Você está na página 1de 154

ANTROPOLOGIA E

ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO


SOCIOLOGIA
EDUCAÇÃO

DA
GRAZIELLA ROLLEMBERG

GRAZIELLA ROLLEMBERG

Código Logístico ISBN 978-65-5821-114-3

I0 0 0 5 1 0 9 786558 211143
Antropologia e
Sociologia da
Educação

Graziella Rollemberg

IESDE BRASIL
2022
© 2022 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: askproject/envato elements

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R656a

Rollemberg, Graziella
Antropologia e sociologia da educação / Graziella Rollemberg. - 1. ed.
- Curitiba [PR] : IESDE, 2022.
150 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-114-3

1. Antropologia educacional. 2. Sociologia educacional. 3. Cultura. 4.


Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educação. I. Título.
CDD: 306.43
22-75824
CDU: 316.74:37

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Graziella Rollemberg Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pelo
Instituto Federal de Sergipe (IFS). Especialista em
Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do
Paraná (Unopar). Licenciada em Sociologia pelo Centro
Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi). Bacharel
em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Docente e coordenadora editorial de coleções didáticas
e paradidáticas para Ensino Fundamental e Ensino
Médio. Autora de obras didáticas para Educação Básica
e Educação Superior e de obras paradidáticas para
Educação Básica das redes pública e privada há 25 anos.
Vídeos
em
QR code!
Agora é possível acessar os vídeos do livro por
meio de QR codes (códigos de barras) presentes
no início de cada seção de capítulo.

Acesse os vídeos automaticamente, direcionando


a câmera fotográfica de seu smartphone ou tablet
para o QR code.

Em alguns dispositivos é necessário ter instalado


um leitor de QR code, que pode ser adquirido
gratuitamente em lojas de aplicativos.
SUMÁRIO
1 Introdução ao pensamento antropológico 9
1.1 Natureza e cultura 9
1.2 Alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural 14
1.3 O pensamento antropológico 20

2 Antropologia, educação e sociedade 28


2.1 Indivíduo, cultura e sociedade 28
2.2 Socialização, cultura e educação 35

3 Antropologia da Educação e formação docente 48


3.1 Antropologia Educacional 48
3.2 A educação como prática simbólica 51
3.3 Pesquisa em Antropologia da Educação 62

4 Introdução à sociologia 71
4.1 A sociologia: surgimento, objetos e métodos 71
4.2 Indivíduo, vida social e categorias sociológicas 75
4.3 Componentes da vida social 85

5 Educação, sociedade e poder 97


5.1 Instituições educativas 97
5.2 Processos educativos e reprodução social 103
5.3 Estado, ideologia e educação 111

6 Sociologia da Educação e formação docente 123


6.1 A construção social da escola 123
6.2 A construção social do docente 130
6.3 A cultura digital e as novas relações com o saber 135

Resolução das atividades 145


Vídeo
APRESENTAÇÃO
Este livro tem como objetivo proporcionar um panorama
geral sobre a antropologia e a sociologia, duas áreas das
ciências sociais que contribuem muito para os estudos na
área da educação, tanto sob o ponto de vista teórico e de
pesquisa quanto das práticas pedagógicas, visando promover
a compreensão das bases teórico-metodológicas do que
chamamos de Antropologia da Educação e de Sociologia da
Educação.
Nos três primeiros capítulos, abordaremos as
especificidades da antropologia enquanto ciência
humana, por meio da oposição natureza x cultura, e
compreenderemos as principais tendências da Antropologia
Contemporânea, analisando as origens da antropologia e o
seu desenvolvimento. Conheceremos, ainda, os conceitos de
alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural, bem como as
suas aplicações às realidades culturais e à vida cotidiana.
Também exploraremos a investigação antropológica das
diversas culturas humanas, as suas manifestações simbólicas
e materiais, os seus nexos e as suas práticas, as relações
que se estabelecem entre diferentes culturas e os processos
culturais e educacionais que se desenvolvem dentro e fora
da escola, os quais podem e devem ser analisados mediante
o olhar antropológico, este que traz abordagens úteis às
reflexões sobre os contextos e as relações de aprendizagem.
Ao longo dos três primeiros capítulos, você perceberá que
a antropologia pode ser usada como uma das ciências de apoio
aos estudos voltados à educação e à formação dos indivíduos,
no sentido de analisar os universos culturais que integram
tanto a instituição escolar como os contextos informais de
educação. Além disso, compreenderá a relevância da análise
sistemática dos processos de socialização na constituição
do indivíduo e como dimensão importante de quaisquer
processos educativos.
Nos três últimos capítulos da obra, conheceremos como se deram o
surgimento da sociologia e o seu desenvolvimento, por meio das principais
linhas teóricas e de seus autores, compreenderemos quais são os objetos e
os métodos de estudo dessa área do conhecimento e entenderemos vários
de seus principais conceitos e categorias – indivíduo, sociedade, grupos sociais,
estrutura social e estratificação, entre outros.
Entenderemos, também, como a sociologia aplicou sua análise aos fenômenos
ligados aos processos educacionais, contribuindo para a construção da
Sociologia da Educação. Ainda, compreenderemos a origem, o desenvolvimento
e as contribuições da Sociologia da Educação, que busca empreender uma
visão sociológica sobre os processos educativos e tem a importante tarefa
de fundamentar várias outras disciplinas, tanto as integrantes dos cursos de
Pedagogia quanto as que fazem parte das pós-graduações ligadas à área
educacional, promovendo a compreensão da realidade educacional brasileira.
Nesse sentido, abordaremos as origens e o funcionamento das instituições
educativas no Brasil e os processos educativos formais e informais, para analisar
o papel social da escola, considerando-a não só como lócus de reprodução social,
mas também de transformação social. Da mesma forma, para compreender as
relações entre educação, Estado e poder, veremos as políticas educacionais, as
teorias e as práticas pedagógicas sob a perspectiva sociológica.
Finalmente, analisaremos as contribuições da Sociologia da Educação para a
formação e a prática docente, além do modo como ela pode subsidiar a reflexão
do professor sobre os seus próprios saberes, a sua trajetória como profissional
e as suas práticas no cotidiano escolar, auxiliando-o a analisar de maneira crítica
suas concepções de mundo e de ensino e a transformar suas práticas, no sentido
de promover uma formação para a cidadania plena para seus estudantes e de
imbuir suas ações e relações no contexto escolar de um caráter crítico, humano
e emancipador. Com isso, evita-se a reprodução mecânica e pouco consciente
de concepções e práticas incorporadas durante sua trajetória, as quais, por
vezes, não refletem verdadeiramente seu posicionamento docente.

8 Antropologia e Sociologia da Educação


1
Introdução ao pensamento
antropológico
Neste capítulo, vamos entender as especificidades da antropologia
enquanto ciência humana por meio da oposição natureza x cultura e
compreender as principais tendências da antropologia contemporâ-
nea analisando as suas origens e seu desenvolvimento. Conheceremos
também os conceitos de alteridade, etnocentrismo e relativismo cultu-
ral e suas aplicações às realidades culturais e à vida cotidiana.
A antropologia é uma ciência humana dedicada a investigar as di-
versas culturas humanas, suas manifestações simbólicas e materiais,
seus nexos e práticas, e as relações que se estabelecem entre diferen-
tes culturas.
Os processos culturais e educacionais que se desenvolvem dentro
e fora da escola podem e devem ser analisados por meio do olhar an-
tropológico, que traz abordagens úteis às reflexões sobre os contextos
e as relações de aprendizagem, e uma das discussões fundamentais
para a delimitação da antropologia como área do conhecimento espe-
cífica é a oposição entre natureza e cultura.

1.1
Vídeo
Natureza e cultura
Para iniciar a discussão sobre as categorias de natureza e de cul-
tura e sua importância para a consolidação do pensamento antro-
pológico, vamos analisar uma situação histórica. Imagine esta cena
(que ocorreu de verdade): no século XVI, o rei da França na época,
Carlos IX, acompanhado de parte de sua corte, em Rouen, teve um
Objetivo de aprendizagem encontro com um chefe Tupinambá e dois guerreiros dessa tribo,
Entender as especifici- levados do Brasil para a Europa para que seus “hábitos estranhos”
dades da antropologia
enquanto ciência humana
fossem conhecidos pela realeza.
por meio da oposição
natureza x cultura.

Introdução ao pensamento antropológico 9


1 Entre os cortesãos do rei estava o filósofo Michel de Montaigne,
1
Antropologia significa autor importante para a antropologia . Ele relatou a situação em
literalmente estudo do
homem, estudo do ser sua obra Ensaios, informando aos leitores que, nesse encontro de
humano. culturas, os “selvagens” ficaram tão admirados quanto os nobres, e
perceberam, ao observar a sociedade francesa, que havia pessoas
bem alimentadas, que pareciam usufruir de todas as comodidades
da vida – como era o caso dos cortesãos –, enquanto outras, de
aparência miserável, magros em virtude da fome e das privações,
mendigavam à porta dos privilegiados que tudo tinham.

O mesmo encontro foi relatado de maneira bem diferente pelo


conquistador Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571):
Só havia gente selvagem, afastados de toda cultura e hu-
manidade; diferenciados de nós pelos costumes e regras de
vida, sem religião, sem conhecimento nenhum do que seja
Dica
honra e a virtude; incapazes de distinguir o justo do injusto;
Para saber mais sobre a
tanto que me veio a dúvida se tínhamos encontrado feras
história do encontro de
Carlos IX, acompanhado revestidas de aparência humana. (SAMESHIMA, 2004, p. 7)
de parte de sua corte, em
Paris, com um chefe Tupi- Esses dois relatos indicam as duas visões opostas que permearam
nambá e dois guerreiros
o encontro dos europeus com os povos da América. Uma delas é a
dessa tribo, acesse o link
e leia essa história e muito visão colonizadora do conquistador, favorável à exploração das rique-
mais sobre o tema Natu-
zas naturais do território recém encontrado. Uma visão etnocêntrica
reza x cultura no texto.
que considerava a Europa como civilização superior aos “selvagens”,
Disponível em: https://super.abril.
com.br/historia/o-pensamento- o que dava aos colonizadores o direito de subjugá-los e explorá-los. A
selvagem-de-levi-strauss/. Acesso outra era a visão expressa por Montaigne, que defendia que o certo
em: 21 out. 2021.
e o errado seriam conceitos relativos, a depender do contexto cultu-
ral, e que, por isso, o encontro entre culturas tão diferentes poderia
promover um maior conhecimento sobre a espécie humana e sobre a
própria civilização europeia.
Joa Souza/Shutterstock

As ciências naturais, como a físi-


ca, a química, a biologia, a geologia,
entre muitas outras, ocupam-se
do estudo da natureza e seus fe-
nômenos, e a antropologia, uma
ciência humana, tem como objeto

Mulher indígena Pataxo com criança no colo


durante jogos indígenas na aldeia Coroa
Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália –
Bahia, 2009.

10 Antropologia e Sociologia da Educação


de estudo a cultura, que define a própria área do conhecimento
antropológico. O pensamento antropológico clássico é caracteriza-
do pela separação entre natureza e cultura, como duas categorias
opostas, mas também complementares.

Outras oposições complementares também estão entre as re-


flexões da antropologia, como ambiente e civilização, animal e hu-
mano, entre outras, que estão no centro do debate sobre o que
torna o ser humano especificamente humano, ou seja, o que é
próprio apenas dos seres humanos. Seriam elementos instintivos,
naturais do ser humano, ou características do ambiente em que
o indivíduo se insere, elementos sociais e culturais, que tornam
alguém humano?

A oposição entre natural ou “selvagem” e civilizado é antiga, não


só na antropologia, mas, antes disso, na filosofia e demais áreas
do conhecimento que buscam compreender os seres humanos e
sua vida em sociedade; desde os filósofos chamados de contratua-
listas, como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Thomas Hobbes
(1588-1679), ainda no século XVIII, que discutem a oposição entre
natureza e cultura. A teoria do contratualismo propunha a existên-
cia de um tipo de acordo ou contrato social entre os indivíduos que
tirava o ser humano de seu estado de natureza e o inseria em um
estado de convivência com outros seres humanos em sociedade,
em um movimento de superação da condição “selvagem” e funda-
ção da civilização. Para esses autores, é a partir desse momento Recorte de um selo postal
impresso em Cuba, que
que é criado o Estado, com a função de garantir a continuidade do representa o encontro de
contrato social. Cristóvão Colombo com os
nativos no Novo Mundo (1942).

svic/Shutterstock
A libertação da natureza é a con-
dição essencial da formação da visão
moderna de indivíduo, que enfatiza
as faculdades racionais do ser hu-
mano como meio de superar o mun-
do natural, “selvagem” ou limitado,
e alcançar o patamar da cultura, da
sociedade civilizada, do desenvolvi-
mento e do “progresso”. O debate
natureza x cultura foi materializado

Introdução ao pensamento antropológico 11


em torno de alguns casos clássicos de seres humanos que foram
criados apartados da sociedade, em ambientes naturais isolados,
Figura 1 como florestas.
Retrato de Victor de
Aveyron Tais casos eram chamados de crianças selvagens e dominaram a
imprensa e o imaginário coletivo por bastante tempo. Um dos
mais famosos é o do menino Victor de Aveyron, um meni-
no que foi encontrado, em 1798, vivendo sozinho em uma
floresta após anos de isolamento social. Ele foi levado à
“civilização” e tratado por um conhecido médico francês
da época.

Naquele tempo, a discussão sobre a visão inatista –


que afirma que o conhecimento é inato, já nasce com
o ser humano – e a ambientalista – que defende que o
conhecimento é adquirido por meio das experiências no
meio em que a pessoa está inserida – estava a pleno vapor
na Europa, e o caso do “menino selvagem” parecia não ser
explicável pelas ideias predominantes no debate científico. Os
inatistas argumentavam que Victor era naturalmente sem inteli-
gência, que tinha nascido assim, e os ambientalistas afirmavam que
Victor de Aveyron, o “menino
sua condição intelectual era reduzida por falta de estímulos adequa-
selvagem”. França, final do
século XVIII. dos do ambiente onde tinha vivido.

Em 1969, no filme O Garoto Selvagem, de François Truffaut


Vídeo (1932-1984), a história de Victor de Aveyron foi narrada com base
Veja um trecho do filme no livro The wild boy, found in the woods near Aveyron, do psiquiatra
O garoto selvagem no link
Jean Itard (1774-1838), que acompanhou o menino após o resgate.
a seguir:
O tema da adaptação social ou socialização é recorrente na obra
Disponível: https://www.youtube.
com/watch?v=b5CKltq3Uf4. Acesso desse famoso cineasta francês, que se preocupava em analisar a
em: 26 nov. 2021.
possível “natureza humana intocada”, à qual se referia Rousseau,
que poderia estar presente em crianças como Victor de Aveyron.
Para refletir
O caso de Victor marcou a história polêmica sobre as relações
O que você acha que
entre natureza e cultura. Outros casos semelhantes foram relata-
acontece com uma crian-
ça que é criada desde o dos, como o do biólogo Carl von Linnéc, mais conhecido como Lineu
nascimento sem contato
(1707-1778), criador da classificação das espécies, e o do médico ale-
com seres humanos,
totalmente isolada da mão Elias Rudolf Camerarius (1641-1695), os dois registraram casos
sociedade?
de resgate de crianças sem contato com seres humanos, como o de

12 Antropologia e Sociologia da Educação


Saiba mais
Jean de Liége (1361-1382), o menino-urso da Lituânia (1657); o de Rousseau defendia que o
ser humano é natural-
Hesse (com variação entre 1544 e 1744), o menino-lobo (1872), que mente bom, e que, em
“estado de natureza”,
inspirou a história de Mogli; o da garota de Kranenburg (1717); o do isolado da sociedade,
menino-bezerro de Bamberg (século XVIII); o da menina selvagem ele poderia viver em
liberdade e felicidade ple-
de Champagne (1731), e o de Peter (1724), o Selvagem, da cidade nas, na inocência e sem
capacidade de cometer
de Hanover. nenhuma maldade. Esse
conceito é chamado de
As “crianças selvagens” apresentavam semelhanças entre si: não o bom selvagem e foi ins-
falavam, andavam do mesmo modo que os animais quadrúpedes, pirado em uma expressão
criada por Michel de
e manifestavam vários comportamentos próximos aos de animais Montaigne (1533-1592).

selvagens. Cientistas que estudaram tais casos apontaram que as


crianças teriam deficiências cognitivas e motoras, o que justificaria Filme
a causa desses comportamentos.

Mas para antropólogos, sociólogos e teóricos da educação, a ex-


plicação estaria na ausência de socialização primária, o que teria
impossibilitado a aquisição de linguagem e outras aprendizagens
socioculturais. Na maioria das vezes, as crianças inseridas no con-
vívio social não conseguiam adquirir padrões de linguagem ou de
comportamento compatíveis com o esperado de crianças da mes-
Assista ao filme O enigma
ma faixa etária que tinham sido criadas em sociedade. de Kaspar Hauser que con-
ta a história real de um
Os antropólogos, em geral, afirmam que o que diferencia os adolescente de 15 anos
seres humanos dos demais seres vivos é a cultura, a capacidade encontrado na Alemanha,
na cidade de Nuremberg,
de produzir conhecimentos e tradições que são transmitidos entre em 1928. Ele tinha vivido
desde o nascimento sem
gerações. Um elemento cultural fundamental é a linguagem. Vimos nenhum contato humano,
que uma das características comuns às crianças “selvagens”, que isolado em um porão.
Kaspar não sabia falar,
não passaram pelos processos de socialização e não participaram não andava e não parecia
apresentar comportamen-
ativamente de uma cultura humana, é não terem aprendido nenhu- tos humanos.
ma linguagem verbal, não se comunicarem verbalmente usando Direção: Werner Herzog. Alemanha:
códigos de uma língua, tal como as crianças criadas na “civilização” Versátil Home Vídeo, 1974.

fazem desde pequenas, pois


estas, ao contrário daquelas
Rawpixel/Shutterstock

que foram isoladas do con-


vívio em sociedade, apren-
dem por meio da família e
da escola a língua usada na
comunidade em que vivem.

Introdução ao pensamento antropológico 13


1.2 Alteridade, etnocentrismo e
Vídeo relativismo cultural
No texto de abertura deste capítulo, vimos o relato sobre um en-
contro entre o rei e alguns nobres da corte francesa do século XVI e
um chefe e guerreiros indígenas de um povo originário do Brasil, os
Tupinambás, que viviam em um vasto território, que hoje correspon-
Objetivo de aprendizagem de a grande parte do sudeste brasileiro, e foram praticamente exter-
Compreender con- minados pelos conquistadores portugueses. Vamos relembrar alguns
ceitos centrais para
a antropologia, como
trechos do texto:
alteridade, etnocentrismo
e relativismo cultural.
Os dois relatos indicam as duas visões opostas que permearam o encontro
dos europeus com os povos da América. Uma delas é a visão colonizadora
do conquistador, favorável à exploração das riquezas naturais do território
recém encontrado. Uma visão etnocêntrica que considerava a Europa como
civilização superior aos “selvagens”, o que dava aos colonizadores o direito
de subjugá-los e explorá-los. A outra era a visão expressa por Montaigne,
que defendia que o certo e o errado seriam conceitos relativos, a depender
do contexto cultural, e que, por isso, o encontro entre culturas tão diferentes
poderia promover um maior conhecimento sobre a espécie humana e sobre
a própria civilização europeia.

A experiência do encontro entre culturas, entre o “eu” e o “ou-


tro”, pode ser expressa pela noção de alteridade, que se refere à
condição de ser um outro, um diferente, distante, um forasteiro ou,
como no encontro narrado no texto, um exótico alter, que em latim
significa outro. Note que costuma haver confusão entre o conceito
de alteridade e o de empatia. São conceitos complementares, mas
não idênticos.

Empatia é a capacidade de se sensibilizar com a condição do outro,


colocar-se em seu lugar, tentar ajudá-lo ou confortá-lo de algum modo.
Para exercer empatia, é necessário antes se movimentar na alteridade,
ou seja, estar aberto a conhecer o diferente de si mesmo e a relativizar
a própria visão de mundo. Vejamos um resumo dos dois conceitos:

14 Antropologia e Sociologia da Educação


Capacidade de se Estar aberto a
sensibilizar com a conhecer o diferente
condição do outro, de si mesmo e
de se colocar em relativizar a própria
seu lugar, de tentar visão de mundo.

utterstock
ajudá-lo ou confortá- Empatia Alteridade
lo de algum modo.

kii/Sh
tc
ovi
as
Kr
rew
An d

Nos primórdios dos estudos antropológicos, os pesquisadores se


dedicavam a investigar a alteridade distante, isto é, grupos humanos,
comunidades ou sociedades que viviam em localidades remotas ou
bastante afastadas da Europa, cujos habitantes eram chamados de bár-
baros ou de primitivos, tais como os indígenas brasileiros pareciam aos
colonizadores europeus.

A vivência da alteridade costuma promover a percepção das dife-


renças e do diferente, levando à relativização do que é familiar, conhe-
cido ou natural, ou seja, permitindo que se perceba que o que parece
familiar e conhecido para nós, parece diferente ou estranho para o
outro, e vice-versa, e que tais percepções são relativas a cada ponto
de vista, não sendo verdades absolutas. Os comportamentos, regras,
crenças etc. que nos parecem tão naturais e familiares podem passar a
ser questionados se nos deparamos com a alteridade, com as diferen-
tes práticas e tradições do outro.

Podemos perceber, nos trechos citados, duas visões: a do conquis-


tador europeu e a de Montaigne, que, na verdade, é considerado um
dos precursores do pensamento antropológico – apesar de a antropo-
logia ainda não existir como campo autônomo de conhecimento até
meados do século XIX –, pois ele se interessava por compreender cultu-
ras de outros povos. A visão do conquistador representa o pensamento
colonizador predominante na Europa naquela época, que considerava
os indígenas como “selvagens”, pois tinham outros costumes, outra lín-
gua, outras crenças e tradições, outros valores, e uma visão de mundo
totalmente diferente da dos povos europeus.

Esse pensamento, que valoriza apenas a própria cultura e desvalori-


za a dos outros, e que se julga superior ao de outros povos, aos quais,
por isso, teria o “direito” de subjugar, tratar como inferior, explorar,
escravizar ou até exterminar, é chamado de etnocentrismo. Por outro

Introdução ao pensamento antropológico 15


lado, Montaigne tem uma postura nada etnocêntrica, pois não conside-
ra que uma cultura seja superior a outra, ou a única “correta”, ou que
um povo seja o “civilizado” e o outro seja o “selvagem”, o que demons-
tra uma posição relativista, buscando conhecer outras culturas, pro-
curando a experiência da alteridade e objetivando, no limite, conhecer
melhor a própria cultura e a humanidade como um todo.
Figura 2
Representação cultural dos Tupinambás

Wikimedia/Commons
Indígenas Tupinambás em um ritual. Observados por Hans Staden durante sua viagem ao Brasil
em 1552. Gravura de Theodore de Bry, 1631.

O etnocentrismo é uma visão de mundo que afirma que o grupo ao


qual nós pertencemos é considerado como o centro de tudo e parâ-
metro para o resto do mundo, ou seja, tudo é visto e filtrado com base
em nossos próprios valores, e os outros são percebidos com base em
nossos próprios modelos sobre o que é a vida, sobre como as pessoas
devem pensar, agir, acreditar etc. Podemos dizer que o etnocentrismo
é um fenômeno que se origina devido a uma enorme dificuldade em
conceber e conviver com a diferença, gerando estranhamento, reações
hostis e conflito. Ele agrega, portanto, aspectos racionais e emocionais
simultaneamente, e não se manifestou apenas no passado, em deter-

16 Antropologia e Sociologia da Educação


minados momentos históricos, mas se expressou ao longo da história
humana, incluindo os tempos atuais.

Assim como no caso do encontro entre a corte francesa e os in-


dígenas brasileiros, o etnocentrismo se manifesta em experiências de
choque cultural, isto é, o impacto gerado quando representantes de
culturas muito diferentes entre si se encontram, quando há o choque
entre o “eu” e o “outro”, totalmente diferente de mim.

O choque cultural surge justamente com a identificação das diferen-


ças, consideradas intransponíveis, e com a falta de compreensão das
lógicas, das motivações e dos modos de ser e de estar no mundo do
outro grupo. Esse choque leva a não compreensão/aceitação e à desva-
lorização do outro, que estaria supostamente “errado”, seria “primitivo”
ou “atrasado”, no seu modo de ser e de viver, confirmando a valoriza-
ção do próprio grupo como o único “correto” e “civilizado”, superior a
todos os outros grupos, que seriam os “selvagens”, os “bárbaros” etc.

Ser etnocêntrico não é uma característica exclusiva de determina-


da sociedade, não são apenas os europeus colonizadores os únicos
etnocêntricos da história. A postura, a visão de mundo e as atitudes
etnocêntricas estão presentes em muitas sociedades na atualidade, in-
cluindo a brasileira.

Por exemplo, podemos identificar componentes de etnocentrismo


na violência contra o outro, que não existe apenas contra os povos in-
dígenas e comunidades tradicionais, mas também se revela nas intera-
ções com grupos considerados “diferentes”, com culturas percebidas
como “erradas”, seja sob aspecto dos padrões morais ou religiosos do
grupo etnocêntrico, como é o caso muitas vezes do não reconhecimen-
to da identidade e da violência que marcam o tratamento dos grupos
LGBTQIA+, seja sob aspecto da desvalorização cultural e étnica dos gru-
pos não brancos por parte de grupos brancos.

O etnocentrismo se manifesta no cotidiano das sociedades e regula


parte das relações socioculturais. Se de início os antropólogos busca-
vam uma alteridade distante, aos poucos foram se voltando para uma
alteridade mais próxima e começaram a realizar pesquisas em socie-
dades conhecidas, ou mesmo na própria sociedade, o que aponta um
movimento feito pelo pensamento antropológico contemporâneo de
buscar estranhar o que é familiar, natural ou conhecido e de conceber o
diferente, o estranho, como algo natural. Para o antropólogo brasileiro

Introdução ao pensamento antropológico 17


Roberto DaMatta (1936-), o antropólogo deve transformar o exótico em
familiar e o familiar em exótico, em uma experiência de alteridade que
relativize os conteúdos culturais e, em seguida, sob um olhar antropo-
lógico sobre a própria cultura, que desnaturalize sua realidade.

Outra noção relacionada ao debate sobre as culturas que temos es-


tudado até aqui é o relativismo cultural, proposto como teoria pela
primeira vez no século XIX pelo antropólogo Franz Boas (1858-1942),
um pioneiro da antropologia moderna. Boas defendia que não existem
verdades culturais, pois não existem padrões para medir o comporta-
mento humano e compará-lo a outro. Cada cultura mede e julga a si
mesma. Meneses, um cientista social brasileiro contemporâneo, afir-
ma, no mesmo sentido que Boas, que a base do interesse da antropo-
logia pela diversidade de povos e culturas é o relativismo cultural:
é o relativismo cultural que considera, como sociedades alterna-
tivas e culturas tão válidas quanto as nossas, esses povos cuja
própria existência questiona nossa maneira de ser, quebrando
o monopólio, que comumente nos atribuímos, da autêntica rea-
lização da humanidade no planeta. [...] Enquanto o etnocentris-
mo é um preconceito, e suas derivações doutrinárias (racismo,
evolucionismo cultural etc.) são ideologias (consciência falsa e
falsa ciência), o relativismo cultural pertence à esfera da ciência.
(MENESES, 2020, p. 6)

Meneses (2020, p. 6) afirma que a noção de relativismo cultural en-


volve três significados:

1º 2º 3º

aShatilov/Shutterstock
“Todo e qualquer “Percepção de que as “Relativismo cultural
elemento de uma cultura culturas são relativas, isto remete à ideia de que as
é relativo aos elementos é, não há cultura – nem culturas são equivalentes
que compõem aquela elemento dela – que e, logo, não se pode
cultura e só tem sentido tenha caráter absoluto, criar uma escala em
em função do conjunto, perfeito. Não existe, que a cada cultura seja
sendo sua validade portanto, um padrão atribuída uma ‘nota’, de
dependente do contexto único para julgar de acordo com o critério de
em que está inserido, antemão o certo e o ‘mais ou menos perfeita’.”
de sua posição em errado entre as culturas,
meio a outros níveis e pois cada uma traz em si
elementos da cultura da seu padrão de medida.”
qual faz parte.”

18 Antropologia e Sociologia da Educação


O autor destaca, entretanto, que o relativismo não é só uma “sus-
pensão de juízo”, já que não se consegue aplicar nenhum critério de-
cisivo para classificar as culturas; o relativismo afirma positivamente
que uma cultura é tão válida como qualquer outra, por ser uma ex-
periência diversa que o ser social faz de sua humanidade. Para ele, as
repercussões da aplicação da noção de relativismo cultural à pesquisa
são várias:

• Respeito sincero pela cultura e sociedade dos outros povos.

• Cuidado extremo com a objetividade.

• Cuidado com cada traço cultural sendo estudado em seu contexto.

• Recusa de interferir e de modificar costumes e tradições de um


povo.

Sob perspectiva diferente, vários autores das ciências humanas em


geral e, em especial, da antropologia criticam o uso irrestrito do concei-
to de relativismo cultural, contrapondo-o à natureza universalista dos
direitos humanos, por exemplo. Nesse sentido, algumas práticas cultu-
rais tradicionais, como o infanticídio entre alguns grupos indígenas bra-
sileiros e a mutilação genital em algumas regiões da África e do Oriente
Médio, são alvo de debates que envolvem, de um lado, as noções de
relativismo cultural e, de outro, os direitos humanos universais.

Vamos nos aprofundar um pouco sobre um dos exemplos apre-


sentados anteriormente. A antropóloga Marianna Assunção Fi-
gueiredo Holanda, que estuda o tema do infanticídio indígena Você pensa que todas as
práticas culturais devem ser
no Brasil, aponta que “esse é um dos pontos centrais do es-
sempre respeitadas ou há algumas

ck
tudo: o que nós, brancos, entendemos como sendo vida e delas que violam os direitos

ersto
utt
humano é diferente da percepção dos índios. Um bebê in- humanos e, por isso,

h
ii

/S
ks
Ole
precisariam Tel
nov
dígena, quando nasce, não é considerado uma pessoa – ele ser confrontadas?
vai adquirindo pessoalidade ao longo da vida e das relações
sociais que estabelece” (ESTUDO CONTESTA..., 2009).

Sob uma visão relativista, que procura compreender essa prá-


tica cultural em seu contexto e sob a lógica das crenças e dos costumes
desses grupos indígenas (que representam uma parte bem pequena dos
povos originários do Brasil), a partir dos significados que dão a suas ações,
leva-se em conta que, nessas tribos, as crianças que não são percebidas
como adequadas aos padrões aceitáveis pela comunidade não poderão

Introdução ao pensamento antropológico 19


ser inseridas no grupo e não serão socializadas pela coletividade, o que
significa, muitas vezes, que não poderão ser mantidas vivas.

Os mitos que regem essas ações são muito presentes na cultura des-
ses grupos indígenas e trazem a crença de que, por exemplo, crianças de-
ficientes significam maldição ou castigo àquela tribo. Além disso, há ainda
os motivos práticos, relacionados à necessidade de que as crianças se tor-
nem adultos úteis ao grupo, capazes de caçar, pescar etc.

Por outro lado, sob a perspectiva dos direitos humanos, considera-se


que, apesar de a cultura ser um elemento essencial de construção da iden-
tidade humana e dos valores fundamentais, é crucial proteger os direitos
humanos mais básicos, como o direito à vida, independentemente das di-
ferenças culturais, e garantir um padrão ético mínimo universal.

O debate entre essas duas vertentes de pensamento está longe de ter-


minar. A visão relativista considera que a perspectiva universalista dos di-
reitos humanos seria uma imposição de determinados valores e padrões
ocidentais específicos a todas as culturas do mundo, elegendo um código
de ética específico como aplicável a todos os grupos humanos, desconsi-
derando suas especificidades culturais, suas tradições, crenças etc.

Já a visão universalista vê no relativismo cultural uma aceitação


conformada de que toda e qualquer prática cultural deve ser respeita-
da sem questionamentos, como se as diferenças culturais validassem
completamente qualquer crença, valor ou prática cultural, independen-
temente de suas consequências éticas.

1.3 O pensamento antropológico


Vídeo
Para compreender o pensamento antropológico, vamos conhecer
um pouco sobre o surgimento e o desenvolvimento da antropologia e
sobre os caminhos que essa área do conhecimento tem traçado, sob
alguns aspectos, desde a modernidade até a contemporaneidade.

No contexto de expansão marítima das nações europeias, da explo-


ração colonial e dos relatos dos viajantes europeus à América, e sob a
necessidade de justificar a conquista dos territórios e a exploração dos
povos lá encontrados pela necessidade de “humanizar os selvagens”,
surgem as primeiras teorias que buscam explicar as diferenças cultu-

20 Antropologia e Sociologia da Educação


Objetivo de aprendizagem
rais entre os povos, além disso já vimos que as concepções europeias
nessa época eram etnocêntricas e consideravam inferiores as culturas Conhecer os princípios do
pensamento antropológi-
dos povos indígenas. cos e seu desenvolvimen-
to teórico.

1.3.1 Origens da antropologia Curiosidade


Nesses primórdios da antropologia, a busca por compreender as As teorias advindas do
determinismo biológico,
diferenças étnicas culturais recentemente encontradas levou a concep- que originaram uma
ções como o determinismo geográfico e o determinismo biológico. Os classificação das raças em
superiores e inferiores,
teóricos do determinismo geográfico defendiam que as especificida- influenciaram a teoria
des do ambiente em que um povo vivia determinavam a sua cultura. da Eugenia, uma teoria
profundamente racista e
Essa seria a razão de existirem culturas diferentes: ambientes diferen- discriminatória que pro-
tes, com climas, solos e vegetação diferentes. Já os teóricos do deter- punha a limpeza étnica
com vistas ao “branquea-
minismo biológico afirmavam que existiam diferenças fundamentais mento” das populações.
entre as “raças” que determinariam o comportamento de brancos, in- Essa teoria foi uma das
bases do Nazismo e
dígenas, negros etc. Esse modelo biológico determinista influenciou o influenciou a formação
surgimento das doutrinas raciais. do Movimento Eugenista
Brasileiro, que pretendia
Com a publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin acabar com a miscigena-
ção racial no país e coibir
(1809-1882), surge a teoria evolucionista, que acabou por inspirar a an- o aumento da população
tropologia física ou biológica, que utilizava o modelo determinista bio- não branca, por meio da
seleção de imigrantes
lógico como base e afirmava que os comportamentos humanos, suas e de esterilização em
características intelectuais etc. eram transmitidas de maneira hereditá- massa, por exemplo.

ria e aplicava técnicas de medida de tamanhos e proporções de pessoas Figura 3


provenientes de diferentes “raças” e relacionavam tais medidas, como Craniometria
as do crânio e outras partes do corpo, a determinadas características.

Ancorada no debate evolucionista, a antropologia do século XIX con-


solidou o darwinismo social, ligado a uma análise biológica
do ser humano, e não a uma análise cultural e social, to-

Wikimedia/Commons
mando a sociedade europeia como o auge da evolução
humana, a “civilização”, e as sociedades aborígines e
indígenas como etapas “primitivas” do ser humano.

A craniometria era uma técnica usada


pelos teóricos do determinismo biológico
para, por meio de dados referentes aos
crânios de diferentes “raças” de pessoas,
determinar a inteligência, considerada como
relacionada ao tamanho do cérebro e aos
detalhes na formação do crânio.

Introdução ao pensamento antropológico 21


O darwinismo social foi usado como justificativa para a dominação de
outros povos por parte dos europeus.

A partir da segunda metade do século XIX, com o avanço da indus-


trialização e as transformações nas sociedades europeias, começam a
surgir na antropologia teóricos que propunham conceitos e métodos
realmente próprios à disciplina e alinhados a uma ciência do ser huma-
no. Nessa época surgiram os estudos de três autores clássicos da área
que representam essa tendência científica do pensamento antropo-
lógico: Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor (1832-
1917) e James George Frazer (1854-1941). Tais autores fazem parte do
chamado evolucionismo cultural, que defendia que a evolução das so-
ciedades, o progresso e o desenvolvimento técnico eram as referências
para analisar as diferenças culturais entre os povos.

Para Morgan, a observação das sociedades primitivas, que estariam


em níveis evolutivos inferiores à civilização e identificando as etapas e
conquistas tecnológicas de tais povos, como a descoberta do fogo, o
processo de fixação no território etc., permitiria reconstruir a história
dos seres humanos. Já Tylor foi o responsável por propor o primeiro
conceito de cultura no contexto da antropologia: “cultura ou civiliza-
ção, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume
e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na
condição de membro da sociedade” (TYLOR apud CASTRO, 2005, p. 69).

Esse autor propunha que o trabalho do antropólogo era o de ca-


talogar os artigos culturais, tal qual um botânico faria. Ele também
acreditava que as diferenças nos costumes, manifestações artísticas,
conjuntos de regras e crenças dos povos se originavam de diferentes
estágios evolutivos – que se ligam ao progresso tecnológico “mais evo-
luído” e “menos evoluído”, e não a raças ou características biológicas.

Frazer, por sua vez, delimitou o escopo da antropologia social, que


teria como objeto de estudo exclusivamente as origens da humanida-
de, as chamadas na época sociedades primitivas, com desenvolvimento
primário, e não envolveria o estudo das “sociedades civilizadas”. Esse
escopo foi bastante ampliado mais à frente, por antropólogos do início
do século XX, que, ao contrário dos evolucionistas, chamados de pes-
quisadores de gabinete, por produzirem suas análises fechados em suas

22 Antropologia e Sociologia da Educação


salas, sem ir a campo, e usando dados recolhidos por outras pessoas,
faziam pesquisa de campo e coletavam dados pessoalmente.

1.3.2 A antropologia moderna


As teorias do evolucionismo cultural passaram a ser refutadas a
partir dos estudos difusionistas, que apontavam outra explicação para
as diferenças culturais entre os povos: sua distribuição geográfica e a
migração de traços culturais de um povo para outro. Para eles, cada
cultura era um caleidoscópio de traços culturais com diferentes origens
e trajetórias históricas.

