações anteriores


com pequenas inclusões de leis extravagantes.

IMPORTANTE
Mudança significativa apenas ocorre na fase colonial em 1769, com as
reformas feitas por Marquês de Pombal – reformas pombalinas –, cujo
objetivo era o de estabelecer regras gerais para uniformizar a interpretação
e aplicação das leis em casos de omissão, lacunas ou imprecisão nas leis
reais. Chamada também de Lei da Boa Razão, a finalidade era manter as
diferenças entre Portugal e suas colônias.

A administração jurídica brasileira é marcada com a chegada do primeiro


Ouvidor-Geral, Pero Borges, em 1549. Nas palavras de Schwartz (1979), ao contrário
de criar uma administração centralizada, teve sua função sobreposta à estrutura
existente de magistrados e ouvidores designados pelos donatários. O resultado foi um
sistema de controle exercido pelo rei e pelo donatário, ao mesmo tempo, confuso e
muitas vezes inoperante.

ATENÇÃO
Há de se lembrar que, por orientação das Cartas de Doação, o cargo
de ouvidor, primeira autoridade da justiça colonial, era designado
pelos donatários das capitanias por um prazo renovável de três anos,
constituindo-se a administração da justiça como representação dos
donatários nas questões cíveis e criminais.

180
A justiça colonial encontrada pelo ouvidor-geral Pero Borges é descrita por
Schwartz (1979, p. 24) da seguinte maneira:

Grassavam o abuso administrativo e a incompetência. Por exemplo,


durante a ausência do donatário em Ilhéus, Francisco Romero, um
espanhol fazia as vezes de capitão e ouvidor. Embora fosse um bom
homem e soldado experiente, Romero era inadequado para o cargo
de juiz, pois é ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz crer
aos homens o que não devem. Borges recomendou insistentemente
que a Coroa forçasse os donatários a selecionar seus ouvidores
dentre homens treinados para servir à lei. Sublinhou que em Lisboa,
um magistrado treinado e com grande experiência presidia poucas
audiências, enquanto no Brasil, um analfabeto podia proferir muitas
sentenças, desrespeitando todos os princípios legais.

A incompetência e inoperância judicial colonial brasileira que contribuiu para


a prática de excessos e ilegalidades de toda espécie pode ser compreendida não
apenas pela permissividade metropolitana e local, mas também pela dificuldade de
acesso às áreas remotas, o que foi contribuindo para um mandonismo local, situação
que preocupava os missionários jesuítas, sobretudo a exploração das comunidades
indígenas.

Schwartz (1979) ainda chama a atenção para o fato de que a lei portuguesa
vigente no Brasil dizia respeito somente aos europeus, praticamente inexistindo
proteção jurídica para as relações entre os europeus e os indígenas. Tal situação é
descrita pelo autor ao se referir ao que o missionário jesuíta Manoel da Nóbrega descreve
como punição imposta a um índio que havia assassinado um português: foi colocado na
boca de um canhão e literalmente feito em pedaços. Assim era feita a justiça na colônia.

Rapidamente, os nativos perceberam para qual lado pendia a balança da justiça,


porque não havia limites para o abuso e arbítrio dos colonizadores, encontrando apenas
algum refúgio nas missões jesuítas.

Entretanto, apesar das profundas contradições na administração da justiça


colonial, já por volta de 1580 havia um sistema mais centralizado, o que pode ser
compreendido como reflexo do avanço da indústria açucareira em Pernambuco e Bahia.

Na medida em que se expandia a lavoura monocultora açucareira, cresciam


a população e os conflitos, o que vinha a exigir maior intervenção jurídica para a
manutenção da prosperidade local. O momento político que então se sucedeu com a
ascensão ao trono de Felipe II da Espanha (1580) é marcado por uma maior atenção
à justiça colonial, fruto, possivelmente, da personalidade burocrática e precisão
administrativa imperial, traço que transparece com a nova codificação empreendida, já
que a complexa legislação portuguesa era herdeira dos códigos romanos e visigodos.
Leis antigas e injustas que na prática eram desrespeitadas, o que permitia a impunidade
para os poderosos (SCHWARTZ, 1979).

181
FIGURA 3 – PELOURINHO - SÍMBOLO DA “JUSTIÇA” COLONIAL

FONTE: <http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/64/curta-essa-dica/escravos.jpg/image_view_fullscre-
en>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Na lógica metropolitana, legislar era garantir a justiça através de prêmios ou


castigos, como atitude paternal do monarca em relação a seus súditos. A lei emanada
do pai – do Rei – é justa porque, mesmo dura, pretende corrigi-los e salvá-los. Contudo,
na distante colônia o “poder paternal” do monarca era exercido como força aliada à
autoridade delegada, o que produz um sistema de pouca efetividade, marcado pelo
desmando e corrupção local.

A importância da colônia sendo crescente e visível já no início do século XVII


explica a criação do Tribunal de Relação no Brasil, cuja primeira tarefa era a de selecio-
nar um grupo de magistrados treinados e dispostos a enfrentar as condições adversas
na colônia.

DICA
Sugere-se a “visita” ao site do Arquivo Nacional do Ministério da Justiça, no
qual você poderá encontrar a história do Judiciário no Brasil: http://www.
arquivonacional.gov.br/br.

182
A estrutura jurídica inicia no Brasil nas mãos dos capitães-donatários, que
recebiam amplos poderes para administrar a economia e organizar a vida civil na terra.
Com o fracasso do sistema de capitanias hereditárias é criado o sistema de governo-
geral, que incluía a figura do ouvidor-geral, que era o cargo mais elevado na hierarquia
judiciária da colônia, buscando-se, assim, diminuir o poder dos capitães-donatários, até
que, em 14 de abril de 1628, revoga-se, expressamente, o privilégio dos capitães de
fazerem justiça em suas terras. O ouvidor recebia recursos vindos de ouvidores das
comarcas, mais conhecida por ação nova, como jurisdição originária, conflitos que
se dessem a uma distância de dez léguas de sua sede ou estrada. De suas decisões
era possível recorrer à Casa de Suplicação em Lisboa. Embora tenha sido criado
pelo Regimento de 1587, apenas em março de 1609, instalou-se, propriamente, um
tribunal régio no Brasil: o Tribunal de Relação da Bahia, que era constituído por dez
desembargadores, todos letrados – um chanceler, três desembargadores de agravos,
um ouvidor-geral do cível e do crime, um juiz dos feitos da coroa, fazenda e fisco, um
provedor de defuntos e resíduos, dois desembargadores extravagantes e o governador-
geral, que teria assento como Governador da Relação. Esses tribunais deram origem aos
atuais Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros.

FIGURA 4 – PAÇO DO TRIBUNAL DE RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - 1751

FONTE: <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=2776>. Acesso em: 11 abr. 2017.

O perfil era o de homens aptos e experientes que iriam presidir o Tribunal


brasileiro subordinado à Casa de Suplicação, desfrutando dos mesmos privilégios dos
desembargadores metropolitanos.

183
DICA
A Casa de Suplicação era o tribunal diretamente ligado ao poder real
que inicialmente incluía as atividades do Desembargo do Paço. Com a
reforma das Ordenações aprovadas em 1595, mas em vigor em 1603,
atualmente, conhecida como Ordenações Filipinas, a administração
metropolitana era regida pelo monarca que poderia ser substituído
por uma junta de governadores e contava com uma série de órgãos de
apoio, a começar pelo Conselho de Estado, que se reunia ocasionalmente
pela convocação do rei para assessorá-lo em questões complexas. O
mais constante era o Desembargo do Paço, que se reunia diariamente e
às sextas despachavam com o rei. Além de exercer funções consultivas,
julgava as questões que, por causa de foros especiais, superavam a
alçada da Casa de Suplicação, os recursos às decisões da mesma e os
conflitos de jurisdição entre ela e a Casa de Cível. Eram de competência
exclusiva do Desembargo do Paço os pedidos de legitimação, restituição
de fama, findas, graças e perdões, emancipação de menores etc. Junto
à Casa de Suplicação e ao Desembargo do Paço existia um tribunal
especial, com competência privativa em causas que envolvessem a
Igreja ou os membros das ordens militares-religiosas. Era a Mesa da
Consciência e Ordens, que também assessorava o Rei.

Entretanto, conforme narra Wolkmer (2007), apesar do Tribunal de Relação ter sido
oficializado em 7 de março de 1609, com a invasão holandesa foi abolido em 1626, e res-
taurado posteriormente em 1652. A partir do século seguinte expandem-se os Tribunais
de Relação no Brasil – Rio de Janeiro em 1751, Maranhão em 1812, Pernambuco em 1821.

Nas palavras de Schwartz (1979, p. 58), “os burocratas que iriam constituir a
magistratura brasileira eram um grupo muito bem particularizado que representava a
espinha dorsal do governo real”.

Para serem nomeados a Desembargo do Paço, exigia-se o requisito de ser


formado em Direito por Coimbra e ter exercido a profissão por, no mínimo, dois anos.
Porém, para o ingresso na Universidade deveria ser o futuro bacharel de “raça pura” –
com limites de carreira para os que tivessem a “mancha” de serem “cristãos novos” –,
ortodoxos na sua religião e politicamente leais, originando a maioria da pequena nobreza
e da classe de burocratas.

A prova de conhecimento jurídico para a inscrição no quadro de magistrado era


precedida de inúmeras declarações testemunhais sobre a vida pregressa, atividades e
reputação do candidato, mais especificamente, buscava-se a garantia de que não havia
“contaminação de sangue de mouro, mulato, judeu ou qualquer outra raça infecta”
(SCHWARTZ, 1979, p. 58). Ainda a comprovação de que os pais e avós, no momento da
nomeação, não tivessem atividades manuais, artesanais e prática de comércio varejista,
exceto se houvessem pertencido ao senado da Câmara ou outro órgão de privilégio
especial no funcionalismo real.

184
Os magistrados coloniais, graças à política da coroa portuguesa, formavam
no século XVII um grupo de burocratas elitizado – fiéis servidores reais – movidos por
generosas promoções e interesses pessoais.

O cargo representava prestígio, dinheiro e status, o que acaba por construir a


magistratura como um ramo da burocracia real e ao mesmo tempo um grupo social
específico. Os juízes europeus, sob a proteção da coroa, emergiram como um grupo que
se viu com o direito de exigir privilégios e símbolos que até então pertenciam à nobreza,
chegando a criar justificativas para sua nobreza.

No século XVIII, na Europa Ocidental, os juristas argumentavam que o


conhecimento das leis literalmente enobrece o indivíduo e, portanto, deveriam ser
considerados iguais aos nobres, e a coroa, como detentora dos símbolos que garantiam
a ascensão social, para vincular os magistrados a seus interesses, fazia concessões.
Entretanto, no império português, chama atenção Schwartz (1979), a magistratura não
se tornou uma nobreza distinta por seu cargo ou função.

Individualmente, o magistrado poderia ascender à nobreza pelo casamento


ou por título conferido pela coroa, mas não chegando a competir com a aristocracia,
porque seus interesses eram ditados pelo rei, no entanto isso não impediu que na
colônia brasileira se formasse um grupo característico de burocratas da justiça que
souberam aliar as funções e fórmulas burocráticas às relações pessoais de parentesco. É
o abrasileiramento da burocracia, descrito como procedimentos pessoais e profissionais
que se confundem e se autossustentam.

Ao chegar na colônia, além de sua família, o juiz poderia agregar parentes, afi-
lhados, empregados, escravos; enfim, um grupo de pessoas que serviam como inter-
mediários entre o magistrado e as demais pessoas da sociedade, o que permitia uma
“facilitação de caminho” até o juiz. Por outro lado, ao estender sua proteção a um grupo
próximo, o magistrado também cumpria parte de seu papel profissional: protetor, padri-
nho, marido e pai. E, é claro, sem deixar de lado sua obrigação religiosa, o que lhe dava
vantagens sociais. Por essa razão, os magistrados tornavam-se benfeitores de igrejas,
conventos e ordens religiosas, e não raras vezes, na condição de ilustres funcionários
reais, assumiam papéis de liderança. Os pesados encargos financeiros de uma vida de
ostentação não podiam ser arcados com os já altos salários e gratificações recebidas.

