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Abordagem

Reggio Emilia na
Educação Infantil

Carla de Oliveira

IESDE BRASIL
2023
© 2023 – IESDE BRASIL S/A.
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
O46a

Oliveira, Carla de
Abordagem Reggio Emilia na educação infantil / Carla de Oliveira. - 1. ed. -
Curitiba [PR] : IESDE, 2023.

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-207-2

1. Educação infantil. 2. Reggio Emília, Abordagem (Educação de crianças). I.


Título.

CDD: 372.21
22-81647 CDU: 373.2

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

15/12/2022 20/12/2022

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Carla de Oliveira Doutora em Educação (Educação e história cultural)
e especialista em Sexualidade Humana (Aspectos
de orientação e educação sexual) pela Faculdade de
Educação da Universidade de Campinas (Unicamp).
Graduada em Pedagogia pela Faculdade Claretiano
e em Psicologia pela Universidade São Francisco.
Professora de Educação Básica há 18 anos, atuando
essencialmente na Educação Infantil a partir da
abordagem da metodologia de projetos. Experiência
como gestora (diretora pedagógica) e como tutora e
professora formadora no Ensino Superior em cursos
de graduação e pós-graduação. Professora de bebês e
crianças pequenininhas.
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SUMÁRIO
1 Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 9
1.1 A história de Reggio Emilia 10
1.2 Loris Malaguzzi e a experiência em Reggio Emilia 14
1.3 Abordagem e filosofia educativa 17
1.4 As cem linguagens da criança 26

2 Parceria entre escola, família e comunidade 30


2.1 Pedagogia da escuta 31
2.2 Relação professor-criança 37
2.3 Parceria entre família e instituição educativa 40
2.4 Relação entre escola e comunidade 47

3 O papel da documentação pedagógica 51


3.1 Por que documentar? 52
3.2 Tornando visível a aprendizagem das crianças 57
3.3 Percursos de aprendizagem 60
3.4 As várias formas de documentar 64

4 Tempos e espaços na Educação Infantil 71


4.1 O espaço como educador 72
4.2 Espaços e tempos que contam histórias 79
4.3 O planejamento dos tempos e espaços 83

5 Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 89


5.1 Reggio para inspirar, não para copiar 90
5.2 Compartilhando experiências 94
5.3 Diálogos entre a BNCC e a pedagogia de projetos 97
5.4 Possibilidades de atuação e transformação 103

6 Resolução das atividades 109


Vídeo
APRESENTAÇÃO
A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica,
vem sendo objeto de estudos e pesquisas, especialmente a
partir dos anos 1990, quando, do ponto de vista legislativo,
passa a integrar o sistema nacional de educação (SNE). Sua
história, porém, tem início muito antes disso, ao final do
século XIX, quando as primeiras instituições de atendimento à
infância começam a surgir em nossa sociedade.
Partindo, pois, de um modelo assistencial, vinculado a
instituições caritativas e/ou religiosas, o trabalho junto a
bebês e crianças pequenas foi paulatinamente modificado,
bem como a visão da sociedade com relação às creches e
pré-escolas. No entanto, os desafios ainda são imensos e a
busca de uma identidade profissional e de práticas que de
fato respeitem e valorizem as especificidades da infância é
incessante e necessária.
Nesse sentido, é fundamental que os profissionais da
educação busquem cada vez mais o aprofundamento teórico,
visando à reflexão e ao olhar para a própria prática educativa,
compreendendo que o diálogo entre eles deve ser constante.
Como já nos alertava Paulo Freire (2003, p. 11), “a teoria sem a
prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria vira
ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria
tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.
Neste livro, trazemos para o diálogo a abordagem Reggio
Emilia na Educação Infantil, uma proposta de educação italiana
considerada referência de excelência e qualidade e que traz
em suas práticas tanto a inovação quanto a valorização de
sua história, compreendendo que uma sociedade justa e
democrática não se efetiva sem a valorização da educação e
da infância. Tudo isso atrelado a bases epistemológicas sólidas
que subsidiam o trabalho cotidiano de suas instituições.
Assim, buscamos em cada capítulo conhecer o trabalho
de Reggio. No Capítulo 1, abordamos sua história, influências
teóricas e perspectivas de trabalho, resgatando o contexto
político e social que originou a primeira escola, construída, literalmente, com
as mãos de uma comunidade. Loris Malaguzzi, fundador da proposta, aparece
como figura central do texto, e conhecer um pouco de sua trajetória nos
oportuniza conhecer as ideias centrais da abordagem.
Os Capítulos 2, 3 e 4 avançam na compreensão de concepções que são
pilares do trabalho realizado em Reggio. No Capítulo 2, temos as discussões
sobre a parceria entre escola, família e comunidade, entendendo que o trabalho
só é possível na interação entre os três elementos essenciais na vida das crianças.
No Capítulo 3, o papel da documentação pedagógica contribui para
pensar a importância de documentar os processos de aprendizagem das
crianças, tornando visível o trabalho da escola. Documentar não é somente
um processo pedagógico, mas social e político para Reggio Emilia.
No Capítulo 4, os tempos e espaços são problematizados com o intuito de
promover a reflexão acerca do cotidiano das instituições. A rotina, o tempo
da criança, a organização e o uso dos espaços vão compondo o trabalho e
revelando a concepção que a escola tem.
Por fim, no último capítulo, trazemos o diálogo entre Reggio e a educação
brasileira, abordando tanto em que ambas diferem quanto em que convergem,
sempre pensando que a abordagem italiana é uma inspiração, que não pode
ser simplesmente retirada de seu contexto e implantada em outro.
Que as leituras sejam de muita reflexão e aprendizado!
1
Reggio Emilia: história,
influências e perspectivas
Somos sujeitos históricos. Cada um de nós, ao pertencer a uma comuni-
dade, um bairro, uma cidade, um contexto familiar, participante das diversas
instituições sociais (escola, trabalho), faz parte de uma história que vai sendo
construída e, em certa medida, acabamos não percebendo tal dinâmica social.
O tempo todo influenciamos e somos influenciados pelos contextos em que vi-
vemos, e a história vai construindo um percurso não linear, repleto de desafios,
rupturas, permanências, tensões, avanços, retrocessos e recomeços.
Partindo do pressuposto de que a historicidade permeia todas as relações,
daremos início à nossa temática: a abordagem Reggio Emilia. Uma experiência
educacional que ganhou fama mundial por sua excelência em uma educação
para a infância. Um trabalho criado por pessoas que, em um tempo histórico,
se uniram para pensar a importância de uma educação de qualidade, primor-
dial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Para compreender Reggio Emilia é preciso resgatar quais foram as
ideias, influências e perspectivas vigentes no período de sua criação, re-
fletindo sobre o fato de que as instituições não podem ser pensadas des-
locadas de seu tempo, mas sim de que fazem parte de todo um cenário
político, econômico, social e cultural que vai compondo a história.
Dessa forma, neste capítulo, caminharemos por uma espécie de linha
do tempo, conhecendo a história da abordagem pedagógica. Em seguida,
conheceremos as ideias e o trabalho do professor Loris Malaguzzi, funda-
dor da proposta italiana. Dando continuidade, refletiremos sobre as con-
cepções filosóficas, finalizando com a ideia presente em Reggio de que as
crianças possuem diferentes linguagens e possibilidades de manifestação.
Desejamos uma ótima leitura!

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 9


Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• compreender quais os processos históricos, políticos e culturais
que contribuíram para o surgimento da abordagem pedagógica de
Reggio Emilia;

• conhecer as ideias e o trabalho de Loris Malaguzzi;

• refletir sobre as características e filosofia presentes nessa propos-


ta italiana de educação;

• pensar sobre as diferentes linguagens e manifestações da criança.

1.1 A história de Reggio Emilia


Vídeo
Reggio Emilia é o nome de uma cidade que, atualmente, possui cer-
ca de 150 mil habitantes. Faz parte da região denominada Emilia-Ro-
magna, no norte da Itália, tendo como capital a Bolonha. Partiremos de
sua história ainda no final da primeira metade do século XX, por volta
de 1945, quando termina a Segunda Guerra Mundial. A cidade, devas-
tada pelos conflitos, começa a ser reconstruída por seus moradores
e, dentre as iniciativas principais, a construção de uma escola para as
crianças pequenas era uma das prioridades daquela comunidade.
Figura 1
As 20 regiões da República da Itália

Creative Jen Designs/Shutterstock

Mar Lígure Ma
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Mar Tirreno

Mar Mediterrâneo

10 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Registros históricos desse período destacam que foi por meio da doação Livro
de um terreno por um fazendeiro da região, do recolhimento de materiais, Uma das principais
referências bibliográficas
como vigas e tijolos retirados de escombros de residências destruídas pelos para a elaboração deste
bombardeios e um pouco de dinheiro oriundo da venda de um tanque de capítulo é o livro As cem
linguagens da criança. Lella
guerra abandonado, que pais e mães, juntamente com as demais pessoas Gandini, uma das autoras,
da comunidade, iniciaram a construção da primeira escola do pós-guerra entrevistou Loris Mala-
guzzi, e tal entrevista é
em um vilarejo chamado Villa Cella, próximo à cidade de Reggio. transcrita na obra. Assim,
é possível conhecer um
Loris Malaguzzi, um jovem professor recém-formado, ouvindo falar pouco sobre a história e
sobre a iniciativa, chegou até lá em sua bicicleta e passou a fazer parte as ideias de Malaguzzi a
partir de seus próprios
daquele movimento, em que as pessoas tinham como ideal a constru- relatos. Sugerimos essa
ção de uma sociedade pautada em princípios democráticos, influencia- leitura.

da pelas ideias socialistas, e desejavam, mais que tudo, jamais sofrer de EDWARDS, C.; GANDINI, L.;
FORMAN, G. Porto Alegre: Penso,
novo com os horrores de uma guerra. 2015. v. 1.
Segundo relatos do próprio Malaguzzi, após oito meses estava pron-
ta a primeira escola, que foi o início de um projeto não somente educa-
tivo, mas social. Nos anos seguintes, outras escolas foram construídas
e coordenadas pelos pais. O professor Malaguzzi permaneceu naquela
comunidade por sete anos, deixando o local por um período em busca
de novos conhecimentos e desafios, retornando posteriormente.

Mas antes de avançarmos na linha do tempo até chegarmos na pro-


posta pedagógica de Reggio, faz-se importante refletir sobre os pressu-
postos teóricos que embasaram as primeiras práticas de atendimento
à infância na Itália e que surgiram antes da guerra. Afinal, ao criar a es-
cola no vilarejo de Villa Cella, a comunidade já tinha a referência de um
modelo anterior àquele que seria então desenvolvido, mas que parecia
não ser adequado aos novos tempos.

Nesse contexto, o atendimento à infância ficava dividido basica-


mente em dois eixos de trabalho, sendo o primeiro voltado às crianças
menores de 2 anos, cujo caráter era majoritariamente de assistência à
infância pobre, e o segundo, para as crianças um pouco mais velhas,
mas ainda em idade pré-escolar, cuja proposta já trazia algumas ideias
progressistas relacionadas à educação.

Com relação ao primeiro grupo, é ainda no século XIX, durante o


processo de unificação da Itália, que começam a surgir as primeiras ini-
ciativas de atendimento à infância. É um período marcado pela disputa
entre Igreja, que paulatinamente perdia sua hegemonia, e Estado, que,
ao unificar suas regiões, buscava a soberania nacional, desvinculando-se

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 11


do catolicismo. Nessa disputa, surgem as instituições de caridade, ainda
intimamente ligadas à Igreja Católica (apesar da ruptura entre Estado/
Igreja), com o objetivo de atender crianças pobres, sob uma perspectiva
assistencial e com um modelo educativo pautado na moral cristã.

São criadas as presepi (creches), que tinham por objetivo atender


bebês ainda em fase de amamentação, filhos de mulheres trabalhado-
ras. Tal modelo de atendimento já existia na França desde 1844, data
historicamente reconhecida como sendo de criação da primeira creche
que se tem notícia. Não somente a igreja, mas também as fábricas aca-
bavam por criar esses espaços, já que o período é marcado pela inser-
ção da mão de obra feminina no mercado de trabalho.

Já no início do século XX, em 1925, com a criação da Lei Nacional para


a Maternidade e Infância (ONMI), o Estado Italiano tinha a intenção de
criar um programa nacional de cuidados para com as crianças pequenas,
desvinculando-se das iniciativas privadas e caritativas da época. No en-
tanto, a ascensão do regime fascista inviabilizou o avanço de uma nova
concepção de trabalho voltado à primeira infância, permanecendo o viés
assistencial por quase 50 anos, sendo modificado por legislação nacional
somente na década de 1970, quando as ONMI foram enfim transferidas
para os governos municipais italianos, desvinculando-se, finalmente, de
qualquer tipo de iniciativa privada, assistencial ou caritativa.

Para as crianças mais velhas, mas ainda em idade pré-escolar, é tam-


bém no início do século XIX que surgem as primeiras iniciativas, ligadas
ao aprendizado de trabalhos manuais para os meninos e trabalhos do-
mésticos para as meninas. Por volta de 1867, as ideias do pedagogo ale-
mão Friedrich Fröbel, fundador do primeiro Jardim de Infância, passam a
ser conhecidas no país. O novo modelo educativo, com base em um ideal
progressista, trazia uma nova concepção de educação para as crianças
entre 2 e 6 anos, valorizando a infância como uma etapa importante na
vida. A disputa entre uma nova concepção de educar e o modelo tradi-
cional preconizado pela Igreja católica era forte também no que se refere
ao trabalho voltado a essa faixa etária, e as escolas comandadas por or-
dens religiosas predominaram no país durante o regime fascista.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, da mesma forma como ocor-


reu com as instituições de atendimento às crianças menores de 2 anos,
há a necessidade de uma reorganização das escolas infantis pré-primá-
rias, e a sociedade italiana, influenciada por ideais socialistas, passa a

12 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


atuar fortemente na reconstrução de suas escolas e demais instituições
sociais. Mais do que nunca, a concepção de infância, que ao longo dos
anos já vinha sofrendo modificações, sendo compreendida como etapa
importante no desenvolvimento do ser humano, passando a ser cada
vez mais valorizada, no período pós-guerra passa a ser compreendida
como o futuro de uma nação que precisava ser reconstruída.
1
Reggio Emilia , nosso objeto de estudo, está inserida nesse con- 1
texto e, embora também tenha a influência das instituições religiosas Não somente os
na história de suas creches e pré-escolas, foi pioneira no que tange à acontecimentos histó-
ricos, mas também a
mudança de concepção educativa e criação de seus primeiros centros circulação das ideias
municipais, antes mesmo da promulgação da Lei Nacional. Estudiosos pedagógicas têm in-
da abordagem identificam que tal característica sempre esteve relacio- fluência no surgimento
da abordagem.
nada à forte atuação dos pais e dos professores que faziam parte da-
quela comunidade. Em Reggio foram criados os primeiros nidi (creches
ou centros de infância para as crianças menores de 3 anos), ainda nos
anos 1960, quando nas demais regiões do país a mudança só ocorreu
após a municipalização, nos anos 1970.

Assim, é possível pensar na experiência de Reggio Emilia não somen-


te como uma abordagem pedagógica, mas como um modelo de socieda-
de que foi sendo progressivamente construído a partir de necessidades
específicas de uma população que sofreu com a guerra e que acreditava
que a educação seria uma das formas de buscar uma sociedade mais jus-
ta, igualitária e democrática. O modelo educativo vigente até então de-
veria ser repensado a partir dos novos ideais. Além disso, a abordagem
extrapola os muros da escola, à medida que toda a cidade é pensada
para acolher suas crianças. Os pais atuaram massivamente nas escolas,
desde a construção de suas paredes, em sua origem, até a elaboração
de sua proposta pedagógica, e as famílias que integram a comunidade
hoje buscam a preservação dessa história. Essa é uma mudança de para-
digma, talvez a mais complexa para nós, leitores advindos de outras cul-
turas, na qual os cidadãos sentem-se todos responsáveis pela educação
de suas crianças. Embora no Brasil tenhamos um arcabouço legal que

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Hi

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 13


responsabiliza a sociedade como um todo por suas crianças e adoles-
centes (Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente, por
exemplo), na prática ainda estamos longe desse cenário concreto.

Dessa forma, temos então um modelo educativo criado ainda no sé-


culo XIX, que passou a ser revisto ainda na primeira metade do período
seguinte, mas que não deixava de ter influência de seus primórdios.
2 Assim, somente na década de 1960 a proposta pedagógica foi de fato
Não somente os aconte-
reformulada e, no ano de 1963 tem início o que conhecemos por abor-
2
cimentos históricos, mas dagem Reggio Emilia . Todo o contexto anteriormente citado faz-se im-
também a circulação das
ideias pedagógicas tem
portante para a compreensão das ideias e concepções que subsidiam o
influência no surgimento trabalho; afinal, foi um caminho árduo trilhado pelas pessoas daquela
da abordagem. Tratare-
mos do tema na terceira
comunidade e que hoje, mesmo frente a um contexto social diferente
seção do capítulo. daquele do início do século XX, mantém a sua base sólida graças à pre-
servação dos ideais iniciais.
Livro Hoje, 33 escolas municipais compõem o sistema educacional de
Nesta seção abordamos Reggio Emilia. As crianças atendidas têm idades entre alguns meses de
a questão da concepção
de infância que foi sendo vida até os seis anos, divididas entre os nidi (plural de nido - as creches),
modificada ao longo do e as scuole dell’infanzia. E, embora a sociedade atual tenha sofrido mo-
tempo e que possibi-
litou o surgimento de dificações, as concepções de infância e de educação remetem às suas
novas ideias pedagógicas. origens, especialmente a partir das valiosas contribuições do educador
­Philippe Ariès foi um histo-
riador francês que, a partir Loris Malaguzzi, de quem falaremos adiante. Nas palavras dele: “A es-
de fontes iconográficas, cola precisa ser um espaço para todas as crianças. Não deve se basear
destacou o conceito de
“sentimento de infância” na ideia de que todas são iguais, mas de que todas são diferentes” (MA-
como construção social da LAGUZZI, 1988 apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 61).
modernidade. Sua obra
História social da criança Para essa comunidade, a escola tem papel fundamental nas socieda-
e da família configura-se
como essencial para a
des democráticas, pois por meio delas, desde a mais tenra idade, é pos-
compreensão da infância sível construir uma cultura de respeito às diferenças, de igualdade e de
enquanto produção histó-
rica. Sugerimos a leitura.
liberdade. Contudo, a escola por si só não é capaz de toda essa transfor-

ARIÈS, P. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


mação. Daí a importância de a abordagem se tratar de um projeto social,
que envolve toda a comunidade e não somente alunos e professores.

1.2 Loris Malaguzzi e a experiência


Vídeo em Reggio Emilia
A história de Malaguzzi está intimamente relacionada a Reggio
Emilia. O pedagogo italiano nasceu em 23 de fevereiro de 1920, em
Correggio, uma cidade próxima a Reggio. No ano de 1940 tornou-se

14 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


professor, sendo formado pela Universidade de Urbino. Pouco tempo
depois, em 1945, encontrou a comunidade de Reggio. Em uma entre-
vista que deu a Lella Gandini, o próprio Loris relata o momento de sua
chegada a uma pequena vila próxima à cidade de Reggio Emilia, a Villa
Cella. Ao ouvir falar que naquele vilarejo uma comunidade havia decidi-
do construir e gerir uma escola para atender crianças pequenas, pegou
sua bicicleta e foi checar a informação. Ao chegar lá, pôde verificar que
tal iniciativa era real e, mesmo repleto de dúvidas (por exemplo, de
onde viria o dinheiro para a manutenção da escola), Loris decidiu fazer
parte daquela comunidade, onde se tornou professor e ali permaneceu
durante sete anos, podendo presenciar o crescimento daquela propos-
ta pioneira e inovadora à época.

Contudo, o jovem tinha algumas inquietações. Entre elas, o fato de


que, embora a comunidade de Reggio trouxesse uma mudança de pa-
radigmas no que tange ao trabalho até então inédito envolvendo esco-
la e comunidade, a história das instituições de atendimento à infância
demarcada pelo controle do Estado e pelos preceitos da Igreja ainda
influenciavam as práticas educativas, o que incomodava Loris profun-
damente, já que para ele não fazia sentido atuar com base em uma
perspectiva predefinida, que desconsiderava os interesses das crian-
ças, bem como de seus processos culturais.

Assim, em 1952, Malaguzzi deixou Reggio Emilia e partiu para


Roma com o objetivo de estudar psicologia e, ao retornar, anos de-
pois, fundou um centro de atendimento para crianças com algum tipo
de dificuldade escolar, conciliando suas atividades no centro com o
trabalho nas escolas da comunidade. Em 1963, oito anos antes da
municipalização das escolas na Itália, Loris Malaguzzi, juntamente
com professores, pais e demais integrantes da comunidade, em uma
ação pioneira, fundou a primeira escola Municipal de Reggio Emilia,
dirigida às crianças pequenas, com idades entre 3 e 6 anos. Tinha iní-
cio, então, a abordagem Reggio Emilia.

Um ponto importante a ser destacado nessa primeira ini-


Nowik Sylwia/Shutterstock

ciativa deve-se aos registros históricos de que Loris, antes de


inaugurar a escola, teria realizado um encontro com as famílias
das crianças que seriam atendidas para tratar de uma questão pri-
mordial à comunidade local. Enquanto a língua italiana era conside-
rada oficial, ali muitos se comunicavam por meio de um dialeto local.

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 15


Malaguzzi teria solicitado auxílio aos pais, de modo que pouco a pouco
todos foram aprendendo alguma forma de cooperar para que a escola
entrasse em funcionamento. O fundador da abordagem já apresenta-
va ideias centrais de sua filosofia, que mais tarde seria mundialmente
reconhecida: “as coisas relativas às crianças e para as crianças somente
são aprendidas através das próprias crianças” (MALAGUZZI 1988 apud
EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008).

Loris Malaguzzi dedicou toda a sua vida à comuna de Reggio. Morreu


em 1994, aos 74 anos. Estudiosos de diversas partes do mundo visitam
a cidade italiana com o intuito de conhecer essa experiência educativa
que surgiu, em grande medida, por meio dos ideais de uma comuni-
dade, mas principalmente pela coragem de um jovem professor, que
pensava a educação a partir de seus principais atores (as crianças),
romperia com os modelos tradicionais vigentes e traria a ideia de que
as crianças se manifestam por meio de múltiplas linguagens, cabendo
Vídeo à escola reconhecer e valorizar cada uma delas.
O canal criado pelo casal
João e Itaici, pais e edu-
Questionado por Gandini (2008) sobre as razões pelas quais dedi-
cadores que resolveram cou sua vida à educação da infância, Malaguzzi respondeu, de maneira
compartilhar ideias e
materiais referentes à
sensível e verdadeira, que a Guerra o marcou profundamente e foi o
educação inclusiva, apre- ponto de partida para que alguns anseios viessem à tona. De acordo
senta, no ano de 2021,
um pequeno trecho de
com ele, a guerra seria:
uma entrevista realizada
Uma espécie de experiência que empurra uma pessoa para
com Loris Malaguzzi. É
um fragmento em que o a tarefa de educar, como uma forma de recomeçar do zero,
pedagogo apresenta sua viver e trabalhar para o futuro. Este desejo atinge uma pes-
visão acerca da inteligên- soa, quando a guerra finalmente termina e os símbolos da
cia da criança. Como não
temos muitos materiais
vida reaparecem com uma violência igual àquela do tempo
produzidos pelo próprio de destruição. (MALAGUZZI, 1988, apud EDWARDS; GANDIN;
Malaguzzi traduzidos para FORMAN, 2008, p. 66)
o português, é uma opor-
tunidade de entrar em Malaguzzi também foi responsável por trazer uma concepção inova-
contato com suas ideias.
Vale a pena conferir. dora e potente acerca do papel do professor. Ele acreditava que para ser
Disponível em: https:// professor não bastava estar na sala de aula, aplicar projetos ou planos
www.youtube.com/ de ensino. Ao contrário, é uma profissão que precisa estar impregnada
watch?v=XdTMFc99I78&t=1s.
Acesso em: 20 out. 2022. de sentido, de reflexão, na qual a busca por significados no processo de
aprender e ensinar precisam ser compartilhados com as crianças.

16 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


1.3 Abordagem e filosofia educativa
Vídeo
Agora que já conhecemos um pouco sobre o contexto histórico em
que foi criada a abordagem, vamos conhecer alguns pensadores que
influenciaram a pedagogia de Reggio. Afinal, para aquela comunidade,
construir as paredes de suas escolas não seria suficiente, se suas práti-
cas não estivessem pautadas na ideia de uma sociedade democrática.
Para tanto, o antigo modelo educativo não poderia mais subsidiar o tra-
balho junto às crianças. Além disso, com o fim dos conflitos foi possível
a circulação das ideias pedagógicas de outras sociedades que poderiam
contribuir para que se criasse uma nova proposta educativa.

Em meados do século XX, as ideias de Célestin Freinet puderam ser


traduzidas e conhecidas na Itália influenciando pensadores e educa-
dores da época.

Nascido na França, ao final do século XIX, Freinet é um dos autores


que têm destaque no início do século XX, no movimento que ficou co-
nhecido posteriormente como Escola Nova, que fazia a crítica ao mode-
lo tradicional de ensino vigente, propondo uma pedagogia centrada no
aluno. Para ele, a escola deveria sofrer uma transformação, já que seria
um espaço repleto de contradições sociais. Acreditava ainda no que de-
nominou método natural, que seria uma proposta de ensinar a partir da
ideia de que há nas crianças um desejo intrínseco, natural pela aprendi-
zagem, em detrimento de métodos mecânicos e externos a elas.
Adsara/Shutterstock

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 17


De modo geral, a proposta freinetiana de educação possui quatro
elementos principais, a partir dos quais se ramificariam as práticas
educativas. São eles:

Supriya07/Shutterstock 1-Blan-k/Shutterstock 2-M-vector/Shutterstock


3-PanuwachShutterstock 4-davooda/Shutterstock
1

Cooperação

Afetividade

Comunicação

Documentação

Com relação à documentação, tem destaque o “Livro da Vida”, como for-


ma de documentar os percursos de aprendizagem das crianças.

Na Itália, em 1951, foi criado o Movimento de Educação Cooperativa


(MCE), que tinha a intenção de aplicar teorias e técnicas freinetianas na edu-
cação. Segundo Edwards, Gandini e Forman (2008), Bruno Chiari, então líder
do MCE, foi figura fundamental na difusão das ideias progressistas, trazendo
o debate acerca de uma educação das crianças que poderia contribuir para
a construção de uma sociedade mais justa. Para ele, a educação deveria:
“Liberar a energia e as capacidades infantis e promover o desenvolvimen-
to harmonioso da criança como um todo, em todas as áreas - comunicati-
va, social, afetiva e também em relação ao pensamento crítico e científico”
(CHIARI, 1972, apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 33).

Chiari trazia propostas inovadoras; entre elas, a ideia de que cada gru-
po de crianças deveria ter como referência dois professores em sala de
aula. Além disso, preconizava que não deveria existir nenhum tipo de hie-
rarquia entre a equipe educativa e os professores, sendo imprescindível
a construção de um trabalho em conjunto e de cooperação. O relaciona-

18 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


mento com as famílias também deveria fazer parte da função da escola,
com o envolvimento de todos e a criação de “comitês participativos”.