As trocas culturais permitiriam casos como o das sociedades que


tinham, por exemplo, tecnologias muito básicas, mas um sistema
de crenças complexo, invalidando a noção de que haveria uma ho-
mogeneidade nos elementos culturais determinados por um estágio
de desenvolvimento. Influenciado por essas ideias, Franz Boas cons-
trói um pensamento antropológico crítico ao caráter etnocentrista
do evolucionismo cultural, fazendo nascer a antropologia moderna
(DURAN; DURAN, 2020, p. 34).

Boas não concordava com o pressuposto evolucionista de que a


semelhança dos elementos culturais de povos que viviam em regiões
distantes umas das outras seria a evidência de que a mente do ser hu-
mano funcionaria exatamente do mesmo modo em todos os lugares
e de que sociedades no mesmo “estágio de desenvolvimento” se com-
portariam de maneira idêntica.

O que ele acreditava era que os contatos entre as culturas, como


as migrações, proporcionariam diferentes desenvolvimentos históricos
em cada local e os mesmos eventos ou fenômenos poderiam se de-
senvolver de maneira totalmente diferente em cada cultura, cada uma
com suas particularidades. Em 1896, Franz Boas publica a obra As li-
mitações do método comparativo em antropologia, desmontando a tese
das diferenças biológicas entre povos primitivos e civilizados, e defen-
de que as diferenças entre as sociedades são culturais, não raciais. Na
década de 1930, o autor publica obras que complementam essa teoria.

Durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929,


sob influência das ideias de Franz Boas, intelectuais brasileiros, como
Gilberto Freyre (1900-1987), confrontaram as teorias raciais, denun-
ciaram as péssimas condições da saúde pública para as populações

Introdução ao pensamento antropológico 23


negras no Brasil e destacaram as contribuições dos africanos na forma-
ção social e cultural brasileira.

Artigo

https://www.16snhct.sbhc.org.br/resources/anais/8/1534354260_ARQUIVO_AndersonRicardoCarlos_
trabalhocompleto.pdf

Leia o artigo Eugenia no Brasil: reflexões sobre raça, miscigenação e Direitos


Humanos para a educação científica e entenda como incorporar o tema da
eugenia no contexto da educação científica escolar.

Acesso em: 21 out. 2021.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um marco em relação à


reflexão intelectual sobre o determinismo biológico/racial no mundo
após a tragédia humanitária representada pelo Holocausto (1941-1945),
que culminou no extermínio de milhões de judeus, além de ciganos, ne-
gros e outros grupos considerados “inferiores” pelos nazistas. Poucos
anos após seu término, na década de 1950, a UNESCO reuniu intelec-
tuais de várias partes do mundo para produzir uma declaração sobre
o tema raça, no sentido de recusar qualquer tipo de determinismo ou
classificação racial. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-
2009) integrou a força-tarefa da declaração e publicou pouco depois
sua célebre obra Raça e História, de cunho antirracista.

Recuando um pouco ao início do século XX, vamos encontrar um


Livro outro aspecto do desenvolvimento da antropologia, no campo meto-
dológico, quando a observação direta dos grupos humanos passa a ter
grande importância para a produção do conhecimento antropológico,
e a pesquisa do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942)
foi determinante para essa nova perspectiva.

Em sua clássica obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922,


O livro Pequeno manual Malinowski reúne as diretrizes metodológicas para a pesquisa antro-
antirracista, da filósofa e pológica que se tornariam o “manual” de investigação de campo dos
ativista Djamila Ribeiro,
apresenta caminhos de futuros antropólogos: afastamento da própria cultura, aproximação do
reflexão para quem dese- nativo do grupo pesquisado, vivência da cultura do outro, postura re-
ja ter uma nova percep-
ção sobre discriminações lativista, evitando o etnocentrismo. Essas diretrizes constituem o cha-
com base no racismo mado método etnográfico, cuja base é a “observação participante”, uma
estrutural e assumir a
responsabilidade pela técnica de interação entre o pesquisador e a cultura pesquisada.
transformação do estado
das coisas. O desenvolvimento da antropologia moderna foi marcado por duas
RIBEIRO, D. Rio de Janeiro: perspectivas teóricas bastante distintas, a da chamada antropologia so-
Companhia das Letras, 2019. cial, desenvolvida na Inglaterra e na França, e da qual já conhecemos

24 Antropologia e Sociologia da Educação


vários teóricos, e a antropologia cultural, ligada aos antropólogos esta-
dunidenses, como Talcott Parsons (1902-1979).

Foi Parsons quem delimitou, em meados do século XX, como ob-


jeto da antropologia, enquanto campo científico autônomo, a cultura,
legando os sistemas social, político e econômico para os sociólogos. O
antropólogo considerava que os estudos antropológicos deveriam se
voltar para a análise dos comportamentos dos indivíduos, pois estes
refletiriam as culturas nas quais estavam inseridos.

Tanto a antropologia social quanto a antropologia cultural se dedi-


cam ao mesmo objeto e aplicam o método etnográfico para investigá-lo,
mas, na antropologia social, a ênfase estaria na análise e comparação
de sistemas de relações sociais, e na antropologia cultural, estaria na
análise a partir da compreensão de comportamentos dos integrantes
de um grupo determinado da sociedade.

Essa diferença não faz mais sentido atualmente e parece reducio-


nista, pois os objetos de pesquisa são fenômenos socioculturais varia-
dos, complexos, que demandam olhares transdisciplinares, recorrendo
muitas vezes ao arcabouço teórico-metodológico de outras áreas.

De modo resumido, podemos verificar os seguintes marcos na an-


tropologia ao longo do tempo:

Figura 3
Linha do tempo sobre o desenvolvimento da antropologia
1950

Graf Vishenka/Shutterstock
UNESCO
produz uma
declaração
1930
antirracista.
Franz Boas 1939-1945
desmonta a tese Segunda Guerra
1929
das diferenças Mundial é um
Primeiro
1922 biológicas entre marco em
Congresso
Método povos primitivos e relação à reflexão
Brasileiro
etnográfico, civilizados. intelectual sobre
de Eugenia:
de Bronisław intelectuais o determinismo
Malinowski brasileiros, como biológico/racial.
Gilberto Freyre,
confrontam as
teorias raciais.

Fonte: Elaborada pela autora.

Introdução ao pensamento antropológico 25


Atualmente a delimitação da antropologia como área autônoma
passa pelo modo como são articuladas as dimensões da teoria e da
prática, com a pesquisa de campo iluminando conceitos teóricos, e
pelo desenho metodológico, quase sempre qualitativo e etnográfico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante muito tempo a antropologia se voltou para os povos que eram
chamados de primitivos, estudando o que era distante ou “exótico”, mas
atualmente esse campo se dedica a estudar as mais diferentes culturas
e experiências de alteridade, incluindo inúmeros grupos integrantes das
sociedades complexas – que possuem suas próprias culturas – e os mais
diferentes fenômenos sociais, como sociabilidades urbanas, relações in-
terétnicas, dinâmicas entre comunidades e meio ambiente, gênero e se-
xualidade, globalização e consumo, processos educativos, entre muitos
outros objetos.
A aplicação de conceitos e métodos da antropologia aos processos
educativos pode contribuir tanto para o ensino de conteúdos específicos
relacionados às ciências humanas quanto para a abordagem de temas
transversais e saberes e práticas ligadas à formação do cidadão, com o
desenvolvimento de conceitos como cultura, etnocentrismo, alteridade e
relativismo cultural.

ATIVIDADES
Atividade 1
O que os casos das crianças selvagens nos revelam sobre o peso
das culturas humanas e das relações sociais na construção do
que chamamos de indivíduo?

Atividade 2
Partindo do pressuposto de que os valores se originam das con-
cepções de mundo e essas concepções variam conforme cada
cultura, como se poderia estabelecer valores universais?

26 Antropologia e Sociologia da Educação


Atividade 3
Por que não é viável aplicar as ideias evolucionistas de Darwin,
concebidas no contexto das ciências naturais, às análises sociais
e culturais?

REFERÊNCIAS
AMARAL, S. P.; MIRANDA, C. O pensamento selvagem de Lèvi-Strauss. Superinteressante, 31
ago. 2003. Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/o-pensamento-selvagem-de-
levi-strauss/. Acesso em: 21 out. 2021.
CASTRO, C. (org.). Evolucionismo cultural/textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005. p. 223-224.
DURAN, M. R. C.; DURAN, M. R. C. Dividir o pão: a cultura entre a História e a Antropologia.
Revista Relegens Thréskeia, UFPR, v. 9, n. 1, p. 34, 2020.
ESTUDO CONTESTA criminalização do infanticídio indígena. UnB Ciência, 2009. Disponível
em: https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta-
criminalizacao-do-infanticidio-indigena. Acesso em: 26 nov. 2021.
HOLANDA, M. A. F. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio
indígena. 2008. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Ciências Sociais;
Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. Disponível em: https://www.
repositorio.unb.br/handle/10482/5515. Acesso em: 8 nov. 2021.
MENESES, P. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista Gestão e
Políticas Públicas, v. 10, n. 1, p. 1-10, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
rgpp/article/view/183491/170496. Acesso em: 8 nov. 2021.
SAMESHIMA, M. C. A. As cartas da França Antártica. Revista Intellectus, v. 2, p. 1-8, 2004.
Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5860312.pdf. Acesso em: 26
nov. 2021.

Introdução ao pensamento antropológico 27


2
Antropologia, educação
e sociedade
A antropologia pode ser usada como uma das ciências de apoio aos
estudos voltados para a educação e a formação dos indivíduos, no sentido
de analisar os universos culturais que integram tanto a instituição esco-
lar quanto contextos informais de educação. A análise das relações entre
indivíduo, cultura e sociedade, bem como da socialização de crianças e jo-
vens sob a perspectiva antropológica, pode ser bastante útil para analisar
os contextos e os processos de ensino e aprendizagem.
Podemos considerar que uma questão antropológica fundamental da
educação é o modo como o processo de constituição do indivíduo é ana-
lisado, que varia conforme o processo de socialização pelo qual ele passa,
posto que a escola é uma das mais importantes instâncias de socialização.
A depender da perspectiva teórica adotada, tal análise produzirá resulta-
dos diferentes. Neste capítulo, vamos abordar tais perspectivas, buscando
compreendê-las.

2.1 Indivíduo, cultura e sociedade


Vídeo Os conceitos de indivíduo, de cultura e de sociedade são
complexos e polissêmicos, isto é, assumem variados sentidos de-
pendendo da área do conhecimento e da linha teórica pelas quais
estão sendo utilizados. Para a antropologia, o indivíduo é tratado so-
bretudo em suas relações com a cultura e com os processos sociais
Objetivo de aprendizagem que permitem a aquisição dos elementos culturais do seu grupo,
Compreender os con- tornando-o parte da sociedade, ao que chamamos de socialização.
ceitos de indivíduo e de
cultura para a antropolo- A cultura, sob a perspectiva antropológica, reúne um amplo com-
gia e analisar as relações
desses conceitos com a
plexo de costumes, crenças, valores e tradições de um grupo huma-
vida em sociedade. no que envolve desde a linguagem, a religião, os hábitos, as normas
e as leis até hierarquias, relacionamentos, sistemas de parentesco,
noções de espaço e tempo, noção de certo e errado, práticas sociais,

28 Antropologia e Sociologia da Educação


ritos, mitos, conhecimentos, saberes e visão de mundo, incluindo
aspectos materiais e simbólicos. Então, temos a seguinte relação:

Fireofheart/Shutterstock
Figura 1
Cultura na perspectiva
antropológica
Costumes Crenças

Cultura

Valores Tradições

A educação escolar está imersa na cultura de uma sociedade, e uma


de suas funções é garantir a transmissão de elementos culturais, como
linguagem, conhecimentos, regras e saberes. Há certo consenso, na
área da antropologia, de que o conceito de cultura não admite uma
definição fechada, assim como o conceito de indivíduo, que pode se
referir à identidade sob determinada perspectiva antropológica e ao
agente social sob determinada visão sociológica.

Embora a aprendizagem faça parte de todas as cul-


turas humanas, a relação ensino-aprendizagem, do
modo como é considerada na sociedade moderna,

Lightspring/Shutterstock
com uma separação e especialização relativas ao
indivíduo que ensina e ao indivíduo que aprende,
não é universal. A noção própria de indivíduo é
também uma noção moderna, construída histó-
rica e socialmente ao longo da modernidade, na
qual o ser humano adquiriu centralidade na visão
de mundo predominante. Influenciadas pelo
movimento iluminista, as sociedades ociden-
tais passaram por profundas transforma-
ções, que modificaram também as relações
que as pessoas mantinham entre si.

Várias delas se relacionavam ao prota-


gonismo que passou a ser dado ao indivíduo
na sociedade. A palavra indivíduo, em latim
individuus, quer dizer “não dividido”, indivisível, e

Antropologia, educação e sociedade 29


aparece em registros do século XVII se referindo ao ser humano isolado,
singular. Mas, independentemente do período, não há como conceber
o indivíduo desligado da sociedade em que ele vive, de suas relações
com seu grupo social, da cultura, das dinâmicas e relações sociais que
caracterizam a sociedade de seu tempo.

A antropologia tem abordagens específicas sobre o indivíduo e suas


relações com a cultura e com a sociedade, e, para compreendê-las e
poder aplicá-las à análise dos processos educacionais, é preciso conhe-
cer um pouco melhor as origens e o desenvolvimento do pensamento
antropológico.

2.1.1 Abordagens antropológicas


As ciências humanas como um todo têm como objeto de estudo
os seres humanos e suas relações entre si e com o ambiente em que
vivem sob os mais diversos aspectos – culturais, sociais, psicológicos,
econômicos, educacionais etc. O indivíduo, as diferentes culturas hu-
manas e as relações entre indivíduo e sociedade são os focos de inte-
resse dessa grande área do conhecimento e são objetos de estudo das
ciências sociais (sociologia, antropologia e ciência política).

A antropologia especificamente estuda o ser humano, sobretudo


sob seus aspectos culturais, mas também sociais e até biológicos, dedi-
cando-se, em uma acepção ampla, ao conhecimento sobre a diversida-
de cultural, buscando compreender o que somos, enquanto indivíduos
imersos em uma cultura e vivendo em sociedade, com base no reflexo
que nos é devolvido pelo “outro”. O pensamento antropológico é um
modo de reconhecer as fronteiras dos diversos mundos sociais e cul-
turais, abrindo passagens entre eles e alargando nosso conhecimento
sobre os outros e sobre nós mesmos.

Para obtermos um panorama resumido dessa área do conhecimen-


to, é interessante saber que a antropologia é estruturada em campos
ou ramos do conhecimento que definem seus objetos e abordagens
específicas de estudo. As classificações, no entanto, variam de acordo
com a época e a perspectiva teórica. A classificação por áreas consi-
derada pelo Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) é a seguinte:

30 Antropologia e Sociologia da Educação


Simakova Mariia
Shutterstock
Boyko.Pictures/
Shutterstock

aShatilov/Shutterstock
davooda/
Shutterstock
mspoint/
Shutterstock

Antropologia física Antropologia


Antropologia social Arqueologia
ou biológica cultural
Pouco influente na Pesquisa sobretudo as Estuda sistemas Investiga os vestígios
tradição intelectual organizações e relações simbólicos (religião, materiais que revelam as
brasileira, dedica-se ao sociais e políticas, os comportamentos etc.) condições de existência
estudo dos aspectos sistemas de parentesco e e temas relacionados dos grupos humanos,
biológicos e genéticos do as instituições sociais. Em às diversas culturas, do passado remoto,
ser humano e tem sua suas origens, definiu os incluindo os pertencentes já desaparecidos ou
origem marcada pelas fenômenos sociais como às culturas das sociedades recentes, tais como
teorias raciais sobre objetos de investigação complexas, como objetos, estruturas
miscigenação, biotipologia socioantropológica. antropologia da arte, da arquitetônicas, pinturas
e eugenia, hoje bastante ciência e da tecnologia, etc.
ultrapassadas. É uma das das relações de gênero,
bases da medicina legal e da etnicidade e racismo,
da antropologia jurídica, etnologia indígena etc.
bastante desenvolvida nos
EUA, por exemplo.

Podem ser aplicados, ainda, os termos antropologia, etnologia e


etnografia para nomear diferentes níveis de análise ou diferentes tradi-
ções acadêmicas. Segundo Lévi-Strauss (1970, p. 377):
a etnografia se refere aos primeiros estágios da pesquisa, nos quais
são realizados a observação e a descrição, o trabalho de campo.
a etnologia seria uma etapa inicial em direção à síntese.
a antropologia seria a segunda e última etapa da síntese, feita
com base nas conclusões da etnografia e da etnologia.

Há, no entanto, quem se refira à etnologia como sinônimo de antro-


pologia cultural, e à etnografia como um método específico de pesquisa.

O pensamento e os estudos antropológicos têm origem muito antes


da institucionalização do campo da antropologia como área do conhe-
cimento e objeto de ensino, o que só ocorreu a partir do século XIX.
Muito antes disso, já no século XVI, os relatos de viagens de viajantes,
Triff/Shutterstock

Antropologia, educação e sociedade 31


missionários, exploradores, mercadores, oficiais militares e administra-
Filme dores coloniais já traziam descrições dos diferentes povos descobertos
nos “novos” territórios conquistados e explorados durante a expansão
marítima e comercial europeia.

As características naturais dos territórios e seus ambientes apare-


ciam em minuciosas descrições da fauna, da flora, do solo, dos rios
etc., assim como costumes, aparência, hábitos, crenças e organização
dos povos nativos de tais territórios também eram relatados. São dessa
época (século XVI) os primeiros relatos dos encontros entre culturas e
Hans Staden é o premiado as reflexões sobre alteridade na relação com o outro, por exemplo a:
drama biográfico baseado
na obra de Hans Staden,
“Carta do Descobrimento”, de Pero Vaz de Caminha (c.
Duas viagens ao Brasil. 1450-1500).
Narra a história do via-
jante e sua captura pelos “Viagem à Terra do Brasil”, do missionário francês Jean de Léry
Tupinambá. (c. 1534-1611).
Hans Staden. Direção: Luiz Alberto “Duas viagens ao Brasil”, do viajante e mercenário alemão Hans
Pereira. Lapfilme do Brasil: Brasil/
Portugal, 2000. Staden (c. 1525-1576).
“Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, do pintor francês Jean
Baptiste Debret (1768-1848), no século XIX, em sua viagem in-
tegrando a Missão Artística Francesa.

A partir do século XIX, o campo da antropologia começa a se insti-


tucionalizar com trabalhos de sistematização do conhecimento reco-
lhidos até ali sobre os chamados, naquela época, de povos primitivos.
No início desse período, os antropólogos produziam seus conceitos
e teorias fechados em seus gabinetes com base em estudos dos ma-
teriais recolhidos pelos viajantes, não realizando eles mesmos ne-
nhum estudo de campo.

Uma das correntes de pensamento dessa época era chamada de


escola do evolucionismo social, cujos expoentes eram: Herbert Spencer
(1820-1903), Edward B. Tylor (1832-1917), Lewis Morgan (1818-1881) e
James Frazer (1854-1941). Ela defendia a ideia de uma evolução das so-
ciedades, das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, e investigava
as origens humanas, sob a perspectiva diacrônica (da evolução ao lon-
go do tempo), voltando-se aos estudos dos temas parentesco, religião
e organização social.

Nesse contexto, gradativamente os antropólogos passaram do con-


ceito de raça para o de cultura. São expoentes do evolucionismo social:
Spencer, Tylor, Morgan e Frazer.

32 Antropologia e Sociologia da Educação


Ainda no século XIX, desenvolveu-se outra corrente de pensamento Importante
bastante influente nos primórdios da antropologia, a escola sociológica Para Durkheim, a so-
ciedade está acima e é
francesa, que delimitou como objetos de pesquisa socioantropológica exterior aos indivíduos,
os fenômenos sociais (dando origem à linha teórica mais tarde ligada à perpetuando-se por meio
de normas, convenções
área de antropologia social), além de se preocupar com a definição de sociais e valores que con-
regras para o método de estudo dos fenômenos da sociedade. tribuem para estabelecer
uma sensação de coleti-
Os temas de estudo dessa tendência eram as representações cole- vidade e são transmitidos
às novas gerações por
tivas, as noções de solidariedade orgânica e mecânica que manteriam meio das instituições,
a coesão social nas sociedades – conceitos de Émile Durkheim (1858- como a família e a escola.
Para ele, a socialização
1917) – e as formas primitivas de classificação das sociedades, como faz parte de um processo
o totemismo, buscando esclarecer o chamado fato social total nas so- coercitivo da sociedade
para garantir a perpe-
ciedades (conceito de Marcel Mauss (1872-1950) que reuniria aspectos tuação de seus valores e
biológicos, psicológicos, sociológicos, políticos, econômicos, religiosos regras.

etc.), fenômenos da troca e da reciprocidade, base da vida social.

Nos anos 1920, a escola funcionalista predominou no pensamen- Glossário

to antropológico. Ela usava um modelo de etnografia clássica, o qual totemismo: sistema de


classificação, presente
procurava empreender estudos descritivos das diversas culturas e et- em várias sociedades,
nias humanas, produzidos com base em estudos de campo realizados que busca preservar a
complementaridade entre
sob a perspectiva da observação participante (técnica de pesquisa e co- natureza e cultura, sepa-
leta de dados em que o pesquisador não só observa, mas compartilha rando os seres humanos
da natureza (conside-
o cotidiano da comunidade estudada). rando-os na esfera da
cultura) e simultaneamen-
Os temas de investigação do funcionalismo eram a cultura enquanto te identificando-os com
totalidade e as instituições sociais e suas funções na manutenção da tota- elementos da natureza,
como animais.
lidade cultural, sob a perspectiva das dinâmicas entre a dimensão diacrô-
nica e a dimensão sincrônica, que estuda um fenômeno em um momento
específico. Os principais antropólogos funcionalistas foram: Bronislaw
Malinowski (1884-1942), Radcliffe Brown (1881-1955), Evans-Pritchard
(1902-1973), Raymond Firth (1901-2002), Max Gluckman (1911-1975),
Victor Witter Turner Glasgow (1920-1983) e Edmund Leach (1910-1989).

Na década de 1930, nos Estados Unidos, surge o culturalismo, ten-


dência antropológica que privilegiava o método comparativo nos es-
tudos culturais e que buscava leis no desenvolvimento das culturas.
Essa tendência foi uma das bases da área de antropologia cultural
e se dedicava ao estudo das relações entre cultura e personalidade,
preocupando-se em estabelecer e identificar padrões culturais ou es-
tilos de cultura. Os principais antropólogos dessa corrente de pensa-
mento foram Franz Boas, Margaret Mead (1901-1978) e Ruth Benedict
(1887-1948).

Antropologia, educação e sociedade 33


Nos anos 1940, emerge, na França, o estruturalismo, que se inte-
ressa por investigar as regras estruturantes das culturas, que estariam
na mente humana. Os temas de pesquisa dessa tendência teórica fo-
ram propostos essencialmente por Lévi-Strauss e abordavam os prin-
cípios de organização da mente humana, como os pares de oposição
e códigos binários e a reciprocidade (a oposição natureza e cultura, a
teoria do parentesco, a lógica do mito e a classificação primitiva). Para
Lévi-Strauss não existiriam civilizações “primitivas” ou civilizações “evo-
Glossário
luídas”, mas sim respostas diferentes a problemas fundamentalmente
hermenêutica filosófica:
abordagem interpretativa idênticos.
da filosofia aplicável tanto
à compreensão de textos
Na década de 1960, a antropologia interpretativa, também chama-
quanto ao universo práti- da de simbólica, se estabelece como corrente de pensamento. Essa
co do mundo, das ações
e da existência humana.
tendência, inspirada na hermenêutica filosófica, compreende a cul-
A hermenêutica cultural, tura como hierarquia de significados e propõe que se empreenda uma
desenvolvida na antro-
pologia, tem origem na
densa descrição interpretativa das culturas, ao invés de buscar identi-
hermenêutica filosófica. ficar leis gerais, buscando compreender a leitura que os nativos fazem
de sua própria cultura.

O principal autor dessa corrente é o antropólogo estaduni-


dense Clifford Geertz (1926-2006). Sua obra A interpretação das
culturas, em que privilegiava a análise da prática simbólica, é re-
UNESCO/Michel Ravassard

ferenciada até hoje por autores mais recentes. Geertz considera-


va que a cultura humana é como um conjunto de textos a serem
“lidos” e propunha que o objeto da antropologia é descobrir, em
cada formação cultural, quem as pessoas acham que são, o que
elas fazem e quais motivos elas acham ser os que as levam a
fazer o que fazem. Para Geertz, cultura é um padrão de signi-
ficados transmitidos historicamente e incorporados em formas
simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpe-
tuam-se, desenvolvem seu conhecimento sobre a vida e definem
sua atitude em relação a ela (KUPER, 2002, p. 132).
O antropólogo francês Claude
Lévi-Strauss em evento da A partir dos anos 1980, surge a antropologia crítica, ou
Organização Mundial das pós-moderna, que critica os paradigmas da etnografia clássica, pon-
Nações Unidas (ONU),
em 2005. do em debate a suposta autoridade etnográfica do antropólogo e os
recursos retórico-textuais das etnografias clássicas, e mesmo das con-
temporâneas. Essa tendência problematiza e politiza a relação entre
observador e observado na pesquisa antropológica, e seu interesse te-
mático recai sobre a cultura enquanto processo polissêmico, que tem

34 Antropologia e Sociologia da Educação


na etnografia a possibilidade de representar de modo multifacetado e
plural tal multiplicidade de significados culturais. São expoentes dessa
vertente antropólogos como James Clifford (1945-), James Boon (1946-)
e Paul Rabinow (1944-2021).

No contexto da antropologia contemporânea, os debates sobre cul-


tura, identidades e suas dinâmicas têm se ampliado e incorporado diá-
logos mediados pelas novas formas culturais tecidas entre os âmbitos
global e local. Edward Hall (1914-2009) já afirmava há alguns anos que:
1
a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente
Os estudos decoloniais
é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de
questionam as narrativas
significação e representação cultural se multiplicam, somos con- alinhadas à configuração
frontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante eurocêntrica do mundo,
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos que se fundamenta histo-
ricamente no processo de
nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2006, p. 13) colonização da América.
Produzem, assim, novas
Recentemente, no cenário das discussões sobre identidades, conso- leituras de processos e
lidam-se os estudos sobre identidades étnico-raciais, que estão no bojo problemáticas histórico-
-sociais, culturais, artísti-
dos estudos sobre africanidades e sobre legado africano, sob o olhar cas etc., dando visibilidade
da população negra e influenciados por uma nova vertente teórica que a narrativas, práticas e
autorias sob a perspectiva
perpassa as ciências humanas como um todo, os chamados estudos da América-Latina.
1
decoloniais .

2.2 Socialização, cultura e educação


Vídeo Ouvimos muito a palavra socialização no contexto escolar, sobre-
tudo em relação a processos educacionais na Educação Infantil e nas
séries iniciais do Ensino Fundamental, mas, assim como os conceitos
de indivíduo, de cultura e de sociedade, o conceito de socialização é
bastante complexo e varia conforme as perspectivas de cada área do
Objetivo de aprendizagem conhecimento, tendências teóricas que tomamos como referência, o
Compreender as relações tempo histórico e espaço considerados.
entre processos de
socialização, cultura e pro- A antropologia, a sociologia, a psicologia e a pedagogia são algumas
cessos educativos.
das áreas que tratam do conceito de socialização, cada qual com sua
abordagem. Em cada uma delas, esse termo é tomado de um modo,
conforme cada autor ou movimento teórico. Veremos, nesta seção, o
conceito de socialização sob várias perspectivas para compreendê-lo e
para identificar suas aplicações no contexto educacional.

Antropologia, educação e sociedade 35


Você já sabe, por exemplo, que a aquisição da cultura do grupo
social ao qual uma criança pertence é realizada por meio das re-
lações que a criança tem, desde o seu nascimento, com os outros
seres humanos com os quais convive. Se a criança for isolada da
sociedade durante toda a infância e não mantiver contato com seres
humanos, ela não adquirirá elementos culturais essenciais, como a
linguagem, e não aprenderá com os familiares e outros adultos pró-
ximos os costumes, os valores, as regras e as crenças específicos da
comunidade. Para além desses casos excepcionais, todos nós nas-
cemos em uma determinada estrutura social, que existe objetiva-
mente antes de nascermos, e passamos a conviver com indivíduos
que já vivem nela. São eles os responsáveis por nossa socialização,
começando pelos familiares e, depois, pelos educadores.

No momento em que a família introduz a criança ao ambiente em


que vive, ela faz isso de acordo com determinadas “lentes” ou “fil-
tros”, tais como a classe social à qual pertence ou seus hábitos pró-
prios enquanto família. Com essas lentes, a criança começa a ver o
mundo e a si mesma nesse mundo social, isto é, esses aspectos irão
condicionar e modelar as experiências sociais da criança. Perceba
que esse processo não se refere apenas à educação intelectual ou
cognitiva, mas também a uma educação cultural, social e emocional
da criança. É nesse cenário que a criança constitui sua personalida-
de e sua identidade, assimilando condutas e adotando determina-
dos papéis sociais.

A socialização, no entanto, não ocorre apenas durante a infância,


mas por meio de processos ao longo de toda a vida dos indivíduos,
constituindo-os como seres sociais. Ela pode apresentar as seguin-
tes visões, de acordo com a área de estudo: Monkey Bussiness Images/Shutterstock

A palavra socialização faz


parte do universo docente,
principalmente entre
educadores da Educação
Infantil e das Séries Iniciais do
Ensino Fundamental.

36 Antropologia e Sociologia da Educação


Áreas de estudo Processos de socialização

Antropologia São vistos frequentemente sob a perspectiva da oposição entre natureza e cultura.

Se detém nas perspectivas sociais, de aquisição e adaptação aos padrões sociais de


Sociologia
cada grupo.

Privilegia os aspectos educacionais da socialização, sobretudo os processos formais


Pedagogia
desenvolvidos pela escola.

Busca entender as relações entre a socialização e a construção da personalidade e


Psicologia dos comportamentos individuais.

De outro modo, se analisarmos sob o viés das tendências


teórico-metodológicas, a socialização pode ser concebida com base
em teorias mais deterministas, como o funcionalismo, o behavioris-
mo, o estruturalismo, a sociologia de Durkheim e as teorias psicana-
líticas de Sigmund Freud (1856-1939); ou sob pontos de vista mais
dialéticos e flexíveis, como o interacionismo simbólico, o interacio-
nismo social de Lev Vygotsky (1896-1934) e o construtivismo de Jean
Piaget (1896-1980); e com base em conceitos como o de habitus, pro-
posto pelo sociólogo contemporâneo Pierre Bourdieu (1930-2002), e
o de ação comunicativa, elaborado pelo sociólogo Jürgen Habermas,
ligado à Escola de Frankfurt.

Basicamente, tais teorias encaram a socialização de dois modos:


como a imposição de normas e valores sociais ao indivíduo (visão
determinista) ou como processo de construção da identidade indivi-
dual e coletiva por meio de múltiplas e plurais “negociações” com o
meio social (visão dialética). Sob a visão dialética considera-se, além
de outros aspectos, que a socialização integra duas dinâmicas si-
multâneas: a ação da sociedade sobre os indivíduos e a apropriação

Antropologia, educação e sociedade 37


ou internalização do universo social por parte dos indivíduos. Sob
a perspectiva da socialização na infância, esse processo dialético é
reconhecível tanto na família quanto na escola.

Teorias Teorias

aShatilov/Shutterstock
deterministas dialéticas

A socialização é um A socialização é um
processo de coerção processo dinâmico de
da sociedade sobre o “mão dupla”, em que a
indivíduo para modelá-lo sociedade age sobre o
conforme os valores e indivíduo e este também
costumes sociais. se apropria do universo
social, produzindo assim
a sociedade.

Para analisar as diferenças entre o prisma das teorias clássicas


(mais deterministas) sobre a socialização e as teorias mais dialéticas
sobre o conceito, devemos considerar que, com as transformações
nas sociedades, transformam-se também o conceito de socialização
e as instâncias ou instituições socializadoras. As transformações na
instituição da família, por exemplo, são bastante marcantes nesse
contexto, assim como as mudanças em relação à posição social da
mulher e o reconhecimento da criança e do adolescente como ca-
tegorias sociais específicas, além das transformações na educação.

Tais mudanças, aliadas ao cenário mais amplo das transforma-


ções trazidas pela consolidação do capitalismo, resultaram em no-
vas interpretações do que sejam os processos de socialização e de
como, quando e por meio de quais instâncias ocorrem. Os processos
de socialização ocorrem em todas as sociedades, mas o modo pelo
qual as instâncias ocorrem varia histórica e culturalmente.
2
Uma das perspectivas clássicas da socialização, sob uma con-
Coesão social, segundo
Durkheim, é o conjunto
cepção determinista, vem da sociologia e foi proposta por um dos
de noções, crenças, tradi- fundadores dessa área do conhecimento, Émile Durkheim. Para o
ções, opiniões coletivas,
normas e regras aceitas
sociólogo, o indivíduo é socializado por meio de múltiplas influên-
por todos os membros da cias da sociedade, a qual pretende, com tal processo, manter o con-
sociedade. 2
senso, a coesão social , que tornaria viável a vida em sociedade.

38 Antropologia e Sociologia da Educação


Durkheim afirmava que a educação é a ação exercida pelas gera-
ções adultas sobre as gerações que ainda não estão amadurecidas
para a vida social, ou seja, a educação seria uma socialização metó-
dica das novas gerações, no sentido de preservar e fortalecer a inte-
gração social por meio da construção do “ser social”, um sistema de
ideias, sentimentos e hábitos que expressam nos indivíduos a cons-
ciência coletiva do(s) grupo(s) a que pertence(m) (DURKHEIM, 1958).

Essa visão, no entanto, está longe de ser a única nas ciências so-
ciais, como a antropologia e a sociologia, ou mesmo na educação.
Para vários autores, como Max Weber e Clifford Geertz, a sociedade
não é apenas algo exterior, como propõe Durkheim, mas está tam-
bém no interior dos indivíduos, fazendo parte deles.

2.2.1 Socialização e interacionismo simbólico


Há várias pesquisas antropológicas sobre a perspectiva cultu-
ral da socialização, como as da antropóloga cultural estadunidense
Margaret Mead sobre os ritos de iniciação e as diferenças de gênero
em tribos de Samoa, na Oceania, representando um dos estudos de
caso clássicos da antropologia cultural.

As pesquisas de Mead, discípula de Franz Boas, foram desenvol-


vidas nos anos 1930 e revelaram, com base na investigação da cul-
tura samoana, bastante diferente da ocidental, que não existiriam
personalidades femininas e masculinas naturais, como se concebia
na época.
Tomste1808/Wikimedia Commons.

Margaret Mead em pesquisa


de campo em Samoa.

Antropologia, educação e sociedade 39


Estudo de caso
Mead identificou, durante sua pesquisa em várias tribos de Samoa, que as
atitudes afetuosas em relação às crianças, típicas dos Arapesh, são nor-
mas válidas tanto para os homens quanto para as mulheres dessa tribo,
e que os homens assumem comportamentos que seriam caracterizados
como femininos nas sociedades ocidentais. De maneira análoga, na tribo
Mundugumor, a agressividade é a regra para homens e mulheres, e as mu-
lheres incorporam comportamentos que chamaríamos de “masculinos” nas
sociedades ocidentais.
Ela concluiu então que a socialização resulta em tipos sociais adaptados
a um contexto social determinado, o que define as estruturas mentais que
caracterizam a personalidade e o comportamento dos indivíduos naquela
sociedade (MEAD, 2004). Sob essa visão, os comportamentos, tais como os
ligados à maternidade e à criação e à educação das crianças, por exemplo,
não são resultantes de disposições inatas, ou seja, não nascem com as pes-
soas, mas são determinados pela ação da sociedade sobre os indivíduos.

Os estudos de Mead revelaram que os diferentes comporta-


mentos de gênero fazem parte dos quadros culturais estabeleci-
dos na sociedade e que estes são os definidores dos papéis e dos
modelos de comportamentos de homens e mulheres. Esses com-
portamentos são ensinados por meio de processos de socialização.
Como os quadros culturais variam de sociedade para sociedade,
variam também os comportamentos considerados “femininos” ou
“masculinos”, o que foi uma grande novidade para o pensamento
ocidental, tão marcado pelo etnocentrismo.

É preciso considerar, no entanto, que os estudos de caso clás-


sicos da antropologia cultural, tais como o de Mead, foram reali-
zados em sociedades simples, ou seja, pouco diferenciadas. Nas
sociedades complexas contemporâneas, nas quais predomi-
na o individualismo, podemos identificar uma ação da so-
ciedade menos determinante na socialização das novas
gerações e na reprodução das estruturas culturais (sim-
bólicas) da sociedade.

A visão de Margaret Mead se filia à tendência do


interacionismo simbólico, que compreende os pro-
cessos de construção do ser social sob a perspectiva
do indivíduo, e não da sociedade (ao contrário do que
ck
sto

propunha Durkheim, por exemplo). Nesse contexto, ela


te r
ut
Sh

sk
a/

lov
Mas
n a
ia
Tet

40 Antropologia e Sociologia da Educação


propôs a socialização como processo que abrangeria a formação
da identidade individual, ou seja, incluindo aspectos antes aborda-
dos apenas pela Psicologia.

A perspectiva do interacionismo simbólico uniu vários intelec-


tuais, entre sociólogos, antropólogos, psicólogos, educadores etc.,
em torno do que se chamou como Escola de Chicago. Ela conside-
rava que a socialização não seria apenas um processo de trans-
missão e interiorização da cultura, mas também um processo de
formação do ser social, de constituição da identidade pessoal, do
“eu”, por meio da interação com o outro, na qual há o reconheci-
mento de si mesmo e do outro, a incorporação de papéis
sociais e a aprendizagem de modelos de conduta, so-
bretudo por meio da linguagem, que pode promover
a compreensão sobre o outro.

Mead propôs que o jogo, ou a brincadeira, tem


grande relevância na socialização das crianças,
apontando que durante os primeiros anos da
infância a socialização ocorre por meio de pro-
cessos de observação e de imitação, ou seja, as

ck
sto
crianças aprendem observando e imitando – muitas

te r
ut
Sh
vezes inconscientemente – os comportamentos dos ov

e/
l
oin
Ya
pais, dos familiares, como quando a criança brinca de
“casinha” ou de boneca, imitando os comportamentos coti-
dianos dos pais em seu meio social.

