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UNOPAR
Sociedade,
educação e
cultura
ISBN 978-85-8143-647-0
C M Y K CL ML LB LLB
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Sociedade,
educação e
cultura
A
a
S
M
E
AvaliacaoAcaoDoc
Avaliação
Sociedade,e
ação docente
educação e
cultura
Sandra
Okçana Regina
Battini dos Reis Rampazzo
Marlizete Cristina Bonafini Steinle
Giane Albiazzetti
Edilaine Vagula
Fábio Luiz da Silva
Battini, Okçana
Sociedade, educação e cultura / Okçana Battini, Giane Albiazzetti,
Fábio Luiz da Silva — São Paulo : Pearson Education do Brasil, 2013.
ISBN 978-85-8143-647-0
13-01721 CDD‑306.43
2013
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Sumário
vi S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Referências.................................................................177
Carta ao aluno
Apresentação
O presente texto aborda a importância do homem como agente responsável pela cons‑
trução da realidade social, enfocando a cultura e a educação como categoria central para
a constituição das relações sociais vigentes. Para isso, torna-se essencial a discussão dos
princípios do modo de produção capitalista e sua influência nos aspectos econômicos,
políticos e culturais, sendo que são esses fatores que sustentam a sociedade e a formação
do ser social.
Para isso devemos analisar o processo de expansão europeia a partir do século XV e da
dominação colonialista e imperialista, com suas consequências sobre a organização social,
cultural, política e econômica dos povos dominados. Além disso, o livro propõe uma dis‑
cussão em relação às implicações desse processo colonialista e imperialista sobre o caso
particular do Brasil, especialmente no que se refere à formação histórica da sociedade e
da cultura brasileira, enfatizando-se as relações de dominação política e econômica como
fundamentos da hierarquização social e das desigualdades étnicas e de classe ao longo da
nossa história.
O passado, portanto, não pode ser tomado como obra do acaso ou de meros aciden‑
tes históricos, tampouco como o acúmulo progressivo de grandes atos e feitos heroicos
de homens especiais. O que o professor Mota (1974, p. 14, grifo do autor) propõe é que
“[...] há em curso uma história profunda, lenta, silenciosa, subterrânea, uma história das
estruturas, diversa de uma história de superfície, rápida, leve, do dia a dia, uma ‘história
dos acontecimentos’”.
Assim, o presente e o cotidiano passam a ser reconhecidos como resultado de um
contexto mais amplo, que comanda os bastidores da realidade social, e por isso todas as
evidências históricas têm que ser pesquisadas e analisadas em suas inúmeras facetas. Eric
Hobsbawm, em seu livro Era dos extremos (2000), afirma que essa articulação entre passado
e presente é recuperar dados precisos e comprováveis acerca da trajetória humana ao longo
do tempo, fornecendo informações indispensáveis para a compreensão da realidade social.
As questões tratadas neste livro procuram ser analisadas sob essa perspectiva crítica,
enfatizando especialmente as contribuições da Educação e da Antropologia Cultural atra‑
vés do entendimento dos conceitos educação e formação humana, inclusão e diversidade,
alteridade e relativismo cultural e sua importância para a superação do etnocentrismo que
sempre esteve presente nas relações entre grupos culturalmente diferentes. Trata-se, portanto,
de um material de apoio indispensável, cuja leitura e estudo se tornam obrigatórios para a
formação acadêmica e profissional de vocês.
Unidade 1
A explicação
sociológica da vida
coletiva
Okçana Battini
Introdução ao estudo
A mudança do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista propor‑
cionou transformação na história da humanidade e consequentemente nas relações sociais
existentes em sua totalidade. Esse processo deriva de determinados acontecimentos históricos,
séculos XV a XVIII, que trouxeram à tona novas leituras sobre o papel do homem e da ciência
na sociedade. Vamos conhecê-las?
1.1 A
lgumas transformações na sociedade: séculos
XV a XVIII
Um momento muito interessante de ser analisado dentro da história da nossa sociedade é
o surgimento de que alguns autores chamam de pré-capitalismo, que vai do século XV — as
Grandes Navegações (século XV), o Renascimento (século XVI) e a Reforma Protestante (século
XVI) — até o final do século XVIII — com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Esses
acontecimentos são fundamentais para entendermos as condições históricas que permitiram o
surgimento da sociologia como ciência. Assim podemos perceber que a história e a sociologia
andam em conjunto, no que diz respeito a interpretação das transformações sociais.
Em um primeiro momento devemos pensar a sociedade estruturada sobre o modo de pro‑
dução feudal. A Europa nesse momento fundamentava-se principalmente em torno da terra e
da propriedade privada da terra, sendo que sua organização era ligada ao trabalho rural, sua
principal fonte de org anização social.
Nessa sociedade de base agrária, o modo de viver das pessoas era completamente diferente
de hoje, com pouco comércio, cujas cidades não passavam de pequenas aldeias e o pensamento
religioso moldava a vida das pessoas.
Segundo Mekesenas (1985, p. 38), a partir do sé‑
culo XIV, esse mundo começ ará a mudar rapidamente,
passando de um mundo agrário para o mundo urbano Saiba mais
industrial. Mas essa mudança não ocorreu em pouco
Para saber mais como as grandes
tempo, sendo necessários muitos séculos (no mínimo
três) para se concretizar efetivamente. No entanto, navegações influenciaram no pro-
como foi uma mudança social radical, muitos chamam cesso de transformação da socie-
de revolução. dade, veja o filme A missão (The
A necessidade de expansão de novas terras e a
Mission, ING, 1986). Direção:
busca por novas mercadorias fizeram com que o povo
europeu desbravasse novas terras, com base na expan‑ Roland Joffé. Elenco: Robert de
são das fronteiras, em virtude do processo embrioná‑ Niro, Jeremy Irons, Liam Neeson.
rio do cap ital, que necessita de novos mercados para 121 min, Flashstar.
atender à chamada acumulação primitiva de capital.
4 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Nesse contexto, as Grandes Navegações (século XV) são as responsáveis pelo “descobrimento
do novo mundo”.
O Renascimento (século XVI) trouxe uma nova visão de mundo, pautado na ciência e na
razão. A visão Teocêntrica (Deus como centro do Universo) que predominava na sociedade
feudal é suplantada pelo antropocentrismo, que coloca o homem como sendo responsável
pela construção das relações sociais, a partir desse momento o homem encontra seu lugar
de produtor da realidade social. A ciência passa a ser responsável pela explicação dos acon‑
tecimentos em sociedade, despertando nos indivíd uos uma nova leitura sobre sua própria
existência. Nesse período, a realidade social começa a se tornar mais complexa: o homem,
agora racional, torna-se questionador, reflexivo sobre a realidade existente.
Nesse momento Galileu Galilei, Leonardo da Vinci e Copérnico desenvolveram novas
formas de compreender a realidade social, utilizando-se da experiência para comprovar os
fenômenos da sociedade e da natureza. É o início do conhecimento científico que mais tarde
com Francis Bacon e René Descartes ficará conhecido como o único responsável pelas expli‑
cações dos fenômenos naturais e sociais.
A Reforma Protestante (século XVI) traz uma nova forma de se relacionar com o sagrado,
colocando o homem como mediador das questões divinas, redirecionando a questão da he‑
gemonia da Igreja Católica, no que diz respeito às explicações religiosas.
As transformações ocorridas a partir do século XV estão todas vincu‑
ladas entre si e não podem ser entendidas de forma isolada. Desse
modo, a expansão marítima, as reformas protestantes, a formação dos
Estados nacionais, as grandes navegações e o comércio ultramarino,
bem como o desenvolvimento científico e tecnológico, são o pano de
fundo para uma visão melhor desse movimento intelectual de grande
envergadura que irá alterar profundamente as formas de explicar a
natureza e a sociedade daí para a frente (TOMAZI, 2000, p. 1).
Com o poder econômico e produtivo nas mãos, a burguesia alia-se ao chamado Terceiro
Estado (camponeses, trabalhadores e burgueses) para afirmar-se, também, enquanto classe
política dominante. Esse processo de mobilização do Terceiro Estado busca acabar com os
privilégios da nobreza feudal. Essa nobreza (uma minoria da população) era sustentada pelo
6 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Sendo assim, torna-se essencial estudarmos a sociologia não como uma disciplina datada
na história, com uma visão linear, mas entendê-la como uma ciência que nos ajuda a compre‑
ender a realidade, sendo essa realidade dialética, ou seja, uma realidade passível de mudanças,
sendo essas mudanças efetivadas pelo homem, como vimos no início do nosso texto.
Aprofundando o conhecimento
Antes de passar para o próximo tópico, vejamos o que diz Dias no livro Introdução
à sociologia (2005, p. 40-42).
dagem dos fenômenos sociais, a sociologia tornar-se-á cada vez mais respeitada como importante
ramo do saber científico.
Quando afirmamos que a observação científica deve ser ‘objetiva’, significa que, tanto quanto
seja humanamente possível, ela não deve ser afetada pela própria crença, por emoções, hábitos,
preferências, desejos ou valores do observador. Em outras palavras: ‘objetividade significa ver e
aceitar os fatos como são, e não como desejaríamos que fossem’. Para o sociólogo, esse é um dos
procedimentos mais difíceis, pois é muito complicado assumir uma posição de neutralidade perante
problemas sociais que estão sendo estudados. Não podemos confundir, no entanto, neutralidade
com objetividade.
A objetividade é absolutamente necessária ao se estudarem os fenômenos sociais, entendê-los
do modo como são. Ao obtermos o conhecimento acerca de nosso objeto de estudo é que se coloca
a questão da ética científica — e que muitos sociólogos não aceitam.
Muitos cientistas sociais consideram que essa neutralidade ética da ciência nada mais é do que
um modo de controle externo da ciência e da tecnologia científica pelos que detêm o poder político.
Derivam dessa característica da sociologia — particularmente daqueles que não aceitam essa
neutralidade ética — muitos quadros para movimentos reformistas ou revolucionários em todo o
mundo, e também o fato de serem os sociólogos uma das categorias mais perseguidas em regimes
ditatoriais ou em qualquer estrutura institucional autoritária.
Essa característica da pesquisa sociológica e da condição do sociólogo foi muito bem expressa
por Florestan Fernandes (1976, p. 179), que afirmou que:
“O sociólogo não possui um laboratório. Por isso, ele enfrenta muitas dificuldades, que não
existem (ou aparecem com intensidade desprezível) nas ciências nas quais é possível pôr em prática
a investigação experimental. A maior parte dessas dificuldades surge de um fato simples: o sociólogo
está sujeito às normas e aos critérios experimentais do saber científico, mas ele não dispõe dos meios
e das facilidades experimentais de descoberta e de verificação da verdade. Esse ‘limite abstrato’ é, com
frequência, negligenciado pelos que estudam a formação e a evolução da sociologia como ciência.
No entanto, ele deveria estar sempre presente, dos levantamentos iniciais às interpretações finais:
é que ele explica os ‘porquês’ dos avanços ou recuos dos sociólogos na investigação da realidade.
O ponto de vista científico enlaça o sociólogo a uma verdadeira condição humana, da qual ele não
pode escapar sem ‘trair’ as normas e os critérios científicos de observação e de interpretação da vida
em sociedade. Quando ele ignora essa condição humana — ou se subtrai a ela por omissão — sua
contribuição sociológica poderá ser o que se quiser, menos uma sociologia científica.
Para dizer tudo com poucas palavras: as normas e os critérios científico-experimentais de ver-
dade e de verificação da verdade põem o sociólogo em relação de tensão com a sociedade (...)”.
Os sociólogos, pelo fato de terem como seu objeto de estudo a sociedade e de utilizarem
os métodos científicos que darão objetividade à sua pesquisa, encontram no estudo da realidade
concreta fatos sociais que influenciarão sua conduta, modificando consequentemente seus valores
e interferindo na sua capacidade de análise. Assim, a neutralidade em relação ao objeto de estudo
é uma impossibilidade real para o sociólogo, pois ao mesmo tempo em que estuda determinado
fato social, na realidade faz parte desse fato social, é observador e ao mesmo tempo participante
do fato observado. Levar a neutralidade às últimas consequências é ignorar esta sua condição hu-
mana e, portanto, render-se a forças sociais e políticas que poderão fazer uso de sua pesquisa em
detrimento de outros seres humanos.
Florestan Fernandes (1976, p. 129) se expressou com muita clareza sobre o significado da
neutralidade para o cientista social:
“A suposta neutralidade ética constitui uma capitulação às forças irracionais, que combatem a
ciência e a tecnologia científica e as submetem ao seu irracionalismo. O primeiro ato de autonomia
intelectual do sociólogo desenha-se nesse plano de autoafirmação como e enquanto cientista: a
ciência o compromete eticamente tanto com os seus critérios de verdade (e de verificação da verdade),
quanto com as transformações do mundo que possam resultar das aplicações de suas descobertas”.
Os dois intelectuais brasileiros — Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes — identificaram a dupla
condição do cientista social, enquanto ser humano e como cientista, o que implica duplo compro-
misso, com a humanidade e com a ética científica. Essa dupla condição, embora apareça em outras
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ciências, é muito mais presente nas ciências humanas, pois o objeto de estudo é o social, o homem
e suas interações, o que pressupõe inclusão do próprio pesquisador como objeto de análise, como
parte integrante do objeto que está estudando. Para obter resultados cientificamente válidos, o
cientista social não pode ignorar essa condição e ao mesmo tempo não pode permitir que o seu
julgamento de valor, seus hábitos e seus costumes interfiram nas suas conclusões, impedindo-o de
obter dados aceitáveis do objeto de pesquisa.
Quando foi perguntado ao cientista social e antropólogo Clifford Geertz “até que ponto a
sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de campo influem no trabalho
dos antropólogos?”, sua resposta indicou, claramente, a necessidade de busca da objetividade.
Afirmou que:
“Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se diz hoje, ‘observadores situados’. A
única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consciência possível desse fato e pensar nisso,
não assumir que o modo como vemos as coisas é o modo como as coisas simplesmente são, mas
entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-americano ou um brasileiro ou um francês verão
as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razões é o contexto cultural do qual eles vêm, do
qual extraem suas percepções e seus princípios. Não há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre
quando as pessoas não se conscientizam disso e simplesmente assumem que qualquer sensação que
têm não precisa ser confrontada com a realidade. Claro, não há nada semelhante a um observador
totalmente neutro e abstrato. Isso não é tão fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar
sobre de onde as pessoas vêm, onde elas estão trabalhando etc”.
Não podemos esquecer que um dos cuidados que o cientista social deve ter para que proceda
com a maior objetividade possível na análise de dados sociais é a utilização metódica de técnicas
de pesquisa social, que são os instrumentos metodológicos de que dispõe para a abordagem dos
fatos sociais.
Antes de entrarmos propriamente na discussão das correntes sociológicas, devemos nos ater
às principais características da sociedade capitalista, já que é através da sua implantação que
iniciam-se as discussões de caráter sociológico da realidade social.
meios de produção. Essa relação fundamenta-se na diferença entre as duas classes sociais
existentes no capitalismo: os capitalistas que detêm a propriedade privada dos meios de pro‑
dução (fábrica, matéria-prima...) e os proletários que vendem a sua força de trabalho para o
capital, em uma relação de compra e venda de produtos. Essa distinção de classe extrapola o
universo da produção, instituindo-se também dentro das relações de poder em nossa sociedade.
Pensar as relações descritas acima é compreender o objetivo central do modo de produção
capitalista — o lucro —; essa preocupação generalizou-se em nossa sociedade. Todos objetivam
lucrar com algo, seja vendendo algum produto, seja consumindo algo: todos querem saber o
que vão lucrar com suas ações.
Nesse sentido, podemos analisar uma outra característica do capitalismo: a transformação
de todas as relações sociais em mercadorias. As relações sociais passam a ser relações de
troca de mercadorias. Trocamos trabalho por salário (vendemos nossa mercadoria — traba‑
lho — para que outras mercad orias sejam produzidas), trocamos nosso salário por roupas,
comida, casa... reproduzindo uma relação ideológica em nosso cotidiano.
Imaginem, historicamente, como essas mudanças influenciaram a sociedade europeia do
século XIX. Essas transformações trouxeram inúmeros impactos sociais, tornando necessária
uma ciência que possibilitasse o estudo e a compreensão do rebatimento/reflexão, sendo esta
ciência a sociologia.
Seguindo a linha de pensamento de Meksenas (1994, p. 39), essa revolução teve três
momentos importantes: uma revolução econômica, uma revolução política e uma revolução
ideológica e científica.
A Revolução Econômica em primeira instância, pois o processo de des envolvimento da
tecnologia, baseado na Revolução Industrial, mudou a concepção de trabalho/produção e
economia, instituindo novas relações sociais, agora pautadas na divisão de classes sociais
(burguesia e proletariado) e na divisão social do trabalho, na qual cada trabalhador realiza
uma função específica no processo produtivo. Com isso, o aumento do número de máquinas
de trabalho potencializa um mercado consumidor, fundamentado no surgimento de novas
mercadorias em escala produtiva, fundamentando a sociedade na relação econômica vs.
produção vs. trabalho.
Revolução Política foi quando a antiga nobreza feudal perdeu o seu domínio para a classe
burguesa, que detém o poder econômico e produtivo da sociedade. No modo de produção
feudal, a política representava o interesse dos senhores feudais, já no capitalismo, teremos o
surgimento do Estado Moderno, que fundamenta-se por formas de governo eleitas pelo voto
e regidas por uma constituição, dessa forma, o poder do Estado passa a ser dividido em três
dimensões: executivo, judiciário e legislativo. Para Meksenas (1994, p. 39), essas novas di‑
mensões do Estado Burguês, oriundo da Revolução Francesa, instituem a aparência de que o
Estado, acima dos interesses de classes, vem organizar democraticamente a sociedade.
E por último uma revolução ideológica e científica, pois toda essa estrutura social estabe‑
lece a ideia de que o progresso e o enriquecimento da sociedade estão atrelados ao trabalho
e à economia. Essas revoluções instituíram uma nova visão de mundo e, como já dissemos no
início dessa unidade, novos problemas sociais.
10 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar seus conhecimentos sobre o início da sociologia e a importância
de Auguste Comte, indicamos a leitura do trecho extraído do livro Introdução à socio-
logia, de Dias (2005, p. 21-24).
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 11
12 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
A motivação da obra de Auguste Comte, o fundador da doutrina positivista (vide Quadro 2.2),
repousa nesse estado de ‘anarquia’ e de ‘desordem’ de sua época histórica. Segundo ele, as socie-
dades europeias se encontravam em estado de caos social. Para que houvesse coesão e equilíbrio
na sociedade, seria necessário restabelecer a ordem nas ideias e nos conhecimentos, criando um
conjunto de crenças comuns a todos os homens, a que deu o nome de ‘filosofia positiva’.
Para Comte, a filosofia iluminista somente criticava, abordava os aspectos negativos; em opo-
sição a ela, o espírito positivo não possuía caráter destrutivo, preocupando-se apenas em organizar
a sociedade.
Comte considerava o período de apogeu do racionalismo como o “momento em que o espírito
da filosofia positiva começou a pronunciar-se no mundo, em oposição evidente ao espírito teológico
e metafísico” (COMTE, 1973, p. 14). Considerava também que nas quatro categorias de fenômenos
naturais — os astronômicos, os físicos, os químicos e os fisiológicos — havia uma lacuna essencial
relativa aos fenômenos sociais. E, ainda em seu tempo (século XIX), utilizava-se os métodos teo-
lógicos ou metafísicos como meio de investigação e argumentação para o estudo dos fenômenos
sociais. Dizia que, para constituir a filosofia positiva, era necessário preencher essa lacuna e fundar a
física social. Sendo assim, considerava ser este o primeiro objetivo de seu Curso de filosofia positiva.
Para Comte, a filosofia positiva se encontra dividida em cinco ciências fundamentais: a astro-
nomia, a física, a química, a fisiologia e, enfim, a física social. “A primeira considera os fenômenos
mais gerais, mais simples, mais abstratos e mais afastados da humanidade, e que influenciam to-
dos os outros sem serem influenciados por estes. Os fenômenos considerados pela última são, ao
contrário, os mais particulares, mais complicados, mais concretos e mais diretamente interessantes
ao homem; dependem, mais ou menos, de todos os precedentes, sem exercer sobre eles influência
alguma” (COMTE, 1973, p. 39).
A essa nova ciência, Comte denominou, num primeiro momento, física social, para posterior-
mente chamá-la ‘sociologia’, palavra por ele criada.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 13
Comte estabeleceu as bases iniciais do que seria uma ciência social, contribuindo de modo
importante para que se constituísse um novo campo de pesquisa científica que se ocupasse dos
fenômenos sociais. Outros filósofos ampliaram a metodologia da pesquisa social e estabeleceram
regras metodológicas que são seguidas por aqueles que desejam se aprofundar nesses estudos.
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a sociologia moderna, leia a seguir um
trecho extraído do livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 24-28).
Durkheim e o método
Considerado por muitos o verdadeiro fundador da sociologia como ciência independente das
demais ciências sociais, um dos méritos mais importantes de Durkheim (1858-1917) foi o esforço
empreendido por ele para conferir à sociologia o status de disciplina científica. Criou a chamada
14 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Escola Objetiva Francesa, que agrupava intelectuais em torno da revista Année Sociologique, por
ele fundada.
Estudou na École Normale Supérieure de Paris, tendo-se doutorado em filosofia.
Muito influenciado pelas obras de Auguste Comte e Herbert Spencer, logo depois de formado,
começa a dar aulas na Universidade de Bordéus, onde ocupou a primeira cátedra de sociologia
criada na França (1887). Aí permaneceu até 1902, quando foi convidado a lecionar sociologia e
pedagogia na Sorbonne.
Seu livro As regras do método sociológico surge em 1895 e deu uma formidável contribuição
à sociologia, ao indicar como deveria se dar a abordagem dos problemas sociais, estabelecendo as
regras a serem seguidas na análise de tais problemas.
Utilizou sua metodologia em outro estudo, publicado em 1897, O suicídio, onde, em vez de
especular sobre as causas do suicídio, planejou o esquema da pesquisa, coletou os dados necessários
sobre as pessoas que se suicidaram, e desses dados construiu sua teoria do suicídio.
Um dos aspectos mais polêmicos, na época, de sua metodologia foi afirmar que os fatos sociais
deviam ser considerados como ‘coisas’, no sentido de serem individualizados e, portanto, observá-
veis. Somente assim procedendo, o cientista social poderia abordar os problemas sociais, do mesmo
modo que eram observados os problemas físicos e químicos nas ciências exatas.
Suas principais obras foram: A divisão do trabalho social (1893), As regras do método sociológico
(1895), O suicídio (1897), As formas elementares da vida religiosa (1912).
O papel de Marx
Enquanto a preocupação principal do positivismo foi com a manutenção e a preservação da
nova sociedade capitalista, o marxismo procurará fazer uma crítica radical a esse tipo de ordem
social, colocando em evidência seus antagonismos e suas contradições.
A elaboração mais significativa do conhecimento sociológico crítico foi feita pelo marxismo.
Devem-se a Marx e a Engels a formação e o desenvolvimento desse pensamento sociológico crítico
radical da sociedade capitalista.
Na concepção de Marx e de Engels, o estudo da sociedade deveria partir de sua base material,
e a investigação de qualquer fenômeno social da estrutura econômica da sociedade, que constituía
a verdadeira base da história humana.
Desenvolveram a teoria de que os fatos econômicos são a base sobre a qual se apoiavam os
outros níveis da realidade, como a política, a cultura, a arte e a religião. E, ainda, de que o conhe-
cimento da realidade social deve se converter em um instrumento político, capaz de orientar os
grupos e as classes sociais para a transformação da sociedade.
Dentro dessa perspectiva, a função da sociologia não era a de solucionar os ‘problemas so-
ciais’, com o propósito de restabelecer a ordem social, como julgavam os positivistas — ela deveria
contribuir para a realização de mudanças radicais na sociedade.
Enquanto a sociologia positivista preocupou-se com os problemas da manutenção da ordem
existente, concentrando sua atenção, principalmente, na estabilidade social, o pensamento marxista
privilegiou, para o desenvolvimento de sua teoria, as situações de conflito existentes na sociedade
industrial. Para os marxistas, a luta de classes, e não a ‘harmonia’ social, constitui a realidade mais
evidente da sociedade capitalista.
A obra de Marx é fundamental para a compreensão do funcionamento da sociedade capitalista,
e tanto recorrem a ela seus simpatizantes como seus críticos; isto porque Marx estudou o capitalismo
em seus estágios iniciais, nos quais eram nítidas as posições ocupadas pelos capitalistas e pelos
operários e onde a exploração social do trabalho assalariado ocorria de forma brutal.
Karl Marx nasceu na Alemanha, em 5 de maio de 1818, numa família de classe média, sendo
seu pai um advogado bem conceituado.
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Um fato ocorrido quando dos seus 17 anos, no ginásio da cidade onde nasceu, Trèves, de-
monstra o que seria a vida futura do jovem Marx. Seu professor mandou-o dissertar sobre o tema:
‘Reflexões de um jovem a propósito da escolha de uma profissão’.
“Em sua dissertação, Karl desenvolveu duas ideias que deveriam acompanhá-lo por toda a vida.
A primeira era a ideia de que o homem feliz é aquele que faz os outros felizes; a melhor profissão,
portanto, deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de trabalhar pela felicidade do maior
número de pessoas, isto é, pela humanidade. A segunda era a ideia de que existem sempre obstáculos
e dificuldades que fazem com que a vida das pessoas se desenvolva em parte sem que elas tenham
condições para determiná-la.”5
A obra de Marx, embora não diretamente relacionada com os estudos acadêmicos de ciências
sociais, teve enorme importância para a sociologia. Trouxe para esta a teoria da luta dos contrários,
o ‘método dialético’, assim definido por Engels: “a dialética considera as coisas e os conceitos no
seu encadeamento; suas relações mútuas, sua ação recíproca e as decorrentes modificações mútuas,
seu nascimento, seu desenvolvimento, sua decadência”.6
Marx soube reconhecer na dialética o único método científico de pesquisa da verdade. Sua
dialética diferia das interpretações que a precederam, como ele mesmo afirmou. “No meu método
dialético ‘o movimento do pensamento não é senão o reflexo do movimento real, transportado e
transposto para o cérebro do homem’.” Para Marx era o mundo real, o âmbito da economia, das
relações de produção que determinavam o que pensava o homem, e não o contrário. Foi muito
criticado por outros autores por isso, pois consideravam sua teoria determinista do ponto de vista
econômico. E, na realidade, o determinismo econômico marcou as diversas correntes do marxismo
que proliferaram ao longo do século XX.
O método dialético proposto por Marx possui quatro características fundamentais: tudo se
relaciona (lei da ação recíproca e da conexão universal); tudo se transforma (lei da transformação
universal e do desenvolvimento incessante); mudança qualitativa; e luta dos contrários.
Já no fim da vida, Marx mantinha-se atualizado e aborrecia-se com as deficiências dos socia-
listas, que se diziam seus seguidores. Sabendo das tolices que eram ditas ou praticadas em seu 7
nome, pilheriou com Engels, afirmando: “O que é certo é que eu — Marx — não sou marxista”.
Faleceu em 14 de março de 1883.
Suas principais obras são: Manuscritos econômico-filosóficos (1844), A ideologia alemã (1845),
A miséria da filosofia (1847), Manifesto comunista (1848), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852),
ep (1857) e a sua maior obra, O capital (1867).
Max Weber
Considerado um dos mais importantes pensadores do século XX, Max Weber (1864-1920),
como sociólogo, foi professor de economia nas universidades de Freiburg e Heidelberg. Participou
da comissão que redigiu a Constituição da República de Weimar. Foi durante muito tempo diretor
da revista Arquivo de Ciências Sociais e Política Social e colaborador do Jornal de Frankfurt.
Desenvolveu estudo comparado da história, da economia e da história das doutrinas religiosas,
sendo por isso considerado o fundador da disciplina sociologia da religião.
Deu inúmeras contribuições à sociologia, formulando conceitos e desenvolvendo tipologias.
Entre suas contribuições mais importantes encontram-se os estudos sobre a burocracia, sobre os
sistemas de estratificação social e sobre a questão da autoridade; o desenvolvimento de uma rica
metodologia para os estudos da sociedade e de um instrumento de análise dos acontecimentos
ou situações concretas que exigia conceitos precisos e claramente definidos, a que chamou ‘tipo
ideal’ — contribuição esta muito importante nesse campo. São famosas suas teses a respeito das
relações do capitalismo com o protestantismo.
Suas obras principais são: A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905) e Economia e
sociedade (publicação póstuma de 1922).
Morreu em Munique, a 14 de junho de 1920.
16 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 17
Nota
5. Cf. Konder (1976, p. 21). 7. Cf. Konder (1976, p. 183).
6. Cf. Engels (1970)
Aprofundando o conhecimento
Aprofunde ainda mais seus conhecimentos e leia mais um trecho extraído do livro
Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 6-9).
A perspectiva sociológica
1.2. A imaginação sociológica
A habilidade que os sociólogos desenvolvem para ver a conexão entre a vida cotidiana dos
indivíduos e os problemas sociais, Charles Wright Mills (1916-1962)1 denominou de ‘imaginação
sociológica’. Esta pode ser caracterizada como um tipo incomum de pensamento criativo, que
18 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
consegue estabelecer relações entre um indivíduo e a sociedade mais ampla. Um elemento funda-
mental para se obter a imaginação sociológica é desenvolver a habilidade para ver a sua própria
sociedade (ou o seu grupo social) como um estranho o faria, assim procurando diminuir a sua
própria influência (carregada de valores culturais obtidos ao longo de sua vida ) na análise.
Nas palavras de Mills (1972, p. 17): “Ter consciência da ideia da estrutura social e utilizá-la com
sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes de
pequena escala. Ser capaz de usar isso é possuir a imaginação sociológica”.
Aquele que possui a imaginação sociológica está capacitado a compreender o cenário histórico
mais amplo, o seu significado para a vida particular de cada um e para a carreira de numerosos
indivíduos. Torna-lhe possível compreender também como os indivíduos, envolvidos com as atribu-
lações da vida diária, adquirem frequentemente uma consciência falsa de suas posições sociais.
Para Mills (1972, p. 12), “o primeiro fruto dessa imaginação — e a primeira lição da ciência
social que a incorpora — é a ideia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiên
cia e avaliar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período; só pode conhecer suas
possibilidades na vida tornando-se cônscio das possibilidades de todas as pessoas, nas mesmas
circunstâncias que ele”. É assim que a imaginação sociológica possi bilita compreender a história
e a biografia e as relações entre ambas, dentro da sociedade. Para Mills (1972, p. 12), “nenhum
estudo social que não volte ao problema da biografia, da história e de suas interligações dentro
de uma sociedade completou a sua jornada intelectual”. E todos os analistas sociais clássicos,
quer tenha sido o objeto do exame uma grande potência ou uma passageira moda literária, uma
família, uma prisão ou um credo, formularam repetida e coerentemente três séries de perguntas
(vide Quadro 1.1), que são feitas, segundo Mills, “por qualquer espírito que possua uma imagi-
nação sociológica”.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 19
Quadro 1.1 Perguntas básicas formuladas por aqueles que apresentam a imaginação sociológica,
segundo C. Wright Mills
1. Qual a estrutura dessa sociedade como um todo? Quais seus componentes essenciais, e como se
correlacionam? Como difere de outras variedades de ordem social? Dentro dela, qual o sentido de
qualquer característica particular para a sua continuação e para a sua transformação?
2. Qual a posição dessa sociedade na história humana? Qual a mecânica que a faz modificar-se? Qual é
seu lugar no desenvolvimento da humanidade como um todo, e que sentido tem para esse desenvol-
vimento? Como qualquer característica particular que examinemos afeta o período histórico em que
existe, e como é por ele afetada? E esse período — quais suas características essenciais? Como difere
de outros períodos? Quais seus processos característicos de fazer a história?
3. Que variedades de homens predominam nessa sociedade e nesse período? E que variedades irão
predominar? De que forma são selecionadas, formadas, liberadas e reprimidas, tornadas sensíveis
ou impermeáveis? Que tipos de “natureza humana” se revelam na conduta e caráter que observa-
mos nessa sociedade, nesse período? E qual é o sentido que para a “natureza humana” tem cada
uma das características da sociedade que examinamos?
Fonte: Charles Wright Mills (1972, p. 13).
20 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
em que está integrado. No entanto, as duas abordagens dão importância ao todo em relação às
partes e muitas vezes são utilizadas como sinônimos.
De todo modo, tanto uma como outra são imprescindíveis para a compreensão da realidade,
principalmente neste início do século XXI, em que cada vez mais fortemente se demonstram as
interconexões entre diferentes disciplinas. O direito com a biologia cria um novo campo de estudo,
o direito ambiental; a física e a biologia, a biofísica; há o desenvolvimento de computadores bioló-
gicos etc.
Nota
1. Charles Wright Mills, sociólogo norte-america- publicou vários trabalhos sobre a estratificação
-no, nasceu em Waco, Texas, em 28 de agosto de social nos EUA. Entre suas principais obras es-
1916, e morreu em Nyack, Nova York, num aci- tão: The new men of power and America’s labor
dente automobilístico, em 20 de março de 1962, leaders (1948), White collar and the American
com 46 anos. Considerado um intelectual radical, middle classes (1951), The power elite (1956).