O número de crianças por turma, o agrupamento por faixa etária e


os espaços cuidadosamente pensados para proporcionar conhecimen-
to e aprendizagem também eram temas abordados por ele, e todas as
suas propostas e reflexões demarcavam a necessidade de uma refor-
ma no sistema educacional italiano. Loris Malaguzzi foi profundamente
influenciado pelas ideias de Chiari.

Outro autor importante que passou a ser conhecido na Itália nos


anos 1950 foi John Dewey. O pensador norte-americano que inspirou
Malaguzzi questionava a ideia de escola como uma preparação para a
vida, difundia a ideia de que ela é a própria vida, no sentido de que a es-
cola deveria ajudar as crianças na compreensão do que significa “estar
no mundo”, viver em sociedade, dar sentido às experiências. Conforme
destacou Rinaldi (2012, p. 28),
Outra inspiração importante foi John Dewey, que via o aprendiza-
do como um processo ativo e não uma transmissão pré-molda-
da de conhecimento. Como ele argumentou, o conhecimento é
construído nas crianças por meio das atividades, com experimen-
tações pragmáticas e livres, e com participação nas atividades.

Dewey chegou a fundar uma escola com pressupostos semelhantes


àqueles utilizados em Reggio. No entanto, sua experiência teve duração
de somente quatro anos, mas suas ideias inspiram educadores até hoje.

Piaget e Vygotsky também foram autores que passaram a ser estudados


na Itália entre as décadas de 1950 e 1960. No entanto, ainda não tinham tra-
dução no país. Malaguzzi, que frequentava seminários no Instituto Piaget,
em Genebra, já era estudioso dessas teorias psicopedagógicas e acabou co-
laborando também para a difusão das ideias no âmbito educativo.

As ideias de Piaget inspiraram os educadores de Reggio. Os estu-


dos riquíssimos do cientista suíço sobre a construção da inteligên-
cia da criança, a teoria da epistemologia genética, que descreve os
estágios de desenvolvimento (sensório-motor, pré-operatório, ope-
racional concreto e operacional formal), bem como os conceitos de
adaptação e acomodação, entre outros, traziam um novo olhar acer-
ca do desenvolvimento infantil e sobre como a escola poderia pen-
sar as aprendizagens à luz desse conhecimento. O erro da criança na
perspectiva piagetiana também conduzia os educadores a uma outra

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 19


concepção completamente diferente daquela do ensino tradicional,
na qual o erro é visto como algo construtivo, ocorrendo não porque
a criança não saberia ou não seria capaz de aprender determinada
questão, mas simplesmente porque ainda não teria atingido o estágio
necessário à resolução daquele problema.

No entanto, sem desconsiderar as importantes descobertas do


pesquisador interacionista (interação entre meio ambiente e os pro-
cessos orgânicos inerentes ao sujeito, trazendo uma perspectiva
construtivista da inteligência), a equipe de Reggio logo avaliou que,
por vezes, ao chegar na prática das instituições educativas, parecia
haver certa distorção da obra de Piaget, e, além disso, a prática apre-
sentava aos professores uma dinâmica que muitas vezes não era con-
templada pela teoria, por exemplo, o papel do professor referência
para a criança em seu processo de desenvolvimento. Assim, autores
como Vygotsky, que traziam fortemente uma concepção sociocultural
do desenvolvimento humano, ganharam força na proposta pedagógi-
ca. Embora Vygotsky também seja considerado um autor interacionis-
ta, a ênfase de seus estudos se dá na sócio interação.
Desse modo, vieram a adotar uma perspectiva social construto-
ra, na qual o conhecimento é visto como parte de um contexto
dentro de um processo de produção de significados em encon-
tros contínuos com os outros e com o mundo, e a criança e o
educador são compreendidos como co-construtores do conheci-
mento e da cultura. (RINALDI, 2012, p. 28)

Podemos citar ainda duas referências italianas que contribuíram


para as novas práticas em educação. A primeira delas, pouco co-
3 nhecida em nossa literatura, refere-se aos estudos das irmãs Agazzi.
Carolina e Rosa Agazzi foram duas educadoras que criaram um mé-
O cesto de tesouros é uma
proposta que consiste em todo para a educação de crianças pequenas. Para elas, as crianças
organizar materiais não es-
aprendem a partir de sua própria intuição. Para ensinar seriam ne-
truturados, dentro de um
cesto, e possibilitar a livre cessários materiais simples, até mesmo reciclados, além de objetos
exploração dos bebês que 3
já pertencentes ao cotidiano. O conceito de cesto de tesouros , hoje
já conseguem permanecer
sentados. Podem ser des- conhecido método de atuação junto aos bebês, foi cunhado por elas.
de utensílios do cotidiano,
O método Agazzi também enfatizava a importância do brincar como
ou produzidos pelo adulto
com diversas texturas, atividade básica da criança.
pesos e tamanhos. Golds-
chmied e Jackson (2006) Maria Montessori, um nome mais conhecido por nós, também teve
são autoras de referência
suas ideias difundidas na Itália e, posteriormente, em vários outros
na temática.
países. Pedagoga, também se formou em medicina, sendo a primeira

20 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


mulher italiana a obter esse título. Sua formação influenciou todo um
pensamento sobre a educação das crianças que estabelecia relação
entre aspectos biológicos e de inteligência. Para ela, a educação deve-
ria ser centrada na criança; esta, por sua vez, deveria ser estimulada a
ser autônoma, independente e ter liberdade de movimentos e criação.
Foi responsável por criar a Casa dei Bambini (Casa das crianças). Suas
ideias foram rechaçadas durante o regime fascista, sendo retomadas
somente anos depois.

É possível perceber a partir desses breves resumos das ideias peda-


gógicas que permearam o campo educacional no século XX que todas
elas têm em comum uma mudança de paradigma referente ao pro-
tagonismo da criança nos processos de aprendizagem. Seja uma ver-
tente mais biológica ou interacionista, o fato é que os estudos a partir
desse período fazem crítica ao modelo tradicional, que tinha a figura
do professor como detentor do conhecimento e a criança como um
“vir a ser”, que deveria ser preparada para o futuro e ser tão somente
uma receptora dos conhecimentos escolares. A partir do momento em
que a criança é tomada como central no processo de aprendizagem, é
preciso que os estudos investiguem as características desse universo
infantil, visando à compreensão dessa importante etapa da vida. As-
pectos biológicos, cognitivos, sociais e emocionais passam a formar
uma agenda investigativa de pesquisas e produção de conhecimento.

Dessa forma, sob diferentes bases epistemológicas, a valorização da


infância vai ganhando força e a escola, como local de atendimento a esse
público, passa a ter suas práticas questionadas e repensadas. No que con-
cerne à Reggio, toda a gama de conhecimentos vai ao encontro daquilo que
aquela comunidade já buscava: uma nova educação para suas crianças.

Assim, embora haja uma série de autores que influenciaram a cons-


trução da abordagem, há uma questão fundamental que distingue a
Reggio de eventuais propostas que acabam seguindo aquilo que de-
nominamos de modismos na educação. Ou seja, a cada nova teoria que
surge, há uma tendência das instituições educativas de acabar aderindo
a tais propostas ou modelos, muitas vezes sem a reflexão e o aprofun-
damento necessário para a real compreensão daquele conhecimento.

O ponto crucial, que faz com que a abordagem não se torne uma
espécie de “colcha de retalhos” teórica, se deve ao fato de que a partir do
momento em que os profissionais são reconhecidos, não somente como

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 21


professores atuantes junto às crianças, mas também como pesquisado-
res e protagonistas de sua própria prática, as teorias psicopedagógicas
são pensadas em seus contextos de criação, e sua aplicabilidade precisa
estar em consonância com a prática e as necessidades daquele público.
Nesse movimento, rompem com a dicotomia teoria e prática, de modo
que a valorização das experiências cotidianas e das especificidades da-
quela comunidade ganham centralidade para se pensar na proposta
pedagógica. “O aprendizado não ocorre de forma linear, determinada
e determinista, em estágios progressivos e previsíveis; pelo contrário, é
construído por meio de avanços simultâneos, paralisações e recuos que
tomam diversas direções” (RINALDI, 2012, p. 30).

Podemos pensar, então, na abordagem Reggio Emilia não como um


modelo ou programa de ensino, mas sim como um sistema municipal
de educação que atua como uma espécie de rede, em que todas as
suas escolas de Educação Infantil compactuam com questões funda-
mentais acerca dos direitos das crianças e das necessidades de suas
famílias. É um sistema que compreende a educação também como um
serviço social essencial e que, portanto, deve ser pública e acessível a
todos.

A partir dessas concepções partilhadas, a abordagem compreen-


de o planejamento como método pedagógico de trabalho que define
objetivos educacionais gerais para cada faixa etária atendida. A partir
destes objetivos, os professores das diversas unidades educacionais
formulam hipóteses de trabalho que devem ser flexíveis e que vão ou
não se concretizar a partir da observação, do registro e da documen-
tação nos grupos de crianças. Essa forma de trabalhar, muito peculiar
de Reggio Emilia, foi denominada em algumas literaturas sobre o tema
como currículo emergente, ou seja, um currículo que emerge do cotidiano
e das manifestações das crianças.

No entanto, Carla Rinaldi (2012) fez um apontamento sobre as termi-


nologias que são utilizadas na tradução dos materiais sobre Reggio e indi-
ca que o termo não seria adequado para a real compreensão do trabalho
ali realizado. Para tanto, faz uso do termo italiano progettazione (projeto)
como sendo o mais adequado. Reggio Emilia, portanto, tem como meto-
dologia o trabalho com projetos, que são específicos para cada grupo de
crianças, especialmente para as que estão na faixa etária entre 3 e 6 anos,
tendo alguns aspectos diferenciados no caso dos bebês e crianças mais
novas, em detrimento de um currículo abrangente, formal e prescritivo.

22 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Figura 2
Temas centrais na abordagem Reggio Emilia

Projetos
Nowik Sylwia/Shutterstcok

Professor

Espaços

Crianças Documentação

Família/
Comunidade

Atelierista

Fonte: Elaborada pela autora.

Percebe-se ainda que há grande investimento na formação conti-


nuada das equipes, pois, para que elas possam criar junto às crianças
seus projetos, as concepções sobre educação, infância e comunidade
devem ser claras e estar em consonância com o projeto municipal de
Reggio. Dessa forma, podemos pensar que:
Essa abordagem incentiva o desenvolvimento intelectual das
crianças por meio de um foco sistemático sobre a representação
simbólica. As crianças pequenas são encorajadas a explorar seu
ambiente e a expressar a si mesmas através de todas as suas “lin-
guagens” naturais ou modos de expressão, incluindo palavras,
movimento, desenhos, pinturas, montagens, escultura, teatro de
sombras, colagens, dramatizações e música. (RINALDI, 2012, p. 21)

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 23


É importante destacar ainda que a flexibilidade dos projetos peda-
gógicos não indica, de forma alguma, falta de planejamento. Na reali-
dade há todo um aparato técnico e científico cuidadosamente pensado
e organizado para que seja possível a realização dos projetos. Assim,
Rinaldi (2012, p. 22) destaca que:
Essas escolas não desprezam o conhecimento técnico, nem igno-
ram aspectos de organização e estrutura. Mas os colocam em seus
devidos lugares: como bases de apoio para um projeto educacional
que compreende a escola, antes e acima de tudo, como espaço pú-
blico e como local para a prática ética e política - um lugar de encon-
tro e conexão, interação e diálogo entre cidadãos, sejam jovens ou
velhos, que vivem juntos na comunidade.

De modo geral, tal organização compreende aspectos como espaço


físico, organização das turmas em pequenos grupos, formação e docu-
mentação pedagógica.

No que se refere às turmas, elas são divididas em sessões de


aprendizagem, e em cada uma delas há uma diversidade de objeti-
vos, materiais e experiências que podem ser realizadas pelos peque-
nos grupos.

O espaço é compreendido como fundamental na educação das


crianças e no trabalho pedagógico e, embora cada escola possua ca-
racterísticas próprias, construindo uma identidade a partir da comu-
nidade atendida, há alguns pressupostos para a composição de cada
um dos ambientes.

O primeiro ponto que diz respeito aos espaços refere-se à utiliza-


ção das paredes da escola. Todas elas são utilizadas para exposição
das produções das crianças em conjunto com seus professores. É uma
ideia potente, já que, ao entrar na escola, adultos, crianças, perten-
centes ou não àquela comunidade, conseguem visualizar a proposta
ali desenvolvida. O intuito não é somente o de expor os trabalhos,
mas de corroborar para a construção dos sentimentos de identidade
e pertencimento ao espaço.

O espaço das refeições e a cozinha, em geral, também se localizam


na entrada das escolas e ficam completamente à vista. Crianças e fa-
miliares têm acesso à cozinha, que, por sua vez, tem um papel que vai
muito além do alimentar. É um espaço educativo, de interação, conhe-
cimento e aprendizagem.

24 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Há ainda um espaço central amplo, onde podem ocorrer atividades Dica
diversas, salas de aulas com inúmeras possibilidades de experimenta- Nesta seção identifica-
mos questões filosóficas
ções e o ateliê, que é um local primordial para a abordagem Reggio.
e pedagógicas centrais
Sala de música, sala de materiais, miniateliês, além dos espaços exter- para a compreensão da
abordagem Reggio Emilia.
nos, também compõem a arquitetura pensada como sendo também
No vídeo Grupo de estudos
um elemento que educa as crianças. da RedeSOLARE Brasil em
Reggio Emilia, um grupo de
A abordagem compreende o pensamento da criança como mul- educadores brasileiros que
visitaram as escolas munici-
tidisciplinar. Assim, torna-se imprescindível a observação por parte
pais italianas compartilham
do adulto quando a criança está, por exemplo, explorando algum a experiência de poder ver
a prática da pedagogia de
material. É a partir daquilo que ela retorna aos professores, ou seja,
projetos de Reggio.
a forma como se expressa, inventa, manipula e aprende por meio
Disponível em: https://
do que lhe é oferecido, que o educador vai trazer novas propostas, www.youtube.com/
sempre partindo daquilo que a criança manifesta. Pesquisa e inves- watch?v=h7ekuznbtO4.
Acesso em: 20 out. 2022
tigação são amplamente valorizadas.

As assembleias também fazem parte do contexto de aprendizagem


e configuram-se como espaços em que as crianças têm a oportunidade
de socializar em um grande grupo aquilo que desenvolveram nos pe-
quenos grupos. Ali, novas perguntas de pesquisa vão surgindo para dar
continuidade aos projetos.

Os projetos arquitetônicos, por sua vez, respeitam as especifici-


dades das crianças. Todos os espaços são pensados de forma que as
crianças tenham acesso e possam aprender, desde as salas de aula até
a cozinha, por exemplo. A importância do ambiente, da luz, da conexão
entre espaços internos e externos, tudo é pensado no projeto a fim de
favorecer as interações e aprendizagens das crianças.

O espaço e ambiente educativos são praticamente laboratórios sen-


soriais, que possibilitam a exploração livre das crianças em todos os
seus espaços. Nesse sentido, a estética dos espaços tem valor do
ponto de vista do conhecimento.

O trabalho interdisciplinar e a aproximação com diver-


sas áreas do conhecimento também são fatores mar-
cantes que contribuem para o sucesso da experiência
da abordagem Reggio. Arquitetura, arte, ciência e filo-
sofia estão entre os estudos realizados pelas equipes de
maneira constante, para refletir e aprimorar suas propos-
ss2

tas pedagógicas.
yle
-Pa
KPG

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 25


Os projetos em Reggio vão, dessa forma, sendo desenvolvidos na-
quilo que Rinaldi (2012) denominou de pequenas narrativas, ou seja,
não há uma proposta inicial que prevê um início, meio e fim prede-
terminados, mas sim a ideia de um conhecimento que nasce e toma
diversas direções, em caminhos que vão se cruzando e construindo as
aprendizagens. Aprender é uma construção – e nunca uma reprodução
ou transmissão. Malaguzzi gostava de utilizar a metáfora do conheci-
mento como uma espécie de “emaranhado de espaguete”.

1.4 As cem linguagens da criança


Vídeo
Damos início à seção final deste primeiro capítulo trazendo alguns
trechos do poema criado por Loris Malaguzzi, poema que nos inspira e
contribui para fecharmos nossas primeiras reflexões sobre a aborda-
gem Reggio Emilia.

As cem linguagens da criança

Dica A criança tem


cem linguagens
Uma boa dica é a leitura (e depois cem cem cem)
do livro Imaginação e mas roubaram-lhe noventa e nove.
criação na infância: ensaio A escola e a cultura
psicológico: livro para lhe separam a cabeça do corpo.
professores, uma obra de [...]
Vygotsky que não é muito cem pensamentos
referenciada nos cursos cem modos de pensar
de pedagogia, mas que de jogar e de falar.
apresenta uma visão [...]
importante acerca dos Dizem-lhe:
processos de imaginação que as cem não existem
e criatividade, sempre A criança diz:
atrelada à abordagem his- ao contrário, as cem existem.
tórico-cultural difundida (Loris Malaguzzi, 1988)
pelo autor. Sendo Vygot-
sky uma grande influência
para a abordagem Reggio
Emilia, é uma boa chance Em certa medida, a poesia de Malaguzzi resume tudo o que foi escrito
de aprofundar o conheci- até aqui sobre a experiência de Reggio Emilia. Toda a sua organização, con-
mento sobre o tema.
cepção de infância, sistematização dos projetos e pressupostos teóricos vão
VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação
na infância: ensaio ao encontro daquilo que o autor denominou de cem linguagens da criança.
psicológico: livro para professores. Para ele, a criança teria infinitas formas de se expressar, e uma escola que
Tradução de Zoia Prestes. – São
Paulo: Ática, 2009. de fato tivesse o olhar para as reais necessidades da criança deveria ser ca-
paz de identificar e valorizar todas as suas formas de manifestação.

26 Abordagem Reggio Emília na Educação Infantil


Ao pensar, então, em atividades para os projetos pedagógicos, o Vídeo
desenho, as esculturas, pinturas e dramatizações seriam algumas das Neste vídeo você pode ou-
vir na íntegra a poema As
possibilidades de produção das crianças que deveriam ser valorizadas cem linguagens da criança.
no mesmo patamar, por exemplo, no qual a escola tradicional valoriza Disponível em: https://www.youtube.
a leitura e a escrita. Todas as linguagens das crianças são importantes. com/watch?v=-cNoORu92JM. Acesso
em: 20 out. 2022.
Valorizar as cem linguagens implica reconhecer o potencial criativo,
não somente das crianças, mas também dos professores, que cons-
troem juntos os percursos de aprendizagem. E, aqui, a linguagem artís-
tica ganha centralidade na experiência de Reggio por meio dos ateliês.

O poema traz ainda expressiva crítica ao modelo tradicional de


educação, quando fala que “a criança tem cem linguagens, mas rouba-
ram-lhe noventa e nove” (MALAGUZZI, 1988, apud EDWARDS; GANDINI;
FORMAN, 2008, p. 5). Para Malaguzzi, escola e sociedade acabam por
reduzir todo o potencial imaginativo das crianças, enquadrando-as em
um modelo disciplinar de educação, inflexível, prescritivo e imposto, de
modo que somente alguns conhecimentos como contar, ler e escrever
teriam valor. Ele critica ainda a dicotomia entre o real e o imaginário,
quando, na realidade, no universo infantil, não há tal ruptura, e a pos-
sibilidade de criar, imaginar, fantasiar deveriam ser incentiva- das
como formas de compreender e ressignificar a realidade.

Por fim, o pedagogo traz a reflexão sobre o fato de que, por


mais que a sociedade diga que as cem linguagens não existem, o
olhar atento para as crianças nos revela que, sim, elas continuam
nos mostrando sua imensa capacidade de criar e se expressar. Ao
contrário, as cem linguagens existem!

Na tentativa de reconhecer as diversas linguagens das crianças,


é necessário que os profissionais compreendam a importância da
interdisciplinaridade, atuando em equipes de maneira colaborativa e
solidária. Além disso, precisam conhecer não somente as teorias peda-
gógicas, mas as ciências, artes e até mesmo arquitetura, na busca por
uma educação integral e não fragmentada por conteúdos e disciplinas.
A criança é um ser completo, integral e pleno em seu desenvolvimento.
Tommy55378/Shutterstock

Na década de 1980, Loris Malaguzzi e seus colegas de equipe organi-


zaram uma exposição que viajou pela América do Norte, intitulada As cem
linguagens da criança. As diversas colagens, desenhos, painéis, fotografias,
entre outras, que integravam a exposição, levavam para fora da Itália um

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 27


pouco da experiência e do trabalho desenvolvido em Reggio Emilia. Em
1991, uma revista norte-americana, ao publicar uma lista contendo as dez
melhores escolas do mundo, incluiu a Escola Diana, uma das integrantes da
rede municipal de Reggio.

Desde então, a experiência, que ficou conhecida internacionalmente,


nos inspira e traz a esperança de que é possível uma nova forma de conce-
ber a educação. Sem a ingenuidade de que a educação, por si só, é capaz de
mudar o mundo, Reggio coloca a educação das crianças como central para
toda uma sociedade, um projeto social amplo em que a educação é tomada
como responsabilidade de todos. Mais que isso, na abordagem Reggio to-
dos são responsáveis pelas crianças, e as cem, mil, infinitas linguagens são
direitos da infância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final de nosso capítulo. Por meio dele, pudemos conhe-
cer um pouco sobre a experiência educativa de Reggio Emilia, que tanto
inspira educadores ao redor do mundo.
História, filosofia, teorias pedagógicas, conceitos-chave para a com-
preensão do trabalho nas escolas de Reggio, foram abordados a fim de
contextualizar este universo, que, fazendo parte de outra cultura e reali-
dade social, parece distante por vezes.
A partir dos pressupostos básicos, contudo, já é possível compreender
que se trata de uma teoria inovadora e que contribui para a construção de
um novo olhar acerca da criança e do trabalho na Educação Infantil. Que
Reggio Emilia possa ser fonte de inspiração e aprimoramento, refinando
nosso olhar e aguçando nossos sentidos, para que estejamos cada vez
mais disponíveis às nossas crianças.

ATIVIDADES
Atividade 1
Explique em que contexto histórico foram criadas as primeiras
iniciativas para o surgimento da abordagem Reggio Emilia.

28 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Atividade 2
Quem foi Loris Malaguzzi e qual sua importância para a experiên-
cia de Reggio Emilia?

Atividade 3
Explique o significado da expressão cem linguagens das crianças.

REFERÊNCIAS
EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a abordagem de
Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 2008.
RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. Rio de Janeiro: Paz
& Terra, 2012.

Reggio Emilia: história, influências e perspectivas 29


2
Parceria entre escola,
família e comunidade
“É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”. O provérbio
africano, popularmente conhecido, dá início a este capítulo por uma razão
muito especial: o fato de que somos seres sociais! Isso significa dizer que,
inserida em uma cultura, a criança será educada não somente por seus
pais, mas por todos aqueles que a cercam: escola, comunidade, mídia,
tudo fará parte de um contexto no qual a criança vai, desde o nascimento,
construindo sua identidade, relacionando-se e encontrando maneiras de
estar no mundo. Como uma via de mão dupla, a sociedade que recebe a
criança também vai se moldando a partir da cultura que será reproduzida
por ela, mas também ressignificada.
Ao conhecer as concepções filosóficas que embasam o trabalho de
Reggio Emilia, percebemos que sua proposta pedagógica ultrapassa os
muros das escolas e insere-se em um contexto que valoriza a educação
da infância como primordial para a construção de uma sociedade demo-
crática e igualitária. Assim, neste capítulo vamos compreender um pouco
sobre como tais concepções se efetivam, na prática, nas relações estabe-
lecidas entre as escolas de Reggio e seu entorno.
Refletiremos, portanto, sobre as concepções de criança e infância
como produtos de uma construção social histórica e mutável, e sobre
como essa etapa da vida é compreendida à luz da abordagem italiana de
educação. Em seguida, nos aprofundaremos no conceito da pedagogia
da escuta, criado por Loris Malaguzzi, uma terminologia bastante usada
na educação hoje, mas que precisa ser objeto de reflexão e atenção
quando queremos de fato compreender as propostas de Reggio Emilia.
A partir daí, vamos percorrer princípios básicos que permeiam as rela-
ções entre as escolas de Educação Infantil, as famílias e a comunidade
que constituem a abordagem.
Boa leitura!

30 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• refletir sobre as concepções de criança e infância como produ-
ções sociais;

• compreender o significado de uma pedagogia da escuta;

• entender que as relações entre escola, família e comunidade são


fundamentais na construção da proposta pedagógica de Reggio.

2.1 Pedagogia da escuta


Vídeo
Na área da educação, o termo pedagogia da escuta tem sido cunhado
com relativa frequência para tratar de propostas pedagógicas que têm
na criança o foco de seu processo de aprendizagem. Escutar a criança
e seus interesses seria o primeiro passo em direção a um trabalho ino-
vador e de qualidade, pautado em projetos e não mais na transmissão
de conteúdos previamente definidos, como preconizado pelo modelo
tradicional de ensino.

Essa ideia apresenta de maneira genérica aquilo que desejamos tratar


neste capítulo. Porém, é importante que sejamos capazes de trazer maior
reflexão e aprofundamento acerca do tema, pois consideramos que ele é
um dos pilares da abordagem Reggio Emilia. Por meio da compreensão
do que significa uma proposta pautada na pedagogia da escuta podemos
compreender não somente a relação com as crianças, mas também com
as famílias e a comunidade da qual as escolas de Reggio fazem parte.
Rawpixel.com/Shutterstock

Parceria entre escola, família e comunidade 31


Para tanto, iniciamos a discussão problematizando a concepção de
criança subjacente à proposta. Afinal, na história da humanidade, nem
sempre a escuta da criança e a atenção às suas especificidades foram
preocupações do universo adulto.

Kuhlmann Júnior, importante historiador da infância e da educação,


apresenta em sua obra Infância e Educação Infantil, uma abordagem his-
tórica (2015) um amplo levantamento bibliográfico de pesquisas sobre
a história da infância. Em um primeiro ponto, diferencia os conceitos
de criança e infância, elucidando o leitor sobre o fato de que sempre
existiu na história o entendimento de “ser criança” como um período
biológico de vida do ser humano. Já a infância estaria relacionada à
experiência social e cultural vivida pela criança, de modo que seria pos-
sível pensar inclusive em infâncias, no plural.

Por exemplo, pode ser que em algum momento da vida você já


tenha conversado com alguma pessoa que, ao relatar sobre a vida
quando criança, tenha dito: “Eu não tive infância, desde cedo comecei
a trabalhar para ajudar minha família”. Essa frase revela a experiência
de alguém que possui uma concepção de infância como um período
em que deveria, dentre outras coisas, brincar, estudar etc. No entanto,
por alguma situação adversa da vida, precisou, ainda quando criança,
inserir-se no mundo do trabalho que, a rigor, deveria pertencer aos
adultos. Assim, caracteriza sua experiência como sendo a de alguém
que não teve infância.

Saiba mais Para os teóricos desse tema, não se trata, pois, de alguém que não
A partir da redemocra- teve infância, mas sim da ideia de que em nossa sociedade coexistem
tização do Estado, na “infâncias”. A depender das condições políticas, sociais e culturais, a ex-
década de 1980, surgem
legislações que inserem periência da infância será diversa, muito embora tenhamos, do ponto
a criança como sujeito de de vista teórico e inclusive legislativo, uma concepção de infância que
direitos, sendo dever de
todos os integrantes da deveria abarcar todas as crianças, que é pautada na proteção e valori-
comunidade, protegê-la. zação desse sujeito que está em desenvolvimento e constituição.
Como exemplo, podemos
citar a Constituição Fede- Nesse sentido, os estudos de Philippe Ariès (1978) trouxeram con-
ral (1988), o Estatuto da
Criança e do Adolescente
tribuições acerca do que se denomina de sentimento de infância, como
(1990) e, direcionada à sendo algo que emerge nas sociedades a partir do século XVII, quando
educação, a Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação
a criança passa a ser compreendida como um sujeito com característi-
Nacional (1996). cas próprias e com determinado valor social, e não como um adulto em
miniatura, como até então era concebida.