Em uma segunda etapa da infância, a socialização ocorre por


meio, por exemplo, de jogos em equipe, que possuem re-
gras definidas que devem ser seguidas pelos jogado-
res, tais quais as regras sociais. Nos primeiros anos,
portanto, a interação ocorre de modo interpessoal;
mais tarde, as condutas passam a ser definidas
conforme as expectativas de um outro “genéri-
co”, impessoal. Já na adolescência o processo de
socialização teria fim, com a apropriação subje-
tiva do “espírito da sociedade”, a partir do qual
ck

o indivíduo passa a ser reconhecido pelo grupo,


sto
te r
ut

identificando-se com os papéis sociais, aprendendo


Sh

ki
y/

i ns
a desempenhá-los em sociedade. Kish
ton
An

Antropologia, educação e sociedade 41


Para a autora, o indivíduo socializado está em tensão constante,
sempre pressionado por duas necessidades:

Andrew Krasovitckii/Shutterstock
A necessidade
de expressar sua
subjetividade, escolhendo
múltiplos papéis.

ck
ersto
hutt
igic/S

ck
Z
zen

rsto
Dra

uttesh
zzul/
so li
ama
A conformidade em

tom
relação aos padrões do
grupo, necessária para
que ele seja reconhecido
como pertencente à
comunidade.

O indivíduo é resultado da sociedade, mas simultaneamente aju-


da a criá-la. Portanto, por mais forte que seja a socialização à qual
ele se submete, ainda haveria, para Mead, espaço para a criatividade
individual.

As teorias de Mead sobre os papéis sociais influenciaram diversos


antropólogos na concepção de suas teorias, bastante diversas entre si,
como a teoria da ação de Talcott Parsons (1902-1979), os estudos sobre
representação de Erving Goffman (1922-1982), as vertentes contempo-
râneas interacionistas e fenomenologistas (interacionismo simbólico e
etnometodologia), influindo também os trabalhos de sociólogos con-
temporâneos como Habermas e Peter Berger, do qual trataremos a
seguir.

2.2.2 Socialização e abordagem fenomenológica


Para Berger e Luckmann (2014), o ser humano só existe a partir do
momento em que ele é reconhecido como ser humano pelos outros
seres humanos, o que explicaria o motivo de pessoas que não tiveram
reconhecimento e afeto durante a infância se tornarem desumaniza-
das, “selvagens”. O autor defende a importância de estudar não só os

42 Antropologia e Sociologia da Educação


papéis sociais como também os grupos de referência. Para ele, uma
criança só adquire respeito por si mesma se for respeitada pelos adul-
tos; assim como, se for considerada “problemática” pelos adultos em
seu entorno, se tornará efetivamente problemática.

Ou seja, para os autores, o ambiente social no qual a criança vive é


interiorizado pela criança por meio do processo de socialização (pro-
cesso que ocorre também, em menor proporção, com indivíduos adul-
tos que adentram um novo grupo social).

É mediante o conceito de interiorização que Berger e Luckmann


(2014) compreendem a manutenção dos controles sociais externos,
pois é por meio da interiorização que a sociedade não apenas man-
teria controle sobre as ações dos indivíduos, mas também modelaria
suas identidades, pensamentos e sentimentos: “as estruturas sociais
se tornam as estruturas de nossa consciência. A sociedade não para na
superfície de nossa pele, ela nos penetra tanto quanto ela nos envolve,
“[...] é com nossa colaboração que somos jogados no cativeiro” (BER-
GER; LUCKMANN, 2014, p. 160).

Essa concepção se filia à abordagem da fenomenologia e busca Para refletir


aliar o determinismo de Durkheim ao interacionismo simbólico de Você concorda com
a ideia de Berger e
Mead. Em uma obra clássica sobre a socialização, A construção social
Luckmann de que a crian-
da realidade, Berger e Luckmann (2014) buscam compreender a rela- ça só respeita a si mesma
se for respeitada pelos
ção entre indivíduo e sociedade sob perspectiva dialética, propondo a
adultos em seu entorno?
divisão da socialização em dois momentos: socialização primária, que
torna o indivíduo um membro da sociedade; e a socialização secun-
dária, constituída por uma série de processos contínuos ao longo da
vida do indivíduo, por meio dos quais eles interiorizam papéis sociais,
normas e representações sociais que lhes possibilitam atuar em cená-
rios inéditos.
erstock
u tt
anice/sh

Socialização primária
liz

Desenvolvida principalmente por meio de instâncias de socialização


como a família e a escola. Durante a infância, o indivíduo não possui
ainda um repertório de vivências suficiente para julgar se o que estão
lhe ensinando é verdadeiro ou válido. Desse modo, as crianças cos-
tumam aceitar o que lhe é transmitido, crendo no que dizem e fazem

Antropologia, educação e sociedade 43


os que estão ao seu redor, sem contestá-los, o que é denominado de
aprendizagem incondicional ou aprendizagem por imitação.

Durante a socialização primária, a tendência é que o mundo apre-


sentado à criança pelos adultos, sobretudo familiares, seja o único
concebível. Os processos educativos chamados de processos formais
acontecem na instância social da escola, e os informais costumam
acontecer na família, entre amigos, vizinhos, mas também por meio
de agentes ligados à cultura de massas, como a televisão e a internet.
O modo particular de assimilação dos hábitos forma as diferentes cul-
turas no tempo e no espaço, portanto os indivíduos criados em um
contexto cultural e social específico são influenciados pelos hábitos,
condutas, valores, crenças, práticas e normas característicos de tal
contexto.
erstock
u tt
anice/sh

Socialização secundária
liz

Desenvolvida por meio de outras instâncias da sociedade. Para


Berger e Luckmann, ocorre na fase adulta, quando os indivíduos têm
contato com as instâncias do mundo do trabalho, as religiosas, as re-
lacionadas à vizinhança, como associações comunitárias, clubes etc.
Nelas, os indivíduos, que já são parte da estrutura social objetiva da so-
ciedade, pois já passaram pela socialização primária, passam a apreen-
der e incorporar novas práticas sociais, por vezes mais complexas,
aprendendo a desempenhar novos papéis na sociedade e garantindo
sua adequação aos padrões vigentes e inserção social plena. Ao lon-
go da socialização secundária os indivíduos percebem, em geral, que o
que lhes foi apresentado na infância não é o único mundo existente, e
que a realidade social é mais ampla, diversa e complexa.

2.2.3 Outras abordagens sobre socialização


Outra abordagem contemporânea importante sobre a socialização
é a do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que criou, para entender me-
lhor tal processo, o conceito de habitus, um conjunto de princípios ex-
plicativos, regras, padrões e modelos estéticos, éticos, morais, sociais
que um indivíduo recebe de seus familiares, uma “gramática social”
que cada pessoa obtém e reconhece como sua apenas pelo fato de ter
nascido e integrar determinada família. Para Bourdieu é o habitus que

44 Antropologia e Sociologia da Educação


orienta o percurso de cada indivíduo na sociedade, definindo seus gos-
tos e seu modo de pensar e de participar socialmente, tendo estreito
vínculo com a classe social de origem do indivíduo e de sua família.

Em sua obra, escrita em parceria com Jean-Claude Passeron, A


Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, Pierre
Bourdieu aponta que a educação escolar, enquanto processo de so-
cialização, não é neutra, nem promove igualdade de oportunidades ou
justiça social, mas, na verdade, reproduz as desigualdades, sobretudo
de classes, pois transmite apenas determinados conhecimentos, carac-
terísticos das classes dominantes, a chamada alta cultura, privilegiando
os indivíduos que, por herança cultural, já incorporaram tais conheci-
mentos como parte de seu habitus.

Na obra, os autores demonstraram como o mecanismo pedagógico


das escolas, aplicado ao processo de socialização escolar, privilegiava
um conjunto de saberes que dava vantagens aos estudantes com nível
socioeconômico maior, que já chegavam ao ambiente escolar com um
capital cultural (complexo de conhecimentos e habilidades) que corres-
pondia ao que era desenvolvido no currículo.

No contexto da cultura digital em que vivemos, autores como François


Dubet e Bernard Lahire têm realizado estudos sobre as novas práticas
socializadoras e as novas instâncias de socialização, referindo-se aos
processos próprios da sociedade atual, um espaço plural, de múltiplas re-
ferências culturais e identitárias, que proporciona ao indivíduo tecer um
sistema híbrido e complexo de sentidos para a atuação em sociedade.

Segundo Lahire, temos testemunhado a emergência de novas prá-


ticas e instâncias socializadoras, assim como de no-
vas sociabilidades, formas de se relacionar
socialmente, ligadas sobretudo à cultura
de massas e às novas mídias, que não
a família e a escola, que permitem di-
ferentes experiências de socialização
e contribuem para a construção de
Eawpixel/Shutterstock

indivíduos mais plurais, capazes po-


tencialmente de compreender outros
modelos de cultura que não os viven-
ciados nas comunidades de origem.

Antropologia, educação e sociedade 45


Tal contexto, segundo Setton (2005), aponta para:
[...] uma nova arquitetura das relações sociais, em que as ações
educativas não se realizam apenas nos espaços institucionais
tradicionais. Ao contrário, essa nova configuração cultural alerta
para outras modalidades educativas, circunstanciando a particu-
laridade do processo de socialização na contemporaneidade. E é
nesse quadro que a nova ordem cultural impõe um impacto ao
processo de construção da identidade e da subjetividade do indi-
víduo nas formações sociais atuais. [...] as biografias individuais
e coletivas contemporâneas, segundo essa perspectiva, não es-
tariam mais definidas e traçadas apenas a partir de experiências
próximas no tempo e no espaço, transmitidas pelos agentes tra-
dicionais da educação. Ao contrário, poderiam ser influenciadas
por modelos e referências produzidos e vividos em contextos
sociais longínquos e/ou virtuais [...]” (SETTON, 2005, p. 346).

Por outro lado, é função social da escola alertar para a acentuação


exagerada da dimensão individual, para a personalização radical in-
centivada pelo contexto contemporâneo, estimulando os laços sociais
e culturais com a coletividade. A escola é uma instância fundamental
para a socialização de crianças e adolescentes, e é preciso equilibrar
a função socializadora da escola, de estabelecimento de um projeto
comum de sociedade, de fomento à criação de vínculos com a comu-
nidade e de construção de uma identidade coletiva, com a valorização
das identidades individuais, para que os processos de socialização no
contexto escolar não tomem um sentido uniformizador ou autoritário,
que apague as individualidades e especificidades pessoais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As abordagens antropológicas podem contribuir significativamente
para analisar os universos culturais que integram tanto a instituição es-
colar quanto seus contextos informais de educação e podem apoiar a
investigação das relações entre indivíduo, cultura e sociedade, sobretudo
no que tange aos processos de socialização de crianças e jovens, dos con-
textos e dos processos de ensino e aprendizagem. A análise e a reflexão
sobre os processos de socialização e aquisição cultural desenvolvidos por
meio da Educação são ferramentas importantes para os educadores.

46 Antropologia e Sociologia da Educação


ATIVIDADES
Atividade 1
Quais são as diferenças entre evolucionismo social e
funcionalismo?

Atividade 2
Com base em sua experiência no contexto escolar, qual visão
– determinista ou dialética – você considera predominante nos
processos educativos?

Atividade 3
De que modo a emergência de novas práticas e instâncias sociali-
zadoras pode afetar a educação formal no contexto escolar?

REFERÊNCIAS
BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.
DURKHEIM, E. Education et Sociologie. Paris: PUF, 1958.
HALL, S. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006.
KUPER, A. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.
MEAD, M. Moeurs et sexualité en Océanie. Paris: Plon/Pocket, 2004.
SETTON, M. G. J. A particularidade do processo de socialização contemporâneo. Tempo
Social, v. 17, n. 2, p. 335-350, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-
20702005000200015. Acesso em: 10 nov. 2021.

Antropologia, educação e sociedade 47


3
Antropologia da Educação
e formação docente
A cultura e a capacidade de aprendizado ao longo da vida são caracte-
rísticas dos seres humanos, e o conteúdo e a forma do que é aprendido
dependem da cultura em que o indivíduo está inserido. Talvez more aí
uma das intersecções entre a antropologia e a educação. Nesse sentido,
o professor Carlos Brandão defende que o que nos torna humanos não é
o fato de sermos racionais ou o fato de sermos políticos, mas sim nossa
característica de seres aprendentes, ou seja, capazes de aprender (ICICT/
FIOCRUZ, 2019). Isso significa que nossas práticas simbólicas são criadas,
aprendidas e transformadas pela comunidade, e são transmitidas de ge-
ração em geração. É isso o que nos diferencia dos outros animais, que
têm sua aprendizagem limitada pelo instinto e pela programação genética
e não contam com a inventividade e a imaginação humanas.

3.1 Antropologia Educacional


Vídeo A Antropologia Educacional está voltada, atualmente, para a análi-
se da construção do conhecimento contextualizado socialmente, bus-
cando dar conta de sua complexidade e abordando fenômenos como
as culturas escolares, a multiculturalidade e a Rawpixel.co
m/S h
utte
rsto
interculturalidade, as diferentes constru- ck

Objetivo de aprendizagem ções identitárias e de subjetividades,


os mitos e ritos ligados ao trabalho
Compreender a antropo-
logia educacional como docente e às relações na comuni-
perspectiva de análise
dade escolar, as práticas simbó-
sobre a educação na
qualidade de prática licas na escola, a cultura digital,
simbólica, em suas dimen-
entre outros temas relaciona-
sões culturais e ligadas às
práticas docentes. dos à diversidade cultural do
contexto escolar.

É importante compreender os fundamentos


antropológicos dos processos educacionais e do
trabalho docente.

48 Antropologia e Sociologia da Educação


3.1.1 Origens da Antropologia Educacional
Em meados do século XX, surgiu, na Alemanha, a Antropologia
Educacional, que foi nomeada na teoria da área como Antropologia
Educacional Alemã, caracterizada como um campo de pesquisa teórica e
aplicada da ciência da educação. Na primeira fase, durante as décadas
de 1950 e 1960, foram desenvolvidas abordagens ligadas à filosofia,
à fenomenologia e pela chamada Antropologia Educacional Integrativa
(WULF, 2005).

Nessa etapa inicial, essa subárea, bastante recente da antropologia


aplicada aos estudos educacionais, estava voltada principalmente para
a abordagem da criança sob uma perspectiva herdada da filosofia: a de
Homo educandus, isto é, preocupada com a educação da criança e sua
vocação. Essa visão desconsiderava os contextos histórico-culturais da
criança e focava na dependência dela com relação ao adulto, posiciona-
mento teórico que acabava obscurecendo a importância da historicida-
de das representações coletivas, as diversas possibilidades de análise
das relações entre os seres humanos e os processos educacionais,
como os de socialização, e mesmo as dinâmicas no interior do campo
Livro
educacional e o papel de educadores e educandos nesse contexto.

Porém, a vertente da Antropologia Educacional Filosófica não era a


única na época. A linha da Antropologia Educacional Fenomenológica
voltava-se para a análise dos fenômenos individuais da vida humana,
como inconsequência, vergonha, decência, medo, experiência temporal
e espacial, segurança, práticas, ambiente educativo etc., no sentido de
compreender o ser humano tanto em sua totalidade quanto em suas
especificidades. Já a Antropologia Educacional Integrativa dedicou-se a
buscar respostas para os problemas de aprendizagem e de linguagem O filósofo Cristoph Wulf
é ligado às linhas da
baseando-se em estudos individuais, mas ancorada em proposições teó- Antropologia Filosófica
ricas bastante abstratas e genéricas sobre o universo educacional. e Antropologia Histórica
nos estudos da Educação
Em uma segunda fase da Antropologia Educacional, que se esten- de modo mais geral, não
necessariamente aplicada
de da década de 1990 à atualidade e que acompanhou as dinâmicas ao contexto da escola,
teórico-metodológicas próprias ao campo dos estudos antropológicos, mas no livro Antropologia
da educação ele relaciona
destacaram-se as vertentes da Antropologia Educacional Histórica e da tais linhas à Antropologia
Antropologia Educacional Histórico-Cultural. Estas eram voltadas para da Educação.

uma pedagogia crítica, fundamentada em paradigmas mais recentes WULF, C. (Coleção Educação em
debate). Campinas: Editora Alínea,
das Ciências Humanas e Sociais, como as abordagens culturais e his- 2005.
tóricas das diferenças entre os grupos humanos, que podem contri-

Antropologia da Educação e formação docente 49


buir para, no contexto da pesquisa educacional, subsidiar uma análise
mais sistemática das várias dimensões da formação humana, incluindo
a educação formal escolar (conforme apresentado na figura a seguir).
Figura 1
Fases da Antropologia Educacional

Antropologia
Fenomenológica Antropologia
Educacional
Educacional
Filosófica Histórico-
Integrativa Histórica
-Cultural

1ª fase (décadas 2ª fase


de 1950 e 1960 (década de 1990
até anos 1980) à atualidade)

Para Wulf (2005), ao relacionar questões educacionais com os di-


versos paradigmas antropológicos – evolucionista, filosófico, histórico,
cultural etc. –, vislumbra-se novos problemas e novas possibilidades
de, na interface entre os campos da antropologia e da educação, inves-
tigar temas como educação, aprendizagem, formação humana, ensino,
socialização. Para o autor, a pedagogia não deve se limitar a um ponto
de vista restrito sobre o ser humano em formação, mas adotar uma
abordagem ampla que considere suas múltiplas facetas e potencialida-
des, seus contextos sociais e culturais.

Ele afirma que todo ator social da educação, seja educador ou ou-
tro membro da comunidade escolar, tem suas ações de algum modo
condicionadas por saberes antropológicos, conscientes ou não, e que a
antropologia da educação deve analisar, organizar, reavaliar e produzir
saber por meio das ciências da educação, garantindo a desconstrução
dos conceitos da educação sob perspectiva antropológica.

Sob outro ponto de vista, Gusmão (2016, p. 48) afirma:


A antropologia, como ciência da modernidade, coloca seu aparato
teórico construído no passado, com possibilidade de, no presen-
te, explicar e compreender os intensos movimentos provocados
pela globalização: de um lado, os processos homogeneizantes da
ordem social mundial e, de outro, contrariando tal tendência, a

50 Antropologia e Sociologia da Educação


reivindicação das singularidades, apontando para a constituição
da humanidade como una e diversa [...]. Nesse campo de tensão,
defende-se que ora a trajetória da antropologia tem sido a de
avaliar as diferenças sociais, étnicas e outras com a finalidade
de proporcionar alternativas de intervenção sobre a realidade
social de modo a não negar as diferenças [...]. No contexto desse
debate, a análise das relações existentes entre antropologia, es-
tudos culturais e educação apresenta-se como desafio teórico da
modernidade e como uma necessidade diante dos princípios e
das práticas presentes na articulação entre o campo científico e
o processo educativo na sociedade moderna.

Hoje, a Antropologia da Educação ou Educacional deixa o interesse na


investigação do educando na qualidade de ser humano universal para
estudá-lo como ser histórico, inserido em um contexto cultural e social,
sob uma perspectiva crítica e reflexiva, a qual busca dar conta da com-
plexidade da realidade educacional e de fenômenos próprios da contem-
poraneidade que penetram os muros da escola – a diversidade cultural
e as novas relações com o saber proporcionadas pelas tecnologias, por
exemplo. Nesse cenário, é fundamental compreender os fundamentos
antropológicos dos processos educacionais e do trabalho docente e
reconhecer as práticas simbólicas e as múltiplas culturas na escola.

Artigo

https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643455

No artigo Antropologia, estudos culturais e educação: desafios da modernidade,


a autora Neusa Maria Mendes Gusmão aborda a questão da diversidade e
do contato cultural presentes na realidade social atual e os debates sobre
a produção do conhecimento nesse contexto por meio das relações entre
antropologia, estudos culturais e educação.

Acesso em: 15 dez. 2021.

3.2
Vídeo
A educação como prática simbólica
Aspectos fundamentais para se pensar os processos educativos e o
trabalho docente sob perspectiva antropológica são as práticas simbó-
licas das comunidades escolares, as culturas escolares e as construções
identitárias que atravessam os processos de aprendizagem e de so-
cialização desenvolvidos na escola, bem como perpassam as relações
Objetivo de aprendizagem
que os docentes estabelecem com as instituições nas quais atuam, com
Entender as dimensões
simbólicas das práticas
seus pares, com os alunos e suas famílias, com seu próprio conheci-
educativas. mento e com os saberes e práticas culturais locais.

Antropologia da Educação e formação docente 51


A educação, tanto na escola quanto em outros espaços, é tecida por
um conjunto de práticas simbólicas inerentes ao ser humano. E como
tal, essas práticas também são objeto da antropologia, que pode con-
tribuir para sua compreensão mais ampla.

Há uma dimensão cultural na organização escolar, assim como em


qualquer área ou instituição da vida social. É nessa dimensão que são
realizadas as práticas simbólicas, que precisam ser compreendidas,
pois, como quaisquer outros aspectos do imaginário e da cultura, elas
influenciam a realidade e as relações sociais e, especificamente nesse
caso, intervêm na dinâmica interna da escola, reproduzindo ou trans-
formando as práticas sociais correntes.

Figura 2
Reunião escolar

Eduardo Câmara Lima/Wikimedia Commons


Escola estadual de Pernambuco que é adepta da gestão democrática e participativa.

Cada instituição escolar tem seus mitos e ritos, que contribuem


para a formação das identidades docentes e discentes e fazem parte
da cultura escolar. Alguns deles são comuns a determinados tipos de
instituição, a épocas ou regiões específicas. As reuniões dos profissio-
nais da escola com as famílias dos alunos, que no passado eram cha-
madas de reuniões de pais ou reuniões de pais e mestres, são exemplos
de rito presente na quase totalidade das instituições escolares, embora
em cada uma delas seja organizada e realizada de maneira diferente,
assumindo significados diferentes para a comunidade escolar. Em al-
gumas, as famílias são convidadas a participar da gestão escolar sob

52 Antropologia e Sociologia da Educação


perspectivas democráticas; em outras, as reuniões não chegam a cons-
tituir um verdadeiro espaço de participação.

Mas o que são ritos ou rituais sob a visão antropológica?

Sabemos que cada perspectiva teórica, cada autor, compreende de


modo diferente esses conceitos, então vamos conhecer as visões de
alguns antropólogos sobre mitos e ritos.

3.2.1 Ritos, mitos e identidades docentes


Alinhado ao funcionalismo na antropologia, para Malinowski (2018),
o ritual desempenha função de integração social, auxiliando na preser-
vação da cultura e da sociedade, principalmente em face dos conflitos,
mantendo a coesão e o sentido de pertencimento ao coletivo.

Figura 3
Bronisław Malinowski

ChickSR/Wikimedia Commons

Malinowski pesquisando os habitantes das Ilhas Trobriand, no Pacífico Ocidental, 1928.

A manutenção e reprodução de determinados mitos, ritos e práticas


simbólicas muitas vezes permeia os saberes e fazeres docentes e suas
relações com os estudantes. Um exemplo de pequenos rituais da exis-
tência cotidiana escolar está presente no depoimento de uma profes-
sora da Escola Normal Júlia Kubitscheck, no Rio de Janeiro, coletado no
contexto de uma pesquisa da área de Antropologia da Educação que
investigava a dimensão simbólico-cultural da escola:
O ritual de chegar na escola, entrar na coordenação, este ser
o ponto de congraçamento, o prédio bonito, o quadro bonito,
o quadro de avisos na sala dos professores com as datas dos
aniversários… são essas as formas simbólicas que fazem a

Antropologia da Educação e formação docente 53


humanidade. Outros pontos também são significativos – mesi-
nha do aluno no pátio, os bancos do pátio, o buraco embaixo da
escada que é ponto de encontro das alunas, esses símbolos es-
colares são os nossos cantos. Esse contato humano que a gente
sente falta é que faz o espírito da escola, a sua estrutura está aí,
nas relações que você estabelece. A escola não está só na sala
de aula, ela está também nesses pequenos lugares – a busca da
qualidade humana que as escolas precisam ter. Esses ritos se-
Curiosidade guram o “status quo” do Júlia, baluarte da resistência. - Glaucia,
As Escolas Normais professora. (CHAVES, 2013, p. 26.367)
surgiram em meados
do século XIX, mas se No depoimento, a professora afirma que a escola em que atua é um
consolidaram como
centros formadores para
“baluarte da resistência”, ou seja, representa a tentativa de manuten-
o magistério cerca de um ção de certos ritos, mitos e práticas tradicionais das Escolas Normais,
século depois, entrando
em declínio a partir da
no sentido de preservar sua função e relevância social. No depoimento
década de 1970, com as podemos identificar rituais e espaços simbólicos da escola, relaciona-
modificações na legislação
educacional. Uma das
dos a práticas recorrentes de alunos e professores e parte integrante
mais prestigiadas do país da construção da identidade de docentes e estudantes, que se reco-
era o Instituto de Educa-
ção do Rio de Janeiro.
nhecem como pertencentes a um grupo cultural único, com um status
também único, com o qual se identificam.
Na mesma pesquisa, outros depoimentos apontam
Figura 4
Placa de colação de grau em magistério
para o resgate simbólico de um certo prestígio que as
escolas públicas, em especial as Escolas Normais, ti-
nham no passado:
A escola estadual tinha um certo orgulho e o
aluno tinha também, orgulho de ter passado
por ela. O ensino público foi se perdendo. A
Escola Normal por algum motivo, não sei, man-
tém muitos rituais, tenta manter a continuidade
desse orgulho. As alunas conservam o seu uni-
forme azul e branco, os hinos… tentam, enfim,
se agarrar a algum mito. – Lucas, professor.
(CHAVES, 2013, p. 26.366)
Moacir Ximenes/Wikimedia Commons

No depoimento podemos perceber que as práticas


simbólicas, os rituais (como o uso de uniformes carac-
terísticos e o canto de hinos etc.) atualizam os mitos
ligados à tradição das Escolas Normais como centros
de excelência, aos quais estudantes – sobretudo alu-
nas – e professores tinham orgulho de pertencer, e que

Escola Normal do Piauí no ano de 1912. A placa era


ajudam a construir sua identidade coletiva.
um símbolo de prestígio para as formandas e para a
escola e reconhecido pela comunidade na época.

54 Antropologia e Sociologia da Educação


Em seu estudo histórico sobre normalistas de uma escola do subúr-
bio do Rio de Janeiro, Lima (2015, p. 35) destaca a construção de identi-
dade coletiva com base em práticas simbólicas perpetuadas na escola:
Como se deu então a construção dessa identidade? [...] os indi-
víduos interiorizam o conjunto das trajetórias do grupo, crian-
do um referencial próprio relacionado à instituição, ao local, às
pessoas que conviveram com eles. Nesse caso, os alunos, como
veremos mais adiante, identificaram-se com as suas próprias
construções (uniforme, símbolo, postura e comunidade).

Lopes (2006) reforça a ideia do prestígio social advindo do capital


simbólico atribuído à Escolas Normais no passado: “O mito dos anos
dourados do Instituto de educação foi construído a partir da crença
no capital simbólico fornecido pela instituição, pois, além do título de
reconhecido prestígio, ainda possibilitava o acesso ao ensino superior”
(LOPES, 1999).

Se pensarmos no “mito” das Escolas Normais como representação


de excelência educacional e do acesso ao prestígio social no passado,
mas que continua sendo atualizado por ritos e outras práticas simbó-
licas em instituições desse tipo ainda em funcionamento, podemos
identificar a ideia de Mircea Eliade, um dos mais conhecidos mitólogos,
de que a função fundamental do mito é fixar os modelos exemplares
de todos os ritos e atividades humanas significativas: alimentação, se-
xualidade, trabalho, educação etc. E o ser humano, comportando-se
como indivíduo plenamente responsável, imita os gestos exemplares
expressos no mito (ELIADE, 1972).

Para outro antropólogo, Clifford Geertz, um dos fundadores da An-


tropologia Interpretativa, o ritual não tem a mesma natureza do pensa-
mento racional, científico, pois constitui-se de ações simbólicas, ligadas
ao imaginário, como as expressões artísticas e religiosas. Em sua obra
A interpretação das culturas, Geertz defende, para a análise de práti-
cas simbólicas, o método etnográfico, de caráter interpretativo, como
o mais adequado e destaca que a cultura é um emaranhado de sig-
nificados que cada grupo humano tece, portanto apenas a busca dos
significados dessa teia é o caminho para compreendê-la.

Se pensarmos na teia complexa de significados das práticas simbóli-


cas, mitos e ritos característicos de cada contexto escolar, veremos que
Geertz pode ter razão quando afirma que, para estudar uma “multipli-
cidade de estruturas conceituais complexas, sobrepostas e amarradas

Antropologia da Educação e formação docente 55


que são ao mesmo tempo estranhas, irregulares e inexplícitas” (GEERTZ,
2008, p. 7), é preciso primeiro compreendê-las para depois conseguir
explicá-las. Os estudos etnográficos sobre a escola partem, então, da
seguinte questão:

Qual é a importância e o que está sendo transmitido com uma determinada


ação observada na escola (seja um ato isolado ou um ritual recorrente)?

Ao interpretar os significados da ação, não se deve reduzi-la a um


padrão de comportamento de determinado grupo da escola, mas con-
siderá-la parte de uma cultura, buscando compreender o contexto cul-
tural da ação como um sistema de significados entrelaçados, uma rede
complexa, que, no entanto, pode ser interpretada, ordenada e explica-
da e tem um sentido para a vida das pessoas que atuam e se relacio-
nam na escola.
1 Nesse sentido, observemos um caso de organização dos espaços
Grupo Escolar era um escolares como o retratado na imagem a seguir, semelhante ao mo-
modelo de organização 1
escolar resultante da clas- delo de organização da sala de aula do Grupo Escolar , adotado no
sificação dos estudantes Brasil no passado e predominante nos anos escolares que atualmente
em níveis de conhecimen-
to e seu agrupamento chamamos de Ensino Fundamental.
em turmas relativamente
homogêneas, as classes Figura 5
seriadas. Atualmente, a Exemplo de sala de aula tradicional
seriação é feita com base

Everett Coleciona/Shutterstock
na faixa etária.

Nesse modelo, o professor


ministrava a aula de cima de
uma plataforma em um nível
mais alto que as carteiras dos
estudantes, tendo uma mesa
de trabalho e um quadro de giz,
muitas vezes o único recurso
didático disponível e usado
para que os alunos pudessem
copiar conteúdos didáticos.

56 Antropologia e Sociologia da Educação


A simbologia presente na configuração de sala de aula está ligada a
uma suposta superioridade e autoridade do professor em relação aos
estudantes, calcada na noção de que o professor é detentor de todo o
conhecimento e o aluno nada sabe, sendo o processo educacional cen-
trado no professor e no ensino, não na aprendizagem e no estudante.
Essa representação do imaginário, predominante na cultura escolar no
passado, ainda permanece viva em práticas simbólicas que permeiam
os processos educativos atuais e que passam pela transmissão e repro-
dução de conhecimentos e pela adoção de metodologias pedagógicas
tecnicistas, que se baseiam na aprendizagem mecânica, na memoriza-
ção de conteúdo e na centralidade do professor no processo de ensino
e aprendizagem.

Geertz, em seus estudos antropológicos, sobretudo sobre religiões,


estabeleceu um paradigma sobre os símbolos que envolvia dois concei-
tos basilares para sua teoria:
Glossário
Ethos
ethos: conjunto dos
Os símbolos/sagrados (imagens sagradas, rituais da
costumes e hábitos
liturgia etc. em um contexto religioso, assim como os
fundamentais, no âmbito
símbolos ligados a objetos, espaços, rituais e práticas,
do comportamento (ins-
como uniformes, hinos, rituais de formatura etc.), em tituições, afazeres etc.) e
um contexto escolar sintetizam o ethos de um grupo, da cultura (valores, ideias
Teoria de comunidade etc. ou crenças), característi-
Geertz cos de uma determinada
coletividade, época ou
região.
Visão de mundo
A visão de mundo de um grupo ou de uma comunidade
ordena a vida e liga o estilo de vida pessoal à visão de
mundo coletiva e mais ampla.

Para o autor, o sentido de símbolo é “objeto, ato, acontecimento,


qualidade ou relação que serve como veículo a uma concepção – a con-
cepção é o ‘significado do símbolo’” (GEERTZ, 2008, p. 67-68), e os sis-
temas de símbolos são chamados de padrões culturais, que oferecem
os modelos para os processos sociais e psicológicos que formatam o
comportamento coletivo. Sob esse prisma e aplicando as noções de
Geertz ao contexto educacional, o complexo de símbolos presente na
cultura de uma escola é um modelo da realidade, uma concepção geral
de como tudo deve funcionar, mas também um modelo para a realida-
de, no sentido de estabelecer padrões de comportamento, disposições
mentais dos membros da comunidade escolar.

Antropologia da Educação e formação docente 57


No caso do modelo de sala de aula de Grupo Escolar que vimos
anteriormente, mesmo que o modelo de realidade tenha desapareci-
do – ou seja, não haja mais um pequeno “palco” elevado na sala para
o professor ministrar sua aula –, resta o modelo para a realidade, para
formatá-la, perpetuando padrões de comportamento, disposições
mentais relacionadas à simbologia do lugar elevado do professor,
uma suposta superioridade e centralidade docente no processo de
ensino-aprendizagem.

3.2.2 Culturas escolares e diversidade


Cultura escolar pode ser compreendida como uma rede de signifi-
cados compartilhados pelos atores sociais que se relacionam e atuam
na construção do cotidiano escolar. As culturas escolares, com suas
facetas – tanto materiais e racionais quanto imateriais, simbólicas –,
estão sempre em transformação e transpassam os saberes e fazeres
docentes. As escolas têm culturas diversas, a depender do seu contexto
local e dos grupos que nela convivem, e a diversidade cultural está pre-
sente na maior parte das comunidades escolares.
Miew S/Shutterstock

Felix Lipov/Schutterstock
ESB Professional/Shutterstock

Gorodenkoff/Shutterstock

As escolas têm culturas diversas, a depender do seu contexto local e dos grupos que nela convivem.

58 Antropologia e Sociologia da Educação


As culturas escolares têm suas especificidades e, conforme Nóvoa
(1991), as sociedades humanas reproduzem as características e as nor-
mas culturais da vida coletiva do grupo por meio de uma espécie de
impregnação cultural. Confrontado desde o seu nascimento com uma
herança cultural e com um universo simbólico preciso, o ser humano
procedia à sua integração no grupo com base em trocas e convivências
cotidianas, por meio de um “viver com”. A escola, sob essa perspectiva,
é um lócus de integração entre os indivíduos, mas também de confron-
to entre diferentes universos simbólicos e heranças culturais.

No contexto das relações sociais que envolvem estratificação social,


cultura, identidade, gênero, entre outros, a diversidade é uma constan-
te. A diversidade cultural, especificamente, abrange as variações das
práticas e dos comportamentos humanos e vai além dos elementos
integrantes da cultura de determinado grupo social.

As variações culturais, por sua vez, relacionam-se à construção das


diferentes características que compõem as identidades sociais. As dife-
renças culturais estão presentes também no cotidiano escolar, mas não
apenas nele; estão presentes, ainda, em todos os outros espaços sociais.
É preciso refletir sobre o modo como tratamos as diferenças, pois elas
interferem nas relações educativas, nas relações de aprendizagem e de
socialização, tanto dentro quanto fora das instituições escolares.

Assim como na sociedade em geral, a escola é um espaço onde con-


vivem diferentes culturas, com diferentes valores, práticas e redes de
significados que influenciam o modo como os indivíduos se relacionam
no meio escolar. A escola não pode ser refratária aos contextos cultu-
rais do seu entorno, nem negar, invalidar ou privilegiar determinadas
culturas, identidades e grupos, o que se configura como intolerância,
preconceito e discriminação.

As diferenças étnico-raciais, de gênero, socioeconômicas, de reli-


gião, de orientação sexual, de origem (por exemplo, nacionalidade) e
tantas outras trazem questões importantes para o trabalho docente,
pois é preciso compreender e respeitar essas diversas identidades e
suas relações de pertencimento a diversos contextos culturais externos
à escola, incorporando-as à cultura escolar.

A educação escolar, por vezes, acaba impregnando-se de noções


provenientes do senso comum que classificam determinados grupos,
suas características e práticas simbólicas, como “piores” ou “melhores”

Antropologia da Educação e formação docente 59


que outros, “mais aceitáveis” ou “menos aceitáveis”. Essa perspectiva
está presente tanto nas relações de conflito na escola quanto em situa-
ções nas quais o preconceito e a intolerância relacionados às diferen-
ças culturais aparecem de maneira velada. Lembremos que os temas
da pluralidade cultural e do respeito às diferenças são reconhecidos e
tratados no âmbito da Educação Básica desde a década de 1990, época
em que foram lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
que traziam a necessidade de atender, na escola, ao:
conhecimento e à valorização das características étnicas e cultu-
rais dos diferentes grupos sociais que convivem no território na-
cional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações
sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a socieda-
de brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o
Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes
paradoxal. (BRASIL, 1997, p. 19)

Apesar disso, ainda se mantêm na escola e na sociedade represen-


tações preconceituosas que, por sua vez, orientam condutas reproduzi-
das socialmente, incluindo os comportamentos dos docentes, os quais,
por vezes, sem perceber, reproduzem essas representações discrimi-
natórias tão naturalizadas, perdendo a oportunidade de ter uma ação
educativa em uma situação que expõe as diferenças e desigualdades.
Em reforço a essas condutas, temos os discursos daqueles que disse-
minam uma interpretação da realidade social e cultural brasileira fun-
dada em mitos como o da democracia racial e o da homogeneidade
cultural, com a intenção de negar ou diluir as diferenças, escondendo
as expressões do racismo, continuamente difusas na sociedade.

nimito/Shutterstock

60 Antropologia e Sociologia da Educação


Na escola, e sobretudo na atuação docente, esses mitos acabam
fortalecendo as mentalidades e atitudes que buscam se eximir de reali-
zar uma intervenção educativa em situações cotidianas de intolerância
e desrespeito à diversidade, seja por receio de “levantar polêmicas” na
escola ou porque os educadores se percebem sem preparo ou recursos
adequados para enfrentar situações de discriminação e preconceito.

Em uma perspectiva mais ampla da Educação, temos uma visão tra-


dicional, histórica, do que se espera previamente como “desempenho
escolar médio” dos estudantes, tanto com relação ao conteúdo escolar
quanto ao comportamento, o que dificulta a flexibilidade no que se refe-
re às diferenças e desigualdades culturais no contexto escolar. Embora
frequentemente se defenda na escola, por meio do discurso formal, o
multiculturalismo e o interculturalismo, o respeito e a tolerância às diver-
sas culturas, as práticas cotidianas às vezes apontam para outra direção.