Rapidamente, os juristas brasileiros perdiam interesse intelectual, apesar de


sua formação universitária. Não há entre os magistrados brasileiros da época colonial
autores cujos trabalhos são lembrados, apesar de estarem sempre presentes em
reuniões intelectuais.

Sem dúvida, a melhor leitura a respeito dos magistrados no Brasil Colonial é de


Gregório de Mattos, que com os seguintes versos descreve a justiça:

185
E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça Bastarda, vendida, injusta.

Seu interesse particular pela administração da justiça no Brasil é por ter sido
letrado em Coimbra e magistrado real em Portugal. Seus versos não mostram os juízes
como seres sem rosto, mas como pessoas em seu cotidiano, envolvidos essencialmente
em duas esferas: poder e corrupção. Seus versos renderam-lhe a deportação para Angola,
pois não poupava cáusticas palavras para descrever o sentido do “abrasileiramento da
magistratura real”.

Apesar dos versos do “Boca do Inferno”, como era chamado Gregório por seus
inimigos, não representarem perigo para a autoridade e o cargo exercido pelos juízes,
deixavam evidente o nível incontrolável de corrupção que havia atingido o exercício
da justiça no Brasil em fins do século XVII. Descrevia os burocratas judiciais – juízes,
escrivães, tabeliães etc. – como pedaços cortados de um mesmo tecido.

Apesar de serem sempre acusações pessoais e não ao sistema como um todo,


seus versos deixavam evidente o comprometimento no exercício da justiça.

Por essa razão, dizia que um magistrado recebia suborno tanto do acusado
como do acusador e por isso era mais fácil chegar o “juízo final do que a sentença”.

NOTA
Gregório de Mattos e Guerra, conhecido como “Boca do Inferno”, nasceu na Bahia em
23/12/1636 em uma família de proprietários rurais, empreiteiros de obras e funcionários
administrativos de ascendência portuguesa. Estudou no Colégio dos Jesuítas da Bahia
até 1642, quando vai para a Universidade de Coimbra, onde se forma em Cânones em
1661. Após atestar ser “puro de sangue” é nomeado juiz de fora em Alcácer do Sal, em
1663. Teve brilhante carreira como magistrado em Lisboa, reconhecido com sentenças
publicadas pelo jurisconsulto Emmanuel Alvarez Pegas. Retorna para o Brasil em 1683,
depois de 30 anos, para assumir o cargo de Desembargador da Relação Eclesiástica e,
mais tarde, tesoureiro-mor da Sé, um ano após ter tomado ordens menores. Entretanto, é
destituído do cargo por se recusar a usar batina e acatar ordens superiores. Começa então
a satirizar os costumes e as classes sociais baianas, as quais chamará de “canalha infernal”.
Escreve com letras corrosivas e eróticas. Por sua vida livre de “homem solto sem modos
cristãos” é denunciado à Inquisição em Lisboa em 1685 por falar mal de Jesus Cristo e não
tirar o barrete da cabeça quando passa uma procissão em sua frente, mas o feito não tem
prosseguimento. Por seus poemas e sátiras contra o governador Antonio Luiz Gonçalves
da Câmara Coutinho, a quem chamava de “fanchono beato”, é ameaçado de morte. Até que
um complô o prende e envia-o a Angola sem direito de voltar à Bahia. Em Luanda, no ano
de 1694, auxilia o governo local a combater uma conspiração militar e em troca recebe a
permissão para voltar ao Brasil, mas para Recife, devendo ficar longe da Bahia e de seus
desafetos. Morre em 1695 vítima de uma febre contraída em Angola.

186
FONTE: <http://www.academia.org.br/academicos/gregorio-de-matos/biografia>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

Pelo relato da época, o exercício da justiça brasileira era venal e facilmente


subvertido. Os critérios de análise processual eram pessoais, econômicos e sociais, sem
que isso, entretanto, comprometesse os interesses reais, funcionando como uma certa
flexibilização frente à dureza da estrutura metropolitana.

Quanto mais se expandia a colônia, mais cresciam a burocratização e as


oportunidades de corrupção, o que não significava, necessariamente, ilegalidade, mas
o uso de artifícios jurídicos para benefício próprio ou de um apadrinhado, ou mesmo, o
uso do cargo para obter vantagens pessoais diretas ou indiretas.

Faoro (2000) demonstra que a minoria colonial, formada por um quadro


administrativo, e o estado-maior de domínio comandam, controlam e disciplinam a
economia e os núcleos humanos, tornando-se esses efetivamente os donos do poder. As
formas jurídicas vão servindo de freio à emancipação colonial. Os juristas, como uma espécie
de “aristocracia” local, comandavam a vida na colônia, fazendo de seus procedimentos
instrumentos eficientes de dominação e perpetuação da ordem exploradora.

Há que se reconhecer que o aparato jurídico-político colonial significou a


transposição da estrutura metropolitana para a colônia, porém, com traços muito
peculiares, a exemplo da justaposição da justiça-oficial e da privada exercida nos
sertões e nos latifúndios, cujo poder não era contestado. A justiça local, que servia
de fortalecimento do mandonismo, sempre foi reconhecida como uma espécie de
contrapeso à ineficiência da justiça real, à venalidade dos burocratas e à corrupção dos
magistrados.

187
Ainda cabe lembrar o papel desempenhado pela Igreja Católica na administração
da justiça com seu Tribunal do Santo Ofício. Nas palavras de Novinsky (1983, p. 90),
serviu, mais do que instrumento religioso:

como um sistema político de dominação e onde não havia lugar para


os judeus, cristãos novos, muçulmanos, negros, mulatos, ciganos,
heterodoxos ou contestadores de toda espécie. Através de seu
sistema de ameaças, [...] de perseguição, [...] de tortura, a Inquisição
garantiu a continuidade da estrutura social do antigo regime, e a
religião preencheu sua função político-ideológica.

Apesar de não ter havido um Tribunal Inquisitorial no Brasil, ele existia como
presença possível, pois sempre que necessário, os acusados brasileiros eram julgados
pelo Tribunal Inquisitorial em Lisboa.

As chamadas “Visitação do Santo Ofício” ocorreram na colônia brasileira,


sobretudo na fase de mineração de ouro, apesar do poder delegado ao Bispo da Bahia
pelo Santo Ofício em 1580, quando foram registradas inúmeras heresias, sadomias,
feitiçarias, bigamias, blasfêmias etc.

DICAS
Há, em http://bit.ly/3Xyk8LB, informações acerca da primeira visitação do
Santo Ofício no Brasil. É muito interessante e você poderá enriquecer a sua
cultura jurídica.

FIGURA 5 – CAPA DO DOCUMENTO PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ÀS PARTES DO BRASIL

FONTE: <http://www.biblioteca.pe.gov.br/?pag=&cat=41&art=114>. Acesso em: 11 maio 2017.

188
Em síntese, é oportuno destacar o pensamento de Wolkmer (2007, p. 71), quando
afirma que “a especificidade da estrutura jurídica da colônia brasileira não permitiu o
exercício da cidadania e as práticas políticas descentralizadas”.

Forjada em meio a um passado latifundiário, patrimonialista, senhorial e


escravista, cuja dinâmica fez surgir uma cultura jurídica singular marcada por ideias e
práticas paradoxais.

Esse é o horizonte da cultura jurídica brasileira colonial dominante. Legítima


herdeira de um pensamento condicionado pelo mercantilismo e administração
burocrática centralizada, construída sob uma mentalidade escolástico-tomista e elitista.
Uma mentalidade condicionada a servir a Deus e ao rei, e, portanto, incapaz de ser
comprometida com qualquer nova ideia que viesse a representar o ideário renascentista
moderno, mais próximo do humanismo emergente, já que este significava a “expansão
protestante”, que teve como maior expressão de resistência na Europa a Península Ibérica.

Assim, longe do ideário iluminista moderno que veio a representar a possibilidade


de construção de uma lógica racional crítica ao obscurantismo medieval, a cultura
jurídica colonial brasileira definiu-se sacralizando a tradição e o servilismo, o que permitiu
a consolidação e reprodução das ideias e valores da elite mercantilista portuguesa.

Nesse sentido, assinala Alberto Venancio Filho (1982) que, por força da Companhia
de Jesus na Universidade de Coimbra, a cultura predominante até meados do século
XVIII se mantinha refratária às transformações reivindicadas pelo Renascimento, o que
é claramente evidenciado num edital do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra
de 1746, que determinava:

[...] nos exames ou lições, conclusões públicas ou particulares se não


ensine defensão ou opiniões novas pouco recebidas, ou inúteis para
os estudos das ciências maiores, como são as de René Descartes,
Gassendi, Newton e outros, nomeadamente qualquer ciência que
defenda os átomos de Epicuro ou outras quaisquer conclusões
opostas ao sistema de Aristóteles [...] (VENANCIO FILHO, 1982, p. 5).

Tal panorama é alterado com a Reforma do Marquês de Pombal, como já


considerado, na segunda metade do século XVII, quando os jesuítas são expulsos da
metrópole e da colônia, e seus reflexos na tentativa de emergência de uma cultura
moderna, o que irá marcar a transição para o século XIX e a busca de superação da
herança colonial.

Em síntese, compreender o direito e a gestão da justiça no Brasil Colônia é


a possibilidade de compreender as origens de nossa profunda desigualdade social e
negação de cidadania que até os dias atuais procuramos nos livrar. Não é difícil perceber
as razões que fazem de nosso direito um instrumento elitizado e distante ainda de
interesses nacionais.

189
A intenção de Portugal era construir uma elite burocrática defensora dos
interesses reais que defendesse as leis metropolitanas. Desde aí foi sendo criado um
sistema de compadrio que aliava as elites metropolitanas às elites canavieiras. E assim,
a elite letrada e pseudoburocrática usufruía dos “benefícios” do poder em troca do
desrespeito à lei e à justiça.

190
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A estrutura administrativa do Brasil Colônia teve, como característica, a criação de


um aparato político e jurídico capaz de garantir os interesses metropolitanos.

• As bases das instituições jurídicas brasileiras estão intimamente ligadas: a um


passado escravocrata e patrimonialista, marcado pela dominação de uma elite
agrária local e submissa aos interesses econômicos metropolitanos.

• O Direito brasileiro, na sua origem colonial, mais se aproxima de arbítrio e favoritismo


do que propriamente a realização de justiça.

191
AUTOATIVIDADE
1 Observe a gravura de Debret a seguir:

JEAN-BABTISTE DEBRET - UM JANTAR BRASILEIRO, 1827

FONTE: <http://historiaporimagem.blogspot.com.br/2011/10/jean-baptiste-debret-um-jantar.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.

A figura é uma das mais reproduzidas nos livros de história do Brasil, por caracterizar
a sociedade colonial brasileira, marcada por profundas desigualdades sociais. Após
detalhada observação na gravura e associando com o estudo realizado, faça uma breve
dissertação discutindo a relação entre as bases políticas e econômicas do Brasil Colônia
e a ordem jurídica.

192
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A
CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL

1 INTRODUÇÃO
Mudanças sensíveis ocorrem na cultura jurídica brasileira no século XIX, que se
inicia sob o signo da modernidade. As revoluções burguesas e o absolutismo ilustrado,
que na Europa abriam as portas para compreender o humano como valor fundamental
da sociedade, encontravam um forte contraste com o sistema colonial brasileiro, cuja
marca era a violência imposta aos trabalhadores escravizados e a dinâmica contraditória
da relação metrópole-colônia, que acabou por definir um espaço subjugado.