2.2 S
ociologia clássica: Émile Durkheim
O Positivismo deu início à chamada sociologia clássica que tem como base os conceitos
elaborados por Émile Durkheim, Karl Marx e Friedrich Engels e Max Weber. O pensamento
de cada um desses autores possui características bem
específicas e distintas umas das out ras. Apesar disso,
Para saber mais são reconhecidamente importantes, na medida em
que formam a estrutura a partir da qual a Sociologia
Émile Durkheim, de 1917, é conside- se desenvolveu e hoje engloba diferentes perspecti‑
vas contemporâneas.
rado um dos pais da sociologia mo-
Émile Durkheim (1858-1917) sofreu fortes influên‑
derna. Nasceu em Lorena (França, cias do trabalho de Comte. Durkheim foi responsável
1858). Formou-se em Filosofia e pelo caráter científico da sociologia, sendo ele o res
desenvolveu métodos para a expli- ponsável pela criação de um rigoroso método para
análise dos problemas sociais, sendo que para ele a
cação da realidade social. Começou
sociologia seria a ciência responsável pelo resgate da
sua carreira como professor de so- ordem social.
ciologia na Universidade de Borde- Durkheim, baseado no pensamento de Comte,
aux (França) entre 1893 e 1895. Em considerava que todos os problem as da sociedade
capitalista eram de natureza moral, e que os pro‑
1902 começa a dar aula na Universi-
blemas sociais não estariam ligados ao desenvol‑
dade de Paris, onde permanece até a vimento da economia, ao desemprego gerado pela
morte em 1917. As principais obras automatização do processo produtivo, e sim à falta
de Durkheim são: A divisão do de moral desses indivíduos a se inserirem dentro das
relações sociais.
trabalho social (1893); As regras
Durkheim tenta buscar compreender como esses
do método sociológico (1895); O problemas se efetivam em sociedade, e o que poderia
suicídio (1897); A educação moral ser feito para que esses problemas fossem amenizados e
(1902); As formas elementares da a sociedade voltar-se a se desenvolver, restabelecendo
a ordem social. Era necessário compreender a socie‑
vida religiosa (1912); Lições de
dade, as instituições que a constituem e suas funções
sociologia (1912). e o papel do indivíduo dentro da sociedade.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 21
Aprofundando o conhecimento
Para compreender um pouco mais sobre esse conceito, leia a seguir um trecho do
livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 114-115).
22 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Num mundo de constantes mudanças, onde as crenças e as instituições perdem sua caracte-
rística de permanência e constância que possuíam nas sociedades tradicionais, as sociedades estão
sujeitas a algum tipo de desarranjo nos regulamentos que servem para estabilizar o grupo.
Podemos denominar ‘condutas anômicas’ aquelas que o indivíduo adota quando se vê privado
das referências e dos controles que organizam e limitam seus desejos e aspirações — são condutas
marginais e, de um modo geral, ligadas à violência.
Numa sociedade em estado de anomia, as pessoas estão predispostas a seguir uma liderança
carismática que lhes indique novos valores e que, de um modo geral, o líder personifica. Aqui,
a anomia possui uma dimensão que pode ter um resultado positivo ou negativo. A sociedade
alemã, no início da década de 1930, em profundo estado de anomia, com a economia desor-
ganizada, as instituições políticas enfraquecidas e a disputa radical entre os valores da esquerda
e da direita, tornou-se receptiva aos valores defendidos pelo Partido Nazista personificados no
seu líder, Adolf Hitler.
Quando os indivíduos vivem uma situação de anomia, perdem o sentido de pertencer ao grupo.
As normas do grupo não dirigem seu comportamento e, por algum tempo, não encontram nenhuma
norma que as substitua. Não abandonam totalmente as normas da sociedade, mas afastam-se, e
não se identificam com as demais normas.
Não podemos afirmar que anomia seja sinônimo de ausência de lei, embora aqueles que pos-
suam uma conduta anômica possam violar a lei.
Nos campos de concentração nazistas, muitos prisioneiros viviam em condições de anomia,
como mostra o Quadro 7.6; era como se um indivíduo anômico tivesse perdido o passado, não
previsse qualquer futuro e vivesse somente no presente imediato, o qual parece ser nenhum lugar.
Nesse sentido, o cientista social deveria estudar esses problemas sociais buscando elaborar
novas regras sociais. Mas esses problemas, na leitura de Durkheim, deveriam ser estudados
como “coisas”, ou seja, o pesquisador deveria analisá-los de uma forma neutra, não se posi‑
cionando a favor ou contra, sendo que seu objetivo seria o de buscar compreender o funciona
mento “normal” da sociedade, identificando os “sintomas” que estão levando a sociedade a
ficar em estado de anomia, “indicando” um tratamento para a sociedade.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 23
Para analisar os problemas sociais, além de compreendê-los como cois as, Durkheim
coloca que a sociologia deveria estudar os fatos sociais que acontecem em nossa sociedade.
Contundo, para compreendermos esses fatos sociais, deveríamos nos ater a três características
essenciais: coercitividade, exterioridade e generalidade.
Durkheim afirma que os fatos sociais, ou seja, o objeto de estudo da
sociologia, são justamente essa regras e normas coletivas que orientam
a vida dos indivíduos em sociedade. Tais fatos sociais são diferentes dos
fatos estudados por outras ciências por terem origem na sociedade, e
não na natureza (como nas ciências naturais) ou no indivíduo (como
na psicologia) (TOMAZI, 2000, p. 17).
24 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
O interessante é perceber que, mesmo com o capitalismo avançado, ainda existem pessoas
que se relacionam através da solidariedade mecânica. Basta você olhar como as pessoas se
relacionam em cidades pequenas, sendo a tradição e os costumes que estabelecem os laços
de solidariedade entre os indivíduos.
Como vimos até aqui na teoria positivista de Durkheim, a sociedade é que estabelece o
modo de ser e de viver dos indivíduos. Para que isso aconteça, é necessário o estabelecimento
de uma consciência coletiva, o que garantiria a coesão social, principalmente através de san‑
ções e punições estabelecidas pela sociedade. Independentemente da consciência de cada
indivíduo, existe a consciência coletiva (superior a todos), que é responsável pela criação,
execução e fiscalização de um conjunto de normas, valores que seriam defendidos por todos
em sociedade.
A consciência coletiva é objetiva, isto é, não vem de uma só pessoa
ou grupo, mas está difusa (espalhada) em toda a sociedade e, por
isso, ela é exter ior ao indivíduo, quer dizer, a consciência coletiva
não é o que um indivíduo pensa, mas é o que a sociedade pensa.
Por isso a consciência coletiva age sobre o indivíduo de forma
coercitiva, isto é, exerce uma autoridade sobre o modo de como o
indivíduo deve agir no seu meio social (MEKSENAS, 1994, p. 65).
Durkheim acredita que a sociedade estabelece os caminhos que cada indiv íduo deve
trilhar, no sentido de tentar manter a ordem e buscar o progresso. Nesse contexto, a edu‑
cação e a escola têm o papel de socializar os indivíduos para que ele se desenvolva (so‑
cialmente, profissionalmente...) dentro dos padrões preestabelecidos a seu grupo social,
ou seja: socializar-se é aprender a ser membro da sociedade, e aprender a ser membro da
sociedade é aprender o seu devido lugar nela. Só assim, é possível preservar a soc iedade
(RODRIGUES, 2000, p. 33).
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 25
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar nosso conhecimento sobre esses aspectos do pensam ento de
Durkheim, leia a seguir um texto extraído do livro de Meksenas (1988, p. 71-78).
26 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
nova sociedade. Para ele, os problemas sociais entre trabalhadores e empresários teriam que ser
resolvidos dentro da ordem e do progresso.
Um outro conflito social que abalou muito a Durkheim foi a Primeira Guerra Mundial, de 1914
a 1918. Ele tinha, então, 56 anos, e era um sociólogo mundialmente famoso. A morte de seu filho,
na guerra, e a de seus melhores amigos fizeram com que ficasse emocionalmente muito abalado.
A 15 de dezembro de 1917, Durkheim veio a falecer na cidade francesa de Fon tainebleau.
Principais obras:
A divisão do trabalho social, 1893
As regras do método sociológico, 1895
O suicídio, 1897
As formas elementares da vida religiosa, 1912
Lições de sociologia, 1912
Educação e sociologia
A educação moral, 1912
Assim sendo, quando afirmamos que Durkheim desenvolve sua teoria a partir de certos con-
ceitos, isso quer dizer que, ao observar, classificar e entender um fenômeno (no caso, a socie dade
capitalista), Durkheim acaba por desenvolver um conjunto de ideias a respeito desse fenômeno,
ideias contidas dentro de um ou vários conceitos.
Por isso, ao conhecer a teoria de Durkheim, vamos conhecer um conjunto de palavras novas
que foram criadas por ele para explicar o capitalismo. Essas palavras criadas por Durkheim são os
conceitos que formam sua teoria. E quais são estes conceitos? São eles:
CONSCIÊNCIA COLETIVA, DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL, SOLIDA-
RIEDADE MECÂNICA, SOLIDARIEDADE ORGÂNICA, CASO PATOLÓ-
GICO E ANOMIA.
A partir deste momento, vamos discutir cada um desses conceitos e ver como, a partir deles,
Durkheim tenta compreender o capitalismo.
Consciência coletiva
Por esse termo, Durkheim traduz a ideia do que seja o psíquico-social. Cada indivíduo tem uma
“psique”, isto é, um jeito de pensar e agir, de entender a vida. Assim, cada um de nós possui uma
CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL que faz parte de nossa personalidade. Esta, porém, não é a única forma
de consciência: existe também aquela formada pelas ideias comuns que estão presentes em todas
as consciências individuais de uma sociedade.
Essas ideias comuns formam a base para uma consciência de sociedade: uma primeira cons-
ciência que determina a nossa conduta e que não é individual, mas social e geral, denominada
por Durkheim de Consciência Coletiva.
COMO ESSA CONSCIÊNCIA COLETIVA APARECE NA SOCIEDADE?
COMO ELA SE MANIFESTA EM NOSSAS VIDAS?
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 27
Podemos responder a esta questão afirmando que a consciência coletiva é OBJETIVA, isto é,
ela não vem de uma só pessoa ou grupo, mas está difusa (espalhada) em toda a sociedade, e, por
isso, ela é EXTERIOR AO INDIVÍDUO, quer dizer, a consciência coletiva não é o que um indivíduo
pensa, mas é o que a “sociedade pensa”. Por isso, a consciência coletiva age sobre o indivíduo de
forma COERCITIVA, isto é, exerce uma autoridade sobre o modo de como o indivíduo deve agir no
seu meio social.
Vemos com isso que a consciência individual não determina as ações de uma pessoa; ao
contrário, será a consciência coletiva que irá impor as REGRAS SOCIAIS de uma sociedade; isto,
porque, ao nascer, o indivíduo já encontra a sociedade pronta constituída em suas leis. Assim, o
Direito, os costumes, as crenças religiosas, o sistema financeiro não são criados pelo indivíduo,
mas pelas gerações passadas, sendo transmitidas às novas através do processo da educação. Por
exemplo: na sociedade em que vivemos, se alguém sair à rua sem roupas irá provocar imedia
tamente uma reação da sociedade contra si, pois, a partir desse momento, poderá ser taxado de
maníaco e até ser preso; isso, devido à ação da consciência coletiva que, presente em nossa so-
ciedade, proíbe-nos de andar nus.
Durkheim nos oferece vários outros exemplos neste sentido: “[...] não sou obrigado a falar o
mesmo idioma que meus companheiros de pátria, nem empregar as moedas legais; mas é impos-
sível agir de outra maneira. Minha tentativa fracassaria lamentavelmente se procurasse escapar desta
sociedade. Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos técnicos do século
passado; mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável. Mesmo quando, posso realmente
libertar-me destas regras e violá-las com sucesso, vejo-me obrigado a lutar contra elas [...]” (In: As
regras do método sociológico).
Vimos acima vários exemplos do controle que a consciência exerce sobre o indivíduo. TENTE,
INDIVIDUALMENTE, DESCOBRIR OUTROS EXEMPLOS DE COMO A CONSCIÊNCIA COLETIVA EXERCE
UM CONTROLE SOBRE AS NOSSAS VI DAS. Pense um pouco e você irá descobrir vários exemplos
do nosso dia a dia.
28 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Podemos tornar estes conceitos mais fáceis de serem entendidos a partir de um exemplo:
imaginemos um professor que necessite formar grupos para desenvolver o tema da aula. O profes-
sor pode querer a formação dos grupos a partir de dois critérios: ele pode pedir nos alunos que
formem grupos livremente, a partir da AMIZADE existente entre eles. Uma segunda opção é pedir
aos alunos para formarem grupos de forma que em cada um dos grupos fique uma pessoa que
saiba DATILOGRAFIA, uma outra que saiba DESENHAR, outra que tenha experiência de REDAÇÃO,
e, por fim, uma que domine bem o conteúdo das aulas que seja o COORDENADOR do grupo.
No primeiro caso, o que uniu os alunos no grupo foi um SENTIMENTO, a Amizade, de onde
teríamos a SOLIDARIEDADE MECÂNICA. No segundo caso, o que uniu os alunos em grupo foi a
dependência que cada um tinha da atividade do outro: a união foi dada pela especialização das
funções, de onde teríamos a SOLIDARIEDADE ORGÂNICA.
DURKHEIM ADMITE QUE A SOLIDARIEDADE ORGÂNI CA É SUPERIOR
À MECÂNICA, POIS AO SE ESPECIALIZAREM AS FUNÇÕES, A INDI-
VIDUALIDADE, DE CERTO MODO, É RESSALTADA, PERMITINDO
MAIOR LIBERDADE DE AÇÃO.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 29
Voltemos ao exemplo do professor que forma grupos de pesquisa em sala de aula: no grupo
formado por amigos, pode acontecer que um elemento discorde muito das opiniões de outro; este
fato pode trazer um conflito que põe em risco a existência do grupo. Nesse caso, os elementos devem
agir de acordo com as ideias comuns do grupo, e não a partir das suas próprias ideias. Já no grupo
onde a união dá-se pela atividade especializada, a individualidade é ressaltada, pois, dentro da sua
atividade, cada um age como bem entende, e aí a divergência de opiniões não põe em causa a exis-
tência do grupo.
Assim, Durkheim acreditava que a sociedade, funcionando através de leis e regras já determi-
nadas, faria com que os problemas sociais não tivessem sua origem na economia (forma pela qual
as pessoas trabalham), mas sim numa CRISE MORAL, isto é,
NUM ESTADO SOCIAL EM QUE VÁRIAS REGRAS DE CONDUTA NÃO
ESTÃO FUNCIONANDO.
Por exemplo: se a criminalidade aumenta a cada dia é porque as leis que regulamentam o
combate ao crime estão falhando, por serem mal formuladas. A este estado de crise social onde as
leis não estão funcionando, Durkheim denomina CASO PATOLÓGICO.
Por outro lado, os problemas sociais podem ter sua origem também na AUSÊNCIA DE REGRAS,
o que por sua vez se caracterizaria como ANOMIA.
Frente ao CASO PATOLÓGICO (regras sociais falhas), cabe à Sociologia captar suas causas,
procurando evitar a ANOMIA (crise total), através da criação de uma NOVA MORAL SOCIAL QUE
SUPERE A VELHA MORAL DEFICIENTE.
Por ter essa confiança de que num futuro breve a sociedade capitalista eliminaria, através da
ciência, dentro da ordem e do progresso, todos os seus problemas, sua forma de pensar era CON-
SERVADORA. O que significa uma pessoa ser conservadora?
30 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
E pelo fato de Durkheim ser uma pessoa conservadora é que vamos encontrar na sua teoria
um certo apoio à sociedade capitalista.
A sociologia e o Estado
“[...] O Estado é um órgão especial, encarregado de elaborar certas representações que valem
para a coletividade. Estas, representações se distinguem das outras representações coletivas por
grau mais alto de consciência e de reflexão. [...] O Estado é, para falar com rigor, o órgão mesmo
do pensamento social. Nas condições presentes, esse pensamento está voltado para um fim prático
[...] O Estado, ao menos em geral, não pensa por pensar, para constiuir sistemas de doutrinas, e,
sim, para dirigir a conduta coletiva” (In: Lições de sociologia).
Como interpretar esta definição de Estado? Partindo do ápio de que a sociedade capitalista
foi concebida por Durkheim como um corpo que, às vezes, fica doente, para esse corpo, funcio-
nar bem, depende de que todas as suas partes estejam funcionando harmonicamente. A respon-
sabilidade de desenvolver o funcionamento harmônico de todas as partes da socie dabe ao Estado.
Em outras palavras,
A SOCIEDADE É O CORPO, O ESTADO É O SEU CÉREBRO E POR ISSO
TEM A FUNÇÃO DE ORGANIZAR ESSA SOCIEDADE, REELABORANDO
ASPECTOS DA CONSCIÊNCIA COLETIVA.
Vimos que a sociedade capitalista está cheia de problemas, Durkheim admitia que o Estado é
uma Instituição que tem o dever de elaborar leis que corrijam os casos patológicos da sociedade.
Em resumo:
CABE À SOCIOLOGIA OBSERVAR, ENTENDER E CLASSIFICAR OS
CASOS PATOLÓGICOS, PROCURANDO CRIAR UMA NOVA MORAL
SOCIAL, CABE AO ESTADO COLOCAR EM PRÁTICA OS PRINCÍPIOS
DESSA NOVA MORAL.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 31
32 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
3.1 M
arx e sua leitura sobre o processo de
transformação da sociedade
Marx e Engels são pensadores importantíssimos para a realidade social, pois suas abor‑
dagens perpassam por questões econômicas, políticas, sociais, ideológicas e culturais, sendo
importante discutir que toda sua leitura está pautada na transformação da realidade social,
instituindo uma nova socied ade, ou seja, o socialismo.
Essa nova sociedade é chamada socialista, pois propunha uma sociedade sem classes so‑
ciais e desigualdade social. Socialismo é um regime político e econômico em que não existe
a propriedade privada nem as classes soc iais. Todos os bens seriam de todas as pessoas e não
poderia haver diferenças econômicas entre os indivíduos. Existiria um governo (ditadura do
proletariado) que instituiria determinadas leis sociais para a totalidade dos indivíduos. Hoje,
contamos com a existência do Estado para defender os interesses dos trabalhadores, pois
o pensamento nos padrões do capital ainda se faz presente, sendo necessário um período
de transição e formação do sujeito dentro de novos
padrões econômicos, políticos, ideológicos e cultu‑
Links rais. O socialismo é um processo de transição para o
comunismo, no qual todos os processos de divisão,
Um site interessante e que aborda inclusive do poder na figura do Estado, deixariam de
existir, pois todas as decisões seriam tomadas pela
a biografia de Marx é <www.verme- totalidade dos sujeitos.
lho.org.br/img/obras/karl.asp>. Vale O processo de transição da socied ade se daria,
a pena dar uma conferida. segundo Marx e Engels, por meio da classe trabalha‑
dora. É nesse sentido que eles realizaram a leitura da
sociedade capitalista tendo como pano de fundo a
divisão das classes sociais e a permanente luta entre
elas, denominada luta de classes.
Consideravam que o conhecimento poderia ser
Links um instrumento na luta dos trabalhadores por mu‑
danças na estrutura econômica capitalista, que era
Um site interessante que aborda injusta e desigual. Nesse contexto, enfatizaram o
essa questão é: <educacao.uol.com. papel dos trab alhadores no processo de superação
br/historia/ult1690u11.jhtm>. A ex- do modo de produção capitalista e na implantação
plicação está bem clara! de uma nova sociedade — inicialmente socialista e
em seguida comunista.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 33
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar o conhecimento sobre essa questão, leia a seguir um texto extraído
do livro Sociologia, de Meksenas (1988, p. 55-61). O texto mostra o processo de de‑
senvolvimento do modo de produção capitalista dentro de uma perspectiva histórica.
34 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
O capitalismo manufatureiro
O capitalismo é uma economia de mercado também, mas de índole completamente diferente.
Ele surge, no século XVI, como fruto da formação do mercado mundial, resultante das Grandes
Navegações. Estas estabeleceram a interligação marítima de todos os continentes e elevaram o
comércio a longa distância a um novo patamar. Acima dos mercados locais e regionais segmentados,
surge um mercado mundial para produtos de grande densidade de valor, como o ouro e a prata, a
pimenta e o açúcar, tecidos de algodão e seda, tabaco, perfumes, pérolas etc. O grande capital
comercial e usurário se lança na expansão deste mercado mundial, levando de roldão as limitações
corporativas preexistentes. O capital, que até então se limitava à circulação de mercadorias e valores,
penetra na produção, tornando-se manufatureira. Surgem, na Europa, empresários capitalistas que
empregam grande número de artesãos e produzem em massa para mercados que crescem sobretudo
pela destruição de barreiras que separavam os mercados locais e regionais.
É claro que o desenvolvimento da navegação marítima e, por consequência, da navegação
fluvial, lacustre e de canais construídos pelo homem, foi condição necessária para esta unificação
de mercados, que constituiu a base do capitalismo manufatureiro. Mas esta condição não era sufi-
ciente. O capital manufatureiro necessitava não só do acesso físico aos mercados mas também do
acesso econômico, ou seja, da possibilidade de penetrar neles de fora para vender e comprar. E este
direito feria, obviamente, os interesses dos mestres e comerciantes locais, protegidos pelas regulações
corporativas. O período de desenvolvimento do capitalismo manufatureiro, do século XVI ao século
XVIII, assiste ao embate entre o capital manufatureiro (apoiado, em vários países, pelas monarquias
absolutas) e as corporações, muitas vezes aliadas à nobreza local. Deste embate surgem as nações
modernas, politicamente dominadas pelo poder nacional e economicamente unificadas pela abo-
lição das barreiras ao comércio interno e pela abolição das moedas e medidas locais. Os símbolos
da nação moderna são, ao lado da bandeira nacional, a moeda nacional de curso forçado e um
sistema único de pesos e medidas, que atualmente tende a ser o sistema métrico decimal.
No Brasil, a luta pela unificação dos mercados foi levada a cabo pela metrópole portuguesa
nos limites do Pacto Colonial, que propunha o monopólio metropolitano do comércio com a colô-
nia. Um episódio desta luta fui a proibição da manufatura de panos, no Brasil, em 1785. A medida
se destinava a favorecer a importação de tecidos britânicos por capitais comerciais portuguesas.
Deste modo, o capital manufatureiro britânico, mediante os bons ofícios da diplomacia de Sua
Majestade, que tinha feito com Portugal o Tratado de Methuen, ampliava o seu mercado mundial.
Por este Tratado, o mercado português se abria aos tecidos britânicos, e o da Grã-Bretanha aos
vinhos portugueses. Obviamente, não bastava ao capital manufatureiro britânico ter acesso ao
mercado brasileiro. Precisava dominá-lo e para tanto não se hesitava em usar o poder do Estado
para eliminar a concorrência da manufatura local.
Foi também mediante o colonialismo que o grande mercado da Índia foi incorporado ao mercado
mundial do capital manufatureiro britânico. A Índia possuía uma tecelagem de alto padrão, cujos
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 35
produtos tinham larga aceitação na Europa. O governo colonial inglês conseguiu destruir esta manu-
fatura, assegurando tanto o mercado europeu quanto o da própria Índia aos tecidos britânicos.
De uma forma geral, o avanço do capitalismo manufatureiro foi lento e desigual, muito depen-
dente do apoio político de que podia dispor e das vicissitudes das lutas entre as diferentes nações
europeias pelo domínio das vias marítimas e dos mercados coloniais. No século XVIII, sucessivas
guerras resultaram no triunfo da Grã-Bretanha sobre o seu maior rival, a França. Em consequência,
o capitalismo manufatureiro alcançou maior desenvolvimento na Grã-Bretanha, criando as condições
para a Revolução Industrial, que teve lugar logo a seguir.
O capitalismo manufatureiro foi capaz de explorar, em certa medida, a possibilidade de aumen-
tar a produtividade mediante a produção em grande escala. Reunindo numerosos trabalhadores
sob o mesmo teto, o capitalista manufatureiro pôde criar uma divisão técnica de trabalho dentro
da manufatura, o que lhe permitiu alcançar maior produtividade do trabalho. Em lugar de cada
trabalhador realizar todas as operações, cada operação passava a ser tarefa de um grupo específico
de trabalhadores.
Esta nova divisão do trabalho proporcionava três formas de aumento da produtividade:
a) poupava o tempo que o operador perde quando passa de uma tarefa a outra;
b) aumentava a destreza do operador, que passava a se especializar num único tipo de trabalho;
c) ensejava a invenção de ferramentas especialmente adaptadas a cada tipo de trabalho.
A manufatura capitalista conseguiu, deste modo, reduzir os custos de produção, barateando
seus artigos, que começaram a se tornar competitivos com a produção doméstica.
A economia de mercado, ao se tornar capitalista, começou a se expandir pela incorporação de
atividades até então integradas à economia de subsistência. E o que acontece, na Inglaterra, com
a agricultura, que se torna, ao mesmo tempo, mercantil e capitalista. Uma grande parte dos traba-
lhadores é expulsa da terra e, na medida em que consegue alienar sua força de trabalho ao capital
manufatureiro, passa a adquirir sua comida no mercado. Surge assim um mercado de bens para
assalariados como corolário do surgimento de uma classe de proletários puros, totalmente depen-
dentes do mercado para sua subsistência.
O capitalismo industrial
A dinamização da economia de mercado pelo capitalismo ganha impulso enorme com a Re-
volução Industrial, que tem início na Grã-Bretanha, no último quartel do século XVIII. Ela consiste
essencialmente na invenção de máquinas capazes de realizar tarefas que antes requeriam a mão do
homem. Na manufatura, a operação é realizada pelo trabalhador com o auxílio da ferramenta. Na
maquinofatura, a ferramenta é engastada numa máquina, que substitui o trabalhador na realização
da tarefa. O trabalhador em vez de produzir passa a ser necessário apenas para regular, carregar e
acionar a máquina e depois para desligá-la, descarregá-la e pô-la novamente em condições de
funcionar. De produtor, o operário é literalmente reduzido a servente de um mecanismo, com cuja
força, regularidade e velocidade ele não pode competir.
A máquina é mais “produtiva” do que o homem porque supera facilmente os limites físicos do
organismo humano. Movida por força hidráulica e pouco depois pela energia do vapor, a máquina
pode dar conta de trabalhos para os quais o homem é fraco demais.
O movimento da máquina é muito mais uniforme do que o do corpo humano, para o qual a
monotonia aumenta a fadiga. Na produção, em grande escala, de objetos iguais, a máquina é muito
superior ao homem. Além disso, ela pode ser acelerada, atingindo velocidades de movimento inal-
cançáveis para o homem.
Por tudo isso, a substituição do homem pela máquina apresenta vantagens inegáveis para o
capital, pela redução do custo de produção que proporciona.
Com a Revolução Industrial, nasce o capitalismo industrial que difere do capitalismo ma-
nufatureiro não só pela técnica de produção mas pela postura que assume perante a economia
de mercado.
36 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
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38 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
rotinização da maioria das tarefas. Nestas circunstâncias, o trabalho do produtor autônomo tende
a ser tão ou mais produtívo que o do assalariado. Outros casos são os serviços de reparação, o
comércio varejista em pequena escala (particularmente de artigos caros: joalharias, butiques), certos
serviços pessoais (tinturarias, cabeleireiros, salões de beleza), o transporte por caminhão etc. Apesar
de a produção simples de mercadorias mostrar capacidade de resistir à concorrência do capital em
determinados ramos, é inegável que este domina a maior parte da economia de mercado.
A hegemonia do capital é consequência da livre concorrência, que está longe de ser uma
condição natural do mercado. A livre concorrência foi imposta em consequência do triunfo do libe-
ralismo em praticamente todos os países capitalistas desenvolvidos. Mas este triunfo quase nunca
é completo, no sentido de uma exclusão total do Estado da vida econômica. O liberalismo se impôs
em medida suficiente para converter em concorrenciais a maioria dos mercados, mas em determi-
nadas áreas da produção a massa de pequenos operadores logra quase sempre obter alguma
proteção do Estado. A agricultura, por exemplo, em que as explorações familiares predominam, é
em geral subsidiada e protegida da concorrência dos produtos importados. Outros tipos de peque-
nas e médias empresas também têm obtido favores da política econômica: crédito a juros baixos,
assistência técnica, isenções fiscais. Estes tipos de ação estatal têm sido, no entanto, suficientemente
limitados para não estreitar significativamente a área de acumulação de capital, a qual abrange a
maior parte da economia de mercado.
E esta, impulsionada pelo desenvolvimento capitalista das forças produtivas, tem se expandido
mediante a criação de novos produtos, que suscitam e atendem a novas necessidades ou substituem
bens e serviços produzidos no âmbito doméstico. São exemplos os alimentos em conserva ou semi-
processados, vestuário, roupa de cama e mesa, o cuidado de crianças em idade pré-escolar, de
pessoas idosas ou inválidas. Nota-se a progressiva atrofia da produção para o autoconsumo, à
medida que o capital oferece bens e serviços análogos a preços acessíveis. E muitas atividades que
continuam a fazer parte da economia doméstica passam a ser realizadas com instrumentos produ-
zidos pelo capital (máquina de lavar roupa, máquina de lavar louça, aspirador de pó, liquidificador,
geladeira etc.). Desta maneira, a economia capitalista de mercado está sempre se diversificando e
atraindo parcelas crescentes da população — inclusive cada vez mais mulheres casadas — ao mer-
cado de trabalho. A oferta de novos produtos suscita novas necessidades, cuja satisfação requer
elevação da renda familiar. O assalariamento da dona de casa resolve frequentemente este problema,
mas não deixa de suscitar outros, particularmente o de aliviar o peso das tarefas domésticas. Mas
para estes o capital apresenta também soluções, sob a forma de mais bens e serviços postos à venda.
Desta maneira, o capital vai criando para si mesmo novas oportunidades de inversão, o que
lhe garante expansão perene. O seu destino parece ser o de crescer sempre, transformando ten-
dencialmente todos os membros da sociedade em vendedores de força de trabalho e comprado-
res de suas mercadorias. A força expansiva do capital tende a homogeneizar a sociedade,
tornando-a puramente capitalista. Há contratendências, como vimos acima. Além disso, o dina-
mismo do capital apresenta contradições, que explodem em geral sob a forma de crises. Isso
indica que a expansão do capital tem limites históricos, mas que, em países ainda pouco desen-
volvidos, estão longe de ser visíveis.
Extraído de SINGER, Paul. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica.
São Paulo: Moderna, 1907.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 39
Para Marx a sociedade capitalista já nasce dividida em duas classes sociais: os burgueses
(capitalistas) e os proletariados (trabalhadores), e são essas classes que materializam as relações
sociais. Isso quer dizer que, dentro do capitalismo, as relações sociais são construídas pelo
processo de venda da força de trabalho dos proletários e compra dessa força pelos capitalistas
(donos dos meios de produção) que a exploram dentro da produção. Essa divisão de classes
é que sustenta a nossa sociedade, nascendo dessa relação todas as mercadorias que nós utili‑
zamos em nosso dia a dia. Olhe ao seu lado. Veja este livro, o seu caderno, a sua roupa. Tudo
isso é fruto de trabalho humano, trabalho assalariado.
Na sociedade capitalista as relações sociais de produção definem dois
grandes grupos dentro da sociedade: de um lado os capitalistas que
são aquelas pessoas que possuem os meios de produção (máquinas,
ferramentas, capital, etc.) necessários para transformar a natureza e
produzir mercadorias; do outro, os trabalhadores, também chamados,
em seu conjunto, de proletários, aqueles que nada possuem, a não ser
o seu corpo e sua disposição para trabalhar. A produção na sociedade
capitalista só se realiza porque capitalistas e trabalhadores entram em
relação (TOMAZI, 2000, p. 21).
Essa divisão de classes aparentemente é uma divisão natural. Marx conseguiu desvendar a
aparência dessas relações, buscando compreender a essência dos fenômenos, demonstrando
que na sociedade essa divisão se apresenta de forma ‘oculta’, pois não observamos em nosso
cotidiano o constante conflito entre elas. Esse conflito não é necessariamente armado e na
leitura de Marx não é passível de solução dentro do modelo capitalista de produção, pois essa
desigualdade entre classes é intrínseca à sociedade. Esse conflito é simbólico e ideológico,
daí a denominação de luta de classes. As duas classes sociais (proprietários e trabalhadores)
vivem em constante embate caráter ideológico e político.
Nesse contexto podemos perceber que a desigualdade entre as classes sociais aumenta
dentro do processo produtivo, pois a produção de mercadorias é realizada de forma coletiva,
sendo a apropriação das riquezas geradas pela produção privada, é desse processo que advém
a desigualdade social.
Um ponto essencial na teoria marxista é a questão do trabalho. Na leitura de Marx, o traba‑
lho é essencial para o homem, visto que é através dele que o homem transforma a natureza e,
ao mesmo tempo, se transforma em ser social. O trabalho aqui é a mediação entre a natureza
e o homem, sendo ele responsável pela construção da nossa sociedade.
Partimos do pressuposto de que é por meio do trabalho, no sentido marxiano, que reali‑
zamos transformações intencionais, planejadas, que têm como resultado um produto real e
concreto que antes só existia na mente humana. Marx (1985, p. 149) argumenta que é preci‑
samente o trabalho que diferencia os homens dos outros animais quando afirma que
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha
envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos
de sua colmeia. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto
da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes
de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um
resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador
e, portanto, idealmente.
40 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Na sociedade capitalista esse trabalho não é visto como trabalho criador, e sim como
trabalho assalariado. No capitalismo, o trabalhador perde a autonomia do processo produtivo,
ficando sujeito às decisões tomadas pelos administradores, principalmente a partir da introdu‑
ção de modernas máquinas e mudanças na esfera produtiva que visa ao aumento da produção
e do lucro. Assim, o trabalhador controla muito pouco da produção: ele deve submeter-se às
normas e deliberações de outras pessoas. Mais do que isso: quase sempre o trabalhador des‑
conhece todo o processo produtivo, o que o impossibilita de saber qual o produto que ajuda
a produzir e para que finalidade ele é utilizado. A este processo de separação do trabalhador
do fruto de seu trabalho, Marx e Engels chamaram de alienação.
Marx desenvolve o conceito de alienação mostrando que a industria‑
lização, a propriedade privada e o assalariamento separavam o traba‑
lhador dos ‘meios de produção’ — ferramentas, matéria-prima, terra
e máquina —, que se tornaram propriedade privada do “capitalista”.
Separava também, ou alienava, o trabalhador do fruto do seu trabalho,
que também é apropriado pelo capitalista. Essa é a base da alienação
econômica do homem sob o capital (COSTA, 2002, p. 84-85).
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar o conhecimento sobre essa questão, leia a seguir um texto extraído
do livro Sociologia, de Meksenas (1988, p. 55-61). Esse texto discute o papel da alienação
e da ideologia.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 41
Alienação na produção
Nos sistemas domésticos de manufatura, era comum o trabalhador conhecer todas as etapas
da produção, inclusive a de projeto do produto. A partir da implantação do sistema fabril, no entanto,
isso não será mais possível, devido à crescente complexidade resultante da divisão do trabalho.