Uma postura de reconhecimento e respeito à diversidade cultural


depende de se evitar a perspectiva etnocêntrica – que considera os va-
lores, as características, crenças e práticas do próprio grupo como o
único válido ou correto – e passa pela compreensão e aplicação prática
das noções ligadas, por exemplo, ao multiculturalismo, que é centra-
do na necessidade de garantir o reconhecimento das diferenças que Uma postura de
reconhecimento e respeito
existem entre as pessoas e os grupos sociais, assegurando a represen-
à diversidade cultural
tação das culturas minoritárias e suas especificidades; bem como ao depende de se evitar a
perspectiva etnocêntrica.
interculturalismo, que tenta promover a interação de culturas diversas,

Rawpixel.com/Shutterstock
reconhecendo e compreendendo também a própria cultura, que se en-
riquece por meio do diálogo com outras.

Antropologia da Educação e formação docente 61


Uma formação educacional voltada para o respeito pleno à diver-
sidade cultural dentro e fora da escola precisa atribuir novos significa-
dos ao outro, novas formas de estabelecer relações harmoniosas, sem
pré-julgamentos, discriminação, exclusão e violência. A violência sim-
bólica na escola é um dos temas conhecidos da pesquisa antropológica
e sociológica no contexto escolar, e foi estudada por Pierre Bourdieu,
que apontou, com base em pesquisas de campo, que os professores,
Filme
inconscientemente, valorizam os estudantes que seguem o que é espe-
rado por eles, os valores, os padrões de comportamento e as normas
da escola, pressupondo determinados conhecimentos e competên-
cias aceitos como “naturais”, mas que, na verdade, foram adquiridos
na esfera familiar e social da criança, em seus contextos culturais de
aprendizagem, pois são característicos de determinados grupos so-
ciais e culturais.

Isso faz com que os comportamentos dos outros estudantes sejam


Sugerimos que você tomados como inadequados, errados, não esperados, problemáticos,
assista ao filme francês
Entre os muros da escola, sem que se perceba que esses estudantes não trazem o capital sim-
de 2008, adaptação do bólico valorizado pela escola porque têm uma origem familiar ligada a
livro de mesmo nome
e que mostra situações outra cultura, a outros valores e comportamentos.
de sala de aula bastante
alusivas a vários dos Para Bourdieu (2015), trata-se de uma agressão simbólica legitimada
temas tratados nesta cotidianamente na escola e que acaba sendo reprodutora do privilégio
seção, como a diversida-
de cultural na escola e de determinadas classes sociais, da sua cultura e das suas práticas sim-
os diferentes contextos bólicas, excluindo os demais estudantes. Para, de maneira consciente,
de aprendizagem dos
estudantes, as práticas evitar essa reprodução, os educadores precisam buscar uma postura
simbólicas na escola e democrática e aberta, evitando julgar o que é diferente de si mesmo com
as identidades docentes
muitas vezes marcadas base nas lentes dos seus próprios padrões, valores e crenças, valorizando
pela violência simbólica. os contextos culturais, as identidades e as subjetividades dos estudantes
e incluindo-os não só nos processos de ensino-aprendizagem, mas na
Direção: Laurent Cantet. França:
Haut et Court, 2008. cultura escolar, que deve ser construída coletivamente por meio de um
diálogo verdadeiro e uma troca enriquecedora entre diversidades.

3.3 Pesquisa em Antropologia da Educação


Vídeo Até o fim da década de 1970, as pesquisas sobre a escola e a sala de
aula objetivavam registrar e analisar os comportamentos de docentes
e discentes em contextos de interação, utilizando bases teórico-meto-
dológicas ligadas à psicologia, sobretudo à linha behaviorista (compor-
tamental). Esses estudos, nomeados à época de análises de interação,

62 Antropologia e Sociologia da Educação


Pop-Thailand/Shutterstock
Um dos objetos de pesquisa mais estudados na educação é a evasão escolar.

preocupavam-se com as relações entre professores e estudantes e Objetivo de aprendizagem


com aspectos da formação docente. Ter uma visão geral
sobre as abordagens, os
Entre 1970 e 1980, surgiram críticas a esse tipo de estudo no meio métodos e as técnicas
predominantes na pes-
acadêmico (DELAMONT; HAMILTON, 1976). Elas alegavam que a me-
quisa em Antropologia da
todologia dessas pesquisas reduzia os comportamentos em sala de Educação.

aula a unidades que pudessem ser quantificadas, tabuladas e medi-


das, e acabavam não contribuindo em nada para a compreensão dos
processos de ensino-aprendizagem ou para a análise do contexto es-
colar. Isso porque os instrumentos desse tipo de pesquisa desconsi-
deram completamente os contextos espacial e temporal em que os
comportamentos se davam e apenas registravam o que era observa-
do “objetivamente” (por exemplo: “3 alunos abandonaram a escola”;
“o professor chamou a atenção de um aluno 2 vezes” etc.), sempre se
guiando por categorias preestabelecidas, o que empobrecia bastante a
interpretação da realidade complexa da sala de aula.

As críticas apontavam ainda que, no esforço de recolher grande vo-


lume de dados para que se pudesse fazer uma análise estatística, os
comportamentos eram “rotulados” e categorizados artificialmente (por
exemplo, com “comportamentos cognitivos” separados de “comporta-
mentos afetivos”, separação que não ocorre na realidade das relações
na escola) e passavam a representar unidades mensuráveis sem muito
significado. Em resumo, os números valiam mais do que a interpreta-
ção do conteúdo das interações.

Antropologia da Educação e formação docente 63


Com base nessas críticas, fortaleceu-se a ideia de que os métodos e
as abordagens da antropologia poderiam ser mais adequados e úteis
para os estudos da realidade escolar, já que todas as interações que
acontecem em sala são perpassadas por múltiplos significados, os
quais precisam ser interpretados pelo pesquisador na sua complexi-
dade e fazem sentido naquele determinado universo cultural, universo
esse que precisa ser compreendido pelo pesquisador.
2 2
Para isso, o método etnográfico parece bastante adequado, pois
O método etnográfico
costuma utilizar a obser- é de natureza qualitativa e usa a observação participante, em que o
vação participante, que é pesquisador observa as dinâmicas e situações na escola – seu campo
uma técnica de pesquisa
antropológica realizada de pesquisa –, faz registros de campo com o que observou e, com suas
por meio da inserção do impressões, realiza entrevistas, analisa documentos da escola (escritos,
pesquisador no interior
do grupo observado, no visuais, sonoros etc.) na busca por compreender os significados que o
sentido de tornar-se parte próprio grupo estudado dá às suas interações, práticas, entre outros.
dele e interagir por muito
tempo com os sujeitos do A intenção, portanto, não é descrever minuciosamente, quantificar ou
grupo, compartilhando do generalizar resultados, mas compreender determinada cultura – no
seu cotidiano e tentando
entender o significado da caso, a escolar.
visão de mundo do grupo.
São dessa mesma época os estudos sobre evasão escolar, que con-
sideravam esse fenômeno sob duas perspectivas diferentes:
causado por fracasso individual dos estudantes, por fatores liga-
dos às suas incapacidades, falta de motivação pessoal etc.;
ocasionado pelo sistema socioeconômico, que selecionaria alu-
nos vindos de contextos culturais privilegiados, ignorando os
provenientes de contextos culturais de aprendizagem caracteri-
zados por “privação cultural” – falta de acesso a qualquer estímu-
lo cognitivo ou socioemocional.

Mais tarde, os estudos sobre evasão escolar passaram a considerar


uma outra causa:
o fracasso da escola em facilitar o processo de aprendizagem a
todos os alunos, em suas necessidades e especificidades.

Com o passar do tempo, a abordagem etnográfica foi gradativa-


mente sendo mais e mais aplicada aos estudos da área da educação,
incluindo a área de avaliação curricular, na qual originou a chamada
abordagem iluminativa, de caráter socioantropológico e propondo que
se considerem os contextos específicos das práticas escolares, as di-
mensões culturais, sociais e institucionais, bem como as concepções de
todos os envolvidos na conjuntura avaliada.

64 Antropologia e Sociologia da Educação


A partir da década de 1980, os estudos etnográficos em educação
tornaram-se presentes nas pesquisas acadêmicas, que se voltavam para
a descrição das atividades e vivências em sala de aula, para as relações
cotidianas estabelecidas entre professores e estudantes e para as repre-
sentações dos atores sociais que interagem na comunidade escolar.

Se precisarmos sintetizar em uma expressão o objetivo da pesqui-


sa etnográfica em educação, poderíamos usar “compreender de den-
tro” (ESTEBAN, 2010, p. 163-164) os fenômenos educacionais, ou seja,
entendê-los com base no que os próprios atores participantes das si-
tuações e interações ocorridas na escola percebem sobre elas, do signi-
ficado que eles atribuem ao que ocorre na realidade escolar ou da sala
de aula, permitindo um conhecimento mais profundo e mais realista
dos fenômenos educacionais e viabilizando decisões e intervenções no
contexto escolar.

É preciso destacar, porém, que a etnografia, quando aplicada à edu-


cação, não é exatamente a mesma aplicada aos estudos antropológi-
cos, como alertam Lüdke e Meda (1986). Os autores esclarecem que,
quando transferida para a área da Educação, a etnografia passou por
adaptações aos novos objetos. Enquanto nas pesquisas da área de an-
tropologia a preocupação é a descrição da cultura de um grupo social,
o interesse primordial dos pesquisadores em educação é o processo
educativo, o que torna desnecessário algo crucial nos estudos antro-
pológicos: permanecer por longo tempo em campo, em contato com
a outra cultura. Tais pesquisas, quando no âmbito educacional, são do
tipo etnográfico, e não efetivamente etnográficas, podendo ser reco-
nhecidas quando, ao se verificarem os resultados da pesquisa, é possí-
vel interpretar o que ocorre no grupo estudado tal qual as pessoas do
próprio grupo fariam.

É interessante ressaltar, ainda, que o termo etnografia, a descrição


cultural, tem dois sentidos possíveis no contexto da antropologia: o pri-
meiro ligado às técnicas de coleta de dados sobre práticas, crenças,
valores, hábitos e comportamentos de um grupo social; e o segundo
significando o relato (escrito) resultante da aplicação dessas técnicas
de pesquisa.

Borges e Castro, em seu artigo A Etnografia da escola (2019), des-


tacam que, para Hall (1997), a escola é um lócus de convergência de
discursos da vida social, funcionando como instituição cultural e, sob a

Antropologia da Educação e formação docente 65


uma perspectiva pós-colonial, instituição de dimensões culturais interli-
gadas – globalização, transformações da vida local e cotidiana, relação
entre identidades e subjetividades –, e é também o lugar de um conhe-
cimento sui generis, que não se confunde com nenhum outro (BORGES;
CASTRO, 2019, p. 407). Os autores complementam sua perspectiva sobre
a dimensão cultural do conhecimento escolar:
trata-se de um conhecimento selecionado a partir de uma cul-
tura social mais ampla, que passa por um processo de trans-
posição didática, ao mesmo tempo que é disciplinarizado; e,
também, podemos entender que se constitui no embate com os
demais saberes sociais, diferenciando-se dos mesmos. Em sín-
tese, o conhecimento escolar define-se em relação aos demais
saberes sociais, seja o conhecimento científico, o conhecimento
cotidiano ou os saberes populares.

No sentido de aprofundar a compreensão da contribuição da etno-


grafia para o estudo crítico dos fenômenos que ocorrem no contexto
escolar, os autores destacam, ainda, a perspectiva de André (1995, p. 41):
(o uso da etnografia possibilita ao pesquisador) entender como
se processam os mecanismos de dominação e de resistência, de
opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são veicu-
lados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças,
modos de ver e de sentir a realidade e o mundo.

Além das dimensões levantadas por Borges e Castro (2019), mais


recentemente têm emergido questões críticas relacionadas a outros
aspectos, por exemplo, o binômio conhecimento/poder, centrado em
questões como:

Quem produz o conhecimento?


Com quais intenções?
Atendendo a quais interesses ou finalidades?
Para ser usado de qual modo?

Assim como questões ligadas à contestação do mito da neutralida-


de do pesquisador, que, na realidade, não tem como ser neutro porque
carrega em si sua história, seu contexto social e cultural, seus valores
e crenças, entre outros aspectos, e acaba imprimindo traços desses fil-
tros com que enxerga o mundo em sua pesquisa.

66 Antropologia e Sociologia da Educação


Outra tendência mais recente das pesquisas etnográficas na escola
é a redução da distância entre pesquisador e pesquisados, na busca
por estabelecer uma dinâmica colaborativa e um diálogo livre entre as
duas partes da pesquisa, fugindo das relações de poder tradicional, o
que representa uma postura essencial para a transformação da escola
em um espaço emancipador. É importante ressaltar, também, a aten-
ção que se dá atualmente ao modo como os resultados das pesquisas
poderão impactar positivamente ou ser de algum modo úteis para o
grupo pesquisado.

Erickson (1993) sinaliza quatro tendências que ganharam força nas


últimas décadas na etnografia em Educação:
tornar mais explícitas as fontes ou os pontos de apoio das
interpretações;
usar a microetnografia;
envolver cada vez mais o professor no processo de pesquisa;
utilizar arquivos interativos em uma rede de comunicação e de
troca de informações por computador.

Em resumo, a primeira tendência refere-se a tornar o material


coletado nos estudos etnográficos o mais público possível. Isso pode
ser feito, por exemplo, por meio da inserção de descrições minucio-
sas (vinhetas narrativas) dos lugares, das pessoas e das situações ob-
servadas, incluindo falas e ações dos envolvidos, além de entrevistas,
depoimentos e diversos documentos explicando quais foram os dados
coletados em campo e quais foram as interpretações ou opiniões do
pesquisador, esclarecendo onde, como e quando cada conjunto de da-
dos foi coletado. Pode-se, ainda, dar acesso à diversidade de impres-
sões coletadas, revelando todo o protocolo de produção do relatório
etnográfico e justificando todas as escolhas teórico-metodológicas fei-
tas ao longo da pesquisa.

O uso da microetnografia ou da microanálise, citadas como uma


segunda tendência, relaciona-se ao uso do vídeo como fonte primária,
que muda o foco da pesquisa de “o que ocorre” para “como ocorre”. O
relatório etnográfico passa a ser, então, uma transcrição do vídeo (ape-
sar de o próprio vídeo poder se constituir em relatório da pesquisa),
bem como sua análise e interpretação, que serão tornadas públicas.
Somadas às anotações de campo, as interpretações sobre o vídeo po-
dem tornar as análises mais consistentes.

Antropologia da Educação e formação docente 67


Como terceira tendência, é apontada a crescente aproximação
do pesquisador (sujeito da pesquisa) com o grupo pesquisado (obje-
to da pesquisa). Nesse movimento de aproximação, podem ser incluí-
dos vários tipos de pesquisa-ação sobre a sala de aula e o trabalho
docente, organizadas de diversas formas, por exemplo: planejamento
e condução da pesquisa são responsabilidade de um pesquisador e
o professor-observador atua como colaborador; o professor realiza a
pesquisa sobre sua própria prática, com ou sem assessoria de um pes-
quisador mais experiente (orientador).

Finalmente, a quarta tendência está ligada à produção de registros


interativos divulgados via redes sociais digitais. Esses registros conteriam
materiais – muitas vezes também obtidos via internet – como relatos de
experiências, materiais e sequências didáticas, relatos de casos e inova-
ções desenvolvidas em contexto escolar, entre outros, promovendo o
compartilhamento em rede e a troca de experiências docentes.

Pudemos perceber que as contribuições da etnografia são bastante


efetivas para o conhecimento da escola com base em suas dinâmicas e
referências culturais, seus atores e as relações que estabelecem entre
si, suas práticas e seus saberes, ajudando a apurar não só o olhar do
pesquisador como também do educador para as questões que tecem
o universo escolar e para a escola na qualidade de instituição cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No cenário das transformações na sociedade contemporânea e da re-
levância do tema da diversidade cultural, a análise antropológica tem se
tornado cada vez mais importante, contribuindo para os debates sobre a
função social da escola, que, por um lado, sofre as exigências de uma so-
ciedade orientada pelas demandas do sistema capitalista ligadas à forma-
ção das novas gerações para o mercado de trabalho, e, por outro, precisa
assumir a função de formação crítica dos estudantes para sua inserção na
vida social de modo a contribuir para a transformação da realidade social,
perpassada por desigualdades.
Apesar da falta de acesso a condições dignas de vida, trabalho e edu-
cação a que tantos brasileiros estão sujeitos, acompanhamos na história
recente uma gradativa ampliação do acesso à educação que levou ao in-
gresso, na escola, de novos grupos culturais, antes sem acesso à educação
formal, impulsionando a diversidade étnica, cultural, religiosa, de orien-
tação sexual, socioeconômica etc. no cotidiano escolar. Isso demanda o

68 Antropologia e Sociologia da Educação


estabelecimento do diálogo entre diferenças, o qual pode se dar sob uma
abordagem integradora entre a educação e a antropologia, em um duplo
movimento que leva conceitos e práticas dos dois campos em considera-
ção para a construção de uma escola inclusiva.

ATIVIDADES
Atividade 1
Vídeo Segundo Gusmão, quais são as contribuições da antropologia para
os estudos da área educacional?

Atividade 2
Vídeo De que modo as práticas simbólicas na escola se relacionam à
construção das identidades docentes e discentes?

Atividade 3
Vídeo Explique o que é etnografia e pesquisa etnográfica na educação.

REFERÊNCIAS
ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995.
BORGES, L. P. C.; CASTRO, P. A. A etnografia da escola: entrelaçando vozes, culturas,
sujeitos, conhecimentos e culturas. Periferia, v. 11, n. 2, p. 404-423, 2019. Disponível em:
https://www.redalyc.org/journal/5521/552159358002/html/. Acesso em: 15 dez. 2021.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2015.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro101.pdf. Acesso em: 15 dez. 2021.
CHAVES, I. M. B. Tradição e rituais numa escola de formação de professor: práticas
simbólicas organizadoras do espaço-tempo dos grupos. In: 11º EDUCERE – CONGRESSO
NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Anais [...] Curitiba: PUCPR, set. 2013. Disponível em: https://
educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2013/8796_5933.pdf. Acesso em: 13 dez. 2021.

Antropologia da Educação e formação docente 69


DELAMONT, S.; HAMILTON, D. Classroom research: a critique and a new approach. In:
STUBBS, M.; DELAMONT, S. (org.) Explorations in classroom observation. Londres: John
Wiley, 1976.
ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
ERICKSON, F. “Novas tendências da pesquisa etnográfica”. Conferência proferida na
Faculdade de Educação da USP, 1993.
ESTEBAN, M. P. S. Pesquisa qualitativa em educação: fundamentos e tradições. Porto Alegre:
AMGH, 2010.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GUSMÃO, N. M. M. Antropologia, estudos culturais e educação: desafios da modernidade.
Pro-Posições, Campinas, SP, v. 19, n. 3, p. 47–82, 2016. Disponível em: https://periodicos.
sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643455. Acesso em: 15 dez. 2021.
HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez., 1997.
ICICT/FIOCRUZ – Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em
Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. “Ninguém escapa da educação” afirma Carlos
Rodrigues Brandão. Observatório do cuidado, 16 abr. 2019. Disponível em: https://www.
observatoriodocuidado.org/mais-noticias/item/19043-ninguem-escapa-da-educacao-
afirma-carlos-rodrigues-brandao. Acesso em: 15 dez. 2021.
LIMA, F. S. As normalistas chegam ao subúrbio a história da escola normal Carmela Dutra:
da criação à autonomia administrativa (1946 – 1953). 2015. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
LOPES, A. C. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1999.
LÜDKE, M.; MEDA, A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
NÓVOA, A. Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão
docente. Teoria e Educação, v. 4, p. 1 9-139, 1991.
WULF, C. Antropologia da educação, Editora Alinea, 2005.

70 Antropologia e Sociologia da Educação


4
Introdução à sociologia
Neste capítulo conheceremos como se deu o surgimento da sociologia e o
seu desenvolvimento por meio das principais linhas teóricas e seus autores,
compreenderemos quais são os objetos e os métodos de estudo da sociologia
e entenderemos vários dos seus principais conceitos e categorias, como indi-
víduo, sociedade, grupos sociais, estrutura social e estratificação, entre vários
outros. Compreenderemos, também, como a sociologia aplicou sua análise aos
fenômenos ligados aos processos educacionais, contribuindo para a constru-
ção da sociologia da educação.

4.1 A sociologia: surgimento, objetos e métodos


Vídeo
A partir de quando a sociedade passou a ser vista como um im-
portante objeto de análise, que demanda abordagens e métodos pró-
prios? Quando e de que modo surgiu a sociologia na qualidade de área
do conhecimento? Como foram se construindo os métodos de análise
Objetivo de aprendizagem dos fenômenos sociais? Essas e outras questões são essenciais para
Entender o surgimento, começar a compreender o que é a sociologia no contexto das ciências
o desenvolvimento, os humanas e sociais, quais são os objetos de estudo dessa área, de que
objetos e os métodos da
Sociologia. modo as visões nela desenvolvidas contribuem para a compreensão do
ser humano como ser social e, especificamente, para o entendimento
dos processos educacionais e das relações sociais na escola.

4.1.1 O surgimento da sociologia como ciência


A sociologia surge no século XIX, principalmente com a necessidade
de explicar as novas dinâmicas sociais advindas das profundas trans-
formações que as sociedades sofreram após a chamada Era das Revolu-
ções, sobretudo da Revolução Industrial, que modificou os processos
produtivos e as relações de trabalho e, com elas, todo o conjunto das
relações sociais. Isso impulsionou o crescimento urbano e modificou
os estilos de vida, alterando a estrutura e a estratificação social e trans-
formando vários outros aspectos da sociedade que a sociologia, como
área autônoma de conhecimento, dispôs-se a explicar.
Introdução à sociologia 71
Figura 1
A indústria no século XIX

Marzolino/Shutterstock
Ilustração da produção de ferro na fundição de La Houilles, França: linha de laminadores movida
por roda hidráulica. Autor não identificado, publicado em Magasin Pittoresque, Paris, 1850.

Para compreender melhor esse contexto, vamos, em primeiro lugar,


estabelecer um panorama sobre as transformações histórico-sociais
das sociedades ocidentais, que forjaram as condições da emergência
da sociologia como ciência. Se buscarmos os antecedentes da socio-
logia mais recuados no tempo, identificaremos a influência das ideias
do movimento iluminista nas sociedades europeias e gradativamente
em todo o Ocidente, gerando profundas transformações na visão de
mundo dos indivíduos e nas relações sociais que mantinham entre si.

Nesse período, uma mudança marcante relaciona-se ao protagonis-


mo que passou a ser dado ao indivíduo na sociedade. Isso se deu com
base na noção de antropocentrismo, de centralidade do ser humano
em todos os processos da vida e da sociedade, em oposição ao teo-
centrismo (centralidade de Deus) que predominava na Idade Média. A
ideia de que os indivíduos podem controlar eventos e possuem o poder
de agir e decidir sobre suas vidas, além da visão racional e científica do
mundo e dos seus fenômenos, produziu novas formas de organização
social e mudou para sempre a maneira como os indivíduos analisavam
e explicavam tanto os fenômenos naturais quanto os sociais.

Nesse cenário, a Revolução Francesa, ocorrida na França no fim


do século XVIII (1789 a 1799), e a Revolução Industrial, em curso na
Inglaterra entre 1760 e 1840, são importantes marcos que influencia-
ram o princípio do pensamento sociológico na Europa, a qual passava

72 Antropologia e Sociologia da Educação


por grandes transformações advindas dos processos de industrializa-
ção e da urbanização acelerada das sociedades, que já funcionavam
sob os princípios capitalistas. No contexto de valorização do pensamen-
to e das ações do indivíduo, a burguesia, classe que crescia e ganhava
relevância no período, defendia a liberdade política e econômica, bem
como a possibilidade de ascender social e economicamente, construin-
do de modo autônomo seus percursos na vida.

No período, tradições, costumes, práticas e relações sociais e de


trabalho se modificavam rapidamente. O modo de vida das popula-
ções estava cada vez mais atrelado ao trabalho industrial e à preca-
riedade das grandes cidades, que cresciam desordenadamente, sem
infraestrutura, gerando pobreza e problemas sociais. As máquinas,
de início movidas a vapor, aceleravam e ampliavam enormemente a
Filme
produção nas fábricas, nas quais centenas de operários trabalhavam
por cerca de 16 horas por dia; no entanto, as mudanças nos processos
produtivos geravam também desemprego, pois substituíam a função
de muitos trabalhadores.

As condições de trabalho e a remuneração eram péssimas, sem ne-


nhuma garantia, apoio ou benefício aos trabalhadores. As cidades “in-
chavam” e aumentavam fenômenos como a miséria, a fome, a violência
e a criminalidade, as grandes epidemias, formando um panorama deso-
lador para a maior parte da população; apenas a elite socioeconômica
ligada à indústria colhia bons frutos das transformações da sociedade.
O filme francês “Germi-
Segundo o sociólogo brasileiro Otavio Ianni (1926-2004), é nesse nal” baseado no romance
homônimo de Émile
período que emergem mais abertamente as forças sociais, as confi- Zola (1840-1902), autor
gurações de vida, as originalidades e os impasses da sociedade civil, da escola literária do
Naturalismo, aborda
urbano-industrial, burguesa ou capitalista (IANNI, 1989). Para o autor: as consequências da
Revolução Industrial para
A sociologia não nasce no nada. Surge em um dado momento
a sociedade francesa no
da história do Mundo Moderno. Mais precisamente, em mea- século XIX, as relações
dos do século XIX, quando ele está em franco desenvolvimen- de trabalho e as lutas de
to, realizando-se. Essa é uma época em que já se revelam mais classe que emergiam com
o modo de produção ca-
abertamente as forças sociais, as configurações de vida, as ori- pitalista. O filme revela as
ginalidades e os impasses da sociedade civil, urbano-industrial, condições desumanas de
burguesa ou capitalista. Os personagens mais característicos trabalho dos carvoeiros
nas minas francesas e
estão ganhando seus perfis e movimentos: grupos, classes, mo-
seu duro cotidiano.
vimentos sociais e partidos políticos; burgueses, operários, cam-
Direção: Claude Berri. Itália; França;
poneses, intelectuais, artistas e políticos; mercado, mercadoria,
Bélgica: Renn Productions, France 2
capital, tecnologia, força de trabalho, lucro, acumulação de capi- Cinéma, DD Productions, 1993.
tal e mais-valia; sociedade, estado e nação; divisão internacional

Introdução à sociologia 73
do trabalho e colonialismo; revolução e contrarrevolução. [...] É
claro que se podem reconhecer antecedentes ou prenúncios da
sociologia em ideias, filosofias e correntes de pensamento de ou-
tras épocas. [...] se constata que os antecessores realmente es-
tavam buscando compreender as manifestações iniciais, menos
desenvolvidas, mas já assinaladas, do Mundo Moderno. É possí-
vel dizer que a sociologia é uma espécie de fruto muito peculiar
desse Mundo. (IANNI, 1989, p. 7-8)

Diante de mudanças tão profundas, a sociologia surge com a inten-


ção de buscar compreender a nova organização da sociedade, suas di-
nâmicas e as novas relações que se estabeleciam entre indivíduos e
grupos sociais. O termo sociologia foi cunhado e usado pela primeira
vez em 1838, por Auguste Comte (1798-1857). O autor defendia que
se unissem ciências que, até aquela época, tratavam do ser humano –
como psicologia, economia e história – em uma área do conhecimento
apenas, que se chamaria sociologia.

No entanto, a disciplina só se estruturou e consolidou como área autô-


noma do conhecimento algum tempo depois, com os livros pioneiros de
três autores cujas principais obras foram publicadas entre a segunda me-
tade do século XIX e o início do século XX: o francês Émile Durkheim (1858-
1917) e os alemães Karl Marx (1818-1853) e Max Weber (1864-1920), que
se esforçaram não só para analisar e explicar a sociedade em que viviam,
mas também para delimitar os objetos de estudo dessa nova área, suas
teorias e seus métodos de investigação social.

Esses autores elegeram a análise dos fenômenos sociais caracte-


1 1
rísticos da sociedade contemporânea como o objeto principal da
Considera-se que a
Idade Contemporânea é o sociologia e perceberam que o novo processo produtivo capitalista,
período que se inicia com ao substituir o trabalho realizado em pequenos grupos e famílias em
a Revolução Francesa,
em 1789, e se estende oficinas pelo trabalho realizado por grandes massas de operários em
até a atualidade. Esse é grandes fábricas mecanizadas, substituía também os laços sociais por
um período de grandes
transformações nas relações de trabalho rígidas e impessoais, bem como impunham igual-
sociedades. mente a todos os trabalhadores a alta carga horária e o ritmo acelera-
do de trabalho na busca de ampliar a produção e os lucros.

Vimos que a sociologia, em sua origem, tentava explicar as contradi-


ções da sociedade capitalista, mas, assim como as sociedades se trans-
formam e muitas vezes ficam mais complexas, a sociologia também
se transformou e ampliou muito sua gama de abordagens teóricas e
metodológicas visando explicar cada realidade social, o que no âmbi-

74 Antropologia e Sociologia da Educação


to sociológico implica necessariamente em posicionamentos políticos. Para refletir
Podemos dizer que não existe uma linha sociológica única que consiga Por que a Sociologia
surgiu, como ciência
explicar completamente a realidade social. autônoma, apenas no
século XIX?

4.2 Indivíduo, vida social e categorias sociológicas


Vídeo
As abordagens de Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, cha-
mados de autores clássicos, possuem muitas diferenças teóricas e me-
todológicas entre si, mas fundamentaram igualmente a sociologia e
influenciam o trabalho dos sociólogos contemporâneos. Estes, mesmo
que críticos às visões de um ou outro desses clássicos, ainda se referem
Objetivo de aprendizagem
aos seus conceitos fundadores na sociologia e os veem referência teó-
Compreender os conceitos
e as categorias que, sob rica da área até a atualidade.
perspectiva sociológica,
conformam a ação dos Cada uma dessas vertentes da sociologia vê o indivíduo e a vida
indivíduos em sociedade: social a seu modo, e cada autor elaborou seus próprios conceitos
indivíduo, sociedade, fatos
sociais, coerção social, para explicar as relações entre indivíduo e sociedade. Vamos conhe-
ações sociais, papéis cer melhor a abordagem de cada um deles e suas contribuições para
sociais; status e posição
social, classes sociais. a sociologia e para a sociologia da educação.

4.2.1 Os conceitos de Durkheim


Na visão de Durkheim, a sociedade está sempre acima dos indiví-
duos e é exterior a eles, ou seja, os indivíduos não têm o poder de
intervir ou modificar efetivamente a sociedade, que já existe sob deter-
minada forma quando eles nascem e perpetua-se após sua morte por
meio de normas, regras, leis, convenções sociais e valores morais que
juntos estabelecem um sentido de coletividade do qual todos os indi-
víduos participam. Esses elementos são transmitidos de geração em
geração pelas instituições – como a família e a escola – por meio dos
processos de socialização.
Lightspring/Shutterstock

Introdução à sociologia 75
Figura 2
Fotografia de Durkheim

M. Armando/Wikimedia Commons
Para o autor, a sociologia é o estudo dos “fatos sociais”. Mas o que
são fatos sociais? Durkheim elaborou o conceito de fatos sociais com
base nas sociedades: são todas as ações coletivas instituídas social-
mente e consolidadas em normas regulares na sociedade. Para o so-
ciólogo, os fatos sociais são exteriores ao indivíduo, independem da
sua vontade; são eles que formam a consciência moral que se traduz
em hábitos, condutas, modos de agir e de pensar que compõem o com-
portamento e as ações dos indivíduos em sociedade. Para Durkheim,
os indivíduos surgem da sociedade, e não o contrário.

Sob perspectiva metodológica, Durkheim propunha que os fatos


sociais devem ser tratados como “coisas”, isto é, de modo objetivo e
neutro, de maneira semelhante ao estudo que cientistas das áreas de
biologia, química, entre outras, faziam sobre os fenômenos naturais.
Para ele, os fatos sociais devem ser encarados como fatos previamente
dados na sociedade e que não podem ser transformados pelo desejo
de um ou outro indivíduo; são expressos concretamente nas normas,
regras, convenções sociais e hábitos arraigados em uma sociedade e
exercem coerção sobre os indivíduos, pressionando-os a agir de de-
terminado modo – aquele que é aceitável socialmente em determinada
sociedade e época.
Alguns exemplos de fatos sociais nas sociedades são as relações de
parentesco, os dogmas religiosos, o uso de vestimentas, as regras jurídi-
cas e morais, a organização política, o sistema financeiro e a língua oficial.
Perceba que, na teoria de Durkheim, há uma relação estreita entre os fatos

76 Antropologia e Sociologia da Educação


sociais e as regras morais de uma sociedade. O autor via a socieda-
de como um tecido, uma trama, cujos fios eram os vínculos morais entre
os seres humanos, e esses vínculos, segundo Durkheim, precisavam ser
mantidos para evitar que a sociedade se desintegrasse; também conside-
rava a educação uma das principais formas de manutenção dessa integra-
ção, de preservação da estabilidade e da ordem social.
A visão de Durkheim é classificada como funcionalista, um tipo de
abordagem que busca explicar a sociedade, as ações coletivas e indivi-
duais por meio das funções que essas ações exercem no todo social. Sob a
perspectiva funcionalista – que se desenvolveu também em outras ciências
humanas, como a antropologia e a psicologia –, a sociedade é comparada a
um organismo formado por órgãos interdependentes, mas que têm funções
específicas para o funcionamento e a estabilidade do sistema. Ao considerar
a sociedade como um sistema, o autor prioriza a ideia de integração social,
que, para ele, desenvolvia-se por meio solidariedade social.
O sociólogo classifica os tipos de solidariedade existentes entre os in-
divíduos e os relaciona ao grau de desenvolvimento das sociedades das
quais eles fazem parte, demonstrando que elas se organizam de modo
a manter o consenso entre as pessoas, o que seria a base para a convi-
vência social ou comunitária. O tipo de solidariedade que mantém esse
consenso, porém, é diferente em cada sociedade.
Durkheim aponta que, nas sociedades antigas e medievais, a solida-
riedade que ligava os indivíduos uns aos outros era do tipo “mecânica”,
baseada na relação de semelhança entre as pessoas, e que o tipo de so-
lidariedade presente nas sociedades modernas é outro, o que ele chama
de “orgânica”, baseada nas diferenças e desigualdades complementares
entre os indivíduos, que foram se consolidando nas sociedades modernas
e são predominantes nas sociedades contemporâneas.

Quadro 1
Tipos de solidariedade social segundo Durkheim

Tipo de
Período histórico Características
solidariedade
Sociedades antigas e medie- Baseada na relação de seme-
Mecânica
vais lhança entre os indivíduos
Baseada nas diferenças e de-
Sociedades modernas e
Orgânica sigualdades complementares
contemporâneas
entre os indivíduos

Fonte: Elaborado pela autora com base em Durkheim, 2007.

Introdução à sociologia 77
Para Durkheim, nas sociedades modernas, os vínculos entre os in-
divíduos passaram gradativamente a se transformar em consequência
da crescente divisão social do trabalho, que segmentava cada vez mais
a sociedade em diferentes grupos. O autor considerava que, com a con-
solidação do sistema capitalista e a complexificação cada vez maior da
divisão do trabalho, os laços de solidariedade social foram se afrouxan-
do, as funções de cada indivíduo ou grupo passaram a ser deixadas de
lado, as sociedades tornaram-se mais individualistas e menos ordena-
das, o sentimento de coletividade se enfraqueceu, gerando a desinte-
gração do sistema, que ele chama de estado de “anomia”.

4.2.2 Os conceitos de Karl Marx


Figura 3 Karl Marx, diferentemente de Durkheim, defendia que a
Retrato de Karl Marx de 1875 análise social deve se basear no contexto e nas condições so-
ciais dos indivíduos, pois são essas condições que produzem
John Jabez Edwin Mayal/Wikimedia Commons

a existência em grupo. Segundo Marx, o ser humano da época


pré-histórica, por meio das suas ações e intervenções no meio
em que vivia (caça, coleta, criação de artefatos), produzia sua
existência no grupo social, e ainda defendia a ideia de que o
indivíduo, de modo isolado, só surgiu quando as condições his-
tóricas propiciaram as bases da sociedade capitalista, que são
o desenvolvimento da divisão social do trabalho e a complexi-
ficação dos processos produtivos.

Nesse contexto pós-Revolução Industrial, Marx apontou que


as fábricas são o lugar em que dois indivíduos diferentes social
Sua principal obra, O Capital, e economicamente se relacionam: o operário e o patrão, com o
publicada em três volumes entre
1867 e 1883, faz uma análise do operário vendendo sua força de trabalho ao patrão, dono da fá-
modo de produção capitalista, brica, e este, em troca, pagando um salário ao trabalhador.
das suas relações de trabalho e,
sobretudo, dos seus conflitos, Essa relação social parece se dar entre iguais, mas ocorre
representados pelo conceito de
“luta de classes”. entre desiguais, pois o operário que vende sua mão de obra não
pode escolher as suas próprias condições de trabalho; elas são
estabelecidas pelo proprietário da fábrica e pelo meio social e tendem
a ser relações de exploração do trabalho do operário.

Marx demonstrou, então, que essa relação social não é apenas


entre dois indivíduos, mas sim entre duas classes sociais: a classe

78 Antropologia e Sociologia da Educação


operária e a classe burguesa, que é proprietária dos meios de produ-
ção, ou seja, do local, das máquinas e de outros elementos necessá-
rios para produzir. As regras dessa relação social, que se baseia na
exploração do trabalho, são estabelecidas pela luta que se dá entre
as classes – com a intervenção do poder público, das leis e de outras
instituições, que tentam reduzir os conflitos –, pois trabalhadores e
patrões têm interesses contrários.

Na teoria social marxista, portanto, a ênfase da análise social é dada


à noção de classe social e ao conceito de luta de classes. Para ele, os
seres humanos, na condição de indivíduos, constroem sua própria his-
tória, porém não do modo como querem, pois a estrutura de classes
condiciona as ações dos indivíduos no mundo.