Apesar disso e das resistências contra a centralização receberem golpes fatais,


quer pelas mãos diretas das milícias reais, quer de seus braços locais, o Brasil torna-se
independente em 1822.

Uma dispersa, desarticulada e fluida nação emerge entre conflitos e dilaceração


das antigas capitanias. O cuidado maior era o de manter a unidade política, que, como
destaca Faoro (2000, p. 315-316), “tratava-se de tarefa gigantesca e incerta diante dos
enormes obstáculos, não apenas geográficos, mas sobretudo políticos”.

É evidente que uma sequência de fatos – Abertura dos Portos (1808), criação
do Reino Unido do Brasil (1815) e, finalmente, a Revolução do Porto (1820) – acelerou o
processo que mobilizou as elites locais para a independência.

Para tal processo, tornou-se necessária a construção de uma cultura jurídica


nacional, que encontra no liberalismo uma proposta doutrinária a partir da qual foram
edificados os primeiros cursos jurídicos, uma elite jurídica e o edifício legal.

Assim, a tarefa primeira é compreender a natureza e especificidade desse


“liberalismo caboclo” presente como cimento da cultura jurídica em construção,
sobretudo para compreender a profunda distinção entre o revolucionário liberalismo
europeu e o brasileiro, e como este último serviu de suporte aos interesses das
oligarquias vinculadas à monarquia imperial.

A face “cabocla” do liberalismo brasileiro é muito bem conhecida. Por isso, com
razão comenta Wolkmer (2007, p. 76):

193
Eram profundamente contraditórias as aspirações de liberdade entre
diferentes setores da sociedade brasileira. Para a população mestiça,
negra, marginalizada e despossuída, o liberalismo, simbolizado na
Independência do país, significava a abolição dos preconceitos de cor,
bem como a efetivação da igualdade econômica e a transformação
da ordem social. Já para os estratos sociais que participaram
diretamente ao movimento de 1822, o liberalismo representava
instrumento de luta visando à eliminação dos vínculos coloniais. Tais
grupos, objetivando manter intactos seus interesses e as relações
de dominação interna, não chegaram a reformar a estrutura de
produção nem a estrutura da sociedade.

O liberalismo, como observa Macridis (1982, p. 38-41), nas suas diferentes


dimensões, ético-filosófica, econômica e política-jurídica, representou o ideário de cunho
individualista sustentado pela burguesia europeia contra o absolutismo monarquista,
capaz de reproduzir novas condições materiais, sociais e políticas que permitiam sua
ascensão e justificativa de poder. Entretanto, no Brasil, essa doutrina era conhecida por
uma pequena parcela de letrados inovadores, e até revolucionários, já que a maioria da
população era de analfabetos, escravos e uns poucos trabalhadores livres para os quais
os “novos ventos da liberdade europeia” não sopravam nem como “leve brisa”.

O liberalismo brasileiro serviu tão bem aos interesses das oligarquias locais que
pôde conviver com a institucionalização da escravidão, tornando-se uma aparente
ambiguidade, porém a marca da política brasileira: uma retórica liberal e uma prática
oligárquica, um conteúdo conservador e reacionário sob a aparência da democracia.

Costa (1985) identifica o liberalismo brasileiro como uma “ideologia de tantas


caras” que serviu em “momentos distintos diferentes grupos com intenções diversas”:

• A face heroica: própria dos movimentos que antecederam a independência, a


antidemocrática – dos revolucionários da primeira Constituinte.
• A face moderada: dos adeptos da monarquia constitucional, a radical – dos
reformistas da fase regencial.
• A face conservadora: que acabou por impor-se e defendida pela minoria
antidemocrática apegada às práticas do clientelismo e da patronagem.

Em síntese, o liberalismo no Brasil foi singular, pois apesar de defender a


democracia representativa, negava a participação popular, atribuindo aos poucos
letrados a tarefa de conduzir as instituições políticas e jurídicas. Enfim, um liberalismo
conservador, elitista, antidemocrático que nega na prática suas próprias convicções.

194
O processo de transição social produzido pela independência trará a
marca desta lógica liberal.

Apesar disso, salienta Fernandes (1974, p. 31) que a independência se constituiu


numa revolução social por ter produzido simultaneamente o fim da era colonial e o advento
da sociedade nacional. As relações de poder modificam-se na medida em que deixam de
se manifestar “[...] como imposição de fora para dentro, para organizar-se a partir de dentro,
malgrado as injunções e as contingências que iriam cercar a longa fase do “predomínio
inglês” na vida econômica, política e diplomática da nação” (FERNANDES, 1974, p. 31-32).

Sem dúvida, os donos do poder não se insurgiram contra a estrutura da socieda-


de colonial, mas contra o limite imposto pelo sistema que acabava por neutralizar a capa-
cidade desta elite em dominar as diferentes esferas da ordem social, política e econômica.

Essa é, segundo Florestan Fernandes (1974), a lógica que permite compreender


por que as elites nacionais, sem negar a ordem social dominante, atuaram na esfera
política, adaptando e integrando internamente a herança colonial com os interesses
impostos pela independência.

Portanto, o novo momento brasileiro irá se caracterizar como uma inovação


aliada ao poder por parte das oligarquias e a enorme marginalização da população livre.

A independência pode ser compreendida como mudança de status político-


jurídico sem mudança material e social, o que justifica a perpetuação das relações
sociais de dominação internas ao longo da construção da sociedade nacional.

FIGURA 6 – O GRITO DO IPIRANGA - PINTURA A ÓLEO DE PEDRO AMÉRICO - MUSEU DO IPIRANGA

FONTE: <http://www.mp.usp.br/museu-do-ipiranga>. Acesso em: 11 abr. 2017.

195
Para muitos historiadores, essa é uma das razões da defesa limitada, tosca e
egoísta, porém eficaz, dos ideais liberais por parte das elites nacionais, pois apenas era
defendido aquilo que, num jogo de probabilidades concretas, poderiam efetivamente
desfrutar, como o poder de igualdade e fraternidade dos interesses inerentes ao seu
papel definido da estrutura de poder dominante.

É evidente que o liberalismo, ao construir a base ideológica e política para a


transição colonial, tornou-se, ao mesmo tempo, o elemento mais destacado da cultura
brasileira durante a fase imperial e o ideário para a edificação do Estado nacional, para
a “ideia de Brasil”.

NOTA
O projeto liberal no Brasil, que norteou o processo de independência,
não significou uma única aspiração, mas sim o resultado de distintos
segmentos, radicais e moderados conservadores, que concordavam num
aspecto: o processo de independência e construção nacional se operaria
com a ausência de participação popular.

O resultado dos conflitos entre os diferentes segmentos liberais foi a vitória dos
conservadores, pensamento claramente explícito nas palavras de Evaristo da Veiga, líder
da independência, citado por Lopes (2012, p. 279): “Não temo que o Brasil se despolitize,
temo que se anarquize, temo mais hoje os cortesãos da gentalha que aqueles que
cheiram as capas do monarca”.

Os radicais “souberam aceitar” a monarquia como forma de sobrevivência. Este


fato demonstra a paradoxal conciliação resultante da estratégia liberal-conservadora
capaz de permitir o clientelismo e a cooptação aliada a uma cultura jurídico-institucio-
nal formalista, retórica e ornamental. Este “pacto conciliador” estará presente na judi-
cialização do processo de independência, sendo sua face visível o bacharelismo liberal.

2 A CULTURA JURÍDICA NACIONAL: O BACHARELISMO


Com a independência política, a grande tarefa será a de construir autonomia
jurídica. Para tanto, serão usadas duas grandes estratégias: a elaboração de uma
legislação própria e a criação dos cursos de Direito.

Se, de um lado a primeira tarefa era a de construir o aparato legal institucional


da nação independente, de outro, era necessária a formação de uma elite jurídica
própria e afinada com os ideais da independência. A implantação dos cursos jurídicos
no Brasil era a alternativa possível frente à perda do único centro formador de juristas

196
de língua portuguesa, a Universidade de Coimbra, de um lado, e o desaparecimento
dos centros jesuíticos de ensino. Sem dúvida, o ponto de partida para a construção da
ordem político-jurídico nacional era a instauração dos cursos na medida em que este
era o curso fornecedor de importantes quadros para o Estado imperial, já que a grande
maioria de bacharéis era absorvida pelo serviço público, por serem mais raros os cargos
para magistrados e advogados.

A Carta de Lei de 11 de agosto de 1827, que implanta os primeiros cursos


jurídicos do Brasil de São Paulo e Recife, reflete, segundo Wolkmer (2007, p. 80), “a
exigência da elite que veio a suceder a dominação colonial preocupada com a estrutura
de poder e a preparação de uma camada burocrática administrativa capaz de assumir o
gerenciamento nacional”.

FIGURA 7 – FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO

FONTE: <http://ead.stj.jus.br/ead/mod/page/view.php?id=3009>. Acesso em: 11 abr. 2017.

Tais centros servirão como reprodutores da legalidade oficial positiva, ou


seja, legitimadores dos interesses do poder, distantes de qualquer compromisso com
expectativas sociais. Deve-se lembrar que entre os ministros de Estado de 1831 a 1853,
mais de 45% eram magistrados, que somando em certos períodos os advogados que
exerciam tais funções, chegava-se a 60%.

Assim, os cursos de Direito assumiram as funções de serem simultaneamente


defensores do ideário liberal e formadores da elite burocrática devidamente adestrada
para o exercício do poder.

Entretanto, ao buscar construir suas próprias escolas de Direito, o ensino


jurídico brasileiro reproduzia um modelo alienígena, cosmopolita, ilustrado e literário,
divorciado do quadro agrário rural predominante, e excluindo a grande massa popular
marginalizada.

197
Apesar de tais escolas tratarem de formar burocratas do poder dentro da lógica
do conservadorismo, é necessário que se assinale algumas tendências inovadoras.
A Faculdade de Direito de Pernambuco, apesar de comungar a tendência comum
do ensino jurídico brasileiro, vai ser o cenário da emergência de um movimento que
representará a possibilidade de novos horizontes mais afinados com as modernas
correntes de pensamento emergentes, o que poderia representar uma alternativa
para o mimetismo português e francês. Este movimento de forte influência germânica,
autodenominado Escola de Recife, será considerado o mais avançado de sua época, e
terá como expoente a figura de origem social humilde e mestiça: Tobias Barreto. Sobre
a importância deste movimento, destaca Filho (1982, p. 96):

O movimento da Escola do Recife representava, contudo, e talvez


pela primeira vez, a realização daquela grande tarefa a que se tinham
proposto as faculdades de Direito, de representarem grandes centros
de estudo das ciências sociais e filosóficas no Brasil, mas da qual, via
de regra, se vinham omitindo ou escapando, pois trazia o movimento
no seu bojo um problema de transformação de ideias no campo da
crítica literária.

A Escola de Recife entendia que para dotar o Brasil de um aparato jurídico era
necessário compreender a sociedade brasileira, sua natureza e construção. Defendia
que o jurista deveria ser algo mais que um rábula. A intenção era a de compreender
o fenômeno jurídico a partir de uma pluralidade de conhecimentos que resultavam
essencialmente do evolucionismo e do monismo. Sem dúvida, esses pensadores
jurídicos, mais distantes do centro do poder, viam-se como vanguarda.

Já São Paulo, centro privilegiado do bacharelismo liberal e da elite agrária,


orientou-se para a formação de burocratas e militantes políticos. No espaço do Largo
São Francisco foram intensas as defesas em favor dos direitos individuais e liberdades
políticas.