Chamamos dicotomia concepção-execução do trabalho justamente ao processo pelo qual um grupo
de pessoas concebe, cria, inventa o que vai ser produzido, inclusive a maneira como vai ser produ-
zido, e outro grupo é obrigado à simples execução do trabalho, sempre parcelado, pois a cada um
cabe uma parte do processo. Essa divisão foi intensificada no início do século XX, quando Henry
Ford introduziu o sistema de linha de montagem na indústria automobilística. O homem, reduzido
a gestos mecânicos, tornado “esquizofrênico” pelo parcelamento das tarefas, foi retratado em
Tempos modernos, filme clássico de Charles Chaplin, o popular Carlitos.
A expressão teórica desse processo de trabalho parcelado é levada a efeito por Frederick Taylor
(1856-1915), no livro Princípios de administração científica, onde estabelece os parâmetros de um
método científico de racionalização da produção — daí em diante conhecido como taylorismo — e
que visa aumentar a produtividade, economizando tempo, suprimindo gestos desnecessários e
comportamentos supérfluos no interior do processo produtivo.
Esse sistema foi implantado com sucesso no início do século nos EUA e logo extrapolou os
domínios da fábrica, atingindo outros tipos de empresa, os esportes, a medicina, a escola e até a
atividade da dona de casa. Por exemplo, um ferro de passar deve ser fabricado de acordo com os
critérios de economia de tempo, de gasto de energia (de eletricidade e da dona de casa, por que
não?); a localização da pia e do fogão deve favorecer a mobilidade; os produtos de limpeza devem
ser eficazes num piscar de olhos.
Taylor parte do princípio de que o trabalhador é indolente, gosta de “fazer cera” e usa os
movimentos de forma inadequada. Observando esses gestos, determina a simplificação deles, de
tal forma que a devida colocação do corpo, dos pés, das mãos, possa aumentar a produtividade.
Também a divisão e parcelamento do trabalho se mostra importante para a simplificação e maior
rapidez do processo. São criados cargos de gerentes especializados em treinar operários, usando
cronômetros e depois vigiando-os no desempenho de suas funções. Os bons funcionários são esti-
mulados com recompensas, os indolentes sujeitos a punições. Taylor tentava convencer os operários
de que tudo isso era para o bem deles, pois, em última análise, o aumento da produção reverteria
em benefícios também para eles, gerando a sociedade da opulência.
Esse sistema faz com que o setor de planejamento se desenvolva, tendo em vista a necessidade
de sofisticar as formas de controle da execução do trabalho.
A necessidade de planejamento desenvolve uma intensa burocratização. Os burocratas são
especialistas na administração de coisas e de homens, estabelecendo e justificando a hierarquia e
a impessoalidade das normas. A burocracia e o planejamento se apresentam com uma imagem de
neutralidade e eficácia da organização, baseando-se num saber objetivo, competente, desinteressado.
42 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Mas é apenas uma imagem, que mascara o conteúdo ideológico (ver Cap. 7) eminentemente polí-
tico: na verdade, trata-se de uma técnica social de dominação. Vejamos por quê.
Não é fácil submeter o operário a um trabalho rotineiro, irreflexivo, repetitivo, em que o próprio
homem se encontra reduzido a gestos estereotipados. Se não compreendemos o sentido da nossa
ação e se o produto do trabalho não é nosso, é bem difícil dedicar-nos com empenho a essa tarefa.
O taylorismo substitui as formas de coação visíveis, de violência direta, pessoal, de um “feitor de
escravos”, por exemplo, por formas sofisticadas e sutis que tornam o operário dócil e submisso.
Impessoaliza a ordem, que não aparece mais com a face de um chefe que oprime, mas a dilui nas
ordens de serviço vindas do “setor de planejamento”. Esse processo retira toda iniciativa do operá-
rio, que cumpre ordens, modelando seu corpo segun do critérios exteriores, “científicos”, e criando
a possibilidade da interiorização da norma, que culmina com a figura do operário-padrão.
O que ocorre é a desarticulação do operário, a fim de impedir sua agregação com outros
companheiros, dificultando a solidariedade entre eles. Estimula a competição por níveis cada vez
maiores de produção com a distribuição de prêmios, gratificações e promoções. Isso gera uma
“caça” aos postos mais elevados.
A fragmentação que ocorre nas fábricas facilita ao capitalista ser o único a ter o controle do
produto final. A “racionalização” do processo de trabalho traz em si uma irracionalidade básica:
desaparece a valorização do sentimento, da emoção, do desejo.
As “pessoas” que aparecem nas fichas do setor de pessoal são vistas sem amor nem ódio, de
modo impessoal. O burocrata-diretor é “profissional” e manipula as pessoas como se fossem cifras
ou coisas.
É interessante, no entanto, mostrar que esse processo não é exclusivo do capitalismo, pois a “ra-
cionalização” da produção também foi introduzida na URSS por Lênin, com a justificativa de que o sistema
não seria utilizado para a exploração do trabalhador, mas para sua libertação. O produto do trabalho
não seria apropriado pelo “capitalista”, já que a propriedade privada dos meios de produção fora elimi-
nada. O que resulta disso não é a empresa burocratizada, mas o próprio Estado burocrático. Não faltaram
críticas de grupos anarquistas, intelectuais, acusando Lênin de ter esquecido o princípio da realização do
socialismo a partir de organizações de base, ao introduzir relações hierárquicas de poder.
Com isso, chegamos a um impasse que nos deixa perplexos diante de uma técnica apresentada
de início como libertadora e que se mostra, afinal, geradora de uma ordem tecnocrática que oprime.
Enquanto prevalecerem as funções divididas do homem que pensa e do homem que só executa,
será impossível evitar a dominação, pois sempre existirá a ideia de que só alguns sabem e são com-
petentes e portanto decidem, e a maioria nada sabe, é incompetente e obedece.
Não queremos assumir a posição ingênua de crítica à técnica, mas é preciso preocupar-se com a
absolutização do “espírito” da técnica. Onde a técnica se torna o princípio motor, o homem se en-
contra mutilado, porque é reduzido ao anonimato, às “funções” que desempenha, e nunca é um fim,
mas sempre meio para qualquer coisa que se acha fora dele.
Por isso, a questão que se coloca é a da necessidade de uma reflexão moral que levante o
problema dos fins a que a técnica se destina, a fim de observar em que medida ela está a serviço
do homem ou da sua exploração.
O que é ideologia?
Introdução conceitual
Há vários sentidos para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de ideias, concep-
ções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão.
Quando perguntamos qual é a ideologia de um determinado pensador, podemos estar nos
referindo à sua doutrina, ao corpo sistemático de suas ideias e ao seu posicionamento interpretativo
diante de determinados fatos.
Podemos ainda estar nos referindo à teoria, como organização sistemá tica dos conhecimentos
destinados a orientar a prática, a ação efetiva. Nesse sentido, já ouvimos a expressão “atestado
ideológico”, que é a declaração exigida a um indivíduo sobre sua filiação partidária e ideias que
orientam sua ação política. No Brasil, por exemplo, durante o recrudescimento do poder autoritário,
órgãos como o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) exigiam em certas cir-
cunstâncias que as pessoas apresentassem atestados desse tipo, a fim de controlar a adesão às
ideologias marxistas, consideradas perigosas à segurança nacional.
Em sentido pejorativo, ideologia é o conjunto de ideias e concepções sem fundamento, mera
análise ou discussão oca de ideias abstratas que não correspondem a fatos reais.
Há outros sentidos mais específicos, elaborados por autores como Destutt de Tracy, Comte,
Durkheim. Aqui, no entanto, não usaremos o conceito de ideologia em nenhum desses sentidos.
Vejamos, então:
“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e
de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem
pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e
como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo
(representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja
função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as
diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em
classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apa-
gar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade
social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a
Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado.”2 Fundamentalmente, a ideologia é
um corpo sistemá tico de representação e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir.
A ideologia tem como função assegurar uma determinada relação dos homens entre si e com
suas condições de existência, adaptando os indivíduos às tarefas prefixadas pela sociedade. Portanto,
a ideologia assegura a coesão dos homens e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e
pouco recompensadoras, em nome da “vontade de Deus” ou do “dever moral” ou simplesmente
como decorrente da “ordem natural das coisas”.
É interessante observar que não se trata de uma “mentira” que os indivíduos da classe dominante
“inventam” para subjugar a classe dominada. Também eles sofrem a influência da ideologia, o que
lhes permite exercer como natural sua dominação, aceitando como universais os valores específicos
de sua classe. Os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas certamente
não percebiam o caráter ideológico da sua ação ao querer implantar uma religião e uma moral estra-
nhas ao do povo dominado.
Essa universalidade das ideias e dos valores é abstrata porque na realidade concreta o que há
são classes particulares com interesses divergentes, e a ideologia de uma “sociedade harmoniosa e
una” oculta a divisão de classes. Portanto, a universalização e a abstração supõem uma lacuna ou
o ocultamento de alguma coisa que não pode ser explicitada sob pena de desmascaramento da
ideologia. Isto é, sob o aparecer da ideologia existe uma realidade concreta que precisa ser descoberta
pela análise da gênese do pro cesso, ou seja, pela verificação de como a realidade foi produzida.
Por exemplo, quando se diz que “o trabalho dignifica o homem”, estamos diante de um con-
ceito ideológico, na medida em que se trata:
de uma abstração, já que o trabalho se apresenta como uma “ideia de trabalho”, e a aná-
lise da situação concreta e particular da realidade histórico-social em que os operários rea-
lizam seu trabalho mostra exatamente o contrário: o embrutecimento e reificação
(“coisificação”) do homem, e não a sua dignidade.
de uma lacuna, pois, analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-
-valia e, portanto, o componente que leva à alienação do homem e à diferença de condição
de vida das pessoas na “comunidade”.
Outro exemplo: “A educação é um direito de todos” (e até um dever, já que há obrigatoriedade
legal de se completar o curso primário). Essa afirmação é abstrata e lacunar, pois apresenta como
44 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
universal um valor que beneficia apenas uma classe. Quando observamos as estatísticas que mostram
evasão e o baixo índice de frequência escolar por parte das classes desfavorecidas, são comuns as
“explicações” em função das dificuldades de adaptação, do mercado de trabalho e até do desinteresse
ou preguiça. O que está oculto aí é que na sociedade de classes há uma contradição entre os que
produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que usufruem essas riquezas, excluindo
delas os produtores. Assim, a educação é um dos bens a serem usufruídos pelos componentes da
classe dominante. A educação aparece como um direito de todos, mas, analisando a gênese da pro-
dução e usufruto dos bens, descobre-se que de fato a educação está restrita a uma classe.
Além disso, a ideologia mostra uma realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da reali-
dade é posto como produto e vice-versa. Por exemplo, a ideologia burguesa afirma que existem nos
homens diferenças individuais e que estas determinam a desigualdade social: a desigualdade natu-
ral seria a causa da desigualdade social. Ora, a sociedade e na verdade resultado da práxis, e as
desigualdades sociais estabelecidas pela divisão do trabalho e pelas relações de produção é que
determinam (são causas) das desigualdades individuais. Não estamos querendo desconsiderar as
diferenças que de fato existem entre os indivíduos, como interesses, aptidões, inteligência. Mas,
grosso modo, a atividade a que cada um se submete aparece como decorrente da competência e
não como resultado da divisão de classes (lembremos ainda que a própria divisão de classes não
deve ser vista como um “dado” inicial, mas como o resultado da práxis).
Mais um exemplo: se um filho de operário não melhora o padrão de vida, isto é explicado como
resultado da sua incompetência, falta de força de vontade ou disciplina de trabalho, quando na
realidade ele joga um “jogo de cartas marcadas”, e suas chances de melhorar não dependem dele,
mas da classe que detém os meios de produção.
Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual se estabelecem as relações entre
teoria e prática, colocando a teoria como superior à prática, porque a antecede e “ilumina”. As
ideias tornam-se autônomas e causa da ação humana (e não o contrário).
Essa divisão hierárquica entre o pensar e o agir se encontra também na dicotomia da sociedade
em um segmento que se dedica ao trabalho intelectual e outro, ao trabalho manual. Uma classe
“sabe pensar”; a outra “não sabe pensar” e só executa. Portanto, uma decide, porque sabe, e a
outra obedece.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 45
nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade
entre o pensar e o agir e, ao contrário, determinando a repetição de fórmulas prontas e acabadas.
Por isso, é importante o papel da filosofia como crítica de ideologia, rompendo as estruturas
petrificadas que justificam as formas de dominação. Ainda neste capítulo, examinaremos rapidamente
a ideologia subjacente aos textos didáticos de 1o grau, às histórias em quadrinhos e à propaganda.
Por questão de espaço, não estudaremos as importantes reflexões de Michel Foucault, filósofo
francês contemporâneo, cujos estudos apontam conseguir-se a concordância dos interesses privados
de um grande número, nem por isso assim se estará atendendo ao interesse comum”.
Encontra-se aí o cerne do pensamento de Rousseau, aquilo que o faz reconhecer no homem
um ser superior capaz de autonomia e liberdade, entendida esta como a superação de toda arbi-
trariedade, pois é a submissão a uma lei que o homem ergue acima de si mesmo. O homem é livre
na medida em que dá o livre consentimento à lei. E consente por considerá-la válida e necessária.
“Aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que
não significa senão que o for çarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão
a pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal.”
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins
Extraído do livro Filosofando. São Paulo: Moderna, 1987.
Dentro da discussão Marx analisa que no momento em que o capitalista compra a força
de trabalho de seu empregado é que nasce o processo de exploração capitalista. Como assim?
O capitalista, ao pagar o salário aos trabalhadores, nunca paga a estes o que eles realmente
produziram, ou seja, é o trabalho não pago, o trabalho excedente, pelo qual o trabalhador
deixa de ser remunerado e que permite ao capitalista acumular capital.
Links
Como o pensamento de Marx é reconhecido mundialmente, um site interessante e universal é
o <www.marxists.org/>, que disponibiliza todos os textos do próprio Marx e de autores marxis-
tas na íntegra. São textos originais.
46 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Mas como essas classes vivem em estado de luta, Marx coloca como ponto central a
necessidade dos trabalhadores orientar-se, inicialmente, na organização de todos os trabalha‑
dores em sindicatos. Em seguida, essa organização deveria provocar a formação de um partido
específico para a defesa dos interesses dos trabalhadores. Este partido, por sua vez, deveria
fazer oposição ao Estado capitalista, considerado por Marx como “comitê da classe burguesa”,
ou seja, mero instrumento para a defesa dos interesses da burguesia.
Sendo o Estado no capitalismo um organismo da burguesia — que financia a acumulação
privada de capital, favorecendo determinadas empresas, que mantém e defende o capitalismo
e que representa diferenciadamente as classes sociais, privilegiando a classe burguesa — seria
imprescindível acabar com este Estado para, em seu lugar, implantar uma nova sociedade,
baseada na igualdade de condições, e não na desigualdade e divisão de classes.
Saiba mais
Um dos textos mais significativos de Marx é o Manifesto do partido comunista. Todas as
categorias do materialismo histórico dialético encontram-se nele. Por esse motivo, vamos apro-
fundar nosso conhecimento e ler o texto completo, disponibilizado gratuitamente no site Domí-
nio Público, no link <www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000042.pdf>.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 47
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar ainda mais o conhecimento sobre essa questão, leia a seguir um
texto extraído do livro Sociologia, de Meksenas (1988, p. 79-87). O texto trata de Karl
Marx e suas categorias explicativas sobre o modo de produção capitalista.
48 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 49
de capital desde o início, embora pequeno. Neste caso, a diferença entre o motorista proprietário
e o dono de frota é apenas de grau: ambos são afinal “capitalistas” de tamanhos diferentes.
O erro nesta apreciação está em considerar os agentes individualmente e não como membros
de classes sociais. É óbvio que deve haver casos em que motoristas proprietários se tornaram donos
de frotas, só que estes casos constituem exceções e não regra. Se considerarmos os milhares de
taxistas proprietários que trabalham em nossas cidades, é claro que a grande maioria se esfalfa para
conseguir, a muito custo, unicamente se reproduzir, pagar as prestações do carro e ao fim de de-
terminado período comprar outro. Por isso, o seu carro não é “capital”, embora eles até possam
achar que é. Os meios de produção do produtor simples de mercadorias não são capital porque eles
não se valorizam, ou seja, não proporcionam lucro. E os produtores simples de mercadorias não
obtêm lucro porque a competição entre eles determina um valor para seus produtos que só lhes
permite se reproduzir. Eles, na verdade, são pobres, seu padrão de vida dificilmente é melhor que
o de um trabalhador assalariado com qualificação semelhante. Há exceções, por exemplo, entre os
chamados profissionais liberais — médicos, advogados, dentistas etc. —, mas é bom lembrar que
para cada profissional rico há muitos que mal conseguem ganhar a vida.
A discussão desta dúvida permite especificar melhor o que é capital. O capital é sempre uma
soma de riqueza que, para se valorizar, tem de sofrer as seguintes metamorfoses: de capital-dinheiro
tem de passar a capital-mercadoria, formado por meios de produção e força de trabalho; este ca-
pital-mercadoria tem de ser transformado, mediante o trabalho de trabalhadores assalariados cm
produto, outra forma de capital-mercadoria; e este último tem de ser realizado, ou seja, transformado
novamente, mediante a venda do produto, em capital-dinheiro. Capital não é, portanto, apenas
riqueza, mas valor que se valoriza, riqueza que é investida para engendrar mais riqueza para seu
possuidor. Um bilhão de cruzados colocado num cofre ou numa conta bancária não é capital, em-
bora possa vir a sê-lo numa sociedade capitalista. É, portanto, apenas capital virtual.
Isso é fácil de entender se imaginarmos o que faríamos com um bilhão de cruzados numa ilha
deserta ou se vivêssemos numa sociedade não capitalista, por exemplo, numa tribo de índios ou
em Cuba. Em tais situações, nosso bilhão não poderia funcionar como capital. Na ilha deserta, o
enterraríamos até sermos resgatados. Entre os índios, poderíamos talvez usar uma pequena parte
do dinheiro para comprar objetos com os quais faríamos presentes tendo em vista obter presentes
em troca. Em Cuba poderíamos depositar o bilhão num banco e obter um juro modesto. Em ne-
nhuma destas circunstâncias, o bilhão de cruzados pode ser considerado capital.
Para que determinada soma de riqueza seja de fato capital, ela deve poder ser submetida às
metamorfoses acima especificadas. Isso significa que tem que haver as seguintes condições:
1. Dinheiro funcionando como equivalente geral da riqueza mercantil: sem dinheiro, a riqueza
não pode assumir a forma de capital monetário para funcionar como meio de compra de
meios de produção e de força de trabalho;
2. Meios de produção colocados à venda, como mercadorias: se os meios de produção não
forem propriedade privada mas coletiva ou estatal, o capital dinheiro não pode se trans-
formar em capital produtivo e, portanto, não pode se valorizar. Em economias centralmente
planejadas, como a cubana, por exemplo, dinheiro acumulado só pode ser emprestado
ao Estado, o qual paga algum juro, mas isso não o torna capital;
3. Força de trabalho como mercadoria, ou seja, é preciso que uma parte significativa dos
trabalhadores não possua meios de produção e por isso eles só tenham acesso à produção
social mediante alienação de sua força de trabalho. Se todos os motoristas tivessem seu
próprio táxi, não poderia haver frotas operando com motoristas assalariados.
Ora, estas condições especificam o capitalismo. Uma sociedade em que o dinheiro é o repre-
sentante geral da riqueza, em que os meios de produção são produzidos e alienados como merca-
dorias e em que os trabalhadores, em boa parte, vendem sua força de trabalho para sobreviver é
uma sociedade capitalista. E é só em sociedades com estas características que somas de valor podem
ser e tendem a ser capital.
50 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
O que é então capital? Uma soma de dinheiro? Meios de produção sendo movidos pelo traba-
lho de assalariados? Produtos de trabalho assalariado postos à venda?
Capital é tudo isso e, sobretudo, e tudo isso em relação. Capital é a contínua transformação
do valor através do processo de produção e de circulação. Na produção, o valor-capital se valoriza;
na circulação, o capital-valor já prenhe do mais-valor, da mais-valia, se realiza. É por isso que a
melhor maneira de entender o que é capital é entendê-lo como relação social. No fundo, capital é
uma forma específica de relacionamento entre homens em sociedade, na qual proprietários de ri-
queza empregam o trabalho de não proprietários para produzir mais riqueza.
Capital é portanto uma relação social que se materializa em objetos: em dinheiro, em meios
de produção, em trabalho pago por salário, em produtos vendidos em mercados. É claro que cada
forma material do capital corporifica relações específicas que, em seu conjunto, formam a relação-
-capital. Dinheiro corporifica a relação entre quem paga e quem recebe. Mercadorias corporificam
a relação entre quem compra e quem vende. Destas relações específicas, a que é essencial ao capi-
tal é a de compra e venda de força de trabalho. Porque é através desta relação que o capital se
valoriza, o lucro é trabalho não pago, é produto da exploração do trabalhador assalariado. A relação-
-capital é essencialmente uma relação de exploração.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 51
ou serviço — que visa o intercâmbio por dinheiro, a venda. O valor é a razão de ser da mercadoria
para quem a suscita.
Para o produtor simples de mercadorias ou para o capitalista, a forma física da mercadoria é
indiferente; o que ele visa é a receita monetária que ele obtém com sua venda. Neste sentido, a
mercadoria é tão somente a materialização do valor. Para o capitalista tanto faz que seu capital
assuma a forma de corridas de táxi, café ou microcomputadores. O que lhe interessa é D’, o valor
destes produtos, que, comparado com o seu capital inicial D, permite-lhe saber quanto lucrou.
Valor e lucro
Mas se a mercadoria não passa economicamente de uma portadora de valor, o que origina este
valor? Para responder esta questão, temos que proceder por etapas. A origem do valor de uma
mercadoria é o seu custo de produção, acrescido de uma margem de lucro. O valor de uma corrida
de táxi de uma hora é a soma do salário do motorista (por hora de trabalho), da depreciação do
carro, do valor do combustível consumido etc. e do lucro do dono da frota. A questão passa a ser:
qual a origem do lucro do capitalista? A resposta imediata é a existência do seu capital, o monopó-
lio que a classe capitalista detém da riqueza social e especificamente dos meios de produção. A
quantidade de lucro contida no valor de uma mercadoria específica (uma corrida de táxi) decorre
do valor do capital aplicado (a frota de táxis, combustível etc.) e da taxa de lucro aplicada a este
capital. Em outras palavras, o capitalista calcula o preço da sua mercadoria, de tal modo que ele
cubra os custos e obtenha um lucro tal que, multiplicado pela quantidade de mercadorias vendidas
durante o ano, proporcione a taxa de lucro almejada.
No exemplo anterior supusemos que o dono da frota tenha obtido um lucro anual de 1.000
salários mínimos. Imaginemos que a sua frota faça 250 000 horas de corrida por ano. Então, logi-
camente, o preço de uma corrida de uma hora inclui de salário mínimo de lucro. Com 250 esta
margem de lucro, o capitalista alcança uma taxa de lucro de 10% sobre o seu capital.
Mas vimos que cada capitalista procura obter a maior taxa de lucro possível. O que impede o
nosso dono de frota de incluir no preço uma margem maior de 23 lucro, 1
digamos de ou mesmo de
salário mínimo, para obter 250 250 uma taxa de lucro de 20 ou 30% . É a concorrência. O nosso
capitalista não é o único a possuir táxis. Ele
1. Estamos abstraindo aqui que as tarifas de táxi são controladas pelo governo muni-
cipal. Em geral, os capitalistas têm liberdade de fixar seus preços.
2. Do valor da força de trabalho total, ou seja, da soma de todos os salários pagos, que
chamaremos de V (de capital variável);
3. Do valor do lucro total, soma dos lucros de todos os capitais individuais, e que chamaremos
de M (de mais-valia).
A classe capitalista começou o ano com seu capital inicial D = C + V, isto é, meios de produção
e força de trabalho e chega ao fim do ano com D’= C + V + M, tendo lucrado D*— D = M. Qual a
origem de M? Só pode ser o trabalho dos assalariados, graças ao qual foram produzidas as merca-
dorias que compõem M’ e que são vendidas por D*.
Como se demonstra isso? Simplesmente perguntando qual é a origem de toda riqueza da classe
capitalista. Ora, esta riqueza é composta por mercadorias, que são produto de trabalho assalariado.
Cada corrida de táxi, cada quilo de café, cada microcomputador surge na posse da classe capitalista
graças à atividade da classe dos trabalhadores assalariados. Há uma relação evidente de causa e
efeito entre o volume de trabalho realizado pela classe trabalhadora e a quantidade de mercadorias,
de formas físicas portadoras de valor.
A classe trabalhadora recebe como salários um valor V menor do que o valor total criado pelo
seu trabalho, que é V -+- M. O valor C dos meios de produção consumidos no processo de produ-
ção só reaparece no valor M’ do capital-mercadoria. Por isso o denominamos de capital constante,
pois no processo de produção o seu valor não varia. Mas o capital aplicado na compra de força de
trabalho V tem o seu valor alterado. A classe capitalista paga V de salário para obter mercadorias
52 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
no valor de V + M, que é o novo valor, criado durante o ano. Por isso chamamos o capital gasto na
aquisição de força de trabalho de variável. Esta parte do capital aumenta de valor, a força de traba-
lho em funcionamento cria mais valor do que ela custa à classe capitalista. Este valor a mais cons-
titui o lucro e é por isso que o denominamos de mais-valia.
A origem do lucro
Chegamos agora ao âmago do problema: o que origina a taxa geral de lucro, que pode ser
concebida como a relação entre o lucro anual de todos os capitais individuais e o valor somado
dos mesmos?
A taxa geral de lucro nos permite visualizar o capitalismo como ele realmente funciona. Temos
de um lado o capital total, riqueza conjunta da classe capitalista, que aparece subdividido em inú-
meros capitais individuais. De outro lado temos a classe dos trabalhadores assalariados, que trans-
formam o capital produtivo total (M) em produto total (M’). Este se compõe de uma miríade de
mercadorias diferentes, que são vendidas, ou seja, transformadas num capital monetário total (D).
Examinemos agora o valor do capital total D’. Ele se compõe de 3 parcelas:
1. do valor dos meios de produção consumidos na produção de M’, que denominaremos de C
(de capital constante); estas decisões visando o lucro, ou seja, o valor a ser ganho com a venda das
mercadorias. O lucro decorre da diferença entre o valor da produção e o custo da produção. Esta
diferença é incluída no preço de cada mercadoria e o mais difícil é explicar o que a determina.
Se cada capitalista pudesse determinar unilateralmente o lucro que irá ganhar, os preços seriam
cada vez mais altos, impulsionados por margens crescentes de lucro.
Obviamente, a vontade ilimitada de lucrar de cada capitalista frustrar-se-ia porque os preços
de uns são os custos de outros. O superlucro do fabricante de carros ou de combustível esmagaria
o lucro do dono da frota. Este naturalmente aumentaria ainda mais o preço da corrida. Teríamos
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 53
uma inflação galopante, coisa que ocorre realmente quando certos preços disparam, causando a
elevação dos outros.
Se deixarmos momentaneamente de lado nosso capitalista individual, obcecado em lucrar ao
máximo, poderemos entender melhor o que se passa. Quando os capitalistas elevam os preços uns
contra os outros, o máximo que eles fazem é redistribuir entre si o mesmo lucro total. Mas eles
podem efetivamente aumentar o seu lucro total se aumentarem os seus preços contra os outros
participantes do jogo do mercado. Entre estes outros, o mais importante é a classe dos trabalhadores
assalariados. Se os capitalistas elevarem os preços das mercadorias consumidas pelos trabalhadores
sem alterar o valor dos salários que lhes pagam, a margem de lucro total se eleva na mesma medida
em que a parcela do valor novo consumido pelos trabalhadores cai. Este tipo de inflação aumenta
M, o lucro total, em detrimento de V, e como o capital total continua o mesmo, a taxa geral de
lucro também aumenta. Através da concorrência, o aumento da taxa geral de lucro permite que as
taxas de lucro de muitos capitais individuais aumentem, embora as dos capitais que produzem
mercadorias especificamente para o consumo operário possam diminuir.
É claro que a classe dos trabalhadores assalariados, ao perceber que a subida dos preços
deteriora seus salários, irá reagir exigindo o reajustamento dos mesmos. Conforme a força de
seus sindicatos, terá mais ou menos êxito. O que essa discussão mostra é que por mais dominante
que a classe capitalista seja, ela não determina sozinha a margem de lucro total nem a taxa geral
de lucro.
Estas magnitudes são determinadas no confronto de classes, na luta diuturna entre capitalistas
e trabalhadores.
E o mesmo confronto se verifica entre a classe capitalista e o Estado, que lhe extrai uma parte
do lucro total sob a forma de tributos. A inflação dos preços capitalistas desvaloriza a receita tribu-
tária, acarretando o déficit público, que os porta-vozes da classe capitalista vão atribuir à ineficiên-
cia e à corrupção na administração pública. A repartição do lucro total (ou excedente social) entre
a classe capitalista e o aparelho de Estado dá lugar a variados conflitos políticos e ideológicos, dos
quais, por falta de espaço, não nos ocuparemos aqui. E apenas mencionaremos os conflitos distri-
butivos que se produzem entre a classe capitalista e os produtores simples de mercadorias (que
constituem a pequena burguesia) e entre as classes capitalistas de diferentes nações. Em todos
estes conflitos, preços são esgrimidos como armas, acarretando contínuas mudanças na apropriação
do valor embutido nas mercadorias.
Cumpre notar que os conflitos pela apropriação do valor gerado na produção das mercadorias
assume forma de inflação, frequentemente, mas esta não é sua única forma. Os mesmos conflitos
podem ser travados mediante a baixa de alguns preços e a alta de outros, de tal modo que a média
dos preços se mantenha constante, o que significa ausência de inflação.
54 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
mau risco. Os investidores naturalmente fazem o mesmo. Perdendo o acesso a capital novo, a
empresa fica impedida de continuar na corrida tecnológica e em breve pode se encontrar falida.
Uma empresa bastante lucrativa recebe tratamento oposto: é cortejada por credores e investido-
res, o prestígio dos seus produtos cresce no mercado. Ter ou não ter lucro é, portanto, uma
questão de vida ou morte para o capital individual.
Mas o lucro também é meio, pois constitui a principal fonte de acumulação do capital. O lucro
não tem por finalidade principal proporcionar ao seu detentor um elevado padrão de consumo. Este
acaba sendo um subproduto, de importância secundária. Não é que o capitalista enquanto pessoa
não goste de luxo e pompa. Ele até que gosta, mas não tem tempo para se dedicar a eles. O ver-
dadeiro requinte exige esforço e dedicação de quem deseja desfrutá-lo. É um apanágio das classes
ociosas, no capitalismo, dos que vivem de rendas de propriedades, herdeiros de grandes fortunas,
com tempo de se devotar ao mecenato ou à filantropia. O verdadeiro capitalista dedica todo o seu
tempo à atividade empresarial e pouco lhe importa a fatia do lucro que usa para o seu consumo
pessoal. Em empresas de porte médio e grande esta fatia é desprezível, a não ser que haja grande
número de herdeiros. No fundo, o usufruto parasitário do capital como fonte de renda é contrário
à lógica do capital e leva à ruína empresas antigas, cujo lucro é apropriado por uma quantidade
excessiva de herdeiros.
O lucro tem de ser acumulado, ou seja, transformado em novo capital. O nosso dono da frota
de táxis pode consumir um terço ou um quarto do seu lucro anual de 1.000 salários mínimos. O
restante ele tem de usar pura ampliar a frota ou, digamos, instalar rádios nos carros, transformando
sua empresa em uma empresa de radiotáxis. Se não o fizer, seus concorrentes o ultrapassarão e,
possivelmente, no ano seguinte seu lucro cairá, podendo até se tornar prejuízo.
O capitalista não imagina que o lucro provenha do trabalho de seus empregados. Ele pensa,
ao contrário, que por “dar-lhes” emprego é ele, capitalista, quem os sustenta. Ocasionalmente ele
proclama (sobretudo para obter favores do poder público) que de sua empresa dependem x traba-
lhadores e suas famílias. Mas a realidade logo lhe ensina que as classes existem e se confrontam,
os trabalhadores se sindicalizam e apresentam reivindicações na negociação do contrato coletivo
de trabalho.
Estas reivindicações podem até lhe parecer justas, mas infelizmente elas sempre elevam os custos
e portanto ameaçam o sacrossanto lucro da empresa. Portanto, ele se opõe a elas com toda a força,
aliando-se a seus concorrentes para impedir que os salários sejam aumentados, que a jornada de traba-
lho seja reduzida ou que a segurança no trabalho seja reforçada. Ao agir, unidos, os capitalistas confirmam
que efetivamente os lucros de cada um são parcelas do lucro total, fruto da exploração da classe traba-
lhadora pela classe capitalista.
A lógica do capital não se impõe apenas aos capitalistas, mas também aos trabalhadores. Como
vendedores individuais de força de trabalho, encontram-se à mercê do capital, que trata de fomen-
tar a concorrência entre eles.
Dentro da empresa, os trabalhadores são escalonados em níveis hierárquicos de mérito e
responsabilidade, em grande medida artificiais. Esta hierarquia salarial tem por fim oferecer ao
trabalhador um simulacro de carreira. A grande maioria deles encontra-se na base da pirâmide e
deve conformar-se com salários baixos em troca da perspectiva de ascender no futuro a níveis
mais altos. As promoções por mérito devem induzir os trabalhadores a se esforçarem ao máximo
na produção e a se submeterem à disciplina da empresa. Mas os trabalhadores logo descobrem
que, unidos, eles ganham poder e podem conquistar concessões do capital. Organizados em
sindicato, usam a paralisação coletiva do trabalho para conquistar o aumento dos salários mais
baixos, achatando a pirâmide e destruindo o incentivo à competição entre eles. A solidariedade
de classe se impõe como imperativo ético e como meio prático de luta. Em lugar de se submete-
rem às chefias, os trabalhadores se protegem mutuamente (ocultando, por exemplo, da direção
da empresa a identidade de seus líderes) e assim conseguem se apropriar de uma parcela maior
do valor criado pelo seu trabalho.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 55
A lógica do capital desemboca na luta de classes e esta passa do plano econômico ao social e
político. Viver perigosamente parece ser a sina histórica do capital.