Para Marx, as desigualdades de classe são reproduzidas pelas insti-


tuições sociais. Em sua obra, ele abordou uma forma de reprodução das
desigualdades de classe que considerava cruel: o trabalho infantil nas
fábricas. Leia os trechos apresentados por Marx em sua obra O Capital:
À medida que a maquinaria torna a força muscular dispensável,
ela se torna o meio de utilizar trabalhadores sem força muscu-
lar ou com desenvolvimento corporal imaturo, mas com mem-
bros de maior flexibilidade. Por isso o trabalho de mulheres e de
crianças foi a primeira palavra de ordem da aplicação capitalista
da maquinaria. (MARX, 1984, p. 23)

Segundo a lei fabril inglesa, os pais não podem mandar crianças


com menos de 14 anos para as fabricas “controladas” sem fazer
com que recebam instrução primária. O fabricante é responsável
pelo cumprimento da lei. O ensino de fábrica é obrigatório e per-
tence às condições de trabalho. (MARX, 1984, p. 86).

a devastação intelectual, artificialmente produzida pela transfor-


mação de pessoas imaturas em meras máquinas de produção de
mais valia [...] obrigou, finalmente, até mesmo o parlamento in-
glês a fazer do ensino primário a condição legal para o uso “pro-
dutivo” de crianças com menos de 14 anos em todas as indústrias
sujeitas as leis fabris. [...] na falta de maquinaria administrativa,
que torna esse ensino compulsório novamente em grande parte
ilusório, na oposição dos fabricantes até mesmo contra essa lei
do ensino e em artimanhas práticas e trapaças para deixarem de
cumpri-la. (MARX, 1984, p. 26)

Introdução à sociologia 79
O autor deixa claro na obra que, antes da promulgação da lei fabril
de 1844, eram bastante comuns os certificados de frequência escolar,
cuja mediação era feita pelos industriais de modo a comprovar o “cum-
primento” da nova legislação, serem assinados com um “X” pelo profes-
sor, pois estes eram analfabetos.

Percebe-se, portanto, uma reprodução das desigualdades de classe


no âmbito educacional, que “formava” os filhos das classes trabalhado-
ras apenas para o trabalho nas fábricas e, não raro, não ensinava a eles
nem a leitura e a escrita básicas. Esse tipo de dualidade na educação
permanece até a atualidade no Brasil, e podemos observá-la nas dife-
renças de condições entre as escolas públicas e privadas.

O sistema público de ensino recebe verbas insuficientes do Poder


Público, o que afeta a infraestrutura das escolas, assim como a for-
mação continuada e a remuneração dos professores. Ele ainda precisa
seguir políticas públicas que, muitas vezes, excluem os estudantes da
aprendizagem de conteúdos mais ligados à análise social crítica e autô-
noma, à sua formação como cidadãos conscientes do seu papel social e
capazes para intervir na sociedade de modo a transformá-la.

Um exemplo do problema da reprodução das desigualdades sociais


é encontrado nas reformas do Ensino Médio que excluíram do rol das
disciplinas obrigatórias a Sociologia, a Filosofia e outras disciplinas de
Ciências Humanas e Arte, e até mesmo as ligadas às Ciências da Na-
tureza, empurrando-as para itinerários formativos que supostamente
podem ser escolhidos pelos estudantes, mas
que, na prática, não serão ofertados pela maior
Sangoiri/Shutterstock

parte das escolas públicas, estando presentes


como opção apenas nas escolas privadas, so-
bretudo as de elite.

As diretrizes para o itinerário formativo téc-


nico e profissionalizante também resgatam a
visão dual de educação criticada por Marx, rele-
gando aos filhos dos trabalhadores uma forma-
ção estritamente operacional, mecânica, para
atuar no mercado de trabalho, sem desenvolver
os conhecimentos e as reflexões amplas sobre
sua atuação tanto no mundo do trabalho quan-
to na vida social.

80 Antropologia e Sociologia da Educação


4.2.3 Os conceitos de Max Weber Figura 4
Retrato de Max Weber

Para Weber, o mais importante é compreender o indivíduo e suas

M. Armando/Wikimedia Commons
ações, ou seja, entender as razões que levam as pessoas a tomar de-
terminadas decisões ou agir de determinadas formas na sociedade..

Para Weber, a sociedade não está acima dos indivíduos, como pro-
pôs Durkheim, mas é constituída pelo conjunto de ações dos indivíduos
que se relacionam entre si. Sua perspectiva de análise sociológica é
chamada de sociologia compreensiva, pois não aceita a ideia de que o
mundo social seja determinado por sua estrutura econômica – como
propunha Marx – e nem crê que os comportamentos dos indivíduos
sejam determinados por fatores externos (como Durkheim afirmava).

Para Weber, o indivíduo é o elemento central para as transforma-


Criador da chamada Sociologia
ções sociais, e a sociedade é o resultado das relações entre os indi- compreensiva, em 1918.
víduos; além disso, compreender a sociedade depende da análise do
“agir significativo” dos indivíduos, isto é, da compreensão dos motivos
que levam os indivíduos a realizar determinadas ações sociais, pois es-
sas ações não têm sentido em si: são os indivíduos que atribuem sen-
tido às ações uns dos outros. Nesse contexto, os indivíduos passam a
ser chamados de agentes.

Um dos conceitos fundamentais elaborados por Weber é o de ação


social, que é o ato de interagir com os outros indivíduos de modo in-
tencional, ou seja, conduzindo-se de determinada forma com base na
expectativa de como o outro agirá em resposta. Entretanto, não são to-
das as ações que podem ser classificadas como ação social; não são con-
sideradas por Weber como ações sociais aquelas individuais orientadas
para se obter um determinado resultado, por exemplo: a ação de um
motorista quando para o carro ao perceber que há um acidente na pista
não é social.

Mesmo que outros motoristas também parem no mesmo ponto,


a ação do primeiro foi orientada para um determinado resultado, o
de evitar envolver-se no acidente, e não pelo comportamento que ele
esperava que os demais motoristas que trafegavam na pista tivessem.
Por isso, não são sociais também as ações que são condicionadas por
um comportamento de grupo, em que o indivíduo age de determinada
forma porque todos os demais estão agindo assim.

Introdução à sociologia 81
Weber classificou as ações sociais dos indivíduos em quatro tipos:
ação tradicional, ação efetiva, ação racional com relação a valores e ação
racional com relação a fins. Esses são “tipos ideais”, apenas para fins de
análise, pois não aparecem de modo isolado no comportamento das
pessoas, que acabam reunindo mais de um desses tipos em suas ações.

Quadro 2
Ações sociais segundo Weber

Tipo de ação social Características

Baseada em tradições familiares ou culturais de um


Ação tradicional grupo, em costumes ou hábitos enraizados, e é praticada
de modo “automático” pela pessoa.

Motivada por sentimentos (alegria, inveja, tristeza, raiva


Ação afetiva etc.) e segue o impulso do momento de satisfazer a
alguma necessidade emocional da pessoa.

Baseada em convicções, valores (senso de dever,


Ação racional com
compaixão, dignidade), pela nobreza de uma causa, não
relação a valores
considerando as consequências da ação.

Motivada por um diagnóstico que a pessoa faz sobre a


Ação racional com relação entre os meios que ela irá utilizar (a ação) e os
relação a afins resultados da ação (fins), calculando as consequências de
cada conduta antes de agir.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Weber, 2002.

Weber, em oposição a Durkheim, entende que as normas sociais, os


costumes em uma sociedade, não são externos ao indivíduo, impostos
coercitivamente pelo todo social, mas internalizadas a partir da escolha
por agir de determinada forma, adequando-se a cada situação e sem-
pre buscando posicionar-se o melhor possível em sociedade.

O conceito de classe social não é utilizado por Durkheim para expli-


car as divisões na sociedade, mas é usado tanto por Weber quanto por
Marx em acepções bastante diferentes. De modo geral, classe social é
um grupo social constituído por características que o distinguem dos
outros grupos sociais, sejam econômicas, sociais, culturais, políticas, ou
outras quaisquer. A ideia de classe social remete a uma hierarquia de

82 Antropologia e Sociologia da Educação


posições na estrutura social; a essa hierarquia de posições, de estratos
sociais, se dá o nome de estratificação social.

Nas sociedades capitalistas, os estratos, ou camadas da sociedade,


são chamados de classes sociais, e os indivíduos que ocupam o mesmo
estrato – isto é, a mesma classe social – se assemelham sobretudo por
fatores econômicos, relacionados às posses e ao acesso ao consumo,
que são os fatores enfatizados por Marx ao tratar de classes sociais no
capitalismo. Porém, outros aspectos também podem ser o critério de
reunião de indivíduos em um estrato social: aqueles ligados ao estilo de
vida, ao status e ao prestígio social que eles têm em comum. Esses as-
pectos são os destacados por Weber quando o autor aborda as classes
sociais na sociedade capitalista.

Sob a perspectiva de Max Weber, as desigualdades de poder nas


sociedades, bem como as relações de dominação que isso acarreta,
são tratadas como algo “natural”, algo que sempre existiu e não pode
ser transformado. Isso contraria o que defende Karl Marx, que consi-
dera que, a partir do momento em que a classe proletária, dos traba-
lhadores, consegue perceber seu papel nas engrenagens capitalistas,
percebendo de que modo seu trabalho é explorado e como as desi-
gualdades são reproduzidas na sociedade capitalista, desenvolvendo o
que o autor chama de consciência de classe, essa classe social pode se
organizar politicamente e construir transformações sociais na busca de
uma sociedade mais igualitária.

Marx considerava que o critério essencial definidor das classes so-


ciais como grupos que compõem a estrutura da sociedade capitalista
eram os fatores econômicos, e que a desigualdade econômica, rela-
cionada às classes sociais, era reproduzida por todas as relações entre
as classes, produzindo a estratificação social característica da estrutura
social capitalista e se refletindo sobretudo nas relações de trabalho,
marcadas pelo conflito e pela exploração de uma classe sobre a outra.

Ao contrário, para Weber, a classe social não é definida apenas pelo


critério econômico, mas depende também da posição social dos indi-
víduos. Para ele, essa posição depende de três aspectos fundamentais:

Introdução à sociologia 83
Rvector/Shutterstock
O status que o A sua a riqueza: O seu poder na
indivíduo tem na sociedade:
sociedade: Renda, posses,
propriedades. Influência que ele
A honra, o prestígio exerce sobre outros
que ele carrega indivíduos e grupos da
sociedade.

O autor não anula a importância dos fatores econômicos e propõe,


inclusive, que são os aspectos econômicos os maiores responsáveis
por criar uma determinada situação de classe, na qual um dado grupo
social pode ser classificado por possuir ou não acesso a bens materiais
ou simbólicos. O que Weber defende é que outros fatores são também
importantes para situar os indivíduos e grupos na sociedade, além das
posses e da renda. Ele dá grande relevância ao status social, descreven-
do-o como ligado a uma dimensão subjetiva da vida social, a aspectos
simbólicos, culturais, e definindo-o como um critério de posição social
que pode ou não atribuir privilégios ao indivíduo.

Weber considera a Educação uma ferramenta importante da seleção


social por ser ela um dos modos de se alcançar sucesso na sociedade.
Gonzalez (2000) destaca, sobre essa perspectiva de Weber, que:
a originalidade da relação efetuada pelo autor entre Educação e
seleção social deve-se ao fato de ele ter reconhecido que: a) Exis-
tem relações associativas nas quais a admissão se dá em virtude
de determinadas qualificações específicas dos indivíduos, que
são examinadas e precisam do consentimento dos demais mem-
bros. Esse processo seletivo nos diversos tipos de associação,
inclusive na educação; b) A obtenção de vantagens econômicas
leva os indivíduos a limitá-la a um grupo reduzido de pessoas,
pois quanto mais reduzido é o grupo de pessoas pertencentes a
uma associação que lhes possibilita “legitimações” e “conexões”
economicamente aproveitáveis, maior é o prestígio social de
seus membros; c) A ação social, quando assume a forma de uma
relação associativa, constitui uma “corporação”. A monopoliza-
ção de uma “profissão” ocorre a partir de um grupo de pessoas
que adquire direitos plenos sobre ela. Os referidos direitos em
relação à profissão são adquiridos mediante a preparação de
acordo com as normas da profissão, a comprovação da qualifi-
cação e a prestação de determinados serviços em determinados
períodos de carência. (GONZALEZ, 2000, p. 335)

84 Antropologia e Sociologia da Educação


Percebe-se que, para Weber, o conceito de mérito pessoal (que ele
chama de qualificações específicas) é um dos determinantes da seleção
social operada em várias dimensões da vida social, incluindo a educa-
ção. No entanto, apesar de reconhecer os processos que levam os indi-
víduos a se fecharem em grupos sociais elitizados no intuito de manter
e ampliar vantagens econômicas, ele não estabelece nenhuma relação
entre essas vantagens e o acesso à educação na sociedade e, conse-
quentemente, a determinadas profissões valorizadas socialmente.

4.3
Vídeo
Componentes da vida social
Os componentes da vida social, assim como os conceitos e as ca-
tegorias sociológicas, não são os mesmos para todas as vertentes da
sociologia, e dependem de qual linha teórico-metodológica e de quais
autores estão sendo considerados.
Objetivo de aprendizagem
Compreender, sob dife-
rentes visões, componen-
4.3.1 Socialização, grupos sociais
tes da vida social, como
socialização, instituições
e instituições sociais
sociais, estrutura social,
estratificação social,
A socialização, na qualidade de importante componente da vida so-
desigualdades sociais e cial, é abordada na sociologia de modos diferentes, conforme a linha
mobilidade social.
teórica adotada. Sob uma perspectiva weberiana, é um conjunto dinâ-
mico de processos por meio do qual o indivíduo internaliza a dimensão
coletiva, social, ou seja, é por meio desses processos que os indivíduos
aprendem práticas, valores, noções, crenças, costumes e normas culti-
vados por uma sociedade e adaptam-se a ela.

A socialização primária é desenvolvida principalmente por meio de


instâncias de socialização como a família e a escola. Para Weber, os
indivíduos, por já compartilharem determinados sentidos, significados
e valores, participam de uma vida em sociedade, que, para o autor,
pode ser de dois tipos diferentes: a vida comunitária, na qual predomi-
nam ações tradicionais e afetivas; e a societária, na qual predominam
as ações racionais, principalmente relacionadas a fins. Para ele, um
importante componente da vida social são os grupos sociais; a cada
tipo de vida e de grupo social corresponde um tipo de socialização que
favorece a inserção nesse contexto.

Introdução à sociologia 85
Por outro lado, para Durkheim, a socialização é um processo coer-
citivo, imposto pelo coletivo ao indivíduo, e ao qual todos os indivíduos
são submetidos, mas é preciso destacar que, para ele, isso não tem
conotação negativa. O processo de socialização, na visão do autor, ini-
cia-se com a educação. Ele afirma que os processos educativos transfor-
mam o ser humano em ser social, introduzindo nele as características
que permitem que ele viva em sociedade.

Os fatos sociais, segundo Durkheim, são difundidos por um com-


ponente importante da vida social: as instituições sociais – como a
família, a escola, o sistema jurídico, o Estado etc. As instituições exer-
cem o papel de controlar e condicionar cada indivíduo a agir de modo a
não desagregar a sociedade e nem perturbar a vida coletiva, por meio
de códigos e punições para os indivíduos que não agem conforme a
sociedade espera.

Durkheim propunha que, para que as instituições não se degradas-


sem, o que, para ele, causaria a destruição da sociedade, as regras e os
costumes teriam de se transformar bem devagar, durante várias gera-
ções, jamais de modo individual. A função da instituição social família,
para Durkheim, é garantir a preservação do legado dos antepassados e
os costumes, valores e regras sociais por meio do processo de sociali-
zação das crianças, e a da escola é transmitir de maneira sistematizada
essas normas, valores e costumes às próximas gerações.

Para Durkheim, a moral é um sistema de regras que se constitui


em importante componente social e que deve ser introjetado
nas crianças e jovens pela família e pela escola, como
Lightspring/Shutterstock

ele descreve em O ensino da moral na escola primá-


ria. Nessa obra, o autor afirma que, se desejamos
nos curar de uma doença ou simplesmente man-
ter a saúde, precisamos seguir um conjunto de
regras ligadas à higiene e que foram sistematiza-
das tecnicamente por profissionais de saúde. Nós
apenas obedecemos a essas normas por causa
da sua natureza utilitária, ou seja, porque são
úteis para que fiquemos saudáveis, bem como
porque, com base nas experiências do passado,
temos certeza de que elas funcionam, têm valida-

86 Antropologia e Sociologia da Educação


de e vemos claras vantagens em nos submetermos a elas. E Durkheim
(2007, p. 59-75) acrescenta:
Em tais circunstâncias a nossa conduta está sempre determina-
da por uma causa: um resultado desagradável ao qual iremos
nos expor no caso de violação dos princípios; agradável se os
seguirmos. [...] Tudo é muito diferente no que concerne às re-
gras da moral. Se as violamos, corremos o risco de sermos pos-
tos à margem, de quarentena, isolados. [...]. Se a violação é muito
forte, a própria sociedade irá nos golpear. [...] Para que a regra
[moral] seja obedecida tal como convém [...], nós devemos nos
submeter a ela não para evitar penas ou para lograr recompen-
sas, mas tão-somente porque a regra ordena, e por respeito à
própria regra, porque ela se apresenta a nós como respeitável.
[...] devemos cumprir o dever simplesmente porque é dever, por
respeito ao dever.

As críticas à perspectiva sociológica de Durkheim consideram que


sua visão sobre socialização escolar expressa uma postura avessa à
consciência individual, um tipo de violência simbólica que, embora não
sendo percebido facilmente pelas pessoas, é bastante eficiente.

4.3.2 Estrutura social e estratificação social


Em uma sociedade desigual como a brasileira, é importante analisar
as origens históricas, econômicas e culturais da estrutura social sob
o prisma das suas relações com as desigualdades sociais e econômi-
cas, as étnico-raciais e de gênero, a mobilidade social, a segregação
socioespacial, a exclusão social, a desigualdade de oportunidades e de
acesso à cidadania e ao consumo. Segundo dados do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 1% das pessoas mais
ricas do mundo detém 40% dos bens do planeta.

Uma categoria social importante para se pensar sobre a desigualda-


de na sociedade é a estratificação social, definida pelos modos como
se opera a divisão de recursos em uma sociedade, o que se reflete em
uma distinção hierarquizada na estrutura social e em desigualdade de
acesso à renda e às condições de cidadania entre os estratos sociais.
Na sociedade capitalista, o que determina essa divisão é a classe social;
porém, outras hierarquias sociais contribuem para as desigualdades
entre as camadas, como etnia e gênero.

Introdução à sociologia 87
Já estrutura social é um conceito sociológico referente às formas
de organização das sociedades e suas instituições sociais, assim como
aos tipos de relações estabelecidas entre os grupos sociais em uma
sociedade. A estrutura social varia historicamente, sob a influência de
aspectos econômicos, políticos e culturais, e é internalizada pelos in-
divíduos por meio da socialização e das relações sociais que mantêm
durante a vida na sociedade, como as de trabalho.

É por meio desses processos e relações que os indivíduos apreen-


dem seus deveres e direitos na sociedade, os significados que ela
atribui a cada papel e posição social em sua estrutura, percebem a dis-
tribuição de recursos e de poder na sociedade, as hierarquias e os aces-
sos que cada indivíduo e cada grupo social tem, com os privilégios e as
exclusões que isso acarreta. É preciso destacar que a estrutura de uma
sociedade não é imutável, ela sofre mudanças ao longo da história.

Como consequência, existem estruturas sociais diferentes, tanto


entre diferentes sociedades na mesma época quanto em uma mesma
sociedade em épocas diferentes. As ações dos indivíduos na qualidade
de sujeitos da sua história e de construtores do seu meio social im-
primem mudanças na sociedade, organizando novas relações entre os
grupos sociais e produzindo reestruturação na sociedade.

A estrutura social se dá conforme certos arranjos entre diferentes


grupos sociais, e os indivíduos que integram esses grupos não têm o
mesmo status social, o mesmo acesso a bens e serviços, os mesmos
privilégios e nem mesmo os mesmos direitos e deveres de fato, apesar
de, por vezes, tais direitos e deveres serem garantidos por lei. Esses
grupos desiguais entre si, portanto, distribuem-se na estrutura social
em diferentes camadas ou estratos, uns superiores aos outros em re-
lação a critérios econômicos, sociais, culturais, relativos a poder, status,
reconhecimento, acesso a direitos e ao consumo.
Prazis Images/Shutterstock

88 Antropologia e Sociologia da Educação


A essa divisão da sociedade em diferentes estratos ou camadas,
com diferentes dá-se o nome de estratificação social. Para pensar
em exemplos de estratificação social, podemos tomar o caso da socie-
dade indiana, que tem uma estratificação social muito diversa da bra-
sileira e baseada no sistema de castas. Nesse tipo de estratificação
social, o nascimento do indivíduo define o estrato social – a casta – em
que o indivíduo estará para o resto da sua vida, pois não existe mobi-
lidade social na estrutura social indiana, ninguém “sobe” ou “desce”
de casta, não existe nenhuma possibilidade de ascensão social, nem
por meio do casamento ou de aquisição de riquezas, de bens mate-
riais, nem por meio da aquisição de bens simbólicos, culturais ou
educacionais.

Já na sociedade brasileira, do mesmo modo que no restante das so-


ciedades capitalistas, a estratificação social é representada por classes
sociais, e é organizada conforme a distribuição de bens materiais e
simbólicos, acúmulo de capital e de acordo com
uma complexa dinâmica de fatores étnico-cultu-

Arthimesde/Shutterstock
rais, de gênero, políticos, de status social, entre
outros. Marx e Weber produziram teorias socio-
lógicas clássicas sobre estratificação social.

Para Marx, a estratificação social nas socie-


dades capitalistas tem base econômica e é re-
sultado do modelo de produção capitalista e
da sua divisão social do trabalho característica,
segundo a qual uma classe social – a burguesia
– é dona dos meios de produção, e outra classe
– o proletariado – vende sua força de trabalho
em troca de um salário que será usado para
sua subsistência. A concepção marxista de estratificação social reflete
a contradição entre capital e trabalho, típica do modo de produção
capitalista.

Para o autor, ao contrário do que é proposto por Weber, ocupa-


ção, renda, status ou estilo de vida não são os fatores mais impor-
tantes para a formação de uma classe social, mas sim os critérios
políticos, ideológicos e culturais, junto aos fatores econômicos, es-
senciais para a formação das classes sociais. É interessante sinalizar
que não foi a sociedade capitalista que inventou a luta de classes – e
nem a que acabou com ela –, mas foi sob esse sistema e sob o tipo

Introdução à sociologia 89
de estratificação característico do capitalismo que a luta se intensifi-
cou, opondo burguesia e proletariado.
Segundo Weber, a estratificação social é reflexo essencialmente
das relações de poder entre os grupos sociais. Para ele, a distribui-
ção do poder dentro de uma comunidade é representada pela divi-
são em classes. Ele destacava que existem diferentes tipos de poder,
não apenas econômico ou político, que contribuem para as classifi-
cações dos grupos sociais.
Nas sociedades capitalistas, predominariam os conflitos econômicos
entre os grupos sociais. Weber considera a divisão social com base no con-
ceito de “situações de classes”, de posições dos indivíduos na hierarquia
social, que são definidas pela competição entre eles pelo acesso aos bens
materiais e pela aquisição de renda. De acordo com ele, os elementos
principais para a formação dos grupos sociais são os econômicos, rela-
cionados às oportunidades que os indivíduos têm de acesso ao consumo.
O critério principal para definir a situação de classe do indivíduo é o
poder aquisitivo e suas fontes – o que combina perfeitamente com a me-
todologia de análise social do autor que, como já vimos, é centrada no
indivíduo, não incluindo necessariamente uma ação de classe, já que os in-
teresses individuais dos que estão na mesma “situação de classe” podem
ser diferentes, não resultando em nenhuma ação coletiva, “de classe”.
Para Weber, os estamentos não são grupos sociais ligados a um tipo de
sociedade do passado, mas sim uma divisão que ocorre no plano social,
baseada na diferenciação dos indivíduos entre si segundo a forma de con-
sumo de bens, em estilos e modos de vida, assim como as classes corres-
ponderiam às formas de produção e aquisição de bens pelos indivíduos.
A diferença entre sociedades estamentais e de classes não estaria,
então, no tempo histórico, mas no que estrutura as relações de po-
der em cada uma delas, nas disputas por “honra social” – que o autor
considera que trazem menos mobilidade social – ou nas disputas de
mercado, o que não quer dizer que isso não significa que a mudança
de classe social seja facilitada, já que as regras de mercado são rígidas.
Na visão weberiana, os indivíduos competem entre si por bens
materiais e simbólicos (culturais, religiosos etc.), e a capacidade de
consumo desses bens é que determina os diferentes estilos de vida
característicos de cada estamento.
Desse modo, hierarquização ou estratificação social é resultado de
diferentes “estilizações da vida”, que conduzem determinados compor-

90 Antropologia e Sociologia da Educação


tamentos e representam, em rigor, uma hierarquização social ligada
à honra e ao prestígio social (status), na qual estamentos superiores
e inferiores correspondem aos que “podem” e aos que “não podem”
consumir determinados bens ou viver de determinados modos.
Os que podem são positivamente valorizados na sociedade, e os
que não podem recebem valor social negativo, o que implica uma rela-
ção de dominação, exclusão e eventual conflito entre estamentos.
De outra forma, para Pierre Bourdieu, as classes sociais são con-
juntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, postos
em condições também semelhantes e sujeitos a condicionamentos
semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses se-
melhantes, logo práticas e tomadas de posições semelhantes na socie-
dade (BOURDIEU, 1989, p. 136).
Segundo Bourdieu (1989, p. 136), para compreender a categoria
classe social na sociedade contemporânea, é preciso romper com a
concepção de Marx sobre o tema, pois classe não seria um grupo efe-
tivamente real de indivíduos, mas sim um conjunto de relações, e seria
necessário romper com o economicismo característico do pensamento
marxista – que privilegia as bases materiais e objetivas da sociedade – e
privilegiar o espaço multidimensional, as lutas simbólicas que ocorrem
nos âmbitos mais diversos da sociedade.
Ao considerar o espaço multidimensional, estudos sociológicos con-
temporâneos se voltam para as disputas simbólicas que se desenrolam
no campo étnico-cultural, no campo das relações de gênero, no cam-
po socioespacial urbano, entre outros, que geram desigualdades, se-
gregação e exclusão social, aspectos que se refletem na estratificação
social, um fenômeno mais complexo e multifacetado, perpassado por
diversos marcadores sociais de diferença e povoado por indivíduos que
possuem múltiplas fontes de identidade, como as étnicas, culturais, de
gênero, religiosas, políticas, de origem, profissionais etc.

Artigo

https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/33734

O artigo Ensaio sobre a teoria das classes sociais em Marx, Weber e Bourdieu, de
Rogerio Tineu e escrito para a Revista Aurora, apresenta um debate sobre as
concepções dos três autores sobre a categoria classe social na Sociologia.

Acesso em: 27 dez. 2021.

Introdução à sociologia 91
4.3.1 Reprodução das desigualdades na escola
Na sociologia contemporânea, Bourdieu é um dos que mais aplicou
pressupostos do materialismo histórico – nome da vertente teórica fun-
dada por Marx – para compreender os processos educacionais e o papel
das instituições escolares. O autor, junto a outro sociólogo francês, Jean-
-Claude Passeron (1930-), produziu o que podemos chamar de sociologia
da educação, que mostra como a escola reproduz as desigualdades de
classe por meio do currículo e das normas e convenções escolares.
Leia o trecho a seguir, que aborda quais foram os antecedentes so-
ciais das formulações de Bourdieu, que confrontam pela primeira vez
a visão otimista – inspirada nas teorias de Durkheim – que se tinha da
escola como formadora das gerações futuras:

Segundo Nogueira e Nogueira (2002), Bourdieu teve o mé-


rito de formular, a partir dos anos 1960, uma resposta original,
abrangente e bem fundamentada teórica e empiricamente para
o problema das desigualdades escolares. Essa resposta tor-
nou-se um marco na história não apenas da Sociologia da Edu-
cação, mas do pensamento e da prática educacional em todo
o mundo. Até meados do século XX, predominava nas Ciências
Sociais e mesmo no senso comum uma visão extremamente oti-
mista, de inspiração funcionalista, que atribuía à escolarização
um papel central no duplo processo de superação do atraso
econômico, do autoritarismo e dos privilégios adscritos, associa-
dos às sociedades tradicionais, bem como no de construção de
uma nova sociedade, justa (meritocrática), moderna (centrada
na razão e nos conhecimentos científicos) e democrática (funda-
mentada na autonomia individual).
Nogueira e Nogueira (2002), em sua análise sobre a Socio-
logia da Educação de Bourdieu, acrescentam ainda que, na
época, supunha-se que o problema do acesso à educação seria
resolvido por meio da escola pública e gratuita, e, assim, garan-
tida, em princípio, a igualdade de oportunidades entre todos
os cidadãos. Os indivíduos competiriam dentro do sistema de
ensino, em condições iguais, e aqueles que se destacassem por
seus dons individuais seriam levados, por uma questão de jus-

(Continua)

92 Antropologia e Sociologia da Educação


tiça, a avançar em suas carreiras escolares e, posteriormente,
a ocupar as posições superiores na hierarquia social. A escola
seria, nessa perspectiva, uma instituição neutra, que difundiria
um conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seus
alunos com base em critérios racionais.

Os mesmos autores explicam que o que ocorreu nos anos


1960 foi uma crise profunda dessa concepção de escola e uma
reinterpretação radical do papel dos sistemas de ensino na so-
ciedade. Abandona-se o otimismo das décadas anteriores em
favor de uma postura bem mais pessimista.

Segundo Nogueira e Nogueira (2002, p. 16-17), essa crise na concepção


tradicional de escola se originou de uma reunião de alguns fatores:

aShatilov/Shutterstock
1° 2°

O primeiro fator está O segundo fator estava


ligado a uma série de ligado ao processo
pesquisas quantitativas de universalização do
encomendadas no final ensino ocorrido ao
dos anos 1950 pelos longo dos anos 1960,
governos da França, que acabou gerando
da Inglaterra e dos uma consequência
Estados Unidos, que inesperada:
revelaram a grande os estudantes,
importância da origem especialmente franceses,
social na definição dos oriundos de classes
destinos escolares sociais mais baixas e
dos estudantes, o recém-incluídos na
que contribuiu para educação pública,
reduzir drasticamente ressentiram-se contra o
a confiança na que consideraram um
pretensa igualdade sistema educacional
de oportunidades no elitista e autoritário, que
contexto escolar. desconsiderava suas
especificidades e parecia
não contribuir nada
para a mobilidade social
desses jovens.

Introdução à sociologia 93
Vídeo Bourdieu destacava, na época, que a decepção dessa “geração en-
Para compreender a ganada” produziu não só uma forte crítica ao sistema educacional,
complexidade desses
movimentos de 1968, como desencadeou o movimento contestatório que eclodiu em maio
cujo centro se deu na de 1965 na França.
França, mas que atingiu
grande parte do Ocidente, Com base nesse cenário, Nogueira e Nogueira (2002, p. 17-18) des-
e reuniu estudantes e
trabalhadores em torno tacam que:
da transformação social
Bourdieu oferece-nos um novo modo de interpretação da es-
e educacional, assista ao
vídeo Maio de 68 | O início cola e da educação que, pelo menos num primeiro momento,
dos movimentos universitá- pareceu ser capaz de explicar tudo o que a perspectiva anterior
rios, do canal Jornalismo não conseguia. Os dados que apontavam a forte relação entre
TV Cultura.
desempenho escolar e origem social e que, em última instância,
Disponível em: https://youtu. negavam o paradigma funcionalista transformam-se nos ele-
be/PNZRlpeMfFo. Acesso em: 27
dez. 2021. mentos de sustentação da nova teoria. [...] Onde se via igualdade
de oportunidades, meritocracia, justiça social, Bourdieu passa a
ver reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educa-
ção, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído
de instância transformadora e democratizadora das sociedades
e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio
da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais. Trata-se,
portanto, de uma inversão total de perspectiva. Bourdieu ofere-
ce um novo quadro teórico para a análise da educação [...].

Nesse mesmo sentido, Gramsci (1995) critica o caráter de classe


da escola burguesa, propondo uma concepção ligada à politecnia e a
construção de uma escola não mais dual, com dois tipos diferentes de
formação a depender da classe social, mas sim de uma escola unitária,
que congregue cultura, humanista e formativa, e desenvolvimento de
habilidades laborais, unindo o ensino de capacidades técnicas ao de-
senvolvimento de capacidades de trabalho intelectual.

Para Gramsci (1995), uma escola unitária pressupõe novas relações,


estas mais igualitárias, entre trabalho intelectual e trabalho manual
não só no contexto escolar, mas no mundo do trabalho e em toda a
vida social, o que possibilitaria uma sociedade mais justa e menos desi-
gual, na qual todos tenham de fato as mesmas oportunidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diferentes visões teóricas, conceitos e categorias sociológicas con-
tribuem para que possamos analisar mais a fundo e explicar melhor as
dinâmicas, as relações e o funcionamento da sociedade em que vivemos,
compreendendo as classificações e as desigualdades de ordem social,

94 Antropologia e Sociologia da Educação


econômica, política e cultural que perpassam os grupos sociais. Esses
conhecimentos podem ser aplicados para a compreensão das institui-
ções sociais como a escola e de relações sociais como as educativas, no
contexto da educação formal, por exemplo. É importante refletir sobre a
escola como espaço social de construção de processos de socialização e
de relações sociais entre indivíduos provenientes de diferentes realida-
des, que precisam construir juntos, nesse contexto desigual, uma socie-
dade mais igualitária e justa para todos.

ATIVIDADES
Atividade 1
Quais são as principais diferenças entre as visões teóricas de
Durkheim, Marx e Weber sobre a sociedade?

Atividade 2
Segundo Durkheim, qual é o papel das instituições sociais nos
processos de socialização?

Atividade 3
Explique as diferenças entre estrutura social e estratificação social.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
DURKHEIM, E. O ensino moral na escola primária. Novos Estudos, v. 1,
n. 78, p. 59-75, jul. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/
CJCZJJLWZbP4JKdHBWC9LVd/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 23 dez. 2021.
GONZALEZ, W. R. C. Educação e desencantamento do mundo: contribuições de Max
Weber para a Sociologia da Educação. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade
de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. Disponível em:
https://pantheon.ufrj.br/handle/11422/6633. Acesso em: 23 dez. 2021.

Introdução à sociologia 95
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson
Coutinnho. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
IANNI, O. A sociologia e o mundo moderno. Tempo Social, v. 1, n. 1, p. 7-27, 1989. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/83315. Acesso em: 23 dez. 2021.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 1984. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20
Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo..pdf. Acesso em: 23 dez. 2021.
NOGUEIRA, C. M. M.; NOGUEIRA, M. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites
e contribuições. Educação & Sociedade, v. 23, n. 78, p. 15-35, 2002. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/es/a/wVTm9chcTXY5y7mFRqRJX7m/abstract/?lang=pt#ModalArticles.
Acesso em: 23 dez. 2021.
WEBER, M. Conceitos básicos da Sociologia. São Paulo: Centauro, 2002.

96 Antropologia e Sociologia da Educação


5
Educação, sociedade e poder
A educação é interdisciplinar por natureza, pois reúne em seu arca-
bouço teórico as contribuições de diferentes áreas do conhecimento
das ciências humanas e sociais. Anísio Teixeira (1900-1971), educador de
referência na história da educação brasileira, afirma que “a Psicologia, a
Antropologia e a Sociologia são as principais ciências-fonte da Educação”
(TEIXEIRA, 1957, p. 11-12).
Nesse cenário, a disciplina de Sociologia da Educação, que busca
empreender uma visão sociológica dos processos educativos, tem a im-
portante tarefa de fundamentar várias outras disciplinas, tanto as inte-
grantes dos cursos de Pedagogia quanto as das pós-graduações ligadas
à área educacional, promovendo a compreensão da realidade da edu-
cação brasileira. Nesse sentido, neste capítulo, usaremos elementos das
ciências humanas, sobretudo da sociologia, para entender as origens e
o funcionamento das instituições educativas no Brasil, e os processos
educativos formais e informais, para analisar o papel social da escola,
considerando-a como lócus não só de reprodução social, mas também
de transformação social, e para compreender as relações entre educa-
ção, Estado e poder, as políticas educacionais, as teorias e as práticas
pedagógicas sob perspectiva sociológica.

5.1 Instituições educativas


Vídeo Se por um lado a educação necessita do amparo de outras ciên-
cias humanas, como a sociologia, para avançar teórica e metodologi-
camente, por outro, é preciso tomar cuidado, no âmbito da pesquisa
educacional, da produção conceitual e da reflexão sobre a prática pe-
dagógica, para não se basear unicamente em um discurso “dos outros”
(CHARLOT, 2006, p. 13), ou seja, de outras áreas do conhecimento.
Objetivo de aprendizagem
Conhecer a gênese e o É preciso levar em conta as especificidades do campo educacio-
funcionamento das insti- nal, suas dinâmicas, seus objetos de estudo e suas problematizações
tuições educativas.
próprias. As abordagens etnográficas e o uso de estudos de caso são

Educação, sociedade e poder 97


exemplos de aplicações de métodos advin-
dos de outras áreas, como a antropologia e
a sociologia, que auxiliam a analisar fenôme-
nos educacionais e escolares, pois permitem
sua compreensão com base em ações dos
rodolfo_santos/Shutterstock

sujeitos e grupos sociais envolvidos nas di-


nâmicas educativas cotidianas, por exemplo,
docentes e discentes, e abrem espaço para
a investigação das origens e condições da
produção, da reprodução de conhecimen-
Figura 1 tos, das relações sociais na escola, das inte-
Exemplo de sala de aula do rações entre a comunidade escolar e seu entorno social, das dinâmicas
século XXI
das culturas escolares e dos contextos sociais de aprendizagem, sob a
perspectiva da multiplicidade de sentidos de saberes, usos e práticas
empreendidos na escola (CHERVEL, 1990) e da ação dos indivíduos que
vivenciam e produzem a realidade escolar.

Antes de analisar os espaços escolares como instâncias educacionais


formais e compreender as várias dimensões do papel social da escola,
voltaremos um pouco no tempo e conheceremos as origens dos pro-
cessos educacionais na sociedade e a gênese histórica das instituições
educacionais, compreendendo seu estabelecimento, desenvolvimento e
funcionamento na sociedade brasileira sob perspectiva histórica.