As lutas abolicionistas e republicanas eram parte da vivência acadêmica que


mais se caracterizava como autodidata, pois o ensino jurídico propriamente era de má
qualidade, permitindo que inúmeros acadêmicos aderissem à militância política, sem que,
entretanto, deixassem de ser cooptados pela burocracia estatal. O comprometimento
da qualidade do ensino era denunciado em 5 de agosto de 1831 pelo aviso do Ministro do
Império José Lino Coutinho, sobre o desleixo e negligência escandalosa de professores
do curso de Direito, que eram indiferentes à ausência dos acadêmicos e aprovavam
indiscriminadamente.

Comparativamente, enquanto a Escola de Recife imaginava produzir pensadores


da ciência do Direito, o Largo São Francisco de São Paulo era o celeiro de políticos e
burocratas do Estado Imperial.

Recife exaltava seu papel como núcleo intelectual e formador de ideias. São
Paulo, apesar da fragilidade intelectual, colocava-se como vanguarda política nacional
de onde partia o direcionamento político-jurídico brasileiro. Entretanto, seja como for,

198
em meio a um ensino de baixa qualidade, os juristas tornam-se quase autodidatas
que continuavam a reproduzir ideias tradicionalistas e formalistas de direito, mantendo
como espaço de discussão política não o espaço público, mas o privado: o interior do
Salão do Imperador e os espaços domésticos, fato característico de uma sociedade
aristocrática que foi capaz de construir um corpo normativo legal de fachada liberal que
pudesse conviver com o escravismo e religião de Estado.

Os juristas brasileiros que vão sendo forjados no Brasil independente


caracterizam-se pelo apego ao passado e a valorização de uma cultura retórica e vazia,
que não soube levar em conta a diversidade e especificidade brasileira.

Por essa razão, afirma Caio Prado (2012, p. 197) que o direito brasileiro era um
direito artificial e inaplicável que deixa de lado as particularidades nacionais, sendo um
exemplo significativo a questão da terra: “[...] num país agrícola e na maior parte ainda
deserto, e que apesar disto nunca foi devidamente tratado nas leis brasileiras. O que
sempre tivemos na matéria foi copiado de legislações europeias, onde naturalmente a
situação é inteiramente outra”.

Um exemplo disso é a codificação civil brasileira de 1916. Mais próxima do


conservadorismo do que da inovação, reproduziu mais valoração ao patrimônio privado
do que às pessoas. Fiel retrato do modelo social, político, ideológico e cultural de sua
época; muito do qual se perpetuou até o momento. Sem dúvida, trata-se da ritualização
e dogmatização das raízes que ordenavam, e de certa forma, ainda ordenam, as
relações materiais e pessoais brasileiras. O resultado desse passado, no tocante à
legislação civilista, é que permanecem irresolvidas questões sociais dramáticas, como
a concentração de riqueza, que foi funcionando historicamente como um perverso
mecanismo que nos dias de hoje segrega e estigmatiza milhões de brasileiros, pois, sem
dúvida, o modelo civil nacional foi idealizado para assegurar e perpetuar os interesses e
privilégios da oligarquia agrária.

Em síntese, a cultura jurídica do século XIX, que vai engendrar o direito do século
XX, vigente atualmente no Brasil, foi marcada por um forte individualismo e formalismo
legalista, projetando uma lógica singular, própria de uma nação que emergiu buscando
aliar os princípios individualistas liberais burgueses importados do modelo europeu,
com o legado colonial que instituiu práticas burocráticas-administrativas orientadas e
ajustadas para a garantia e a proteção dos bens patrimoniais, ignorando, na prática, os
interesses e necessidades da grande maioria que compõe o povo brasileiro. São oportunas
as palavras de Wolkmer (2007, p. 125) quando afirma que “[...] os limites, o artificialismo e
a pouca funcionalidade desse sistema de legalidade formalista e conservador propiciam
as condições favoráveis para a sequência de confrontos intermináveis e os horizontes
de ruptura com os procedimentos de justiça oficial e estatal”.

199
É exatamente sob a ótica desta cultura jurídica que vai ser construída toda
legislação nacional. Um saber técnico-normativo que vai, dentro de padrões rigorosos
de objetividade, pretender seguir um seguro caminho para a manutenção e reprodução
do modelo de direito legado por este passado marcado pela exclusão e dominação,
alheio a qualquer interesse e compromisso de emancipação.

DICAS
A fim de melhor compreender a evolução histórica da legislação nacional,
sugere-se a leitura do texto Brevíssimas Notas sobre a História do Direito e da
Justiça no Brasil, de Jefferson Carús Guedes: http://www.confluencias.uff.br/
index.php/confluencias/article/viewFile/303/228.

O colonialismo metropolitano imposto ao Brasil a partir do século XVI trouxe


como uma de suas faces a imposição do modelo epistemológico hegemônico na Europa
através da violência. Violência através da repressão de outras formas de saber existentes
na colônia e também pela assimilação de um saber que se anuncia como universal e
verdadeiro.

A cultura jurídica nacional desenvolveu-se numa matriz epistemológica que muito


bem cumpriu o papel de reprodução do direito hegemônico, tornando-se instrumento
de legitimação de um passado comprometido com a ausência de compromissos de
legítima emancipação nacional. Enfim, uma concepção vazia e negadora de referenciais
que possam definir um horizonte compreensivo legitimamente justo para com o que
secularmente foi excluído do direito brasileiro: valores e necessidades capazes de
promover a emancipação política e social dos empobrecidos, dos ausentes e dos
invisibilizados. Um “direito das ausências” responsável por ter a “balança” da justiça
pendido para “o lado” mais forte política e economicamente.

200
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Com a independência política brasileira em 1822, o grande desafio foi a construção


da autonomia jurídica, daí a criação das primeiras Faculdades de Direito e elaboração
da legislação nacional.

• O liberalismo, apesar das contradições no Brasil, constituiu-se no grande ideário


norteador do processo de independência, servindo seus princípios de fundamento
da legislação nacional.

• A cultura jurídica brasileira deve ser compreendida a partir das grandes contradições
e paradoxos da sociedade nacional, que buscou conciliar os interesses das elites
locais e as necessidades sociais.

201
AUTOATIVIDADE
1 Considere o seguinte texto: Com a Independência do país, o liberalismo acabou cons-
tituindo-se na proposta de progresso e modernização superadora do colonialismo,
ainda que, contraditoriamente, admitisse a propriedade escrava e convivesse com a
estrutura patrimonialista de poder. Ao conferir as bases ideológicas para a transpo-
sição do status colonial, o liberalismo não só se tornou componente indispensável
na vida cultural brasileira durante o Império, como também na projeção das bases
essenciais de organização do Estado e de integração da sociedade nacional.

A partir do estudo realizado, por que o liberalismo brasileiro foi contraditório? Quais são as
contradições?

202
UNIDADE 3 TÓPICO 4 -
OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO

1 INTRODUÇÃO
A entrada no século XXI, embora não triunfal, nas terras brasileiras foi feita sob a
égide da democracia aliada à esperança – nunca perdida – de reafirmação de cidadania.

É nesse contexto que o sistema judiciário internamente assumiu o papel


inédito de assegurar não apenas o conjunto de direitos fundamentais duramente
conquistados, mas o de também manter a estabilidade política numa historicamente
frágil ordem democrática. Revisando a história do Direito brasileiro, não é difícil perceber
que esse protagonismo é muito diferente do tradicionalmente assumido de servir de
mero instrumento de conferir eficácia ao sistema normativo estabelecido por um poder
político raramente comprometido com interesses populares e fortemente marcado pela
herança colonial.

Na trajetória de construção do Estado brasileiro, o Judiciário esteve mais


ocupado em cumprir seu papel controlador e reprodutor dos interesses das elites e
organizar-se institucionalmente como aparato burocrático do poder. A bem da verdade,
o Judiciário não foi alvo de atenção nem das elites nem das forças progressistas, talvez
porque nunca representou obstáculo para aquelas, tampouco fonte de justiça social
para essas, mas acabou, em finais do século XX, assumindo um papel político do qual
não pode mais renunciar.

O novo sistema mundial neoliberal, adotado pelos países europeus, nos últimos
30 anos, encontrou o absoluto desmantelamento do Estado intervencionista – quer
o modelo desenvolvimentista das periferias e semiperferias mundiais, como Estado
Providência – e o fortalecimento do Estado de Bem-Estar Social relativamente avançado
nos países da Europa, marcado por fortes políticas sociais que aliam altos níveis de
competitividade com altos níveis de proteção social (SOUSA SANTOS, 2007).

A mudança política em tempos de neoliberalismo global, na leitura de Boaven-


tura de Sousa Santos, exige um Judiciário eficiente, rápido e independente para asse-
gurar o novo modelo de desenvolvimento que se assenta nas regras de mercado e nos
contratos privados, mas também, que responda às demandas sociais causadas pela
precarização dos direitos sociais e econômicos (2007).

203
Particularmente, no Brasil, sem que tenha um modelo de Estado forte em
políticas sociais, a redemocratização constitucional colocada em marcha com a
Constituição Federal de 1988 ampliou consideravelmente o leque de direitos, não
apenas em relação aos chamados direitos fundamentais, mas também aos novos
direitos, cujos titulares são sujeitos coletivamente identificados: consumidores, negros,
homossexuais, crianças e adolescentes, mulheres, indígenas, e tantos outros quantas
possibilidades de articulação social e política. Esse fato aumenta a expectativa social
de serem garantidos direitos anunciados constitucionalmente, mesmo com débeis
mecanismos de implementação, já que a nova ordem constitucional também prevê a
ampliação de estratégias e “instituições das quais se pode lançar mão para invocar os
tribunais, por exemplo, a ampliação da legitimidade para propositura de ações diretas de
inconstitucionalidade, possibilidade de as associações interporem ações em nome de
seus associados e a consagração da autonomia do Ministério Público” (SOUSA SANTOS,
2007, p. 18).

O novo constitucionalismo e a redemocratização brasileira conferiram ao


Judiciário um papel relevante: não apenas é visto como instrumento de viabilização de
direitos e garantias, como também a reconstrução e manutenção da ordem democrática.

Entretanto, a redemocratização aliada ao constitucionalismo construído nas


matrizes europeias que consagram direitos fundamentais – conquistados ao longo
de um processo histórico específico –, em terras brasileiras tem sido uma proposta
desacompanhada de políticas públicas e sociais capazes de conferir eficácia e
efetividade à nova ordem, ainda com agravante de existirem fortes resistências entre
juristas herdeiros de uma lógica cartesiana ainda reféns do ultrapassado paradigma
formal legalista de direito.

Pode-se afirmar que aí está uma das razões centrais para compreender o
porquê de, passados quase 30 anos de Constituição Democrática, ainda o Brasil é um
país em que os princípios democráticos fazem parte de uma mera intencionalidade nem
sempre ou raramente contemplada. “Para se ter uma ideia, o princípio constitucional da
ampla defesa ficou quase 15 anos sem ser aplicado nos interrogatórios judiciais, sem
que a doutrina e a jurisprudência – com raríssimas exceções – tivessem reivindicado a
aplicação direta da Constituição” (STRECK, 2017, p. 155). Evidentemente, sem esquecer
que ainda o “peso da balança” pende para um “lado”.

Se no passado colonial a face visível da exploração era a do escravo, em tempos


de globalização o resultado da perversidade sistêmica, que nos lembra Milton Santos,
são as vítimas do fascismo social.

O fascismo social não é, como lembra Boaventura de Sousa Santos (2001),


aquele criado diretamente pelo Estado, mas o produto de um sistema em que o nível de
competitividade tem a guerra como norma, e acaba num individualismo arrebatador e
possessivo que tudo coisifica, inclusive seres humanos.

204
Um sistema “que comanda outros subsistemas da vida social, formando uma
constelação que tanto orienta e dirige a produção da economia como também a pro-
dução da vida” (SANTOS, 2001, p. 48). As fragmentações resultantes da lei de mercado
rompem a solidariedade social, fazendo com que novas formas de perversidades sociais
sejam criadas.