Nota
1. Estamos abstraindo aqui que as tarifas de táxi são controladas pelo governo municipal. Em geral, os capita
listas têm liberdade de fixar seus preços
Extraído de SINGER, Paul. Capitalismo: a sua evolução, a sua lógica e a sua dinâmica. São
Paulo: Moderna, 1987.
56 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Para Marx o ensino deveria ser universal, obrigatório, público e gratuito, principalmente
no ensino fundamental. Esse ensino não deveria ser oferecido pelo Estado, pois ele é a repre‑
sentação da burguesia no poder. Caberia ao Estado propiciar as condições materiais para a
efetivação da escola politécnica, que seria gerida pelos trabalhadores, no sentido de imple‑
mentar a educação para os alunos formando indivíduos sociais plenos.
[...] é somente trabalhando para o bem e a perfeição do mundo que
o cerca que
o homem pode atingir sua própria perfeição [...] Se ele cria somente
para si mesmo ele se tornará talvez um sábio célebre,um grande
sábio,um poeta distinto,mas jamais um homem completo,um homem
verdadeiramente grande [...] A história chama àqueles que, agindo no
interesse comum, se enobreceram (MARX, 2001, p. 11-16).
Saiba mais
Existem muitas obra de primeira mão (escrita pelo próprio Marx) e de segunda mão (interpre-
tação do pensamento marxiano) sobre a teoria de Karl Marx. As mais significativas escritas
pelo próprio Marx são: A ideologia alemã, O capital, Os manuscritos econômicos e filo-
sóficos, além do Manifesto do partido comunista, que está disponibilizado na íntegra
dentro do nosso texto. Antonio Gramsci (Os intelectuais e a organização da cultura),
Vladimir Illitch Ulianov — Lênin (Estado e a revolução) são pensadores contemporâneos que
utilizam as bases marxianas para a interpretação da sociedade capitalista moderna.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 57
Dentro desse contexto, percebemos que Marx propõe uma sociedade livre das condições
de contradição, das classes sociais e da exploração do trabalho. É dentro desse sentido que
a educação é vista como fator de transformação social e ponto central para a construção das
novas condições de vida humana. Vale ressaltar que seu pensamento é extremamente impor‑
tante para uma leitura crítica da sociedade capitalista dos dias de hoje.
58 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Analisemos a definição acima, salientando alguns pontos. A ação social pode ser tam‑
bém uma omissão ou uma permissão, não só um ato propriamente dito. Além disso, essa
ação é dotada de um significado subjetivo, ou seja, de um significado que tem valor para
o executor do ato, não para a coletividade ou para a sociedade. Uma outra observação é
que o executor orienta sua ação pelas ações dos outros indivíduos, que podem ser ações
passadas, presentes ou futuras. Pode-se dizer, portanto, que é ação social tudo aquilo que
o indivíduo faz orientando-se pela ação dos outros.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 59
Dentro desse contexto, Weber agrupa as ações sociais em quatro tipos: ação tradicional,
ação afetiva, ação racional com relação a fins e ação racional com relação a valores.
A ação tradicional é determinada pelas tradições, costumes e hábitos arraigados, por
exemplo: almoço de domingo na casa dos avós... sempre foi assim, é uma ação baseada na
tradição passada de geração para geração.
A ação afetiva é determinada pelos sentimentos, emoções e afetividades, onde o indiví‑
duo age por suas emoções imediatas. A ação afetiva não leva em consideração os fins que
quer atingir nem os meios para isso, pois a racionalidade, tanto neste tipo de ação quanto na
tradicional, fica como que “suspensa”. Um exemplo: em uma discussão podemos perder a
razão e brigarmos com a pessoa amada, pois ela agiu sem pensar racionalmente nos objetivos
e consequências de sua ação.
Já a ação racional com relação a fins é uma ação planejada, ou seja, uma ação racional
em que pensamos quais os objetivos queremos alcançar, e quais os meios que iremos utilizar
para consegui-los. Prestem atenção que aqui existe um pensamento, é uma ação consciente.
Exemplo: tenho como objetivo fazer um curso superior e, para isso, tenho que agir racional‑
mente, estudando muito para passar no vestibular e terminar a universidade.
A relação racional com relação a valores também é uma ação racional, visto que é de‑
terminada pela crença consciente em um valor que se cons idera importante. Exemplo: vou a
igreja todos os domingos, pois acredito, conscientemente, nos valores que são transmitidos
por ela, e não porque é uma tradição da minha família.
Baseado nos tipos de ação social, Weber distingue que, para existir a sociedade, é neces‑
sário que o sentido das ações realizadas pelos indivíduos seja o mesmo, pois um indivíduo
sozinho não é capaz de construir a sociedade. Torna-se necessário que o sentido da ação seja
compartilhado por um grupo de indivíduos, visto que, para Weber, a sociedade é fruto das
relações sociais.
[...] para que se estabeleça uma relação social, é preciso que o sentido
seja compartilhado. Por exemplo, um sujeito que pede uma informação
a outro estabelece uma ação social: ele tem um motivo e age em rela‑
ção a outro indivíduo, mas tal motivo não é compartilhado. Numa sala
de aula, onde o objetivo da ação dos vár ios sujeitos é compartilhado,
existe uma relação social (COSTA, 2002, p. 73).
60 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Aprofundando o conhecimento
Para compreender um pouco mais sobre essa questão, leia a seguir um trecho do
livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 11-13).
A perspectiva sociológica
1.5. Os fundamentos da ação social
Enquanto Durkheim prioriza a sociedade na análise dos fenômenos sociais, considerando-a
externa aos indivíduos e determinadora de suas ações, Max Weber prioriza o papel dos atores e as
suas ações individuais reciprocamente referidas. A sociedade, para Weber, deve ser compreendida
a partir desse conjunto de interações sociais.
A sociologia, para Weber (1991, p. 3), significa: “uma ciência que pretende compreender in-
terpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos”.
A ‘ação social’ toma o significado de uma ação que, quanto ao sentido visado pelo indivíduo,
tem como referência o comportamento de outros, orientando-se por estes em seu curso. Como
exemplo: o simples ato de comprar sapato é realizado tendo como referência um conjunto de opiniões
de outras pessoas, entre as quais o vendedor, a namorada, a mãe, os amigos, e assim por diante.
Desse modo, a ação social — aí incluídas a omissão ou a tolerância — orienta-se pelo compor-
tamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro. Os ‘outros’ podem ser
indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade de pessoas completamente desconhecidas. Por
outro lado, “nem todo tipo de contato entre pessoas tem caráter social, senão apenas um compor-
tamento que, quanto ao sentido, se orienta pelo comportamento de outra pessoa” (Weber, 1991,
p. 14). O autor fornece um exemplo do que afirma ao explanar sobre o choque entre dois ciclistas,
que, quando ocorre, trata-se de um acontecimento do mesmo caráter de um fenômeno natural, e,
ao contrário, tratar-se-ia de um fenômeno social, constituindo-se de ações sociais, as tentativas de
desvio de ambos, o xingamento, ou uma discussão pacífica após o choque. Fica estabelecida uma
relação social entre ambos.
Nessa interpretação, a interação torcedor e jogador constitui-se num fenômeno social, pois
seus agentes têm um ao outro como referência para seus atos. Do mesmo modo, podem ser trata-
das todas as interações existentes no âmbito do esporte, que, no geral, tomam o comportamento
do jogador como referência, orientando seus atos a partir desse parâmetro.
Uma vez estabelecida a definição de ação social, podem-se encontrar seus diferentes tipos
agrupando-os de acordo com o modo pelo qual os indivíduos orientam suas ações. E, segundo
Weber (1991, p. 15), a ação social pode ser determinada de quatro modos: racional referente a fins;
racional referente a valores; afetivo, especialmente emocional; tradicional.
A ‘ação social racional referente aos fins’ é determinada pelo cálculo racional que estabelece os fins
e organiza os meios necessários. Por exemplo: ao fazer a aquisição de um aparelho de televisão, o com-
prador levará em conta o custo, se o tamanho do aparelho é adequado para o alojamento onde ficará
instalado, se é colorido, e assim por diante. Um jovem escolherá uma namorada levando em consideração
se ela é comunicativa, se está vestida adequadamente, o seu nível de escolaridade etc. O torcedor decidirá
se irá ao campo levando em consideração as acomodações, o preço, as facilidades de acesso etc.
A ‘ação social referente a valores’ é determinada pela importância do valor, não sendo considerado
o êxito que se possa obter assumindo-se esse valor. É uma ação social valorizada socialmente, e é
relevante a opinião do grupo social ao qual pertence o indivíduo. Por exemplo: na aquisição de um
aparelho de televisão, o comprador dará importância à marca; os outros fatores que determinam a
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 61
escolha serão secundários. A namorada será escolhida tendo em conta os valores que predominam
na sociedade da qual faz parte, que terão papel preponderante na escolha, ficando os demais num
segundo plano. Se a beleza feminina é o valor fundamental, este será o critério predominante na ação;
se há uma valorização do papel da mulher como dona de casa, a beleza ficará num plano secundário.
A escolha de assistir ou não ao jogo no campo de futebol ou em casa, por parte do torcedor,
levará em consideração os valores do grupo social ao qual pertence. Por exemplo: pode ser de
fundamental importância para o seu grupo social a ida ao campo, constituindo-se num motivo de
aumentar os contatos sociais e valorizar sua presença nos grupos durante a semana, pois será
portador de imagens que não foram mostradas pelos meios de comunicação.
A ‘ação social de modo afetivo’ é determinada pelos afetos ou estados emocionais; a relação
entre os indivíduos se expressa em termos de lealdade e antagonismo. Por exemplo: o comprador
adquirirá o modelo de televisor de que mais goste, ou não comprará um determinado modelo em
hipótese nenhuma. A namorada será escolhida ou rejeitada de modo emocional, incluídas aí mani-
festações de paixão ou rancor.
A escolha da ida ao campo de futebol será motivada pela emoção, pelos sentimentos etc.
Poderá ir porque foi humilhado num jogo anterior com o mesmo time e quer se vingar; ou por ser
o time que desperta suas mais fortes emoções; ou porque está um dia muito bonito para se ir ao
campo etc.
A ‘ação social de modo tradicional’ é aquela determinada pelas tradições, pelos costumes arrai-
gados. Por exemplo: alguém poderá adquirir um televisor da mesma marca da que foi dos seus pais
ou da sua família. A namorada poderá ser escolhida baseada numa tradição familiar de se escolherem
“moças de família”, estereótipo passado de pai para filho.
A ida ao campo, nesse caso, será decidida em função dos costumes e das tradições adquiridas.
O indivíduo poderá não faltar a jogos com determinado time. Vai sempre no campo porque é tra-
dição de pai para filho etc.
Está claro que as ações sociais não são determinadas, de modo geral, por um único tipo. No
caso da escolha da namorada, o jovem pode levar em consideração tanto a tradição (a moça de
família) como os valores predominantes na sociedade em que vive (bonita, magra etc.). Do mesmo
modo, as diversas ações sociais que ocorrem em qualquer âmbito podem ser determinadas por
vários tipos. A ida a um campo de futebol pode ser motivada pelo dia bonito, por ser um jogo em
que não se pode faltar por envolver um time adversário específico, pelo baixo preço dos ingressos
naquele dia etc.
A ação social para Weber é um componente universal e específico na vida social e fundamen-
tal para a organização da sociedade humana.
No entanto, a explicação do cientista social será sempre parcial, já que Weber concebe
a sociedade como composta por diferentes esferas — a econômica, a religiosa, a política, a
jurídica, a social, a cultural, entre outras — cada uma delas funcionando de maneira autô‑
noma e totalmente desligada das demais. Assim, é somente através da análise das ações dos
indivíduos que podemos compreender as relações entre essas diferentes esferas que compõem
a sociedade. Portanto, o conhecimento será sempre limitado, referindo-se somente a uma
parcela da realidade, já que esta não possui lógica e funcionamento próprios, autônomos,
independentemente dos indivíduos, como pensava Durkheim, por exemplo.
Um outro fragmento social estudado por Weber foi a relação política e dominação.
Intrigava-o pensar que, nas diversas formações sociais, existiram sempre os indivíduos que
“mandavam” e os que “obedeciam”. Analisando essa questão, Weber distingue três tipos de
dominação: a dominação legal, a dominação tradicional e a dominação carismática.
A dominação legal é aquela onde a obediência é baseada nas leis, estatutos e normas
estabelecidas em nossa sociedade. Temos como exemplo o nosso Estado Democrático.
A dominação tradicional é aquela onde existe a obediência nas crenças das santidades e
das tradições, dos hábitos e dos costumes, que devem ser respeitados. Podemos pegar como
62 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Um outro ponto discutido por Weber é a análise que ele realiza sobre a consolidação do
modo de produção capitalista. Para ele, o capitalismo teve sua base inicial nas ações sociais dos
indivíduos que seguiam os princípios da Religião Calvinista (fruto da Reforma Protestante — que
já elencamos no início do nosso texto) baseados em princípios como a ética e disciplina para o
trabalho e a importância do ato de poupar, pois acreditavam que esses mecanismos que levavam
ao trabalho e sucesso seriam indícios de estarem glorificando a figura divina.
Com o passar do tempo, a ideia de predestinação e salvação vai perdendo forças, mas o
trabalho disciplinado e a busca pelo sucesso — acúmulo de capital — continuam a existir. Essa
prática estimulou e favoreceu a acumulação capitalista. Esta tese é apresentada e discutida no
livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, no qual Weber analisa obras de puritanos
e de autores que representavam os valores disseminados pelo calvinismo, relacionando-os
às condições para o estabelecimento do capitalismo (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA,
2001, p. 130).
Nesse contexto, um outro ponto importante no pensamento de Max Weber é a sua preo‑
cupação com a crescente racionalização e burocratização da sociedade capitalista moderna.
Essa racionalização da sociedade estabelece-se como o desenvolvimento histórico da socie‑
dade, em que certas ações sociais dos indivíduos se consolidam criando instituições sociais
(Igreja, Estado) que estabelecem certas regras e normas para serem seguidas pelos indivíduos,
desembocando em um consenso geral que concretiza a dominação legal, em detrimento dos
outros tipos de dominação.
Vimos que Weber estabelece que a sociedade é constituída das ações dos indivíduos e
suas interações, visando estabelecer valores a serem compartilhados em sociedade. Com o
desenvolvimento da sociedade moderna, ocorreu uma maior racionalização dessas ações,
necessitando estabelecer um maior número de regulamentos e normas a serem obedecidas,
para amenizar o conflito existente entre os indivíduos. Essas leis partem do pressuposto da
dominação legal, de modo que alguns indivíduos as criam e as impõem sobre outros.
Juntamente com essa sociedade moderna e a aplicação de suas leis, necessita-se de um
quadro administrativo, hierarquizado, burocrático e profissional para implementá-las e fazer
com que seja estabelecido o consenso entre os indivíduos, para que todos ajam conforme
essas determinações sociais existente em sociedade.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 63
Mas Weber afirma que as relações sociais não são instituídas definitivamente. Como é o
homem que estabelece ações para a concretização da sociedade, ela pode modificar-se no
decorrer da história, pois são essas mesmas ações que podem desenvolver um processo de
transformação social.
Weber também discute a questão da desigualdade social, elaborando as categorias de
castas e estamentos. Segundo Weber, as castas expressam um tipo de desigualdade pautado
em elementos que são peculiares às sociedades que as tornam possíveis, sendo que essas so‑
ciedades agrupam os indivíduos em posições econômicas e políticas. A sociedade de castas
fundamenta-se em algumas categorias básicas, como, por exemplo, a hierarquização rígida,
fundada em itens como hereditariedade, profissão, etnia, religião, que são definidos a partir de
um conjunto de valores, hábitos e costumes oriundos de uma tradição. Esse sistema de castas
fundamenta-se em uma relação de privilégios que alguns indivíduos possuem sobre outros.
Segundo Rezende (1993, p. 97):
[...] esse tipo de organização social parte do pressuposto de que os
direitos são desiguais por natureza, uma vez que os elementos que
os caracterizam são definidos fora dos indivíduos. Pode-se dizer que,
nas sociedades antigas, a organização social baseava-se no sistema de
castas, sendo que as desigualdades política e jurídica expressavam‑
-se através do lugar que o indivíduo ocupava na estrutura de cargos e
profissões, definidos pela hereditariedade, em primeiro plano.
Uma outra forma de discutir a questão da desigualdade social para Weber é a questão dos
estamentos. Em seu estudo Economia e Sociedade ele analisa a sociedade feudal como uma
sociedade estamental, que desenvolveu sua organização política fundada na hierarquização
dos estamentos (clero, nobreza, servos) na qual cada grupo realizava suas funções determinadas
pela hierarquia fundada na propriedade de terras, na política e na religião.
Aprofundando o conhecimento
Para compreender um pouco mais sobre a estratificação social e outros conceitos,
leia a seguir um trecho do livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 156-159).
Estratificação social
10.4. A estratificação social em Max Weber
Diferentemente de Marx, Max Weber insistiu que uma única característica da realidade social
(como classe social, com base no sistema de relações de produção) não define totalmente a posição
de uma pessoa dentro do sistema de estratificação.
Weber utiliza três dimensões da sociedade para identificar as desigualdades nela existentes — a
econômica, a social e a política —, que estão relacionadas com três componentes analiticamente
distintos de estratificação: classe (riqueza e renda), status (prestígio) e poder. A posição de uma pessoa
em um sistema de estratificação refletiria um pouco da combinação de sua classe, de seu status e de
seu poder. Ao mesmo tempo, essas três dimensões de estratificação poderiam operar um pouco in-
dependentemente umas das outras, determinando igualmente a posição de uma pessoa.
64 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
De acordo com Weber, há três sistemas, ou três ordens, de estratificação em qualquer sociedade:
a ordem econômica, a ordem social e a ordem política (ou legal). Cada uma dessas apresenta sua
própria hierarquia, muito embora existam relações entre elas. Como exemplo: um indivíduo numa
classe social elevada (ordem econômica) facilita sua permanência numa camada de grande prestígio
(ordem social) ou o seu acesso a um cargo político importante (ordem política), podendo ocorrer o
mesmo na ordem inversa.
Chama de classe “a todo grupo de pessoas que se encontra em igual situação de classe”, e a
situação de classe é definida por ele como (Weber, 1991, p. 199) “a oportunidade típica de 1)
abastecimento de bens, 2) posição de vida externa, 3) destino pessoal, que resulta, dentro de de-
terminada ordem econômica, da extensão e natureza do poder de disposição (ou falta deste) sobre
bens ou qualificação de serviço e da natureza de sua aplicabilidade para a obtenção de rendas ou
outras receitas”.
Diferentemente de Marx, que conceituou classe social como determinada pelas relações sociais
de produção (como na sociedade capitalista, em que os proprietários dos meios de produção formam
a classe social dominante — burguesia — e aqueles que não detêm o controle dos meios de pro-
dução, possuindo somente sua força de trabalho, constituem a classe social dominada — proleta-
riado), Max Weber afirmava que as classes sociais se estratificam segundo o interesse econômico,
em função de suas relações de produção e aquisição de bens. A diferenciação econômica, segundo
Weber, é representada, portanto, pelos rendimentos, bens e serviços que o indivíduo possui ou de
que dispõe. As classes sociais estão diretamente relacionadas com o mercado e com as possibilida-
des de acesso que os grupos na sociedade possuem a este.
O tipo de estratificação que corresponde ao status e baseia-se no prestígio é a contribuição
mais importante de Max Weber no estudo da hierarquia social. Tem base na ‘honra social’. O pres-
tígio e a honra não podem ser avaliados objetivamente, como o podem a posse de bens e a riqueza
econômica: são objeto de opiniões pessoais e fundamentam-se no consenso estabelecido numa
determinada sociedade. Uma pessoa terá sempre apenas o prestígio que a sociedade lhe quiser
reconhecer. Desse modo, a hierarquia com base no status firma-se em critérios de prestígio social
aceitos numa determinada coletividade.
Os grupos de status podem ser facilmente reconhecidos segundo seu modo de vida — costu-
mes, instrução, prestígio do nascimento ou da profissão. As pessoas que pertencem à mesma
camada de status têm tendência de frequentar os mesmos lugares e conviver com uma certa
frequência — estão quase sempre nos mesmos clubes, nos mesmos bairros, nas mesmas áreas
de lazer e de compras, e seus filhos estudam em escolas semelhantes. Os clubes sociais existentes
em qualquer cidade expressam com clareza essa tendência: se perguntarmos a vários membros de
uma comunidade a hierarquia de status dos clubes sociais (excluindo-se os exclusivamente esporti-
vos), veremos que todos apresentam uma hierarquia igual, ou muito semelhante, estabelecendo-se
um certo consenso. Além disso, o prestígio social está ligado a comportamentos definidos, como:
a maneira de falar, de gastar, de ler, de comprar, de se comportar em sociedade.
Além das classes sociais e dos grupos de status, Max Weber distinguia um terceiro tipo de
estratificação social, com base no poder político. Do ponto de vista político, a diferenciação se dá
pela distribuição do poder entre grupos e partidos políticos e também no interior destes. ‘Partido
político’, do ponto de vista de Weber, é uma associação cuja adesão é voluntária e que visa asse-
gurar o poder a um grupo de dirigentes, a fim de obter vantagens materiais para seus membros. O
poder político, de modo geral, está institucionalizado.
Os partidos políticos podem representar interesses determinados pelas outras ordens de
estratificação — a econômica e a social —, mas não coincidem totalmente com as classes sociais
ou os grupos de status. Esta terceira forma de estratificação — a política com base nos partidos
políticos — não é muito clara e por isso pouco empregada; ocorre uma hierarquia entre os par-
tidos políticos, sendo bastante evidente a posição que ocupa aquele que detém mais poder ins
titucionalizado (o controle do Executivo federal) e aqueles que somente ocupam o poder nas
pequenas cidades. No interior dos partidos políticos encontramos uma outra hierarquia de poder,
que começa no topo, com o líder do partido, e vai até o militante de base.
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 65
10.5. Os estamentos
Um outro conceito formulado por Weber é o de ‘estamento’. De acordo com ele, o estamento
é formado por quem compartilha uma situação estamental, definida como um privilegiamento típico,
positivo ou negativo, quanto à consideração social, com base: no modo de vida, no modo formal
de educação (aprendizagem empírica ou racional) e no prestígio obtido hereditariamente ou pro-
fissionalmente.
A situação estamental se manifesta sobretudo: pela endogamia dentro do grupo, na comen-
salidade (ou seja, no trato), na apropriação monopólica de oportunidades de aquisição privilegiadas
ou estigmatização de determinados modos de adquirir.
Pode originar-se de um “modo de vida estamental próprio e, dentro deste, particularmente da
natureza da profissão”; secundariamente, por carisma hereditário (descendência estamental) e pela
apropriação estamental de poderes de mando.
Weber (1991) chama de sociedade estamental quando a estrutura social orienta-se preferen-
cialmente pelos estamentos. Para ele, toda sociedade estamental é convencional, “regulada por
normas de modo de vida, criando, por isso, condições de consumo economicamente irracionais e
impedindo, deste modo, por apropriações monopólicas [...] a formação livre do mercado”.
Os estamentos ou ‘estados’ existiram durante séculos, e, na sociedade europeia, o feuda-
lismo representou uma sociedade de estamentos que apresentavam muita semelhança com as
castas — caráter fechado, uniões endogâmicas e consanguíneas, e transmissão hereditária do
status —, mas diferenciavam-se destas por não serem tão fechados.
Os estamentos mantinham uma hierarquia de ocupações sancionada por Deus. Cada pessoa
tinha de executar as tarefas próprias de sua ocupação, não podendo abandoná-la. Um indivíduo
não poderia sair de seu estamento, visto que este era regido por normas que definiam a posição do
indivíduo dentro da sociedade, bem como seus privilégios e suas obrigações.
Os três estados que existiam na França do século XVIII são exemplos de estamentos. No primeiro
estado — o da nobreza —, seus membros se degradavam ao exercer qualquer atividade econômica.
O segundo estado — o do clero — dispunha de certos privilégios em matéria de imposto e gozava
de certos direitos. O terceiro estado era constituído do resto, e todo aquele que não era nobre nem
sacerdote era deste estado. Nessa época, os estados tinham existência legal, eram reconhecidos
juridicamente e dispunham de representação no Parlamento. Fato curioso dessa situação que durou
até a Revolução Francesa era que no Parlamento a nobreza sentava-se do lado direito, o clero pos-
suía assento no centro e o povo de modo geral (os comuns) sentava-se sempre do lado esquerdo.
Daí a origem da palavra ‘esquerda’ relacionada com aqueles identificados com posições populares,
ligados ao povo, que é utilizada até hoje.
Dizia-se dos estamentos que “a nobreza era constituída para defender a todos, o clero para
rezar por todos, e os comuns para proporcionar comida para todos”.
O intelectual Raymundo Faoro (1975) publicou em sua obra Os donos do poder: formação do
patronato político brasileiro um estudo do que chamou de ‘estamento burocrático’, que controlaria
o Estado no Brasil desde o Império. Nesse estudo, Faoro considerou o estamen to como uma camada
organizada e definida politicamente por sua relação com o Estado.
66 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Por exemplo, embora o sistema de castas tenha sido abolido oficialmente na Índia, em 1949,
ele existiu e foi parte básica da vida do povo durante 2.500 anos. Na prática, as castas existem no
país até os dias de hoje. Os ‘párias’, ou intocáveis, são tão desprezados na hierarquia social que até
mesmo ser ‘tocado’ por sua sombra requer um ritual de purificação.
A casta brâmane é a casta superior em toda a Índia e é considerada a mais pura. Há um número
infinito de castas, inclusive as determinadas por ocupação hereditária — dos barbeiros, dos oleiros,
dos coureiros etc.
O sistema de castas indiano baseia-se numa classificação que vai do ‘puro’ ao ‘impuro’ e que
está em constante oposição. Os intocáveis pertencem à categoria das impurezas permanentes, pois
esta pode ser de dois tipos: permanente e temporária. A impureza temporária pode ser adquirida
pelas pessoas afetadas por acontecimentos, tais como: nascimento, morte, menstruação. As funções
da sociedade que são consideradas impuras são entregues a especialistas. Por exemplo, o barbeiro
é o sacerdote funerário e, por isso, fica encarregado das impurezas. O lavadeiro, ou lavadeira, fica
encarregado de lavar a roupa suja pelo parto ou menstruação. A purificação é feita por meio da
água do banho. Mas nem todos os banhos têm o mesmo poder. O banho que tem o máximo de
virtudes purificadoras ou religiosas é o que o indivíduo faz com as roupas sobre o corpo, nas cor-
rentes sagradas, como, por exemplo, a do Rio Ganges.
A vaca, além de pura, é considerada um animal sagrado. Há cinco produtos do animal que cumprem
um papel purificador, dos quais um é a urina. Ela separa os homens mais elevados dos homens mais
inferiores. Seus produtos são considerados agentes purificadores poderosos e o seu assassinato tem
proporções semelhantes ao assassinato de um brâmane.
As reformas sociais, as mudanças econômicas e a intensificação do processo de urbanização
têm rompido muitas das regras de relacionamento entre as castas, e a tendência é o desaparecimento
gradativo desse sistema.
No entanto, ainda hoje, no começo de um novo milênio, é socialmente forte a presença da
rígida diferenciação social. Um exemplo são os rituais dos mortos nas margens do Rio Ganges, na
Índia. Os corpos dos homens são envoltos em faixas azuis; os de mulheres, em vermelhas; e os de
idosos, em douradas. Há áreas de cremação reservadas a membros da Polícia e do Exército, comer-
ciantes e membros das castas superiores. As mulheres grávidas, os bebês, as crianças com menos
de 12 anos e as vítimas de lepra e varíola são transportados de barco para o rio e jogados nas águas
com uma pedra amarrada ao corpo. Para manter o rio limpo, o governo povoou-o com tartarugas
que se alimentam de cadáveres.1
Nota
1 Informações obtidas em “Vida e morte povoam o Ganges em Varanasi”, jornal Gazeta Mercantil, 30 set.
1999, Caderno Viagens e Negócios, p. 16.
Podemos dizer que seu pensamento propicia uma reflexão das diversas formas de agir de
cada indivíduo. Essa interação entre as partes influenciaria a construção da realidade social.
Vimos que para Weber a sociedade é racionalizada, ou seja, ela é fruto do conjunto de ações
individuais, pois o homem é o único que pode definir o seu caminho. Por isso é extremamente
importante reconhecer o papel das ações que esses homens executam, para a compreensão
da totalidade social.
Mas vimos também que o capitalismo moderno estabeleceu novas formas de ações para
os homens, através da instituição de leis e princípios burocráticos, para a busca do consenso
entre os indivíduos, através do processo de racionalização da sociedade. Sendo assim,
[...] a educação é o modo pelo qual o homem ou determinados tipos
de homens, são preparados para exercer as funções que a transforma‑
ção causada pela racion alização da vida lhes colocou à disposição
(RODRIGUES, 2000, p. 75).
A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a 67
Podemos perceber que a educação para Weber não está vinculada enquanto formação
integral do homem, mas sim uma educação como treinamento para habilitar o indivíduo para
a realização de determinada tarefa, a fim de obter poder e dinheiro, dentro dessa sociedade
cada vez mais racion alizada, burocratizada e estratificada.
Essas são algumas concepções weberianas da função da educação. Percebemos que existe,
através dessa racionalização da sociedade, uma formação específica, única, sem a possibilidade
do desenvolvimento criativo do homem, pois esse, através da dominação legal, estabelece sua
ação, dentro dos princípios instituídos pela educação capitalista moderna.
Mas não podemos perder a dimensão da individualidade do homem e da possibilidade
que ele tem de criar mecanismos de mudança dentro da sociedade. O homem, e as ações que
realiza, faz com essa teia de relações preestabelecidas possa ser reconstruída pelos próprios
indivíduos, no sentido de estabelecer novos princípios para a sociedade.
A obra de Weber é bastante vasta e aqui apresentamos apenas alguns pontos de sua teoria,
os mais significativos, para que possamos compreender os fundamentos teóricos desse autor
tão importante da sociologia clássica.
68 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Resumo
As discussões realizadas pelos autores da sociologia clássica nos fazem
refletir sobre o processo de constituição da sociedade capitalista. O importante
é entendermos como essas relações estão sendo produzidas e reproduzidas em
nossa sociedade. Nenhum dos autores nos dá respostas prontas sobre a realidade,
mas, sim, auxilia no processo de entendimento da nossa complexidade social.
Atividades de aprendizagem
1. Explique os conceitos ligados ao positivismo: anomia e fato social.
2. Por que para Marx a sociedade capitalista é desigual por natureza?
3. Exemplifique os tipos de ação social trabalhados por Weber.
4. Quais as características da educação politécnica de Marx?
5. Explique o conceito de alienação na teoria marxista.
Unidade 2
Função social
da escola
Okçana Battini
Fábio Luiz da Silva
70 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Introdução ao estudo
Pensar nas relações culturais existentes em nossa sociedade muitas vezes nos deixa perple‑
xos visto que nos deparamos com um emaranhado de fenômenos que nos colocam em xeque:
Como é possível existir uma enormidade de padrões culturais em uma mesma sociedade?
Como sujeitos de grupos distintos podem viver em sociedade, de forma coletiva? E se pensar‑
mos em uma sala de aula: quantos alunos, quantas histórias de vida, quantas experiências.
Nesse momento realmente a única certeza que existe é que somos diferentes culturalmente!
E saber dessa diferença muitas vezes assusta ou nos faz procurar saber mais sobre ela. É para
traçar esse caminho, convido vocês a seguirem comigo pela fascinante estrada, produzida pelo
homem, que ao transformar a natureza a seu favor criou símbolos e signos que nos auxiliam
a viver hoje em dia.
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 71
realizar exatamente o que foi ordenado. Caso contrário, serão substituídos por engrenagens
novas. Não permitindo autonomia, os membros da organização tendem a apegarem-se às
normas em excesso, criando uma organização burocrática. A imagem abaixo representa essa
escola... cada um realizando a sua função.
A organização como máquina é a metáfora que divulga este modelo.
A concepção da organização como máquina evoca os fundamentos da
organização burocrática e a imagem da máquina, implicando o funcio‑
namento mecanicista da organização, ou seja, a rotina, a eficiência, a
certeza e a previsibilidade, está ligada ao processo de industrialização
e ao capitalismo (OS MODELOS..., 2012, p. 1, grifo do autor).
Em uma escola assim, não há espaço para a diversidade. Talvez essa imagem seja útil para
uma fábrica de automóveis, mas não para uma escola. Afinal não estamos produzindo alunos,
todos, iguaizinhos.
A segunda imagem é mais interessante. Ao considerar a escola um ser vivo, o gestor deve
estar atendo às mudanças no meio ambiente. O que faz da escola um organismo capaz de
modificar-se conforme se altera o lugar onde ela está. Nesse caso, a escola seria considerada
um sistema aberto, em que cada parte, apesar de especializada, somente pode ser compre‑
endida a partir do todo. Uma escola vista como ser vivo, portanto, é mais flexível que aquela
considerada uma máquina. Mas temos algumas limitações nessa perspectiva. As inovações e as
ideais novas tendem a ser vistas como um perigo à organização: alguém com uma ideia nova
poderia ser considerado uma doença, um tumor que deve ser retirado. Levada ao extremo,
essa metáfora tem o mesmo destino da anterior: a diversidade não é estimulada.
A metáfora seguinte, proposta por Morgan, é a do cérebro. Esta imagem enfatiza a impor‑
tância do processamento de informações, da inteligência e da aprendizagem. Nesse caso, as
escolas são vistas como organizações necessariamente inovadoras. Assim, devem ser pensadas
e planejadas como organizações que aprendem, ou seja, estão abertas à investigação e à au‑
tocrítica. A escola, nesse caso, deve estimular a intuição e a criatividade, bem como o uso da
tecnologia. Nesse caso, há estimulo à diversidade e à autorregulação. No entanto, sempre há o
problema dos conflitos entre o sistema maior (Secretarias de Educação, por exemplo) e a escola.