32 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Por meio de análises iconográficas, o autor identificou que até o
século XII a imagem de crianças praticamente não era vista nas repre-
sentações visuais das sociedades, fato que sugere a pouca importância
dada a essa faixa etária. Preservar a memória do período da infância
parece não ser preocupação das sociedades medievais, quando inclusi-
ve registros de nascimento, por exemplo, também não tinham ainda o
rigor tal qual conhecemos hoje. Já no século seguinte, algumas imagens
de crianças passam a emergir nas pinturas, mas ainda com caracterís-
ticas angelicais ou de adultos em miniatura.

Exemplificando essa questão, trazemos uma pintura já do final do sé-


culo XVI, produzida por Pieter Bruegel. Conhecido por retratar paisagens e
também a vida dos camponeses em uma região onde hoje está localizada
a Bélgica, Bruegel é autor da obra Jogos infantis, em que apresenta cerca
de 80 brincadeiras infantis em um cenário que destaca a vida e a cultura
dos camponeses. É interessante observar que, embora as brincadeiras es-
tejam relacionadas ao que denominamos de universo infantil, as pessoas
que brincam na pintura não possuem características de crianças. A maio-
ria das personagens são adultos, e algumas em tamanho menor parecem
adultos em miniatura, já que as vestimentas são as mesmas dos demais.
Figura 1
Jogos infantis

Dguendel/Wikimedia Commons

Parceria entre escola, família e comunidade 33


A modificação na iconografia acompanha as mudanças de uma socie-
dade que vai, paulatinamente, se deslocando do período medieval para o
período moderno. A vida nas cidades e a estrutura política e familiar vão
configurando um novo cenário que possibilita a emergência da infância.

Embora os estudos de Ariès sejam um marco na historiografia, de


modo que não podemos abordar a história da infância sem citar o pesqui-
sador, é importante destacar que hoje há uma série de críticas e revisões
sobre suas descobertas. O fato de suas fontes abarcarem crianças perten-
centes à nobreza, sugerindo que o sentimento de infância viria “do nobre
ao pobre”, sugerem interpretações que poderiam não condizer com a rea-
lidade. Além disso, é possível encontrar hoje estudos de diversas áreas,
como a psicologia e a sociologia, que abordam outros aspectos sobre a
construção da infância que problematizam as descobertas de Ariès.

De qualquer forma, para a nossa análise, o que se faz importante


é compreender que a infância tal como a concebemos hoje, inclusive
do ponto de vista legislativo, que insere a criança como sujeito de
direitos, que precisa ser educada em parceria entre família e escola
e cuidada pela sociedade como um todo, é fruto de uma constru-
ção social que foi paulatinamente valorizando uma etapa peculiar
da vida. A criança, nesse sentido, passa a ser um sujeito que tem na
experiência da infância sua ocupação principal, e no mundo moder-
no a escola seria um dos lugares possíveis de se viver essa infância
de maneira plena e compartilhada.

Se a concepção de infância se altera, o ideal de escola e educação tam-


bém, no sentido de que se antes o modelo tradicional se fazia suficiente
para atender determinada criança que ali estava, e hoje enxergamos a
criança como produtora de uma cultura própria, com direitos específicos
e formas peculiares de estar no mundo, a escola de antes estaria em dis-
sonância de seu público-alvo. Essas mudanças ocorrem influenciadas em
grande medida pelos avanços das ciências, da psicologia e da pedagogia.

Todo esse percurso nos traz de volta ao século XX, período em que ainda
não havia a garantia, na prática, de que todas as crianças teriam direito a
uma infância valorizada pela sociedade, até hoje, infelizmente, não há. Con-
tudo, temos um arcabouço teórico, promovido pelo avanço das ciências,
que contribui sobremaneira para que a educação repense e remodele suas
práticas. A partir disso é que Loris Malaguzzi, ao reconstruir as escolas de
Reggio, apresenta o conceito fundamental da pedagogia da escuta.

34 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Para a compreensão do conceito, bem como o entendimento sobre
como é aplicado, iniciamos a discussão a partir das considerações de
ck
Rinaldi (2022), que nos apresenta definições do termo escuta para a ru/Shu
ttersto
Nazark
proposta italiana de educação. Resumindo as ideias da autora, a peda-
gogia da escuta envolve os seguintes aspectos:

Uma metáfora, que possibilita ouvir e ser ouvido com todos os sentidos do nosso corpo.

Escuta é sensibilidade.

Escutar exige tempo, não somente o cronológico, mas o tempo da experiência, o


tempo do outro.

Escutar é demonstrar interesse, curiosidade, estar aberto à forma como o outro se


apresenta e às diferenças entre os sujeitos.

Escutar é ação, interpretação que dá significado. Não é preciso dar respostas com base na
escuta; mais importante que isso é a possibilidade de questionar para promover a reflexão.

Para escutar é preciso livrar-se de preconceitos, estar aberto às mudanças.

A partir da escuta, o outro passa a ser visível.

Escutar é relacionar-se de maneira íntima e intensa, criando possibilidades de diálogo


e interação.

Só é possível pensar em uma pedagogia da escuta porque avan-


çamos na concepção de infância. Malaguzzi, um estudioso das teorias
de desenvolvimento e, sobretudo, um entusiasta e defensor de uma
educação de qualidade, pautada na criança como centro da aprendiza-
gem, abordou o termo para definir as práticas e filosofia pedagógica de
Reggio Emilia e por meio dele vai abarcando formas de aproximação do
mundo adulto ao universo infantil.

Escutar a criança, pois, relaciona-se com uma forma de acolhida, de


interação. É uma escolha consciente acerca de uma forma específica
de se relacionar com o outro. É ainda uma maneira de apresentar o
mundo à criança, bem como ela ao mundo a qual pertence.

A verdadeira escuta exige acolhimento e sensibilidade. O professor


precisa ser capaz de deslocar-se de seu contexto adulto e de seu status
como suposto detentor do conhecimento para ser capaz de reconhecer
um universo de saberes e possibilidades que já existem no repertório
das crianças. Afinal, “a partir da imagem que temos de criança, vamos

Parceria entre escola, família e comunidade 35


Vídeo moldar o modo como nos relacionamos com elas” (EDWARDS; GANDI-
A professora Gabriela NI; FORMAN, 2008, p. 61).
Tebet apresenta, neste
vídeo, um percurso histó- Nesse sentido, a pedagogia da escuta preocupa-se muito mais em en-
rico sobre a construção
social da concepção
xergar a criança naquilo que ela já é do que naquilo que ela ainda não tem.
de infância que nos Escutar exige atenção ao outro e ver possibilidades infinitas no encontro
auxilia a compreender
como a criança é vista
que ocorre entre crianças e adultos, permeado pela construção do conhe-
no período moderno e, cimento. Para Malaguzzi (1988 apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008),
a partir disso, como as
ideias pedagógicas vão
as crianças “são portadoras do inédito”, mas para enxergar a riqueza den-
sendo modificadas na tro delas, é preciso estar aberto, disponível, desenvolver a escuta genuína.
tentativa de aproximar-
-se desse novo sujeito Dessa forma, quando usamos o termo escuta da criança, não ne-
que emerge no mundo
contemporâneo. É um
cessariamente estamos falando sobre o movimento que ocorre entre
vídeo que complementa alguém falar (no caso, a criança) e o outro escutar (adulto, ou profes-
as discussões da primeira
parte deste capítulo.
sor). Se assim fosse, não poderíamos pensar na escuta dos bebês, por
exemplo, já que tal faixa etária não possui a linguagem verbal.
Disponível em: https://
www.youtube.com/
A pedagogia da escuta é muito mais ampla e complexa, pois refere-
watch?v=UmKmcOZlgRo. Acesso
em: 21 out. 2022. -se à capacidade do adulto de, em certa medida, traduzir as necessida-
des das crianças e com base nelas trilhar um percurso pedagógico de
interação e aprendizagem.

Para isso, é preciso que o profissional tenha subsídios teóricos que


o auxiliem a compreender a criança que está a sua frente e, mais que
isso, ser capaz de articular o campo teórico com as vivências do cotidia-
no que são específicas daquelas crianças, daquela turma, comunidade
etc. Escutar, nesse sentido, é um verbo ativo, de ação. Será a partir da
pedagogia da escuta que a abordagem de Reggio Emilia trará também
a ideia potente de que a criança é feita de 100 linguagens, conforme tão
bem nos apresenta o poema escrito por Loris Malaguzzi.

Em resumo, a criança que emerge a partir da pedagogia da escuta


é aquela conceituada por Malaguzzi quando nos esclarece sobre o pro-
jeto de Reggio:
Reggio Emilia, um projeto educacional abrangente para crian-
ças do nascimento aos 6 anos, baseia-se na imagem de uma
criança que tem um enorme potencial e que é dona de seus
direitos. O objetivo deste projeto é promover a educação das
crianças através do desenvolvimento de todas as suas lingua-
gens: expressiva, comunicativa, simbólica, cognitiva, ética,
metafórica, lógica, imaginativa e relacional. (MALAGUZZI, 2000
apud KINEY; WARTHON, 2009, p. 18)

36 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Por tudo isso, reitera-se a importância de pensar o termo pedagogia
da escuta como uma concepção de trabalho a ser perseguida pelos pro-
fissionais da educação, na tentativa de compreender a criança enquan-
to esse novo sujeito que nasce com o advento da modernidade e que
precisa encontrar, tanto na educação quanto na sociedade de forma
geral, espaço para suas múltiplas linguagens.

2.2 Relação professor-criança


Vídeo
Até aqui já foi possível compreender que as relações entre todos os
envolvidos na comunidade de Reggio Emilia são tão importantes que
não é possível compreender sua abordagem sem vislumbrar como as
pessoas estão intimamente ligadas umas com as outras, unidas por
uma espécie de fio condutor, que é seu projeto educativo. Assim, a rela-
ção professor-aluno é também tema central para a filosofia de Reggio,
de tal forma que a aprendizagem e as relações são compreendidas
como indissociáveis e partes de um mesmo processo.

Nesse sentido, destaca-se a premissa de que aprender não resulta


de ensinar, como algo automático e mecânico, mas é permeado por
uma série de condicionantes que vão compondo o processo, e os rela-
cionamentos entre as crianças e seus professores é uma delas.

Krakenimages.com/Shutterstock

Parceria entre escola, família e comunidade 37


Se já compreendemos que nas escolas de Reggio a concepção de
criança contempla um sujeito completo e integral em sua etapa de de-
senvolvimento, potente, criativo, capaz, produto e também produtor
de cultura, e que chega à escola com um repertório prévio de vida que
deve ser valorizado, a relação a ser estabelecida ganha status de parce-
ria, sem o objetivo de estabelecer nenhum tipo de hierarquia.

A compreensão dessa relação é fundamental, já que é um princípio


orientador do trabalho que as interações entre adultos e crianças se-
jam colaborativas e recíprocas.

Nessa proposta, o conhecimento também é ressignificado pois, em-


bora o professor seja reconhecido também como protagonista e pes-
quisador de sua própria prática, compreende o conhecimento como
um produto historicamente construído pela humanidade, mutável, re-
lativo e em constante construção. Adultos e crianças são pesquisado-
Figura 2
Relação entre professor- res ativos e atuantes em conjunto nos projetos e no desenvolvimento
-criança, permeada pelo das diversas aprendizagens.
conhecimento
Professor, criança e conhecimento, portanto, passam a formar
uma espécie de relação triangular, em que todos os lados são
Conhecimento iguais e conectados. A aprendizagem, pois, vai ocorrer a partir
(projetos) dessa relação. “Os indivíduos não podem apenas se relacionar
uns com os outros: eles precisam relacionar-se uns
com os outros acerca de algo” (EDWARDS; GANDI-
NI; FORMAN, 2008, p. 47).
Professor Criança
Estabelecer esse tipo de vínculo, contudo,
Artos/Shutterstock

não é algo automático e simples, pois exige uma


nova proposta do profissional, tanto em relação
às crianças quanto ao conhecimento. Por isso, a forma-
ção continuada dos professores é imprescindível na abordagem. Os
estudos, reflexões e compartilhamento entre os pares possibilitam o
olhar para a própria prática, as pesquisas relacionadas aos projetos
da turma e a clareza acerca dos processos pelos quais as crianças
perpassam e aprendem.

A formação permanente e em contexto permite a re-


flexão constante sobre o papel do professor na relação
Fonte: Elaborada pela autora.
com a criança em um sistema de trabalho extremamente
complexo. Afinal, embora as relações sejam horizontais e de parceria, o
professor precisa ser capaz de conectar as experiências das crianças e

38 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


transformá-las em aprendizagens. A escuta ativa permite identificar as Documentário
diferentes formas de expressão e os interesses das crianças, e a tarefa O documentário Quando
sinto que já sei, produzi-
do professor é a de “costurar” as diversas manifestações que emergem do em 2014, apresenta
nos tempos e espaços das escolas (e até mesmo fora delas, quando as propostas inovadoras na
educação brasileira, sain-
crianças trazem experiências de casa, por exemplo), transformando os do do modelo tradicional
interesses em projetos, e os projetos, em percursos de aprendizagem. e trazendo, na prática,
modelos alternativos de
Nessa perspectiva, “o papel do professor é o de protagonista” (RI- aprendizagem. Nesse
processo, a mudança na
NALDI, 2022, p. 106), mas seu trabalho e sua identidade vão sendo concepção da relação
construídos nas relações dentro da escola, entre seus pares, famílias e, professor-aluno fica
evidente e nos ajuda a
especialmente, com as crianças. A centralidade está nas relações e na repensar a educação,
ideia do potencial que existe em cada uma das crianças com as quais o não somente no contexto
italiano, mas vislumbran-
professor irá se relacionar. do que em nossa cultura
a mudança também é
Os projetos, por sua vez, emergem desse encontro entre os sujei- possível.
tos dessas relações. Malaguzzi levava tão a sério a escuta das crian-
Direção: Antonio Sagrado.
ças e os vínculos entre elas e seus professores que, ao abordar a Brasil: Despertar Filmes, 2014.
importância dos projetos na proposta pedagógica, utilizou a metá-
fora da morte para falar sobre o que ocorre quando as crianças não
têm o espaço da escuta:
Talvez não estejamos totalmente cientes do significado de proget-
tare, mas podemos ter a certeza de que, se tirarmos de uma crian-
ça a habilidade, a possibilidade e a alegria de projetar e explorar,
essa criança vai morrer. A criança morre se tirarmos dela a alegria
de perguntar, de examinar e de explorar. Ela morre se não perce-
ber que o adulto está suficientemente próximo para ver quanta
força, quanta energia, quanta inteligência, inventividade, capaci-
dade e criatividade ela tem. A criança quer ser vista, observada e
aplaudida. (MALAGUZZI, s.d., apud RINALDI, 2022, p. 108)
pimchawee/Shutterstock

Parceria entre escola, família e comunidade 39


Obviamente, o autor não falava da morte física, mas sim da morte
de toda e qualquer forma de expressão criativa de uma criança que
não encontra na escola um lugar de acolhida e de valorização de suas
diversas formas de expressão. Para ele, embora todo o contexto deva
ser educativo e valorizar a criança, o ponto principal se estabelece na
relação entre ela e o professor, pois será ele o responsável principal
por dar voz às “cem linguagens das crianças”.

2.3 Parceria entre família e


Vídeo instituição educativa
Como vimos, nas escolas de Reggio, historicamente, as famílias pos-
suem papel fundamental, já que literalmente colaboraram com a cons-
trução de suas paredes.

Com o passar dos anos, a consolidação de sua proposta pedagógica,


sua regulamentação e gestão pelo município trouxeram novos desafios
para que a participação das famílias continuasse a fazer parte de seu
projeto educativo. Muda a sociedade, modificam-se as estruturas familia-
res, muda-se também a escola. Frente a tais modificações, as escolas vão
criando novas estratégias de relação e parceria com as famílias, manten-
do, contudo, sua visão originária de que a educação das crianças, quanto
mais jovens elas forem, precisa ser compartilhada, mantendo um com-
promisso de continuidade, ou seja, a escola não é um local destituído das
demais instituições sociais, mas sim uma das partes de um conjunto de
uma sociedade integral, que deve, portanto, ter uma proposta que integre
e colabore com a construção de um ideal social.

As escolas de Educação Infantil de Reggio estão di-


vididas entre os nidi (creches para crianças até
os três anos) e as scuole dell’infanzia (centros
de educação para crianças entre três e seis
anos). Em ambas as estruturas, a parce-
ria com as famílias faz parte da proposta
pedagógica. No entanto, a abordagem
considera que no caso das creches, pela
especificidade etária de seu atendimen-
to, a inserção das famílias no contexto

Lightspring/
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40 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


educativo é ainda mais importante. Assim, abordaremos, em um primei-
ro momento, o trabalho dos nidi.

Um dos desafios encontrados pelas escolas de Reggio foi o de esta-


belecer a parceria e a confiança das famílias de crianças menores de três
anos de idade. No século XX havia muitos estudos abordando os prejuí-
zos psíquicos oriundos da separação de bebês e suas famílias, muito por
conta do cenário pós-Segunda Guerra. Além disso, o próprio histórico
das creches como locais de abrigo à infância pobre estigmatizava os lo-
cais destinados a atender tal público e dificultava o entendimento de que
uma proposta educativa para essa faixa etária também seria possível.

O trabalho em Reggio, que já ocorria para as crianças com idades


entre três e seis anos, passava a compreender também as crianças
menores, até então atendidas pelos nidi, que antes da municipaliza-
1
ção aprovada pela Lei n. 1044 vinculavam-se à assistência . Malaguzzi 1
destaca que, no primeiro centro voltado a esse público, o projeto ar- A municipalização dos nidi
não ocorreu automa-
quitetônico foi cuidadosamente planejado para atender às necessida- ticamente logo após a
des das crianças e suas famílias, de modo que compreendessem que promulgação da lei. Ri-
naldi (2022) destaca que,
poderiam vivenciar no espaço educacional um ambiente agradável e em 1984, 12 anos após a
acolhedor, assim como em suas casas. “Para nós, para as crianças e mudança na legislação, o
financiamento do Estado
suas famílias, abria-se a possibilidade de um período longo e contínuo ainda não era suficiente
de vida comum, desde o centro para cuidados na primeira infância até e grande parte do investi-
mento nas creches ficava
a pré-escola, ou seja, cinco ou seis anos de confiança e trabalho recí- sob responsabilidade dos
procos” (MALAGUZZI, 1984 apud RINALDI, 2022, p. 72). municípios. O governo
local de Reggio foi um dos
Rinaldi (2022) resgata importantes reflexões de uma conferência que se dispôs, mesmo
com o atraso na aplicação
que ocorreu ainda na década de 1980, em Veneza, que trazia informa- da lei, a investir em uma
ções sobre o histórico de participação das famílias nos nidi e os desa- educação de qualidade
para as crianças menores
fios contemporâneos dessa relação. A autora cita, então, alguns pontos de três anos.
fundamentais que nos auxiliam na compreensão sobre como efetiva-
mente ocorre essa pedagogia da participação.

O primeiro ponto se relaciona com o início do nosso capítulo, pois


aborda a construção sociocultural que emerge no século XX modifican-
do as concepções de infância e de família e que possibilitam que uma
proposta de participação ativa dos pais faça parte, de maneira institu-
cional, da proposta pedagógica das escolas.

Em seguida, aponta para a relevância da lei que municipalizou os


sistemas de Educação Infantil no país. Embora reconheça que a mu-

Parceria entre escola, família e comunidade 41


dança nas práticas não é automática, compreende uma vitória do pon-
to de vista legislativo e de garantia de direitos.

A partir dessas duas premissas iniciais, Rinaldi destaca que criança,


família e escola formam um sistema integrado que não pode ser dis-
sociado, de maneira que a dificuldade de um interfere nos outros dois.
Nessa medida, a qualidade dos nidi se relaciona com a boa comunica-
ção entre todos, o conhecimento das necessidades de cada um e as
possibilidades de encontros que precisam ocorrer nesse sistema.

Rinaldi conclui que a identidade das creches, portanto, forma-se


pautada nesse tripé, em que todos são fundamentais e os discursos
precisam necessariamente ser visíveis nas práticas cotidianas das ins-
tituições. Cita como exemplos os horários de atendimento em prol
das necessidades das famílias, o colegiado, a liberdade no trabalho e
as diversas formas de comunicação que precisam ser efetivas. Para
que tudo isso ocorra, o comprometimento é de todos e deve ocorrer
com esforços diários.

Por tudo isso, a autora coloca que a participação das famílias é im-
portante pois
é a expressão de valores importantes, pertence psicologicamen-
te ao conceito de nido, é biologicamente inata à própria idade
das crianças e é decisiva para a afirmação do conceito educati-
vo de nido. É por isso que o nido não pode apenas reclamar da
queda da participação e não pode renunciar à participação, em
especial o diálogo com as famílias, com os pais e com a comuni-
dade: sua própria existência e sobrevivência ficariam ameaça-
dos. (RINALDI, 2022, p. 65)

Com relação aos centros educativos para as crianças entre três e


seis anos, embora com um histórico de maior tempo de atuação envol-
vendo as famílias, há também desafios. Afinal, uma concepção de edu-
cação tão inovadora e que coloca a criança como central no processo
de aprendizagem precisa fazer sentido para as famílias, para que seja
possível a parceria no projeto educativo.

Uma questão importante, por exemplo, é o fato de que as famí-


lias compreendam o porquê de as crianças colaborarem na defini-
ção dos projetos. Se pararmos para pensar, é provável que a maioria
dos pais tenha a experiência como alunos em escolas tradicionais,
cujo modelo educativo e currículo já eram dados e o professor era
reconhecido como o detentor do conhecimento que deveria ser

42 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


transmitido aos alunos. Por isso, a metodologia de projetos pode
causar grande estranhamento nas famílias e é essencial que a escola
se aproxime dos pais, não somente para que possam compreender
a proposta, mas para que se sintam também pertencentes a ela e
possam ser sujeitos atuantes na escola.

Nesse sentido, a abordagem da documentação pedagógica é primor-


dial, já que a forma como os processos de aprendizagem são comunicados
aos pais faz toda a diferença na compreensão da proposta de trabalho.

Outra questão importante identificada pelos profissionais italianos


é o fato de que as crianças trazem muitos temas de interesse para a
escola, os quais surgem em suas casas ou até mesmo na vida em socie-
dade. Uma visita a um parque no final de semana pode despertar a
curiosidade por diferentes tipos de plantas, por exemplo. Ou ainda,
uma criança que vivencia algum tipo de reforma em sua casa pode
apresentar interesse em construir objetos a partir de materiais não es-
truturados. Em Reggio, as experiências extraescolares são valorizadas,
e quando alguma criança apresenta ao grupo algo que foi por ela viven-
ciado, o tema pode ser o disparador de um projeto. Quando isso ocor-
re, as famílias são também convidadas a participarem, e os diferentes
olhares acerca de um tema enriquecem a aprendizagem.

Ponto importante para Reggio são ainda os laços


construídos entre professores e famílias. Assim, nas
pré-escolas, por exemplo, a ideia é a de que um
mesmo professor permaneça durante os três anos
da pré-escola com a mesma turma, para que os
grupos atuem como pequenas comunidades,
nas quais todos se conhecem e têm laços afeti-
vos. Essa visão é importante quando se fala em
educação de crianças pequenas, pois os adultos
estão em constante relação com um objetivo co-
mum, que é o da parceria na construção de uma
Vectorfair/Shutterstock

educação de qualidade.

Nesse contexto, as escolas de Reggio são pen-


sadas para que seu funcionamento seja parecido
com grandes famílias e também como comuni-
dades. Os prédios são projetados de modo que
se assemelhem a grandes casas, para que seus

Parceria entre escola, família e comunidade 43


usuários (crianças, famílias e equipes), literalmente, sintam-se em um
ambiente familiar e acolhedor. Isso não significa, de maneira alguma,
que não é um local onde acontece um trabalho profissional e de exce-
lência em educação, mas tão somente é possível perceber que a qua-
lidade do trabalho se fundamenta essencialmente na qualidade das
relações que são estabelecidas nesse contexto e, para tanto, o espaço
de acolhimento de todos os seus usuários exerce função primordial.

Há grande preocupação em instituir os grupos como grandes famí-


lias. Porém, tratando-se de um trabalho pedagógico, ressalta-se que
os vínculos são parecidos com os de grandes famílias e comunidades
no que se refere aos diferentes papéis que cada um deve desempe-
nhar no contexto comunitário, na preocupação de uns com os outros
e no bom funcionamento de cada um de seus membros, do ambiente
familiar e acolhedor, entre outros. Contudo, manter o clima em uma
instituição educativa também encontra problemas, já que a escola não
é uma casa, e a escola, composta por todos os profissionais que dela
fazem parte, precisa ter em mente que deve desenvolver um trabalho
de cunho profissional, cujo objetivo se relaciona com o aprendizado e o
desenvolvimento das crianças.
As pré-escolas municipais de Reggio Emilia nos mostram uma
combinação ótima das qualidades dos relacionamentos em fa-
mília e integridade das práticas profissionais de excelência de di-
versas maneiras. Em primeiro lugar, a inclusão e o envolvimento
dos pais em cada aspecto do funcionamento da escola é deli-
berado e fundamental ao planejamento e operação das escolas
pré-primárias. (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 53)

Loris Malaguzzi, em entrevista realizada por Leila Gandini, trouxe


uma série de exemplos sobre como se efetiva a participação dos pais
nas escolas de Reggio.

Primeiramente, o autor destaca alguns prejuízos que a socieda-


de contemporânea coloca sobre as relações interpessoais: famílias
cada vez menores e cada vez mais isoladas, o aumento da violência
nas grandes cidades e uma vida moderna com pouco tempo para ex-
periências significativas aos sujeitos. A abordagem, segundo Mala-
guzzi, reconhece esse cenário presente na modernidade e caminha
na contramão dela, buscando estruturar seu projeto educativo em
uma pedagogia baseada nas relações e participações. Assim, algu-
mas ações das escolas são:

44 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


• A cada nova criança que ingressa • Os professores também
em uma sala de pré-escola, compartilham seus contatos
as famílias são convidadas a pessoais com todos os
organizar as boas-vindas. integrantes de seu grupo.

• As famílias compartilham umas • A escola organiza passeios


com as outras seus endereços a locais públicos da cidade
e contatos telefônicos e são e os pais são convidados a
incentivadas a manter contato participar junto com seus
mesmo fora do ambiente escolar. filhos.

• A escola incentiva que uma • A escola organiza eventos e


família visite a outra, que visitem celebrações, dos quais todos
inclusive o local de trabalho dos são convidados a participar,
pais e que organizem lanches mas também planejar e
coletivos em que todos cooperem organizar.
Abert/Shutterstock

e confraternizem.

Ao analisar as ações em prol do envolvimento das famílias, é pos-


sível identificar filosofia e valores educativos, pois se tratam de ações
que valorizam os relacionamentos, a cooperação e o esforço em cons-
truir e manter os vínculos entre todos.