Como resultado da nova ordem mundial neoliberal, são profundas as


desigualdades sociais, vivendo-se um cotidiano de exclusão.

FIGURA 8 – EXCLUSÃO SOCIAL - UMA ESTRANHA CONVIVÊNCIA

FONTE: <http://profwladimir.blogspot.com.br/2012/05/dados-brasil-desigualdades-sociais.html>. Acesso


em: 11 abr. 2017.

DICAS
Para melhor compreensão do tema, sugere-se a leitura do livro
Constitucionalismo, Descolonización y Pluralismo en América Latina, de Antonio
Carlos Wolkmer e Ivone Fernandes M. Lixa, em https://sociologiajuridica.
org/2015/04/19/livro-constitucionalismo-descolonizacion-y-pluralismo-
juridico-en-america-latina/.

205
No Brasil, a desigualdade e seletividade, sobretudo no circuito da violência
penal, reproduz sistematicamente processos de exclusão e vitimização aos setores
populares, desonrando e desrespeitando grupos sociais que compõem as zonas de
selvageria, expondo sofrimento e intimidade de seres humanos, que perversamente
são transformados em “descartáveis” por “terem rompido o contrato social” e, por isso,
transformados em seres desprovidos de direitos.

A exceção se torna regra nas áreas de exclusão e justificável para a prática do


extermínio do “perigoso”.

DICAS
Em http://www.mapadaviolencia.org.br/, você encontrará dados acerca da
violência no Brasil. Analise os dados!!! Realmente, são grandes desafios para
o direito!

2 A DIFÍCIL CONQUISTA DE DIREITOS


Já aprendemos, e ainda estamos lamentavelmente aprendendo no Brasil, que
as barbaridades cometidas contra seres humanos não se fundam somente no ódio,
na cobiça ou na estupidez, mas sim na ausência de reflexão, no distanciamento e
estranhamento, para usar a linguagem filosófica que permite a abertura de lidar com
o invisível, com o não dito, com o silenciado e com o que está “fora de ordem”. Talvez
em tempos de fascismos tão declarados seja chegado o momento de nos educarmos
como forma de nos protegermos da banalidade do mal, talvez assim possam ser menos
favoráveis e tenham mais pudor falas intolerantes e assassinas.

Caminhando para a segunda metade da primeira década do século XXI não


há muitas razões para otimismo. Vivemos uma espécie de ausência de esperança e
de futuro. Estamos enfrentando tempos difíceis e de perversidades inéditas tornando
quase utopia falar em Direito, sobretudo em Direitos Humanos.

Uma breve análise nos permite afirmar que é necessário reinventar a política e
repolitizar o Direito desde a participação popular na política, criando mecanismos para
resolução de conflitos de forma a estabelecer no Estado um poder popular e pluralista
cuja prática destina-se a resgatar grupos que se encontram em situação de subjugação
ou exclusão sem que consigam, por si mesmos, atender às necessidades. Dessa
maneira, simultaneamente, se enriquece a democracia com mecanismos participativos
diretos, resgatando o “constitucionalismo primeiro” que está além do convencional e
dominante.

206
Trata-se de reconhecer as novas realidades constituintes cotidianas cujos
atores, como sujeitos históricos, são os que dinamizam, desde a estrutura social, política
e econômica, e carregam em si a potencialidade transformadora que vai reconfigurando
a ordem jurídica a partir de uma lógica plural e democrática capaz de ampliar o
espaço jurídico para além do estatal, articulando saberes, práticas e ações coletivas
inovadoras até então pouco reconhecidas. Uma prática cujo espaço de investigação é
inesgotável, que busca identificar os elementos corriqueiros nas traduções das múltiplas
realidades – a jurídica e a coletivamente criada – para encontrar o comum, o ponto
inicial para a tradução, para novas práticas que possam colocar em diálogo os espaços
tradicionalmente considerados “jurídicos e não jurídicos”.

DICAS
Sugerem-se, como leitura, dois textos básicos:

1. Brevíssimas Notas sobre a História do Direito e da Justiça no Brasil.


Autor: Jefferson Carús Guede.
Disponível em: http://www.confluencias.uff.br/index.php/confluen-
cias/article/viewFile/303/228.

2. O capítulo III do livro de Antonio Carlos Wolkmer, História do Direito no


Brasil.
Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/WOLKMER,%20Ant%-
C3%B4nio%20Carlos.%20Hist%C3%B3ria%20do%20Direito%20no%20Bra-
sil%20(1).pdf.

Ainda são recomendados alguns filmes disponíveis na Internet, como:


Xica da Silva. Direção de Carlos Diegues, 1976.
Brava Gente Brasileira. Direção de Lucia Murat, 2000.
Mauá: O Imperador do Brasil. Direção de Sérgio Resende, 1999.
Lembre-se: a cultura jurídica se adquire de várias formas! Leia bons
romances!
Veja bons filmes e documentários!

207
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu:

• O passado histórico acabou por criar uma brutal realidade social no Brasil
contemporâneo, que tem exigido respostas nem sempre possíveis de serem dadas
com rapidez e eficiência.

• Mesmo com a ordem jurídica democrática implantada pela Constituição de 1988, não
conseguimos ser democráticos na prática, imperando um crescente e aterrorizante
fascismo social.

• Temos muitos desafios diante de nós e precisamos reinventar nossas práticas


jurídicas, buscando procedimentos mais eficientes e adequados a esse novo e difícil
tempo.

208
AUTOATIVIDADE
1 Considere a figura a seguir:

FONTE: <http://www.ncst.org.br/subpage.php?id=19708_24-04-2017_reforma-da-previd-ncia-agrava-de-
sigualdades-sociais-dizem-cnbb-oab-e-cofecon>. Acesso em: 11 abr. 2017.

O que lhe sugere? Há questões relativas ao Direito representadas? Comente.

209
210
UNIDADE 3 TÓPICO 5 -
DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E
DILEMAS

1 INTRODUÇÃO
Na entrada para o século XXI anuncia-se o esgotamento da modernidade.
A “liquificação” da modernidade, pergunta Zygmunt Bauman (2001, p. 9), “não foi
um processo que esteve desde o início presente no discurso moderno? Não foi o
“derretimento dos sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Não foi a
modernidade “líquida” desde sua concepção?” Os “sólidos” destruídos pela modernidade,
no final do século XX, para Bauman, passaram a apresentar sinais de maior liquidez.

FIGURA 9 - PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA, DE SALVADOR DALI (1931) - MUSEU DE ARTE MODERNA DE


NOVA YORK

FONTE: <https://mestresdapintura.com.br/blog/os-relogio-derretidos-de-dali/>. Acesso em: 11 abr. 2016.

Os confrontos passaram a ser inevitáveis e os sintomas de mudança e descrença


vão rearticulando as condições sociais e políticas, parecendo indicar uma nova condição
humana e novas técnicas redefinem as relações de poder.

As instituições e convicções defendidas pela modernidade parecem debilitadas.


Os velhos e tradicionais partidos políticos e tradições ideológicas cedem espaço a
movimentos sociais inéditos que vão se identificando coletivamente. As “sólidas” redes
de interações sociais modernas cedem espaço ao multi (multiétnico e multicultural). Os

211
referenciais de identificação não são mais elementos de uma cidadania individualizada.
A fragmentação justifica a dominância do discurso do “mundo único”, e o global e local
tornam-se visceralmente associados sob o lema “pense global, haja local”.

Muitos pensadores, nas três últimas décadas do século XX, passaram a apontar
para o novo fenômeno multifacetado monoliticamente chamado de globalização. Ao
que parece, por força da tradição universalizante do ocidentalismo, há uma tendência
dominante de apresentar a globalização como linear e consensual, ocultando
impactos e as interações com o sistema mundial de dominação cujos efeitos agravam
dramaticamente a exclusão e as desigualdades econômicas, fragilizando o tradicional
conceito de Estado-Nação, além de promover migrações em massa, agravando e
promovendo conflitos étnicos e políticos, degradação ambiental, dentre outros.

“A pobreza produzida maciçamente torna-se banal ao lado de uma competitividade


que tem a guerra como norma, eliminando qualquer forma de compaixão” (SANTOS,
2011, p. 46). O individualismo domina para além da vida econômica e invade a ordem
política e os espaços territoriais. “Vão sendo implantados novos valores aos objetos
e aos seres humanos que tomam como parâmetro uma suposta contabilidade global
que mercantiliza todos os subsistemas da vida social, rompendo solidariedades numa
batalha sem quartel” (SANTOS, 2011, p. 48). Por imposição do mercado, o consumismo
move a vida pública e privada. Um novo fundamentalismo que emagrece moral e
intelectualmente as pessoas, reduzindo a visão de mundo e fazendo esquecer qualquer
relação entre o consumidor e o ser humano.

Em finais do século XX a novidade é a sensação de naufrágio não apenas dos


projetos individuais, mas de incertezas acerca do futuro coletivo, da possibilidade de
uma forma correta de partilhar a existência e dos critérios de compreensão acerca dos
acertos e erros da experiência humana.

“O otimismo civilizatório, produto do esforço iluminista que abraçou a ideia


de progresso e foi capaz de romper com o passado através da secularização e
dessacralização do conhecimento” (HARVEY, 1993, p. 24).

O Iluminismo tomou o progresso como lema para a secularização e dessacralização


do conhecimento em nome da liberdade humana. A ciência prometia emancipação e o
otimismo era o estímulo para as novas doutrinas fundadas na razão humana universal,
mas as esperanças que tornavam suportáveis as perversidades modernas em finais
do século XX desaparecem e as contradições internas e inconfessáveis do projeto
iluminista evidenciam-se.

212
2 A NOVA CONDIÇÃO NO COTIDIANO
O empobrecimento globalizado e a desconstrução das instituições tradicionais
encontram no discurso da pós-modernidade uma justificação para a condição humana
em finais do século XX, como uma teoria que abarca o que não é homogêneo, flexível
e volátil. O ceticismo é a consequência do esfacelamento da noção de totalidade e
retiram-se de cenas as tradicionais formas de engajamento revolucionário.

Apenas as microrrevoluções passam a ser possíveis, já que as alternativas abran-


gentes e universais são condenadas ao fracasso, e o passado parece aprisionar o presente.

É um novo palco da história, constituído por múltiplos momentos e elementos


que comportam inúmeras leituras. O “cenário” de confiança, estabilidade e previsibili-
dade, necessário à construção de uma identidade individual, arquitetado e erigido co-
letivamente, criou as estruturas fundamentais do imenso edifício do que veio a ser a
civilização moderna. Tais estruturas acabaram abaladas pela impossibilidade de ajuste
entre a volúvel escolha individual e os pré-requisitos funcionais do coletivamente.

As múltiplas compreensões acerca dos riscos e incertezas que afetam o


cotidiano do planeta, do fim da crença na certeza, previsibilidade e controle sob a qual
se forjou a civilização ocidental moderna vai construindo um movimento intelectual
complexo e ambíguo, estruturado de forma difusa e que vai sendo provisoriamente
rotulado de pós-modernidade.

Trata-se de um conjunto de atitudes abertas e indeterminadas, moldadas


por uma grande diversidade de correntes intelectuais e culturais: pragmatismo,
existencialismo, marxismo, psicanálise, feminismo, hermenêutica, desconstrução e
filosofia pós-empirista da ciência, além de outras. Estas são bases epistemológicas a
partir das quais confluem princípios compartilhados que conduzem essencialmente à
crença na falibilidade e relatividade do conhecimento subjetivamente determinado e
marcado indelevelmente pelo pluralismo de valores e escolhas. São tempos difíceis,
onde há tanto para transformar e repensar e, ao mesmo tempo, é um enorme desafio
construir ou reconstruir um pensamento crítico (TARNAS, 2011).