A mais interessante é a metáfora da cultura, pois ela é útil em todas as organizações.
Para “lermos” a escola é utilíssima. Se considerarmos a escola como uma cultura, veremos a
importância dos aspectos simbólicos dos processos organizacionais.
A metáfora da organização como cultura, stricto sensu, permite tornar
saliente a dimensão simbólica da acção organizacional, valorizando as
subculturas, aproximando-se dos modelos políticos, e, de acordo com
Torres (1997, p. 29), “confere aos actores o protagonismo no processo
de criação e recriação da cultura em contexto organizacional” (OS
MODELOS..., 2012, p. 45, grifo do autor).
Perceberemos que as relações entre as pessoas que estão na escola não são mecânicas,
nem puramente orgânicas e nem mesmo totalmente
racionais. Veremos que a cultura organizacional é
extremamente complexa e que, portanto, demanda
uma compreensão mais profunda do que as metáforas
anteriores permitem. Nesse caso, a diversidade pode ser
Saiba mais
estimulada ou não, dependendo dos valores construídos Vamos assistir a este filme para re-
na escola pelos sujeitos que nela convivem. Como o
fletir sobre o processo de trabalho
gestor escolar deve garantir o direito à diversidade e
à participação, seus esforços devem ser dirigidos para do gestor.
a mudança nos valores presentes na escola. O grande <www.youtube.com/watch?v=m
perigo é transformar os valores do gestor em uma es‑
BluNKV2SWQ&feature=related>.
pécie de ideologia.
72 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
A escola vista como um sistema político também é bastante útil para o gestor escolar.
Esta metáfora pode ser entendida como parte da anterior, pois a questão do poder é parte
de qualquer sistema cultural. A escola será vista como um espaço onde diferentes interesses
levam a conflitos e jogos de poder. A realidade da luta pelo poder dentro das escolas deve
ser considerada, e mais, esta luta deve ser compreendida como um fenômeno nem sempre
racional. O gestor, ao reconhecer esse aspecto, deverá garantir a manifestação dos interesses,
mas deverá estar atento aos objetivos da escola, que não podem ser desprezados em favor de
interesses individuais ou de pequenos grupos. A diversidade deve ser entendida como origem
de muitos desses conflitos de poder.
Agora que já vimos alguma teoria sobre gestão, vamos enfatizar a questão da diversidade
no ambiente escolar e seus reflexos na gestão.
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 73
Em outra, onde trabalhei por mais de 10 anos, certa vez, as zeladoras resolveram lavar a
calçada da escola justamente em um dia de muita chuva, o que fazia as crianças desviarem
delas pisando no barro! Bom, estas são decisões da gestão escolar local. Não foi o secretário
de educação que mandou encher as salas de serragem.
Você pode perguntar: o que isso tem a ver com a diversidade? Bem, a direção da escola
é responsável pela inclusão de todos e isso passa por uma escola agradável para todos.
Muitas vezes, a construção de uma rampa é somente uma questão de prioridade no uso
dos recursos disponíveis. Outras vezes uma boa merenda é uma questão de organização
e orientação das merendeiras e uma boa merenda é uma questão de inclusão social. Mui‑
tos de nossos alunos chegam à escola com fome e comer bem é um direito. Na escola onde
trabalho, a qualidade e a variedade da merenda servida melhoraram muito quando a direção
designou um funcionário para pensar e planejar o cardápio. Com os mesmos alimentos que as
outras escolas recebem, estão sendo preparados pratos mais criativos e saborosos.
74 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Assim, se pensarmos a escola como um cérebro, devemos deixar livres as conexões que
permitam a rápida transmissão das informações.
Aqui, entramos em um terreno bastante delicado. A questão da liberdade religiosa. Para
que o gestor possa tratar desse assunto com competência, é preciso saber a origem da escola
laica. A partir do Iluminismo, século XVIII, houve uma progressiva separação da religião e do
Estado. A criação do Estado laico permitiu a liberdade religiosa, pois antes disso a religião
do rei tinha de ser a religião dos súditos. Por isso as inúmeras guerras religiosas, cada grupo
matando o outro em nome de Deus. A partir, então, do século XVIII, a escolha religiosa passou
a ser uma questão do espaço privado. O Estado deixou de se preocupar com isso, permitindo
a cada um a escolha, ou não, de sua crença.
Assim, a escola pública é laica, isto é, não tem uma religião em especial. Na prática sig‑
nifica que a escola não deve fazer propaganda dessa ou daquela denominação religiosa, não
deve obrigar os alunos a praticarem certos tipos de rituais, não deve julgar os alunos pelas suas
crenças. Isso significa que, a rigor, na escola pública não deve haver símbolos de qualquer
credo religioso. Se houver um, então todos deverão ter o mesmo direito. Isso afeta inclusive
o ensino religioso nas escolas. A metáfora da cultura serve muito bem para compreender essa
questão. O gestor deve ter em mente que os alunos não chegam à escola como folhas de papel
em branco, chegam repletos de valores que estarão interagindo com outros dentro da escola.
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 75
ficarão ofendidos. Você é o gestor, o pedagogo que receberá a reclamação de pais indignados
com a postura da professora. O que você faria? E se a professora continuar? E se ficar pior?
Portanto, a hierarquia, que supõe a liderança, não é oposta à gestão democrática.
[...] participação é um meio de alcançar os objetivos educacionais
esperados, mas adverte que é necessária a combinação entre a par‑
ticipação e ação, para obter o resultado esperado. Dentro da gestão
democrática, a participação é para todos, mas é necessário enunciar
que o diretor possui um papel relevante dentro deste processo, pois a
tomada de decisão é coletiva, porém a realização desta ação cabe ao
diretor, o qual é o representante formal da instituição (NASCIMENTO;
SCHNECKENBERG, 2012, p. 12).
A palavra liderança é outra que tem resistência nos ambientes escolares. O quase total
desconhecimento dos gestores escolares e dos professores do que seja liderar leva-os a con‑
fundir autoridade com autoritarismo. É evidente que onde o gestor age com autoritarismo, a
diversidade não existe, pois a vontade do administrador é a lei. Por isso, muitos ainda têm um
bloqueio em relação a esse termo. Conforme Dejuors (apud NASCIMENTO; SCHNECKENBERG,
2012, p. 14) “Na escola, a referência ao poder perturba. Ela remete, fantasticamente, à ideia
da potência absoluta, da violência e, por via de consequência, à insubmissão, ao conflito, ao
sofrimento, à avareza afetiva e mental”.
No entanto, a recusa em falar sobre “poder”, “liderança” e “autoridade” não evita que
os conflitos ocorram. Muito pelo contrário, o não tratar do assunto apenas mascara formas
mais sutis de manipulação e controle. Há dois caminhos que são consequências desse tipo
de situação. No primeiro, alguém tem o poder, mas finge que a decisão é democrática. No
segundo, a escola fica sem direção, “matando um leão por dia”.
Uma escola bem gerida, portanto, é construída pela verdadeira participação de todos,
mas também pela ação efetiva de quem deve fazer as coisas acontecerem. Vamos ilustrar com
uma situação bastante simples. Imaginem que uma escola esteja planejando uma gincana.
Uma reunião é convocada pelo diretor. Os professores se reúnem para resolver como ela será
feita. Todos podem participar com sugestões. Algumas decisões são tomadas. Algumas pessoas
ficaram responsáveis por algumas ações. Essas pessoas devem fazer o que o grupo decidiu e
devem ser cobradas, pois toda a escola depende disso.
Portanto, a diversidade somente poderá se manifestar adequadamente se a escola for
bem administrada.
Praticar a pedagogia da inclusão de todos e de todas as formas. A inclu‑
são não se faz somente com os deficientes, ou com os marginalizados.
Dentro da escola muitos alunos se sentem excluídos pelos professores
e colegas. São excluídos pelos professores, quando nunca falam deles,
quando não lhes dão valor, quando são ignorados sistematicamente.
São excluídos quando falam com e dos mesmos e descuidam os
demais. São excluídos quando exigem de pessoas com dificuldades
intelectuais, emocionais e de relacionamento, os mesmos resultados
(MORAN, 2009, p. 55-59).
76 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
lidadas tais ações na esfera pública, tais políticas afirmativas foram sendo aplicadas também
nas universidades.
Mais tarde as ações afirmativas se estenderam em muitos países, segundo Sowel (2004), os
programas para aqueles de condições socioeconômica inferior chegam na Índia, na Nigéria,
na Malásia e chegam ao Brasil em 2001, através de um decreto do governo do Estado do Rio
de Janeiro. No entanto, a maneira de diferenciar positivamente já era implementada desde
1990, em órgãos públicos.
Nessa mesma década com a Conferência Mundial sobre Educação Para Todos a educa‑
ção para os países pobres passou a ser entendida como equidade social. Também a Unesco
e a Cepal têm lutado para que os governos nacionais implantem políticas educativas. Fruto
disso é o a implantação do projeto PRELAC, que constituiu a base de quatro princípios e
cinco focos estratégicos que surgem como propostas políticas, dentre os princípios: ruptura
com enfoques neoclássicos; produção do conhecimento, promoção da diversidade; dever
da sociedade a educação.
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 77
Pensar sobre essa questão nos ajuda a compreender como o processo de divisão de cul‑
turas reflete na inserção dos sujeitos na sociedade vigente, e, por consequência, na escola. O
racismo resultante da divisão de culturas e das relações étnico-raciais impõe a necessidade
das minorias se organizarem contra a perpetuação da hierarquização da sociedade. Romper
com ideologias presentes há anos em nossa sociedade é um desafio, principalmente porque
para muitos essa é uma das maneiras de justificar o domínio de uns sobre os outros.
Mais que resgatar as dívidas que a sociedade brasileira tem com esses grupos sociais e
étnico-raciais, as ações afirmativas devem ser uma forma de democratização da sociedade
e do acesso a bens materiais e oportunidade de crescimento das pessoas.
Para Gomes (2005, p. 41) a discriminação é um componente
[...] indissociável do relacionamento entre os seres humanos,
reveste-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal,
discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as
perspectivas de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa
a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que
impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre
discriminador e discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos
esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contra‑
ponham os interesses de outros na manutenção do estatus quo. É
curial, pois, que as ações afirmativas, mecanismo jurídico concebido
com vistas a quebrar essa dinâmica perversa, sofram o influxo dessas
forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo da
parte daqueles que historicamente se beneficiaram da exclusão dos
grupos socialmente fragilizados.
78 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Links
Seria interessante conhecer as políticas sociais que buscam garantir alguns direitos sociais. Clique
e conheça o que está sendo discutido para esses sujeitos.
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> — Estatuto da Criança e do Adolescente
<www.camara.gov.br/sileg/integras/432201.pdf> — Estatuto do Deficiente
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm> — Estatuto do Idoso
<www.funai.gov.br/quem/legislacao/estatuto_indio.html> — Estatuto do Índio
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm> — Lei contra Preconceito de Raça e de Cor
80 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 81
Essa postura perdurou por muito tempo como a responsável pela explicação do precon‑
ceito existente socialmente. Torna-se importante realizarmos aqui um recorte para discutir‑
mos um pouco a relação entre raça e etnia, visto que essa questão é muito importante para
a compreensão da diversidade cultural brasileira. O conceito de raça é um dos conceitos
mais complexos, devido à contradição em seu uso cotidiano e sua base científica. Segundo
Giddens (2001, p. 205), “[...] raça pode ser entendida
como um conjunto de relações sociais que permitem
situar os indivíduos e os grupos e determinar vários
atributos ou competência como base em aspectos
biologicamente fundamentados”. Muitas vezes o termo
Saiba mais
raça é utilizado para classificar ideologicamente (hie‑ Um texto interessante que traz o
rarquizar) os indivíduos, ou seja, o racismo. Por isso
debate entre raça e etnia é Uma
é um termo contraditório, e devemos ter clareza para
não utilizarmos de forma pejorativa. Uma categoria abordagem conceitual das no-
que melhor ajudaria a compreender a questão da ções de raça, racismo, identi-
formação da sociedade é o conceito de etnia. A etnia dade e etnia, do Prof. Dr.
ou etnicidade refere-se às práticas e às visões cultu‑
rais de uma determinada comunidade, que partilham Kabengele Munanga, da Univer-
bens culturais comuns como a linguagem, a comida, sidade de São Paulo (USP).
manifestações religiosas.
Disponível em:
Sabemos que com o próprio desenvolvimento da
sociedade a Antropologia buscou novas formas de <www.acaoeducativa.org.br/
entender a cultura e a diversidade cultural. Outras downloads/09abordagem.pdf>.
correntes teóricas, dentre elas o Difusionismo ou Es‑
cola Americana, o Funcionalismo e o Estruturalismo,
auxiliaram no processo de ruptura do etnocentrismo em nossa sociedade.
Mas sabemos que as consequências do etnocentrismo estão presentes até os dias de hoje.
No Brasil podemos verificar a existência de grupos minoritários e que muitas vezes sofrem
com o etnocentrismo presente em nossa cultura. Aqui cabe uma explicação sociológica. É
comum empregarmos o termo “minoria” em um sentido não literal quando se referem à po‑
sição subordinada de um grupo dentro da sociedade, e não a sua representação numérica.
Segundo Giddens (2001), em algumas regiões geográficas, como em áreas urbanas decadentes,
os grupos de minoria étnicas compõem a maioria da população, mas, no entanto, são citados
como “minorias”, já que o termo expressa sua situação de desamparo. Ex.: as mulheres, às
vezes, são descritas como um grupo minoritário, embora constituam a maioria numérica em
muitos países. Porém, em comparação com os homens (os “majoritários” quer pela força
física, quer pelo preconceito existente socialmente), as mulheres tendem a ser desfavorecidas.
Giddens (2001) continua sua explicação alegando que o termo “minorias” para referir-se
coletivamente a grupos que tenham sofrido preconceito nas mãos da sociedade “majoritária”.
Esse termo traz a atenção para a difusão da discriminação. Podemos utilizar aqui também o
exemplo das crianças e adolescentes, dos idosos, dos homossexuais, dos negros, índios, ou
seja, grupos minoritários dentro da sociedade.
Gilberto Freire (1900 — 1987) em seu livro Casa Grande & Senzala (1933) aborda que o
processo de integração social entre o negro, branco e o índio no processo de colonização do
Brasil, estabeleceu-se de forma harmoniosa, sendo que essa miscigenação proporcionou um
equilíbrio entre os diferentes grupos culturais. Segundo Freire, as relações sociais brasileiras
fundamentavam-se no trabalho escravo, no poder e mando do senhor de engenho e da família
patriarcal, o que identificava o processo de colonização portuguesa no Brasil.
82 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Saiba mais
As obras de Gilberto Freire estão disponíveis na Biblioteca Virtual Gilberto Freire, no site: <www.
bvgf.fgf.org.br>. O prefácio do livro Casa Grande & Senzala está disponível no site:
<www.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/livros/pref_brasil/casagrande.htm>.
Esse vídeo da Tv Cultura mostra uma síntese da obra de Gilberto Freire.
<www.youtube.com/watch?v=bGmtS_ybTpg>.
É dessa relação entre poder e sobrevivência, respectivamente entre brancos e negros, que
surgiu uma cultura propriamente brasileira, expressa na fusão do vocabulário das duas raças,
nas práticas diárias, nas crenças e nas representações de poder, o que resultou em um processo
de democratização racial entre os indivíduos.
Já Florestan Fernandes contradiz essa “visão romântica” de democracia racial, desmistifi‑
cando essa questão em seu trabalho A integração do negro na sociedade de classes de 1978.
Para Florestan, o negro e sua cultura sempre participaram do processo de desenvolvimento do
país, mas sempre em posição de inferioridade dentro da estrutura social, visto que no início do
processo de colonização eram vistos como mercadorias e depois da abolição da escravidão,
em 1888, a presença do negro sempre foi vinculada ao trabalho não capacitado.
Para Fernandes (1978), o negro sempre esteve pre‑
sente no processo de construção da sociedade brasileira
e essa participação também influenciou os padrões
Links culturais do povo brasileiro. Mas a sociedade, historica‑
mente e ideologicamente, colocou o negro à margem do
Um texto interessante sobre essa processo social, visto que com o desenvolvimento das
relações de trabalho assalariado nas cidades os negros
questão da democracia racial é o
passaram a concorrer com os trabalhadores imigrantes,
da Profa Dulce Maria Pereira, cha- que já estavam acostumados com o trabalho estipulado
mado a A face negra do Brasil pelo modo de produção capitalista.
multicultural. Disponível em: Esses estudos nos ajudam a compreender como o
processo de divisão de culturas impacta na inserção
<www.dominiopublico.gov.br/ dos sujeitos na sociedade. O racismo e o preconceito
download/texto/mre000073.pdf>. oriundos dessa divisão de culturas impõe a necessi‑
dade desses grupos minoritários se unirem contra essa
hierarquização social.
Na busca por igualdade cultural os Movimentos Sociais tornam-se instrumentos essenciais
para a garantia dos direitos sociais. Segundo Rocha (2006, p. 54), desde 1929 podemos ver
ações que buscam melhoria na vida da população negra no Brasil, “[...] desde a organização
de diversas associações e clubes recreativos e culturais preocupados com a solidariedade e
cooperação mútua. Disso surgem as reivindicações para o acesso ao trabalho, à educação e
contra a desigualdade racial”. Hoje o Movimento Negro tem forte participação na luta contra
o preconceito e o racismo existentes em nossa sociedade.
Como fruto dessa mobilização popular, não somente por parte do Movimento Negro, mas
pela atividade crescente dos Movimentos Sociais (MST, Movimento GLBT, Movimento Indi‑
genista, Movimento Feminino, Movimento a favor dos Direitos da Criança e do Adolescente)
são criadas Políticas de Ação Afirmativas, no intuito de assegurar as minorias o processo de
inclusão social.
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 83
Saiba mais
Leia a dissertação de mestrado de Luiz Carlos Paixão da Rocha, Políticas afirmativas e edu-
cação: a Lei 10.639/03 no contexto das políticas educacionais no Brasil contemporâneo. Outra
leitura interessante é Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos, de Petrônio
Domingues, disponível em:
<www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf>.
Saiba mais
Se quiser aprofundar melhor essa discussão leia o texto de Sabrina Moehlecke, intitulado: Ação
afirmativa: história e debates no Brasil:
<www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf>.
84 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Nesse sentido temos uma vinculação entre as Ações Afirmativas e as Políticas Públicas
Educacionais. As tensas relações entre brancos e negros fazem parte do universo das escolas
e inúmeras vezes são simuladas como harmoniosas ou
tratadas como singulares e normais. Segundo a profes‑
sora Silva (2005) (estudiosa da questão do negro no
Saiba mais Brasil), a sociedade brasileira precisa conhecer a histó‑
ria brasileira sob o ponto de vista não dos vencedores,
Conheça a Lei 10.639/03 — Lei do mas daqueles que realmente foram os protagonistas.
No bojo das Políticas Afirmativas referente ao papel
Ensino da História e Cultura Afro-
do negro, juntamente com a atividade do Movimento
-brasileira e Africana: Negro no Brasil, temos a promulgação da Lei 10.639/03
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/ — Lei do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e
Africana (BRASIL, 2003) — que representa um avanço
leis/2003/l10.639.htm>. no sentido da promoção da igualdade racial, pois co‑
loca o tema na pauta do professor e da escola.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) alterou a Lei 9394/96 — Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira — ao incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática de História e Cultura Afro-brasileira. A relevância do estudo da história e cultura
afro-brasileira e africana dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se
enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de
construir uma nação realmente democrática.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) exige um repensar das relações étnico-raciais dos
conteúdos pedagógicos e dos procedimentos de ensino na perspectiva de uma ampliação do
foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Baseado nas discussões realizadas no início de nossa web aula, torna-se necessário com a
promulgação da Lei, buscar desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira,
mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os
negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares
que a estrutura social hierárquica criou como prejuízo para os negros.
A partir da lei, tornou-se obrigatória a inclusão nos currículos dos estabelecimentos de
ensino fundamental e médio conteúdos relacionados à História da África e à Cultura Afro‑
-brasileira, até então quase inexistentes ou quando apresentados com visões distorcidas,
além de buscar corrigir versões desvirtuadas no processo didático-pedagógico, bem como
inserir as histórias da população afrodescendente de maneira mais ampliada dentro do
contexto educacional.
Além disso, não podemos esquecer os Parâmetros Curriculares Nacionais que contempla
em um de seus documentos a Pluralidade Cultural, conhecido como temas transversais que
norteiam o ensino fundamental com seus objetivos, habilidades e competências, elencando a
delimitação de conteúdos para o ensino de cultura Afro-Brasileira e Africana. Os denomina‑
dos PCNs também buscam o fim do preconceito contra as minorias étnicas em nosso país e
apontam alguns princípios norteadores para a ação docente.
Saiba mais
Vale a pena conhecer os Parâmetros Curriculares Nacionais para Pluralidade Cultural:
<portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pluralidade.pdf>.
86 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
importância na escola de se trabalhar com um currículo que promova uma educação multi‑
cultural para compreender a pluralidade de valores culturais, resultantes de trocas culturais
dentro de cada sociedade e entre várias sociedades.
A educação nesse propósito busca eliminar preconceitos/discriminações na busca de um
mundo menos opressivo, desigual e injusto e que se propõe compreender o processo de cons‑
trução das diferenças e das desigualdades, ainda que as mesmas sejam complexas e conflituo
sas (CANEN, MOREIRA, 2001).
A obrigatoriedade da inclusão da História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação
Saiba mais Básica trata-se de uma lei, com repercussões na base‑
-pedagógica, inclusive no que tange a formação de
Leia a entrevista com a professora professores. Assim, para que uma História multicultu‑
ralista seja efetiva, deverá ter como maior propulsor os
Petronilha Gonçalvez e Silva sobre
professores, os disseminadores do conhecimento no
essa questão. ambiente escolar que podem contribuir para romper
<negraldeia.blogspot.com/2007/01/ com o preconceito, e propiciar atitudes de respeito às
diversas culturas. Portanto, o docente para atender esses
perfil-petronilha-beatriz-goncalvez-
anseios deve ser um pesquisador/professor, desprovido
e_01.html>. de preconceitos, trabalhando-as de forma concisa,
promovendo nos alunos um olhar novo olhar a respeito
das culturas existentes em nosso país.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) tem como objetivo que todos os alunos negros e não negros,
bem como seus professores, sintam-se valorizados e apoiados no que se refere a sua cultura.
Nesse sentido a escola e o professor têm o papel preponderante para proporcionar acesso aos
conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados que demonstram a valorização
das relações sociais e raciais. A escola e o professor não podem improvisar. Temos que superar
a visão etnocêntrica e discriminadora existente em nossa sociedade, reestruturando relações
étnico-raciais e sociais, desalienando os processos pedagógicos.
Torna-se necessária uma “pedagogia de combate ao racismo e a discriminação”. Claro
que nosso foco aqui é com relação a questão do negro. Mas será que só existe preconceito
em relação ao negro? Será que nas escolas e nos livros didáticos somente o negro é tratado de
forma discriminatória? Como as “minorias” são tratadas dentro de nossa sala de aula?
É importante destacar que não se trata de mudar o foco etnocêntrico marcadamente de
raiz europeia por um africano, mas da necessidade de ampliar o foco dos currículos escolares
para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Outra questão vinculada a essa discussão é a educação indígena. Diferentemente do negro,
ainda não se estruturou efetivamente um sistema que atenda as necessidades educacionais dos
povos indígenas, de acordo com seus interesses, respeitando seus modos e ritmos de vida. O
que se busca discutir hoje não é se o índio tem ou não tem que ter escola, mas sim que tipo
de escola.
Além de ser garantido na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1991), o direito a edu‑
cação diferenciada, a educação indígena, vem sendo regulamentada, além das Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, de 1996, está contemplada no Plano Nacional de Educação,
aprovado em 2001, e no projeto de Lei que busca a revisão do Estatuto do Índio. O Plano
Nacional de Educação, que tem como um de seus elementos a educação indígena, estabe‑
lece a necessidade de uma escola indígena, incluída no sistema nacional de ensino, e que
mantenha especificidades para o uso da língua indígena, a sistematização de conhecimentos
e saberes tradicionais, o uso de materiais adequados e preparados pelos próprios professores
índios, um calendário que se adapte ao ritmo de vida e das atividades cotidianas e rituais, a
elaboração de currículos diferenciados, a participação efetiva da comunidade na definição
dos objetivos e rumos da escola. A legislação educacional indígena busca colocar o índio e
sua comunidade como protagonistas da escola indígena, resguardando a eles os diretos de
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 87
terem seus próprios membros indicados para a função de professores a partir de programas
específicos de formação e titulação.
Saiba mais
Plano Nacional de Educação
Para mais informações, um site bem interessante é <pib.socioambiental.org>.
Saiba mais
Vamos conhecer o Referencial Curricular Nacional para Escola Indígena? Acesse: <www.domi-
niopublico.gov.br/download/texto/me002078.pdf>.
88 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Aprofundando o conhecimento
O texto abaixo traz uma excelente discussão acerca da questão racial no Brasil, por
um importante pesquisador brasileiro Guimarães (2004). Trata-se de um debate central
na atualidade, que ajuda a refletir criticamente sobre o chamado “mito da democracia
racial”, que tanto vem imperando no imaginário do povo brasileiro. Vale a pena conferir!
Ora, o que muda nos anos 1970 é justamente a definição do que seja racismo. E isso não muda
apenas no Brasil. Nem é produto da geração brasileira negra que estava exilada na Europa ou nos
Estados Unidos, como Abdias de Nascimento, como se tal transformação conceitual fosse um fe-
nômeno de imitação e de colonialismo cultural. A mudança é mais abrangente. Permito-me traçar,
com brevidade, as grandes linhas.
São vários os núcleos com base nos quais se processa a eleição do racismo em conceito analí-
tico central da vida social moderna. Tomemos, por exemplo, a historiografia sobre a escravidão
negra nas Américas, a começar por Boxer que, em 1963, já interioriza o modelo sociológico para o
tratamento das sociedades coloniais em seu Relações raciais no império ultramarino português. Nos
anos 1970, essa historiografia já fala abertamente em “racismo”. Em 1971, Genovese, por exemplo,
referindo-se às várias sociedades escravistas das Américas, escreveu: “Uma vez implantado o sistema
escravista, o etnocentrismo, o preconceito de cor transformaram-se rapidamente, ainda que talvez
não imediatamente, em racismo” (Genovese, 1971, p. 105).
Em 1973, Hoetink, um dos nomes mais respeitáveis dos estudos de relações raciais nas
Américas, diz: “Toda sociedade multirracial é racista no sentido de que a pertinência a um grupo
sociorracial prevalece sobre a realização na atribuição de posição social” (apud Hasenbalg, 1979,
p. 66). Nos Estados Unidos, a recepção do marxismo nas universidades (seja em sua variante histo-
ricista, seja em sua variante estrutura lista) pode ser medida pela capacidade da teoria do capitalismo
absorver e dar explicações mais vigorosas sobre o racismo americano, e, na Inglaterra, tanto o
marxismo quanto as teorias sobre o racismo se tornam instrumentos da nova esquerda em sua luta
pelos direitos das minorias étnicas e dos imigrantes.
Refletindo sobre a utilização do termo “racismo”, nas ciências sociais e na política, dizem-nos
Michael Banton e Robert Miles:
Até o final dos anos 1960, a maioria dos dicionários e livros escolares definiam [o racismo]
como uma doutrina, dogma, ideologia, ou conjunto de crenças. O núcleo dessa doutrina era de
que a raça determinava a cultura, e daí derivam as crenças na superioridade racial. Nos anos 1970,
a palavra foi usada em sentido ampliado para incorporar práticas e atitudes, assim como crenças;
nesse sentido, racismo [passa a] denota[r] todo o complexo de fatores que produzem discriminação
racial e, algumas vezes, frouxamente, designa também aqueles [fatores] que produzem desvantagens
raciais. (Banton & Miles, 1994, p. 276)
Em 1971, foi justamente o Minority Rights Group, de Londres, que publicou a brochura de
Anani Dzidziyeno, The Position of Blacks in Brazilian Society. Nela, Anani registra, entre a esquerda
brasileira, a opinião uniforme de que a democracia racial era um mito, mas observa também que,
entre os marxistas brasileiros, ainda prevalecia a ideia de que o único meio de combater o preconceito
racial era a organização e luta da classe trabalhadora.
A brochura de Anani é importante, um marco, por ser uma das primeiras publicações feita por
um cientista social, além do mais, negro e africano, a falar de racismo no Brasil. Naquele momento,
em que o marxismo também conquistara a intelectualidade brasileira, a relação entre “classe” e
“raça” era ainda pensada segundo um modelo no qual “as distinções entre grupos que se definem
como racialmente diversos e desiguais exprimem, em geral de modo mistificado, relações reais de
dominação-subordinação”, para citar Octávio Ianni (1972, p. 248).
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 89
Existia, portanto, no começo dos anos 1970, uma certa defasagem teórico-metodológica entre
os estudos de relações raciais que se faziam no Brasil e aqueles no resto do mundo, principalmente
de língua inglesa. Tal defasagem só começa a ser superada com o livro de Carlos Hasenbalg, Discri-
minação e desigualdades raciais, de 1979. Do mesmo modo, esse livro pode ser também lido, na
clave dos movimentos sociais, como a primeira tentativa de introdução do racismo na agenda po-
lítica da nova esquerda brasileira e do novo marxismo, com a ressalva, entretanto, que, ao contrário
do que se passava na Inglaterra ou nos Estados Unidos, será grande a reação a tal tentativa, e que
a agenda da luta de classes, e não do racismo, ainda predominará aqui, no Brasil, até recentemente,
pelo menos até os anos 1990. Mas vejamos mais de perto as novidades teóricas.
Um dos traços mais marcantes do trabalho de Carlos foi o de deslocar a relação marxista
clássica entre “classe” e “raça”. Segundo ele, “o racismo, como construção ideológica incorpo-
rada em e realizada através de um conjunto de práticas materiais de discriminação racial, é o
determinante primário da posição dos não brancos nas relações de produção e distribuição”
(Hasenbalg, 1979, p. 114).
Carlos, assim como os jovens marxistas dos anos 1970, ao enfocar as desigualdades sociais,
enfatiza a estrutura de classes e as hierarquias sociais em detrimento do preconceito racial e dos
modelos explicativos que tomam como ponto de partida os valores e as atitudes construídos pelos
sujeitos na interação social. Diz ele:
Como se verá, se o racismo (bem como o sexismo) torna-se parte da estrutura objetiva das
relações políticas e ideológicas capitalistas, então a reprodução de uma divisão racial (e sexual) do
trabalho pode ser explicada sem apelar para o preconceito e elementos subjetivos. (Hasenbalg,
1979, p. 114)
Poderia parecer, portanto, que em seu modelo teórico, a discriminação racial, em vez de ser
pensada como comportamento efetivo, observável pela ação dos sujeitos, passa a ser deduzida dos
seus resultados sobre a estrutura social.
No entanto, para contrapor-se a Florestan e à crença dos clássicos da sociologia europeia, para
quem adscrições como raça ou sexo não eram funcionais para alocação de posições na sociedade
de classes, Carlos vê- se também obrigado a teorizar sobre comportamentos e crenças: (a) discrimi-
nação e preconceito raciais não são mantidos intactos após a abolição mas, pelo contrário, adquirem
novos significados e funções dentro das novas estruturas e (b) as práticas racistas do grupo dominante
branco que perpetuam a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão
funcionalmente relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da
desqualificação competitiva dos não brancos. (Idem, 1979, p. 85)
De certo modo, os anos 1980 e 1990 serão tomados na sociologia brasileira pelo avanço des-
sas novas teses e novidades conceituais que se irradiarão a partir do trabalho conjunto de Carlos
Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1988; 1992). Podemos mesmo ver na ação institucional de
ambos um certo programa de trabalho, no qual, ao lado dos estudos de desigualdades raciais, que
utilizam modelos matemáticos cada vez mais refinados, se desenvolvem estudos especializados por
áreas (educação e mercado de trabalho, principalmente), ou estudos que buscam descobrir os mi-
cromecanismos de discriminação (no âmbito da escola, do livro didático, da sala de aula, da mídia,
da propaganda, dos locais de trabalho, dos locais de consumo e do mercado de trabalho etc.).
Mas, se os estudos sobre o racismo no Brasil avançaram em termos empíricos, seu cresci-
mento deu-se sobre bases teóricas que, até os dias de hoje, não estão bem assentes na socio-
logia. E é a isso que vou dedicar o restante do texto, exemplificando o que acabo de dizer a
partir de três problemas.
O primeiro advém do fato de que, por acharem que sua teoria deva se aplicar a todas as so-
ciedades multirraciais da América, alguns autores acabam por recusar qualquer especificidade às
relações raciais no Brasil. Ou seja, ao negar o exclusivismo brasileiro em termos de raça, defendido
por Freyre, acabam também por negar a originalidade das condições em que se dão as relações
raciais no Brasil.
90 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
O segundo problema tem a ver com o estatuto teórico das desigualdades raciais. São elas o
resultado de processos de interação, acomodação, competição, conflito e luta ideológica por clas-
sificação e formação de grupos raciais, de classe e de cor? Se assim for, ao teorizar sobre mecanis-
mos institucionais de reprodução ampliada ou retroalimentação sistêmica, não podemos fazê-lo no
vácuo das ações sociais. Para colocar de outro modo: as desigualdades raciais, além de constatadas,
precisam também ser compreendidas, sob o risco de dar-se margem a uma excessiva politização do
tema e a uma certa contaminação moral e ideológica, como se estes estudos pudessem ser reduzi-
dos a dados estatísticos a munir o ativismo e as políticas sociais.
O terceiro problema está na própria noção de “racismo”, tal como é usada em nossos escritos,
que se tornou por demais ampla e imprecisa. Eis como Howard Winant define o racismo
(1) práticas simbólicas que essencializam ou naturalizam identidades humanas baseadas em
categorias ou conceitos raciais; (2) ação social que produz uma alocação injusta de recursos sociais
valiosos, baseada em tais significações; (3) estrutura social que reproduz tais alocações. (Winant,
2001, p. 317)
Ou seja, sob o rótulo de racismo, são tratados objetos tão distintos quanto os sistemas de
classificação racial, o preconceito racial ou de cor, as formas de carisma (para usar o conceito de
Elias), que podem ser observadas em diversas instituições e comunidades, a discriminação racial nos
mais distintos mercados, e as desigualdades raciais e sua reprodução.