5.1.1 Processos educativos formais,


Figura 2
informais e não formais
Retrato de Paulo Freire em Historicamente os processos educativos iniciaram-se de modo es-
1977
pontâneo e informal, no cotidiano familiar e da comunidade, envol-
Slobodan Dimitrov/Wikimedia Commons

vendo todos os tipos de aprendizagens de conhecimentos úteis, como


os ligados a atividades domésticas, produtivas, morais etc.

Gradativamente a educação foi sendo delimitada pelo conjunto


de aprendizagens essenciais para a melhor socialização primária da
criança, centradas na sistematização, reprodução e perpetuação dos
conhecimentos socialmente produzidos e pelas regras da sociedade, e
passou a ser transmitida de modo formal por instituições criadas espe-
cificamente para isso: as escolas, que eram inicialmente lugares de sis-
tematização e reprodução de conhecimentos, destinados à educação
formal, organizada e regulada de modo rígido.

98 Antropologia e Sociologia da Educação


Geralmente o parâmetro usado para classificar o tipo de educação –
formal, informal e não formal – é o espaço escolar. Segundo Marandino,
Selles e Ferreira (2009, p. 133), “as ações educativas escolares seriam
formais, e aquelas realizadas fora da escola não formais e informais”.
A socióloga brasileira Maria da Glória Marcondes Gohn (1947-) aponta
que os resultados esperados para cada tipo de educação são bastante
diferentes. As expectativas para a educação formal, desenvolvida em
instituições escolares, giram em torno da aprendizagem formal e da
obtenção de títulos; os resultados da educação informal são percebi-
Glossário
dos no contexto do senso comum, e os da educação não formal são
senso comum: conheci-
percebidos como parte de vários processos (GOHN, 2006). mento empírico, adquirido
nas interações e experiên-
Um exemplo de educação não formal são os “círculos de cultura” cias cotidianas, que não
do modelo freiriano, por meio dos quais os indivíduos debatem sua traduz um conhecimento
generalizável para o todo
realidade e, mais do que aprender a ler palavras, aprendem a ler o da realidade social.
mundo com base em seu próprio contexto social.

No quadro a seguir há as características de cada tipo de processo


educacional.
Quadro 1
Educação formal, informal e não formal

Tipos Locais Características Objetivos

Educação formal
Institucionalizadas e desenvolvi-
das com base em regras e con- Ensino de conteúdos historica-
sumberarto/Shutterstock

Escolas teúdo previamente definidos, mente sistematizados para prepa-


organizam-se por idade e nível rar cidadãos ativos na sociedade.
de conhecimento.

Educação informal
5W Studio/Shutterstock

Família, comunida- Socialização dos indivíduos para


Processos permanentes e não or-
de, grupos de ami- a formação de hábitos e atitudes
ganizados de aprendizagens.
gos e mídias adequados socialmente.

Educação não formal


Aprendizagens obtidas no compar- Proporcionar aos indivíduos co-
Museus, centros cul-
Cube29/Shutterstock

tilhamento de experiências e ações nhecimentos sobre o mundo, so-


turais, associações,
coletivas no cotidiano, mobilizando bre si próprios e sobre as relações
ONGs e outros es-
as subjetividades e contribuindo sociais que estabelecem com ou-
paços coletivos
para a formação identitária. tros indivíduos.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Salles; Ferreira, 2009; Gohn, 2006.

Percebemos que esses tipos de educação não substituem um ao


outro, pois são complementares e articulam as diversas esferas sociais.

Educação, sociedade e poder 99


5.1.2 Origens e funcionamento das
instituições educativas no Brasil
No Brasil, as primeiras escolas foram fundadas pelos jesuítas du-
rante o período colonial e tinham forte influência da religião católica.
Para refletir Entre meados dos séculos XVI e XVIII, as instituições jesuítas foram,

Quando, como e por que


na prática, as únicas escolas do país. Com a expulsão dos jesuítas do
teria sido “inventada” a Brasil, em 1759, esse quadro parecia fadado a se transformar, entre-
escola que conhecemos
atualmente? O que se es-
tanto, as modificações só começaram, timidamente, a partir de 1808,
perava dessas instituições com a vinda da família real e a subsequente criação de instituições
quando foram criadas?
Será que a sociedade
culturais, científicas e de Ensino Técnico e dos primeiros cursos de
mantém até a atualidade Ensino Superior, como medicina, no Rio de Janeiro e na Bahia. Vamos
as mesmas expectativas
com relação à escola?
conhecer melhor quais foram as permanências e transformações no
sistema educacional escolar brasileiro.

Figura 3
Escola do século XIX

Fonte: RODRIGUES, J. W. Pateo do colégio. 1858. Óleo sobre tela. 100 x 66 cm. Museu Paulista, São Paulo.

Na linha do tempo a seguir você pode conhecer melhor os processos pelos quais o sistema
educacional brasileiro passou ao longo da história.

100 Antropologia e Sociologia da Educação


História da educação escolar no Brasil

1549 1808

Fundação da primeira escola primária no Brasil, em Com a vinda da família real, as primeiras instituições
Salvador, pelo Padre jesuíta Manoel da Nóbrega, para de Ensino Técnico e Superior foram criadas, voltadas
catequização de indígenas. para a educação da elite local.

1824 a 1827 1834

O governo brasileiro, já independente de Portugal, A Educação Básica foi descentralizada e passou a


assegurou legalmente a instrução primária a todos ser responsabilidade das províncias. A maioria da
os cidadãos e determinou a criação de escolas desse população ainda não tinha acesso às poucas escolas.
nível em todas as cidades e vilarejos.
Década de 1940
Década de 1930
O foco estatal passou a ser o Ensino Primário
O movimento de renovação da educação conquistou e Secundário, sobretudo os cursos técnicos –
reformas educacionais, como a Escola Primária industriais e comerciais – que incluíam crianças
Integral e o Ensino Médio e Superior voltado e jovens pobres nas escolas, mas para o ensino
para o espírito científico. Surgiram as primeiras instrumental.
universidades e o governo federal passou a ditar as
diretrizes educacionais. Década de 1960

Década de 1950 Durante a ditadura civil-militar, ampliou-se a busca


das classes médias por acesso ao Ensino Superior, e
Conflitos entre escola pública e escola particular, com a classe operária exigiu o Ensino Elementar e Médio
lideranças religiosas defendendo a subvenção estatal para seus filhos.
ao ensino privado e lideranças do ensino público
defendendo o papel do Estado na adequação de Década de 1980
crianças e jovens à sociedade por meio da escola.
Em 1980, 7,6 milhões de crianças e adolescentes
entre 7 e 14 anos ainda estavam fora da escola, cerca
Década de 1970 de 30% da população nessa faixa etária, a maior parte
na zona rural.
O governo militar implantou uma educação tecnicista,
ancorada em diretrizes dos EUA, que aprofundou a Décadas de 2000 a 2010
dualidade da educação oferecida a pobres e ricos:
Houve uma ampliação do compromisso e das
conhecimento para os ricos, acolhimento social e
iniciativas do Estado para a melhoria da qualidade
profissionalização mecanicista para os pobres.
da educação, sobretudo na Educação Básica,
Década de 1990 com programas na área de formação docente,
alfabetização, aumento dos programas de livros
A universalização do acesso à escola avançou, mas, didáticos e ampliação do tempo de escolaridade.
em 1996, 8,7 milhões de crianças e adolescentes As diretrizes da década anterior foram mantidas e
entre 5 e 17 anos ainda estavam fora da escola. foi ampliada a oferta de vagas no Ensino Médio e
Foram adotadas diretrizes como regulação do Superior.
sistema por meio das avaliações de larga escala,
financiamento por meio de fundos e estabelecimento De 2010 à atualidade
de metas educacionais.
Adoção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
e reorganização do Ensino Médio. Muitos dos
programas de avaliação, livros didáticos, bolsas
de estudo e compromissos e diretrizes para a
ampliação da oferta e qualidade da educação foram,
infelizmente, reduzidos ou descontinuados.

Educação, sociedade e poder 101


A longo da história das instituições escolares, que se confunde com
a história da própria educação no Brasil, o que vemos é uma constante
falta de acesso por grande parte da população e um longo caminho de
superação do analfabetismo e da universalização do ensino no país.
A democratização ampliou-se muito nas últimas décadas, mas ainda
enfrentamos a falta de unidades escolares e de infraestrutura nas que
existem, fruto da insuficiência de investimentos, e ainda se luta por en-
sino de qualidade para todos.

5.1.3 Espaços, rotinas e tempos escolares


Se repararmos bem na figura a seguir, veremos que ela tem muitas
semelhanças com a foto da sala de aula atual apresentada no início des-
te capítulo. A organização do espaço e seus elementos e a disposição das
carteiras enfileiradas e voltadas todas para o mesmo lado onde estão o
professor e o quadro de giz são os mesmos e revelam, entre outras coi-
sas, que pouco mudou no espaço escolar nas últimas décadas.
Figura 4
Exemplo de sala de aula da década de 1960

David Bukach/Shutterstock

102 Antropologia e Sociologia da Educação


O sinal que toca a cada troca de turno, entrada e saída de alunos Curiosidade
e recreio, marcando a rotina escolar, também é o mesmo som que Alguns grupos colocavam-
-se contra a escola como
se ouvia no passado, bem semelhante à sirene das fábricas, indican- instituição detentora da
educação formal e propu-
do a rotina rígida do trabalho. Muitas práticas simbólicas na escola
nham o que chamavam
também permanecem as mesmas, como a predominância das aulas de desescolarização, ter-
mo criado pelo educador
expositivas, das cópias no quadro de giz e da exigência de silêncio e estadunidense John Holt
imobilidade dos estudantes, enfileirados uns atrás dos outros, ape- (1923-1985), que defendia
que os pais ou tutores as-
sar das imensas transformações pelas quais a sociedade passou. sumissem a educação de
Por outro lado, há um crescimento nas tentativas de aplicar outras crianças e adolescentes,
promovendo sua autono-
práticas de ensino e aprendizagem, ou ao menos refletir sobre elas. mia para acessar outras
formas de aprendizagem
No entanto, apesar das mudanças que testemunhamos, por fora do espaço escolar,
de modo livre, sem adotar
exemplo, na organização espacial das salas de aula, na maior par-
nenhum currículo espe-
te das vezes, se a disposição das carteiras em círculo, em formato cífico – o que aproximou
esse modelo da educação
de auditório etc. não vem acompanhada de verdadeiras inovações informal e não formal,
nas práticas pedagógicas e estratégias didáticas aplicadas na escola, mas o diferenciou da
educação domiciliar, em
não é raro que vejamos um professor, à frente de uma sala em um que deve ser adotado um
currículo preestabeleci-
formato alternativo, escrevendo no quadro e ditando lições ou mes-
do, representando uma
mo usando recursos tecnológicos digitais de ponta do mesmo modo educação formal em casa,
porém sem a importante
como usaria o quadro de giz ou caderno e lápis. dimensão socializadora
da escola.
Sob a perspectiva sociológica, podemos interpretar o espaço es-
colar, seus elementos e sua organização de rotinas como sinais de
Para refletir
determinadas ideias pedagógicas e, de maneira mais ampla, como
Que relações poderíamos
reflexos de certas ideologias. A partir dos anos 1960, surgiram os fazer entre o movimento
de “desescolarização”, o
primeiros movimentos que criticavam a escola como instituição tra-
modelo de educação do-
dicional de transmissão de conhecimentos na sociedade. Esses mo- miciliar (do inglês homes-
chooling) e as propostas
vimentos viam o espaço escolar como instância reprodutora das do movimento brasileiro
desigualdades sociais. Escola sem Partido?

5.2 Processos educativos e reprodução social


Vídeo Se refletirmos sobre a história das instituições escolares no Brasil,
e mesmo em outras partes do mundo, veremos que aspectos ligados
à função social da escola, importantes no passado, ainda podem, mui-
tas vezes, estar presentes na atualidade. A função de socializar, no
sentido de adequar, ajustar e “formatar” crianças e jovens às regras
e convenções da sociedade, ainda se mantém bastante presente no
pensar e no agir tanto de docentes e gestores escolares quanto das

Educação, sociedade e poder 103


Objetivo de aprendizagem famílias dos estudantes e mesmo, em certos aspectos, das políticas
Compreender os públicas para educação.
processos educativos
formais e informais e a Por outro lado, está presente outra noção de socialização escolar,
escola como reprodutores
das relações sociais.
que leva em conta a necessidade de desenvolver habilidades socioe-
mocionais em crianças e adolescentes e repará-los para as relações
sociais que vivenciarão ao longo de suas vidas, promovendo a com-
preensão de seu lugar no mundo e suas potencialidades para a vida
social.

Sob outro aspecto, também se constitui como uma permanência


no tempo a dualidade educacional que permeia as escolas brasilei-
ras, a qual abarca:
1
Escola pública Escola privada
De modo geral, é o ensino
1
de disciplinas introdutó- Ensino propedêutico Ensino Técnico
rias ao conhecimento de
Formação instrumental para o Formação para ingresso no
várias áreas, sobretudo
as ligadas às Ciências Hu- trabalho Ensino Superior
manas e Sociais. Porém, Escola para pobres Escola para ricos
quando usado em oposi-
ção ao ensino técnico, o
termo indica a formação Nesse sentido, o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) traz teorias
mais ampla e humana dos
interessantes para a compreensão mais ampla dos fenômenos esco-
estudantes, de modo a
prepará-los não só para o lares com base na ação dos sujeitos envolvidos com as dinâmicas das
Ensino Superior, mas para
instituições e sob uma perspectiva capaz de apreender a heterogenei-
a atuação cidadã plena
em sociedade. dade e a pluralidade da realidade escolar.

Bourdieu pode contribuir, no contexto de sua teoria da reprodu-


ção, com os conceitos de habitus e campo, os quais auxiliam a aná-
lise das dimensões sociais dos processos educativos, em especial os
que se dão no interior da escola, considerando as dinâmicas e práti-
cas individuais e sociais, assim como abarcando as relações, as ten-
sões e os conflitos que atravessam esse cenário e dão
sentido às ações, representações e apropria-
ções dos sujeitos no espaço social escolar,
na busca da articulação entre as práticas
wavebreakmedia/Shutterstock

dos indivíduos e o mundo social.

O sociólogo, ainda na década de


1960, trouxe uma visão sociológica ino-
vadora do sistema escolar e dos pro-
cessos educativos. Na visão do autor, a
sociedade é um espaço social tecido de

104 Antropologia e Sociologia da Educação


relações objetivas entre as pessoas, e as ações concretas dos indiví-
duos, ou dos agentes, são o resultado de disposições sociais aprendi-
das no meio social de origem de cada um, especialmente na família e
na escola.

Desse modo, o agente é sempre constituído de tendências ou con-


formações que ele incorporou e que determinam crenças, gostos e mo-
dos de pensar, agir e sentir. Até as formas de falar e se movimentar
seriam definidas por essas disposições adquiridas no próprio grupo
social. Bourdieu, no contexto dos movimentos teórico-metodológicos
da sociologia contemporânea, posicionava-se criticamente com relação
2
ao estruturalismo , que retirava das ações individuais qualquer tipo 2
de influência na sociedade e atribuía toda a lógica social às estruturas. O estruturalismo na
sociologia está ligado à vi-
O autor considerava a ação dos indivíduos tão importante quanto as são de que os fenômenos
eventuais estruturas preestabelecidas na sociedade. sociais são fruto das es-
truturas sociais – ou seja,
Por meio do conceito de habitus, Bourdieu atribui ao indivíduo, a os sistemas de relações
sociais que subsidiam a
quem ele chama de agente (justamente pela sua característica de agir vida social dos indivíduos
socialmente), a faculdade de intervir concretamente nas situações so- –, à noção de que uma
mesma estrutura pode
ciais, mesmo tendo suas ações limitadas de vários modos pelas pró- gerar formas sociais e
prias situações, relações ou estruturas predefinidas na sociedade. Ele culturais diferentes, a
depender da sociedade,
afirma, portanto, existir certa dinâmica entre a autonomia de ação do e à ideia de que quando
indivíduo e tudo o que está estabelecido na sociedade, como as hierar- uma estrutura social
é modificada todas as
quias sociais, econômicas e políticas, as relações de dominação, outras outras também são.
relações sociais etc.

Bourdieu propõe, ainda, que as ações dos agentes sociais seriam


condicionadas pela própria situação social do indivíduo, por sua classe
social, seu meio cultural de origem e sua história individual e familiar. A
esse conjunto de condicionamentos o autor dá o nome de habitus. Para
ele, as pessoas tendem “a reproduzir a lógica objetiva dos condicio-
namentos, mas introduzindo neles uma transformação” (BOURDIEU,
1983, p. 105), ou seja, o habitus não determinaria totalmente a vida
social dos indivíduos, pois eles teriam algum poder de intervir e trans-
formar sua realidade social.

Com relação ao contexto da educação escolar, Bourdieu (1983) trata


de um tema importante: a violência simbólica. Segundo o autor, ela
se dá por meio da imposição de valores, normas e códigos simbólicos
característicos de uma classe social sobre as demais. Para ele, a escola
seria uma instância social na qual, por meio dos códigos de classe, a

Educação, sociedade e poder 105


cultura da classe dominante e da elite da sociedade é passada para
as classes dominadas, ou seja, que estão em um estrato mais baixo
da hierarquia social e econômica. Mas como isso é realizado? Para o
sociólogo, esse processo é implementado por meio da escolha das
abordagens e dos conteúdos a serem ensinados na escola, isto é, dos
currículos escolares, que definem o que será estudado e de qual modo.

Outro conceito central da teoria de Bourdieu é o de campo, que


o autor define como um espaço social estruturado no qual há uma
disputa de forças em condição de desigualdade entre dominantes e
dominados (BOURDIEU, 1983). Essa disputa objetiva a conservação ou
transformação das posições no campo, sendo que elas expressam a
força que cada indivíduo possui ou não no campo.

Sob essa perspectiva, os grupos sociais interagem em um mundo


próprio, com regras também próprias, as quais são internalizadas pe-
los integrantes do campo por meio da socialização, mas também agem
tendo em vista um cenário mais amplo, o qual Bourdieu denomina de
mundo global. Para ele, é preciso também considerar os fatores exter-
nos ao campo, como as relações entre um campo e outro, entre o cam-
po educacional e o político ou o jurídico, por exemplo, em face de um
contexto de mundo global representado pela sociedade brasileira ou
mesmo pela sociedade mundial.
aelitta/Shutterstock

Precisamos destacar, porém, que as disputas no inte-


rior de cada campo não são de natureza exclusivamen-
te econômica, relacionadas ao poder material, pois
esse não é o único fator decisivo para condicionar
as forças no interior do campo; outro nesse con-
texto é o poder simbólico.

Nesse ponto, trazemos novamente o


conceito de violência simbólica, usado por
Bourdieu para explicar que toda a pro-
dução simbólica na sociedade – cultural,
intelectual, educacional, artística etc. – tem
sentido determinado e não é arbitrária. A
produção simbólica legitima as forças do-
minantes nos campos na vida social e ex-
prime gostos e estilos de vida de classe,

106 Antropologia e Sociologia da Educação


produzindo distinção social. Assim, a luta simbólica entre classes so-
ciais não se revela nas desigualdades materiais, relacionadas ao poder 3
de consumo e à falta ou não de dinheiro, mas sim na maneira como o Refere-se não só à apro-
priação de capacidades
dinheiro é usado, no tipo de consumo e no capital cultural
3
de cada cognitivas, mas também à
classe, que é substrato das desigualdades sociais. posse de bens materiais
e simbólicos – como
Nesse cenário, segundo Bourdieu (1983), o Estado tem papel im- diplomas, certificados, tí-
tulos etc. – que garantem
portante, pois é a instituição social determinante para a construção privilégios aos indivíduos
da realidade social, já que controla os instrumentos e as regras de que os possuem. Apesar
de parecer “natural”, ou
produção e reprodução social e impõe as categorias e classificações “inato”, o capital cultural
usadas na sociedade, as quais acabam sendo percebidas como na- é fruto de processos
sócio-históricos de repro-
turais pelos indivíduos. dução de desigualdades
e legitima continuamente
Lembra-se de quando tratamos da organização espacial, das na sociedade as vanta-
práticas simbólicas, das regras e das rotinas da escola? Para gens sociais adquiridas
como herança das gera-
Bourdieu (1983), esses elementos também expressam uma ideolo- ções anteriores.
gia de classe e são capazes de contribuir para a reprodução das de-
sigualdades de classe na escola.

O sociólogo defende que as normas e hierarquias presentes nas


instituições escolares, por mais naturalizadas que estejam no pensa-
mento e na conduta de estudantes, docentes e funcionários e por mais
adequadas e úteis que pareçam, não se constituindo alvo constante de
problematizações por parte da comunidade escolar, por exemplo, ain-
da assim representam uma imposição dos indivíduos que ocupam os
cargos de autoridade, de gestão dentro da instituição, frequentemente
oriundos das classes dominantes ou ao menos seguidores dos códigos
das classes dominantes, que lhes deram acesso a essas posições hie-
rárquicas (e ao grau de instrução necessário aos cargos).

O que Bourdieu levanta é: por que apenas parte dos indivíduos


domina os códigos da cultura dominante quando esses códigos de-
veriam ser acessíveis a todos por meio de uma educação universal e,
mais ainda, por que valores, normas, práticas e códigos pertencen-
tes às culturas de outras classes sociais que não a dominante são
desvalorizados socialmente e parecem não “merecer” sua integra-
ção aos currículos das escolas públicas, sendo também transmitidos
por meio dos processos educativos formais?

Segundo Bourdieu e Passeron (2010), sob o disfarce da “neutrali-


dade” dos conteúdos curriculares, o que ocorre é a reprodução das

Educação, sociedade e poder 107


desigualdades no interior da escola, pois não há nada de neutro ou
aleatório no que é selecionado como “correto” e “culto”, conhecimento
“verdadeiro”. Esses processos são ideológicos e atendem aos interesses
da classe dominante de perpetuar as desigualdades sociais e, com ela,
econômicas e de poder, usando a desculpa das diferenças culturais.

Percebemos que não se trata aqui de transmitir, em vez disso,


erros conceituais ou pseudociência; trata-se de não legitimar di-
ferenças sociais por meio das diferenças culturais de origem dos
estudantes, desvalorizando saberes populares, valores e práticas
tradicionais ou ancestrais das comunidades etc., que fazem parte
da construção da identidade social desses estudantes, e garantindo
a todo custo, por meio do sistema escolar, a conservação cultural e
social que favorece apenas as elites.

Os processos de legitimação da “alta cultura” ou “cultura padrão”, no


entanto, não costumam ser percebidos como de dominação e reprodu-
ção social pelos indivíduos envolvidos, que incorporam passivamente
o que ensinam e o que é ensinado, e juntam esses elementos à con-
tínua formação de seu habitus (por meio das interações sociais) que,
por sua vez, influencia costumes, comportamentos e cultura. É nesse
ponto que Bourdieu chama a atenção para um fenômeno frequente: o
conflito entre os componentes do habitus do indivíduo advindos da so-
cialização nos meios familiar, comunitário ou religioso e os elementos
transmitidos na educação escolar, que impõem a cultura dominante.

Bourdieu é pioneiro, junto a Jean-Claude Passeron (1930-), da crítica


à visão da escola como acesso privilegiado para a ascensão social, po-
sição explicitada na obra A reprodução social: elementos para uma teoria
do sistema de ensino, de 1974. Nela, os autores demonstram que a cren-
ça comum de que as desvantagens econômicas podem ser plenamente
superadas pelo “esforço individual”, pelo mérito pessoal e pela dedica-
ção do estudante não passa de um mito, pois a escola é uma instituição
de reprodução das desigualdades sociais.

Os autores não ignoram as possibilidades de ascensão social via


instrução escolar, nem a relevância de políticas educacionais que se
empenham na redução das desigualdades, porém não veem nesses
aspectos uma possibilidade de anular o caráter reprodutor das desi-
gualdades da instituição escolar.

108 Antropologia e Sociologia da Educação


Segundo os sociólogos Bourdieu e Passeron (2010), a avaliação es- Figura 5
colar não está limitada ao processo de examinar a aprendizagem dos Reprodução das desigual-
dades na escola
estudantes, mas se constitui também em processo de
julgamento cultural, moral e estético, estendendo-se à
avaliação constante do modo de se comportar, fa-
lar, escrever e relacionar-se dos estudantes,
em um processo cujos parâmetros são a
cultura da classe dominante, mesmo que
não sejam reconhecidos “conscientemen-
te” pelos docentes e gestores escolares.

Nesse contexto, apontam Bourdieu e

Syda Productions/Shutterstock
Passeron (2010), o capital cultural da elite,
o entendimento trazido de casa sobre o fun-
cionamento do sistema escolar e do que nele
é valorizado – que se liga ao capital cultural e à
presença da família na educação escolar –, o prestígio
Um exemplo de reprodução das
social herdado da família e, por fim, as posses materiais e o poder desigualdades na escola são os
de compra definem decisivamente não só a avaliação dos estudantes, processos de avaliação escolar,
que muitas vezes não levam
mas também sua trajetória escolar como um todo. em conta os contextos sociais
de aprendizagem dos alunos.
As pesquisas desenvolvidas por Bourdieu e Passeron desvelam, por-
tanto, as dinâmicas de reprodução escolar das desigualdades sociais,
mostrando o quanto o conceito de meritocracia nos contextos educa-
cional e social pode ser enganador e apontando como o fator de heran-
ça familiar, de modo amplo, é essencial para analisar o desempenho
escolar dos estudantes e suas chances de ascensão social e inserção Para refletir
na sociedade e no mundo do trabalho. Pesquisas recentes no contexto O fracasso e o sucesso
escolar dependem exclu-
brasileiro têm comprovado que as teorias de Bourdieu sobre o caráter
sivamente do estudante?
determinante do capital cultural familiar sobre o desempenho escolar Qual é o peso dos fatores
socioculturais nesses fe-
continuam bastante úteis para a análise da educação escolar.
nômenos? De que modo
esses fatores são incor-
A pesquisa publicada por Campos (2020) na revista científica do Instituto de porados aos processos
avaliativos da escola?
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, que
investigou em que medida o capital cultural familiar é importante para o de-
senvolvimento do estudante, revela que as diferenças de desempenho escolar
continuam sendo favoráveis aos alunos detentores de uma situação positiva
de capital cultural familiar e recomenda que as políticas públicas considerem a
relevância desses achados na formulação de seus programas.

Educação, sociedade e poder 109


Outra pesquisa feita por Silva (2020) tem como problema de in-
vestigação social as relações entre as práticas culturais familiares e as
desigualdades escolares, no sentido de compreender os motivos de
sucesso e insucesso escolar e suas ligações com a distribuição desi-
gual de capital cultural, partindo da hipótese, comprovada por meio da
pesquisa, de que o impacto da herança cultural familiar, sobretudo a
escolaridade da mãe, é decisivo para o desempenho escolar.

As teorias de Bourdieu, entretanto, apesar de bastante adotadas até


a atualidade, também foram alvo de críticas no contexto da sociologia
contemporânea.
Essas análises de Bourdieu, centradas no conceito de classe social,
têm sido criticadas por, pelo menos, duas razões principais. Em pri-
meiro lugar, uma série de pesquisas tem acentuado que a catego-
ria classe social não seria suficiente como critério de diferenciação
dos grupos familiares segundo suas práticas escolares. Mesmo a
divisão em frações de classe [...] seria por demais abrangente para
captar certas diferenças entre as famílias. [...] Percheron (1981),
[...] através de pesquisa realizada com famílias pertencentes às
diversas classes sociais, conclui que certas atitudes em relação
à educação dos filhos (valorização da submissão, do esforço ou
da autonomia; rigorismo ou liberalismo educacional) variam não
tanto em função da classe ou fração de classe, mas sim de ou-
tros fatores mais ou menos independentes em relação à divisão
em classes: [...] a trajetória ascendente ou descendente do grupo
familiar (e não necessariamente da classe), o nível educacional, o
meio rural ou urbano e a postura mais ou menos conservadora e
religiosa de cada família. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 26)

A falta de acesso à escola no Brasil, como vimos, sempre atingiu as


crianças e os jovens provenientes de famílias pobres, e não as advin-
das de lares ricos. A escola pública, que tem por obrigação oferecer a
educação básica a todos os cidadãos, reproduziu ao longo do tempo
as desigualdades sociais e econômicas presentes na sociedade, tanto
por meio dos currículos e das teorias e práticas pedagógicas adotadas
quanto por meio de vários outros fatores, incluindo o pouco investi-
mento na qualidade do ensino, na formação dos professores e na in-
fraestrutura das escolas públicas.

Esses aspectos apontam que as desigualdades de poder – econômi-


co e de influência e dominação – na sociedade determinam as ideolo-
gias usadas como base da concepção de educação, formação escolar
da população, teorias educacionais e, principalmente, políticas públicas
educacionais a serem implementadas na sociedade.

110 Antropologia e Sociologia da Educação


5.3 Estado, ideologia e educação
Quando tratamos de relações de poder e educação, não estamos
Vídeo
necessariamente nos referindo a aspectos político-partidários, mas de
políticas de Estado para a educação, suas ideologias e concepções po-
líticas, pois são essas que subsidiam as políticas educacionais imple-
mentadas no país.

No Brasil, no meio educacional, as reivindicações em torno do en-


sino público obrigatório, gratuito e de qualidade para todos têm sido
Objetivos de aprendizagem
uma constante e, mais recentemente, têm se juntado à luta por uma
• Entender e aplicar os
escola inclusiva, que atenda às diferenças sociais e culturais, sob a pers-
conceitos de Estado,
ideologia e autonomia pectiva de uma formação crítica dos estudantes para a cidadania plena
ao contexto educacional.
e sua ação transformadora na sociedade. Vimos que a universalização
• Compreender a escola
como aparelho ideoló- do acesso à escola, bem como a permanência, avançou muito ao longo
gico do Estado e política do tempo, mas ainda não atingiu a totalidade de crianças e jovens.
social pública.
• Analisar a influência das Junto a isso, observamos as lutas pela ampliação da qualidade da
ideologias, dos movimen-
educação para todos e um cenário de disputas ideológicas e políti-
tos sociais e das teorias
nas políticas educacio- cas quanto à função social da escola pública. Para Libâneo, Oliveira e
nais e no fazer docente.
Toschi (2012, p. 15):
têm-se observado, nas últimas décadas, contradições mal resol-
vidas entre quantidade e qualidade em relação ao direito à esco-
la, entre aspectos pedagógicos e aspectos socioculturais, e entre
uma visão de escola assentada no conhecimento e outra, em
suas missões sociais. [...] a circulação de significados muito difu-
sos para a expressão qualidade de ensino, seja por razões ideo-
lógicas, seja pelo próprio significado que o senso comum atribui
ao termo, dependendo do foco de análise pretendido: econômi-
co, social, político, pedagógico etc. O próprio campo educacional,
nos âmbitos institucional, intelectual e associativo, está longe de
obter um consenso mínimo sobre os objetivos e as funções da
escola pública na sociedade atual.

O educador brasileiro José Carlos Libâneo (1945-) ressalta ainda


que é notório o impacto negativo das diretrizes educacionais de orga-
nismos internacionais no funcionamento das escolas brasileiras, pois
os governos federal e estadual costumam inspirar-se nessas diretri-
zes, defendidas, muitas vezes, por organizações brasileiras, para ela-
borar os planos de educação, o que gera consequências nas escolas
públicas sob vários aspectos: nas políticas de financiamento, nos cur-
rículos, nos programas de formação de professores, na organização

Educação, sociedade e poder 111


das escolas, nas práticas pedagógicas,
Esquerda.Net Flickr/Wikimedia Commons

nas formas de avaliação etc.

Segundo Boom (2004), desenhou-se


um novo paradigma educacional, to-
mado como mais realista, mas que, na
realidade, baseia-se em uma visão eco-
nomicista da educação, propondo-a
como uma necessidade básica natural
dos seres humanos a ser satisfeita pela
São frequentes os protestos
de professores em prol da sociedade, tal como a fome. Boom (2004, p. 227) afirma que, ao apre-
melhoria da qualidade da sentar a educação desse modo, ela fica:
educação e das condições de
trabalho docente. reduzida a uma simples pulsão natural, perdendo seu caráter
de acontecimento cultural em que intervém o pensamento, a
Curiosidade linguagem, a inteligência, os saberes. A educação deixa de ser,
assim, um assunto da cultura para ser um serviço desprovido de
Os Acordos MEC-USAID
foram viabilizados no política e de história, reduzindo seu papel à aquisição de compe-
Brasil por meio da Lei tências de aprendizagem.
n. 5.540/1968, mas já
estavam sendo negocia- O autor chama a atenção para um fenômeno que, muitas vezes, não
dos em segredo desde
1965 entre o Ministério
é percebido pelos educadores: o paradigma educacional predominante
da Educação (MEC) do no Brasil, que embasa as concepções e políticas educacionais vigen-
Brasil e a Agência dos
Estados Unidos para o
tes, enquanto privilegia a aprendizagem, sob o argumento de que essa
Desenvolvimento Inter- seria a única forma de centrar os processos educativos no estudante,
nacional (USAID), com
o objetivo de implantar
superando as pedagogias tradicionais, acabando por desvalorizar o en-
reformas educacionais sino e, em consequência, os educadores.
no país de acordo com
os padrões desejados Nóvoa (2009) esclarece que, desse modo, não apenas gestores pú-
pelos EUA para os países
blicos da educação, como também parte dos intelectuais desse campo,
da América Latina. A
proposta original era a acabam por reproduzir os aspectos político-ideológicos de órgãos in-
completa privatização
ternacionais, como o Banco Mundial, que recomenda que as escolas de
das escolas públicas,
que não foi efetuada, e países pobres se concentrem em atender às necessidades mínimas de
as reformas curriculares,
aprendizagem do alunado e constituam-se em espaços de acolhimento
que foram realizadas,
como a redução de carga social, sobrepondo os objetivos assistenciais aos de aprendizagem.
horária de disciplinas
como História e Geogra- Libâneo, Oliveira e Toschi (2012) alertam que o antagonismo e a po-
fia, eliminação das disci-
larização com relação às visões – sobretudo político-ideológicas – sobre
plinas de Filosofia, Latim
e Educação Política, sob a função da escola circulam no meio educacional há muito tempo e
o pretexto de serem
são expressão do caráter dual da escola brasileira que, de um lado,
obsoletas, e inserção de
disciplinas com objetivos volta-se para o conhecimento, a aprendizagem e as tecnologias, cuja
moralizadores, como
aplicação está destinada aos filhos dos ricos, e, de outro, direciona-se
Educação Moral e Cívica.
para o acolhimento, a assistência, o apoio e a integração social, des-

112 Antropologia e Sociologia da Educação


tinada aos filhos das famílias pobres, que precisariam aprender ape-
nas o mínimo necessário (como ler, escrever e executar as quatro
operações matemáticas).

5.3.1 Teorias educativas e políticas educacionais


O teórico da educação Demerval Saviani (1943-) propôs uma classifi-
cação das teorias educacionais em críticas e não críticas que contribui
muito para a análise das diferentes políticas educacionais e movimen-
tos de educadores no Brasil. Em sua obra Escola e Democracia, de 1991,
classifica e discute as teorias educacionais e suas implicações não só
para o ensino, mas também sob aspectos sociopolíticos e os impactos
nas políticas educacionais brasileiras. O grupo de teorias não críticas
está apresentado no quadro a seguir.
Quadro 2
Teorias educacionais não críticas

Teorias não Abordagem Tendência Políticas educacionais


Características
críticas pedagógica político-ideológica no Brasil
A educação é autôno-
Centra os processos
Políticas de acesso restri-
Pedagogia tradicional

ma, não sofre influên-


educativos no pro-
cia do contexto ou de to à escola e de assisten-
fessor, vendo o aluno
ideologias. É reprodu- cialismo.
como receptor passi- Tendências conserva-
tora dos conhecimen- Predominante até a dé-
vo do conteúdo trans- doras e redentoras.
tos acumulados pela cada de 1930 no Brasil,
mitido. Separa teoria
humanidade, promo- porém com influência em
e prática, enfatizando
ve coesão social e evi- décadas posteriores.
a prática.
ta desvios.

Vê a escola como
Pedagogia nova

Reformas educacionais
Educação é uma fer- equalizadora social e
realizadas após o Movi-
ramenta de supera- privilegia o “aprender a Tendências liberais
mento da Escola Nova
ção das desigualda- aprender”, os métodos progressistas.
no Brasil, entre as déca-
des sociais. e as técnicas, em vez
das de 1930 e 1960.
dos conteúdos.

Políticas educacionais
implantadas no perío-
Pedagogia tecnicista

Vê a escola como pre- do do Regime Militar


A meta da educação
paração para o mundo no Brasil, nas décadas
é o ensino racional,
do trabalho, enfatiza o de 1960 a 1980, que
organizado e operacio- Neoliberal.
“aprender a fazer” e pri- reduziram o ensino de
nal para formar indiví-
vilegia os recursos e as humanidades nos currí-
duos “produtivos”.
tecnologias “eficazes”. culos e privilegiaram os
conhecimentos básicos
e o ensino técnico.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Saviani, 1991.

Educação, sociedade e poder 113


Observamos no quadro que as teorias educacionais não críticas
listadas por Saviani são a pedagogia tradicional, a pedagogia nova
e a pedagogia tecnicista, todas teorias que veem a educação como
uma ferramenta que promove a igualdade social e supera a exclusão
ou marginalidade social.

A teoria tradicional teve grande influência sobre a organização do


sistema de ensino no Brasil e, apesar de ter deixado de ser explícita
em documentos oficiais dos programas educacionais após a década
de 1930, foi responsável por inspirar uma organização do ensino e do
espaço escolar que perdurou por muito tempo nas práticas docentes e
deixou marcas até a atualidade.

Segundo a teoria tradicional, o ensino é organizado por classes


determinadas por faixa etária e capacidades cognitivas, dirigidas
por um professor que é o responsável pela transmissão expositiva
e sistematizada dos conteúdos pertencentes ao acervo cultural da
humanidade aos alunos segundo os princípios do método científico
tradicional (indutivo): apresentação, comparação, assimilação, gene-
ralização e aplicação. Aos estudantes resta absorver passiva e disci-
plinadamente os conteúdos e reproduzi-los fielmente nas tarefas e
avaliações (SAVIANI, 1991, p. 57).