3 PALEOPOSITIVISMOS, JUSCONSTITUCIONALISMOS E
RENOVAÇÃO CRÍTICA NO BRASIL
Sem dúvida, uma das pautas centrais do Direito contemporâneo é a sua
constitucionalização e fundamentos legitimadores.

As velhas concepções assentadas no paradigma juspositivista legalista, chamado


por alguns de paleopositivismo, que tem como raciocínio acerca do Direito uma lógica
autossustentadora e autojustificadora, em fins do século XX são substituídas pelo que

213
vai se autodenominando neopositivismo ou neojuspositivismo subordinando o Direito ao
sentido constitucional, que, embora redefinido pelo princípio da legalidade substancial que
vincula o sentido normativo à coerência dos princípios e fundamentos constitucionalmente
estabelecidos, mantém o velho paradigma da legalidade formal de produção.

“Mais recentemente, acentuadamente a partir das três últimas décadas do


século XX e início do XXI, com a entrada em cena das democracias participativas, os
direitos fundamentais ganham novo status político e jurídico, constituindo a esfera do
não decidível” (FERRAJOLI, 2015, p. 20), definindo limites políticos e jurídicos tanto da
produção das normas como de sua interpretação, que implicam em exigir que a produção e
interpretação das normas sejam não só originadas segundo procedimentos democráticos
e através de um Poder Legislativo legítimo, mas que sejam estáveis, prospectivas, gerais
e públicas, invertendo a tradicional relação entre o direito e a política.

A lógica constitucionalizadora do direito ganha impulso maior, sobretudo nas


últimas décadas do século XX. Esta etapa é marcada no plano teórico pelo esvaziamento
das imagens e discursos representativos da racionalidade moderna, o que acaba por
criar um complexo debate no qual são criadas novas rotulações. Instala-se um tempo
dos “pós”, “de(s)” e “neo(s)”.

São incorporadas inéditas expressões que significam tentativas de rotular


situações às quais ou se defende, e se tenta promover, ou se rechaça, mas há o que
parece ser um ponto de convergência: o esgotamento das categorias da modernidade e
das grandes utopias que serviram para construir o horizonte de futuro moderno, tomando-
se a crítica à modernidade o ponto de partida para sua própria superação (LIXA, 2015).

Para autores, como Zizek (2012), a complexidade sem fim do mundo contempo-
râneo possibilita o surgimento de conceitos opostos que parecem inquestionáveis, tais
como a intolerância como tolerância, religião como senso comum racional etc. Enfim,
vive-se um tempo em que é grande a tentação de gritar: “chega de bobagem!”. Talvez
seja essa, diz Zizek, a manifestação do desejo de estabelecer uma linha demarcatória
entre a fala lúcida e sã e a bobagem, reação que tem servido para despertar a ira da
ideologia predominante.

O senso comum de nossa época diz que, em relação à antiga distinção


entre ‘doxa’ (opinião acidental/empírica, sabedoria) e Verdade, ou
ainda mais radicalmente, entre conhecimento positivo empírico e fé
absoluta, hoje é preciso traçar uma linha entre o que se pode pensar
e o que se pode fazer (ZIZEK, 2012, p. 20).

214
É na tentativa de ir além do mero pensar, neste contexto dos “pós”/”de(s)”/“-
neo(s)” e com desejo de fazer a reinvenção, é que no Brasil se edificam e consolidam
correntes no Direito que se autodenominam críticas, como já analisado. Sinais de es-
gotamento que vão conduzindo para o interior do campo jurídico o pensamento crítico,
inaugurando, assim, uma discussão inédita e fértil (LIXA, 2015).

A ordem política e jurídica colocada em marcha no Brasil com a Constituição


de 1988 e o inédito momento histórico, somados, representavam a superação do
autoritarismo, exclusão social e violação de direitos fundamentais que, desde os
primórdios da invenção colonialista, vinham constituindo uma patologia crônica exposta
no grave quadro social que se delineava.

A grande maioria dos juristas entra em sintonia com as tendências


constitucionalistas que apontavam como grande desafio garantir a efetividade das
constituições democráticas.

Até então, historicamente, os comandos jurídicos e políticos


constitucionais, de fato, estavam nas mãos dos detentores dos
poderes político, econômico e social e, finalmente, o país começou a
‘levar a sério’ a Constituição e, apesar das dificuldades enfrentadas,
tais como a desigualdade e o patrimonialismo que ainda povoam
as instituições nacionais, os avanços em relação ao passado são
inquestionáveis (SARMENTO, 2010, p. 3-4).

Logo após a homologação da Constituição de 1988, juristas, como Luis


Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, passaram a militar a concepção de que a
Constituição, enquanto norma jurídica, deveria ser aplicada comumente pelos juízes,
defendendo um constitucionalismo de efetividade, independentemente de qualquer
mediação legislativa.

IMPORTANTE
Há de se destacarem as obras Direito Constitucional e a Efetividade
das Normas, de Luis Roberto Barroso, publicada no início da década de
90 e A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo: Para uma Dogmática
Constitucional Emancipatória. In: Uma vida dedicada ao Direito: uma
homenagem a Carlos Henrique de Carvalho publicada em 1995. Essas
obras são marcos importantes para esta nova etapa do pensamento
jurídico brasileiro.

215
[...] O que viria a tirar do papel as proclamações generosas de direitos
contidas na Carta de 88, promovendo justiça, igualdade e liberdade.
Se, até então, o discurso da esquerda era de desconstrução
da dogmática jurídica, a doutrina da efetividade vai defender a
possibilidade de um uso emancipatório da dogmática, tendo como
eixo a concretização da Constituição (SARMENTO, 2010, p. 248).

Desde aí se aprofundaram e se radicalizaram os estudos da hermenêutica


jurídica. Influenciados pelo “giro” linguístico da filosofia e a entrada do pensamento de
Ronald Dworkin, Robert Alexy, John Rawls, Hans Georg Gadamer, Jurgen Habermas,
entre outros, juristas como Lenio L. Streck e Eros Roberto Grau refundam o pensamento
jurídico brasileiro denunciando e renunciando ao velho positivismo e seus procedimentos
hermenêuticos. Nesta nova etapa, ou quadra da história, como prefere Lenio L. Streck
nominar este inédito momento de redefinição, é acentuada a natureza valorativa do
Direito e dos princípios constitucionais (LIXA, 2015).

Nesse contexto, lembra Daniel Sarmento (2010, p. 249): “há uma verdadeira
febre de trabalhos sobre teoria dos princípios, ponderação de interesses, teorias da
argumentação, proporcionalidade, razoabilidade etc. e se incorpora no pensamento
jurídico crítico brasileiro o neoconstitucionalismo”. Tratava-se de um momento de
conquistas e necessidades de que fossem garantidas.

Entretanto, já na primeira década do século XXI, muitos se davam conta de que


o neoconstitucionalismo não era a superação do velho positivismo. Como afirma Streck
(2011), não é porque o neoconstitucionalismo tem um discurso axiologista e valorativo
que é superado o positivismo formal legalista.

As teorias “pós”/“neo” positivistas acabaram por caírem na incerteza


e indeterminação do Direito. Seguramente o ‘relativismo’ e a ‘teoria
da argumentação’ foram mal incorporados no pensamento brasileiro
e decreta-se a ‘morte do método’ e em seu lugar passa a reinar
absoluta incerteza e relativismo nas decisões judiciais. Possivelmente
são os efeitos perversos de uma lógica colonizada que insiste em ser
mantida na cultura jurídica brasileira (STRECK, 2011, p. 37).

Não é novidade, desde Kelsen, que o julgador tem um espaço discricionário


em aberto e que desde muito foi desmistificado o juiz “boca da lei”, mas como adverte
Streck (2011), deve-se estar atento ao “pós-positivismo à brasileira”:

[...] É preciso estar alerta para certas posturas típicas do ‘pós


positivismo à brasileira’, que pretende colocar o rótulo de novo em
questões velhas, já bastante desgastadas nessa quadra da história,
quando vivenciamos um tempo de constitucionalismo democrático.
Ainda hoje presenciamos defesas vibrantes de ativismos judiciais
para implementar e concretizar os direitos fundamentais, tudo isso
sempre retornando ao mesmo ponto: a ideia de que, no momento da
decisão, o juiz tem um espaço discricionário no qual pode moldar sua
vontade [...] (STRECK, 2011, p. 38).

216
Em síntese, com as concepções e modelos “descobertos” no Brasil em fins do
século XX, sobretudo, com a entrada em cena do neoconstitucionalismo, é decretada a
“morte do método”.

Para Ferrajoli (2012), nesses tempos de total impotência e decadência da


política, predomina um constitucionalismo principialista, momento quando se leva em
conta todas as suas implicações, coloca em perigo a separação dos poderes, o princípio
da legalidade e submissão do juiz somente à lei: em síntese, todos os princípios do
estado de direito. “Diante da angustiante constatação, pergunta o pensador garantista
italiano: quais alternativas se pode contrapor a essa orientação que coloca o Direito em
uma espécie de “loteria do protagonismo judicial”? É momento de profundo e profícuo
debate das vias possíveis de solução” (FERRAJOLI, 2012, p. 245).

Uma das possibilidades é apontada por Ferrajoli (2012, p. 251), ao propor, como
ponto de partida para a definição do horizonte hermenêutico, os direitos fundamentais
consagrados na ordem constitucional.

Isto é, não dar lugar à antinomia e lacunas, com todos os espaços


de discricionariedade política deixados em aberto, de um lado,
pela proibição de produzir normas incompatíveis com os princípios
constitucionais e, de outro, pelas possíveis formas e graus de
observância da obrigação de sua atuação.

Ferrajoli (2012) chama a atenção para o fato de que todas as soluções,


principalmente as mais controversas, não podem ser consideradas “verdadeiras” ou
“objetivamente corretas”, uma vez que cada decisão, no campo hermenêutico, poderia
ser considerada como condição de possibilidade de decisão definida a partir do horizonte
compreensivo e, portanto, é inevitavelmente orientada por opções morais e políticas do
intérprete. O autor conclui dizendo que:

Os juízes não serão nunca, porque não poderão nunca sê-lo, simples
bocas da lei, como desejavam os iluministas. Nem poderão jamais
alcançar verdades absolutas, mesmo que seja na forma da verdadeira
resposta correta. O reconhecimento desta imperfeição, ou se quiser,
aporia, repito, é um fato de saúde institucional: gera o hábito da
dúvida, a consciência do erro sempre possível, a disponibilidade
para escutar todas as razões opostas que se confrontam no juízo,
a prudência – a partir da qual advém o belo nome “juris-prudência”
– como estilo moral e intelectual da prática jurídica e, em geral, das
nossas disciplinas (2012, p. 254).

Em síntese, frente à complexidade do fenômeno jurídico contemporâneo e a


permanente reconstrução e vigilância da ordem democrática no Brasil, são possíveis
múltiplas possibilidades de soluções para a “questão hermenêutica”, uma vez que o
legislador e nem mesmo o Estado são detentores de todas as hipóteses de interpretação
e aplicação da norma jurídica, o que evidentemente descortina a grande falácia do mito
fundador do direito moderno: a certeza e segurança nascida da plena razão estatal.
Em que pese o esforço de correntes jurídicas contemporâneas que se autorreferem
como críticas, resta em aberto um espaço jurídico que ainda não pôde ser preenchido

217
pelas práticas fundadas nestas correntes. É possível pensar uma alternativa às práticas
alternativas e reinventar a crítica desde as experiências democráticas participativas
(LIXA, 2015).