Sobre o primeiro problema que apontei, é ilustrativa a polêmica envolvendo Peter Fry (1995-
-1996) e Michael Hanchard (1994), na qual o primeiro acusa o segundo de fazer uso de catego-
rias nativas americanas para entender as relações raciais no Brasil, desprezando, desse modo, as
categorias nativas brasileiras e fazendo crer que as categorias americanas pudessem funcionar
como conceitos analíticos. Polêmica que chegou a Europa pelas penas de Pierre Bourdieu e Loïc
Wacquant (1998).
Na verdade, o mal-estar dos antropólogos com a progressiva substituição dos estudos sobre
relações raciais, nas quais os sujeitos e os significados culturais eram realçados, por estudos de
desigualdades e de racismo, nos quais os aspectos estruturais são enfatizados, já se manifestara
antes, nos anos 1980, quando Roberto DaMatta (1990), em um artigo que se tornou famoso – A
fábula das três raças –, utilizando-se fartamente do estruturalismo e das categorias de Dumont,
procura explicar “o racismo à brasileira” como uma construção cultural ímpar e específica.
A noção de pessoa e as relações pessoais, no dizer de Roberto, substituem, no Brasil, a noção
de indivíduo, para recriar, em pleno reino formal da cidadania, a hierarquia racial, ameaçada com
o fim da escravatura e da sociedade de castas. A proposta teórica de DaMatta é clara: o Brasil não
é uma sociedade igualitária de feição clássica, pois convive bem com hierarquias sociais e privilégios,
é entrecortada por dois padrões ideológicos, ainda que não seja exatamente uma sociedade hierár-
quica de tipo indiano.
Por seu turno, aqueles que recusam tal “exclusivismo” e tentam analisar a sociedade brasileira
segundo os mesmos moldes teóricos das sociedades modernas e individualistas do Ocidente, não
desenvolveram, contudo, um sistema teórico que dê conta do modo preciso em que se articulam
os diversos elementos ou aspectos do racismo. No mais das vezes, o seu esquema interpretativo
reduz todas as demais esferas a uma espécie de “falsa consciência”, representada pelo “mito da
democracia racial”, urdido e nutrido pelas elites e pelo Estado. Contra o que, mais uma vez, se
voltam os antropólogos a reivindicar um esforço sério de pensar a democracia racial enquanto mito
fundador da sociabilidade entre brasileiros.
De fato, ao tratar a “democracia racial” como uma “superestrutura”, os marxistas acabaram
por reforçar a ideia de mito, transformando-a em construto supraconjuntural, própria a uma for-
mação social, muito próxima dos processos de longa duração, de que nos fala Braudel. Deixaram
de investigar o modo concreto e as circunstâncias em que tal ideologia foi produzida por intelec-
tuais, que procuraram dar sentido a práticas e experiências também concretas, respondendo a
conjunturas bem específicas. Por outro lado, os críticos estruturalistas do marxismo e dos ativistas
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 91
negros acabaram por levar a sério o mito, vendo nele permanências e características estruturais tí-
picas da sociedade brasileira, reforçando, mais uma vez, a sua a-historicidade.
Parte do meu trabalho nos últimos anos tem sido devolver a “democracia racial” aos seus
criadores e à época em que nela se acreditou mais profundamente. Posta assim, no contexto dos
interesses culturais e materiais que a motivaram nos anos 1940, 1950 e 1960, a democracia racial
não é nem mais nem menos duradoura que o “racismo científico”. As décadas em que se acreditou
que a democracia poderia ser reduzida à convivência pacífica entre pessoas de diferentes cores,
raças e credos, e que tal convivência poderia ser garantida pelas leis e pelos costumes, foram en-
cerradas com os golpes de Estado de 1964 e 1968. A partir desse momento, a democracia racial já
não serve nem mesmo como ideal ou inspiração: não por acaso, a luta contemporânea dos negros
pelos direitos sociais inerentes à democracia brasileira passou a ter como mote a luta por cidadania
e respeito aos direitos humanos.
E o que acontece na militância encontra rápida resposta na academia e vice-versa. Tome-se o
abstract de uma tese defendida, no ano passado, nos Estados Unidos. Segundo o autor:
Esta dissertação analisa o obstáculo mais saliente para a consolidação da democracia no Brasil,
qual seja a exclusão racializada profundamente enraizada naquela sociedade. Tal exclusão tornou-se
“normal” na sociedade brasileira e faz parte do senso comum ordinário. A brancura simbólica tem
sido utilizada pelas elites para justificar os seus próprios privilégios e para excluir a maioria dos
brasileiros do exercício de seus direitos de cidadãos plenos e iguais. (Reitner, 2003, p. iv)
Nesse sentido, as enormes desigualdades raciais brasileiras são o que realmente importa, fazendo
com que a esfera das relações raciais pareça pura ilusão provocada por um plano muito bem urdido
de dominação e opressão sociais.
Enfrentar o segundo e terceiro problemas, que apresentei anteriormente, significa, pois, supe-
rar o hiato criado entre os estudos de interação social e os de estrutura social, entre aqueles da
cultura e os da sociedade, um hiato que ganhou contornos disciplinares, cada vez mais rígidos, com
a separação entre sociologia e antropologia, e o crescente interesse de ambas em estudar os mesmos
espaços territoriais. Essa tarefa é também difícil porque requer que elaboremos uma trama narrativa
mais densa, circunscrevamos com maior precisão o tempo e os eventos a serem tratados em nossos
estudos, o que, ainda que esteja nas origens da nossa tradição disciplinar, nos desabituamos a fazer
na sociologia. Mas, felizmente, outros fazem: sem esconder a ironia, poderíamos, hoje, reencontrar
a inspiração na historiografia contemporânea sobre a escravidão no Brasil, a mesma que adotou o
paradigma das “relações raciais” há 40 anos. Estão aí os trabalhos de João Reis (2003), Sidney
Chaloub (1990), Manolo Florentino (1997), Laura de Mello e Souza (1989), Hebe Mattos (2000) e
outros, que têm enfrentado com absoluto êxito esse desafio.
Na teoria sociológica, podemos optar por construir uma teoria sistêmica ou estrutural do
racismo, como queriam os marxistas; ou podemos tratar as relações raciais como um processo de
classificação social teoricamente autônomo da estrutura de desigualdades de classe, como suge-
riram Blumer (1965) e Blumer e Duster (1980). No entanto, em qualquer dos casos, é certo que
a reprodução das desigualdades raciais se articula com três diferentes processos: primeiro com a
formação e atribuição de carismas, algo que não se limita apenas ao racial, mas que atinge pra-
ticamente todas as formas de identidade social; segundo com o processo político de organização
e representação de interesses na esfera pública; e terceiro, justamente por se tratar de uma es-
trutura, há que se ter em mente os constrangimentos institucionais que funcionam como verda-
deiros mecanismos de retroalimentação.
Chegou a hora de concluir. O que faço, sintetizando quatro tempos. Para a geração de Pierson,
Wagley e Harris, nos Estados Unidos, as desigualdades raciais de classe entre negros e brancos se
perpetuavam graças ao preconceito, à discriminação e à segregação raciais. Porque, no Brasil, havia
as mesmas desigualdades, mas os fatores causais acima referidos eram relativamente fracos, os
autores americanos concluíram que tais desigualdades dever-se-iam apenas a diferenças de pontos
de partida, devendo desaparecer no futuro (ou seja, os negros provinham de castas subordinadas).
Para Florestan e sua geração, entretanto, o preconceito não só existia como, de certo modo, impe-
dia que a nova ordem competitiva se desenvolvesse em sua plenitude. Tratava-se, entretanto, de
92 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
preconceitos e discriminações fora do lugar, uma espécie de consciência alienada dos agentes sociais.
Para Carlos, Nelson e a minha geração, não apenas tais preconceitos eram funcionais para o desen-
volvimento do capitalismo brasileiro, como a reprodução do sistema de desigualdades raciais pres-
cindia, até certo ponto, da consciência dos atores.
O nosso desafio atual, ao formar as novas gerações, é teorizar a simultaneidade desses dois
fatos aparentemente contraditórios, apontados por todos os que nos precederam: a reprodução
ampliada das desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavização crescente das atitudes e dos
comportamentos racistas. Para alguns, como DaMatta, trata-se de uma sociedade semi-hierárquica
e dual; para outros, assistese à reatualização de mitos (Fry, 1995-1996); Livio Sansone (2003), re-
centemente, teorizou sobre a existência de áreas moles e áreas duras nas relações raciais (as barrei-
ras e distâncias raciais reproduzindo-se apenas nas últimas); Edward Telles (2003), por seu turno,
falou de relações raciais horizontais e verticais (constatando a ambiguidade das primeiras e a rigidez
das últimas); os ativistas, por seu turno, realçam a pouca força política dos grupos anti-racistas e a
grande resistência das elites brancas como responsáveis pelas desigualdades. Antes de contraditó-
rias, é preciso tratar tais soluções e sugestões como os temas relevantes de nossa agenda atual.
Uma agenda que, para responder aos desafios políticos de nosso tempo, tem de ultrapassar não
apenas o encapsulamento da discussão acadêmica por categorias nativas do presente, mas, também,
por fórmulas que deram legitimidade intelectual às categorias nativas do passado.
Como vimos, o texto contribui com um melhor entendimento acerca do problema das relações
sociais no Brasil, especialmente porque a sociedade brasileira, em geral, se revela, do ponto de vista
histórico, como profundamente desigual e preconceituosa diante de questões relacionadas às di-
versidades étnico-raciais.
F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a 93
Resumo
O educador tem uma função bem importante: possibilitar a inclusão e
a valorização da diversidade. Esse processo deve acontecer em rede, com
o engajamento de todos os envolvidos no processo educativo, valorizando
a gestão democrática e cultura, pois a escola é um encontro de sujeitos de
identidades culturais diferentes. Os professores podem (e devem!) possibilitar
o crescimento da cultura pessoal de cada um, agindo democraticamente na
escola e na sociedade.
Atividades de aprendizagem
1. Discuta o papel do professor no processo de superação do etnocentrismo.
2. Como o professor pode trabalhar a questão da Lei 10.639 no contexto escolar?
3 Qual a função das politicas afirmativas para a superação do racismo em nossa
sociedade?
4. Como valorizar a diversidade cultural na escola e construir uma educação
multicultural?
5. Qual a função da relativização no trabalho docente?
Unidade 3
Antropologia e
cultura Okçana Battini
Giane Albiazzetti
Isso nos ensina que as crises em nível de teorias são sanáveis: ou pela eliminação
de uma por outra; ou pela articulação das mesmas [...]; ou, ainda, pela convivência
pacífica de teorias contrárias, porém não contraditórias, das quais, aliás, a antropolo-
gia está plena. [...] Apesar de muitas delas, ou todas, serem passíveis de restrições e
de críticas, particularmente quando constroem modelos diferentes sobre uma mesma
sociedade e/ou cultura, isso não significa que essas teorias não convivam de algum
modo, compulsoriamente, uma vez que uma não dispõe de força suficiente — isto é,
de argumentos — para eliminar a outra.
Roberto Cardoso de Oliveira
96 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Introdução ao estudo
Sabemos que o termo cultura é muito amplo e cheio de significados. Muitas vezes ouvimos:
Nossa, esse sujeito é muito culto, ele tem muita cultura. E por outro lado: Está vendo aquele
indivíduo ali? Ele não tem cultura nenhuma, ou seja, não sabe se comportar! Quem já não se
deparou com uma situação assim em nossa sociedade? Será que falar em cultura é somente
elencar as ações dos indivíduos conforme sua formação? O que especificamente a cultura tem a
ver com a nossa sociedade? Como ela ajuda a explicar as relações existentes entre os homens?
Primeiro devemos refletir que o termo cultura traz muitos significados, dentre eles:
Originalmente, esta expressão [cultura] vem do latim — colere e sig‑
nifica cultivar. Com os romanos, na Antiguidade, a palavra cultura foi
usada pela primeira vez no sentido de destacar a educação aprimorada
de uma pessoa, seu interesse pelas artes, pela ciência, filosofia, enfim,
tudo aquilo que o homem vem produzindo ao longo de sua história
(CALDAS, 1986, p. 11, grifo nosso).
Saiba mais
Podemos definir Antropologia como uma ciência que estuda o homem como ser biológico, social
e cultural, sendo que ela busca investigar o desenvolvimento, as semelhanças das sociedades hu-
manas assim como suas diferenças. A palavra Antropologia, etimologicamente, vem de anthropos
que quer dizer homem, e logos, que significa “pensamento” ou “razão”. Para maiores informações
acesse o site da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) <www.abant.org.br>.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 97
A esses símbolos e signos, que fundamentam a ação humana, é dado o nome de cultura.
Nesse sentido, podemos falar que cultura engloba formas de linguagem, pensamentos, modos
de agir, os costumes, as instituições, enfim, todas as esferas da atividade humana.
Ela é o “cimento” que dá unidade a certo grupo de pessoas que dividem as mesmas ações,
costumes e valores. Deste ponto de vista, portanto, podemos dizer que tudo o que faz parte
do mundo humano é cultura.
Ou seja, a cultura surge das relações que os seres humanos estabelecem entre si e com o
meio em que vive, em busca de formas de sobreviver. Podemos falar que a cultura tem uma
relação tão intrínseca ao homem, que se pode afirmar que não existe ser humano sem cultura.
O homem é produto e produtor da cultura. A cultura compreende os bens materiais, como
utensílios, ferramentas, moradias, meios de transporte, comunicação e outros; e também os
bens não materiais, como as representações simbólicas, os conhecimentos, as crenças e os
sistemas de valores, isto é, o conjunto de normas que orientam a vida em sociedade.
Outro autor que nos ajuda a iluminar, e, portanto, melhor compreender a interpretação
de cultura é Émile Durkheim, pois segundo ele as normas, as regras de comportamento e
conduta, são produzidas e apreendidas socialmente, transmitidas de geração em geração com
o objetivo de manter ou criar uma coesão social. Quando elabora o conceito de fato social,
nos revela que a sociedade produz e impõe seus valores através da coerção com o objetivo de
autopreservação, mesmo que muitas vezes (ou na maioria delas), isso possa gerar desconforto
para alguns indivíduos na coletividade (DURKHEIM, 1988).
Chaui (1995, p. 294, grifo do autor) define muito claramente a cultura em três sentidos:
1) Criação da ordem simbólica da lei, isto é, de sistemas de interdições
e obrigações, estabelecidas a partir da atribuição de valores e coisas
(boas, más, perigosas, sagradas, diabólicas), a humanos e suas relações
(diferença sexual, e proibição do incesto, virgindade e fertilidade, puro‑
-impuro, virilidade; diferença etária e forma de tratamento dos mais
velhos e mais jovens; diferença de autoridade e formas de relação com
o poder etc...) e aos acontecimentos (significado da guerra, da peste,
da fome, do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os mortos,
proibição de ver o parto etc.).
2) Criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalhado, do
espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível.
Os símbolos surgem tanto para representar quanto para interpretar a
realidade, dando-lhe sentido pela presença do humano no mundo.
3) Conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas
quais os humanos se relacionam entre si e com a natureza e dela se
distinguem, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a. Este con‑
junto funda a organização social, suas transformações e sua transmissão
de geração para geração.
98 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
4. a cultura possui um caráter social — ela se refere sempre a um grupo do qual o in‑
divíduo faz parte. Não há cultura produzida por um indivíduo isoladamente. Para que haja
a produção da cultura, é essencial o engajamento dos indivíduos no grupo, na coletividade.
5. a cultura é um instrumento de coesão social — a cultura mantém os indivíduos unidos
em torno de determinados ideais que são socialmente constituídos. Sendo assim, a cultura
é um elemento indispensável à manutenção da ordem social, na medida em que envolve o
aprendizado de hábitos, normas, tradições, valores e comportamento por parte dos indivíduos.
Nesse sentido, a cultura pode ser vista como socializadora.
6. a cultura é dinâmica — a cultura está sempre em movimento, mesmo que de maneira
imperceptível, pois muitas vezes essas mudanças são lentas e não aparecem de imediato a
nossos olhos.
O termo cultura é realmente cheio de especificidades, visto que aborda questões que muitas
vezes estão escondidas sob as relações de nossa sociedade. Não podemos pensar em nossa
sociedade sem pensar nas relações culturais que a construíram e as que a modificam, sendo
que a realidade existente hoje em nossa sociedade, é muito diferente de vinte, trinta anos atrás.
Só podemos compreender essas mudanças, se levarmos em consideração os aspectos sociais,
históricos e culturais da nossa sociedade.
Para sabermos um pouco mais sobre como essas categorias explicativas sobre a cultura se
efetivam, necessitamos saber como historicamente a cultura e a diversidade cultural entre os
indivíduos foram tratadas. Vamos a elas?
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 99
100 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
sobre a Grécia; b) na Idade Média, as invasões turcas na região da Ásia Menor e a conquista
de Constantinopla em 1453, marcando o fim da era bizantina; c) a Revolução Francesa, em
1789, que marcou o início da ascensão política burguesa sobre as monarquias absolutistas
europeias durante a consolidação do capitalismo; d) a Primeira Guerra Mundial, no início do
século XX, entre os países da Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro) e
a Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia), que culminou com a derrota dos alemães
e seus aliados em 1917; e) a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, que opôs os países
intitulados “Aliados” (Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, União Soviética e China) aos
países “do Eixo” (Alemanha, Itália e Japão); f) a chamada “Guerra Fria”, que durou quase cin‑
quenta anos (de 1945 até 1991), e representou o conflito político-ideológico entre os Estados
Unidos, expoentes do capitalismo, e a União Soviética, representante dos países socialistas;
g) os conflitos político-ideológicos entre os países fundamentalistas muçulmanos e os demais
países, especialmente os capitalistas e sua cultura ocidental. Estes são apenas alguns exemplos
que retratam a tendência conflituosa das relações interétnicas.
Apesar desses inúmeros exemplos registrados pelos historiadores que revelam a dificul‑
dade de se estabelecerem contatos pacíficos entre diferentes sociedades e grupos étnicos, a
necessidade de encontrar respostas capazes de explicar cientificamente os motivos desses
confrontos começou a surgir somente no século XIX, quando pensadores europeus passaram
a se interessar pelas culturas não europeias, “descobertas” através das viagens marítimas dos
espanhóis e portugueses entre os séculos XV e XVI.
Dentre as ciências que se lançaram na explicação do homem e das sociedades, a Antro‑
pologia — ciência que nasce no século XIX — destacou-se por eleger como seu objeto de
estudos a diversidade humana em seus aspectos biológicos, sociais e culturais. Costa (2003,
p. 106) afirma que enquanto a Sociologia, que também é uma ciência social, se dedicava à
compreensão da sociedade europeia de sua época, a Antropologia se voltava para “o estudo
dos povos colonizados da África, Ásia e América”, utilizando métodos de observação direta e
de coleta de dados sobre essas outras sociedades, que em muito se diferenciavam da cultura
dos países europeus. Neste sentido, a autora afirma que o pensamento antropológico surge
através da descoberta da “alteridade”, isto é, da relação dos europeus com os outros povos.
Antes de falarmos da Antropologia é necessário entendermos o que estava acontecendo
no mundo, mais especificamente na Europa, entre os séculos XI e XIX. Esse período corres‑
ponde à lenta e definitiva passagem da Idade Média para a Moderna, devido ao surgimento e
desenvolvimento do capitalismo.
Conforme Campos e Miranda (2005), o capitalismo é uma ordem social que se inicia
com as relações econômicas estabelecidas ao longo desse período, e que se estabelece em
consequência da ampliação das novas formas de comércio e de produção do território euro‑
peu, fruto do aumento populacional e da produção agrícola, da criação de rotas comerciais
terrestres (após o movimento das Cruzadas), e da formação dos burgos e das cidades, onde se
davam as trocas econômicas entre os diferentes povos. Pode-se dizer que durante a chamada
Baixa Idade Média os comerciantes se tornaram verdadeiros mestres na arte de vender e de
trocar mercadorias, enquanto os artesãos, por sua vez, dedicaram-se ao aperfeiçoamento e à
criação de técnicas de produção, fatos estes que desencadearam profundas transformações na
composição da sociedade europeia.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 101
102 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
2.2 O
pensamento científico como base para o
surgimento da antropologia
Em uma sociedade que baseava suas verdades fundamentalmente no pensamento mítico
e religioso, é possível imaginarmos a revolução intelectual e cultural que representou a in‑
trodução de concepções científicas acerca do mundo e da realidade social. O pensamento
científico se distingue do teológico (religioso), do senso comum e da filosofia, e pode ser en‑
tendido, em linhas gerais, como o conjunto de verdades ou de respostas que se estabelecem
a partir do estudo sistematizado das leis e regras que explicam um determinado fenômeno,
sendo necessário, para tanto, a utilização de uma metodologia de observação, experimenta‑
ção, comparação, análise e interpretação (MENDES et al., 2006). Se quisermos, por exemplo,
compreender de fato como uma determinada sociedade se originou e se desenvolveu, será
necessário estudarmos sua história e seus elementos concretos, que são passíveis de observação
e análise. Nesse sentido, nenhuma afirmação sobre tal sociedade que decorra de ideias meta‑
físicas ou sobrenaturais poderá ser reconhecida como científica, daí a refutação ou negação
das verdades e dos dogmas difundidos pela fé e pelas crenças religiosas, os quais não podem
ser comprovados concretamente.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 103
em descobrir os motivos do que eles entendiam por “atraso cultural” dessas sociedades. Serão
estes os primeiros representantes da Antropologia, ciência que surge no século XIX, juntamente
com a Sociologia, mas que tem como objeto de estudos a compreensão das sociedades não
europeias (COSTA, 2003). É exatamente neste contexto de plena efervescência intelectual que
surge a ciência antropológica.
O autor se refere à experiência da “alteridade”, ou seja, do contato com pessoas que são
de uma cultura diferente, que possibilita conhecer melhor o “outro” e, ao mesmo tempo, a
si mesmo:
A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva‑
-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa
dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar,
cotidiano, e que consideramos “evidentes”. Aos poucos, notamos que
o menor dos nossos comportamentos [...] não tem realmente nada de
“natural”. [...] O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa
inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos
especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas
outras, mas não a única (LAPLANTINE, 1988, p. 21, grifo do autor).
104 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Diante disto, poderíamos perguntar: em que medida os indígenas podem ser considerados
diferentes ou iguais aos demais habitantes de todo o planeta Terra? Para a Antropologia esta é
uma questão essencial, pois todas as sociedades se assemelham no sentido de que possuem
cultura (ainda que culturas diferentes), e seus integrantes pertencem ao gênero humano (dotados
de todas as capacidades humanas, como a inteligência, a razão, as emoções e a criatividade).
Mas as culturas não são idênticas, porque têm especificidades, e é isso exatamente que faz com
que as sociedades e os grupos humanos mantenham diferenças entre si (RODRIGUES, 1989).
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 105
Saiba mais
Proponho que conheçam o livro de François Laplantine, intitulado Aprender antropologia.
Consta nas referências e é leitura obrigatória para os estudantes que estão iniciando nesta ciência.
Os termos Antropologia e Etnologia, embora possam ser pensados como sinônimos, são
identificados como distintos em alguns aspectos: na tradição terminológica francesa encontra-se
mais o uso do termo “Etnologia”, enquanto que o termo “Antropologia” corresponde à Escola
106 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Outros autores, como Leach (1982), preferem distinguir uma da outra. Os antropólogos
sociais podem ser pensados como aqueles pesquisadores mais voltados ao estudo do funcio‑
namento das instituições sociais, como a família, a religião, a política, a economia, as relações
entre os diferentes grupos a atores sociais no interior de uma sociedade etc.
Panoff e Perrin (1973, p. 21) entendem que o maior objetivo da Antropologia Social é
“estabelecer leis gerais da vida em sociedade” que possam ser aplicadas na análise de toda
e qualquer sociedade. Além disso, os antropólogos sociais estariam menos interessados na
perspectiva diacrônica, isto é, na busca por elementos históricos da população estudada. Sendo
assim, os antropólogos sociais estariam mais empenhados em análises sincrônicas, voltadas
para os elementos do tempo presente. Os principais nomes da Antropologia Social são: Bro‑
nislaw Malinowski, Radcliffe Brown, Evans-Pritchard, Fortes, Raymond Firth, Max Glukman,
Victor Turner e o próprio Edmond Leach.
Ainda segundo Leach (1982) os antropólogos culturais, por outro lado, sempre se debru‑
çaram mais sobre os problemas relativos às questões de etnia e de comportamentos cultural‑
mente aprendidos em cada sociedade pesquisada, principalmente as chamadas “sociedades
tribais” e as não ocidentais. Ao contrário dos antropólogos sociais, os culturais reconhecem a
necessidade de se analisar a história dos diversos povos e etnias. Para Panoff e Perrin (1973),
os antropólogos culturais sempre estiveram mais preocupados com os “problemas de relati‑
vismo cultural”, defendendo a necessidade de respeitar as especificidades culturais de cada
sociedade. Entre os representantes da Antropologia Cultural estão: Franz Boas, Margaret Mead
e Ruth Benedict, da Escola Culturalista norte-americana.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 107
descrição (anotações e registros) e análise dos modos de vida e da cultura. Sua finalidade é
reconstituir, o mais fielmente possível, os diversos aspectos e elementos da organização e da
dinâmica social. Embora atualmente o método etnográfico seja utilizado em pesquisas sobre
qualquer sociedade (inclusive a nossa), durante o século XIX e nas primeiras décadas do século
XX as etnografias foram direcionadas mais para o estudo dos povos chamados “primitivos”,
ou seja, as sociedades tribais e nativas que vivam nos continentes colonizados pelos países
europeus, ainda distantes do modo de produção industrial (PANOFF; PERRIN, 1973).
Segundo Pelto (1967, p. 27), outro fato importante foi o fortalecimento da Filosofia Ilu‑
minista, que defendia “[...] ideias de progresso e evolução que passaram a ser centrais para
a teoria antropológica do século XIX”, e a publicação da obra de Charles Darwin, A Origem
das Espécies, em 1859, que revolucionou o pensamento científico sobre a relação do homem
com a natureza, levando muitos pesquisadores e estudiosos da cultura humana a explicarem
as diferenças entre as sociedades por meio dos princípios da evolução natural.
Os filósofos do Iluminismo, especialmente Turgot e Condorcet, são
as principais fontes de muitas das ideias que constituíram a teoria da
evolução cultural. Afirmavam que a história dos seres humanos pode
ser descrita como progresso (melhoria) desde o início simples até a
nossa civilização complexa. Apresentavam supostos estágios através
dos quais teria progredido a cultura humana [...] até a civilização
moderna (PELTO, 1967, p. 30, grifo do autor).
108 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
racional do universo e do modo de produção capitalista. Essas formas de pensar e de agir não
faziam parte da cultura dos povos colonizados, por isso os europeus se colocaram como o
modelo de civilização que devia ser seguido.
Como exemplos dos registros etnográficos sobre os povos indígenas do Brasil, nesse pe‑
ríodo, destacam-se a “Carta do Descobrimento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha, e a obra
“Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, de Jean Baptiste Debret. Nesses registros era comum
a referência aos indígenas brasileiros como homens que, apesar de serem “selvagens” e de
andarem nus, eram puros pacíficos. Embora esses primeiros etnógrafos tenham manifestado
uma concepção totalmente etnocêntrica, por entenderem a cultura europeia como a mais
evoluída e civilizada, seus registros são reconhecidos como fundamentais para se compreender
os caminhos percorridos pela Antropologia após o século XIX.
2.5 Evolucionismo
Uma primeira forma de entender a diversidade cultural existente é conhecida como
Evolucionismo, sendo essa ideia (evolução) um ponto importantíssimo para o pensamento
antropológico. Podemos pensar essa leitura baseada em uma pergunta: “O ‘outro’ é diferente
porque possui diferentes graus de evolução?”.
Segundo Rocha (1994), evolução, no seu sentido mais amplo, equivale a desenvolvimento.
É a transformação progressiva no sentido da realização plena de algo latente. É a manifestação
plena do que estava oculto. Evolução em outras palavras é o desenvolvimento obrigatório de
uma determinada unidade que revela, pelo processo evolutivo, uma segunda forma, mostrando,
então, sua potencialidade. É um processo permanente onde uma unidade qualquer se trans‑
forma numa segunda que, por sua vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente.
A partir do século XIX os primeiros pensadores da Antropologia começaram a realizar
estudos sistematizados sobre os povos não europeus, denominados “primitivos” (não civili‑
zados). Baseavam seus estudos nos conhecimentos da Arqueologia e das Ciências Naturais,
principalmente a Biologia, e nos registros etnográficos produzidos desde o século XVI.
Com uma perspectiva diacrônica unilinear (valorização da evolução do homem ao longo
da história), os evolucionistas procuravam compreender as origens do homem e suas várias
formas de evolução cultural, concentrando-se principalmente no estudo da organização social,
sistemas de parentesco, crenças e religiões.
Nesse momento os estudos biológicos e naturais é que buscavam explicar o desenvolvi‑
mento dos homens, sendo que o livro A origem das espécies de Darwin passa a ser o principal
referencial. Essa noção biológica de evolução se uniu ao pensamento e discussões filosóficas
dos estudos iluministas do século XVIII, dando uma leitura de organismo social.
Esses intelectuais, também conhecidos como “darwinistas sociais”, preferiam permanecer
dentro de seus gabinetes, desenvolvendo teorias que pudessem explicar os modos de vida
desses povos, comparando-os entre si, e o porquê de não terem conseguido se desenvolver
como sociedades civilizadas, a exemplo dos europeus.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 109
Diante desse contexto, esses “pesquisadores-eruditos do século XIX”, como afirma La‑
plantine (1988, p. 63), desenvolvem uma postura etnocêntrica, pois suas análises partiam do
referencial de superioridade do povo europeu sobre os demais. Para esses teóricos todos os
povos não civilizados teriam que passar, necessariamente, pelos mesmos estágios de desen‑
volvimento para chegar até a civilização. Apenas a cultura europeia era considerada por eles
como desenvolvida no maior estágio evolutivo.
A primeira geração de antropólogos buscava estabelecer as etapas de evolução das socie‑
dades encontradas pelo mundo, sendo eles Sir James George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor
(na Inglaterra) e Lewis Morgan (nos Estados Unidos).
Esses estudos pautavam-se na busca por compreender os estágios mais primitivos de uma
sociedade, sendo que eles afirmavam que todas as formações humanas têm origens remotas e
caminham no mesmo sentido, na direção do progresso. Esses estudiosos começaram a relacionar
os “povos primitivos” e os “povos civilizados” para traçar um paralelo de desenvolvimento para
a sociedade, sendo que todos sairiam de um estágio de barbárie, passando pela selvageria e
finalmente chegando à civilização, esta fundada nos princípios da Europa e dos Estados Unidos.
Essa definição dos estágios da civilização podem ser baseadas na definição de cultura de
Tylor em seu livro A origem das culturas, em que fundamenta-se que:
Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico estrito, é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, leis, moral, costu‑
mes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem
enquanto membro da sociedade (TYLOR apud ROCHA, 1994, p. 30).
Esses itens estão presentes em todas as culturas, umas mais “civilizadas” do que outras,
sendo que esses itens eram pensados como uma linha de evolução, a partir do “polo primitivo”,
e por via do progresso, chegando ao “polo da civilização”.
Morgan, antropólogo norte-americano, institui alguns pontos que “moldaram” essa li‑
nha de evolução: “governo”, “meios de subsistência”, “arquitetura”, “religião”, “família”...
Dividindo o período da história em três grandes períodos básicos da sociedade: selvageria,
barbárie e civilização.
110 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
2.7 Difusionismo
A Escola Difusionista foi contemporânea à Evolucionista e à Sociológica Francesa, mas
procurou focalizar sua atenção em outras dimensões da cultura. Teve maior expressão nos
Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, e foi crítica do pensamento evolucionista. Os antro‑
pólogos difusionistas dedicaram-se ao estudo das origens e extensões de todas as culturas, e
estabeleceram alguns conceitos específicos para explicar as semelhanças e diferenças entre
uma sociedade e outra. Um conceito importante desta escola antropológica é o de “empréstimo
cultural”, através do qual procuravam demonstrar que as diversas sociedades, interagindo entre
si por meio de encontros e de “áreas culturais” comuns, teriam desenvolvido uma mistura de
características e modos de ser, como resultado de uma tendência humana natural à imitação
e à absorção de elementos culturais, quer as tornaria muito semelhantes em alguns aspectos
(PANOFF; PERRIN, 1973). Os difusionistas defendiam que alguns traços culturais estariam
presentes em todos os povos, e estudando a história da humanidade, chegaram à conclusão
de que existiram “centros de difusão” em determinadas regiões, especialmente no Egito, que
foram responsáveis pela disseminação desses traços culturais pelo mundo, embora cada so‑
ciedade os tivessem desenvolvido de modo específico (MAIR, 1979).
Mas as ideias desses pensadores foram superadas pelas escolas seguintes, não sendo mais
aceitas na Antropologia contemporânea. Entre os autores mais conhecidos estão: A. Bastian;
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 111
112 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
sociedade é como um “corpo humano”: é composta por diferentes partes, cada qual com sua
função específica a desempenhar e que são interdependentes, isto é, que dependem umas das
outras. Além disso, o estado “natural“ deste “corpo” seria a saúde, que seria obtida através da
integração das partes. Na sociedade, algumas instituições desempenham uma “função” crucial
na manutenção dos “processos” e “estruturas”, sendo que essas instituições e suas funções
podem variar de sociedade para sociedade.
A outra corrente advém de Radcliffe-Brown, reconhecido como um estrutural-funcionalista
por focalizar sua atenção nas estruturas sociais que determinavam o funcionamento das ins‑
tituições culturais. Menos preocupado com os trabalhos de campo, e mais influenciado pela
cientificidade positivista de Durkheim (Escola Sociológica Francesa), este antropólogo se des‑
tacou por reconhecer cada sociedade como um sistema natural, autossuficiente, e que existia
independentemente dos indivíduos que o compunham. Concentrava-se na classificação das
instituições sociais e no seu papel determinante das relações entre os homens. É identificado
como um dos precursores da Antropologia Social contemporânea.