Perceba que a teoria da pedagogia tradicional tem objetivos con-


servadores, ou seja, conservar a estrutura social vigente, atribuindo à
escola o papel de corrigir os “desvios” de determinados indivíduos e
evitar a marginalidade, vista como fruto de desvio moral pessoal, não
de desigualdades sociais e econômicas. A visão da escola como “reden-
tora” dos pobres e desvalidos tem raiz na moral cristã que acabava por
dar caráter mais de assistencialismo do que de ensino e aprendizagem
à escola pública tradicional. O professor como centro do processo edu-
cativo eliminava qualquer possibilidade de formação de autonomia e
reflexão crítica dos estudantes sobre os conteúdos e a realidade social.

Em reação a esse caráter conservador, surge a pedagogia nova,


que, apesar de também considerar que a escola tinha a capacidade
de equalização social, acusava a escola tradicional de não cumprir com
esse papel. Ao contrário da tradicional, ela não tomava os excluídos ou
marginalizados da sociedade como ignorantes, mas como “rejeitados”.

A escola, portanto, deveria trabalhar na adaptação e aceitação dessas


pessoas pela sociedade. Notamos que, da mesma forma que a peda-

114 Antropologia e Sociologia da Educação


gogia tradicional, a pedagogia nova considerava que o “defeito” estava
nos indivíduos excluídos socialmente, e não na estrutura social desigual
e na desigualdade de oportunidades da sociedade. A organização e os
objetivos do ensino, segundo essa pedagogia, assentavam-se sobre a
ideia do professor como um orientador, um incentivador da aprendiza-
gem dos alunos, que deveriam, em um ambiente favorável criado pelo
docente, cheio de recursos didáticos atraentes, conduzir seu aprendi-
zado por iniciativa própria.

Sob essa perspectiva, a escola precisava ser um ambiente estimulan-


te, dinâmico, colorido e alegre, em oposição ao ambiente sério, rígido,
pouco estimulante e monótono que a teoria tradicional tinha imposto.
O lema da pedagogia nova, representado pelo movimento da Escola
Nova no Brasil, era “aprender a aprender” e inspirava-se nas ideias de
autores como Heinrich Pestalozzi (1746-1827), John Dewey (1859-1952),
Friedrich Fröebel (1782-1852) e Célestin Freinet (1896-1966).
Saviani (1991, p. 22) aponta que a pedagogia nova trouxe mais erros
que acertos quando aplicada pelas políticas educacionais no Brasil en-
tre as décadas de 1930 e meados da década de 1960:
provocando o afrouxamento da disciplina e a despreocupação
com a transmissão de conhecimentos, acabou por rebaixar o
nível do ensino destinado às camadas populares, as quais muito
frequentemente têm na escola o único meio de acesso ao conhe-
cimento elaborado. Em contrapartida, a “Escola Nova” aprimorou
a qualidade do ensino destinado às elites.

Para Saviani, a aplicação prática dessa teoria ampliou as desigual-


dades na escola, pois valoriza alguns estudantes em prejuízo de ou-
tros, aplicando suas propostas e experimentos a pequenos grupos.
Essa crítica de caráter social e político pode ser exemplificada pelo
fato de que as escolas ao adotarem métodos ligados à pedagogia
nova eram majoritariamente privadas; já em sistemas públicos de en-
sino em que a teoria foi aplicada, como é o caso do estado de São
Paulo, a diferença era nítida entre escolas chamadas modelo, que
recebiam mais investimentos e a maior parte dos alunos vinha das
classes médias, e outras da rede, mais escassas, que atendiam aos
alunos oriundos de famílias mais pobres e não recebiam os recursos
didáticos e outras vantagens. A responsabilidade do Estado sobre a
educação de qualidade para todos, como vemos, ainda não era uma
garantia viabilizada na prática.

Educação, sociedade e poder 115


Figura 6
Exemplo de atividade da Escola Nova: Cineminha

Nos anos 1930 e 1940, os educadores da escola nova defendiam a intensa participação dos
alunos nas atividades escolares, por meio do método de projetos e centro de interesses e do
trabalho em grupo, como retratado na construção do “cineminha”.
Fonte: CRE Mario Covas, 2022.

A pedagogia tecnicista, por fim, também é classificada no grupo das


teorias não críticas, ou seja, que não fazem críticas à estrutura, à es-
tratificação social e às desigualdades na sociedade, nem pretendem
transformá-la, apenas “adaptar” os indivíduos por meio da escola. A
base filosófica dessa pedagogia, para Saviani (1991), está em conside-
rar que os indivíduos são diferentes quanto às suas capacidades, uns
com mais e outros com menos capacidade de aprender, e diferentes
em seus interesses e ritmos de aprendizagem.

A pedagogia tecnicista surge para atender às transformações no


sistema capitalista e segue, essencialmente, o modo de produção das
fábricas, nas quais o trabalhador tem funções objetivas voltadas para
resultados específicos na produção. A reorganização do ensino, rea-
lizada por meio da aplicação dessa pedagogia nas políticas públicas
educacionais durante o período do Regime Militar no Brasil, passou a
valorizar as técnicas, produzidas por especialistas supostamente “neu-
tros” ideologicamente – com base na noção da ciência como neutra,
livre de condicionantes sociais e econômicos –, que deveriam ser usa-
das pelo professor como centro do processo educativo, no qual tanto
docente quanto discente eram apenas coadjuvantes.

Essa teoria também afirmava o poder da escola como promotora


da equalização social: “a educação [contribuirá] [...] para superar o pro-
blema da marginalidade na medida em que formar indivíduos eficien-
tes, portanto, capazes de darem sua parcela de contribuição para o
aumento da produtividade da sociedade. Assim, estará ela cumprindo
sua função de equalização social” (SAVIANI, 1991, p. 25).

116 Antropologia e Sociologia da Educação


A partir da década de 1970 surgem, fora do Brasil, as teorias socio-
lógicas da educação que propõem pedagogias críticas chamadas de
reprodutivistas, pois consideravam que a escola era uma instância que re-
produzia as desigualdades estruturais da sociedade e defendiam que era
inviável compreender a educação e os processos educativos sem anali-
sar seus condicionantes sociais. Essas teorias chegaram aos poucos no
país, mas não tiveram reflexos significativos nas políticas educacionais,
apesar de afetarem as práticas pedagógicas com a formação superior
dos docentes. Conheça, entre as teorias críticas, as crítico-reprodutivistas
apresentadas no quadro a seguir.
Quadro 3
Teorias críticas

Teorias crítico- Abordagem Tendência


Características Autores
-reprodutivistas pedagógica político-ideológica

Escola como repro-


A escola deve ser au-
dutora de desigual-
Teoria do sistema de tônoma e os docen- Tendências críticas
dades sociais e ideo-
ensino como violência tes, conscientes de ao neoliberalismo Os sociólogos
logia dominante. O
simbólica (ou teoria da seu papel social de e ao capitalismo de Bourdieu e Passeron.
capital cultural das
reprodução social) formar para a trans- matriz marxista.
classes dominantes é
formação social.
legitimado na escola.

A escola não deve


se limitar ao ensino
de saberes práticos
A escola é um instru-
Teoria da escola e teóricos necessá- O filósofo
mento de reprodução
como aparelho ideo- rios ao bom funcio- Marxismo estrutural. Louis Althusser
das relações de pro-
lógico de estado namento do sistema (1918-1990).
dução capitalistas.
produtivo, mas sim
formar criticamente
os cidadãos.
A escola está dividi-
A escola deve ser
da em duas grandes
uma, e não dual,
redes – burguesa e
propiciando uma Os sociólogos
proletária –, repro-
Teoria da escola educação ampla e o Tendências de matriz Christian Baudelot
duz a ideologia bur-
dualista acesso ao Ensino Su- marxista. (1938-) e Roger
guesa e prepara o
perior também para Establet (1938-).
proletariado para o
os filhos da classe
trabalho, sem refle-
trabalhadora.
xão ou crítica.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Saviani, 1991.

Educação, sociedade e poder 117


Como vimos, a teoria da violência simbólica, de Bourdieu e Passeron,
considera que todas as sociedades se estruturam como sistema de
relações materiais entre grupos sociais ou classes. Nesse contexto,
os sociólogos compreendem o sistema de ensino como um instru-
mento de manutenção das relações de dominação presentes no
sistema social e caracterizam a ação pedagógica como um meio
de legitimar a violência simbólica das classes dominantes sobre as
dominadas, implementando, por meio da reprodução cultural, a
reprodução social.

Sob a mesma matriz interpretativa da sociedade, de base mar-


xista, o sociólogo Althusser propôs a teoria da escola como apa-
relho ideológico de Estado, considerando que essa instituição
social é reprodutora das relações de produção capitalista, posto
que reproduz o saber das classes dominantes para todas as outras
classes sociais por meio da educação de crianças e jovens, perpe-
tuando a ideologia da elite por meio da ação do Estado (políticas
públicas educacionais) e mantendo os interesses econômicos da
burguesia em detrimento dos das classes trabalhadoras, cada vez
mais marginalizadas na distribuição de riquezas e conhecimento
na sociedade.

Outra teoria crítica ligada ao reconhecimento da escola como


reprodutora das desigualdades da sociedade, e de base marxista, é
a teoria da escola dualista, de Baudelot e Establet, que identificava
uma divisão da escola em dois segmentos, os quais corresponde-
riam às duas classes sociais principais da sociedade, a burguesia e
o proletariado. Para esses autores, que empreenderam pesquisas
qualitativas em escolas francesas no início da década de 1970, a es-
cola cumpriria apenas duas funções, interessantes à classe domi-
nante e ao Estado: formar a força de trabalho e impor a ideologia
burguesa aos estudantes provenientes das classes trabalhadoras.

Saviani (1991), no entanto, destaca que as teorias críticas não


se limitam às teorias crítico-reprodutivistas. Para ele, existem as
teorias críticas não reprodutivistas, que consideram a escola como
um espaço de lutas e contradições, mas também, ao mesmo tem-
po, um espaço de superação de conflitos, que tem a capacidade de
exercer um poder real de transformação na sociedade e redução

118 Antropologia e Sociologia da Educação


das desigualdades, ainda que limitado pelas condições estruturais
objetivas dessa mesma sociedade.

Segundo o autor, essa vertente teórica vê os processos de ensi-


no e aprendizagem como um conjunto de relações dialéticas entre
professor e estudante e defende que o docente deve promover a
relação do estudante com os conteúdos do ensino de modo dinâ-
mico, contextualizado em suas experiências concretas, a fim de
formá-lo com uma visão crítica para transformação da realidade
social. Saviani afirma que, sob essa concepção, o professor precisa
conhecer bem seus objetos de ensino e compreendê-los sob um
viés crítico e sob a perspectiva prática, sendo capaz de contribuir
para que o estudante reflita sobre suas aprendizagens, seus pró-
prios saberes e os conhecimentos que adquire na escola, mas que
também possa os transformar em conhecimento vivo e aplicável à
vida social, no sentido de transformar sua realidade.

Entre as pedagogias críticas não reprodutivistas está a peda-


gogia histórico-crítica, proposta de Saviani em sua obra homôni-
ma de 1991. Para o autor, as teorias crítico-reprodutivistas foram
importantes ao criticar o autoritarismo e o ensino mecanicista e
instrumental implantado após a consolidação da teoria tecnicista
como base das políticas públicas para a educação no Brasil, po-
rém essas teorias teriam se limitado apenas à crítica e à denúncia
das injustiças do modelo tecnicista, sem, no entanto, apresentar
uma proposta sistematizada de intervenção na realidade escolar,
de reorganização dos sistemas de ensino.

Com a proposta histórico-crítica, Saviani busca entender o en-


sino com base em seu desenvolvimento histórico, sob uma con-
cepção claramente ligada ao materialismo histórico e à dialética
marxista, que foca a determinação das condições materiais (eco-
nômicas) sobre a existência humana, como se vê na sociologia de
Karl Marx. A proposta de Saviani para a reorganização dos sistemas
de ensino, portanto, parte do abandono da visão crítico-mecanicis-
ta das teorias crítico-reprodutivistas e da aderência a uma visão
crítico-dialética, buscando promover uma pedagogia e uma esco-
la capazes de, efetivamente, transformar a sociedade, em vez de
reproduzi-la, em um movimento de superação das desigualdades.

Educação, sociedade e poder 119


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando sob perspectiva sociológica, a história das instituições
e dos processos educativos, da organização dos sistemas de ensino,
das teorias educacionais e de suas relações com as políticas públicas
para a educação no Brasil, percebemos que todos esses fenômenos
educacionais passaram por transformações que seguem um movi-
mento histórico e social, condicionado pelas mudanças na sociedade
e no pensamento social e educacional.
Esse movimento inicia-se em um contexto histórico em que a con-
cepção predominante de educação era a fundada em teorias como
a de Émile Durkheim, ou seja, da educação e da instituição escolar
como instâncias que promovem a coesão social e a adequação de
crianças e jovens às regras da sociedade, por meio da socialização.
Essa visão conservadora considera desvios da norma como “defei-
tos morais” do indivíduo e é característica da pedagogia tradicional,
a qual desconsidera as desigualdades ou ao menos a necessidade
de superá-las. O que importa é “enquadrar” os indivíduos, tornando-
-os parte de um todo social homogêneo por meio de rígida disciplina
escolar.
Se imaginarmos um grande salto temporal, até a década de 1970,
época de grandes transformações nas sociedades, nos direitos dos
grupos sociais, nos comportamentos e nos modos de pensar e estar
no mundo, veremos uma guinada no movimento de produção e inter-
pretação dos fenômenos educacionais, empreendidos principalmen-
te pela sociologia: as teorias críticas da educação, que denunciam a
escola não só como alheia às desigualdades sociais, mas reprodutora
delas.
Sendo a escola uma instituição que, por meio dos processos edu-
cativos que legitimam a cultura dominante, mantém a estrutura cultu-
ral, social e econômica desigual e injusta na sociedade, ela cria duas
escolas: uma para os filhos da elite e outra para os filhos dos traba-
lhadores; uma para os conhecimentos e o acesso ao Ensino Superior
e outra para a formação mecânica da massa trabalhadora.
Com base nessas críticas, vemos surgirem várias outras teorias crí-
ticas ao modo como a escola tradicionalmente vem desempenhando
seu papel na sociedade e propondo novos caminhos de transforma-
ção da instituição e das práticas pedagógicas, apontando a necessi-
dade de formar os estudantes para transformar a realidade.

120 Antropologia e Sociologia da Educação


ATIVIDADES
Atividade 1
Os processos de educação informal e não formal podem ocorrer
nos mesmos locais? Justifique sua resposta.

Atividade 2
Quais são os reais motivos das reformas curriculares implemen-
tadas após os acordos MEC-USAID?

Atividade 3
Quais são as principais diferenças entre as teorias educacionais
crítico-reprodutivistas e a pedagogia histórico-crítica?

REFERÊNCIAS
BOOM, A. M. De la escuela expansiva a la escuela competitiva: dos modos de modernización
en América Latina. Barcelona: Anthropos Editorial; Bogotá: Convenio Andrés Bello, 2004.
BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de
ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2010.
CAMPOS, L. H. R. de. et al. A influência do capital cultural familiar sobre o desempenho
escolar. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 50, n. 2, p. 57-86, ago. 2020. Disponível em:
https://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/2096/1304. Acesso em: 12 jan.
2022.
CHARLOT, B. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas:
especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, v.
11, n. 31, p. 7-195, jan./abr. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/
WM3zS7XkRpgwKWQpNZCZY8d/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 12 jan. 2022.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.
Teoria & Educação, v. 2, p. 177-229, 1990. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/3986904/mod_folder/content/0/Chervel.pdf?forcedownload=1. Acesso em:
12 jan. 2022.
CRE MARIO COVAS. A escola pública e o saber. Rolo cineminha. Cre Mario Covas, 2022.
Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o3. Acesso em: 21 jan.
2021.
GOHN, M. da. G. Educação não formal, participação da sociedade civil e estruturas
colegiadas nas escolas. Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação, v.
14, n. 50, p. 27-38, mar. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ensaio/a/
s5xg9Zy7sWHxV5H54GYydfQ/?lang=pt. Acesso em: 12 jan. 2022.

Educação, sociedade e poder 121


LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F. de.; TOSCHI, M. S. Educação escolar: políticas, estrutura e
organização. São Paulo: Cortez, 2012.
MARANDINO, M.; SELLES, S. E.; FERREIRA, M. S. Ensino de biologia: histórias e práticas em
diferentes espaços educativos. São Paulo: Cortez, 2009.
NOGUEIRA, C. M. M.; NOGUEIRA, M. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites
e contribuições. Educação & Sociedade, n. 78, p. 15-35, abr. 2002. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/es/a/wVTm9chcTXY5y7mFRqRJX7m/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 12
jan. 2022.
NÓVOA, A. Professores: imagens do futuro. Lisboa: Educa, 2009.
SAVIANI, D. Escola e democracia. 25. ed. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1991.
SILVA, V. V. A. da. Capital cultural familiar e o (in)sucesso escolar no Ensino Médio. Revista
Contemporânea de Educação, v. 15, n. 34, p. 156-175, set./dez. 2020. Disponível em: https://
revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/37003/pdf. Acesso em: 12 jan. 2022.
TEIXEIRA, A. Ciência e arte de educar. Educação e Ciências Sociais, v. 2, n. 5, p. 5-22, ago.
1957. Disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/ciencia.html. Acesso em:
12 jan. 2022.

122 Antropologia e Sociologia da Educação


6
Sociologia da Educação
e formação docente
Uma das grandes contribuições da Sociologia da Educação para a for-
mação e a prática docente é o modo como ela pode subsidiar a reflexão do
professor sobre seus próprios saberes, sua trajetória como profissional e
suas práticas no cotidiano escolar, auxiliando-o a analisar de modo crítico
suas concepções de mundo e de ensino e a transformar suas práticas
no sentido de promover uma formação para a cidadania plena para seus
estudantes e de imbuir suas ações e relações no contexto escolar de um
caráter crítico, humano e emancipador. Com isso, evita-se a reprodução
mecânica e pouco consciente de concepções e práticas incorporadas du-
rante sua trajetória e que, por vezes, não refletem verdadeiramente seu
posicionamento docente. Neste capítulo, conheceremos várias dessas
contribuições da Sociologia da Educação para o trabalho docente.

6.1 A construção social da escola


Vídeo
Já vimos que a instituição social “escola”, assim como a educação
escolar, surgiu com a função de auxiliar na socialização de crianças e
jovens para a vida em sociedade e com o papel de transmitir a eles os
conhecimentos sistematizados pela humanidade. Na clássica obra divi-
dida em quatro volumes, História mundial da educação (1986), Jean Vial
Objetivos de aprendizagem (1909-) e Gaston Mialaret (1918-2016) afirmam que a cultura humana
• Compreender a não é hereditária, precisa ser aprendida, e que esse
construção social do
sistema escolar.
aprendizado não é espontâneo, ou seja, não
• Avaliar o processo de am- basta estarmos expostos à cultura de
pliação dos papéis da esco- determinada sociedade, por
la na contemporaneidade.
vivermos nela, para
aprendê-la.
Everett Collectio/Shutterstock

Sociologia da Educação e formação docente 123


Os autores destacam que é essencial que haja mecanismos so-
ciais específicos para desenvolvermos tal aprendizagem, instituições
sociais que se dediquem sistematicamente e com método a esse tipo
de instrução, a qual se baseia na transmissão dos conhecimentos ar-
mazenados historicamente pela humanidade às próximas gerações.
Curiosidade
Já sabemos e percebemos que, ao analisar quais conhecimentos são
Não só o ensino da
escrita, mas também os
selecionados e de que modo são ensinados na escola, a educação es-
próprios registros escritos colar é influenciada por determinados interesses e ideologias.
e imagéticos eram utiliza-
dos, na sociedade egípcia Um exemplo histórico de tal influência é o que podemos observar ao
antiga, para demarcar a
sólida hierarquia social e
analisar a sociedade egípcia na Antiguidade. Nessa sociedade, o acesso
manter o lugar de poder ao aprendizado da escrita era restrito às Escolas Reais, voltadas para
da elite social. As repre-
sentações por meio de
os filhos dos faraós e de outras famílias nobres da corte. Os professo-
imagens, por exemplo, res eram os escribas mais idosos, profissionais que passavam a vida a
deveriam ensinar o res-
peito à ordem social, e o
serviço dos faraós, registrando feitos históricos, trocas comerciais etc.
aprendizado era realizado As Escolas Reais restringiam à elite egípcia o acesso ao conhecimento,
por meio de imitação,
cópia e repetição.
mantendo seus privilégios na sociedade e os laços entre seus integran-
tes e perpetuando o poder das dinastias faraônicas.

Triff/Shutterstock

6.1.1 A ampliação do papel social da escola


Para Vial e Mialaret (1986), em um cenário contemporâneo de
crescente complexificação das sociedades, ampliação sem precedentes
da produção e do acesso a informações e transformações culturais, as
instituições sociais como um todo e, particularmente, a instituição es-
colar ampliaram seu papel social e sua abrangência. A instrução básica
escolar se tornou obrigatória e cada vez mais universal, e, ao mesmo
tempo, cresceu a influência difusa de uma multiplicidade de agentes

124 Antropologia e Sociologia da Educação


que, de um modo ou de outro, empreendem ações educativas sob al-
gum aspecto, como é o caso das mídias tradicionais e das mídias digitais.

SlaSla/Shutterstock
Na atualidade, a educação escolar é vista, em geral, como tendo Para refletir
o papel de socialização dos indivíduos, de formação de cidadãos so-
Quais seriam, então, as
cialmente úteis. Esse papel, entretanto, é compartilhado com outras especificidades da esco-
la e da educação escolar?
instituições e instâncias sociais que atuam na educação informal e não
O que diferencia a escola
formal, o que nos leva a refletir sobre o que diferencia a escola na qua- das outras instâncias edu-
cativas da sociedade?
lidade de instituição social.

A característica fundamental da escola é a instrução formal, po-


rém, com o tempo, ela foi ganhando outras funções, por exemplo, a
guarda ou custódia das crianças e dos adolescentes, necessária no
contexto das transformações na composição das famílias e de inser-
ção de seus integrantes no mercado de trabalho. A educação escolar
apresenta algumas características marcantes: ter sua realização em
locais fixos e específicos (as escolas) – cuja arquitetura é reconhecida
socialmente –, ter horários determinados e seguir programas previa-
mente determinados, ser voltada para faixas etárias definidas e limi-
tada à infância e adolescência, apresentar métodos e utilizar-se de
agentes especializados – os docentes.

Essas especificidades da escola remetem à sua dimensão orga-


nizacional. Já vimos que a escola como organização especializada e
controlada pelo Estado é relativamente recente, pois em sua origem
a educação formal era ligada à Igreja. A dimensão organizacional
da escola, isto é, a escola como organização, pode ser interpretada
sob visões diferentes:

Sociologia da Educação e formação docente 125


1 2

Como estabelecimento público ou


Como conjunto de professores, alunos
particular de ensino de conhecimentos
e seus pais ou responsáveis que
científicos, literários, artísticos,
compartilham do mesmo território,
profissionais etc., ou seja, uma
de uma herança cultural comum
comunidade educativa, regulamentada
e de dinâmicas próprias ao grupo,
pelo Estado, que promove a
encarregados da educação das
formação cultural sistemática e a
próximas gerações.
preparação de crianças e jovens
para conviver democraticamente
em sociedade na vida adulta e que
conta com a contribuição de outras
instituições sociais.

A grande diferença entre essas duas concepções de escola na qua-


lidade de organização é o quanto cada uma considera a instituição es-
colar uma organização construída socialmente. Nesse sentido, uma
área específica da sociologia, a Sociologia das Organizações Escolares,
tem o objetivo de investigar as dinâmicas organizacionais da escola sob
uma abordagem diferente das teorias da reprodução social, que, como
já vimos, consideram-na instância de reprodução das igualdades sociais.
Sob essa perspectiva, a escola é vista como uma organização social cujas
ações educativas devem ser controladas socialmente, de modo a redu-
zirem seu caráter de reprodução das desigualdades e ampliarem a pro-
moção de novas formas de socialização e formação para a inclusão.

A concepção organizacional da escola a toma como um sistema de


mediação entre grupos sociais. Segundo essa visão, a escola tem:
a função mediática ou «simbólica» da escola, enquanto elemento
de ligação entre o macrossistema e os diferentes microssistemas,
representados pelos vários grupos organizacionais da escola, e a
«função generativa» que decorre das suas características de sis-
tema aberto, sujeito a diferentes correntes de influências ou po-
deres, e que implicam a capacidade de reelaboração e tradução
local daquilo que representa o conjunto de influências sobre a
escola — os normativos, as culturas e a história de cada lugar. [...]
cada estabelecimento tem característica gerais de estrutura e de
funcionamento comuns, mas que estas se associam diferente-
mente, originando modalidades de funcionamento e característi-
cas próprias de cada escola. Estas relacionam-se com o conjunto
de valores e de interações constituintes de contextos geradores
de experiências de vida, não necessariamente reprodutoras de
estratégias individuais e sociais. (CLÍMACO, 1991, p. 90)

126 Antropologia e Sociologia da Educação


Os “contextos sociais geradores de experiências de vida”, mencio-
nados pela autora, não dependem apenas das estruturas organizativas
escolares, que em geral são muito semelhantes em todas as escolas,
mas de fatores do contexto local, dos princípios e dos objetivos de
cada comunidade educativa, das concepções de escola e de educação
que subsidiam as práticas pedagógicas e culturais que cada comuni-
dade educativa constrói para si. Ou seja: a socialização por meio da
educação formal não é a mesma em todas as escolas e depende dos
contextos sociais e culturais locais em que as comunidades educa-
tivas – os docentes, outros funcionários da escola, os alunos e suas
famílias – estão inseridas, como o bairro, o povoado, a cidade etc.

Para Moacir Gadotti (1941-), a função social da escola pode ampliar


um novo sentido, que abarca seu contexto espacial e social local, por
meio do conceito de Cidades Educadoras. Tal conceito apareceu de
modo central no primeiro Congresso Internacional das Cidades Educa-
doras, no início da década de 1990, em Barcelona (Espanha), quando fo-
ram lançados os princípios norteadores para as cidades que têm escolas
que se dispõem a serem educadoras. Várias cidades do mundo, inclusive
do Brasil, comprometeram-se, na época, a adotar tais princípios e passa-
ram a integrar o chamado movimento das Cidades Educadoras, o qual pro-
move encontros, congressos e premiações em todo o mundo, apoiando
as iniciativas das cidades que aderem aos princípios do movimento.

Figura 1
Dia Internacional da Cidade Educadora 2021

Imagem de divulgação das


comemorações da 6ª edição
do Dia Internacional da Cidade
Educadora realizadas em 30 de
novembro de 2021 em Almada,
Portugal, sob o lema “Não
deixar ninguém para trás”.
Fonte: AICE, 2021.

Gadotti (2006) explica que Cidade Educadora é a cidade considerada


espaço de cultura que pode, intencionalmente, educar a escola e todos
os cidadãos que frequentam seus espaços – docentes, discentes, fun-

Sociologia da Educação e formação docente 127


cionários, famílias e demais membros da comunidade –, conceituando
a escola como um espaço privilegiado de vivência e trocas de saberes
e competências. Uma cidade, portanto, educa quando ultrapassa seus
papéis tradicionais, como os sociais, os políticos, os econômicos, os de
serviço público etc., e se incumbe também de outros papéis ligados à
formação para a cidadania, promovendo o protagonismo de todos os
indivíduos como cidadãos.

O autor ressalta, citando Paulo Freire, que “enquanto educadora,


a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica
a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o
poder na Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a
serviço de que e de quem a fazemos” (FREIRE, 2001, p. 13).

Gadotti (2006) esclarece ainda o que seria educar pela e para a cida-
dania, princípio que ele defende como fundamental ao papel não só da
escola, mas também da cidade como lócus de convivência educativa.
Para isso, primeiro o autor aponta as bases do conceito de cidadania
como consciência de direitos e deveres e exercício da democracia: “di-
reitos civis, como segurança e locomoção; direitos sociais, como tra-
balho, salário justo, saúde, educação, habitação etc.; direitos políticos,
como liberdade de expressão, de voto, de participação em partidos po-
líticos e sindicatos etc.” (GADOTTI, 2006, p. 134).

Em seguida, o educador indica, tomando como base a autora es-


panhola, Adela Cortina (1947-) (1997), o que seriam as dimensões da
cidadania plena, esta que deve ser promovida pelas Cidades Educa-
doras (GADOTTI, 2006, p. 134):
• cidadania política – direito de participação numa comunidade
política;
• cidadania social – que compreende a justiça como exigência ética
da sociedade de bem viver;
• cidadania econômica – participação na gestão e nos lucros da
empresa, transformação produtiva com equidade;
• cidadania civil – afirmação de valores cívicos como liberdade,
igualdade, respeito ativo, solidariedade, diálogo;
• cidadania intercultural – afirmação da interculturalidade como
projeto ético e político frente ao etnocentrismo.

Uma Cidade Educadora, portanto, proporciona a todos as mesmas


oportunidades de formação, de desenvolvimento pessoal e de acesso a
tudo o que a cidade oferece. Esse conceito ampliado de papel social da

128 Antropologia e Sociologia da Educação


educação, que ultrapassa os muros da escola e ganha o espaço alarga-
do da cidade como espaço de aprendizagens sociais para a cidadania,
foi sintetizado no Manifesto das Cidades Educadoras, o qual defende que
a satisfação das necessidades de crianças e jovens, no que concerne às
competências e funções municipais, depende de:
uma oferta de espaços, equipamentos e serviços adequados ao
desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados
com outras gerações. [...] A cidade oferecerá aos pais uma for-
mação que lhes permita ajudar os seus filhos a crescer e utilizar
a cidade num espírito de respeito mútuo. Todos os habitantes da
cidade têm o direito de refletir e participar na criação de progra-
mas educativos e culturais e a dispor dos instrumentos [para] [...]
descobrir um projeto educativo, na estrutura e na gestão da sua
cidade, nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que
oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que prepara,
no interesse que manifesta por eles e na forma de os escutar.
(GADOTTI, 2006, p. 134-135)

Nesse contexto, outro conceito ganhou força: o da Escola Cidadã,


uma escola participativa, aberta e apropriada pela população como
parte integrante da cidade e da cidadania. O papel social da Escola Ci-
dadã, no contexto de uma cidade que educa, é criar as condições para
Site
o exercício pleno da cidadania, por meio da socialização da informa-
Acesse o site da Asso-
ção, da discussão, da transparência, gerando uma nova mentalidade, ciação Internacional das
uma nova cultura, com relação ao caráter público do espaço da cidade Cidades Educadoras e a
matéria 5 cidades educa-
(GADOTTI, 2006). doras que transformaram
suas realidades locais pelo
Nesse sentido, é importante refletirmos sobre o papel do professor aprendizado e conheça
em uma escola cidadã e em uma Cidade Educadora. Gadotti nos lembra quais são as cidades
associadas, suas ações e
de modo incisivo, em sua obra A escola na cidade que educa, que a cidade, as conquistas históricas e
na contemporaneidade, caracteriza-se por um clima de violência cada recentes no contexto do
movimento educacional
vez mais intenso, o que provoca sensações generalizadas de medo e fal- para a cidadania.
ta de expectativas na população e gera um cenário no qual o professor,
Disponíveis em:
que também vivencia esse ambiente e tem poderes limitados, pode agir • https://www.edcities.org/pt/
movido pela esperança da transformação da realidade, em busca do que • https://portal.aprendiz.uol.
com.br/2015/05/07/5-cidades-
Freire (2001, p. 30) chamava de um mundo “menos malvado, menos feio, educadoras-que-transformaram-suas-
menos autoritário, mais democrático, mais humano”. Para Freire, uma realidades-locais-pelo-aprendizado.
Acessos em: 1 fev. 2022.
educação sem esperança na mudança não é educação.

Sociologia da Educação e formação docente 129


6.2 A construção social do docente
Vídeo
Já sabemos que a socialização é um processo contínuo de formação
do indivíduo, que ocorre ao longo de toda a vida e, durante a infância
e adolescência, ocorre em boa parte por meio da educação escolar. Se
pensarmos, no entanto, não sob o ponto de vista dos estudantes, mas
dos docentes, veremos que, antes da formação profissional pela qual
Objetivos de aprendizagem
os professores passam, ocorrem também processos de socialização
• Entender as contribui-
dos sujeitos que, mais tarde, exercerão a função docente. Devemos le-
ções da Sociologia da
Educação para a forma- var em conta as experiências prévias escolares, familiares e sociais dos
ção docente e o papel professores, suas interações cotidianas com indivíduos e grupos que
social do professor.
ajudaram a construir seus saberes – valores, conhecimentos, hábitos,
• Compreender a constru-
ção social do professor e capacidades etc. – e que influenciam não só sua identidade pessoal e
de seus saberes. social, como sua atuação docente e seu desempenho nos processos
educativos escolares. Nesse sentido, a Sociologia da Educação preocu-
pou-se em investigar a natureza e a origem dos saberes dos professo-
res e de que modo tais saberes integram o trabalho docente.
Observemos o quadro a seguir e analisemos o modelo de classi-
ficação de saberes docentes nele proposto.

Quadro 1
Saberes docentes

Fontes sociais de Modos de integração


Saberes dos professores
aquisição no trabalho docente
Ambiente de vida familiar
Provenientes de experiên- História de vida e socializa-
e comunitária, aprendiza-
cias pessoais e familiares ção primária
gens informais.
Escolas de Ensino Funda-
Provenientes de formação Formação e socialização
mental e Médio não pro-
escolar anterior pré-profissionais
fissionalizantes.
Estabelecimentos de for-
Provenientes de forma- mação de professores,
Formação e socialização
ção profissional para o como Universidades; es-
profissionais
magistério tágios docentes; formação
continuada em serviço.
Programas e recursos di-
Provenientes dos progra- Aplicação de ferramentas
dáticos aplicados na escola
mas e livros didáticos usa- e recursos às tarefas do-
em que atuam (métodos,
dos no trabalho docente. centes.
livros didáticos, projetos).
Provenientes de sua própria Práticas docentes na sala Práticas do trabalho do-
(continua)
experiência na profissão, de aula, práticas na escola cente e socialização pro-
em sala de aula e na escola e experiências dos pares. fissional.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Tardif; Raymond, 2000, p. 215.

130 Antropologia e Sociologia da Educação


Se analisarmos atentamente a proposta classificatória de saberes
docentes do Quadro 1, perceberemos que os critérios apresentados
nele não estão ligados a conhecimentos pedagógicos, de conteúdo dis-
ciplinar, teóricos ou procedimentais, mas se relacionam com os am-
bientes nos quais os professores vivenciaram processos educativos e
os ambientes organizacionais em que atuam como agentes educativos
e obtêm experiência de trabalho.

É importante, entretanto, considerarmos os aspectos temporais


de tais saberes, pois alguns deles foram adquiridos no passado, du-
rante a infância, por exemplo, constituindo-se como experiências fun-
dadoras da personalidade do professor, aliando elementos afetivos
aos cognitivos e refletindo-se em suas práticas na escola, e outros
saberes foram adquiridos em um passado recente ou mesmo no pre-
sente, o que poderia facilitar sua mobilização como recurso para a
ação docente cotidiana, por exemplo.

Tardif e Raymond (2000) apontam que a temporalidade estrutura


a memorização de experiências educativas marcantes para a cons-
trução do “Eu” profissional e lembram que Berger e Luckman (1980)
compreendiam a temporalidade como uma estrutura intrínseca da
consciência, impossível de ser modificada, pois uma sequência espe-
cífica de experiências de vida de uma pessoa não pode ser invertida,
apagada, reiniciada do zero etc. Para Berger e Luckman, a estrutura
temporal da consciência proporciona a historicidade que define a situa-
ção de uma pessoa em sua vida cotidiana como um todo e lhe permite
atribuir muitas vezes, posteriormente, um significado e uma direção
à sua própria trajetória de vida, e isso também se aplica ao professor.

Os tipos de saberes listados no Quadro 1 são efetivamente os que


costumam ser aplicados cotidianamente pelo professor em sala de
aula e em suas relações na escola, como seus saberes pessoais, sua
formação escolar e profissional, programas e livros didáticos adotados
na escola, experiências profissionais prévias e aprendidas com colegas
de docência, representando a dimensão social dos saberes docentes
construídos com base nas interações sociais do professor: o professor
usa como referências seus saberes, localizados temporal e espacial-
mente em sua história de vida e trajetória profissional, para legitimar
suas ações e escolhas como docente.

Sociologia da Educação e formação docente 131


As pesquisas da área de Sociologia da Educação voltadas para o ma-
peamento da história de vida dos professores começaram a ser reali-
zadas por volta da década de 1980, porém os estudos que investigam
especificamente os processos de socialização pré-profissional de do-
centes só surgiram em meados da década de 1990, como os de Walter
Carter e Kathy Doyle sobre a narrativa pessoal e a história de vida como
componentes dos saberes docentes; os de Lessard e Tardif sobre as ex-
periências e as interações cotidianas do docente na construção de seus
saberes e de sua atuação no ensino; e os de Tardif e Raymond sobre os
saberes, o tempo e a aprendizagem do trabalho docente.