Adotando a sugestão de Boaventura de Sousa Santos (2001) no que chama de


sociologia das emergências, que é a prática de ampliar o presente reconhecendo o que
foi subtraído pela sociologia das ausências, hermeneuticamente ampliando os espaços
de possibilidades de compreensão do direito para além do Estado, é possível identificar
agentes, práticas e saberes com tendências de futuro sobre as quais é possível ampliar
as expectativas de esperança. Trata-se de uma ampliação sobre as potencialidades e
capacidades ainda não reconhecidas e necessariamente movendo-se no campo das
experiências sociais que desde as práticas do reconhecimento, transferência de poder
e mediação jurídica são legítimos espaços de luta por dignidade humana e direitos
fundamentais.

É indo nesta direção que é possível falar-se em reconhecer o mundo


social como mundo de possibilidade compreensiva e, portanto,
fonte de uma nova racionalidade hermenêutica. Trata-se de uma
perspectiva pluralista de direito que reconhece múltiplos espaços
de fontes normativas, apesar de na maioria das vezes ser informal e
difusa (WOLKMER, 2012, p. 155).

O pluralismo é uma fonte de inúmeras possibilidades de regulação. Para Wolkmer


(2012, p. 158):

O pluralismo enquanto concepção filosófica se opõe ao unitarismo


determinista do materialismo e do idealismo modernos, pois advoga
a independência e a inter-relação entre realidades e princípios
diversos. Parte-se do princípio de que existem muitas fontes ou
fatores causais para explicar não só os fenômenos naturais e
cosmológicos, mas, igualmente, as condições de historicidade que
cercam a vida humana. A compreensão filosófica do pluralismo
reconhece que a vida humana é constituída por seres, objetos,
valores, verdades, interesses e aspirações marcadas pela essência
da diversidade, fragmentação, circunstancialidade, temporalidade,
fluidez e conflituosidade.
[...]
O pluralismo, enquanto “multiplicidade dos possíveis”, provém não
só da extensão dos conteúdos ideológicos, dos horizontes sociais e
econômicos, mas, sobretudo, das situações de vida e da diversidade
das culturas.

Em meio à discussão plural e decolonial nas primeiras décadas do século XXI


chegam ao poder, em vários países latino-americanos, governos progressistas que
avançaram no campo da democratização, políticas sociais e integração regional.

Neste marco, os governos populares da Bolívia, Equador e Venezuela


em especial, foram implantando um novo paradigma constitucional
a partir da plurinacionalidade, demodiversidade, novos direitos vin-
culados a uma racionalidade reprodutiva da vida que expressamente
deseja a vontade descolonizadora como conteúdo fundamental do
projeto político em marcha nestas nações (MEDICI, 2012, p. 56).

218
Neste novo cenário, novos e distintos campos se tocam – o estatal e o social;
o interno e o externo; o formal e o substancial – em que mundos normativos, práticas
e saberes dialogam, se desentendem e interagem tornando possível reconhecer os
pontos de contato entre a tradição moderna ocidental e os saberes leigos.

4 PENSAMENTO CRÍTICO CONSTITUCIONAL:


RENOVAÇÃO POLÍTICA, JURÍDICA E FILOSÓFICA
A entrada para o século XXI, particularmente na América Latina, é marcada pela
inegável necessidade de renovação e redefinição do pensamento jurídico.

É necessário quebrar o fascínio pelo “colonialismo mental” e assumir


o comando do pensamento jurídico local, criando uma “democracia
de alta energia”. É necessário quebrar definitivamente com o fascínio
epistemológico colonizador e a hegemônica idealização sistemática
jurídica do pensamento alemão e americano no sentido de repensar
o direito e suas práticas para além do formalismo renovado do século
XXI pelo discurso neoconstitucionalista. Disponível em: <http://jota.
uol.com.br/critica-ao-pensamento-juridico-brasileiro-segundo-
mangabeira-unger>. Acesso em: 11 abr. 2016.

Romper com a tradição liberal eurocêntrica implica reconhecer inicialmente


a particulariedade do direito brasileiro e sua constitucionalidade. Embora sem querer
entrar na discussão da face perversa da judicialização da política, ou mesmo do ativismo
judicial, o certo é que a importação desatenta da tradição constitucional eurocêntrica
e sua consequente fragmentação do poder, autêntico “loteamento do Estado”, acaba
por criar uma das perversas e problemáticas formas de governo, na qual acaba sendo o
Judiciário de fato o administrador do Estado.

A base de uma proposta constitucional crítica, para Martín (2014), é a


repolitização do constitucionalismo. Se a ordem econômica global neoliberal invadiu
todo sistema político e social subsumindo o direito, não se trata de “despolitizar” o direito
que conduz à eliminação e/ou ocultação do conflito e declarar o “fim da história política
do direito”, “repolitizar” pode ser considerado um resgate da história e da natureza do
constitucionalismo.

Historicamente, o constitucionalismo, desde seu início, é “politizado” não apenas


no sentido convencional de direito constitucional, mas seu fundamento e legitimação:
o conflito. O avanço do público paulatinamente foi se transformando em fins do século
XX como lugar privilegiado de defesa do “interesse geral”, acentuando o conflito entre o
“público/privado”.

A integração, articulação do conflito e coexistência pacífica de seus elementos


definidores é o que pode representar alternativa à dinâmica constitucional.

219
Quanto à natureza, a Constituição é um programa aberto e impulsionador de
valores da ordem social do tempo presente, portanto, a crítica constitucional é tarefa
de apropriação de conteúdos desde a realidade em sua dinâmica e complexidade; sua
exterioridade; e sua impureza.

Para pensadores, como Boaventura de Souza Santos, assiste-se a um sistema


político que encontra-se definitivamente em alerta, cuja natureza da judicialização da
política conduz à politização da justiça. O processo político de judicialização da política
é resultado do enfrentamento político do Judiciário ao quadro de emissão dos demais
poderes em instalar as políticas de efetivação dos direitos. Isto porque o Judiciário,
como Poder neutro, não é fonte de direito novo.

O afastamento da lei inconstitucional é restauração da ordem ofendida. A


judicialização da política traz consigo a prerrogativa da iniciativa de criação do direito
novo, feito a partir de amplas possibilidades de princípios e valores, ensejando uma
discricionalidade que compromete a imparcialidade, a principal razão de transferência
ao Estado juiz do poder de dizer o direito.

NOTA
"Isso ocorre quando atuam para atender a demandas sociais que
não foram satisfeitas a tempo e a hora pelo Poder Legislativo,  bem
como para integrar (completar) a ordem jurídica em situações de
omissão inconstitucional do legislador". Justificativa para a prática do
ativismo judicial segundo o Min. Luís Roberto Barroso. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2015-dez-07/judicializacao-nao-confunde-
ativismo-judicial-barroso. Acesso em: 24 abr. 2021.

220
A expansão do Direito e do Estado para a vida social que vem definindo um
ativismo ilegítimo acaba por transferir para o Judiciário um poder extremamente amplo,
cujo exercício é problemático, tanto pela impossibilidade operacional do Judiciário em
atender à imensa gama de demandas, como pelo despreparo técnico de juízes. Se,
de um lado, o Judiciário, ao assumir esferas políticas que ultrapassam seus limites,
compreende democracia como a garantia de direitos individuais e coletivos que
permitem condições materiais básicas de vida, e, portanto, de efetivo exercício de
cidadania, de outro, a democracia também demanda o respeito a um amplo espaço de
decisão política, incluindo os movimentos sociais como legítimos representantes da luta
pela concretização e efetivação de direitos fundamentais.

Contra a tendência de judicialização da vida e da política, surge a repolitização


do constitucionalismo como contratendência às consequências disfuncionais do Direito
e do Estado. O Estado Democrático de Direito no Brasil colocou em cena os movimentos
sociais, que, na luta ou procura pela efetivação de demandas, sentem-se impotentes
e ficam ao desalento ao se confrontarem com um sistema judiciário composto por
autoridades de linguagem incompreensível e presença arrogante.

Tal repolitização necessita ter como ponto de partida a elevação da participação


popular na política, criando mecanismos para resolução de conflitos de forma a
estabelecer no Estado um poder popular e pluralista cuja prática destina-se a resgatar
grupos que se encontram em situação de subjugação ou exclusão sem que consigam,
por si mesmos, atender a necessidades. Dessa maneira, simultaneamente, se enriquece
a democracia com mecanismos participativos diretos, resgatando o constitucionalismo
primeiro que está além do convencional e dominante. Trata-se de reconhecer as
novas realidades constituintes cotidianas cujos atores, como sujeitos históricos, são
os que dinamizam, desde a estrutura social, política e econômica, carregam em si a
potencialidade transformadora que vai reconfigurando a ordem jurídica.

5 NOVOS MARCOS FILOSÓFICOS DO DIREITO


CONTEMPORÂNEO
Ignácio Ellacuria, no texto Filosofia para que? lembra que Sócrates não foi o
primeiro filósofo, mas nele surgiu uma forma singular de filosofar: a reflexão como forma
de compreender a si mesmo para tornar-se um ser político e assim politizar a cidade
(SENET, 2012).

De certa maneira, Ellacuria nos ajuda a responder à primeira questão que


propomos no início deste estudo: para que e por que filosofar? Para alguns, filosofar é
um ato de mera erudição intelectual. Será realmente que foram séculos de história e
conhecimento acumulado de forma inútil?

221
No mesmo texto, Ellacuria lembra que Kant afirmava que não se pode ensinar
filosofia, mas o máximo que se pode fazer é ensinar a filosofar. O que realmente Kant nos
diz? Que a filosofia não é somente um privilégio de seres sábios e isolados do mundo,
mas que o conhecimento filosófico nos permite adquirir uma habilidade revolucionária:
para descobrir que, mais que conhecer a realidade, precisamos transformá-la! Que esta
transformação deve ter um propósito orientado por nós e para nós.

Desde de início vimos que a atitude socrática foi revolucionária, porque passa
a conceber o conhecimento como produto ao mesmo tempo humano e político, possui
como objetivo a reta humanização e reta politização, e desde aí se pode falar em filosofia.

ATENÇÃO
No sentido da tradição socrática, o ato de filosofar tem como pressuposto
permitir a conexão entre si mesmo (saber metodologicamente
construído) e a realidade. Portanto, a reflexão não é mero ato de
conhecimento ou apreensão da realidade e das coisas, mas permite
conferir sentido para a vida humana e para a própria filosofia.
Neste sentido, filosofar é o processo libertador e desidealizador de
permanente dúvida e negação que depende da capacidade crítica, o
que é chamado por dogmáticos como heresia e revisionismo. Assim, a
filosofia adquire seu maior sentido: a compreensão de que é necessária
a libertação.

O que é a libertação que a filosofia pode trazer para o pensador do Direito?

Para o filósofo e pensador latino-americano Enrique Dussel (2012, p. 67), a


filosofia deve, em primeiro lugar, libertar a si mesma.

Na história, ao menos desde os gregos, a filosofia esteve


frequentemente atada ao carro do poder – é verdade que sempre
houve, também, contradiscursos filosóficos de maior ou menor
criticidade: de nossa parte, desejaríamos nos inscrever nessa tradição
anti-hegemônica, ao etnocentrismo regional.
Na Modernidade, o etnocentrismo europeu foi o primeiro
etnocentrismo mundial [...]. O mundo ou a eticidade do filósofo – como
é o de um sistema hegemônico (grego, bizantino, mulçumano, cristão
medieval e, principalmente, moderno) – pretende se apresentar como
o mundo humano por excelência; o mundo dos outros é barbárie,
marginalização, não ser.

Portanto, filosofar é uma tomada de consciência que pressupõe o


questionamento, algo mais do que a mera reprodução de conceitos ou concepções
alheias. É um compreender o presente a partir das condições históricas concretas de
sua superação.

222
Para Gadamer (2004), a apropriação de sentido é algo mais que o mero conceito
ingênuo de compreensão, é sempre uma forma de apropriação sob estruturas de pré-
juízos aos quais o sujeito que compreende é colocado à frente daquilo que se quer
compreender.