Aqui se faz presente uma nova leitura antropológica. Com o funcionalismo a sociedade
dos “outros” deixam de ser pensadas por noções da sociedade do “eu”. Nesse momento a
Antropologia tornou-se capaz de pensar igualmente a nossa sociedade e aquelas que dela
diferem, sendo que a noção de tempo (linear, histórico) passa a não ser a única a explicar as
diferenças. Existem muitas formas de conceber e interpretar o tempo.
Os maiores representantes do funcionalismo são: B. Malinowski (Argonautas do Pacífico
Ocidental — 1922); Radcliffe-Brown (Estrutura e função na sociedade primitiva — 1952 e
Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento — 1950); Evans-Pritchard (Bruxaria,
oráculos e magia entre os azande — 1937 e Os nuer — 1940); R. Firth (Nós, os tikopia —
1936 e Elementos de organização social — 1951); M. Glukman Ordem e rebelião na África
tribal — 1963); V. Turner (Ruptura e continuidade em uma sociedade africana — 1957 e O
processo ritual — 1969); e E. Leach (Sistemas políticos da Alta Birmânia — 1954).
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 113
Segundo Boas (2005), uma das grandes tarefas da Antropologia, e que depende do método
diacrônico, é desvendar os processos históricos responsáveis pelo desenvolvimento de certos
estágios culturais, afirmando que: “Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem
a finalidade última da pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e cren‑
ças existem — em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento”
(BOAS, 2005, p. 33).
A preocupação central dos culturalistas, como se pode observar na citação acima, é di‑
recionar suas análises para as mudanças e as dinâmicas próprias de cada sociedade, a fim de
que se possa esclarecer a ocorrência dos processos culturais que são específicos.
Em primeiro lugar, a história da civilização humana não se nos apre‑
senta inteiramente determinada por uma necessidade psicológica
que leva a uma evolução uniforme em todo o mundo. Vemos, ao
contrário, que cada grupo cultural tem sua história própria e única,
parcialmente dependente do desenvolvimento interno peculiar ao
grupo social e parcialmente de influências exteriores às quais ele
tenha estado submetido. Tanto ocorrem processos de gradual diferen‑
ciação quanto de nivelamento de diferenças entre centros culturais
vizinhos. Seria completamente impossível entender o que aconteceu a
qualquer povo particular com base num único esquema evolucionário
(BOAS, 2005, p. 47).
Boas (2005) foi um crítico contundente às correntes etnocêntricas que se baseavam na tese
da divisão da humanidade em grupos raciais, considerando que a ideia de “raças” fortalecia
atitudes sectárias e antipatias entre os povos. Para este pesquisador tais atitudes são decorrentes
de ideias socialmente construídas, não explicadas em nível biológico.
Não importa quão fraco o argumento em favor da pureza racial possa
ser, nós compreendemos seu apelo social em nossa sociedade. Embora
as razões biológicas aduzidas possam não ser relevantes, a estratifica‑
ção da sociedade em grupos sociais de caráter racial irá sempre levar
à discriminação de raça. Tal como em todos os outros agrupamentos
114 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
2.10 Estruturalismo
É essa leitura que o Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss vai trabalhar. Segundo Strauss
não são todas as sociedades que utilizam a forma de tempo como a nossa (cronológico, his‑
tórico, linear), sendo que para muitas sociedades, o tempo e a sua passagem não podem ser
vistos como uma cadeia de acontecimentos. “Aqui a Antropologia se coloca como uma ciên‑
cia interpretativa, que busca apenas conhecer os significados que os seres humanos, tanto da
sociedade do ‘eu’ quanto do ‘outro’, dão às formas pelas quais escolheram viver suas vidas”
(ROCHA, 1994, p. 87, grifo do autor).
O Estruturalismo antropológico teve sua origem na França, em meados da década de 1940,
com Claude Lévi-Strauss, conhecido por seu um teórico revolucionário pela forma como buscou
compreender as culturas humanas (SILVA, 2013). Contrapondo-se às escolas anteriores, sobre‑
tudo o Funcionalismo, e colocando-se no limite entre a Antropologia Social e a Antropologia
Cultural (LEACH, 1982) seu pensamento se baseia na Psicologia, na Mitologia e na Linguística
(teoria de Saussure), concebendo a noção de que todas as sociedades possuem uma estrutura
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 115
comum, cuja lógica se fundamenta na maneira como o cérebro humano (a mente) processa
as informações e os códigos da linguagem.
Lévi-Strauss (1996, p. 49) afirma que “[...] a recorrência, em regiões afastadas do mundo
e em sociedades profundamente diferentes [...], faz crer que, em ambos os casos, os fenôme‑
nos observáveis resultam do jogo de leis gerais, mas ocultas”. Assim, a estrutura que permite
analisar as diversas sociedades se situa no nível do inconsciente coletivo, e se traduz em mitos
que são recorrentes.
116 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Além dos mitos, Lévi-Strauss dedicou-se à análise da estrutura das linhagens familiares e
parentesco, o tabu do incesto, a religião, a reciprocidade (trocas) e a linguagem, procurando
estabelecer leis gerais capazes de explicar os sistemas sobre os quais se desenvolvem as es‑
truturas sociais.
Para este pensador a linguagem humana é a base de sustentação de uma cultura, e por
isso é carregada de signos, símbolos e significados. Estes, por sua vez, sempre seguem uma
lógica binária, compondo pares de oposição, do tipo: feio/bonito, alto/baixo, certo/errado etc.
Segundo Lévi-Strauss (1996, p. 63, grifo do autor), a análise estrutural permite identificar os
“‘[...] pares de oposições que são necessários para a elaboração do sistema’”, daí a importân‑
cia atribuída ao estudo da linguagem e dos mitos em qualquer sociedade. O trecho a seguir,
extraído de sua obra de referência Antropologia estrutural, sintetiza a tese do autor sobre a
importância da análise linguística para a compreensão da vida social:
Procedendo assim, o antropólogo vai do conhecido ao desconhecido
[...]. Pois estaria aberta a rota para a análise estrutural e comparada de
costumes, instituições e condutas sancionadas pelo grupo. Estaríamos
aptos a compreender certas analogias fundamentais entre manifestações
da vida em sociedade, aparentemente muito afastadas umas das outras,
como a linguagem, arte, direito, religião. Ao mesmo tempo, finalmente,
poderíamos esperar superar um dia a antinomia entre a cultura, que
é coisa coletiva, e os indivíduos que a encarnam, porque, nesta nova
perspectiva, a pretensa “consciência coletiva” se reduziria a uma
expressão, no nível do pensamento e condutas individuais, de certas
modalidades temporais de leis universais em que consiste a atividade
inconsciente do espírito (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 82, grifo do autor).
Claude Lévi-Strauss (1996) faz questão de afirmar que os povos antes chamados de “primi‑
tivos” são, na verdade, “povos sem escrita”, e suas formas de pensar a realidade são diferentes
das sociedades que utilizam a escrita e a ciência — os povos modernos, mas não são menos
desenvolvidas por conta disso, como afirmavam os antropólogos das escolas anteriores. Neste
sentido, Lévi-Strauss rompe com o paradigma evolucionista, e também com o funcionalismo,
atribuindo às sociedades ágrafas atributos que não as desqualificam se comparadas com as
demais. O autor defende que o pensamento “selvagem”, ou a mente “primitiva” revelam um
profundo interesse em explicar a realidade, isto é, esses povos “[...] são movidos por uma ne‑
cessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade
em que vivem” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 26), e para isso utilizam a razão, a intelectualidade,
mas de um modo diferente do pensamento científico.
Enquanto a ciência moderna se ocupa da investigação de recortes, de “pedaços” da realidade,
para melhor compreendê-la e conseguir desenvolver mecanismos de controle do homem sobre
a natureza, os povos ágrafos se valem de explicações totalizantes fundamentadas em mitos, os
quais não lhes possibilitam controlar os eventos naturais, embora os expliquem a seu modo.
Neste sentido pode-se perceber o caráter relativizador do estruturalismo de Lévi-Strauss,
na medida em que reconhece a diversidade das formas de pensar e de existir sem, contudo,
qualificá-las. O autor chega, inclusive, a duvidar que no futuro essa diversidade deixará de
existir, pois acredita que cada grupo se adapta às mudanças sem perder sua identidade cultural.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 117
É claro que ele reconhece o pensamento científico como mais elaborado e eficaz no sen‑
tido de permitir o domínio do homem sobre a realidade, mas isto não o torna melhor ou mais
evoluído do que o pensamento “selvagem”. Este pensar “primitivo”, ou mítico, segundo Lévi‑
-Strauss (1978, p. 28) “[...] dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode
entender o universo”, pois para essas sociedades é isto o que realmente importa: entender o
mundo, ainda que não possam controlá-lo. Além disso, o autor defende que apesar de serem
tão diferentes entre si, as sociedades humanas podem conviver perfeitamente bem, ainda que se
julguem por vezes superiores e melhores que as demais: “Nada impede, com efeito, que
culturas diferentes coexistam e que prevaleçam entre elas relações relativamente tranquilas”
(LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 23).
Interessante como o autor destaca em seu livro Mito e significado que a mente humana,
independentemente da condição sociocultural, é extremamente competente na observação
e compreensão das coisas, e seletiva ao dirigir sua atenção para a realidade, o que explica o
fato de que muitos povos sem escrita (ágrafos) conseguem “enxergar” e explicar eventos da
natureza sem, contudo, utilizar instrumentos complexos e elaborados como fazem os cientistas.
Frequentemente os chamados nativos apenas observam e sentem o mundo à sua volta, reco‑
nhecendo suas propriedades e sua dinâmica, o que lhes possibilita conviver com os eventos da
natureza de uma maneira harmônica e produtiva, e para isso se utilizam dos mitos (a linguagem
metafórica e mitológica que, do ponto de vista científico, não é verdadeira) e do pensamento
mágico para tentar resolver os problemas lógicos que não conseguem abstrair de outra forma.
Portanto, em lugar de opor magia e ciência, seria melhor colocá-las
em paralelo, como dois modos de conhecimento desiguais quanto aos
resultados teóricos e práticos (pois, desse ponto de vista, é verdade
que a ciência se sai melhor que a magia, no sentido de que algumas
vezes ela também tem êxito), mas não devido à espécie de operações
mentais que ambas supõem e que diferem menos na natureza que na
função dos tipos de fenômeno aos quais são aplicadas (LÉVI-STRAUSS,
2008, p. 28, do autor).
118 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Saiba mais
Não deixem de conhecer alguns dos mais importantes livros de Lévi-Strauss, todos citados nas
Referências: Antropologia estrutural, onde apresenta seu método; Mito e significado, onde
discute a importância dos mitos nas diversas sociedades; e O pensamento selvagem, que trata
da especificidade do conhecimento dos povos tribais. Belíssimas obras!
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 119
sociedades identificando nelas elementos que lhes são comuns, isto é, os sistemas universais
que explicam a natureza estrutural de todas e quaisquer culturas. Em relação a isto, o próprio
Lévi-Strauss (1996) considera que as tradições, os costumes, as crenças e todos os demais
aspectos de uma cultura têm que ser pensados como um complexo sistema, o qual “[...] deve
ser considerado em seu conjunto, para se perceber sua estrutura” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.
63). Por exemplo, aplicando seu método na análise das relações de parentesco e dos vínculos
familiais em diversas sociedades tribais estudadas por outros antropólogos (Radcliffe-Brown,
Malinowski, Lowie, Kroeber, entre outros). Lévi-Strauss (1996, p. 64) acaba por concluir que:
Para que uma estrutura de parentesco exista, é necessário que se en‑
contrem presentes nela os três tipos de relações familiais sempre dados
na sociedade humana, isto é, uma relação de consanguinidade, uma
relação de aliança, uma relação de filiação.
120 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
A cultura, para o autor, é pública e é produzida por seus próprios membros, e para ser
interpretada deve ser analisada em todas as suas dimensões — somente assim o pesquisador
poderá fazer uma “leitura” e compreender qual a sua importância para os próprios indivíduos
que dela fazem parte.
Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretativa sugere
que a diferença [...] que surge nas ciências experimentais ou obser‑
vacionais entre “descrição” e “explicação” aqui aparece como sendo
[...] entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especificação” (“diag‑
nose”) — entre anotar o significado que as ações sociais particulares
têm para os atores [...] e afirmar, tão explicitamente quanto nos for
possível, o que o conhecimento assim atingido demonstra sobre a
sociedade na qual é encontrado e, além disso, sobre a vida social
como tal. Nossa dupla tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que
informam os atos dos nossos sujeitos, o “dito” no discurso social, e
construir um sistema de análise [...] no qual possa ser expresso o que
o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo — isto é, sobre o papel
da cultura na vida humana (GEERTZ, 1973, p. 37-38, grifo do autor).
Assim, Geertz (1973, p. 321) conclui: “[...] as sociedades, como as vidas, contêm suas
próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas”. Desta forma, compete ao
antropólogo estudar profundamente as diversas culturas e suas respectivas redes de símbolos
e significados, os quais fazem todo o sentido para as pessoas que participam dessas culturas
(os intérpretes de primeira mão, como afirma Geertz), mas que devem ser analisados e com‑
preendidos também através da perspectiva antropológica (científica, portanto), por meio do
trabalho do pesquisador (o intérprete de segunda e de terceira mão).
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 121
Com sua concepção hermenêutica, ou interpretativa, este autor rompe com qualquer
tentativa de explicar o universo cultural do homem por meio de leis gerais, como muitos
antropólogos filiados a outras escolas teórico-metodológicas fizeram (ele menciona a teoria
estruturalista de Claude Lévi-Strauss como exemplo). Geertz reconhece que cada sociedade
(e, portanto, cada sistema cultural) se desenvolve ao longo da história segundo seus próprios
parâmetros: “O que é importante nos achados do antropólogo é sua especificidade complexa,
sua circunstancialidade [...] que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre
eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente com eles” (GEERTZ, 1973,
p. 33, grifo nosso) — neste caso, “eles” são os indivíduos que falam sobre sua própria socie‑
dade e sobre sua própria cultura, isto é, os “nativos”. Sendo assim, a tarefa do antropólogo
é, ao mesmo tempo, desvendar as concepções que os próprios “informantes” têm acerca de
sua realidade sociocultural, e “construir um sistema de análise” (GEERTZ, 1973, p. 38) que
estabeleça uma correlação entre aquilo que é dito pelos informantes locais e aquilo que é
observado e interpretado pelo próprio pesquisador.
Resumindo, precisamos procurar relações sistemáticas entre fenô‑
menos diversos, não identidades substantivas entre fenômenos simi‑
lares. E para consegui-lo com bom resultado precisamos substituir a
concepção “estratigráfica” das relações entre os vários aspectos da
existência humana por uma sintética, isto é, na qual os fatores bioló‑
gicos, psicológicos, sociológicos e culturais possam ser tratados como
variáveis dentro dos sistemas unitários de análise. [...] É uma questão
de integrar diferentes tipos de teorias. [...] Na tentativa de lançar tal
integração do lado antropológico e alcançar, assim, uma imagem mais
extada do homem, quero propor duas ideias. A primeira delas é que a
cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de
comportamento — costumes, usos, tradições, feixes e hábitos —, como
tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos
de controle — planos, receitas, regras, instruções [...] para governar
o comportamento. A segunda ideia é que o homem é precisamente
o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de
controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para
ordenar seu comportamento (GEERTZ, 1973, p. 56, grifo do autor).
122 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Links
É importante aprofundarmos nossa leitura sobre as teorias antropológicas, sendo que existem
muitos sites que discutem essas questões: <www.admead.ufla.br/moodle/file.php/1/moddata/
glossary/1/3/002>.
2.11 D
iversidade cultural: etnocentrismo e
relativização
A partir da leitura da Declaração sobre a Diversidade Cultural da UNESCO e de nossa
discussão, de que o indivíduo vive em sociedade e que muitas vezes nos deparamos com
várias informações vindas de todos os cantos do mundo, e essas informações nos ajudam a
formar uma opinião sobre os diversos assuntos que constituem a realidade social, torna-se
imprescindível a compreensão da sociedade em sua totalidade, ou seja, formar opiniões sobre
os países, os povos, a maneira de viver de outros grupos sociais etc.
Não é apenas as crenças culturais que diferem através das culturas. As diversidades das
práticas e do comportamento humano também fazem parte desse “jogo” cultural. Existem
várias formas de comportamento, que variam amplamente de cultura para cultura e, com
frequência, contrastam drasticamente com o que as pessoas que não fazem parte desse grupo
consideram “normal”.
Giddens (2001) dá um exemplo bem significativo para ilustrar essa questão: o casamento.
Em nossa sociedade o casamento é um momento em que duas pessoas adultas resolvem se
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 123
unir por amor, paixão e construir uma vida a dois “até que a morte os separe!” Se observarmos
em nossa sociedade ocidental moderna, consideramos essa atitude vinculada a vida adulta,
com responsabilidades... Mas em algumas culturas, casamentos são arranjados para crianças
de 12, 13 anos e deve ser considerado normal. Se pensarmos na questão da alimentação, da
vestimenta, da música, da dança, das formas de trabalho... Iremos perceber que existem inú‑
meras representações que são inerentes a determinado grupo cultural.
Mas, nesse contexto, é muito comum “julgarmos”
o comportamento de outros grupos diferentes do nosso,
a partir da nossa realidade, dos nossos valores e há‑
bitos. Lembram da leitura do Evolucionismo como Para saber mais
padrão explicativo da cultura? Pois bem, dessa leitura
desenvolveu o que chamamos de Etnocentrismo. “Et‑ Etimologicamente a palavra Etno-
nocentrismo é uma visão do mundo de onde o nosso centrismo que dizer: etno (etnia,
próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos grupo, sendo unidos por um fator
os “outros” são pensados e sentidos através dos nossos
comum, tal como a nacionalidade,
valores, nossos modelos, nossas definições do que é a
existência” (ROCHA, 1994, p. 7). religião, língua, bem como demais
Para entendermos melhor a questão do etnocen‑ afinidades históricas e culturais, e
trismo precisamos entender a constituição do euro‑ centrismo (centro).
centrismo. No final do século XIX e início do século
XX, em plena era da expansão colonialista dos países
industrializados, a conquista de territórios teve como principal objetivo a busca de matérias‑
-primas e a ampliação de mercados para as mercadorias produzidas e os excedentes de capital.
Segundo Bruit (1994, p. 5):
Entre 1870 e 1914 a Europa e os Estados Unidos arquitetaram a
conquista política, econômica e cultural da África, Ásia, Oceania e
América Latina. Repartiram o mundo entre si e organizaram poderosos
impérios coloniais que só tinham em comum o desenvolvimento da
acumulação capitalista.
124 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Links
O nazismo representou um exemplo do que estamos tratando, isto é, do etnocentrismo. Acesse o site:
<www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/nazismo/>.
Do ponto de vista antropológico, o maior mal causado pelas práticas colonialistas foi o
fato de difundirem as ideias de superioridade racial e cultural das nações europeias, sobretudo
porque isso provocou uma série de consequências sobre a cultura e os costumes dos povos
dominados. Segundo Quijano (2005), tais práticas inauguraram uma forma de poder funda‑
mentada na ideia de raça e na divisão da humanidade a partir das características biológicas,
linguísticas e culturais de cada povo, estabelecendo de modo arbitrário a superioridade dos
europeus e do estilo de vida capitalista.
A difusão de uma concepção racial permitiu, desta forma, explicar e justificar o processo
de dominação e de imposição de costumes burgueses como meio de contribuir com o problema
do “atraso” civilizatório em que os povos colonizados pareciam se encontrar. Para o autor, a
ideia de diferenças raciais “[...] foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento
constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia” (QUIJANO, 2005,
p. 227-278), possibilitando, portanto, classificar as sociedades nativas das Américas, primeiramente,
e depois as de outras regiões colonizadas, estabelecendo parâmetros distintivos e discriminatórios
entre os diversos grupos humanos existentes.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 125
A classificação dos povos em categorias raciais é compreendida por Quijano (2005) como
resultado de uma construção social (arbitrária, portanto) por parte dos colonizadores, que,
durante os primeiros séculos de práticas colonialistas, se autodefiniram como “brancos” em
oposição aos grupos nativos, cujos tipos físicos tinham características distintas e as peles outras
tonalidades. O chamado “homem branco” se colocou em posição de superioridade na “escala
evolutiva”, impondo-se como uma raça dominante, mais forte e civilizada, tendo como base as
explicações científicas (darwinismo social). Desta forma, “[...] novas identidades históricas e
sociais foram produzidas” (QUIJANO, 2005, p. 227-278), facilitando a exploração do trabalho
humano escravo em benefício do capitalismo colonial.
Quijano (2005) observa que a distribuição dos postos de trabalho, ao longo da colonização,
esteve diretamente vinculada à origem racial, de tal forma que aos brancos eram reservados os
postos mais nobres, como a administração das colônias e outros postos de poder, e o trabalho
livre assalariado; por outro lado, aos “negros” e aos “índios”, considerados inferiores, foram
destinados os trabalhados braçais e escravos, necessários à exploração dos recursos naturais
e à produção colonial.
Essas formas de organização e controle do trabalho foram elaboradas em torno da lógica
de acumulação capitalista e do mercado mundial, representando, do ponto de vista histórico,
um novo padrão de organização e controle do trabalho com vistas a fortalecer o poder dos
países colonizadores. Esse padrão de dominação foi, portanto, ao mesmo tempo político, eco‑
nômico e cultural, fundamentado na equivocada ideia de superioridade e inferioridade racial.
A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um
único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma
configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente
126 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Aprofundando o conhecimento
Apresentamos a você, caro leitor, o documento da Organização das Nações Unidas
(UNESCO, 2002), no qual os povos são conclamados a reafirmarem o compromisso com
a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na
Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente
reconhecidos.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 127
128 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos hu-
manos e às liberdades fundamentais.
Artigo 6 – Rumo a uma diversidade cultural accessível a todos
Enquanto se garanta a livre circulação das ideias mediante a palavra e a imagem, deve-se
cuidar para que todas as culturas possam se expressar e se fazer conhecidas. A liberdade de expres-
são, o pluralismo dos meios de comunicação, o multilinguismo, a igualdade de acesso às expressões
artísticas, ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive em formato digital — e a possibilidade,
para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão, são garantias da
diversidade cultural.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 129
130 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Notas
[1] Entre os quais figuram, em particular, o acordo e os Preconceitos Raciais, de 1978, a Recomen-
de Florença de 1950 e seu Protocolo de Nairobi dação relativa à condição do Artista, de 1980 e
de 1976, a Convenção Universal sobre Direitos a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura
de Autor, de 1952, a Declaração dos Princípios Tradicional e Popular, de 1989.
de Cooperação Cultural Internacional de 1966, a [2] Definição conforme as conclusões da Confe-
Convenção sobre as Medidas que Devem Adotar- rência Mundial sobre as Políticas Culturais
-se para Proibir e Impedir a Importação, a Expor- (MONDIACULT, México, 1982), da Comissão
tação e a Transferência de Propriedade Ilícita de Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Nossa
Bens Culturais, de 1970, a Convenção para a Pro- Diversidade Criadora, 1995) e da Conferência
teção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural Intergovernamental sobre Políticas Culturais para
de 1972, a Declaração da UNESCO sobre a Raça o Desenvolvimento (Estocolmo, 1998).
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 131
Como vimos, esse documento da UNESCO define parâmetros gerais para nortear as leis
dos países que compõem a Organização das Nações Unidas em relação ao compromisso de
respeito às diversidades humanas, em respeito ao que já estava contemplado anteriormente
na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Resumo
Nesta terceira unidade do livro você pode conhecer os conceitos de alte‑
ridade e de relativismo cultural, e teve a oportunidade de compreender por
que a Antropologia adota positivamente o uso dos mesmos. Com o texto foi
possível refletir a respeito de como vêm se dando as relações sociais entre os
mais diferentes povos, sociedades e grupos, e os desdobramentos das práticas
etnocêntricas com as quais ainda convivemos nos dias de hoje. Nossa ênfase foi
ampliar o entendimento de como a noção de alteridade e de relativismo cultural
pode auxiliar no estudo das diversidades humanas em nossos dias, e também
em nossas práticas diárias e profissionais.
132 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Atividades de aprendizagem
1. Explique as principais propriedades da cultura (a cultura é simbólica, a cultura não
é inata, a cultura pressupõe uma linguagem, a cultura possui um caráter social,
a cultura é um instrumento de coesão social, a cultura é dinâmica).
2. Por que podemos falar que a Antropologia é uma ciência que se transformou com
o desenvolvimento da sociedade?
3. A corrente evolucionista de explicação sobre a diversidade cultural deixou algumas
sequelas negativas em nossa sociedade? Explique e exemplifique.
4. Discuta sobre a questão da diacronia e da sincronia na perspectiva da Antropo‑
logia.
5. Explique as definições de etnocentrismo e relativização, e discuta como esses
dois conceitos nos ajudam a compreender a diferença entre os indivíduos em
sociedade.
Unidade 4
Cultura e
ideologia
Okçana Battini
Giane Albiazzetti
134 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Introdução ao estudo
Pensar nas relações culturais existentes em nossa sociedade muitas vezes nos deixam
perplexos, visto que nos deparamos com um emaranhado de fenômenos que nos colocam em
xeque: Como é possível existir uma enormidade de padrões culturais em uma mesma sociedade?
Como sujeitos de grupos distintos podem viver em sociedade, de forma coletiva? E se pensar‑
mos em uma sala de aula: quantos alunos, quantas histórias de vida, quantas experiências...
Nesse momento realmente a única certeza que existe é que somos diferentes culturalmente!
E saber dessa diferença muitas vezes assusta ou nos faz procurar saber mais sobre ela. É, para
traçar esse caminho, convido vocês a seguirem comigo pela fascinante estrada, produzida pelo
homem, que ao transformar a natureza a seu favor criou símbolos e signos que nos auxiliam
a viver hoje em dia.
C u l t u r a e i d e o l o g i a 135
Essa relação pode ser vista como uma relação pautada na divisão entre os sujeitos
sociais, oriundas de práticas históricas, sendo que Marx observou que a sociedade nasce
pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social
do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão social do poder
econômico, divisão social do poder militar, divisão social do poder religioso e divisão social
do poder político. Por que divisão: porque em todas as instituições sociais (família, trabalho,
comércio, guerra, religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, ideias e
saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui nada disso,
estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída (CHAUI, 1995).
Podemos notar que esses conjuntos de divisões vão se tornando cada vez mais amplo e
complexo, multiplicando-se em muitas outras divisões, sob forma de instituições desenvol‑
vendo o que conhecemos como nossas estruturas sociais, sendo essas estruturas fundadas na
divisão de classes sociais. Essa divisão Marx e Engels (2001) chamam de condições materiais
de existência, sendo que se referem às práticas sociais que os homens realizam através do
trabalho, visto que é esse trabalho que garante nossa existência.
Segundo Marx e Engels (2001), existem variações dessas condições materiais de existên‑
cia, oriundas do momento histórico em que os homens realizam as ações descritas acima,
produzindo os chamados Modo de Produção. Chaui (1995) utiliza-se de Marx para discutir
que é através da história que existem as mudanças, passagens ou transformações de um modo
de produção para outro.
Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos ho‑
mens, mas acontece de acordo com condições econômica, sociais e
culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas de uma maneira
também determinada, graças à práxis humana diante de tais condições
dadas (CHAUI, 1995, p. 172).
Nesse contexto Marx e Engels (2001) colocam que as mudanças de uma sociedade esta‑
belecem-se em condições determinadas. Assim, ele fundamenta: “os homens fazem a História,
mas não a sabem que a fazem” (CHAUI, 1995, p. 172).
Podemos chamar isso de alienação social, sendo que essa questão
pauta-se no desconhecimento das condições histórico-sociais con‑
cretas em que vivemos produzidas pela ação humana também sob o
peso de outras condições históricas anteriormente determinadas. Há
uma dupla alienação: por um lado, os homens não se reconhecem
como agentes e autores da vida social com suas instituições, mas, por
outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos livres, capazes
de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem, apesar das
instituições sociais e das condições históricas. No primeiro caso, não
136 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
C u l t u r a e i d e o l o g i a 137
Saiba mais
o desenvolvimento científico
e tecnológico, são o pano de
fundo para uma visão melhor
desse movimento intelectual Para compreender melhor como as
de grande envergadura que Grandes Navegações influenciaram
irá alterar profundamente as
formas de explicar a natu‑
no processo de transformação da
reza e a sociedade daí para a sociedade, ver o filme: A missão
frente (TOMAZI, 2000, p. 1). (The Mission, ING., 1986) Direção:
Com a expansão marítima, os europeus ampliaram Roland Joffé, Elenco: Robert de
sua perspectiva de mundo, ao estabelecer contato com Niro, Jeremy Irons, Lian Neeson,
novos povos, novas culturas e novas mercadorias. Uma
121 min, Flashstar.
nova estruturação estatal acompanha esse processo de
expansão marítima, com a formação e o fortalecimento
dos Estados nacionais, dotados de orçamento e aparato
jurídico-burocrático-militar próprios.
O Renascimento (século XVI) trouxe novamente a
figura do homem como elemento central da sociedade, Para saber mais
visto que coloca como paradigma a perspectiva Antro‑
pocêntrica em detrimento do Teocentrismo, sendo que O filme O nome da rosa mostra
esse ideal pode ser entendido como a valorização do um retrato bastante fiel do poder da
homem e da natureza, em oposição ao divino e ao so‑
Igreja Católica no século XIV. Dire-
brenatural, conceitos que haviam impregnado a cultura
da Idade Média. Nesse momento Galileu Galilei, Leo‑ ção de Jean-Jacques Annaud, com
nardo da Vinci, Copérnico desenvolveram novas formas os atores Sean Connery, Christian
de compreender a realidade social, utilizando-se da Slater, F. Murray Abraham, Valentina
experiência para comprovar os fenômenos da sociedade
Vargas, Ron Perlman, Michael Lons-
e da natureza. É o início do conhecimento científico que
mais tarde com Francis Bacon e René Descartes ficará dale, William Hickey, Elya Baskin,
conhecido como o único responsável pelas explicações Feodor Chaliapin Jr., Helmut Qual-
dos fenômenos naturais e sociais. tinger, Volker Prechtel, Michael Ha-
A Reforma Protestante, com Martin Lutero e João
beck, Urs Althaus no elenco.
Calvino,institui uma nova forma de mediar a questão com
138 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
o divino, rompendo com a hegemonia da Igreja Católica, ao entrar em conflito com a autoridade
papal e a estrutura da igreja, propiciando uma tendência que contribui de modo significativo para
a valorização do conhecimento racional, em contraposição à revelação, ao permitir a livre leitura
das Escrituras Sagradas e, dessa forma, o confronto com o monopólio do clero na interpretação
baseada na fé e nos dogmas (TOMAZI, 1993, p. 2).
No século XVIII, o processo de transformação da vida social, econômica e política euro‑
peia são consolidados, principalmente em decorrência das inovações trazidas pela Revolução
Industrial na Inglaterra, quanto à esfera econômica, e pela substituição da nobreza pela bur‑
guesia, no direcionamento político, na França.
A Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra a partir de 1750 significa o coroamento de
um processo iniciado no século XVII, que fez da burguesia comercial, formada principalmente
por comerciantes e banqueiros, uma classe economicamente poderosa e influente. Essa classe
foi a responsável pela introdução da produção manufatureira, inicialmente, e por seu desen‑
volvimento, marcado pela maquinofatura e pela produção industrial, num momento posterior.
Na França, por sua vez, as mudanças provocadas pela Revolução Francesa centralizavam-se
no âmbito político. A burguesia contou com a colaboração efetiva dos filósofos iluministas,
que criticavam duramente a nobreza feudal e o sistema (desigual) de privilégios que até então
a sustentara.
Estas críticas foram muito importantes para mobilizar os trabalhadores e dar sustentação
à proposta burguesa de reorganização da sociedade, efetivada com a Revolução Francesa.
A burguesia, ao tomar o poder em 1789, investiu decididamente contra os fundamentos
da sociedade feudal, procurando construir um Estado que assegurasse sua autonomia em face da
Igreja e que protegesse e incentivasse a empresa capitalista. Para a destruição do antigo regime,
foram mobilizadas as massas, especialmente os trabalhadores pobres das cidades (MARTINS,
1987).
Pode-se perceber, portanto, que tanto a Revolução Industrial quanto a Francesa trouxeram
novas condições de sobrevivência — econômicas, políticas e sociais — para o mundo europeu.
Embora estes dois acontecimentos históricos tenham sido extremamente importantes para a
organização da sociedade que temos hoje, suas consequências sociais marcaram significati‑
vamente a população europeia. Na verdade, o principal “mérito” destas revoluções foi o de
possibilitar a plena e absoluta consolidação do modo de produção capitalista, inicialmente
na Europa, e em seguida em todo o mundo.
C u l t u r a e i d e o l o g i a 139
Em outras palavras, a sociedade europeia do século XVIII passou a conviver com problemas
até então inexistentes, já que a sociedade era bastante estável. E são justamente estes “novos”
problemas sociais que irão preocupar os pensadores da época, que passam a dedicar-se a
estudá-los, com o objetivo de compreender como “melhorar” ou resolver estes problemas.
140 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
C u l t u r a e i d e o l o g i a 141
Dentro desse contexto, as ideologias agem nos sentido de inverter a realidade e transformá‑
-la em ideais de mundo da classe dominante, tornando-se representações universais, autônomas,
justamente para poder camuflar sua origem: a divisão da sociedade em classes, em proprietários
e não proprietários, a separação dos que pensam e daqueles que executam, ocultando assim
as contradições internas ao modo de produção capitalista.
Mas... por que falar de ideologia e alienação para discutir cultura?
É comum ouvirmos a seguinte expressão, comumente usada, para se referir a pessoas com
pouca ou nenhuma instrução escolar formal: “Ele(a) não tem cultura”; obviamente essa “afir‑
mativa” nada tem de verdadeiro ou concreto, dado que mesmo sem ter tido a oportunidade
de sentar-se em um banco escolar a referida pessoa possui cultura, já que está inserida em
sociedade, em um grupo, em uma religião, em uma comunidade, enfim, tem passado, tem
história, portanto tem cultura, uma vez que partilha de valores, crenças, costumes, hábitos
com seus interlocutores sociais.