Vejam que todo esse esforço em manter escola e família em um


mesmo núcleo comum possibilita a construção de uma relação de per-
tencimento àquela comunidade. A escola não é, pois, apenas um local
onde os pais deixam seus filhos para aprender os conteúdos escolares
e os buscam ao final do dia. A escola é um local de construção de valo-
res, de respeito mútuo, de convivência, de aprender com a diversidade.
Os pais não são chamados somente em dias de reunião pedagógica
ou quando há um problema. A opinião deles importa, construir uma
rede entre as famílias faz parte do projeto pedagógico, pois a ideia é
que cada um é importante para a construção do todo. Nessa medida, a
partir do momento em que há uma nova percepção sobre seu papel na
escola, cada membro da família passa a valorizá-la como sua também,

Parceria entre escola, família e comunidade 45


como a extensão de sua família. Então, apoiar os projetos ocorre como
um resultado de tal construção.

Agora, para nós, inseridos em outra cultura e dinâmica institucional,


é possível imaginar, na prática, como funciona a relação entre família e
escola em Reggio Emilia? Seria possível implementar esse modelo nas
escolas brasileiras onde atuamos, onde é comum, inclusive, que os pais
entreguem e busquem seus filhos no portão, sendo autorizados a en-
trar somente em momentos específicos do ano letivo?

Malaguzzi ressalta que o sucesso da parceria com as famílias está,


sobremaneira, atrelada à postura do professor, pois, a partir do mo-
mento em que esse profissional desvincula-se do modelo tradicional
da educação, deslocando-se do centro do conhecimento para se tornar
um professor pesquisador, reflexivo, que não tem receio de questio-
nar sua própria prática, compartilhar seus saberes e, sobretudo, estar
aberto e disponível a aprender com todos, consegue aproximar-se das
famílias e construir uma parceria profícua. Segundo Malaguzzi
os professores devem ter o hábito de questionar suas certezas,
devem possuir uma sensibilidade imensa, devem ser conscien-
tes e estar disponíveis; devem assumir um estilo crítico em rela-
ção às pesquisas e um conhecimento continuamente atualizado
sobre as crianças, devem manter uma avaliação enriquecida do
papel dos pais, e devem possuir habilidades para falar, ouvir e
aprender com estes. (MALAGUZZI, 1988 apud EDWARDS; GANDI-
NI; FORMAN, 2008, p. 80)

Estes seriam pressupostos fundamentais para a efetiva e concreta


parceria entre escola e família, sem a qual, para Reggio, não é possível de-
senvolver uma proposta educativa que tenha a criança como um sujeito in-
tegral, que precisa ser visto em todos os seus aspectos de desenvolvimento,
inclusive os sociais, o que envolve a relação com a família e a comunidade.

Artigo

https://www.scielo.br/j/cp/a/P5mbTTTZzbrKjfVtYmDmNrr/abstract/?lang=pt

A parceria escola e família tem sido objeto de estudo e problematização tam-


bém no cenário brasileiro. No entanto, os desafios ainda são enormes para que
de fato essa partilha em prol das crianças ocorra de maneira mais efetiva. No
artigo O compartilhamento da educação das crianças pequenas nas instituições de
educação infantil, a professora Maria Aparecida Monção, estudiosa e defensora
da parceria entre família e escola, apresenta uma pesquisa realizada em uma
instituição de Educação Infantil que nos auxilia a pensar nas dificuldades e
possibilidades de atuação sobre essa temática tão importante.
Acesso em: 24 out. 2022.

46 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


2.4 Relação entre escola e comunidade
Vídeo
Se a participação das famílias nas escolas de Reggio já nos parece
uma prática um tanto distante de nossa realidade, demandando tanto
um conhecimento prévio acerca das concepções teóricas quanto uma
ideia, ao menos básica, de questões culturais que envolvem aquela co-
munidade, mais complexo ainda nos parece compreender uma escola
ou um sistema educacional de um município em que todos são convi-
dados a participar de maneira ativa e robusta da proposta educativa.

Como sabemos, a participação da comunidade nas escolas de


Reggio Emilia ocorre desde sua fundação, quando essas instituições
sequer faziam parte de uma rede de ensino e estavam simplesmen-
te tentando reconstruir sua sociedade. Mas o fato é que a partir da
década de 1970 a ação da comunidade no sistema educativo ganha
status oficial, o que contribuiu para a consolidação de tal prática. A
oficialização, por parte do governo, faz com que as iniciativas que já
ocorriam nas escolas não ficassem isoladas ou com ações díspares, e
torna-se um modelo participativo e democrático pertencente à pro-
posta pedagógica de Reggio.

Com a municipalização das creches e pré-escolas no ano de 1971,


o governo passa a oferecer os subsídios financeiros enquanto a ad-
ministração das instituições fica sob responsabilidade dos municí-
pios, que, por sua vez, passam a construir uma gestão baseada na
sua própria comunidade. Para tanto, indicam que: “A administração
baseada na comunidade não é tanto um sistema de governo quanto
um ideal filosófico que permeia os aspectos da experiência educa-
cional como um todo” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 107).

Atuação social e gestão devem, nessa perspectiva, construir


um ideal filosófico de educação na busca por uma expe-
riência educacional compartilhada. Isso significa dizer
que, embora cada membro da comunidade pos-
Stefano Garau/Shutterstock

sua papéis diferentes e definidos, tudo deve


ser de conhecimento de toda a comunidade,
desde os recursos e financiamentos do Es-
tado até a proposta pedagógica, seus con-
teúdos e metodologia de trabalho. A partir
de tal publicização, cada um poderá parti-

Parceria entre escola, família e comunidade 47


cipar de um projeto educacional que não se restringe aos muros
da escola, mas faz parte de um projeto social que compreende a
criança como um sujeito, cuja educação é de responsabilidade de
todos. Considera, portanto que: “O período entre o nascimento e
os seis anos de idade deve ser visto como um recurso precioso
de potencial humano, cuja sociedade que olha para o futuro deve
estar preparada para investir responsavelmente” (EDWARDS; GAN-
DINI; FORMAN, 2008, p. 107).

A participação da comunidade ocorre por meio do que é denomi-


nado junta de conselheiros (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008). Essa
forma de organização se insere em uma experiência de gestão social,
que, por sua vez, é parte integrante da abordagem Reggio.

O objetivo central da gestão social é a promoção da interação entre


todos: famílias, educadores, crianças e comunidade. Representantes
de cada um desses segmentos compõem a junta de conselheiros, que
Leitura são eleitos entre os pares para gestões bianuais.
Ao estabelecer o diálogo
entre o projeto social de Cada escola do sistema municipal tem sua própria junta e para cada
Reggio e a sociedade bra- uma delas são eleitos membros com atribuições como participar de
sileira, percebemos que
para nossas escolas ainda reuniões promovidas pelo Conselho Municipal de Educação, conjunta-
há muito o que caminhar mente com membros do governo da cidade. Exemplificando tal organi-
no sentido de que escola
e vida em comunidade zação, podemos citar a seguinte configuração: “A Junta de Conselheiros
estejam conectadas. No de uma pré-escola com 75 crianças pode ser composta por 19 pais,
entanto, algumas escolas
desenvolvem iniciativas 13 educadores e 7 munícipes. Dentro de cada Junta, um grupo de vo-
que corroboram para luntários assume a administração: eles elaboram agendas e planos de
esse movimento. A repor-
tagem indicada apresenta emergência, processam as preocupações e as propostas dos pais, etc.”
um projeto desenvolvido (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 108).
em uma escola de Educa-
ção Infantil que entende Além do caráter administrativo, os integrantes da junta podem assu-
que exercer cidadania é
participar da vida da cida-
mir outros papéis, como: organizar encontros temáticos; definir ações
de. Assim, desenvolveram necessárias para a melhoria dos espaços da escola; buscar estratégias
o projeto Motoca na Praça,
que pretende, por meio
para o envolvimento dos pais, entre outros.
da ludicidade, levar as
crianças ao exercício de
A participação da comunidade por meio das juntas indica que há
sua vida cidadã. um modelo organizacional estruturado, com objetivos claros voltados
Disponível em: https://lunetas. à qualidade da educação da primeira infância, metas e estratégias de
com.br/projeto-motoca-na-praca/.
ação que integram um sistema que vai desde o prefeito da cidade e sua
Acesso em: 22 set. 2022.
equipe até a gestão das escolas, educadores, pais e cidadãos em geral.

48 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Conhecendo um pouco sobre a participação da comunidade é
possível notar que o sistema de Reggio preza por uma gestão de-
mocrática e descentralizada, em que todos têm direito à voz. Acima
de tudo, uma gestão que acolhe as diferenças, porém, atua em prol
de um objetivo comum: uma educação de qualidade, que respeite e
valorize a infância, compreendendo a criança como essencial para
uma sociedade igualitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudar a pedagogia da escuta e da participação talvez seja a parte
mais complexa acerca das investigações sobre a abordagem italiana de
educação. Isso porque, para sua compreensão, é preciso um deslocamen-
to da experiência cultural e social que vivenciamos em nossa sociedade,
para pensar a partir de um modelo muito diferente do nosso.
Reggio Emilia não somente coloca a criança como centro no processo
de aprendizagem, em detrimento do professor (o que não significa tirar seu
protagonismo), mas também compartilha com a comunidade a administra-
ção da gestão escolar. Sob um olhar superficial, podemos imaginar que é um
modelo que retira o “poder” da escola, ficando fragilizado e atuando de ma-
neira assistencial na tentativa de atender demandas específicas das famílias.
Pensar dessa forma revela que ainda carregamos em nossa história,
especialmente da Educação Infantil, uma trajetória fragmentada entre
educação e assistência e a falta de políticas públicas, o que por muito
tempo estigmatizou a creche, por exemplo, como local de abrigo para as
crianças pobres. A partir do momento em que a Educação Infantil no país
passa a fazer parte da Educação Básica, há um ganho enorme do ponto
de vista legislativo, pois o atendimento à infância passa a ser direito de
todas as crianças. Contudo, o avanço educacional e o novo olhar para as
práticas pedagógicas voltadas à infância muitas vezes acaba por desconsi-
derar as questões sociais na tentativa de negar o passado. Na realidade, é
preciso entender que educação e assistência, especialmente em um país
tão desigual como o nosso, podem ser componentes complementares.
Trazer a família para perto e compreender suas demandas não exclui a
proposta educativa, na mesma medida, realizar um trabalho que cons-
cientize a comunidade de que cuidar da infância deve fazer parte de um
projeto educativo da sociedade e requer esforços das equipes. Somente
com a parceria é possível modificar concepções e ações.

Parceria entre escola, família e comunidade 49


ATIVIDADES
Atividade 1
Por que é possível considerar a infância como construção
histórica?

Atividade 2
Quais as premissas básicas para a construção de uma prática
baseada na pedagogia da escuta?

Atividade 3
Quais ações são consideradas como exemplos da participação das
famílias nas escolas de Reggio?

REFERÊNCIAS
EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança. A abordagem de
Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância. Porto Alegre: Artmed, 2008.
GANDINI, L.; HILL, L.; CADWELL, L.; SCHWALL, C. O papel do ateliê na educação infantil. A
inspiração de Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso, 2012.
KUHLMANN JÚNIOR, M. Infância e Educação Infantil, uma abordagem histórica. Porto Alegre:
Artmed, 2015.
RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia. Escutar, investigar e aprender. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2022.
KINNEY, L.; WHARTON, P. Tornando visível a aprendizagem das crianças. Educação Infantil
em Reggio Emilia. Porto Alegre: Artmed, 2009.

50 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


3
O papel da
documentação pedagógica
A documentação pedagógica se configura como um dos pilares da
abordagem de Reggio Emilia. Sendo compreendida como importante
ferramenta que materializa a aprendizagem das crianças, é uma pro-
posta de trabalho complexa, que requer estudos, reflexões e aprofun-
damento por parte dos profissionais da educação que atuam na rede
de Educação Infantil italiana.

Documentar faz parte da identidade de Reggio e de seus estudos


desde os primórdios. Assim, neste capítulo iniciaremos as discussões
trazendo a importância do ato de documentar, tanto como ferramenta
humana quanto como parte dos processos educativos. Especialmente
pela história das escolas italianas, trazemos a ideia de documentar como
um ato político em defesa da educação pública e laica de qualidade.

Após discorrer acerca desses primeiros elementos, trazemos a di-


ferença entre documentação e registro, buscando encontrar os limites
que as escolas brasileiras ainda encontram e tentam superar, a fim de
realizarem documentações de qualidade.

Em seguida, traremos pontos importantes que revelam e dão visi-


bilidade às aprendizagens, bem como exemplos de trabalhos que per-
mitem a visualização, de fato, das crianças em atuação nos projetos.
Por fim, apresentaremos ideias de materiais que contribuem para dar
visibilidade às propostas. Sem dúvida, será uma leitura primordial na
compreensão de Reggio.

O papel da documentação pedagógica 51


Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• compreender o conceito de documentação pedagógica e sua
finalidade;

• perceber a importância de documentar os percursos de aprendiza-


gens das crianças;

• refletir sobre a importância de o professor dar visibilidade às pro-


duções das crianças;

• conhecer diferentes formas de documentação pedagógica e seus


usos na Educação Infantil.

3.1 Por que documentar?


Vídeo
Iniciamos o capítulo com uma pergunta fundamental: por que docu-
mentar? De acordo com o dicionário, a palavra documentar indica “teste-
munhar, registrar algo através de documentos” (MICHAELIS, 2022). Para
o ser humano, desde as mais antigas civilizações, o ato de registrar infor-
mações sobre seus modos de vida parece ter relevância em um contexto
de organização social de determinado grupo. Como exemplo, podemos
pensar nos registros da escrita cuneiforme, utilizada há cerca de 3500 a.C.,
que trazia, por meio de registros em argila e com símbolos em formato de
cunha, cenas do cotidiano vivido pelos sumérios, na Mesopotâmia.

Tomsickova Tatyana/Shutterstock

52 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Ao documentar, registrar, contamos histórias, demarcamos os tem-
pos e espaços. Ao registrar, o ser humano avança em seu processo civi-
lizatório, uma vez que possibilita que sociedades posteriores conheçam,
por meio dos documentos produzidos, um pouco sobre seu passado,
sobre acontecimentos importantes e sobretudo a respeito daquilo que a
sociedade gostaria de transmitir às gerações futuras. Afinal, não é tudo
que se documenta, mas especialmente aquilo que se deseja perpetuar.

Historicamente, a escola também produz seus documentos. Sen-


do uma instituição marcada fortemente pelos registros escriturários,
verificamos a produção de materiais no âmbito administrativo-peda-
gógico. Documentos referentes às matrículas dos alunos, projeto po-
lítico-pedagógico, histórico escolar, regulamento, diário de classe são
exemplos de registros encontrados e que narram a história das escolas
e daqueles que ali estiveram. Na sala de aula, os cadernos registram as
matérias que, por sua vez, trazem conhecimentos acerca de temas re- 1
levantes à época e que compuseram o currículo daquela escola. Provas É certo que hoje, prin-
1
e trabalhos compõem o acervo documental . cipalmente no campo
da historiografia, as
Essa materialidade foi sendo constituída pelo modelo tradicional fontes históricas não se
restringem aos docu-
da escola. Contudo, quando pensamos na Educação Infantil e especial- mentos escritos, e, cada
mente em Reggio Emilia (e em tudo o que estudamos sobre ela até vez mais tem-se pensado
na importância de uma
aqui), percebemos que, ao menos no que se refere às produções dos “história das coisas”,
alunos e seus professores em sala de aula, a forma tradicional de docu- pautada em produções
materiais, objetos que,
mentar a vida da escola não seria suficiente para contemplar um novo por seus contextos de
modelo pedagógico que pretende romper com práticas que não tra- criação e formas de uso,
são capazes de narrar
zem a criança como protagonista do processo. histórias que ficariam
limitadas apenas à análise
Dessa forma, assim como a escrita cuneiforme é considerada a lín- da documentação. Como
gua escrita mais antiga de que se tem registro e faz parte da história veremos, a documentação
em Reggio Emilia também
humana da aquisição da escrita, documentar para Reggio também é não se restringe aos
constituinte de sua prática e abordagem educativa desde seus pri- documentos escritos.

mórdios (sendo desenvolvida e aprimorada através dos anos), com-


pondo sua gama de ações pedagógicas baseada na
pedagogia da escuta e nas metodologias ativas.
Documentar em Reggio é também
uma forma de materializar sua abor- majivecka/Shutterstock

dagem, uma prática conectada às


demais, pensada e refletida em seu
contexto de produção. Como veremos,
é um processo complexo, mas funda-

O papel da documentação pedagógica 53


mental e, retomando a questão inicial do capítulo - Por que documen-
tar? - , Malaguzzi, com sua sabedoria, em uma frase simples seria capaz
de responder: documenta-se, pois “o que não se vê, não existe” (2005
apud FOCHI, 2019, p. 224).

Nesse sentido e a partir da concepção acerca do ato de documen-


tar, salientamos, com as reflexões de Fochi e Pinazza (2018), que ao
realizar tal prática, a ideia não é a de simplesmente realizar um registro
que será mostrado às famílias. Documentar não se configura como um
acessório do trabalho, tampouco um elemento de finalização dos pro-
jetos, ou ainda, como comumente verificamos na prática de algumas
escolas brasileiras, um compilado de “trabalhos” enviados às famílias
ao final do ano. Assim como na Mesopotâmia, o ser humano sentiu a
necessidade de materializar, por meio de registros, sua vida em socie-
dade. A documentação que aqui defendemos por meio da filosofia de
Reggio se relaciona ao fato de que, à medida que a escola se propõe a
olhar para sua prática, considerando-a inadequada às novas concep-
ções de infância e educação que despontavam na segunda metade do
século XX, perpetuar a mesma organização didática já não fazia mais
sentido. Inserida nesse contexto, a documentação pedagógica também
passa a ser repensada, de modo que todos os elementos da ação peda-
gógica estejam em consonância. De acordo com Fochi e Pinazza (2018):
Ocorre que, na medida em que se busca a construção de um novo
paradigma na pedagogia realizada nas escolas de educação infantil,
também começa a se fazer necessária a construção de uma nova
didática de trabalho, já que os modelos que conhecemos não res-
pondem à complexidade tanto da atuação das crianças como do
profissional que com elas trabalha. (FOCHI; PINAZZA, 2018, p. 13)

Pensar sobre a importância e a forma de documentar parece ter sido


um esforço em Reggio Emilia desde sua criação. Em um momento em que
se fazia fundamental mostrar à comunidade que a educação das crianças
pequenas deveria ser preocupação de todos e ofertada com a máxima
qualidade possível, seria então papel da escola tornar visíveis as práticas
que ocorriam em seu interior, demonstrando o quão complexo e rico é o
contexto da pedagogia voltada à primeira infância. Para Malaguzzi, só as-
sim a sociedade seria capaz de valorizar as escolas de Educação Infantil,
colocando-as em posição de destaque dentre as instituições sociais. Aqui,
podemos obter mais uma resposta quando questionamos acerca do ato de
documentar. Documenta-se em Reggio também como um posicionamento

54 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


político, quando a escola compreende que um de seus papéis é demonstrar
a importância de uma Educação Infantil pública, laica e com a maior e me-
lhor qualidade possível.

Ao longo dos anos, a documentação pedagógica em Reggio foi sendo


aprimorada e repensada, sendo hoje referência quando se trata da temá-
tica. Isso porque, ainda que as escolas de Educação Infantil tenham, em
certa medida, superado o modelo tradicional de documentação, ainda há
muito o que se aprender com a abordagem italiana. Muitas escolas hoje
são capazes de produzir inúmeros materiais que trazem a perspectiva da
criança em seu processo. Fotografias, filmagens, desenhos, portfólios, en-
tre outros, são, em geral, produções que comumente as escolas divulgam
nas reuniões de pais ao final de cada período letivo, e isso já é um avanço
se pensarmos que, na história da Educação Infantil, muitas vezes na tenta-
tiva de romper com um modelo de assistência, acabamos nos aproximan-
do de práticas do Ensino Fundamental que acabavam por descaracterizar
as especificidades da faixa etária.

Reggio nos mostra que documentar precisa ser mais que isso. Não
pode ser um compilado de materiais a ser enviado às famílias no final
do ano. Não é somente a capacidade de comunicar acerca do trabalho,
mas extrapolar tal prática e compreender que a documentação é uma
estratégia pedagógica de trabalho que deve ter início quando se come-
ça a pensar nos caminhos do projeto da turma, sendo capaz de narrar
a história do grupo, construir suas memórias, identificar suas transfor-
mações, suas formas de linguagem e expressão e suas aprendizagens.
A partir desse novo olhar sobre a documentação, publicizar o trabalho
às famílias e à comunidade não se torna uma finalidade da documen-
tação, mas parte de um processo complexo que vai além.

Há ainda outra finalidade identificada no ato de documentar que


se refere à capacidade de, por meio dele, avaliar. Se a documentação
ocorre durante o percurso de aprendizagem, o professor precisa ser
capaz de, a cada produção, olhar para o produto, avaliar o andamento
do trabalho, reavaliar seus passos e, essencialmente, ser capaz de se
autoavaliar. Só assim a documentação faz sentido como processo. É
um movimento constitutivo daquilo que compreendemos como peda-
gogia da escuta, visto que, ao olhar para as produções das crianças,
o profissional vai identificando seus interesses, ideias, formas de lidar
com os temas emergentes no projeto e, assim, vai delineando sua pro-
posta que, como sabemos, não é pré-determinada, mas fruto de uma

O papel da documentação pedagógica 55


construção coletiva. De acordo com Rinaldi (2022), a documentação,
em suas mais diversas apropriações, pode:
Tornar visível (embora de maneira parcial e, assim, partidária)
a natureza dos processos de aprendizado e as estratégias utili-
zadas por cada criança, e transformar os processos subjetivos e
intersubjetivos em patrimônio comum.

E ainda,
Vídeo
Possibilitar a leitura, a revisitação e a avaliação, no tempo e no es-
Nesta seção, citamos o paço, de forma que essas ações se tornem partes integrantes do
surgimento da escri-
ta cuneiforme para
processo de construção do conhecimento. (RINALDI, 2022, p. 130)
abordar a questão da
documentação como
Ponto crucial que também contribui para que possamos trazer a
produção histórica. Assim, discussão sobre o ato de documentar está relacionado à construção
indicamos esse pequeno
vídeo que apresenta de
da memória da escola. Para Fochi e Pinazza (2018), a documentação
maneira sucinta a escrita pedagógica se configura como prática essencial para o reconhecimento
e sua contribuição na
documentação, para a
e produção de uma memória educativa que, dentre outras práticas, é
compreensão de nossas responsável por desenvolver o sentimento de identidade que é próprio
discussões.
de uma educação voltada às crianças pequenas.
Disponível em: https://
www.youtube.com/ Assim, encerramos esta primeira seção com respostas que nos au-
watch?v=tUWIpzYaKXw. Acesso
xiliam a compreender o que significa a abordagem da documentação
em: 8 nov. 2022.
pedagógica em Reggio Emilia. Documenta-se pois:

• Documentar é um ato político. • Documenta-se para avaliar


• Do documentar, os processos e autoavaliar (equipe).
de aprendizagem tornam-se • Documenta-se para
visíveis. produzir memórias.
• Documenta-se como um • Documentar é também
processo, a construção de planejar o futuro.
um caminho a ser percorrido
pelas crianças, individual e
coletivamente.
• Documentar é compartilhar.
• Documentar faz parte da
consolidação da proposta
pedagógica.
Abert/Shutterstock

56 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


3.2 Tornando visível a aprendizagem
Vídeo das crianças
Se no modelo tradicional de ensino a escola verifica o que a criança
aprendeu por meio de produções como provas e avaliações, na Educa-
ção Infantil não há espaço para esse formato, até porque não trabalha-
mos com tal ideia de avaliação.

Em Reggio, tornar visível diz respeito a, por meio da observação e


da escuta da criança, possibilitar que seu percurso de aprendizagem se
materialize por meio das diversas linguagens que extrapolam provas e
trabalhos convencionais.

Agora que já compreendemos a importância da documentação


para a proposta pedagógica de Reggio, vamos pensar sobre como tais
produções possibilitam que as aprendizagens das crianças se tornem
de fato visíveis no espaço educativo e até mesmo fora dele. Para tanto,
abordaremos os seguintes pontos:
• Diferença entre documentação pedagógica e registro.
• Os passos que antecedem as exposições dos trabalhos e as vá-
rias formas de terem visibilidade.
• A relação que cada sujeito envolvido no processo desenvolve
com a documentação.

No primeiro ponto, é importante destacar que a documentação tor-


na visível determinada concepção de criança, de professor e de escola,
compondo um trabalho no qual todos os elementos estão conectados.

ock
hutterst
Adsara/S

O papel da documentação pedagógica 57


Os autores associam tal conexão como um “movimento de espiral” que
perpassa pela observação, pela interpretação e finalmente pela docu-
mentação, em um mecanismo que vai e volta continuamente, de modo
que tais ações nunca ocorrem isoladamente.

Dessa forma, ao abordarmos a diferença entre documentação e re-


gistro, percebemos a complexidade do primeiro movimento, enquan-
to o registro seria algo que, apesar de importante, não seria capaz de
provocar uma mudança de concepção da ação pedagógica, tampouco
esse espiral que conduz a prática. Fochi e Pinazza (2018) nos alertam a
respeito desse ponto, indicando que por meio de pesquisas no cenário
brasileiro, verificam o fato de que, apesar de muitas escolas demons-
trarem se empenhar em qualificar os registros dos trabalhos na Edu-
cação Infantil, o aprofundamento necessário para alterar as práticas
ainda é uma conquista a ser perseguida. Para os autores:
o que se pratica correntemente sob a denominação de “docu-
mentação pedagógica”, não raro, se trata de uma coleção de
meros registros escritos, fotográficos, em vídeos ou em áudios,
que não atingem o estatuto de uma documentação pedagógica
e tampouco provocam a tão sonhada transformação na prática
educativa. (PINAZZA; FOCHI, 2018, p. 16)

A facilidade de acesso às novas tecnologias é um dos fatores que


possibilitaram, por exemplo, um aumento dos registros fotográficos
nas escolas. É muito comum que os professores fotografem diversos
momentos da rotina, as crianças em interação com seus pares, nas
vivências pedagógicas, entre outros. Muitas escolas, inclusive, optam
por divulgar o trabalho por meio de sites, blogs ou redes sociais, cujo

Nosyrevy/Shutterstock

58 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


acesso é compartilhado com as famílias. À parte de toda a discussão
sobre uso de imagens, que é também um tema importante quando se
trata da divulgação de materiais que envolvem a exposição de crianças,
tais práticas não deixam de se configurar como um tipo de registro do
trabalho pedagógico.

No entanto, Reggio Emilia nos ensina que, para que se ganhe status
de documentação pedagógica, as imagens precisam de outro olhar dos
profissionais da educação. Olhar esse que só conseguimos desenvolver
por meio dos estudos e aprofundamento teórico e, especialmente, por
meio de uma constante avaliação/reflexão sobre nosso trabalho e pro-
pósito para a educação da infância.

Antes da fotografia, portanto, há que se ter a problematização da


vivência a ser proposta. O que se pretende com tal atividade? Quais as
hipóteses iniciais de aprendizagem que o professor tem ao levar para
o espaço determinado material? Quais os desafios propostos? Quanto
tempo a experiência está prevista para durar? Essas são questões que
devem constar de um planejamento pedagógico que antecede a situa-
ção de aprendizagem.