Em geral, tais estudos apontam que as práticas docentes integram


saberes provenientes da socialização prévia dos professores, a que
ocorre antes de sua formação profissional para o ensino, sobretudo as
oriundas de experiências que marcaram a socialização primária, fami-
Documentário
liar e na comunidade, e as experiências escolares de sua vida estudantil.
Essas pesquisas trazem, portanto, a ideia de que os futuros docentes,
assim como quaisquer outros indivíduos na vida social, incorporam
determinadas crenças, valores, comportamentos, conhecimentos, pro-
cedimentos, hábitos, regras, competências etc. ao longo de sua socia-
lização, principalmente a primária, e tais aspectos ajudam a estruturar
sua personalidade, sua identidade social e cultural e suas relações com
as outras pessoas, sendo posteriormente aplicadas e reproduzidas no
contexto de suas práticas pedagógicas, em sua atuação docente e em
Assista ao documentá-
rio francês Ser e Ter, de suas relações na escola, especialmente com os estudantes, muitas ve-
Nicolas Philibert, lançado zes de modo não inteiramente consciente ou reflexivo.
em 2002, que mostra um
professor de escola rural Podemos perceber como tais processos se expressam na realidade
na França que, próximo
de se aposentar, leciona escolar quando docentes, ao tentarem explicar suas práticas, acabam
em uma turma multisse- remetendo-se às práticas de seus próprios professores e de suas ex-
riada aplicando recursos
e métodos tradicionais de periências de aprendizagem de quando eram estudantes mais do que
ensino por meio dos quais aos conhecimentos teóricos e didáticos formais que obtiveram em sua
foi instruído na infância.
formação acadêmica, por exemplo.
Direção: Nicolas Philibert. França:
Les Films d’Ici; Canal Plus Image Essa conclusão indica a grande importância de os professores co-
International, 2002.
nhecerem os estudos de Sociologia da Educação e seus principais
pressupostos teóricos e metodológicos para que possam refletir so-
bre suas próprias práticas, sobre como foram modeladas ao longo do
tempo, e investigar as origens de determinados saberes, concepções,
valores e atitudes que moldam sua atuação em sala de aula, conseguin-
do analisar criticamente e transformar suas posturas, representações

132 Antropologia e Sociologia da Educação


e relações de ensino, no sentido de não apenas reproduzir mecanica-
mente suas próprias vivências escolares ou defender de modo acrítico
convicções sedimentadas acerca de aspectos fundamentais do traba-
lho docente como papel do professor, do perfil dos estudantes, de es-
tratégias didáticas, da gestão de sala de aula, de questões disciplinares,
de aprendizagem, avaliativas etc.

6.2.1 O papel social do professor


Vários autores apontam a natureza política da educação e das prá-
ticas educativas. Já vimos que os processos educativos e a instituição
social escola estão, como quaisquer outras instâncias da sociedade,
impregnadas por ideologias, por interesses, enfim, por dimensões
políticas no sentido mais amplo. Paulo Freire, por exemplo, defende
que reconhecer a educação como ato político não é suficiente, sendo
imprescindível assumir claramente o caráter político da educação, no
cotidiano da escola e nas reflexões e ações docentes.

Freire (2001) destaca que o professor não tem como identificar os


limites à sua prática pedagógica se não consegue enxergar claramente
a favor de quem ele exerce suas práticas. O autor esclarece uma ques-
tão primordial em tempos de disputas ideológicas em todos os campos
sociais como as que vivemos atualmente: acreditar que a educação é
neutra é uma falácia, um mito, uma ilusão, uma mentira.

Todo e qualquer processo educativo, incluindo o formal realizado


prioritariamente pelos docentes no espaço escolar, tem uma inten-
ção política, mesmo que esta não seja percebida conscientemente
pelo educador. Segundo Zitowski (2006, p. 51): “o educador, ao definir
uma determinada metodologia de trabalho, planeja, decide e produz
determinados resultados formativos e educacionais que têm conse-
quências na vida dos educandos e na sociedade onde educador e
educandos se encontram”.

Na mesma direção, Freire (2001, p. 39 apud PAULO; TROMBETTA,


2021) afirma que:
não sendo neutra, a prática educativa implica opções, rupturas,
decisões, estar com e pôr-se contra, a favor de algum sonho e
contra outro, a favor de alguém e contra alguém. E é exatamente
este imperativo que exige a eticidade do educador e sua neces-
sária militância democrática a lhe exigir a vigilância permanente
no sentido da coerência entre o discurso e a prática.

Sociologia da Educação e formação docente 133


Freire aponta como característica inerente à educação opressora a
tendência a se “disfarçar de neutra, mistificando a realidade e ocultan-
do as contradições sociais, de modo a criar uma sensação de que vive-
mos em um mundo perfeito” (PAULO; TROMBETTA, 2021, p. 13). Nesse
contexto, os educadores que se cobrem do manto apolítico ou neutro,
não questionando nem denunciando as desigualdades e as injustiças,
acabam por submeter-se ao poder dominante, legitimando-o por meio
de sua ação docente, naturalizando a dominação e a opressão e furtan-
do-se de exercer um dos papéis sociais mais importantes ao educador,
que é, segundo Freire (2001), o de anunciar uma possibilidade de um
mundo melhor, de uma realidade mais igualitária.

Segundo Guareschi e Biz (2005, p. 30),


a educação não pode estar desligada da política, pois educar
implica necessariamente perguntar-se pelo tipo de sociedade
que desejamos. E isso é um ato político. Se a educação é a “in-
serção” das pessoas na sociedade, ela tem que se perguntar:
em que tipo de sociedade? Simplesmente nessa que está aí,
pelo simples fato de estar aí? Ou a discussão sobre projeto de
sociedade também faz parte da educação? Em outras palavras:
educar para que sociedade?

Para o pensamento freireano, o educador deve ser um humanista,


o qual opta conscientemente pelo lado dos oprimidos, lutando por sua
libertação e autonomia cotidianamente em seu fazer pedagógico. Edu-
car, nesse sentido, é conscientizar, é formar para transformar a socie-
dade em um lugar mais justo e democrático.

Sob outra perspectiva, a da ampliação e do aprofundamento da


compreensão do professor sobre os estudantes como indivíduos
também construídos socialmente e detentores de saberes e culturas
próprios, a Sociologia da Educação pode contribuir por meio dos es-
tudos sobre infância e juventude, os quais trazem discussões sobre
questões como:
Panggabean/Shutterstock

a construção histórico-social da infância e da categoria criança


como indivíduo integral e singular;

as interações entre a criança e a cultura no espaço escolar;


os processos de adaptação, internalização, apropriação e re-
produção realizados pelas crianças em meio à socialização em-
preendida pela escola;

134 Antropologia e Sociologia da Educação


a juventude, a escola e o mundo do trabalho;
os jovens que vivem em condições extremas de pobreza, exclu-
são social e vulnerabilidade;

a mobilização e a ação política na juventude;

os jovens e a violência;

a juventude e as dinâmicas midiáticas;

os aspectos étnico-raciais na juventude.

Outros temas de estudo também podem contribuir para uma com-


preensão sociológica e antropológica das crianças e dos jovens imersos
em processos educativos tanto escolares quanto não escolares.

6.3 A cultura digital e as novas


Vídeo relações com o saber
No contexto contemporâneo de ampliação do acesso à internet, a
noção de que as mídias – sobretudo as mídias sociais – possibilitam
novos modos de percebermos a realidade e de apreendermos, pro-
duzirmos e difundirmos informações, funcionando também como
instituições de socialização, ganhou forças (BEVORT; BELLONI, 2009).
Objetivo de aprendizagem
Cresceu também a importância dos estudos relacionados às lógicas
Analisar a formação social
do discente, sobretudo próprias ao ciberespaço, especificamente à comunicação via internet e
dos jovens, e suas novas às publicações nas redes sociais sob o ponto de vista de seus impactos
relações com o saber
na era da cultura digital: na educação (ROLLEMBERG, 2018).
aprendizagem em rede x
negacionismos. No cenário de multiplicidade de fontes a que se têm acesso na
internet nem sempre fidedignas e de produção e veiculação de infor-
mações, participamos da consolidação de uma nova configuração das
relações sociais e comunicacionais, com base na qual tem se acirrado
uma “disputa de narrativas” sobre a realidade, tendo como arena pri-
vilegiada as redes sociais.

6.3.1 Negacionismo científico e educação escolar


A disputa de narrativas revelou-se central na formação da opinião
pública e tem ampliado a percepção de que opiniões, emoções e cren-
ças pessoais são, para parte significativa da sociedade, mais relevan-
tes do que fatos, dados, conceitos e teorias amplamente aceitas pela

Sociologia da Educação e formação docente 135


Rawpixel.com/Shutterstock

comunidade científica. Na mesma direção, Gascón (2020) afirma que,


em nossa sociedade, muitas pessoas creem que podem basear seu co-
nhecimento sobre o mundo não em fatos e evidências, mas sim no que
mais lhes convém.

O cenário delineado até aqui pode ser sintetizado pelo termo recen-
temente cunhado era da pós-verdade, escolhido como palavra do ano
em 2016 pelo Dicionário Oxford, em virtude do aumento de seu uso em
2.000% nesse ano. Para Santaella (2018, p. 1),
desde que a internet se tornou um ingrediente onipresente em
nossas vidas, interação e conexão passaram a assumir o papel
principal em todas as cenas [...] Entretanto, tudo isso cobra seu
preço [...] No momento, os desafios têm se concentrado nas
questões relativas às notícias falsas (fake news), que circulam
abusivamente pela internet, e suas relações com as bolhas, tam-
bém chamadas de câmaras de eco, ou seja, o ecossistema indi-
vidual e coletivo de informação viciada na repetição de crenças
inamovíveis. Essas condições acabaram por redundar naquilo
que vem sendo chamado de “era da pós-verdade”.

As “crenças inamovíveis ” às quais a autora se refere estão re-


1
Glossário
inamovível: que não lacionadas, muitas vezes, aos campos políticos, sociais e culturais da
pode ser removido. No
sociedade, mas mantêm também íntima relação com a crise de confia-
caso, ideias das quais as
pessoas não desistem, bilidade trazida pelo crescimento exponencial da produção e recepção
que não podem ser elimi-
de conteúdos proporcionada pela internet e com a estrutura de “câ-
nadas ou transformadas.
maras de eco” que reverberam informações e interpretações falsas na
rede, encontram terreno fértil em outra área, a do conhecimento cientí-
fico, resultando no que vem sendo chamado de negacionismo científico,
fenômeno gestado na intersecção das esferas da ciência, da tecnologia

136 Antropologia e Sociologia da Educação


e da sociedade. Os reflexos desse cenário nos processos educativos
são percebidos com cada vez mais intensidade.

Estudos têm sido realizados para investigar o fenômeno do ne-


gacionismo científico e seus efeitos na sociedade. Um relatório da
organização britânica Wellcome Trust, de 2019, analisou os níveis de
compreensão, interesse e confiança na ciência em 140 mil indivíduos
de mais de 100 países; no Brasil, 75% dos entrevistados têm maior con-
fiança na religião do que na ciência.

No mesmo sentido, uma pesquisa da Avaaz – plataforma de mo-


bilização on-line – de 2020 apurou que sete em cada dez internautas
brasileiros (cerca de 100 milhões de pessoas) acreditam em ao menos
Para refletir
uma notícia falsa a respeito da pandemia do coronavírus. Como edu-
Qual seria a explicação
cadores, em geral, ficamos espantados diante da aderência de muitos para isso?
de nossos alunos às interpretações e explicações de fatos e fenômenos Quais fatores
legitimariam,
fundamentadas em notícias falsas de cunho científico, já que, ao me-
aos olhos dos estudantes,
nos os alunos de Ensino Médio, teriam razoável contato com o conhe-
tais explicações falsas?
cimento científico ao longo de sua vida escolar.

Segundo Lima (2020), o negacionismo científico pretende não só


revisar uma descoberta científica, mas negá-la sob o prisma de de-
terminados valores, ideologias e crenças pessoais, buscando indicar,
com base em uma aparente racionalidade, que a descoberta ou teo-
ria científica em questão é falsa. “São apresentados supostos fatos,
versões de obras revisadas, gráficos, artigos, no intuito de criar um
efeito de algo credível” (LIMA, 2020, p. 389).

Entre os discursos predominantes do negacionismo científico estão


os relacionados ao movimento antivacina, ao negacionismo climático,
à teoria da Terra plana e aos mitos sobre a covid-19.

Conforme Kalali (2008, p. 192), “na escola, a evolução das disciplinas,


sobretudo da Biologia, tem alterado os currículos, que passaram a in-
tegrar aspectos sociais e éticos. Novas confluências entre as disciplinas
experimentais tornam-se necessárias. A função cultural de comparti-
lhamento de saberes científicos prevalece”.

Tal perspectiva sugere que o negacionismo científico, além de cau-


sar impactos nas decisões de interesse público, é um desafio aos educa-
dores, não devendo ser tomado como restrito às dinâmicas virtuais, às
mídias digitais, ou apartado da cultura escolar, mas sim como fator re-
levante para a formação integral e crítica dos estudantes, tornando-os

Sociologia da Educação e formação docente 137


capazes de atuar no e sobre o mundo de modo responsável, com pleno
conhecimento das implicações éticas, políticas, socioambientais e cul-
turais da ciência.

Nessa mesma rota, a educação para as mídias já propunha, des-


de a década de 1980, que a escola se responsabilizasse por formar os
estudantes para a interação midiática, desenvolvendo habilidades de
busca autônoma de fontes confiáveis e informações comprovadas e
de compreensão crítica das parcialidades e diferentes perspectivas por
trás dos conteúdos divulgados na internet. Entretanto, para que isso
ocorra, não podemos repetir padrões educacionais tradicionais, pois,
se o contexto social passa por uma grande transformação, as práticas
educacionais precisariam igualmente se transformar.

Se examinarmos o desenvolvimento recente da área do ensino


de Ciências, poderemos identificar tais transformações nas práticas
educacionais e as novas abordagens teórico-metodológicas que as
subsidiaram. A literacia científica, por vezes chamada de alfabetiza-
ção científica ou letramento científico, na qualidade de cultura básica
de domínio matemático, científico e tecnológico a ser desenvolvida
nos estudantes no contexto escolar, constituiu-se como paradigma
central da área a partir da década de 1980, dando origem a novas
propostas de ensino científico com base na categoria-chave investi-
gação (CRAWFORD, 2000).

Tais propostas tinham como princípios a ligação entre o cotidiano


dos estudantes e o conhecimento científico, assim dando estímulo à
atividade experimental, sem desvalorizar a abordagem de conceitos,
os quais viabilizavam-se, muitas vezes, por meio da metodologia de “in-
vestigação para a mudança conceitual” (inquiry for conceptual change),
que valoriza o conhecimento sobre o que os estudantes já sabem e
aplicam no cotidiano e encoraja a mobilização deles para a investigação
ativa na construção dos conhecimentos científicos (BETH, 1998).

Essa perspectiva considera, portanto, que a simples oferta de con-


teúdo conceitual de Ciências na escola não garante a produção de
conhecimentos científicos por parte dos estudantes, nem assegura a
promoção de um saber significativo no campo das Ciências, pois tal sa-
ber, na qualidade de uma “forma de relação com o mundo” (CHARLOT,

138 Antropologia e Sociologia da Educação


2000, p. 81), abrange mais do que a escola e seus “objetos de ensino”,
estendendo-se aos espaços não formais de educação, como os virtuais.

Na mesma direção, Pigliucci (2020) aponta que nem sempre o conta-


to com o conhecimento científico por si só garante a não aderência aos
discursos negacionistas presentes nas redes. O autor, tomando como
base pesquisas que desenvolveu na Suécia e nos Estados Unidos para
investigar as eventuais relações entre o grau de conhecimento em ciên-
cia e o ceticismo, afirma que não há correlação entre nível de educação
científico e grau de ceticismo com relação às pseudociências, concluindo
que possuir alto grau de conhecimento científico não tornaria um indiví-
duo automaticamente cético em relação a discursos negacionistas.

Esses resultados nos levam a valorizar as relações entre a ciência e


o cotidiano social dos estudantes, permeado pelos discursos negacio-
nistas, a compreender suas concepções prévias sobre os fenômenos
– construídas não só com base no senso comum e nos saberes popula-
res, mas também baseando-se em discursos que circulam socialmente,
nas mídias tradicionais e no ciberespaço – e a identificar as relações
que tais concepções estabelecem especificamente com os discursos
do negacionismo científico, no sentido de propormos caminhos para
mediar a transformação de concepções prévias não científicas em co-
nhecimento científico significativo.

6.3.2 Desafios da inclusão digital na escola


Vimos que o simples acesso a dados e conceitos científicos no
contexto escolar não neutraliza os mecanismos que constroem as
teorias negacionistas e as notícias falsas às quais os jovens têm aces-
so nas mídias digitais e redes sociais midiáticas. Do mesmo modo,
a simples oferta de ferramentas tecnológicas não promove a efetiva
inclusão digital de discentes – ou mesmo de docentes – e não resolve
as questões inerentes ao uso significativo de tais ferramentas para
os processos de ensino e aprendizagem.

Os recursos tecnológicos digitais permeiam todos os espaços/


tempos em nossa sociedade, trazendo modificações nos mais diver-
sos aspectos de nossas vidas, no entanto, não atingem a todos de
maneira igualitária. O acesso à internet e aos dispositivos tecnoló-

Sociologia da Educação e formação docente 139


gicos não é uma realidade para todos e, mesmo quando há acesso,
faltam as orientações não só de utilização, mas, principalmente, de
interpretação adequada das informações a que se têm acesso por
meio de tais recursos.

De todo modo, estamos assistindo na contemporaneidade uma


rápida transformação nos modos de acessar, produzir e divulgar
conhecimento e uma modificação nas relações que estabelecemos
com o saber, o que surte efeitos importantes sobre as relações que
os estudantes estabelecem com o conhecimento escolar. Termos
como sociedade do conhecimento, sociedade da informação, sociedade
sensoriada, cibervias, entre outros, dizem respeito a novas possibi-
lidades de análise dos contextos sociais (WEISS, 2019) e têm o ob-
jetivo de nomear as modificações na forma como os indivíduos se
relacionam e participam da sociedade, em busca de uma nova prá-
tica social (IMBERNON, 2006), e referem-se ao que, de modo amplo,
podemos chamar de cultura digital, algo que envolve a todos, não só
durante as interações virtuais, mas também nas presenciais.

As novas práticas e sociabilidades estão presentes em todas as


relações sociais, estamos imersos nessas novas dinâmicas o tempo
todo, e já não há como diferenciar dentro e fora da cultura digital.
Nesse sentido, não há como “desconectar” os estudantes das redes
e mídias digitais apenas proibindo o uso de dispositivos móveis na
sala de aula, por exemplo. Eles continuam imersos nessa nova rede
de dinâmicas culturais, sociais e de comunicação e exercem o tempo
todo seus novos modos de se relacionar, de se comunicar, de enten-
der o mundo e de aprender.

As lógicas do hiper link, das janelas que se abrem para outros con-
teúdos quando estamos lendo algo na internet, o modo ao mesmo
tempo objetivo e cheio de referências a fatos atuais, aos “memes”, o
impulso de “compartilhar” imediatamente informações, impressões
e opiniões, entre outros traços constituintes da cultura digital con-
temporânea, atravessam, como uma nova gramática social, as telas
de computadores e celulares e se instalam nas relações presenciais
que temos com o saber, com a recepção de informações, com a co-
municação, com as relações e as práticas sociais.

140 Antropologia e Sociologia da Educação


Podemos visualizar tais dinâmicas influenciando as interações
nas redes sociais com a formação de instituições, movimentos, gru-
pos e outros, buscando não só ter espa-
ços de fala, mas também promovendo
mudanças comportamentais.

Nesse cenário, a inclusão di-


gital pressupõe, então, uma pro-

Robert Kneschke/Shutterstock
posta de gestão democrática do
conhecimento e uma reflexão so-
bre os modos como a educação
está incorporando as Tecnologias
Digitais de Informação e Comunica-
ção (TDIC), demandando alterações nas
crenças e concepções do que é a escola (SIBILIA, 2019) e remode-
lando a maneira como a difusão do conhecimento tradicionalmente
acontece no espaço escolar, sob uma perspectiva de construção de
autonomia e emancipação dos estudantes com relação à construção
dos conhecimentos (BONILLA; OLIVEIRA, 2011).

Recentemente todos nós experienciamos, em virtude da pan-


demia da covid-19, uma introdução massiva e acelerada de recur-
sos digitais na tentativa de implementar, de modo emergencial, o
ensino remoto. O processo, em muitos aspectos, foi impositivo e
não contou com planejamento prévio, até mesmo por seu caráter
de urgência. Nesse contexto, a reflexão crítica sobre o uso das novas
TDIC esteve ausente na maior parte das escolas e no trabalho da
maior parte dos docentes que se desdobraram para prosseguir com
o ensino sem o apoio, o tempo e o treinamento necessários. Grande
parte das estratégias didáticas acabou por fazer uso meramente ins-
trumental da linguagem hipermídia, apesar de, por vezes, encoberto
por um discurso de “inovação”.

Mas como integrarmos de maneira significativa e efetivamente


didática a linguagem hipermídia característica das mídias digitais às
práticas educativas? E de que modo revestir as estratégias do cará-
ter de humanização e emancipação dos sujeitos sociais necessários
a uma educação crítica e transformadora?

Sociologia da Educação e formação docente 141


Alguns caminhos podem estar no uso de metodologias de ensino
menos coercitivas, no uso das novas tecnologias como incremento à
produtividade pedagógica, bem como na otimização dos processos
de aprendizagem. Outras ações também podem ser tomadas como
o direcionamento intencional das práticas desenvolvidas em supor-
te digital para a promoção da autonomia, do diálogo e da humaniza-
ção dos sujeitos sociais; a superação da concepção reducionista de
“inclusão” digital – que costuma fixar-se na disponibilização de ferra-
mentas e formação para usá-las de modo instrumental e reprodutor
de conhecimentos – em direção à concepção de emancipação digital
e à conquista da cidadania plena por meio da leitura crítica da socie-
dade em que os estudantes vivem e deverão atuar na vida adulta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos da Sociologia da Educação sobre a construção social
da escola e do sistema escolar, sobre a ampliação do papel social da
escola na contemporaneidade, assim como os estudos voltados para
a construção social do professor, de seus saberes e suas práticas do-
centes, e os voltados para a construção social da infância e da juventu-
de e questões relativas a esses grupos na sociedade contemporânea,
incluindo as pesquisas sobre as novas sociabilidades e novas relações
com o saber e com a aprendizagem escolar geradas pela cultura di-
gital, podem contribuir muito para a formação docente, promovendo
a reflexão sobre sua prática e seu papel social de promoção de uma
educação para a cidadania plena.

ATIVIDADES
Atividade 1
Como seria possível viabilizar o controle social sobre as escolas
para reduzir seu caráter de reprodução das desigualdades sociais?

Atividade 2
De que modo o conceito de Cidade Educadora amplia o papel
social da escola?

142 Antropologia e Sociologia da Educação


Atividade 3
Quais são os desafios da inclusão digital na escola? O termo inclu-
são digital seria o mais adequado no contexto da cultura digital?

REFERÊNCIAS
AICE. EdCities, 2021. Dia Internacional da Cidade Educadora. Disponível em: https://www.
edcities.org/pt/dia-internacional-da-cidade-educadora/. Acesso em: 1 fev. 2022.
BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Vozes: Petrópolis, 2014.
BEETH, M. Teaching for conceptual change: Using status as a metacognitive tool. Science
Education, n. 82, v. 3, 343-354, 1998.
BÉVORT, E., BELLONI, M. L. Mídia-educação: conceitos, história e perspectivas. Educ. Soc.,
Campinas, v. 30, n. 109, p. 1081-1102, set./dez. 2009.
BONILLA, M. H. S. Educação e Inclusão digital. GEC – Grupo de Pesquisa, Educação,
comunicação e Tecnologias, 2004. Disponível em: http://www.twiki.ufba.br/twiki/bin/view/
GEC/MariaHelenaBonilla. Acesso em: 18 fev. 2022.
CHARLOT, B. Educação ou Barbárie: uma escolha para a sociedade contemporânea. São
Paulo: Cortez, 2000.
CORTINA, A. Ciudadanos del mundo: hacia una téoria de la ciudadanía. Madrid: Alianza, 1997.
CLÍMACO, M. C. Os indicadores de desempenho de escola na gestão e avaliação da
qualidade educativa. Revista Inovação, v. 4, n. 2-3, p. 87-125, 1991.
CRAWFORD, B. Embracing the essence of inquiry: new roles for science teachers. Journal of
Research in Science Teaching, n. 37, p. 916-937, 2000.
FREIRE, P. Política e educação: ensaios/Paulo Freire. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
GADOTTI, M. A escola na cidade que educa. Cadernos Cenpec, v. 1, n. 1, p. 133-139, 2006.
Disponível em: http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/
view/160/189. Acesso em: 1 fev. 2022.
GASCÓN, J. Á. Autonomous thinkers, irrational thinkers. Disputatio Philosophical Research
Bulletin, v. 9, n. 13, 2020. Disponível em: https://disputatio.eu/vols/vol-9-no-13/gascon-
thinkers/. Acesso em: 18 fev. 2022.
GUARESCHI, P. A.; BIZ, O. Mídia, Educação e Cidadania: tudo o que você deve saber sobre
mídia. Petrópolis: Vozes, 2005.
IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 6. ed.
São Paulo: Cortez, 2006.
KALALI, F. L’enseignement des sciences expérimentales, ou le débat récurrent du culturel
versus utilitaire: quels problèmes? Spirale. Revue de recherches en éducation, n. 42,
p. 183-194, 2008. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/spira_0994-3722_2008_
num_42_1_1218. Acesso em: 18 fev. 2022.
LIMA, H. Discursos negacionistas disseminados em rede. Revista da Abralin, v. 19, n. 3,
p. 389-408, 17 dez. 2020.
MIALARET, G.; VIAL, J. História mundial da educação. v. 1. Porto: Rés, 1986.
PAULO, F. dos S.; TROMBETTA, S. Educar é sempre um ato político: desafios contemporâneos.
Ideação. Revista do Centro de Educação, Letras e Saúde, v. 23, n. 2, p. 7-30, 2021. Disponível
em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/ideacao/article/view/25553/17497. Acesso
em: 1 fev. 2022.

Sociologia da Educação e formação docente 143


PIGLIUCCI, M. How to behave virtuously in an irrational world. Philosophical Research
Bulletin, v. 9, n. 13, p. 1-19, jun. 2020. Disponível em: https://disputatio.eu/vols/vol-9-no-13/
pigliucci-irrational/. Acesso em: 1 fev. 2022.
TARDIF, M.; RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério.
Educação & Sociedade, a. 21, n. 73, p. 209-244, dez. 2000. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/es/a/Ks666mx7qLpbLThJQmXL7CB/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 1 fev. 2022.
ROLLEMBERG, G. Caminhos para aprendizagens colaborativas na formação
de professores. In: 12º EDUCON – COLÓQUIO INTERNACIONAL “EDUCAÇÃO E
CONTEMPORANEIDADE”. Anais [...] São Cristóvão: UFS, set. 2018. Disponível em: https://
ri.ufs.br/bitstream/riufs/9075/19/Caminhos_para_aprendizagens_colaborativas_na_
formacao_de_professores.pdf. Acesso em: 1 fev. 2022.
SANTAELLA, L. A Pós verdade é verdadeira ou falsa? Barueri: Estação das Letras e Cores,
2018. (e-book)
SIBILIA, P. Redes ou paredes? A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
WEISS, M. C. Cidades Inteligentes: proposição de um modelo avaliativo de prontidão de
tecnologias da informação e comunicação aplicáveis à gestão urbana. Revista Brasileira
de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 15, n. 4 Especial.

144 Antropologia e Sociologia da Educação


Resolução das atividades
1 Introdução ao pensamento antropológico
1. O que os casos das “crianças selvagens” nos revelam sobre o peso
das culturas humanas e das relações sociais na construção do que
chamamos de indivíduo?
Os casos mostram o quanto a socialização das crianças no interior de
uma cultura humana, na qual ela aprende uma linguagem e uma série
de comportamentos característicos dos humanos em sociedade,
é fundamental para que a criança se desenvolva, construa sua
identidade, e seja capaz de interagir com outros seres humanos.

2. Partindo do pressuposto de que os valores se originam das


concepções de mundo, e essas concepções variam conforme cada
cultura, como se poderia estabelecer valores universais?
Um caminho poderia ser o de buscar estabelecer até que ponto o
contato entre as culturas pode ocasionar intromissão e desrespeito
aos valores culturais e concepções de mundo próprias de cada cultura
e investigar, por outro lado, as possibilidades do diálogo intercultural
para chegar, talvez não a valores universais, mas a padrões éticos
mínimos aceitáveis por todos.

3. Por que não é viável aplicar as ideias evolucionistas de Darwin,


concebidas no contexto das Ciências Naturais, às análises sociais
e culturais?
A Teoria Evolucionista de Darwin explica a evolução das espécies,
diferentes entre si, com base na superioridade das espécies que se
adaptam melhor ao ambiente com base em suas características.
Os seres humanos são todos da mesma espécie e não faz sentido
classificá-los como superiores ou inferiores em razão de suas
características, ou mesmo a adaptabilidade a essas ou aquelas
condições ambientais.
O determinismo da teoria darwinista não pode ser aplicado às
complexas sociedades humanas, cada qual com sua cultura, seus
valores e visão de mundo, pois cada cultura tem sua lógica, seu
caminho, não estão todas “evoluindo” em um mesmo sentido, para
chegar em um mesmo patamar ou estado; cada uma se desenvolve
em seu sentido e maneira própria.

Resolução das atividades 145


2 Antropologia, educação e sociedade
1. Quais são as diferenças entre Evolucionismo Social e Funcionalismo?
O Evolucionismo defendia a noção de evolução das sociedades, das
mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, priorizando o conceito
de raça, e investigava as origens humanas a partir dos estudos dos
temas: parentesco, religião e organização social. O Funcionalismo não
afirmava a evolução das sociedades e usava o conceito de cultura,
ao invés do de raça. O método aplicado aos estudos funcionalistas
era o da etnografia clássica, que buscava descrever detalhadamente
as diversas culturas e etnias humanas. Os temas de investigação do
Funcionalismo eram a cultura enquanto totalidade e as instituições
sociais e suas funções na manutenção da totalidade cultural.

2. Com base em sua experiência no contexto escolar, qual visão


– determinista ou dialética – você considera predominante nos
processos educativos?
Em geral, apesar de um discurso predominantemente ligado à
visão dialética, ainda permanecem presentes nas escolas a visão
determinista, sobretudo ligada à aplicação de metodologias
tecnicistas.

3. De que modo a emergência de novas práticas e instâncias


socializadoras pode afetar a educação formal no contexto escolar?
Elas podem apoiar a investigação das relações entre indivíduo, cultura
e sociedade, sobretudo no que tange aos processos de socialização
de crianças e jovens, dos contextos e dos processos de ensino e
aprendizagem. A análise e reflexão sobre os processos de socialização
e aquisição cultural desenvolvidos por meio da educação é uma
importante ferramenta para os educadores. Os estudantes têm acesso
muito mais amplo e cotidiano a outras culturas, a outros padrões
sociais, valores e costumes, o que pode influenciar positivamente
o enriquecimento dos processos de socialização, que não ocorrem
mais apenas na educação formal. Por outro lado, a escola tem a
responsabilidade de formar os alunos para se distanciarem de visões
etnocêntricas e da intolerância, assim como para desenvolverem
capacidades ligadas à análise das informações e conteúdos que lhes
chegam por novas instâncias, como as veiculadas por meios digitais.

146 Antropologia e Sociologia da Educação


3 Antropologia da educação e formação docente
1. Segundo Gusmão, quais são as contribuições da antropologia para
os estudos da área educacional?
A antropologia pode ajudar a compreender os intensos movimentos
provocados pela globalização, que têm efeitos nos processos
educacionais. Estabelecer relações entre antropologia, estudos
culturais e educação é essencial para analisar e reorientar os
princípios e as práticas presentes na interface entre o campo científico
e o processo educativo na sociedade.

2. De que modo as práticas simbólicas na escola se relacionam à


construção das identidades docentes e discentes?
As instituições escolares têm suas práticas simbólicas, tanto gerais
quanto específicas de cada escola, bem como mitos e ritos que
contribuem para a formação das identidades docentes e discentes
e fazem parte da cultura escolar. Os rituais e espaços simbólicos da
escola, relacionados a práticas recorrentes de alunos e professores,
integram a construção da identidade de docentes e estudantes, que
se reconhecem como pertencentes a um grupo cultural único, com
um status também único, com o qual se identificam. Nesse sentido,
os indivíduos interiorizam o conjunto das trajetórias do grupo, criando
um referencial próprio relacionado à instituição, ao local e às pessoas
que conviveram com eles.

3. Explique o que é etnografia e pesquisa etnográfica na educação.


A etnografia, quando aplicada como método de pesquisa na educação,
não pode ser tomada exatamente da mesma forma que é empregada
na pesquisa antropológica, na qual são consideradas duas acepções
de etnografia: como conjunto de técnicas de coleta de dados sobre
práticas, crenças, valores, hábitos e comportamentos de um grupo
social, ou, em outro sentido, como relato escrito resultante da
aplicação desse conjunto de técnicas. O uso da etnografia possibilita
ao pesquisador entender como se processam os mecanismos de
dominação e de resistência, de opressão e de contestação, ao mesmo
tempo que são veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes,
valores, crenças, modos de ver e de sentir a realidade e o mundo,
o que pode contribuir bastante para o desenvolvimento de práticas
simbólicas no espaço escolar.

Resolução das atividades 147


4 Introdução à sociologia
1. Quais são as principais diferenças entre as visões teóricas de
Durkheim, Marx e Weber sobre a sociedade?
Para Weber, a sociedade não está acima dos indivíduos, como propôs
Durkheim, mas é constituída pelo conjunto de ações dos indivíduos
que se relacionam entre si. Marx entende que a análise social deve
partir do contexto e das condições sociais dos indivíduos, pois são
essas condições que fazem com que um grupo exista. Durkheim
compreende a sociologia como o estudo dos fatos sociais, já Weber
considera que o mais importante é compreender o indivíduo e suas
ações, ou seja, entender as razões que levam as pessoas a tomar
determinadas decisões ou agir de determinadas formas na sociedade;
e, para Marx, de modo diferente, a ênfase da análise social é dada à
noção de classe social e ao conceito de luta de classes.

2. Segundo Durkheim, qual é o papel das instituições sociais nos


processos de socialização?
Os fatos sociais, segundo Durkheim, são difundidos por um
componente importante da vida social: as instituições sociais – como
a família, a escola, o sistema jurídico, o Estado etc. As instituições
exercem o papel de controlar e condicionar cada indivíduo a agir de
modo a não desagregar a sociedade e nem perturbar a vida coletiva,
por meio de códigos e punições para os indivíduos que não agem
conforme a sociedade espera.

3. Explique as diferenças entre estrutura social e estratificação social.


Estrutura social é um conceito sociológico referente às formas de
organização das sociedades e suas instituições sociais, bem como
aos tipos de relações estabelecidas entre os grupos sociais em uma
sociedade. Já a estratificação social é definida pelos modos como se
opera a divisão de recursos em uma sociedade, o que se reflete em
uma distinção hierarquizada na estrutura social e em desigualdade de
acesso à renda e às condições de cidadania entre os estratos sociais.

5 Educação, sociedade e poder


1. Os processos de educação informal e não formal podem ocorrer
nos mesmos locais? Justifique sua resposta.
Sim, podem por vezes ocorrer nos mesmos locais sociais, como
espaços da comunidade, porém apresentam naturezas diferentes,

148 Antropologia e Sociologia da Educação


pois a educação informal ocorrida na vizinhança e em outros
espaços da comunidade se constitui de experiências vividas e
saberes populares ou do senso comum adquiridos na interação entre
as pessoas próximas, dos mesmos círculos familiares e sociais. Já
a educação não formal, ou seja, não guiada por currículos formais
como os escolares, ocorre mesmo assim de maneira planejada e em
torno de aprendizagens consideradas necessárias ou interessantes,
como em visitas guiadas a museus, oficinas oferecidas por ONGs etc.

2. Quais são os reais motivos das reformas curriculares implementadas


após os acordos MEC-USAID?
Os interesses políticos e econômicos, com base em determinada
ideologia – o neoliberalismo –, direcionaram esses acordos, que
pretendiam impor uma concepção de educação e uma organização
do ensino no Brasil que favorecesse os interesses dos EUA.

3. Quais são as principais diferenças entre as teorias educacionais


crítico-reprodutivistas e a pedagogia histórico-crítica?
As principais diferenças estão na superação da limitação à crítica
da reprodução social das desigualdades e da dualidade educacional
operada pela escola como instituição social e a proposição concreta
de caminhos para que a escola assuma o papel social de formação
para a transformação da realidade social, promovendo uma educação
crítica, reflexiva e de intervenção social.

6 Sociologia da Educação e formação docente


1. Como seria possível viabilizar o controle social sobre as escolas
para reduzir seu caráter de reprodução das desigualdades sociais?
O controle social sobre as escolas não pode ser confundido com o
controle estatal, e nem com qualquer tipo de pressão coercitiva que
viole o direito de cátedra (ou liberdade acadêmica, é um princípio
que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar
o pensamento, a arte e o saber) dos educadores ou a autonomia
das instituições escolares. O controle social pode ser realizado
por meio da gestão democrática das escolas, com a participação
da comunidade educativa e da sociedade em geral nas decisões
e diretrizes a serem adotadas, de modo a tornar o espaço escolar
democrático, inclusivo e igualitário, conforme indicam os documentos
oficiais de regulamentação da educação no país.

Resolução das atividades 149


2. De que modo o conceito de Cidade Educadora amplia o papel social
da escola?
Sob a aplicação do conceito de Cidade Educadora, a escola passa a
fazer parte de um “entorno educador”, ampliando seu papel social no
sentido de se relacionar com a comunidade e com as instituições e os
espaços sociais do município em que se situa, tornando-se parte de
uma rede educadora em que toda a população se envolve na promoção
da educação para a cidadania, para o exercício pleno dos direitos, para
a ocupação dos espaços sociais e para a atuação em sociedade.

3. Quais são os desafios da inclusão digital na escola? O termo inclusão


digital seria o mais adequado no contexto da cultura digital?
A inclusão digital na escola não pode ser vista como simples oferta
de ferramentas tecnológicas, pois somente ela não promove a efetiva
inclusão digital de discentes – ou mesmo de docentes – e não resolve
as questões inerentes ao uso significativo de tais ferramentas para
os processos de ensino e aprendizagem. O acesso à internet e aos
dispositivos tecnológicos não é uma realidade para todos e, mesmo
quando há acesso, faltam orientações não só de utilização, mas,
principalmente, de interpretação adequada das informações que se
têm acesso por meio desses recursos, e essas orientações fazem parte
do papel da escola. Já estamos todos imersos na cultura digital, e a
escola precisa apropriar-se das linguagens e lógicas comunicacionais,
de produção e divulgação de saberes inerentes ao mundo digital, e
aplicá-las ao fazer pedagógico.

150 Antropologia e Sociologia da Educação


ANTROPOLOGIA E

ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO


SOCIOLOGIA
EDUCAÇÃO

DA
GRAZIELLA ROLLEMBERG

GRAZIELLA ROLLEMBERG

Código Logístico ISBN 978-65-5821-114-3

I0 0 0 5 1 0 9 786558 211143

Você também pode gostar