Nesse sentido, para Leopoldo Zea (2005, p. 85), um ser humano é definido pela
história, e o que este humano pode ou não ser depende da tríplice dimensão histórica:
ao que dá sentido ao fato, ao que se faz e ao que se pode continuar fazendo. “Segundo a
dimensão vital adotada por este ser histórico e hermenêutico, a compreensão da história
define escolhas: a afirmação e conservação do passado, a esperança no presente ou a
mudança permanente no futuro”.

Partindo do horizonte compreensivo historicamente construído e atitude


filosófica de ampliação do presente com vistas a um futuro mais generoso é que se
pode refletir acerca das experiências coletivamente partilhadas no espaço geopolítico,
filosófico, jurídico e cultural brasileiro.

No sentido gadameriano, o estabelecer um horizonte, uma perspectiva de


mundo, que possibilita o confronto – oposição do novo (presente, atual e questionador)
ao antigo (dominante, a tradição) – do que permanece oculto pelos paradigmas
dominantes. Como resistências a serem superadas. “O novo deixaria de sê-lo se não
tivesse que se afirmar contra alguma coisa” (GADAMER, 1999, p. 14).

Portanto, refletir sobre a situação do presente representa possibilidade de


ampliação de compreensão da realidade e ampliar o horizonte compreensivo.

Ter horizonte significa não estar limitado ao que há de mais próximo,


mas poder ver além disso. Aquele que tem horizonte sabe valorizar
corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro
dele, segundo padrões de próximo e distante, de grande e pequeno.
A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção
do horizonte de questionamento correto para as questões que se
colocam frente à tradição (GADAMER, 2004, p. 452).

Se estivermos atentos à vida cotidiana ao nosso redor não é difícil perceber


que tem sido muito diferente do que os iluministas e seus herdeiros haviam previsto e
planejado. Seguramente, por esta razão não faltaram pensadores que nas três últimas
décadas do século XX passaram a apontar para o novo fenômeno multifacetado
monoliticamente chamado de Crise da Modernidade e de sua racionalidade
justificadora.

Ao que parece, por força da tradição universalizante do ocidentalismo, há uma


tendência dominante de apresentar a Modernidade como linear e consensual, ocultando
suas contradições e limites, particularmente as visibilizadas no Direito (LIXA, 2013).

223
Possivelmente seja hora de buscarmos identificar novos paradigmas, para tanto,
é necessário adquirir o hábito de indignar-se e assumir uma atitude filosófica em relação
ao Direito e à realidade em que vivemos. A tarefa não é fácil e obrigatoriamente devemos
superar alguns obstáculos. Rubio (2014) aponta quais são os difíceis obstáculos:

• Limites epistemológicos:
o a maneira como aprendemos e nos acostumamos a compreender o que é Direito
é assentada no paradigma da simplicidade. Isto é, considera o Direito em si
mesmo, sem diálogo, vínculo e relações com demais campos do saber;
o a redução do Direito ao Direito Estatal ignorando outras formas de expressão
jurídica (pluralismo jurídico), acreditando que Direito é somente norma ou
instituição, a pesada herança do positivismo jurídico;
o a separação entre Direito e prática, somente se preocupando com as categorias
teóricas, e os conceitos dogmáticos que devem ser “decorados” e reproduzidos;
o abstração do mundo jurídico do mundo da vida, e com isso abstraindo as ideias,
conceitos e teorias da realidade que nos leva a confundir ideia com a própria
realidade.

• Limites axiológicos:
o os valores e princípios éticos que norteiam o agir jurídico apenas são os produzidos
pelo Judiciário e/ou instrumentos estatais, sendo apenas uma questão definida
por “especialistas”. Vida, liberdade, dignidade, solidariedade etc. são valoradas a
partir de abstrações estranhas ao tempo e espaço real dos seres humanos a que
estão relacionados;
o separação entre saber científico e saber moral e ético. Com a pretensão de eximir
a ciência do Direito de responsabilidade social, se reduz o campo do político
negando e/ou ocultando que toda ação humana é uma ação política e uma forma
de exercício de poder, o que acaba por retirar dos seres humanos sua capacidade
de criação de valores;
o o mundo contemporâneo com sua cultura consumista e neoliberal acaba por
mercantilizar a própria vida e os seres humanos, fragmentando e reduzindo as
relações fraternas e solidárias.

• Limites culturais:
o juntamente com esse modo de vida contemporâneo e seu Direito regulador –
liberal e individualista – é imposta a homogeneização de todas as instâncias da
vida sob um único modo de vida e como se compreende essa vida.

Indo nessa direção é preciso reconstruir um Direito crítico e comprometido com


a vida, através do critério e do princípio de produção, reprodução e desenvolvimento da
vida humana em todos os seus sentidos. No mundo contemporâneo, pensar o Direito de
forma crítica e inovadora é um desafio, sobretudo no contexto latino-americano, onde
coexistem distintas culturas e visões de Direito.

224
Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2001):

Temos o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza


Temos o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

São os novos desafios que nos convidam a mergulhar na preocupação filosófica.


Tarefa difícil, mas necessária.

NOTA
Para encerrar, vamos lembrar uma estória contada pelo sociólogo Herbert José de Sousa,
o Betinho, que usava para explicar a tenacidade que tinha para levar adiante seu trabalho
quando ele mesmo já estava condenado, por enfermidade incurável, à morte:
Diz a lenda que havia uma imensa floresta onde viviam milhares de animais, aves e
insetos. Certo dia uma enorme coluna de fumaça foi avistada ao longe e, em pouco tempo,
embaladas pelo vento, as chamas já eram visíveis por uma das copas das árvores. Os animais,
assustados diante da terrível ameaça de morrerem queimados, fugiam o mais rápido que
podiam, exceto um pequeno beija-flor. Este passava zunindo como uma flecha indo veloz
em direção ao foco do incêndio e dava um voo quase rasante por uma das labaredas, em
seguida voltava ligeiro em direção a um pequeno lago que ficava no centro da floresta.
Incansável em sua tarefa e bastante ligeiro, ele chamou a atenção de um elefante, que com
suas orelhas imensas ouviu suas idas e vindas pelo caminho, e curioso para saber por que
o pequenino não procurava também afastar-se do perigo como todos os outros animais,
pediu-lhe gentilmente que o escutasse, ao que ele prontamente atendeu, pairando no ar a
pequena distância do gigantesco curioso. 
– Meu amiguinho, notei que tem voado várias vezes ao local do incêndio, não percebe o
perigo que está correndo? Se retardar a sua fuga talvez não haja mais tempo de salvar a si
próprio! O que você está fazendo de tão importante?
– Tem razão, senhor elefante, há mesmo um grande perigo em meio àquelas chamas, mas
acredito que se eu conseguir levar um pouco de água em cada voo que fizer do lago até lá,
estarei fazendo a minha parte para evitar que nossa mãe floresta seja destruída.
Em menos de um segundo o enorme animal marchou rapidamente atrás do beija-flor e,
com sua vigorosa capacidade, acrescentou centenas de litros d’água às pequenas gotinhas
que ele lançava sobre as chamas.
Notando o esforço dos dois, em meio ao vapor que subia vitorioso dentre alguns troncos
carbonizados, outros animais lançaram-se ao lago formando um imenso exército de
combate ao fogo.
Quando a noite chegou, os animais da floresta, exaustos pela dura batalha e
um pouco chamuscados pelas brasas e chamas que lhes fustigaram, senta-
ram-se sobre a relva que duramente protegeram e contemplaram um luar
como nunca antes haviam notado.

FONTE: https://www.youtube.com/watch?v=PlP-Xt4LLNg. Acesso em: 24 abr.


2016.

Podemos até nos desanimarmos e ficarmos exaustos por filosofar, mas vamos
aprender a ver o mundo do Direito de uma maneira muito diferente da que estamos
acostumados. Isso vale muito a pena!

225
LEITURA
COMPLEMENTAR
O SISTEMA BRASILEIRO DE JUSTIÇA: EXPERIÊNCIA RECENTE E FUTUROS
DESAFIOS

José Eduardo Faria

Nunca, na história republicana do país, juízes e promotores alcançaram tanta


evidência como agora. Graças às prerrogativas concedidas pela Constituição de 1988, as
duas corporações estão presentes na vida econômica. Influenciando a agenda política
e exercendo enorme protagonismo social, seja ao assegurar a proteção de interesses
difusos, seja intervindo em questões relativas à justiça distributiva. Mas, a quem cabe
a titularidade da independência funcional conquistada pelo Ministério Público (MP): à
instituição como um todo ou a cada um de seus integrantes? Do lado do Judiciário,
como pode almejar o direito à última palavra um Poder que controla de modo quase total
o acesso aos seus quadros? Em suma, qual a legitimidade das duas instituições que
compõem o "sistema de Justiça" brasileiro, em cujo âmbito os valores da independência
e da autonomia se sobrepõem a outros com os quais deveriam compor, como os da
eficiência administrativa, transparência decisória e equilíbrio das finanças públicas?

Questões como essas ganharam importância desde que promotores e procu-


radores da República passaram a recorrer a gravações clandestinas e escutas ilegais,
com o objetivo de formular denúncias criminais contra dirigentes do Executivo e do
Legislativo, e magistrados passaram a se opor às "reformas estruturais", especialmente
à previdenciária, e a impedir as tentativas de revogação de direitos adquiridos do fun-
cionalismo e taxação dos inativos, em nome dos princípios do equilíbrio e da responsa-
bilidade fiscal.

Perante a opinião pública, o Judiciário tem sido visto como um moroso e inepto
prestador de um serviço público. No Executivo, os responsáveis pelo Orçamento Geral
da União o encaram como um aparato com baixa eficiência gerencial e insensível ao
equilíbrio das finanças públicas, pois seus gastos com obras de discutível utilidade,
suas crescentes despesas de custeio e suas sentenças comprometeriam as políticas
de ajuste fiscal, poriam em risco a estabilidade monetária e travariam as reformas
estruturais. Além disso, juntamente ao MP, o Judiciário é acusado pelo Congresso de
exorbitar em suas prerrogativas, interferir no processo legislativo e bloquear políticas
formuladas por órgãos representativos eleitos democraticamente, "destecnificando" a
aplicação da lei e, por consequência, levando à "judicialização" da vida administrativa e
econômica.

226
Muitas dessas críticas talvez sejam injustas, mas não quer dizer que não tenham
algum fundo de verdade, o que alimenta diferentes indagações sobre o futuro das duas
instituições num contexto marcado por fortes desigualdades sociais e culturais, graves
limitações fiscais e transformações radicais nos modos de funcionamento da economia.

FONTE: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200006. Acesso


em: 11 abr. 2017.

No site, você poderá ler o texto na íntegra!!!!

227
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico, você aprendeu:

• O contexto político, social e econômico de fins do século XX não permite mais a


sustentação do discurso tradicional do Direito brasileiro, em particular, havendo uma
reorientação no sentido de constitucionalizar os pressupostos e práticas jurídicas.

• O marco teórico e político exige uma redefinição dos pressupostos ideológicos e


hermenêuticos no sentido de busca de novos fundamentos filosóficos e éticos do
Direito, representando, neste momento, a Filosofia Crítica Latino-Americana como
uma alternativa rica e inovadora.

• Assumir um posicionamento filosófico crítico e libertador no sentido de orientar


nossas práticas para a emancipação humana e social gera uma permanente
atitude de inquietação e desejo de transformação desde uma formação acadêmica
consistente e de profundo compromisso.

228
AUTOATIVIDADE
1 Considere a figura a seguir:

FONTE: <https://blogdotarso.com/2013/04/03/charge-igualdade-no-liberalismo-versus-constituicao-so-
cial-e-democratica-de-direito/>. Acesso em: 24 abr. 2016.

Com base nos conhecimentos abordados neste tópico, como você interpreta o conceito
de igualdade e justiça representado na charge anterior?

229
230
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