Com base nesse planejamento sistematizado, o professor pode fo-


tografar as crianças em interação com a proposta, já com certa inten-
cionalidade (afinal, a pedagogia de projetos que emergem do cotidiano
não exclui o planejamento prévio e a intencionalidade pedagógica). Não
somente as fotos, mas vídeos e gravações que contemplem as falas das
crianças contribuem para que, posteriormente, o professor possa revi-
sitar esse material, verificando se suas hipóteses foram confirmadas ou
se as crianças criaram novas formas de apropriação e novas experiên-
cias com os objetos e com o espaço, se permaneceram por um período
considerável de tempo em interação, ou se logo dispersaram, enfim,
nesse momento, a documentação tem caráter avaliativo para que no-
vas propostas sejam produzidas a partir de então.

Em um segundo momento, a documentação precisa estar em diá-


logo com as teorias que subjazem à proposta pedagógica. Ou seja,
precisa pensar a experiência à luz do conhecimento acerca das apren-
dizagens e do desenvolvimento das crianças. Novos registros são pro-
duzidos pelo professor.

Por fim, a documentação que foi amplamente refletida e repensada


vai se tornar visível às crianças, à equipe e à comunidade que faz parte

O papel da documentação pedagógica 59


da escola. As fotografias, portanto, devem ser acompanhadas de trans-
crições das narrativas infantis, dos objetivos de aprendizagem, de pro-
duções diversas (desenhos, pinturas, objetos, a depender do trabalho
realizado), compondo um leque de materialidades que, enfim, podem
ser consideradas como documentação pedagógica.

A abordagem da documentação é tão potente que estudiosos


de várias partes do mundo buscam inspiração em Reggio. Rinaldi
(2022) destacou que Howard Gardner, conhecido autor da teoria
das inteligências múltiplas, realizou um projeto em parceria com
as escolas italianas, em que considerou a importância da docu-
mentação no processo de ensino/aprendizagem que ocorre na sala
Leitura
de aula, ou seja, na interação entre as crianças, professores e os
Organizado pelo profes-
sor Paulo Fochi, referência temas de interesse. A documentação seria, “em primeiro lugar e
em Educação Infantil no acima de tudo, uma ferramenta educacional, mas também uma
país, o material Documen-
tação pedagógica: uma grande oportunidade” (RINALDI, 2022, p. 119).
possibilidade metodológica,
produzido em parceria Essa grande oportunidade identificada por Gardner diz respeito a
com a Unesco, apresenta todo o processo narrado até aqui, à possibilidade de avaliação do tra-
uma possibilidade meto-
dológica de produção da balho por parte do professor e também à relação muito particular com
documentação pedagógi- que cada sujeito pertencente à escola desenvolve com a documentação.
ca nas escolas voltadas à
infância. Para isso, o autor Para as crianças, tornar visível suas produções, além de possibilitar
traz ideias da abordagem
Reggio Emilia como ins-
que se sintam valorizadas em seus trabalhos, que desenvolvam o sen-
pirações para o trabalho timento de identidade do grupo, elas podem visualizar uma “memória
nas escolas brasileiras.
É um material pouco
concreta” acerca das experiências que tiveram na escola, podendo, in-
conhecido, mas que faz clusive, revisitá-las por meio dos materiais das exposições e pensarem
parte da gama de produ-
ções nacionais em prol da
nos próximos caminhos dos projetos.
qualidade da Educação
Infantil em nosso país.
Para os professores, como já foi dito, é uma oportunidade contínua
de avaliação e aprimoramento de seu trabalho. Por fim, para a comu-
Disponível em: https://www.obeci.
org/_files/ugd/d6771e_ c937815f nidade escolar é uma oportunidade de conhecer a vida da escola, cola-
540b4ce1b5c85d47801d0bd4.pdf.
borar com ideias para os projetos, participar e, acima de tudo, valorizar
Acesso em: 9 nov. 2022.
a educação da infância.

3.3 Percursos de aprendizagem


Vídeo
Vamos visitar aqui dois exemplos de documentação pedagógica que
emergiram de projetos em Reggio Emilia e que fazem parte de nossa
bibliografia de estudos, na tentativa de inspirar e colaborar com a com-
preensão sobre como ocorre a documentação nas escolas italianas.

60 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


O primeiro, que culmina em uma exposição, refere-se a um projeto de- 2
senvolvido com uma turma de pré-escola, com crianças entre 4 e 5 anos, A descrição do projeto
2 encontra-se no livro As
em uma das escolas do município de Reggio Emilia . O interesse por um cem linguagens da Criança
tema do cotidiano das crianças emergiu e se transformou em projeto, fato (1999), que é uma das
referências bibliográficas
que é bem comum nas escolas italianas, como indicam os autores: de nosso livro.

Projetos que investigam fenômenos reais oferecem às crianças


a oportunidade de serem “antropólogos naturais”, que parece
terem nascido para ser! Por outro lado, se um tópico de um pro-
jeto é exótico e está fora de suas experiência direta, elas acabam
por depender do professor para a maioria das questões, ideias,
informações, reflexões e planejamento. (EDWARDS; GANDINI;
FORMAN, 2008, p. 41)

Na proposta em questão, a temática do supermercado foi eleita


para desenvolver o percurso de aprendizagem daquele grupo. Assim,
dentre as vivências do trabalho, a visita a um mercado foi uma rica
experiência que possibilitou uma série de vivências pelas crianças: pas-
searam pelos corredores, viram, escolheram e compraram produtos,
conversaram com funcionários e, inclusive, entrevistaram o gerente.
Todas essas ações foram registradas pelo professor, por meio de grava-
ções das falas das crianças. Ao retornarem à escola, as produções gráfi-
cas (desenhos) foram também formas de registrar aquela experiência.

Como já foi dito, embora os desenhos das crianças sejam essenciais


para o registro desta etapa do projeto, a abordagem da documentação
indica que tal produção, por si mesma, fica incompleta e não se traduz
a complexidade da abordagem. Assim,
Os desenhos significam relativamente pouco sem a documen-
tação feita pelos professores daquilo que as crianças disseram
sobre o que observaram e viveram. Gravados, os comentários e
discussões das crianças ofereceram aos professores um conhe-
cimento sobre seus níveis de entendimento e seus enganos de
percepção sobre fenômenos cotidianos. (EDWARDS; GANDINI;
FORMAN, 2008, p. 39)

Desenhos e gravações foram analisados posteriormente, tanto


pelas crianças quanto pelos professores, e juntos pude-
Adsara/Shutterstock

ram pensar em novas etapas para o projeto a partir


daquilo que mais provocou e instigou a criativi-
dade das crianças e aquilo que mais contribuiu
para o desenvolvimento de suas aprendizagens.
A questão da entrevista, por exemplo, muito pro-

O papel da documentação pedagógica 61


vavelmente possibilitou que as crianças ouvissem a experiência de
um profissional, mas também puderam ser ouvidas, quando fizeram
sugestões sobre o que gostariam que o supermercado tivesse.

Por isso, é comum que a experiência que antecede o desenho (no


exemplo em questão, a visita ao supermercado) e o próprio momen-
to de desenhar contem com gravadores para o registro das falas das
crianças. Depois, as crianças retomam suas produções analisando,
conversando sobre e tendo a possibilidade de ouvirem seus diálo-
gos, elevando a qualidade daquela experiência. O professor, por sua
vez, ao dispor de todos esses elementos, vai também refletir sobre
cada um deles, trazendo sentidos e significados. A partir dali, é ca-
paz de pensar nos próximos passos do projeto. Desse movimento
nasce também a documentação em formato de exposição dos traba-
lhos, que pode conter os desenhos junto com transcrições das falas
das crianças, registros fotográficos que complementam a produção
gráfica e pode, no diálogo com as questões teóricas referentes à
aprendizagem, indicar àquele que visualiza a documentação (famí-
lias e comunidade) quais os conhecimentos promovidos por aquela
experiência. Isso tudo não espera por uma reunião ao final do ano,
mas ocorre concomitante ao projeto.

Esse movimento que engloba as exposições dos trabalhos é dinâmi-


co dentro das escolas, de modo que o tempo todo é possível verificar
modificações nos espaços, já que a cada nova descoberta e aprendiza-
gem uma exposição pode ser desenvolvida por professores e crianças.

As produções materializam as vivências, porém o professor tem


papel fundamental tanto em fazer com que aquela materialidade se

Nowik Sylwia/Shutterstock

62 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


potencialize em aprendizagem quanto em transformar aquele material
em uma documentação relevante para o projeto e para quem o vê.

Um segundo exemplo de projeto nos auxilia a pensar no fato de


que, para tornar visível a aprendizagem, nem sempre os trabalhos
precisam culminar em uma exposição. Muitas vezes, o tema mobiliza
ações de toda a escola e também das famílias, em um movimento que
possibilita a todos se relacionarem com aquilo que é de interesse de
determinada turma.

Em um grupo de crianças da pré-escola surgiu o interesse pelos


opostos “luz e escuridão”, a partir de uma lanterna trazida por uma
criança. Tal iniciativa fez com que várias crianças trouxessem de suas
casas objetos que também emitiam algum tipo de luz. A professora,
atenta ao interesse, passou a explorar o assunto por meio de uma série
de iniciativas como: brincar com os objetos luminosos em um quarto
escuro, fazer uso de um aparelho retroprojetor, luminárias, vários tipos
de lanternas, entre outros.

Enquanto as ações ocorriam, anotações eram feitas, problemas e hi-


póteses surgiam por meio da interação das crianças com os objetos, e
as atividades iam se desenvolvendo a partir das várias possibilidades.
Questões como “De onde vem a luz?” deram origem à investigação sobre
esse conhecimento, que chegou até os estudos sobre a eletricidade. Re-
gras e combinados foram criados para tratar da temática, com o cuidado
necessário para preservar a segurança das crianças e, ao mesmo tempo,
permitir que avançassem por meio de seus interesses e imaginação.

As pesquisas foram feitas por meio de livros, enciclopédias e in-


ternet e eram trazidas de casa para serem compartilhadas na escola.
Ocorreu até uma visita à casa em construção de uma das crianças, em
que o grupo pôde visualizar como a parte elétrica de uma casa é orga-
nizada ao ser construída. As autoras que relatam o trabalho que ocor-
reu nessa turma descrevem que após a visita à casa em construção, o
interesse pela eletricidade diminuiu e as crianças passaram a pesquisar
sobre construções e, então, teve início um novo projeto. Esse exemplo
nos mostra a potência e a beleza da pedagogia da escuta. O projeto
dura enquanto o interesse das crianças se mantiver.

Nesse segundo exemplo, podemos identificar as formas de dar vi-


sibilidade às aprendizagens por meio de vários elementos. O primeiro
deles, quando é permitido às crianças trazerem seus objetos de casa,

O papel da documentação pedagógica 63


Dica em um movimento que já permite às famílias visualizar que algo novo
O site da OBECI - Ob- está ocorrendo. Depois, ao identificar o questionamento inicial sobre
servatório da Cultura
Infantil - apresenta um qual seria a fonte de luz, o professor passa a materializar uma ideia po-
material em PDF produ- tente para o grupo, e as experiências criadas a partir de então tornam
zido por uma das escolas
que fazem parte do visíveis os interesses e possibilidades de aprendizagem.
programa. Nele é possível
observar desenhos e
Os registros dos diálogos, do brincar com os objetos, foram siste-
transcrições das falas das matizados e determinantes para as investigações. E, por fim, o envol-
crianças que abordavam a
temática sobre os olhos. É
vimento das famílias nas pesquisas colaboraram para que o projeto
um material rico, que ilus- ficasse cada vez mais rico.
tra a discussão realizada
nesta seção do capítulo. Todas essas ações compõem o que chamamos de documentação peda-
Disponível em: https://www.obeci. gógica, e o trabalho sistemático sobre um tema de interesse das crianças é
org/_files/ugd/d6771e_ 6177b212ae1
o que permite que os percursos de aprendizagens se tornem visíveis para
e4455a1bd6 f16ad931c58.pdf.Acesso
em: 9 nov. 2022. toda a comunidade escolar e, inclusive, para as próprias crianças.

Nessa medida, tornar visível as aprendizagens requer, antes de mais


nada, a observação atenta dos profissionais que atuam junto às crian-
ças e oferecer significado às suas produções, de modo a enxergar todas
elas (inclusive as falas) como potentes instrumentos de aprendizagem.

3.4 As várias formas de documentar


Vídeo Durante todo este capítulo, temos pensado sobre as diversas for-
mas de expressão das crianças, bem como os inúmeros caminhos que
podem levar à aprendizagem. Seguindo essa lógica, é possível pensar
nas inúmeras formas de documentar os percursos de aprendizagem
que extrapolam, por exemplo, a documentação escrita comumente
produzida no âmbito escolar (relatórios, diários de classe etc.).

No entanto, deslocar-se do modelo tradicional de documentação


pedagógica pode trazer uma série de dúvidas, especialmente para nós
que estudamos Reggio mas não fazemos parte daquele contexto. Afinal,
qualquer material pode se tornar um tipo de documentação? O que usar
no dia a dia junto às crianças? Como tornar essa documentação acessível
em outros momentos do ano, e não somente ao final dos processos?

Embora os profissionais de Reggio tenham ampla liberdade na utili-


zação de materiais e possibilidade de criar a documentação que revela
as memórias e as aprendizagens de cada grupo, os autores que abor-
dam a temática indicam recursos básicos e a organização dos espaços
que são promotores da abordagem da documentação.

64 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


No que se refere aos espaços, Malaguzzi (1984 apud KINNEY; WHAR-
TON, 2009, p. 34) destacou que:
Valorizamos o espaço devido ao seu poder de organizar, pro-
mover relacionamentos agradáveis entre pessoas de diferentes
idades, criar um ambiente bonito, proporcionar mudanças, pro-
mover escolhas e atividades, e prover o potencial para estimular
todo tipo de aprendizagem social, afetiva e cognitiva.

Já abordamos a importância de um espaço acolhedor, promotor da


curiosidade e da aprendizagem e organizado, de modo que as crian-
ças possam interagir de maneira autônoma. O que trazemos aqui é a
perspectiva de que esse mesmo espaço seja visto de forma ampliada
por parte dos profissionais, para que ele seja também um espaço que
auxilie na dinâmica da documentação. Sendo compreendido como um
educador, o espaço onde adultos e crianças possam dialogar com as
produções da escola torna-se uma ferramenta potente, tanto para a
aprendizagem quanto para a promoção do trabalho ali desenvolvido.
A documentação presente nos espaços auxilia na construção da identi-
dade da escola e daqueles que nela estão.

Assim, algumas características de um espaço promotor da docu-


mentação podem ser identificadas como:

Kyrylo Valyeyev/Shutterstock

O papel da documentação pedagógica 65


• Espaço flexível, que possa ser • Na articulação entre tempos e
constantemente modificado de acordo espaços, a organização da rotina
com os projetos e interesses das e o uso dos diferentes espaços
crianças. devem ser pensados como
• Do ponto de vista estético, que seja continuidade das experiências,
agradável, tranquilo e acolhedor. e não como rupturas que
muitas vezes interrompem a
• As modificações feitas no espaço
aprendizagem da criança.
devem ter caráter intencional, ou seja,
deve-se superar a ideia de “decorar”, a • A organização deve ser ponto
partir do olhar estético do adulto. Tudo de reflexão constante da equipe
que é colocado no ambiente tem um que, ao observar atentamente os
propósito. interesses das crianças, precisa
ser capaz de alterar o espaço
• Ao olhar o espaço, os adultos
sempre que necessário.
(familiares, por exemplo) devem
conseguir visualizar as crianças, “ouvir • Não há a necessidade de
suas vozes”. muitos recursos ou mobiliário
extremamente elaborado, já que
• A organização dos espaços deve
a ideia básica é a liberdade de
possibilitar que as crianças escolham
movimentos e de criação. Os
de maneira autônoma quais vivências
recursos podem, inclusive, iniciar o
querem desenvolver, deixando, inclusive,
Abert/Shutterstock

ano de maneira mais simples e ser


espaços vazios.
adquiridos ao longo do ano com
• Devem ser promotores de vivências base nos projetos.
individuais e coletivas.

Tudo isso vai possibilitar que, aos poucos, as produções das crian-
ças, os materiais relacionados aos projetos, os brinquedos que as
crianças mais gostam de brincar, os ambientes que mais gostam de
ficar sejam, pouco a pouco, demarcados pela identidade daqueles que
pertencem àquele grupo. E isso nada mais é do que uma forma de do-
cumentar, de tornar visíveis os processos de aprendizagem por meio
do ambiente que materializa tais experiências.

No que tange aos recursos materiais, embora a abordagem acredite


em recursos a princípio simples, é fundamental que determinados ma-
teriais estejam disponíveis, tanto para as crianças quanto para os pro-
fessores. Kinney e Wharton (2009) indicam alguns materiais que podem
ser considerados como essenciais para que seja possível a produção de
documentação que permita uma aproximação das aprendizagens das
crianças e, mais que isso, dos processos por elas vivenciados dentro da
escola. De modo geral, podem ser divididos entre: recursos tecnológi-

66 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


cos, papelaria, utensílios e espaços para exposição, livros e materiais
diversos que são classificados como coleções.

Sobre os recursos tecnológicos, as autoras trazem como possibili-


dades as câmeras fotográficas e de vídeo, gravadores (é muito comum,
especialmente nas pré-escolas de Reggio, que as falas das crianças
sejam gravadas e, a partir delas, o professor verifica as hipóteses in-
vestigativas, os interesses das crianças e vai direcionando os projetos),
computadores com softwares que podem subsidiar o trabalho, retro-
projetores e impressoras. Vale ressaltar que, provavelmente, a lista
de recursos tecnológicos utilizados hoje conta com uma gama muito
maior de possibilidades, visto que a área da tecnologia é uma das que
mais avançou nos últimos anos. A referência que trazemos aqui data
de uma publicação do ano de 2009 e não cita, por exemplo, o uso de
aparelhos celulares do tipo smartphone.

Já os materiais de papelaria englobam canetas de cor preta para


o registro das narrativas produzidas pelas crianças, adesivos que são
transformados em rótulos de objetos, promovendo práticas de letra-
mento, blocos de anotações, cartazes e flipcharts. Diários e pastas tam-
bém são mencionados como fundamentais. Aparentemente seriam
materiais de uso tradicional na escola, mas em Reggio são apropriados
de maneira diferente, de modo a servirem para a elaboração de mapas
mentais, ideias que surgem no decorrer dos projetos e que ficam sem-
pre ao alcance e visão das crianças.

Na lista de utensílios e espaços para exposição, citam espaços den-


tro da escola que comportem quadros expositivos, cartazes ou qual-
quer tipo de produção das turmas, sem que haja a preocupação, por
exemplo, de ter que desocupar o espaço, ou seja, locais que possam
ser usados permanentemente, ou por longos períodos, sempre de
acordo com os projetos. As autoras destacam ainda que tudo deve es-
tar ao alcance das crianças.

Os livros têm grande relevância para o trabalho e devem ser ofereci-


dos em diversidade, com temas que possam despertar o interesse para
possíveis projetos.

Por fim, ao abordar materiais diversos, as autoras trazem a importân-


cia de se produzir coleções, que têm como característica principal fazer
com que as crianças se encantem e se espantem frente ao novo.

O papel da documentação pedagógica 67


Adsara/Shutterstock
As coleções são vistas como verdadeiros tesouros das crianças. Cole-
ções de pedras ou sementes são exemplos que podem se tornar lindos
projetos. Aqui, vale a ressalva de que a questão estética é fundamental. A
ideia não é montar uma coleção com acúmulo de objetos quaisquer, mas
sim pensar na potência que eles podem ter quando as crianças se apro-
priam deles. Nesse sentido, a qualidade das coleções é fundamental.

Artigo

https://www.obeci.org/_files/ugd/d6771e_38f22e78b5f54166bfbbc92ca586bd08.pdf

O artigo Planejar para tornar visível a intenção educativa apresenta a reflexão


sobre a importância do planejamento pedagógico a ser pensado a partir
do cotidiano e à luz da teoria da documentação pedagógica. A discussão,
promovida na ocasião de uma disciplina de estágio em Educação Infantil, traz
a ideia de que é importante planejar as propostas de vivências junto às crian-
ças para que de fato ocorra a aprendizagem significativa.

Acesso em: 9 nov. 2022.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender a abordagem da documentação não é tarefa fácil. O que
Reggio Emilia nos propõe é pensar nas produções da escola como partes
de sua proposta e nunca deslocadas da concepção de uma criança po-
tente, capaz de produzir inúmeras representações acerca de seu proces-

68 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


so de conhecimento e de aprendizagem. O professor, por sua vez, muito
além de um mediador, deve ser capaz de reconhecer as mais diversas
linguagens e manifestações de suas crianças ao longo de todo o processo
e conseguir, quase como um artesão, alinhavar os pontos de uma costura
e dar sentido às produções e culturas infantis.
Nesse percurso, todos acabam por rever seu posicionamento acerca
da educação e os documentos produzidos pela escola. O que importa
aqui é sempre o processo e não o produto final, sempre o caminhar junto,
a possibilidade de criar histórias, memórias, identidade, relações que se
materializam nos trabalhos das crianças.
Assim, esperamos que você tenha conseguido repensar o ato de do-
cumentar no contexto da Educação Infantil e que possa ser promotor de
novas práticas que possibilitem tornar visível essa nova criança que nasce
a partir de nossos estudos.

ATIVIDADES
Atividade 1
Refletindo sobre as várias formas de documentar os processos e
as aprendizagens nas escolas e instituições de Educação Infantil,
por que constatamos que o modelo tradicional de documentação
não condiz com a proposta de Reggio?

Atividade 2
Qual a diferença entre documentação pedagógica e registro, e
por que é importante pontuar tal diferenciação no trabalho com a
Educação Infantil?

Atividade 3
Cite ao menos três características importantes para que o espaço
da escola seja considerado promotor da documentação pedagó-
gica, contribuindo para que as aprendizagens se tornem visíveis a
todos.

O papel da documentação pedagógica 69


REFERÊNCIAS
EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança. A abordagem de
Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância. Porto Alegre: Artmed, 2008.
KINNEY, L.; WHARTON, P. Tornando visível a aprendizagem das crianças. Educação Infantil
em Reggio Emilia. Porto Alegre: Artmed, 2009.
MELLO, A. A.; BARBOSA, M. C. S.; FARIA, A. L. G. Documentação pedagógica. Teoria e prática.
São Carlos: Pedro e João Editores, 2017.
MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2022. Disponível em: https://
michaelis.uol.com.br/moderno-portugues. Acesso em: 8 nov. 2022.
PINAZZA, M. A.; FOCHI, P. S. Documentação pedagógica: observar, registrar e (re)criar
significados. Revista Linhas, Florianópolis, v. 19, n. 40, p. 184-199, maio/ago. 2018. Disponível
em: https://www.obeci.org/_files/ugd/d6771e_60001a9bf3594b1f847063fa076a7f3b.pdf.
Acesso em: 8 nov. 2022.
RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia. Escutar, investigar e aprender. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2022.

70 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


4
Tempos e espaços na
Educação Infantil
Você já parou para pensar na organização dos mais diversos espaços
que frequenta? E mais, como gerencia o tempo em cada um desses locais?
Em sua casa, por exemplo, como estão organizados os cômodos? Na cozi-
nha, é provável que os utensílios do cotidiano estejam em lugares acessí-
veis, enquanto alguns objetos usados em ocasiões especiais podem estar
guardados em armários mais altos. Dentro da sua casa, qual o ambiente
que você mais utiliza, aquele em que passa mais horas de seu dia?
Nosso texto tem início com perguntas simples, mas muitas vezes,
na dinâmica atarefada do dia a dia, acabamos por não pensar nessas
questões. Porém, o fato é que a forma como nos apropriamos dos es-
paços da nossa sociedade, começando por nossa casa, trabalho, escola,
espaços públicos, em certa medida vai moldando as tarefas do cotidiano
e contribuindo para a formação de quem somos. O modo como organi-
zamos os espaços e a gerência de nossas atividades diz muito sobre nós,
permitindo pensar que os influenciamos ao mesmo tempo que somos
influenciados por eles.
Sendo assim, pensar os tempos e espaços na Educação Infantil se tor-
na tarefa essencial para nós, educadores, e organizar um cotidiano mar-
cado pela coletividade pode ser um grande desafio.
Por isso, trazemos mais uma vez as reflexões de Reggio Emilia, cuja
trajetória educativa foi produzindo determinadas formas de perceber os
espaços e seus usos, compreendendo que não seria possível implementar
uma proposta tão inovadora sem considerar a importância desses fatores.
A ideia é pensar na importância do espaço, entendendo-o também
como um educador. Além disso, pensá-lo em relação à organização dos
tempos, sendo flexíveis para considerar as necessidades das crianças.
Por fim, refletir sobre a inserção desses elementos como integrantes
das propostas pedagógicas.
Ótimos estudos!

Tempos e espaços na Educação Infantil 71


Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• refletir sobre os conceitos de tempos e espaços na Educação
Infantil;

• compreender o espaço como um educador;

• entender a importância da rotina para o planejamento pedagógico,


mas também da flexibilidade dos tempos de acordo com as neces-
sidades das crianças;

• pensar sobre os tempos e espaços como produtores de aprendi-


zagens significativas para as crianças e que devem fazer parte do
planejamento pedagógico do professor.

4.1 O espaço como educador


Vídeo
Quais são as imagens que vêm em nossa memória quando pen-
samos nos espaços de uma escola? Salas de aulas, carteiras, janelas
grandes, lousa, armários, corredores largos, refeitório. São inúmeras
as lembranças que cada um pode ter acerca da experiência escolar. Ao
voltarmos um pouco mais no tempo e resgatarmos as lembranças da
pré-escola – para aqueles que tiveram tal experiência –, pode ser que
nos lembremos do parque, tanque de areia, balanços, mesas e cadei-
ras, paredes pintadas com alguns desenhos infantis, entre outros.

Ao fazer este exercício de resgate de nossa história pré-escolar


e também escolar, certamente identificaremos que, ainda que cada
um tenha estado em uma escola, nas mais diversas cidades, haverá
elementos em comum. Do ponto de vista da materialidade, sabemos
que toda sala de aula tem carteiras, armários, lousa e, em certa me-
dida, uma organização padrão do espaço. Com relação aos tempos,
certamente nos lembraremos que eles eram divididos entre as dife-
rentes disciplinas, com um intervalo entre as aulas, recreio, organi-
zação das crianças em filas etc. Tudo isso faz parte daquilo que se
denomina de cultura escolar. O termo, cunhado por Dominique Juliá
(2001), pode ser definido como:
Um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar
e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem

72 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades
que podem variar segundo as épocas. (JULIÁ, 2001, p.10)

Embora o autor apresente a importância de localizar as instituições


escolares em seus contextos políticos, culturais, econômicos e sociais, ao
trazer a discussão de que há um conjunto de normas e práticas que vão,
paulatinamente, formando os sujeitos inseridos na escola, indica que
também os tempos e espaços são organizados de modo a promover um
tipo específico de aprendizagem. Assim, cita, por exemplo, a questão da
criação das disciplinas escolares como uma forma de sistematizar o co-
nhecimento. No mesmo sentido, o mobiliário que é produzido especifica-
mente para a escola, como lousas e carteiras, facilita a aprendizagem, ao
mesmo tempo que incute uma disciplina dos corpos, que devem perma-
necer sentados, em ordem, enfileirados. A vigilância, o disciplinamento
e o controle são temas de interesse de diversos autores, mas tem como
expoente Foucault, que faz uma comparação entre práticas escolares e
outras instituições sociais, como as prisões, de modo a problematizar
as relações de poder que ocorrem dentro desses espaços. No caso das
escolas, o professor, na figura do adulto, teria esse papel de vigilância
e disciplinamento dos estudantes. O autor alerta, inclusive, para o fato
de que, muitas vezes, as disputas de poder que ocorrem no interior das
instituições podem não ser explícitas, mas vão se conformando a partir
das práticas e das representações que compõem o cotidiano.

Toda essa reflexão nos possibilita pensar que as práticas escolares


não são naturais ou neutras, e sim estão inseridas em construções so-
ciais. A questão é que, pela escola ser uma experiência praticamente
universal, suas práticas acabam sendo naturalizadas de tal forma nas
sociedades que não nos damos conta de que há certa intencionalidade
que organiza os tempos e os espaços nas salas de aula, nos recreios,
nos corredores, e em todo o cotidiano da vida escolar.

Em certa medida, a Educação Infantil, embora se apresente com ou-


tros artefatos voltados à infância, acaba também por ser inserida em
uma lógica da escolarização. Se pensarmos em uma rotina de creche,
antart/Shutterstock

Tempos e espaços na Educação Infantil 73


por exemplo, verificamos que ela também se divide em curtos perío-
dos de tempo destinados às mais variadas atividades: entrada, hora do
lanche, roda de conversa, parque, descanso, atividade dirigida, entre
outras. E, ainda que tenhamos instituições educativas que busquem
romper com o modelo tradicional, é necessário muito esforço, estudo,
pesquisa e reflexão para que de fato seja possível uma prática pedagó-
gica emancipadora, participativa e com um olhar para as reais necessi-
dades das múltiplas infâncias.

Nesse sentido, mais uma vez trazemos o olhar dos profissionais de


Reggio Emilia para pensar a questão dos tempos e espaços na Edu-
cação Infantil. Se o espaço não é neutro, tampouco são as formas de
uso e apropriação de seus tempos. Portanto, compreendemos que a
organização dos tempos e espaços revela a proposta pedagógica que
subjaz as práticas que naquele local são colocadas.

Especialmente para a abordagem Reggio Emilia, que literalmente


levantou suas paredes quando as primeiras propostas começaram a
se formar, o espaço é extremamente importante para a construção de
uma pedagogia participativa e democrática, e desde muito cedo as es-
colas passaram a investir tempo, reflexão, pesquisa e também recursos
financeiros nos espaços, compreendendo que se tratava de algo essen-
cial para as relações e as aprendizagens.

De acordo com Formosinho (2009):


O espaço pedagógico deve ser um território organizado para a
aprendizagem; deve ser também um lugar de bem-estar, alegria
e prazer. Procura-se que o espaço pedagógico seja aberto às vi-
vências e interesses das crianças e comunidades; seja organiza-
do e flexível; plural e diverso; seja estético, ético, amigável; seja
seguro; seja lúdico e cultural. (FORMOSINHO, 2009, p. 8)

O espaço é tão importante para a abordagem italiana que é consi-


derado como o terceiro educador, juntamente da dupla de professo-
res que compõem o trabalho pedagógico. Ele é fator primordial para a
promoção da interação entre todos aqueles que participam da comu-
nidade educativa, sendo, portanto, definidor de práticas pedagógicas,
carregado de conteúdos e concepções acerca da educação e também
da infância, a qual a instituição pretende cuidar e educar.

Dessa forma, planejar e organizar os espaços da escola significa ter


em mente que ele deve ser capaz de promover encontros e intercâm-

74 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


bio entre as pessoas, garantindo acolhimento, bem-estar entre crian-
ças, famílias, professores e demais integrantes da equipe. Muitas vezes,
ao adentrarmos em uma escola, encontramos configurações que difi-
cultam as interações, por exemplo, ambientes com muitas divisórias
ou paredes que dividem os grupos, de modo que as diferentes turmas
pertencentes a essa escola mal se encontram durante a rotina diária.
Ou ainda, espaços que impossibilitam que as crianças tenham conta-
to com outros profissionais que atuam na escola. Para Reggio, isso é
um equívoco, já que há a compreensão de que a escola é como uma
pequena comunidade, em que todos estão interligados e são partes
importantes dos processos sociais. Ao mesmo tempo, no ambiente co-
letivo, devem-se prever espaços para quem deseja estar sozinho, brin-
car sozinho e realizar suas descobertas individuais. A imagem a seguir
ilustra alguns dos elementos importantes que nos ajudam a pensar na
importância de um espaço rico, favorecedor das interações.

Além de ser pensado em seus aspectos de interação e educação,


todos os ambientes da escola são considerados importantes, sem ex-
ceção, de tal forma que não há hierarquia entre eles quando conside-
ramos seu grau de importância. Enquanto na escola tradicional a sala
de aula ocuparia lugar de destaque nos processos de ensino-aprendi-
zagem, aqui todos os lugares são potenciais para as experiências. Po-
demos verificar na prática a importância dos mais diversos espaços da
escola nas palavras de Gandini, Edwars e Forman (2008, p. 153):
Espelhos nos banheiros e lavabos são cortados em diferentes
formatos, para estimular as crianças a olhar para suas imagens
de uma forma divertida. Os tetos são usados como espaço para
a colocação de muitos tipos diferentes de esculturas aéreas ou
belos móbiles, todos feitos com materiais transparentes, colori-
dos e incomuns, construídos pelas crianças e pendurados pelos
professores. Existem paredes de vidro, para criar-se uma conti-
nuidade entre os jardins interiores e os jardins externos; contri-
buem para muita luz natural e oferecem uma ocasião para que
se brinque com transparências e reflexos.
Beloborod/Shutterstock

Tempos e espaços na Educação Infantil 75


A citação acima nos traz a ideia da importância da estética para os
espaços bem como para mobiliários e objetos diversos que vão confi-
gurando o ambiente da escola. Materiais transparentes, que refletem a
luz solar, são muito utilizados, de modo que as crianças sejam capazes
de observar e identificar as diferentes tonalidades que a luz é capaz
de criar. Paredes de vidro permitem o contato constante com o espa-
ço exterior, além de propiciarem a luz natural no interior dos espaços.
Ademais, mobiliários e brinquedos confeccionados em madeira são
frequentemente utilizados em detrimento de brinquedos de plástico,
produzidos em larga escala pelas indústrias, mas que fornecem poucos
estímulos sensoriais às crianças.

Uma das questões centrais quando o assunto é espaço nas escolas


de Educação Infantil em Reggio diz respeito à conexão entre pedagogia
e arquitetura. Rinaldi (2022) aponta o conceito de arquitetura relacio-
nal, que nos traz a importância de pensar nos projetos arquitetônicos
em relação às experiências, aos tempos e à cultura que os sujeitos te-
rão a partir da vivência em determinado espaço. Nesse sentido, um
espaço com qualidade é compreendido a partir do desenvolvimento
que ocorre entre sua qualidade e quantidade. Para a autora, “a tarefa
primordial da pedagogia e da arquitetura relacional é assegurar a exis-
tência e o fluxo desse tipo de qualidade” (RINALDI, 2022, p. 152).

Um projeto baseado na arquitetura relacional, portanto, deve pos-


sibilitar que:

Nazarkru/Shutterstock
Crianças façam escolhas.

Crianças sejam protagonistas dos processos de aprendizagem, ao


mesmo tempo que possam refletir sobre eles a partir de um espaço rico
em experiências.
A escola inteira seja um “grande laboratório” e que a atuação das
crianças não tenha por objetivo a busca por um fim em si mesmo, mas a
riqueza das experiências do cotidiano.

A estética permeie as brincadeiras.

A estética do espaço o torne extremamente prazeroso, de modo que


as pessoas se sintam felizes por estarem ali.

76 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Não somente as crianças, mas também os adultos se relacionam o

Abert/Shutterstock
tempo todo com os espaços. Assim, a arquitetura relacional deve tam-
bém prever ambientes que os acolham e, compondo a proposta edu-
cativa, sejam promotores das práticas pedagógicas emancipadoras e
democráticas. Por tal razão, os professores têm que auxiliar os arquite-
tos na elaboração dos projetos para que sejam condizentes com a pro-
posta pedagógica. Nesse sentido, desde o projeto de sua construção
até sua organização, os espaços devem possibilitar aos professores:

• Além dos professores, os pais, • Que se sintam acolhidos e em


que são a todo o momento constante relação com as
parte da escola e incentivados crianças e suas famílias.
a frequentarem os espaços
• Que tenham mobiliários,
educativos, devem sentir que:
materiais e ambientes
• são ouvidos em suas adequados às suas
necessidades; necessidades.
• podem interagir com as
• Que haja espaço para sua
demais famílias e com os
privacidade.
profissionais da escola;
• têm acesso às informações
da escola de maneira geral e
de seus filhos;
• são importantes parceiros.

• Que tenham acolhidas suas


demandas profissionais.

Uma última observação sobre a questão arquitetônica é o fato de


que, para além da escola e das pessoas que a frequentam, a instituição
deve ser pensada em relação com a cidade. Fazendo parte de uma gran-
de comunidade, a escola, para que seja reconhecida como instituição im-
portante e parte integrante daquela sociedade, deve estar localizada em
pontos da cidade em que esteja visível e em relação com as demais ins-
tâncias sociais. Assim, tanto para a construção de novos prédios quanto
para as adaptações que porventura sejam realizadas em algumas esco-
las, arquitetos e equipe de profissionais atuantes das escolas devem ser
ouvidos, já que são eles os que têm a vivência do cotidiano.

Tempos e espaços na Educação Infantil 77


Leitura Por fim, salientamos que um dos espaços que ao longo dos anos foi se
O professor Silvio Gallo, constituindo como parte da proposta pedagógica nas escolas em Reggio
da Faculdade de Educa-
ção da Unicamp, é um são os ateliês, que podem ser grandes espaços em que todas as turmas
expoente quando se trata desenvolvem projetos, como também podem ser mini ateliês destinados a
da temática da filosofia da
educação. Nessa entrevis- pequenos grupos. O ateliê é um conceito fundamental para a abordagem,
ta, aborda as contribui- um espaço organizado e preparado para que as crianças possam explorar
ções que o pensamento
de Foucault pode trazer inúmeros materiais, incentivando a criatividade e as mais diversas formas
para a educação, no de produções. Deve contar, inclusive, com a presença de um profissional
sentido de desnaturalizar
as relações que ocorrem denominado atelierista, com formação específica na área, o qual junto aos
no espaço educativo, pos- professores de referência das turmas e às crianças vão compondo os pro-
sibilitando um novo olhar
para o interior das insti- jetos. Na imagem a seguir, a criança explorando argila representa uma das
tuições. Uma ótima leitura atividades que podem ocorrer no ateliê.
para quem quer começar
a compreender o pensa- Compreender o espaço como terceiro educador nos ajuda a pensar
mento foucaultiano.
no fato de que o conhecimento, as experiências e a aprendizagem estão
AS CONTRIBUIÇÕES de Foucault à
Educação. IHU online, 6 nov. 2006.
em toda parte, e que como seres sociais influenciamos e somos influen-
Disponível em: https://www. ciados por tudo aquilo que está ao nosso redor. Que tipo de experiência
ihuonline.unisinos.br/artigo/555-
silvio-gallo. Acesso em: 30 nov. 2022.
um espaço precário, com materiais de baixa qualidade, paredes escuras,
chão sujo e abafado pode proporcionar a uma criança? Imagine que ela
irá à escola cinco dias por semana, durante todo um ano, e ali passará
grande parte de seu dia. O espaço transmitirá a ela uma visão de mundo
que não é acolhedor, nem promotor de experiências positivas.

Por isso, Reggio Emilia se preocupa sobremaneira com tudo aquilo


que está no ambiente e é ofertado às crianças. E claro não há so-
mente a preocupação da equipe pedagógica, mas também da política
local, que destina recursos para que as escolas tenham espaços de
qualidade. É um conjunto de iniciativas em prol de uma educação
de excelência para as crianças pequenas.
RimDream/Shutterstock

78 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


4.2 Espaços e tempos que contam histórias
Vídeo
Nenhuma escola em Reggio Emilia é igual a outra. Isso se deve ao
fato de que, embora existam prerrogativas comuns que tratam das con-
cepções pedagógicas e filosóficas do trabalho, cada escola deve refletir
as dinâmicas e necessidades da comunidade em que estão inseridas.

Malaguzzi (apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 150) dizia


que “as paredes de nossas pré-escolas falam e documentam”. Para
tanto, as escolas precisam refletir as tantas formas e manifestações
culturais das pessoas que vivem ali em uma relação constante de com-
partilhamento e aprendizado.
com esses princípios em mente, descobrimos muitos modos de
tornar o espaço mais do que apenas um local útil e seguro onde
podemos passar horas ativas. Em vez disso, criaram espaços em
suas creches e pré-escolas que refletem sua cultura e as histórias
de cada centro em particular. Esses espaços tendem a ser agradá-
veis e acolhedores, contando muito sobre os projetos e as ativida-
des, sobre as rotinas diárias e sobre as pessoas grandes e pequenas
que fazem da complexa interação que ocorre ali algo significativo e
alegre. (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2008, p.147)

Quando falamos sobre espaços que contam histórias, podemos


pensar em dois elementos principais que podem ser vistos nas esco-
las em Reggio Emilia: o espaço que reflete a cultura das pessoas e a
cultura da escola.

Sobre o primeiro movimento, refletir a cultura das pessoas significa que


a escola está atenta ao seu entorno, seu contexto social. Uma escola que fica
no centro da cidade precisa ser diferente de uma escola de região rural, por
exemplo. E aqui, obviamente, não se trata da diferença entre a qualidade
daquilo que se vai ensinar, mas sim de que o cotidiano da escola precisa es-
tar em consonância com a vida daqueles que ali estão, uma vez que a escola
não é uma instituição isolada, dissociada dos demais elementos culturais.

Por isso, cada escola em Reggio tem características regionais no que


tange aos materiais utilizados pelas crianças, nos alimentos que são con-
sumidos etc. Os eventos culturais que fazem parte do cotidiano das insti-
tuições também são marcados por aquilo que acontece em determinada
região, passeios, atividades, enfim, uma série de experiências que cada
pessoa vivencia fora da escola tem espaço de apropriação dentro dela.

Tempos e espaços na Educação Infantil 79


Livro Quando tratamos sobre refletir a cultura da escola, falamos das ex-
O livreto O brincar na periências que vão se constituindo coletivamente e vão demarcando
cozinha narrativas e en-
cantamentos na escola da uma forma de conviver e aprender. De acordo com Edwards, Gandini e
infância, produzido pela Forman (2008, p.151):
professora Paola Silveira,
da Escola Municipal de a escola em particular, em si mesma, com seu principio especial,
Educação Infantil João sua evolução e as historias das crianças que passaram por ela.
de Barro (integrante das
Além de ser bonito, o ambiente também é altamente peculiar.
escolas OBECI – Observa-
tório da Cultura Infantil), Existem amostras de pinhas, conchas ou pedrinhas arranjadas
apresenta narrativas por tamanho, forma ou cor. Essas amostras registram eventos
produzidas pelas crianças
das vidas das crianças. Contem tesouros que as crianças coleta-
em interação com espa-
ços, tempos e objetos na ram em passeios especais ou caminhadas normais. Além disso,
escola. Uma produção elas são encorajadas a trazer recordações de casa.
sensível, inspiradora, que
dialoga com o tema da Como exemplo, podemos citar o fato de que quando as crianças re-
seção e nos fez pensar
sobre as culturas que
tornam das férias é comum que tragam para o grupo suas experiências
vão sendo produzidas e até mesmo algum objeto. Em Reggio, os professores valorizam essas
em cada escola e narram
lindas histórias.
experiências e no início do ano costumam elaborar painéis com os ele-

Disponível em: https://heyzine.com/


mentos trazidos pelas crianças, construindo uma materialidade que, a
flip-book/14de73b546.html#page/1. partir do que é individual, forma um trabalho coletivo.
Acesso em: 10 nov. 2022.
Nesse movimento, entre cultura das pessoas e cultura da escola,
vão se criando formas peculiares de viver e aprender em cada uma das
escolas. Os espaços refletem essa dinâmica, por conta disso dizemos
que os espaços contam histórias e possuem um potencial enorme de
valorização das produções das crianças e também dos adultos.

Sempre que abordamos a temática do espaço, fala-


Iron Casper/Shutterstock

mos também sobre os tempos na Educação Infantil. Isso


porque a forma como utilizamos cada um dos espaços
de uma instituição permitirá determinada apropriação
daquele local.

O tempo de parque, o horário de refeição, o descanso,


o momento de higiene e troca de fraldas são tempos que
compõem a rotina da escola e que geralmente ocorrem
em locais preestabelecidos. Essa relação entre tempo e
espaço organiza o cotidiano das instituições.

Por exemplo, se estamos em uma escola em que o re-


feitório é pequeno, e temos várias turmas para almoçar, o
tempo precisará ser dividido entre elas, para que não ocu-
pem o mesmo espaço ao mesmo tempo. Assim, será ne-
cessário que uma turma faça sua refeição e, quando essa

80 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


primeira finalizar, outra turma entre para realizar a mesma atividade.
Nessa dinâmica, é provável que cada turma tenha um curto período de
tempo para almoçar, pois logo deverá ceder o espaço para as demais.

Portanto, em um movimento rápido de entrada e saída das turmas


desse espaço, podemos refletir sobre a qualidade desse momento para a
aprendizagem das crianças. Afinal, realizar uma refeição no contexto co-
letivo de creche não pode ser simplesmente ingerir os nutrientes e sair
do refeitório. O momento de refeição deve ser um rico tempo de apren-
dizagem, de compartilhar, conversar, identificar o alimento, experimentar
novos aromas e sabores, manusear os talheres, enfim, há uma infinidade
de aprendizagens que podem ocorrer dentro de um refeitório, mas se não
houver uma reflexão acerca disso, sem tempo para de fato vivenciar esse
espaço, esse momento da rotina se torna empobrecido do ponto de vis-
ta da experiência em detrimento de tempos voltados muito mais a uma
dinâmica dos adultos de organizar as turmas para o horário da refeição.

A imagem a seguir nos ajuda a pensar sobre como o tempo de refeição é


cuidadosamente pensado em Reggio Emilia. As crianças da pré-escola sen-
tam-se em mesas que possibilitam pequenos grupos sentarem-se juntos,
com até quatro crianças. Ainda assim, é possível interagir com as crianças
das demais mesas. Os pratos e copos são de vidro e as crianças manipulam
os objetos sem dificuldade. Tudo isso para que o momento da refeição seja
o mais natural possível, pensando na vida real das crianças, que comem,
escolhem e experimentam novos alimentos, interagem e aprendem:
Oksana Kuzmina/Shutterstock

Tempos e espaços na Educação Infantil 81


Os tempos, portanto, devem ser problematizados quando quere-
mos construir uma educação de excelência para a infância. Afinal, o
tempo do adulto não é o mesmo tempo da criança. Rotinas inflexíveis
impossibilitam que coloquemos as crianças como centrais na aprendi-
zagem e favorecem muito mais os ritmos dos adultos do que de fato
contribuem para a efetivação de uma pedagogia da escuta.

Pensar os tempos é crucial para repensar as formas de educar, mas é


uma discussão que por vezes gera muita tensão nos ambientes educacio-
nais, pois altera toda uma dinâmica preestabelecida. Por exemplo, muitas
vezes, quando chega a hora da refeição, os professores interrompem a ati-
vidade que está ocorrendo para que não se perca o horário. Isso porque há
toda uma organização institucional que vai desde a rotina das turmas até os
horários das funcionárias que preparam a comida, higienizam o refeitório,
enfim, uma organização dos adultos que marca os tempos das crianças.

Modificar essa lógica implica alterar toda uma organização da esco-


la. Não é possível que somente um professor com sua turma flexibilize
sua rotina de atividades se não houver consenso entre toda a equipe
acerca dos objetivos da mudança. Repensar os tempos, portanto, exige
formação, estudo e reflexão sobre o tipo de educação que queremos
oportunizar, e, nesse sentido, tempos e espaços estão interligados.

Aqui, não estamos querendo dizer que a rotina não é importante, mas
que ela precisa ser constantemente repensada em função das crianças,
e Reggio Emilia, mais uma vez, nos traz inspiração para pensar sobre a
prática. Um exemplo é o fato de que nas escolas italianas, as atividades
não são finalizadas quando acaba o dia. Se um grupo estava construindo
esculturas com materiais não estruturados, ao final do dia as coisas não
são guardadas, mas ficam da maneira que as crianças deixaram para
que, no dia seguinte, elas possam dar continuidade àquela brincadeira.

Relacionando, portanto, tempos e espaços, verificamos que esses


elementos fazem parte da proposta pedagógica da escola, sendo eixos
estruturantes das práticas.

Artigo

https://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_estudos_aplicados/article/view/6188

Neste artigo, as autoras descrevem a implantação de um ateliê em uma


escola de Educação Infantil a partir de inspirações da abordagem de Reggio
Emilia. Durante o processo, discutem a importância dos tempos e espaços
para a aprendizagem das crianças e a ação do professor em tal organização.

Acesso em: 30 nov. 2022.

82 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


4.3 O planejamento dos tempos e espaços
Vídeo
Planejar e organizar tempos e espaços é um grande desafio em qual-
quer escola. No caso de Reggio Emilia, o desafio está essencialmente
no fato de que para esse planejamento é necessário pensar nas neces-
sidades de toda a comunidade escolar. Assim, não há espaço para uma
rotina inflexível, tampouco um cotidiano em que ocorrem sempre as
mesmas atividades, desconsiderando a vida que emerge pulsante no
contexto das relações.

Há a preocupação em diferenciar os espaços destinados aos bebês


e às crianças menores e aqueles destinados às crianças mais velhas, da
pré-escola, a partir de profundos estudos sobre as características de
cada faixa etária.

No caso dos bebês, a creche é compreendida como um local extrema-


mente aconchegante e acolhedor tanto para as crianças quanto para suas
famílias, que, logo na entrada do local, já contam com mobiliário confortá-
vel e ambiente agradável para estar com seus filhos antes de entregá-los à
professora, encontrar com os demais pais e poder conversar e comparti-
lhar suas experiências. Percebe-se com isso que, até na entrada da creche,
já há a intenção de incentivar a interação entre as pessoas.
Existem salas cobertas com carpetes e travesseiros, onde as
crianças podem engatinhar seguramente ou aconchegarem-se
com uma professora para olhar um livro de figuras ou ouvir uma
história. (EDWARS; GANDINI; FORMAN, 2008, p. 154)

Por se tratar de uma faixa etária em que o aspecto motor está em


pleno desenvolvimento, as creches, de modo geral, possuem um am-
plo espaço com equipamentos que convidam os bebês à exploração e
ao movimento. Rampas, pequenas escadas, cilindros, grandes caixas
com espelhos são exemplos de materiais que podem ser encontra-
dos nesses espaços que convidam a criança a explorar e brincar. Há
a preferência por materiais confeccionados em madeira tanto por
Natalia Lebedinskaia/Shutterstock

sua durabilidade e qualidade quanto por se tratar de uma textura


que carrega em si uma experiência sensorial importante para as
crianças. Muitos desses materiais são desenhados pelos
professores juntamente de arquitetos, possibilitando que
cada escola tenha objetos próprios.

Tempos e espaços na Educação Infantil 83


Ainda se tratando da creche, o espaço do ateliê é um local que per-
mite aos bebês a exploração de uma infinidade de texturas, como ar-
gila, diferentes tipos de farinhas, tintas naturais, areias, entre outras.
Aqui, compreende-se que as experimentações são essenciais para as
aprendizagens, uma vez que bebês e crianças pequenas apreendem
o mundo por meio de seus sentidos, de seu corpo em contato com o
outro e com os objetos.

Do ponto de vista da arquitetura da creche, especialmente para essa


faixa etária, há muitas divisões de espaço com vidros no lugar de paredes
convencionais, entendendo que isso contribui para que os bebês não sin-
tam tanto a questão da separação, que também é uma característica da
faixa etária. Através das paredes de vidro, é possível ver a cozinha, ver os
outros ambientes, o espaço externo e as demais crianças de outras salas.

Para a dinâmica da creche, a organização do espaço é fundamental. A


premissa básica é a de que quanto melhor o espaço estiver organizado,
limpo, acolhedor, que permita a livre exploração dos bebês e onde haja
materiais adequados e seguros à faixa etária, mais autônoma será a crian-
ça e menos intervenções terá que fazer o educador. Se a concepção de
criança é a de um sujeito criativo, potente, capaz de construir seu conheci-
mento e dar sentido às suas experiências, o adulto deve atuar muito mais
como um observador para propor experiências a partir de seus interesses.

No Brasil, é comum que nas creches haja materiais como carrinhos


e cadeirinhas em que os bebês permanecem acomodados, muitas vezes
por longos períodos. Sob uma perspectiva de pedagogia participativa, es-
ses materiais não seriam adequados, pois se entende que eles impedem
o amplo movimento dos bebês e o colocam em uma posição de passivida-
de, dependendo exclusivamente do adulto para retirá-lo dali. Nas creches
italianas, os bebês brincam livres no chão, em locais adequados e seguros.

O horário da alimentação não ocorre para todos os bebês ao mes-


mo tempo, pois a ideia é de que, em se tratando de uma aprendizagem
básica inicial de vida, esse momento ocorra de forma mais individuali-
zada possível. Assim, enquanto alguns bebês estão sendo alimentados,
outros brincam ou ainda fazem seu momento de descanso. Todas es-
sas diferentes ações só são possíveis de ocorrer ao mesmo tempo por-
que existe um espaço que possibilita essa integração. O aleitamento
materno também é bastante incentivado nas creches, de maneira que
há espaços para que as mães possam amamentar seus bebês.

84 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Na pré-escola, por sua vez, os espaços são mais elaborados e com
materiais de outras características, considerando que as crianças mais
velhas demandam outras experiências. Há materiais que denomina-
mos de não estruturados, como blocos de montar, que permitem a cria-
ção de inúmeras brincadeiras.

Brinquedos estruturados como bonecos e animais de pelúcia incen-


tivam o lúdico e o faz de conta. Materiais reciclados e naturais também
estão disponíveis para as crianças explorarem e brincarem.

A organização na pré-escola também é realizada considerando o


conceito de cantos de interesses. São cantos organizados pelos pro-
fessores a partir da observação dos interesses das crianças, neles dife-
rentes experiências podem ocorrer, e a turma é dividida em pequenos
grupos que se distribuem pelos cantos. Assim como na creche, a pre-
missa é a de que as crianças sejam autônomas para suas criações e
que possam trabalhar em grupos, mas também individualmente. Os
professores observam, realizam registros, muitas vezes gravam suas
falas durante as experiências e retomam posteriormente, em um mo-
vimento que valoriza tudo o que a criança vive dentro da escola.

Quando falamos que os tempos das crianças não são os mesmos tem-
pos dos adultos, e que é preciso sensibilidade para repensar as rotinas das
escolas a partir de tal afirmação, podemos citar o trabalho que é realiza-
do nos ateliês das pré-escolas. Se as crianças estiverem envolvidas em um
projeto, é possível que passem semanas explorando o mesmo material,
confeccionando uma escultura, por exemplo. Assim, quando as
crianças deixam o espaço, o atelierista deve zelar para que tudo
permaneça como está, para que as crianças retomem suas pro-
duções no dia seguinte. Essa prática traz a ideia de continuidade
e valorização do que está sendo produzido. É um tempo que é
Krakenimages.com/Shutterstock

Tempos e espaços na Educação Infantil 85


pensado muito mais pela qualidade de sua experiência do que pelo tempo
do relógio. Não há a preocupação de avançar no conteúdo ou cumprir um
currículo determinado durante o ano ou semestre. Mais que isso, o que im-
porta é que a criança possa vivenciar tudo aquilo que o espaço e os objetos
têm a proporcionar para sua aprendizagem.

Com relação à organização da rotina diária, destaca-se que, na pré-


-escola, quando as crianças chegam, o dia começa com uma espécie de
reunião ou encontro, uma roda de conversa. Nesse momento inicial,
decidem, juntamente do professor, se irão retomar os projetos do dia
anterior ou se irão trabalhar nas propostas que já foram previamente
organizadas pelos professores:
Uma vez que as crianças tenham optado por uma das atividades
disponíveis ou por continuar com um dos projetos em andamen-
to, elas encontrarão os suprimentos e ferramentas necessárias
colocadas sobre mesas, bancadas, iluminadas e cavaletes, ou co-
locadas em espaços convenientes e serão capazes de encontrar
todo o que mais precisam em prateleiras abertas, bem-organiza-
das, cheias de materiais reciclados e não-reciclados. (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 2008, p. 154)

Essa forma de organização, bem como a valorização da continui-


dade dos trabalhos, é fundamental para o trabalho a partir da meto-
dologia de projetos, pois possibilita que as crianças mantenham os
interesses pelos temas.

Vídeo Planejar tempos e espaços a partir de uma pedagogia da participação e


Você já conhecia o termo da escuta significa sim ter uma organização prévia acerca do dia de traba-
materiais não estruturados? lho com as crianças que irá começar, mas, sobretudo, estar atento às nuan-
É uma ideia potente na
Educação Infantil, que traz ces, aos detalhes, àquilo que chama a atenção das crianças e que possa se
a importância de objetos tornar um fator disparador de aprendizagem. Em quais espaços da escola
que possibilitem a criação e
a imaginação das crianças as crianças mais gostam de estar? De fato todos os espaços da escola são
que interagem com e sobre passíveis de serem utilizados por elas? A organização dos tempos privilegia
eles. No vídeo indicado, um
menino vive muitas aven- o adulto ou as crianças? Como podemos responder a essas questões e re-
turas a partir de uma caixa pensar nossa prática cotidiana com base nas experiências de Reggio?
de papelão. Com certeza,
um vídeo inspirador para os Não devemos nos tornar reféns de tempos rígidos em uma rotina
educadores pensarem as
práticas cotidianas. cansativa dentro dos espaços das escolas. Ao contrário, tempos e espa-
Disponível em: https:// ços devem ser nossos parceiros na busca por uma educação com cada
www.youtube.com/ vez mais qualidade, sendo utilizados a nosso favor na elaboração de
watch?v=S7SzabLDS0Q. Acesso
em: 30 nov. 2022. propostas criativas e potencializadoras de tudo aquilo que as crianças
são capazes de desenvolver.

86 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos contemporâneos sobre a infância e a Educação Infantil têm
demonstrado cada vez mais a complexidade e a responsabilidade de se
atuar com essa faixa etária, que é compreendida como uma etapa essen-
cial do desenvolvimento humano. A pedagogia, juntamente das demais
áreas do conhecimento, como a psicologia, sociologia, neurociências, tem
realizado importantes debates e pesquisas em prol de uma visão cada vez
mais integrada do ser humano. E, neste capítulo, tivemos a oportunidade
de pensar também na relação entre educação e arquitetura na promoção
de espaços que possibilitem que esse sujeito composto de tantas interre-
lações possa alcançar, ainda na infância, o máximo de sua potencialidade.
Compreendemos, portanto, que pensar nos tempos e espaços é tarefa
da equipe pedagógica das escolas, e que as práticas estarão intimamente
ligadas a eles, à medida que podem ou não privilegiar as experiências e a
conexão entre as pessoas que integram a comunidade educativa.
Embora saibamos que a realidade brasileira é ainda distante daquela
que se apresenta nos estudos das escolas italianas, especialmente no que
tange aos recursos destinados às escolas públicas, Reggio nos convida a
olhar para o belo, a apreciar a estética e a potência dos materiais. Não a
estética do adulto, mas a beleza através dos olhos das crianças e aquilo
que podemos apreender, a partir da visão delas, sobre a experiência do
tempo, que é diferente e única para cada um.

ATIVIDADES
Atividade 1
No início do capítulo, há o apontamento de que os espaços
educativos não são neutros. Qual o seu entendimento acerca de
tal assertiva?

Atividade 2
Por que Loris Malaguzzi considerava o espaço como terceiro edu-
cador? Qual a importância desse pensamento para a abordagem
Reggio Emilia?

Tempos e espaços na Educação Infantil 87


Atividade 3
De que forma a abordagem Reggio Emilia pode contribuir para que
pensemos sobre os tempos e espaços na Educação Infantil?

REFERÊNCIAS
GANDINI, L. et al. O papel do ateliê na educação infantil: A inspiração de Reggio Emilia. Porto
Alegre: Penso, 2012.
HORN, M. da G. S. Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na educação
infantil. Porto Alegre: Artmed, 2004.
RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia: Escutar, investigar e aprender. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2022.
JULIÁ, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação,
Campinas, n. 1, p. 9-43, 2001.
FORMOSINHO, J. Limoeiros e Laranjeiras. Revelando as aprendizagens. Coleção aprender
em companhia. Ministério da Educação, Lisboa, 2009

88 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


5
Contribuições de Reggio
Emilia no Brasil
Chegamos ao último capítulo de nossa disciplina. Percorremos um ca-
minho intenso, de muita reflexão, aprendizagem e descoberta sobre uma
abordagem educativa que é tão especial e que faz com que vários pro-
fissionais ao redor do mundo a queiram conhecer e estudar, bem como
encontrar maneiras de atuar de modo semelhante a ela.
Neste capítulo, pensaremos a respeito das contribuições da aborda-
gem de educação italiana no Brasil, refletindo sobre a importância de con-
textualizar cada um dos cenários, entendendo que não é possível a mera
reprodução de modelos ou teorias pedagógicas.
A Educação Infantil brasileira também possui sua história, marcada
por avanços, permanências e mudanças em um cenário social diverso e
amplo. Desconsiderar nossa história na tentativa de implantar um modelo
externo é um erro. Reggio nos inspira, mas somos responsáveis por cons-
truir, junto às crianças, nossa própria prática pedagógica.
Desejamos uma excelente e inspiradora leitura a todos!
Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• estabelecer relações entre a proposta pedagógica italiana e a
Educação Infantil brasileira, sendo capaz de distinguir as dife-
rentes realidades;

• entender a abordagem Reggio Emilia como uma inspiração, e não


como um modelo educativo a ser seguido;

• refletir sobre as concepções teóricas que subjazem a BNCC e a


pedagogia de projetos, pensando sobre suas divergências e possi-
bilidades de diálogos;

• pensar sobre as possibilidades de atuação do professor de edu-


cação infantil.

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 89


5.1 Reggio para inspirar,
Vídeo não para copiar
Ao longo dos capítulos, pudemos conhecer a filosofia e o trabalho
de Reggio Emilia, compreendendo que se trata de um trabalho com-
plexo, que envolve muito estudo, pesquisa e reflexão acerca da prática
pedagógica. A educação das crianças pequenas é vista como prioridade
não somente pela escola, mas por toda uma comunidade que se empe-
nha na construção de uma sociedade democrática.

Ao conhecermos essa abordagem, certamente temos o desejo de


modificar nossa prática pedagógica, de proporcionar experiências ino-
vadoras às crianças, de repensar os espaços, tempos e materiais que
utilizamos. Enfim, Reggio nos inspira, e, em certa medida, esse é um
dos objetivos que temos ao conhecer a abordagem.

Contudo, autores que estudam a pedagogia de Malaguzzi nos aler-


tam para o fato de que não é possível “copiar” Reggio Emilia, pois sua
proposta está situada em determinado tempo e lugar completamente
diferente da realidade brasileira. Dessa forma, conhecer a história de
Reggio não exclui a importância de que conheçamos muito bem o con-
texto em que estamos inseridos.

Embora o surgimento das instituições de atendimento à infância no


Brasil date do início do século XX, sabemos que, do ponto de vista le-
gislativo, foi somente a partir da década de 1980, com os processos de
redemocratização do Estado, com a Constituição Federal em 1988 e, es-
pecialmente, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
de 1996, que a Educação Infantil passou a integrar a Educação Básica na-
cional. A passagem da assistência à educação, no entanto, não ocorre de
Masyle/Shutterstock

90 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


maneira automática com a promulgação da LDB, mas vai se modificando
paulatinamente a partir de processos formativos dos profissionais, mu-
dança de concepção da sociedade, novas legislações e novos currículos
nos cursos de formação de professores, tudo isso em processos históri-
cos, sociais e culturais dinâmicos e não lineares, que acarretam mudanças,
mas também permanências, no que tange às práticas pedagógicas.

Fochi (2018), em publicação realizada pelo Ministério da Educação (MEC),


nos auxilia a pensar nos processos históricos trazendo a reflexão de que
desde o período indicado a Educação Infantil passa a ser compreendida
como um direito da criança, e não como um local de guarda para que seus
pais possam trabalhar, tampouco a ideia de pré-escola como uma educação
compensatória para crianças pobres ou de uma possível etapa preparatória
para o ingresso no Ensino Fundamental. Pouco a pouco, vai se constituin-
do uma identidade para essa etapa da Educação Básica, compreendendo-a
como espaço privilegiado de interação, aprendizagem e cultura da infância.
O autor aponta para alguns desafios diante da consolidação dessa nova
­concepção que, até os dias de hoje, ainda precisam ser enfrentados:
I. a necessidade de expansão do atendimento,
II. a ampliação do financiamento público,
III. a construção da identidade docente para o professor de crian-
ças de 05 anos,
IV. a formação desses profissionais em nível inicial e continuado,
V. a concepção de currículo, avaliação e conhecimento na e para
a Educação Infantil,
VI. a relação coexistente entre o direito das crianças e o direito
das famílias (em especial, em relação às diferentes organizações
de trabalho que os adultos vêm assumindo nos últimos anos),
VII. a produção de um conhecimento pedagógico para essa área,
que, em diálogos com as diferentes disciplinas (Psicologia, Socio-
logia, Filosofia, etc), esboce o conhecimento necessário para o
professor atuar nesses espaços,
VIII. a natureza da construção do conhecimento pelas crianças
com idade menor de seis anos. (BRASIL, 2018, p. 17)

Diferentemente de Reggio, especialmente pelo tamanho da popula-


ção, no Brasil a Educação Infantil ainda não é capaz de atender toda a
demanda. Um país tão grande quanto o nosso, com tantas diferenças
sociais e regionais, ainda conta com um número elevado de crianças
fora da escola, especialmente entre a idade de 0 a 3 anos, etapa em que
a matrícula não é obrigatória.

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 91


Em algumas regiões, para que a demanda seja atendida, é comum
que prefeituras realizem convênios com escolas privadas ou organi-
zações não governamentais, subsidiando o custo do aluno. Contudo,
­essas iniciativas muitas vezes prezam somente pela expansão das va-
gas, mas pouco incidem sobre a qualidade do atendimento ofertado.

Outro ponto importante que pode ser discutido com base nos
itens indicados refere-se à formação profissional. Embora a legislação
tenha avançado, consolidando o curso de Pedagogia como o indicado
para a formação inicial de professores no país, os currículos precisam
ser revistos para abarcarem a formação necessária ao trabalho com
a infância. Além disso, a formação continuada é essencial para o apri-
moramento profissional.

Na prática, sabemos que muitas escolas ainda não compreendem a


criança como um sujeito integral, dividindo ações de educação e cuida-
do, contratando profissionais sem a formação inicial básica (Pedagogia),
por meio de nomenclaturas diversas, como monitoras.

Por fim, a concepção de infância e um currículo condizente com as


especificidades da faixa etária também são grandes desafios. Muito
embora a legislação nacional tenha documentos importantes, como as
Diretrizes Curriculares Nacionais para e Educação Infantil (DCN, 2009)
e, recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), ain-
da encontramos práticas diversas e que não condizem com a educação
preconizada pelos documentos oficiais.

Por tudo isso, podemos perceber que não é possível copiar as práti-
cas de Reggio Emilia no Brasil. Mas o que é possível fazer então?

A partir dos estudos da proposta pedagógica italiana é possível nos


apropriarmos de conceitos fundamentais para a construção de uma
pedagogia da escuta da infância, uma pedagogia participativa, e assim
dialogar com nossa realidade. Para tanto, identificamos conceitos-cha-
ve que podem nos inspirar a repensar e modificar nossa prática:
• Concepção de criança: Malaguzzi nos ensina a enxergar a criança
como um ser completo em seu desenvolvimento. Competente,
imaginativa, criativa, capaz, que deve ser compreendida em suas
inúmeras linguagens. Compreender a criança desse modo altera
completamente a forma de o adulto se relacionar com ela. Deve
respeitá-la, considerar suas ideias e opiniões, compreender que,
nos processos de aprendizagem, são parceiros.

92 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


• Compreensão do espaço como terceiro educador: oportunizar
às crianças espaços ricos, amplos, que propiciem autonomia e
aprendizagem, o contato com a natureza, é uma ação possível
nas escolas brasileiras. Sem dúvida, o investimento público é
fundamental para que as escolas tenham espaços de qualidade,
mas não só os recursos financeiros. A concepção pedagógica e a
integração entre pedagogia e arquitetura são fundamentais para
repensar a questão do espaço.
• Trabalho em dupla de professores: a atuação de uma dupla de pro-
fessores por turma é uma proposta inovadora e que ainda conta
com poucas experiências no cenário nacional. O que encontramos,
de maneira geral, é um trabalho em dupla composto de professor
e auxiliar, ou professor e monitor. Esse segundo ­profissional pode
ter nomenclaturas diversas, mas o que o ­caracteriza é a falta de
formação específica, ficando responsável pelas ações de cuidado
das crianças (alimentação, troca de fraldas, por exemplo). A pro-
posta de dupla de professores rompe essa lógica que separa a re-
lação com a criança e possibilita que dois profissionais atuem em
parceria e cooperação.

Além desses três elementos principais que podem contribuir para


um novo olhar para as práticas das escolas brasileiras, no que se refere
à relação com a comunidade, Reggio também nos convida a repensar.
As famílias precisam se reconhecer como pertencentes à escola. O es-
paço da Educação Infantil não é um local de guarda da criança peque-
na para que a mãe possa trabalhar, como comumente se pensava no
Livro
­passado. É um espaço educativo, rico em aprendizagem, em cultura,
O livro Educar é a busca de
e as famílias só reconhecerão essa nova concepção se conhecerem a sentido narra a experiência
escola e atuarem nela, a qual vai se tornando uma pequena comunida- de sete jardins de infância,
centros para infância e
de. Nesse sentido, gestores, professores e toda a equipe precisam unir pais e cinco pré-escolas.
esforços para construir uma relação positiva com as famílias e com a A trajetória desses locais
retrata uma sociedade que
comunidade de maneira geral. A educação da infância precisa ser con- viu na Educação Infantil
cebida como primordial para uma sociedade. um dos caminhos para
a transformação. Nessa
Nossas primeiras reflexões sobre as inspirações de Reggio já são um linda obra italiana, que
foi traduzida para o por-
convite para voltar o olhar à nossa própria prática. Que ideia de criança nós tuguês, é possível obter
temos e que tipo de educação queremos? Com qual ideal social atuamos ainda mais inspirações.

e qual a importância da escola para essa sociedade? Não são respostas MARTINI, D. et al. São Paulo: Ateliê
Carambola Escola de Educação
simples e, em se tratando de uma instituição como a escola, precisam ser Infantil, 2020.
respondidas em conjunto, já que a participação de todos é fundamental.

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 93


5.2 Compartilhando experiências
Vídeo
Os trabalhos de Reggio Emilia começaram a ser conhecidos no B
­ rasil
nos anos 1990, a partir da exposição itinerante chamada As cem linguagens
da criança. Desde então, alguns autores passaram a estudar as práticas
italianas e trouxeram ao nosso país conceitos-chaves da abordagem.

Desde então, há uma busca por compreender Reggio e fazer com


que suas práticas inspirem os profissionais brasileiros na busca por
uma pedagogia que respeite a criança e possibilite que ela aprenda por
meio das mais diversas linguagens.

No entanto, para nós, tudo isso é ainda um grande desafio. De ma-


neira geral, verificamos que as iniciativas de diálogo entre as práticas
de Reggio e as escolas brasileiras ocorrem em instituições privadas de
ensino, sendo a abordagem Reggio Emilia muitas vezes utilizada como
propaganda de um projeto de escola inovadora, que encanta as famí-
lias. Aqui, já existe uma diferença conceitual, uma vez que as escolas
italianas fazem parte de um sistema municipal de Educação Pública,
que em nada remete às iniciativas privadas brasileiras.

Assim, ainda que tenhamos boas experiências inspiradas na obra


de Malaguzzi, é importante destacar essa diferença, pois se trata de
contextos totalmente diferentes. Como temos alertado desde o início,
não se pode copiar Reggio Emilia.

Dessa forma, apresentamos aqui três relatos de expe-


riência que podem nos auxiliar a pensar também em
nossos contextos de trabalho, na tentativa de
repensar antigos modelos e propor no-
vas experiências de aprendizagem
às crianças.

catwalker/Shutterstock

94 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


O primeiro relato foi destaque de uma reportagem produzida pela
revista Nova Escola (SANTOMAURO; NICOLIELO, 2016). Na primeira ex-
periência, uma escola pública da cidade de Joinville recebeu recursos
financeiros para a realização de um projeto e, inspirada por Reggio
Emilia, uma professora da pré-escola teve a ideia de construir uma
praça. Para tanto, levou a ideia ao grupo de crianças e juntos passa-
ram a elaborar o projeto.

Em um primeiro momento, o grupo realizou, junto à professora, a


escolha do local, bem como as ideias acerca daquilo que seria impor-
tante conter na praça e os materiais que poderiam ser utilizados. A
partir daí, passaram a realizar pesquisas, e o arquiteto espanhol Antoni
Gaudí foi uma das referências elencadas. As crianças estudaram a vida
e a obra de Gaudí, assistiram a vídeos, viram textos e imagens sobre
sua obra. Os mosaicos, marcantes em seus trabalhos, foram eleitos
para serem usados na praça da escola.

O desenvolvimento do projeto teve uma série de etapas antes de


tornar-se real: conversas, escolhas de materiais e cores, negociações
quando cada um tinha um desejo de algo diferente do outro e não era
possível atender a todos, elaboração de maquetes, estudos das medi-
das e grandezas para pensar no espaço, conhecimento do que é uma
planta baixa e da técnica de mosaico, bem como a realização de tra-
balhos com a técnica, a colaboração das famílias e a implementação
do novo espaço, que contou com um grande dia de inauguração e a
presença de crianças e familiares.

A reportagem em questão não faz menção à continuidade da pro-


posta ou ainda se toda a escola participou da construção da praça ou
se envolveu em projetos que tiveram Reggio como inspiração. De qual-
quer forma, o que nos interessa aqui é pensar que a aprendizagem
ocorreu por meio de processos inovadores, propostas que extrapolam
modelos tradicionais. Possuindo o recurso financeiro para a constru-
ção de uma nova praça, a escola poderia simplesmente contratar um
arquiteto e implementar o novo espaço. Em vez disso, ouviu as crianças
e construiu com elas todo o processo de planejar e pensar em um local
que foi feito para aquela comunidade específica. Nesse processo, uma
série de conteúdos foi mobilizada, e conceitos apreendidos de uma for-

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 95


ma que colocou as crianças como protagonistas. Isso é Reggio Emilia.
Contudo, é importante ressaltar que, para que de fato a proposta se
consolide em uma instituição de ensino, não basta a realização de um
projeto pontual, e sim esforços de toda a escola para que isso se torne
parte efetiva de sua proposta pedagógica.

Como exemplo de uma escola que vive a proposta italiana em seu


cotidiano, podemos citar o Ateliê Carambola Escola de Educação Infantil.
Inspirada nos princípios da proposta italiana, a escola é de iniciativa pri-
vada, possuindo duas unidades, e fica na cidade de São Paulo. Entre seus
princípios estão a importância de tempos e espaços que privilegiem o
bem-estar da criança, o cotidiano como conteúdo curricular e objeto de
sua proposta pedagógica, a experiência, o movimento e o brincar livre,
as relações entre todos da escola e a ideia de professor-pesquisador que
está em constante aprendizado com base em sua própria prática.

Os espaços são todos pensados para que possam ser utilizados


pelas crianças com autonomia. As salas de referência são verdadeiros
ateliês de arte e os ambientes externos possibilitam o contato com a
natureza, já que contam com tanque de areia, árvores frutíferas, horta
e um pequeno lago artificial. Mesas e cadeiras adequadas ao tamanho
das crianças ficam embaixo da sombra de plantas trepadeiras, criando
um espaço lúdico que privilegia o belo e promove o encantamento de
quem ali chega. Não há brinquedos feitos de materiais plásticos, nem
Maria Symchych/Shutterstock

EVA. Madeira, vidro e argila são materiais vistos por toda parte, indi-
cando que em uma das concepções da escola também reside evitar ao
máximo o uso de materiais extremamente nocivos ao meio ambiente.

Para além da escola, o Ateliê Carambola é hoje um importante centro de


estudos da abordagem Reggio Emilia, oferecendo cursos ao público exter-
no sobre documentação pedagógica, ateliê, entre outras temáticas
relacionadas à educação, inclusive organizando viagens de
cunho formativo à Itália.

Por fim, podemos citar a ação desenvolvida por


Fochi, criador do Observatório da Cultura Infantil
(Obeci), uma organização que visa ao aprimora-
mento ­profissional de professores de Educação
Infantil. Atualmente, atua em seis escolas na
região sul do país, sendo três delas privadas e
outras três públicas. A ideia é promover a inves-

96 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


tigação do cotidiano, atuando fortemente na questão da documentação Site
pedagógica, tornando visíveis as aprendizagens que ocorrem na esco- Você conhece o site do
Obeci? Criado pelo pro-
la. O professor Fochi foi um dos consultores do MEC na elaboração da fessor Fochi, o observa-
BNCC e é uma importante referência para nós no que se refere à educa- tório é uma comunidade
de apoio e desenvolvi-
ção da infância e ao diálogo com as práticas de Reggio Emilia. mento profissional para
educadores, atuando
O Observatório da Cultura Infantil também oferece propostas for- em estudos, pesquisas e
mativas e conta com uma série de materiais de leitura que colaboram formação de professores.
Conta com uma série
para um novo olhar para a infância e a educação. de publicações e cursos
que nos ajudam a pensar
Ao abordar essas experiências brasileiras, temos a intenção de novas formas de atuação
­demonstrar que o diálogo entre duas culturas tão distintas é possível, na Educação Infantil. Vale
a pena navegar pelo site e
mas que é necessário sempre considerar os contextos de criação de conhecer seu conteúdo.
cada uma delas, respeitando sua história, cultura e características.
Disponível em: https://www.obeci.
org/. Acesso em: 15 dez. 2022.
Assim, trazer Reggio para o Brasil significa, sobretudo, compreender
que é possível (re)construir uma Educação Infantil que respeite a crian-
ça, que a compreenda como sujeito real, desmistificando a ideia de
criança idealizada. Uma criança que vive intensamente suas experiên-
cias, que se expressa das mais diversas formas e que é completa em
sua etapa de desenvolvimento. A Educação Infantil não a prepara para
a vida, mas deve promover práticas cotidianas de qualidade para que
ela viva sua vida, que aprenda, cresça, possa interagir com pessoas, em
tempos e espaços pensados para ela e com ela.

5.3 Diálogos entre a BNCC e a


Vídeo pedagogia de projetos
Dialogar pressupõe sempre uma conversa entre dois ou mais ele-
mentos, em que há o momento da escuta e o da interlocução. A partir
do diálogo, novas ideias podem emergir, pontos de vista podem conver-
gir ou divergir, em uma dinâmica complexa envolvendo a comunicação.

Dessa forma, ao colocarmos aqui em diálogo duas concepções


distintas de educação, que emergem em contextos e culturas dife-
rentes, não há a intenção de classificar como melhor ou pior uma em
detrimento de outra, tampouco elencar um dos modelos como ideal.
Como temos dito desde o início, Reggio Emilia nos inspira, mas nem
sua abordagem, nem qualquer outra de qualquer outro país pode
ser copiada.

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 97


O trabalho com projetos realizado nas escolas da Itália já foi am-
plamente discutido até aqui, e retomaremos adiante. Mas, por hora,
vamos nos debruçar um pouco sobre o documento brasileiro que
hoje normatiza as práticas em todas as escolas de Educação Infantil
do país: a BNCC.

O primeiro ponto a ser destacado sobre a Base é que ela não


tem início em 2017 na ocasião de sua publicação. Na realidade, já
em 2009, quando as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educa-
ção Infantil foram publicadas, já se pensava em uma organização
curricular comum para creches e pré-escolas do país. “A organização
curricular da educação infantil pode se estruturar em eixos, centros,
campos ou módulos de experiências que devem se articular em tor-
no dos princípios, condições e objetivos propostos nesta diretriz”
(BRASIL, 2009, p. 16).

A organização curricular por meio dos campos de experiência emer-


ge, portanto, no parecer de 2009 sobre as Diretrizes, que, na ocasião, ti-
nham a intenção de trazer certo direcionamento às instituições do país.
Tendo sida incluída como etapa da Educação Básica somente com a pro-
mulgação da LDB em 1996, a organização curricular tinha uma série de
desafios a serem enfrentados em um país de tamanho continental como o
Brasil e que carregava um histórico de iniciativas díspares de atendimento
à infância. Além disso, muitas vezes, diferenças culturais e sociais acaba-
vam por produzir práticas distintas, que não garantiam os direitos básicos
de desenvolvimento e aprendizagem a bebês e crianças, especialmente
aos mais pobres. Escassez de recursos, má formação profissional e até
mesmo a falta dela e baixos salários são exemplos da precarização que
muitas escolas sofreram e ainda sofrem em várias regiões do país.

Dessa forma, tanto as diretrizes quanto, mais recentemente, a


BNCC pretendem trazer concepções e ações que devem ser garantidas
a todas as crianças que frequentam as creches e pré-escolas do país.

Outro ponto importante deve-se ao fato de que quando um docu-


mento normativo nacional apresenta nomenclaturas como campos de
experiências, situações de aprendizagem, entre outros, está instauran-
do um novo repertório de conceitos que visa contemplar as especifi-
cidades da Educação Infantil, na tentativa de romper com conceitos
que até então eram adaptados do Ensino Fundamental. Rompe com

98 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


a lógica disciplinar, instaurando um novo campo semântico que ainda
precisa de muito estudo e reflexão no interior das instituições.

A BNCC foi bastante criticada na ocasião de sua publicação, já que


o país passava por tensões políticas que acabaram por interferir na
elaboração do documento. Sua publicação ocorre no mesmo período
em que ocorrera o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.
Durante o processo de elaboração da Base, seus consultores indicados
pelo governo foram substituídos e, ao ser publicado, o documento teve
várias alterações em relação às versões preliminares.

Além disso, autores críticos da BNCC colocam o questionamento de


que os campos de experiência acabam sendo somente uma mudança
de nomenclatura, mas que na realidade referem-se às áreas de conhe-
cimento do Ensino Fundamental e que, ao propor campos distintos,
acabam por perpetuar a lógica de dividir o conhecimento por discipli-
nas, fragmentando a criança. 1
De fato, a crítica se faz pertinente, uma vez que nós, professores, Segundo o professor
Paulo Fochi, de todas
como já dissemos, estamos tão habituados com os processos de es- as etapas da Educação
colarização e com a divisão dos tempos por disciplinas que acabamos Básica que compõem a
Base, a Educação Infantil
reproduzindo esse cenário na Educação Infantil. Há escolas, por exem- foi a que sofreu menos
plo, que, ao implantar a BNCC em seu currículo, dividem as atividades alterações em sua versão
final, ficando sua con-
pedagógicas em campos de experiência, sendo cada dia da semana um cepção inicial de que a
campo a ser trabalhado. ênfase dos processos de
aprendizagem deve ser a
O professor Paulo Fochi (2020), no entanto, que também foi con- criança, e não o conheci-
1 mento, como ocorre nas
sultor da BNCC em sua primeira versão , alerta que essa seria uma etapas posteriores.
forma equivocada de compreender os campos de experiência
e destaca a compreensão de criança como sujeito inte-
gral, estando os campos presentes na vida cotidiana da
escola, inclusive nas relações de cuidado, tempos im-
prescindíveis no trabalho com as crianças pequenas.

Os campos de experiência, portanto, trazem


um amadurecimento da epistemologia da Edu-
cação Infantil, a partir dos quais são definidos
os objetivos de aprendizagem. Os cam-
pos englobam cinco áreas:
Dean Drobot/Shutterstock

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 99


Yellow duck/Shutterstock
1 Eu, o outro e o nós

2 Corpo, gesto e movimentos

3 Traços, sons, cores e formas

4 Escuta, fala, pensamento e imaginação

Espaços, tempos, quantidades, relações


5 e transformações

Sob essa perspectiva, os campos de experiência visam demonstrar


que, embora seja fundamental a Educação Infantil como parte inte-
grante da Educação Básica nacional, ela vem, pouco a pouco, cons-
truindo sua própria identidade, trazendo concepções e práticas que
lhe são próprias. Para ser considerada educação, não precisa copiar
ou a
­ daptar ideias do Ensino Fundamental, pois precisa considerar
todas as especificidades de atuação de determinada faixa etária. O
documento, ao menos na parte em que trata especificamente da Edu-
cação Infantil, apresenta ­concepções de aprendizagem, currículo e
criança diferentes daquelas que são preconizadas nas demais partes
do material. Aqui, a centralidade da educação está na criança, e não
no conhecimento ou nos conteúdos.

A BNCC exerce caráter normativo na educação nacional, portan-


to sua implantação, tanto nas escolas públicas quanto nas privadas,
não é opcional. Ela não é o currículo, mas defende que o currículo na
Educação Infantil é aquele vivenciado no cotidiano das instituições, é
construído a partir da experiência e das relações. Assim, após os es-

100 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


tudos da Base, cada município deve elaborar seu próprio documento,
contextualizando, inclusive, os campos de experiência com base nas
especificidades regionais e culturais.

Por tudo aqui explicitado, é possível afirmar que há um fortuito


diálogo entre BNCC e Reggio Emilia, desde que aprendamos a fazer
a leitura de nosso documento nacional e que não busquemos copiar
Reggio. A seguir, apresentamos alguns pontos específicos que podem
nos auxiliar nesta conversa.
• Os campos de experiência trazem uma concepção sociointe-
racionista da educação, compreendendo que o conhecimento
acontece nas relações, assim como verificamos que ocorre na
abordagem italiana.
• O currículo de ambas as propostas se sustenta na práxis, ou seja,
deve emergir do cotidiano, das experiências e das relações.
• Há uma intencionalidade do trabalho pedagógico voltada para a
vida cotidiana. Nesse sentido, ambas as propostas concebem ativi-
dades como comer, dormir e trocar fraldas como partes essenciais
do currículo.
• O currículo é uma forma de interpretar a vida na escola que vai
sendo construída a partir do olhar do adulto, que precisa estar
atento às minúcias do cotidiano, entendendo que essas interpre-
tações vão dando sentido às experiências vividas pelas crianças,
que, no dia a dia, vivenciam tudo de maneira intensa e integral.

Por tudo isso, compreendemos que a vida na escola, e também fora


dela, para a criança é um grande laboratório de aprendizagem, relação
e experimentação.

Já sobre as diferenças que podemos pontuar entre as duas aborda-


gens, destacamos algumas a seguir.

Enquanto em Reggio estamos falando de um sistema municipal de


ensino pequeno, a BNCC pretende englobar todas as regiões de um país
de proporções continentais. E isso é um desafio enorme, considerando
as diferenças regionais, sociais e culturais que nosso país apresenta.

A formação de professores, tanto inicial quanto continuada, tam-


bém é um grande desafio quando pensamos em nossa realidade. O
currículo dos cursos de formação inicial muitas vezes ainda não con-
templa as especificidades da ação pedagógica junto a bebês e crian-

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 101


ças pequenas, e a falta de valorização do professor contribui para que
muitos sequer realizem uma formação continuada após a graduação.

Outra diferença é a visão da comunidade com relação à Educação


Infantil. Enquanto em Reggio há um esforço desde sua origem de con-
solidar a participação da comunidade nas escolas, como uma forma
de pensar a sociedade de maneira mais ampla, no Brasil ainda há
muito que caminhar no que se refere à parceria entre escola, família
Vídeo
e comunidade. Isso se deve porque ainda carregamos, especialmente
No vídeo Aula aberta –
na creche, um estereótipo marcado pela assistência, e dividindo as
Pedagogia Unisinos – A Base
Nacional Comum Curricular instituições públicas e privadas, marcando as primeiras como locais
e a Educação Infantil o
de abrigo às crianças menos favorecidas economicamente.
professor Paulo Fochi, um
dos consultores da elabo-
O termo progettazione utilizado em Reggio traz a ideia de que são os
ração da BNCC, aborda
desde seu processo de projetos que emergem do cotidiano que dão vida ao currículo, o qual
elaboração, as primeiras
ainda precisa ser mais bem estudado, refletido e pesquisado nas esco-
versões, até a versão final
publicizada e problematiza las do Brasil. Trabalhar com projetos é complexo e exige muito estudo
os usos e apropriações que
e conhecimento.
as instituições têm feito
do documento. Uma aula
Por tudo isso, acreditamos na importância do diálogo entre a Base
completa, esclarecedora,
que nos ajuda a compreen- e a abordagem italiana. Conhecer outras culturas e ideias acerca da
der a ideia dos campos de
educação contribui para que repensemos antigas formas de educar e
experiências propostos
pelo documento. cuidar de nossas crianças. O mundo mudou, a cultura mudou e vive-
Disponível em https:// mos um movimento constante em que o que se pensava ontem pode
www.youtube.com/ não ser mais ideal hoje e, provavelmente, deverá ser revisto amanhã. A
watch?v=uB8CQPr8jf8&t=7134s.
Acesso em: 16 dez. 2022. educação não pode ficar de fora desse movimento, visto que é uma das
mais importantes instituições sociais da nossa sociedade.

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102 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


5.4 Possibilidades de atuação
Vídeo e transformação
Com base em tudo que foi escrito até aqui, como pensar em um
­currículo que emerge do cotidiano das crianças? Quais as possibilida-
des reais de atuação e transformação em nossos contextos de traba-
lho? Sem a pretensão de trazer “receitas” prontas de alguma proposta
pedagógica, o intuito desta seção é trazer algumas ideias que possam
servir de inspirações para que cada leitor se debruce sobre sua própria
prática e vislumbre novas possibilidades de atuação e transformação
da educação. Para tanto, a citação a seguir, de 2009, que está no pare-
cer do MEC sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, dá início à discussão:
na explicitação do ambiente de aprendizagem, é necessário pensar
“um currículo sustentado nas relações, nas interações e em práticas
educativas intencionalmente voltadas para as experiências concretas
da vida cotidiana, para a aprendizagem da cultura, pelo convívio no
espaço da vida coletiva e para a produção de narrativas, individuais
e coletivas, através das diferentes linguagens. (BRASIL, 2009, p. 14)

Um currículo baseado nas experiências da vida cotidiana é aquele


que vai compreender os campos de experiência como pertencentes a
essa dinâmica, entendendo a criança em sua inteireza, e não comparti-
mentada por campos disciplinares.

Além disso, as práticas curriculares devem contemplar os direitos de


aprendizagem que, por sua vez, se sustentam nos princípios da Educa-
Da Antipina/Shutterstock

ção Infantil. Assim, podemos pensar em uma espécie de divisão didática,


apenas para compreensão e organização curricular, da seguinte forma:

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 103


Princípios das propostas pedagógicas na Educação Infantil (BRASIL,
2009, p. 16):
Éticos: da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e
do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes
culturas, identidades e singularidades.
Políticos: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e
do respeito à ordem democrática.
Estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da li-
berdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e
culturais (BRASIL, 2009, p. 16).

Nessa dinâmica, os direitos de conhecer-se e conviver estão inseridos


como parte dos princípios éticos; participar e expressar seriam engloba-
dos como princípios políticos; por fim, brincar e explorar são princípios
estéticos que devem ser garantidos pelas instituições de Educação Infantil.

A garantia desses direitos deve permear todo o cotidiano do trabalho.


Ao trocar a fralda do bebê, por exemplo, de maneira respeitosa, em um
ambiente seguro, confortável, em uma relação afetiva entre adulto e crian-
ça, estamos promovendo o direito de a criança conhecer a si mesma, seu
corpo, ao mesmo tempo em que convive com o outro que fala com ela,
explica seus movimentos, que sua fralda está suja e que precisa ser troca-
da ou que irá colocá-la na banheira para se refrescar em um dia de calor.

É um exemplo simples, que mostra como os direitos de aprendi-


zagem, bem como os campos de experiência, estão no cotidiano das
escolas de maneira natural, sem a necessidade de planejar uma ati-
vidade muitas vezes artificial, tentando englobar determinado cam-
po. Os campos de experiência não podem ser vistos como objetivos
a serem cumpridos na jornada das crianças dentro da escola. Eles
fazem parte da vida.

Por certo que, para além das ações de cuidado, a marca da intencio-
nalidade pedagógica se faz presente em todos os momentos da rotina,
inclusive demarca a importância de que o professor planeje situações
de aprendizagem ricas para as experiências das crianças. O trabalho
com as artes, a música, a literatura, entre outros é fundamental para as
crianças da Educação Infantil, desde o berçário.

Dessa forma, na tentativa de garantir os direitos de aprendizagem


e a elaboração de um currículo de qualidade, que valorize as expe-
riências e culturas infantis, abordamos alguns pontos para pensar e
atuar de maneira inovadora na prática pedagógica. Não somente o

104 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


­professor, mas também os gestores e demais profissionais da escola
devem estar inseridos nessa dinâmica, visando a uma educação de
cada vez mais qualidade para as crianças.

Assim, do ponto de vista dos gestores, podemos pensar nas seguin-


tes questões:
• Formação continuada: os encontros de formação continuada
precisam fazer parte do cotidiano das instituições e não de-
vem se resumir a cursos e palestras externos à escola. A teoria
precisa estar em consonância com a prática pedagógica e, por
isso, é importante que, junto à reflexão teórica, haja o olhar
para a própria prática. O professor pesquisador é aquele que
consegue refletir sobre seu fazer pedagógico, dialogar com as
teorias que subjazem à ação docente e ser capaz de problema-
tizar questões do cotidiano.
• Gestão democrática: é aquela em que todos, inclusive as crianças,
têm voz, e as ações são pautadas no bem comum. A escola, es-
pecialmente quando se trata da pública, é um direito subjetivo e
incontestável, um compromisso social. Não é um local onde cada
um faz o que quer, da forma como bem entende. É um espaço
educativo, social e político, e o gestor precisa ter clara a função
social da escola para promover práticas democráticas, participa-
tivas e emancipadoras.
• Relação com a comunidade: Reggio nos ensina a importância da
relação entre escola e comunidade. Para isso, é preciso que a es-
cola abra suas portas, divulgue seu trabalho, amplie a visão que as
famílias possuem acerca da Educação Infantil. Uma educação de
qualidade se constrói junto, considerando a criança como um ser
social que, ao entrar na escola, já possui um repertório prévio de
experiências que não pode ser desconsiderado.

Os professores, por sua vez, podem ter em mente alguns elemen-


tos para revisitarem suas práticas:
• Organização dos tempos e espaços: os tempos da rotina estão
organizados de modo a contemplar as crianças ou os adultos?
Há o tempo de brincar livre, o brincar dirigido, o brincar junto e o
sozinho? Sabemos que a rotina na Educação Infantil é organiza-
dora dos tempos e importante para o sentimento de segurança
da criança. Porém, dentro de uma rotina preestabelecida, deve
haver espaço para o novo, para o encantamento, o extraordiná-

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 105


rio. Às vezes, a simples descoberta de um formigueiro no par-
que, por exemplo, gera uma grande novidade, um encantamento
para as crianças, que pode resultar em um lindo projeto. Mas se
o ­professor está mais preocupado em cumprir um planejamento
prévio, com horários e atividades inflexíveis, ele sequer irá perce-
ber essa rica possibilidade de aprender que está em suas mãos.

Os espaços, por sua vez, devem ser de qualidade, com materiais


ricos em texturas e sensações. Não significa que a escola preci-
sa ter muitos materiais ou produtos caros. Utensílios de plástico,
por exemplo, devem ser evitados, pois, além de serem pobres do
ponto de vista das sensações táteis que promovem, são materiais
extremamente poluentes e de pouca durabilidade. Objetos de ma-
deira, tecidos, elementos da natureza, como areia, argila, semen-
tes e flores privilegiam a estéticas dos espaços e promovem outro
tipo de interação para as crianças.

• Interações: os vínculos afetivos entre crianças e seus profissionais


de referência são fundamentais. Para além da relação da criança
com a família, é provável que a relação com o professor seja a de
maior importância para bebês e crianças pequenas. As mãos que
tocam a criança serão a forma como ela perceberá o mundo. De
qual mundo você quer que sua criança se aproprie? Um mundo
Livro suave, delicado, que a respeita, que fala com ela em voz baixa,

O livro O balanço de chita,


que explica quando vai tocar seu corpo para trocá-la, que oferta
fruto da documentação a comida sem pressa e a auxilia a desenvolver uma relação não
pedagógica produzida a
somente de nutrir, mas de afeto e interação com o alimento, ou
partir de uma vivência de
um grupo de crianças com um mundo agitado, um lugar onde os adultos conversam entre si
idades entre 1 e 3 anos, e as crianças são meros expectadores?
nos ajuda a pensar como
projetos que emergem
A qualidade das interações é essencial para o trabalho na Educa-
das experiências das crian-
ças podem ser enrique- ção Infantil e deve ser ponto de pauta dos encontros formativos, pois,
cedores e imprescindíveis
muitas vezes, interações pobres entre os adultos repercutem na ação
para o seu desenvolvi-
mento e aprendizagem, pedagógica junto às crianças.
­colocando-as como
protagonistas de todo o Por fim, a promoção de tempos e espaços de qualidade para as cul-
processo. Imagens apaixo- turas infantis, ou seja, dos bebês entre eles, das crianças entre elas. Em
nantes para inspirar.
uma sociedade em constante mudança no que se refere às configura-
PAREJA, J. São Paulo: Ateliê Carambola
Escola de Educação Infantil, 2022. ções familiares, muitas vezes a creche e a pré-escola são os locais pri-
vilegiados onde as crianças podem viver entre elas. Respeito ao outro,

106 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


compreensão de que sua ação causa um efeito no outro, brincar junto,
dividir brinquedos, dividir a atenção do professor e aguardar sua vez
são aprendizados que a criança leva consigo para a vida inteira. São
componentes curriculares na Educação Infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como um viajante que ao retornar de um lugar nunca visitado
contempla suas memórias e histórias do vivido, encerramos este capítulo
contemplando tantas ideias que podem ser colocadas em prática na busca
de uma Educação Infantil de cada vez mais qualidade para nossas crianças.
Viajar é um movimento único, que nos tira do conforto de nossa casa, nossa
rotina, e nos leva a conhecer paisagens e pessoas até então desconhecidas.
Reggio Emilia nos propõe movimento semelhante, um convite a nos
deslocarmos de nossos corriqueiros pontos de vista, de colocar a dúvida
em meio àquilo que acreditamos ter certeza. A criança vê o mundo como
um viajante. Tudo para ela é novidade, encantamento. Esse é o convite
para repensar a educação e a forma como concebemos nossas práticas.
Que essas reflexões sejam somente as primeiras de muitas em que
você possa buscar aprofundamento teórico, conhecimento, e que sempre
haja espaço para o diálogo, a partilha e o aprendizado. Entre educadores,
demais profissionais e, especialmente, você e as crianças. Elas sempre
têm muito a nos ensinar.

ATIVIDADES
Atividade 1
Discutimos várias vezes a importância de termos a abordagem
Reggio Emilia como inspiração, e não como cópia. Qual seu enten-
dimento dessa questão?

Atividade 2
Qual a importância de nos aprofundarmos na compreensão acerca
dos campos de experiência propostos pela BNCC?

Contribuições de Reggio Emilia no Brasil 107


Atividade 3
Quais as possibilidades de diálogo entre a proposta italiana e a
BNCC?

REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 15 dez. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica.
Parecer CNE/CEB 20/2009. Brasília, DF: Ministério da Educação, 11 nov. 2009. Disponível em
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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC, 2010.
PAULO Fochi: o que a educação brasileira pode aprender com Reggio Emilia. Desafios da
educação, jul. 2020. Disponível em: https://desafiosdaeducacao.com.br/reggio-emilia-brasil-
paulo-fochi/. Acesso em: 16 dez. 2022.
SANTOMAURO, B.; NICOLIELO, B. Conheça experiências brasileiras inspiradas em Reggio
Emilia. Nova Escola, jul. 2016.

108 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


Resolução das atividades
1 Reggio Emilia: história, influências e perspectivas
1. Explique em que contexto histórico foram criadas as primeiras
iniciativas para o surgimento da abordagem Reggio Emilia.
O nome da abordagem Reggio Emilia se deve à cidade italiana onde se
originou o trabalho, ao final da Segunda Guerra Mundial, quando uma
comunidade decidiu reconstruir com suas próprias mão e gerir com
seus próprios esforços e recursos escassos as escolas destinadas
às crianças. A ideia estava pautada em um ideal democrático de
sociedade mais justa e igualitária.

2. Quem foi Loris Malaguzzi e qual sua importância para a experiência


de Reggio Emilia?
À época da construção da primeira escola, em um vilarejo chamado
Villa Cella, na região de Reggio, Loris Malaguzzi, ainda um jovem
professor, conheceu a iniciativa daquela comunidade e passou a
fazer parte daquele ideal. Com suas ideias progressistas e estudos
acerca de várias teorias psicopedagógicas, Malaguzzi é considerado
o fundador da abordagem Reggio Emilia, dedicando sua vida à
construção de uma educação infantil de qualidade, que respeitasse
as inúmeras linguagens e formas de expressão das crianças.

3. Explique o significado da expressão cem linguagens das crianças.


Loris Malaguzzi, ao instituir a questão das cem linguagens da criança
por meio de seu poema homônimo, pretendia fazer uma crítica ao
modelo tradicional de ensino, que, por meio de conteúdos e atividades
predefinidas e prescritivas, acaba por valorizar determinados tipos
de saberes, como ler, escrever e contar. Ao contrário desse modelo
educativo, a proposta de Malaguzzi é a de que há uma multiplicidade
de expressões por parte das crianças que precisam ser valorizadas
no espaço educativo. É por meio das cem linguagens que as crianças
constroem seus percursos de aprendizagem. Portanto, a valorização
da criatividade e da função simbólica são princípios norteadores da
abordagem Reggio Emilia, podendo ser expressas não somente a
partir da escrita, mas das artes, do movimento, de dramatizações, de
pinturas e de brincadeiras etc.

Resolução das atividades 109


2 Parceria entre escola, família e comunidade
1. Por que é possível considerar a infância como construção histórica?
É possível pensar na infância como construção histórica porque os
estudos da área apontam para uma diferença entre os termos criança
e infância, sendo o primeiro caracterizado pelas questões biológicas
do desenvolvimento, enquanto o segundo demarca características
sociais e culturais que, ao serem alteradas ao longo dos anos,
modificam também a visão da sociedade acerca da infância.

2. Quais as premissas básicas para a construção de uma prática


baseada na pedagogia da escuta?
A pedagogia da escuta refere-se ao olhar atento e sensível do
educador com relação às diversas manifestações e expressões das
crianças. Escutar significa estar disponível, livre de preconceitos,
aberto a novos conhecimentos. Escutar traz ainda a ideia de que
perguntas construtivas são mais importantes que respostas prontas.
Incentivar a curiosidade e a imaginação da criança e considerá-la
como um sujeito potente e capaz também são formas de promover
a escuta.

3. Quais ações são consideradas como exemplos da participação das


famílias nas escolas de Reggio?
Loris Malaguzzi apresenta uma série de ações que possibilitam
a participação das famílias nas escolas. Dentre elas, citamos os
encontros de boas-vindas aos novos pais, o compartilhamento dos
contatos pessoais entre todos, para que haja um relacionamento
dentro e fora da escola, organização de visitas às casas, bem como
passeios culturais, além da participação em eventos, desde a sua
organização.

3 O papel da documentação pedagógica


1. Refletindo sobre as várias formas de documentar os processos e as
aprendizagens nas escolas e instituições de Educação Infantil, por
que constatamos que o modelo tradicional de documentação não
condiz com a proposta de Reggio?
As formas de documentar as aprendizagens tradicionalmente são
conhecidas como as avaliações, ou seja, o professor ensina e o aluno
demonstra se aprendeu por meio de provas e/ou trabalhos. Esse
modelo, além de não ser adequado para a Educação Infantil, carrega

110 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


em si uma concepção de criança que está na escola simplesmente
para adquirir conhecimento. Se para a abordagem Reggio Emilia temos
uma nova concepção de criança, potente, criativa e capaz, e a escuta
de seus interesses e motivações é essencial para as aprendizagens,
também as formas de documentar precisam ser modificadas para
que demonstrem todos os processos vivenciados no cotidiano das
crianças e de seus professores.

2. Qual a diferença entre documentação pedagógica e registro, e


por que é importante pontuar tal diferenciação no trabalho com a
Educação Infantil?
Embora alguns autores considerem as duas palavras como sinônimos,
o registro seria o que antecede a documentação, ou seja, faz parte dela,
mas torna-se documentação pedagógica a partir do momento em que
há reflexão sobre a prática e sobre os processos de aprendizagens
das crianças. Assim, uma fotografia, por exemplo, é um registro, mas
só será de fato uma documentação pedagógica, tal qual a proposta
de Reggio, a partir do momento em que ela se compuser com outros
registros (como a transcrição das falas das crianças, a descrição da
experiência, os objetivos de aprendizagens, entre outros), resultando
em um conjunto de elementos que possibilitam a visualização do
trabalho realizado.

3. Cite ao menos três características importantes para que o espaço da


escola seja considerado promotor da documentação pedagógica,
contribuindo para que as aprendizagens se tornem visíveis a todos.
Para que um espaço seja considerado promotor da documentação
pedagógica, ele precisa ser flexível, de maneira a ser modificado de
acordo com os projetos, precisa ser agradável e acolhedor. Outro
ponto importante se refere ao fato de que nunca se deve ter o
objetivo de “decorar”, mas sim pensar em um propósito pedagógico
e intencional.
Os espaços devem ainda possibilitar que aqueles que o frequentam
consigam verificar os percursos de aprendizagens das crianças, os
quais devem promover experiências significativas e serem organizados
para que as crianças usufruam dele de maneira autônoma
Por fim, os espaços devem ir se alterando à medida que os projetos
avançam, ficando mais elaborados durante o ano.

Resolução das atividades 111


4 Tempos e espaços na Educação Infantil
1. No início do capítulo, há o apontamento de que os espaços
educativos não são neutros. Qual o seu entendimento acerca de
tal assertiva?
Os espaços educativos demarcam concepções de educação e infância
que não são neutras, mas sofrem influência dos contextos políticos,
sociais e culturais de cada época e lugar em que estão inseridos.
Nesse sentido, é importante desnaturalizar o espaço da escola,
para que seja possível repensar as formas de educar, buscando
sair de propostas tradicionais e trazendo a criança para o centro da
aprendizagem. Nesse movimento, repensar tempos e espaços se faz
fundamental para a modificação das práticas educativas.

2. Por que Loris Malaguzzi considerava o espaço como terceiro


educador? Qual a importância desse pensamento para a
abordagem Reggio Emilia?
Malaguzzi considerava o espaço tão importante quanto qualquer
outro elemento da prática educativa, de modo que ele comporia
a educação das crianças, juntamente dos dois educadores de
referência da turma de crianças. Tal pensamento é importante para
a abordagem italiana, pois desde a construção das escolas até as
adaptações dos espaços, brinquedos, demais objetos e mobiliários
são cuidadosamente pensados a partir da concepção de infância
que se tem e do tipo de educação emancipadora, participativa e
democrática que se pretende construir.

3. De que forma a abordagem Reggio Emilia pode contribuir para que


pensemos sobre os tempos e espaços na Educação Infantil?
Reggio nos convida a repensar as práticas deslocando a centralidade
do adulto e organizando os tempos e espaços a partir das necessidades
das crianças. Para tanto, as rotinas precisam ser flexíveis e as crianças
precisam ser ouvidas para que se faça o planejamento pedagógico. As
atividades significativas não podem ser interrompidas por conta de
uma dinâmica institucional do adulto e devem privilegiar tempos de
qualidade, para que as crianças utilizem os espaços da melhor maneira
possível, explorando materiais, criando e interagindo entre si.

112 Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil


5 Contribuições de Reggio Emilia no Brasil
1. Discutimos várias vezes a importância de termos a abordagem
Reggio Emilia como inspiração, e não como cópia. Qual seu
entendimento dessa questão?
Não é possível copiar Reggio, uma vez que sua abordagem está
inserida em determinado contexto social e cultural muito distinto
do cenário brasileiro. No entanto, seus pressupostos teóricos, seu
entendimento acerca da importância da Educação Infantil para a
sociedade e da concepção de criança e trabalho pedagógico nos
inspiram para que também possamos ampliar nossos olhares e
modificar nossas práticas.

2. Qual a importância de nos aprofundarmos na compreensão acerca


dos campos de experiência propostos pela BNCC?
Os campos de experiência não podem ser vistos como adaptações das
áreas de conhecimento do Ensino Fundamental, mas sim como uma
ruptura do modelo escolarizante e uma nova base epistemológica para
a Educação Infantil. Os campos não são objetivos a serem cumpridos
ao final do dia, eles permeiam todo o cotidiano de experiências vividas
pelas crianças nas creches e pré-escolas.

3. Quais as possibilidades de diálogo entre a proposta italiana e a


BNCC?
Os campos de experiência trazem uma concepção sociointeracionista
da educação, assim como ocorre na abordagem italiana. Em ambas as
propostas, a ideia de currículo diz respeito às interações e experiências
vivenciadas na escola. Nessa medida, a intencionalidade das práticas
volta-se para o cotidiano das relações, e a compreensão de criança
como sujeito integral e intenso inserida nesse contexto é valorizada,
colocando-a como centro de todo o processo.

Resolução das atividades 113


Código Logístico ISBN 978-65-5821-207-2

I000921 9 786558 212072

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