Evidente que a referida afirmação citada no parágrafo anterior está intimamente ligada à
divisão da sociedade em classes desiguais, e que tem seu motor na dominação econômica, mas
que, no entanto, passa fundamentalmente pela dominação cultural, ideológica, moral, espiri‑
tual... Isso pode ser visto quando relacionamos a separação entre cultura popular e erudita, a
questão do etnocentrismo, a indústria cultural, a relação direta de cultura com escolarização...
Enfim, em todas as relações sociais temos, mesmo que veladamente, a relação alienação e
cultura imposta. Esses itens serão discutidos no decorrer de nosso texto, mas já posso indicar
algumas reflexões para vocês: Será que existe mesmo uma separação entra a cultura do povo
e a cultura da elite? Qual é a correta? Qual representa a “verdadeira” cultura? Será mesmo
que só tem cultura quem frequenta a escola? Para iniciar a sua reflexão deixo aqui uma frase
do Marx sobre isso...
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épo‑
cas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que
é o poder material dominante numa determinada sociedade é também
o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios da pro‑
dução material dispõe também dos meios de produção intelectual, de
tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios
de produção intelectual está submetido também à classe dominante
(MARX; ENGELS, 2001, p. 48).
Aprofundando o conhecimento
O texto a seguir ajuda a compreender o atual debate sobre a neutralidade das
ciências, levando-nos a refletir sobre a própria cultura, educação e a ciência que his‑
toricamente surgiu com um forte apelo ideológico. O autor se baseia no conteúdo dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, e analisa a tese da suposta neutralidade científica
a partir dos aspectos relativos à imparcialidade, neutralidade aplicada e neutralidade
cognitiva (OLIVEIRA, 2003).
O conceito de neutralidade da ciência, num sentido amplo, deve ser analisado em alguns
componentes, um dos quais é a imparcialidade.
142 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
C u l t u r a e i d e o l o g i a 143
Como se pode ver então, a conjuntura histórica pós-segunda guerra mundial gerou uma for-
mulação particular da tese da neutralidade da ciência em que ela aparece contrastada com a não
neutralidade de suas aplicações, que podem ser voltadas para o bem ou para o mal.
Esta perspectiva tem em princípio certa validade. Não há dúvida de que não apenas a ciência,
mas qualquer artefato humano admite diferentes formas de utilização. Uma faca de cozinha, por
exemplo, pode ser usada “para o bem” – para, digamos, descascar batatas – ou para torturar ou
assassinar uma pessoa, e neste sentido ela é neutra. Entretanto, como um ponto de vista para a
avaliação dos benefícios e malefícios da ciência aplicada, ela deixa muito a desejar. Deixa a desejar
porque de acordo com ela, como no caso paradigmático da bomba atômica, o mal figura como
intenção explícita. Se nos limitarmos a casos desta natureza, deixaremos de enxergar os aspectos
perniciosos das utilizações da ciência que não fazem parte das intenções daqueles que as promovem,
mas nem por isso são menos importantes.
O autor defende a ideia de que as ciências não podem se sujeitar ao relativismo, conceito tão
importante para os antropólogos na contemporaneidade, mas que muitas vezes leva a concepções
equivocadas de que tudo pode ser permitido e realizado em nome do desenvolvimento da huma-
nidade. Segundo o mesmo, as ciências, incluindo a Antropologia, precisa manter uma posição de
imparcialidade, o que não pode ser confundido com a pretensa neutralidade aplicada. Sendo assim,
é preciso que todos os pesquisadores se posicionem criticamente em relação ao papel social das
ciências e das tecnologias, especialmente no mundo de hoje.
144 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Saiba mais
Existem muitos elementos que nos ajudam a analisar e compreender essa relação alienação X
sociedade X cultura, dentre eles documentários, livros, sites...
Um documentário interessante é Ilha das flores, do diretor Jorge Furtado, ano 1989, com du-
ração de 13 min, produzido no Brasil. O filme pode ser visto no site: <www.portacurtas.com.br/
Filme.asp?Cod=647#>. Esse documentário aborda como as relações sociais pautadas na questão
do trabalho estão presentes em simples atos do nosso dia a dia.
Links
Um site interessante que aborda um livro da Marilena Chaui, autora que utilizamos para a
construção de nossa unidade é: <www.admativa.com.br/claudio/arquivos_gerais/
%5Blivro%5D_o_q_e_ideologia_marilena_chaui.pdf>.
C u l t u r a e i d e o l o g i a 145
Resumo
Nesta unidade discutimos o surgimento do modo de produção capitalista,
por ser ele o responsável por instituir um “novo” padrão social, pautado na
divisão de classes sociais, na desigualdade e na propriedade privada dos meios
de produção. Nesse sentido, analisamos o pensamento marxista que desvela o
processo de alienação imposto sobre os indivíduos, buscando romper com o
processo de hierarquização social.
Existem muitos livros que trabalham essa questão, sendo que indico alguns
para vocês, dentre eles: O que é alienação, de Wanderley Codo, da série “Pri‑
meiros Passos” da Editora Brasiliense; Marx: a teoria da alienação, de István
Mészáros, e o próprio texto do Marx Ideologia alemã, que está indicado no
item saber mais.
Uma coleção interessante que nos ajuda compreender o desenvolvimento
da nossa sociedade historicamente é do historiador Eric Hobsbawn, que de‑
monstra como ocorreram as principais mudanças, fruto da ação e do pensa‑
mento do homem.
Atividades de aprendizagem
1. Por que precisamos discutir a questão do surgimento do Modo de Produção
Capitalista para falarmos de alienação e cultura?
2. Explique, com suas palavras, dois pontos centrais do capitalismo: a importância
da propriedade privada e a existência de duas classes sociais.
3. Analise o impacto da divisão de classes sociais (burguesia e proletários) na for‑
mação da cultura e da sociedade.
4. O que podemos fazer para romper com a alienação imposta sobre nossa
sociedade?
5. Discuta como podemos relacionar conceitos como ideologia e cultura para a
interpretação da realidade social?
Unidade 5
Cultura de massa,
indústria cultural e
formação da cultura
brasileira: impactos na
formação do professor
Okçana Battini
Giane Albiazzetti
Seção 2: Globalização
Nesta unidade discutiremos a globalização como
processo econômico, político e ideológico e seus
impactos na formação social.
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 149
Introdução ao estudo
Hoje em nossa sociedade existem diversas formas de comunicação como o rádio, a te‑
levisão, os jornais e a Internet. Fala-se que vivemos em uma sociedade digital, ou seja, uma
sociedade tecnológica.
Como vimos no início do nosso texto, a sociedade é fruto das ações entre os homens,
sendo que essas ações modificam o social no decorrer da história. Antigamente para nos co‑
municarmos utilizávamos cartas, existiam as conversas de rodas nas ruas, nem todos tinham
telefone e aparelho de televisão em casa. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista,
os meios de comunicação passam a ser a principal forma de produzir e reproduzir notícias,
informações... Agora tudo acontece em tempo real. Isso só foi possível com o desenvolvimento
do capitalismo.
150 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
nenhum grupo social específico, apesar de a burguesia utilizá-la em seu proveito para obter lu‑
cro, com a sua comercialização, sendo transmitida de maneira industrializada (daqui pode tirar
a ideia massificada) para um público generalizado, de diferentes camadas socioeconômicas.
Mas por que denominar cultura de massa ou indústria cultural?
O primeiro termo faz com que vejamos a sociedade moderna como
uma sociedade de massa, de multidões padronizadas e homogêneas
[...] O segundo termo remete às ideias de produção em série, de co‑
mercialização e de lucratividade, características do sistema capitalista.
Podemos imaginar então o estabelecimento de uma indústria produtora
e distribuidora de jornais, livros, peças, filmes, em resumo, de merca‑
dorias culturais (CRESPO, 2000, p. 205).
O termo “indústria cultural” foi criado por Theodor Adorno e Max Horkheimer, membros de
um grupo de filósofos conhecidos como Escola de Frankfurt. Esses autores buscaram analisar cri‑
ticamente o funcionamento dos meios de comunicação
de massa, chegando à conclusão de que eles funcionam
como um instrumento da indústria cultural, que produz
Saiba mais produtos culturais, visando exclusivamente o consumo.
Para Adorno e Horkheimer apud Crespo (1993), a
O livro Indústria cultural e socie- indústria cultural produz e vende mercadorias, utili‑
zando ideologicamente os meios de comunicação de
dade da Editora Paz e Terra é uma
massa para vender imagens do capitalismo, sendo que
leitura essencial para compreender muitas vezes essas imagens são fetichizadas, buscando
a importância da indústria cultural reproduzir o status quo vigente. Essa indústria cultural
na sociedade capitalista. e a cultura de massa produzem “bens culturais” — mú‑
sica, filmes, novelas, propagandas, centrados em dois
pontos: o lucro e manutenção da sociedade capitalista.
O modo de produção capitalista produz mercadorias (carros, aparelhos domésticos, roupas)
e a indústria cultural também estaria mais preocupada com o lucro de suas “mercadorias”, por
exemplo, um programa que tem bastante audiência vende muito, ao passo que uma novela
que não dá ibope logo é tirada do ar. Dentro desse contexto não está em jogo a qualidade dos
programas, e sim o lucro que eles viabilizam.
Já no que diz respeito a manutenção da sociedade capitalista são transmitidos pelos
programas, propagandas, imagens, buscando um estímulo à imutabilidade das condições de
sobrevivência das pessoas. Assim, os produtos culturais devem “produzir” e mostrar (distribuir)
aos indivíduos imagens falsas, irreais, imaginárias, ilusórias da realidade, fazendo com que os
indivíduos permaneçam passivos e obedientes.
Links
Um texto interessante para compreender o impacto da indústria cultural nas escolas e em
nosso trabalho como docente é: “A indústria cultural invade a escola brasileira” (MEDRANO;
VALENTIM, 2001):<www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-3262200
1000200007&lng=pt&nrm=iso>.
Para Adorno (2007), esses produtos culturais ajudam a manter no “devido lugar” aque‑
les que têm baixo poder aquisitivo. Isso acontece porque os conteúdos da formação dos
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 151
sujeitos passam a ser ajustados pelos mecanismos de mercado e reprodução dos valores da
sociedade capitalista.
Sarlo (2004 apud LIMA, 2008, p. 36) coloca que essa sociedade de consumo está pautada
pela estética do mercado onde a “[...] constância das marcas internacionais e das mercado‑
rias se soma à uniformidade de um espaço sem qualidades”. Construímos nossa identidade
pautada nos ícones do mercado, sonhamos com os objetos e imagens que estão expostos nas
vitrines. Há um jogo da sociedade capitalista para transformar em consumidores eternamente
insatisfeitos, em busca de ícones que possam trazer algum tipo de prazer imediato, instituindo
valores que mudam conforme a vontade do capital.
Adorno (2003 apud LIMA, 2008, p. 38) reforça o papel da televisão como instrumento da
indústria cultural, sendo que ela é vista como uma ideologia que tenta “[...] incutir nas pessoas
uma falsa consciência e um ocultamento da realidade”, impondo um conjunto de valores que
atuarão na formação dos telespectadores, no sentido de modificar a consciência das pessoas,
pois os processos de formação se dão mais de fora para dentro do que o inverso. Olhem a
questão da alienação e da ideologia presente novamente em nossa realidade!
Nesse contexto, podemos destacar alguns pontos negativos dos meios de comunicação
de massa e da indústria cultural, dentre eles: a padronização do gosto do consumidor bus‑
cando uma padronização dos indivíduos, tirando o senso crítico das pessoas, eliminando sua
capacidade de julgar e decidir sobre suas próprias vidas; o incentivo do consumo exagerado,
que tem como agente central à propaganda, que divulga um único padrão de vida para as
pessoas, fazendo com que os indivíduos fiquem submetidos ao consumo, transformando-os
em consumidores potenciais.
Aqui coloco algumas questões: Será que não temos um rebatimento direto dos meios de
comunicação de massa na formação de nossas crianças e adolescentes? Como esses instru‑
mentos afetam o nosso trabalho em sala? Será que só existe uma leitura negativa?
Um exemplo para ilustrar a ideia de indústria cultural e cultura de massa que estamos
discutindo é o poema Eu etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade (2002).
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
152 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Será que dentro dessa perspectiva não podemos falar em um mundo globalizado? Uma
cultura que flui de um lugar para o outro em questões de segundos?
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 153
Seção 2 Globalização
E por falar em globalização, esse fenômeno tem provocado muitas transformações em
nossa sociedade. A globalização teve seu início com a expansão econômica europeia, mas
foi a partir da segunda metade do século XX que tem se manifestado com mais intensidade,
extrapolando os limites da esfera econômica, resultando em mudanças também na cultura, na
política e em todos os outros aspectos da vida.
Podemos dizer que o termo globalização é uma nova expressão do capital, que desen‑
cadeia um complexo processo de produção e circulação de mercadorias, que tem início nos
anos de 1970 e concretiza-se com o final da Guerra Fria, em 1989. Segundo Ianni (1995),
esse processo representa, para além de um novo ciclo de expansão do capitalismo, um modo
de produção e modificação da civilização em escala mundial, que engloba nações, regimes
políticos, culturas e economias. De acordo com o autor,
Os fatores da produção ou as forças produtivas, tais como o capital,
a tecnologia, a força de trabalho e a divisão do trabalho social, entre
outras, passam a ser organizadas e dinamizadas em escala bem mais
acentuada que antes, pela sua reprodução em âmbito mundial. Também
o aparelho estatal [...] é levado a reorganizar-se ou “modernizar-se”
segundo as exigências do funcionamento mundial dos mercados, dos
fluxos dos fatores de produção, das alianças estratégicas entre corpo‑
rações (IANNI, 1995, p. 48-49, grifo do autor).
Uma questão levantada por Giddens (2001, p. 61, grifo do autor) é importante:
Inicialmente a leitura da globalização estava vinculada aos padrões
econômicos e políticos, mas devemos ter claro que esse termo significa
muito mais, ou seja, que estamos vivendo “num único mundo”, em
que os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdepen‑
dentes. A globalização é criada pela convergência de fatores políticos,
econômicos, políticos, sociais e culturais. Foi colocada como impor‑
tante, sobretudo pelo desenvolvimento de tecnologias da informação
e da comunicação que intensificaram a velocidade e o alcance da
interação entre as pessoas em todo o mundo.
154 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Enfim, tudo está globalizado. As particularidades e especificidades dos países — sua cul‑
tura, sua música, seus hábitos e costumes — estão presentes em todos os cantos do mundo.
Parecem estar desenraizadas, por diferentes tempos e espaços, que não são os seus de origem.
Isso quer dizer que a estrutura social responsável pela existência e difusão da cultura em um
país vai se enfraquecendo, e, como consequência vai sendo substituída por diferentes práticas,
diferentes formas de pensar, agir, de trabalhar que não são suas originalmente! Sendo assim,
a cultura de um país vai se “desenraizando” e passa a “flutuar” mundo afora, perdida, sem
sentido, sem povo, sem nação, totalmente descontextualizada.
Todo esse processo alterou os padrões tradicionais aceitos de indivíduos, cidadania, de
cultura etc. Ianni (1999) expressa as preocupações em torno das questões ligadas à cidadania
e à liberdade do indivíduo, ou seja, a formação de um “cidadão do mundo” que é fruto dessa
nova configuração de mundo globalizado.
As referências habituais na constituição do indivíduo, compreendendo
língua, dialeto, religião, seita, história, tradições, heróis, santos, mo‑
numentos, ruínas, hinos, bandeiras e outros elementos culturais, são
completadas, impregnadas ou redescobertas por padrões, valores, ideais,
signos e símbolos em circulação mundial. O inglês como língua franca,
a música pop como elemento da cultura internacional-popular, o turismo
de todos os lados, as mercadorias de muitos países, as pessoas migrando
por diferentes nações e mercados, as ideias flutuando por todos os ares,
são muitos os elementos que entram na formação da individualidade e
cidadania, subalternidade e autoconsciência, de habitantes de campos
e cidades, países e continentes (IANNI, 1999, p. 113).
Saiba mais
Uma leitura interessante sobre essa discussão é o livro de Otavio Ianni, Teorias da globalização,
da Civilização Brasileira, 1995.
Mais devemos ter claro aqui a perspectiva da contradição, como em todos os itens discuti‑
dos em nosso texto, pois a globalização deve ser vista como uma questão aberta e contraditória.
Uma questão interessante a ser discutida é que esse processo estabelece-se de forma
desigual e está aumentando a desigualdade social entre os países, aprofundando o abismo
entre os países mais ricos e mais pobres. A riqueza, a renda, os recursos e o consumo estão
concentrados nas sociedades desenvolvidas, enquanto muitos países em desenvolvimento
lutam contra a pobreza, a desnutrição, a doença... Sendo que muitos desses países, que estão
inclusos no processo de globalização, estão excluídos.
Enfim, a globalização produz riscos, desafios, desigualdades, positividades que atravessam
as fronteiras nacionais e escapam ao alcance das estruturas sociais vigentes. Por isso torna-se
importante discutirmos formas de governo que busquem pensar de forma global, visto que
segundo Giddens (2001) existem governos individuais despreparados para controlar essas
questões, sendo necessário enfrentar os problemas globais e uma forma global.
Por outro lado, devemos pensar que todo esse processo abre espaço para novas possibilida‑
des e perspectivas. É importante considerarmos a globalização como um processo que promove
o contato intenso entre as diferentes culturas e as trocas culturais abrem sempre possibilidades
de crescimento, de amadurecimento, de ganho para os lados envolvidos.
O processo de globalização é também um processo cultural, civiliza‑
tório. Ao mesmo tempo em que há muitas perdas, há muitos ganhos.
É como se os indivíduos, as coletividades, etnias e minorias, grupos
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 155
Links
Um artigo interessante que aborda as duas faces da indústria cultural é <www.webartigos.com/
articles/10725/1/cultura-de-massa/pagina1.html> e um outro texto que aborda a questão do
impacto da indústria cultural na educação é Indústria cultural e educação: o novo canto da
sereia de Antônio Álvaro Soares Zuin, da Editora Autores Associados. Para quem tiver interesse,
esse site traz a resenha do livro: <www2.pucpr.br/reol/index.php/DIALOGO?dd1=754&dd99=pdf>.
Aprofundando o conhecimento
O texto a seguir é parte de uma publicação de Magnani (2009), onde se discute
o trabalho e os desafios da Antropologia Urbana na contemporaneidade. Um ótimo
material para refletir sobre diversas questões tratadas na unidade.
Atualidade
De lá a esta parte, muita coisa mudou e atualmente a oposição centro versus periferia já não
é operativa; ademais, nem sempre se aplicou a todas as metrópoles brasileiras, como é notório no
caso do Rio de Janeiro, com outro padrão de desenvolvimento territorial. O processo acelerado de
urbanização produziu outros cenários, o que implicou ajuste nas formas de análise. No entanto, é
sintomático e significativo que este congresso em Lisboa, a Primeira Conferência Internacional de
Jovens Pesquisadores Urbanos (FICYurb), tenha incluído uma reflexão com base em experiência de
um país do terceiro mundo, muitas vezes visto e identificado principalmente na chave de processos
desordenados de urbanização, altos níveis de desemprego, desigualdades sociais, violência.
Com base nesse quadro, até seria previsível imaginar qual a contribuição esperada: apresenta-
ção de situações-limite, experimentos como que de laboratório, estudos de caso extremados que
serviriam, então, de contraponto, de contraste para pôr em evidência conjunturas de certa forma
análogas em outros países e contextos. Enfim, seria a repetição de um estereótipo, já veiculado pela
mídia, mas agora revestido com números, casos exemplares, relatos e outros dados de campo.
Não é isso, contudo, que pretendo apresentar neste texto, para interlocutores certamente bem
informados e vacinados contra clichês. Meu propósito é desenvolver uma reflexão que leve à busca
de pontos em comum, para que se possa melhor compartilhar a multiplicidade de experiências em
diferentes contextos. Assim, o que principalmente vincula e reúne pesquisadores interessados em
questões urbanas contemporâneas não é um tema em particular, pois eles são variados; não são os
recortes regionais ou locais, pois cada qual tem lá suas idiossincrasias; não é uma bibliografia espe-
cífica, pois se pode beber de várias fontes. O que pode constituir um ponto de interesse comum é
156 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
o olhar, o olhar etnográfico. Buscar sua especificidade, fazer dele um diferencial, algo que se possa
eleger como eixo para valorizar as inevitáveis diferenças.
Em outro momento (Magnani, 2002) afirmei que não é preciso muitos malabarismos pós-
-modernos para aplicar com proveito a etnografia a questões próprias do mundo contemporâneo
e da cidade, em particular: desde as primeiras incursões em campo, a antropologia vem desenvol-
vendo e colocando em prática uma série de estratégias, conceitos e modelos que, não obstante as
inúmeras revisões, críticas e releituras (quem sabe até mesmo graças a esse continuado acompa-
nhamento exigido pela especificidade de cada pesquisa), constituem um repertório capaz de inspi-
rar e fundamentar abordagens sobre novos objetos e questões atuais.
A etnografia
Tendo, pois, feito esta escolha, impõe-se qualificá-la. Não se trata de etnografia em geral, mas
de etnografia no contexto urbano, contemporâneo e de metrópoles. Certamente já não se pode
fazer como Evans-Pritchard, que escreveu, a propósito de sua estada entre os Nuer: “da porta de
minha barraca podia ver o que acontecia no acampamento ou aldeia e todo o tempo era gasto na
companhia dos Nuer” (1978 [1940]: 20). Mas não é o caso, aqui, de repassar a história da pesquisa
etnográfica; talvez valha a pena tomar como ponto de partida algumas situações típicas vividas em
campo. Vou tentar essa empreitada a partir de três experiências, bem diversas, de meu próprio re-
pertório e de alguns pesquisadores que comigo trabalharam.
Antes, porém, convém assinalar alguns supostos básicos a respeito da etnografia. Inicialmente,
vale a pena repassar o que ela não é, e, nesse plano, não são poucos os mal-entendidos por parte
do senso comum: às vezes, é confundida com o detalhismo, com a busca obsessiva dos pormeno-
res na descrição das situações de campo; em outras, é identificada com a atitude de vestir a camisa
ou ser o porta-voz da população estudada, principalmente quando esta é caracterizada como grupo
excluído ou uma minoria; em algumas ocasiões, é identificada com a reprodução do discurso nativo,
através da transcrição de trechos de entrevistas nos quais, para melhor efeito de verossimilhança,
são cuidadosamente preservados alguns erros de concordância, sintaxe ou regência.
Finalmente, para citar mais alguns desvios, o método etnográfico é também visto como um
esforço em transmitir o ponto de vista do nativo em sua pretensa autenticidade, não contaminada
com visões externas, ou ainda é identificado com as técnicas do chamado método qualitativo. Para
estabelecer um contraponto a essas visões e construir um argumento em tom assertivo, cabe uma
citação de Lévi-Strauss:
É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza
da disciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo
necessita da experiência do campo. Para ele, ela não é nem um
objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma
aprendizagem técnica. Representa um momento crucial de sua
educação, antes do qual ele poderá possuir conhecimentos descon-
tínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente, estes
conhecimentos se “prenderão” num conjunto orgânico e adquirirão
um sentido que lhes faltava anteriormente (1991: 415-416).
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 157
entre a teoria do pesquisador e as ideias nativas; Márcio Goldman, no artigo “Os tambores dos
mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia” (2003), refere-
-se à “possibilidade de buscar, através de uma espécie de ‘desvio etnográfico’, um ponto de vista
descentrado”; há que lembrar ainda os anthropological blues de Roberto Da Matta (1974) e a ex-
pressão experience-near versus experience-distant usada por Geertz (1983).
À sua maneira — com ênfases diferentes — cada uma dessas paráfrases, entre outras, deixam
entrever alguns núcleos de significado recorrentes: o primeiro deles é uma atitude de estranhamento
e/ou exterioridade por parte do pesquisador em relação ao objeto, a qual provém da presença de
sua cultura de origem e dos esquemas conceituais de que está armado e que não são descartados
pelo fato de estar em contato com outra cultura e outras explicações, as chamadas “teorias nativas”.
Na verdade, essa co-presença, a atenção em ambas é que acaba provocando a possibilidade de uma
solução não prevista, um olhar descentrado, uma saída inesperada.
Por outro lado, essa experiência tem efeitos no pesquisador: ela o “afeta” (Favret-Saada, 1990);
o “transforma” (Merleay-Ponty, 1984), produz-se “nele” e, no limite, o “converte” (Peirano, 1995).
O pesquisador não apenas se depara com o significado do arranjo do nativo, mas ao perceber esse
significado e conseguir descrevê-lo, agora nos seus termos (dele, analista), é capaz de apreender
sua lógica e incorporá-la de acordo com os padrões de seu próprio aparato intelectual e até mesmo
de seu sistema de valores.
Com base nas observações desses autores e de muitos outros antropólogos que sempre refle-
tiram sobre seu trabalho de campo, é possível concluir, de uma maneira mais sintética, que a etno-
grafia é uma forma especial de operar, em que o pesquisador entra em contato com o universo dos
pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica
de sua visão de mundo, mas para segui-los até onde seja possível e, numa relação de troca, com-
parar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento
ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente.
Esse é um insight, uma forma de aproximação própria da abordagem etnográfica, que produz
um conhecimento diferente do obtido por intermédio da aplicação de outras técnicas. Trata-se de
um empreendimento que supõe outro tipo de investimento, um trabalho paciente e continuado ao
cabo do qual e em algum momento, como mostrou Lévi-Strauss, os fragmentos se ordenam, per-
fazendo um significado até mesmo inesperado.
Nesse sentido vale lembrar também a advertência de Clifford Geertz (1978:15) de que, dife-
rentemente do que ensinam os manuais, praticar a etnografia não se resume a selecionar informan-
tes, transcrever textos, levantar genealogias.
Mais do que um conjunto de técnicas, o que a define é um tipo de esforço intelectual em busca
de uma “descrição densa”. E já que estamos no campo das metáforas, aproximações e paráfrases,
mesmo correndo o risco de ser acusado de enveredar por um lado meio místico, não resisto a fazer
mais uma comparação, desta vez buscando ajuda na sabedoria oriental com um exemplo do amplo
repertório das anedotas zen-budistas.
A literatura sobre a experiência do satori — estado de iluminação da mente que desperta e
que adquire uma nova forma de percepção — traz muitas histórias que mostram as particularidades
dessa vivência. Uma delas relata a experiência de Kyogen, um praticante que, após muitos anos de
meditação e estudo, chega à iluminação, ao satori, quando, ao varrer, pela enésima vez, o pátio do
mosteiro, percebe o barulho produzido por um pedregulho que, ao ser projetado pela vassoura,
bateu contra a haste de um bambu. Aquele som foi o fator casual e externo que fez sua mente
despertar para a resolução do koan (espécie de enigma, proposição paradoxal) proposto por seu
mestre e, em consequência, para um novo entendimento da natureza das coisas, até então perce-
bidas de acordo com o padrão habitual. Não foi, porém, um acontecimento mágico: nem o bambu
nem a pedra tinham qualquer qualidade intrínseca e misteriosa para provocar o súbito insight; este
foi produzido em virtude de uma predisposição, de um estado anterior de atenção viva e contínua
(voltada, dia e noite, para o deciframento do koan), de forma que o incidente trivial e inesperado
funcionou como gatilho que detonou a ruptura, a quebra e o consequente reordenamento da
mente, capaz agora de ver as coisas sob uma nova perspectiva.
158 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Os casos:
Com o propósito de tornar mais concreta e palpável essa perspectiva, vou trazer alguns exem-
plos; não serão os achados dos grandes mestres, nos textos clássicos, já sobejamente conhecidos;
ficarei num âmbito mais doméstico de algumas pesquisas feitas no Núcleo de Antropologia Urbana
da USP.
Quando comecei uma investigação sobre modalidades de lazer, cultura popular e entreteni-
mento na periferia de São Paulo, a pergunta com a qual fui a campo estava fundamentada nas
relações entre ideologia e cultura. No contexto dos estudos sobre os movimentos sociais urbanos
e a emergência de novos atores sociais, questionava-se se a cultura popular era fator de libertação
ou se era mero reflexo da ideologia dominante. Assim, com base nessa discussão, saí a campo
para realizar a pesquisa etnográfica e, sem entrar em maiores detalhes, posso dizer que fui com
uma determinada pergunta ou hipótese e a resposta que obtive dos moradores, surpreendente,
apontou para outra direção.
Em poucas palavras, a resposta foi a seguinte: não é o conteúdo da cultura popular, do en-
tretenimento ou do lazer o que importa, mas os lugares onde são desfrutados, as relações que
instauram, os contatos que propiciam. Mais do que a suposta capacidade de liberação da cultura
popular ou o poder da ideologia dominante sobre tradições populares, surgia uma questão nova:
a da própria existência de uma rica rede de lazer e entretenimento — e suas modalidades de
fruição — na periferia urbana da cidade de São Paulo, paisagem habitualmente descrita como
uma realidade cinzenta, indiferenciada (hoje se diria o território da exclusão, que é uma outra
forma de reduzir as diferenças a um denominador comum, a um fator de homogeneização).
Na verdade, o olhar paciente do etnógrafo terminou apreendendo que há, sim, classificações,
regras, diferenciações. Assim, foi possível descobrir que, naquele universo aparentemente monótono,
havia uma extensa rede de lazer e diferenciações na forma de, por exemplo, praticá-lo: havia lazer
de homens solteiros e casados, de mulheres e moças, de crianças e adultos; e também modalidades
desfrutadas em casa e fora de casa, e neste último caso ainda era possível distinguir “fora de casa,
mas no pedaço”.
Foi então que surgiu essa noção de pedaço (vertida como turf numa tradução para o inglês),
uma ideia nativa mas que terminou se transformando numa categoria mais geral, na medida em
que permitiu discutir e se integrar em outros esquemas conceituais. Em diálogo com a conhecida
dicotomia “rua versus casa” de Roberto Da Matta (1979), revelou um outro domínio de relações:
enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua o dos estranhos, o pedaço evidencia outro plano,
o dos “chegados” que, entre a casa e a rua, instaura um espaço de sociabilidade de outra ordem.
Assim se desvelou um campo de interação em que as pessoas se encontram, criam novos laços,
tratam das diferenças, alimentam, em suma, redes de sociabilidade e negociam conflitos numa
paisagem aparentemente desprovida de sentido ou lida apenas na chave da pobreza ou exclusão.
Foi realmente um achado, não previsto pelas hipóteses do projeto original da pesquisa, pois
surgiu no contato com os pesquisados, foi sugerido por eles, e só se transformou numa categoria
de alcance mais geral quando contrastado com outro esquema conceitual e, aplicado em novos
contextos, diferentes daquele em que fora encontrado, deu origem a outras categorias.
Outro exemplo vem da experiência de campo de um ex-aluno, hoje professor de antropologia
na Universidade Federal de São Carlos, no interior do estado de São Paulo. Como ocorria com vários
estudantes de graduação, na disciplina “A pesquisa de campo em antropologia”, Luiz Henrique
escolheu um botequim, para seu exercício etnográfico — sempre está presente a possibilidade de
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 159
aproveitar ao máximo todas as possibilidades abertas pela observação participante…O tema era
sobre o tempo livre e era preciso descobrir as concepções que os usuários tinham sobre lazer. A
resposta obtida foi: “não, isto aqui não é lazer”. Mas, como? O pesquisador estava todo preparado
com as teorias do lazer e do tempo livre e o informante diz que aqueles momentos passados no
botequim, entre cervejas e snooker, no final da tarde, não constituíam lazer. Que eram, então?
“Higiene mental”, foi a inesperada resposta.
Tal perspectiva não cabia, não se encaixava nas hipóteses; no entanto, ofereceu uma pista:
aqueles momentos passados no botequim, em companhia de colegas após a jornada de trabalho,
antes de voltar para casa, eram vividos como uma passagem entre o mundo do trabalho e o mundo
doméstico. Então fazia sentido falar em higiene mental: aquelas pessoas eram trabalhadores que
ainda traziam na roupa, no corpo, no cheiro, nos temas das conversas, as marcas dessa condição;
a passagem pelo botequim era encarada como uma espécie de “descontaminação” antes da volta
ao convívio com a família.
Tudo bem, mas afinal o que eles consideravam lazer? “Lazer é quando eu me arrumo e vou
com minha mulher a um barzinho ou, no fim-de-semana, quando vou passear na área verde do
campus da USP”. De certa maneira, o entrevistado, ao mostrar de que forma usava seu tempo livre,
deu uma pista para pensar as diferenças no modo de entendimento do lazer. Não se tratava de
optar por uma visão supostamente mais autêntica ou verdadeira, mas de estar atento para nuanças,
modulações, princípios de classificação diferentes, a partir dos arranjos dos próprios atores. Essas
pistas podem ser seguidas, aprofundadas e permitem enriquecer, no caso, uma compreensão mais
ampla do que seja o lazer.
[...]
E os exemplos poderiam multiplicar-se: pichadores e grafiteiros, hip-hop, as bandas gospel, as
baladas black (para ficar apenas no circuito dos jovens) e, muito recentemente, uma etnografia
levada a cabo por alunos meus do primeiro ano de ciências sociais sobre um movimento que cul-
minou com a ocupação do prédio central da reitoria da USP, por parte dos estudantes,em maio de
2007. A propósito, uma delas me disse, após as primeiras idas a campo — “Professor, agora não
consigo mais ir à ocupação sem ficar reparando o tempo todo nos atores, no cenário e nas regras!”
— “Pois é”, respondi-lhe, “você perdeu a inocência…” Neste caso, inocência quer dizer o filtro do
senso comum ou de uma perspectiva parcial, seja a do militante favorável à ocupação, seja daquele
que é visceralmente contra: aquela aluna, ao contrário, estava mais atenta ao que todos os atores
envolvidos diziam e faziam, às redes que teciam e desfaziam, aos trajetos que percorriam.
Eram mais de trinta, experimentando pela primeira vez esse, por vezes, estranho lugar do et-
nógrafo e vendo as coisas através de um novo olhar: inicialmente de “perto e de dentro” (Magnani,
2002), mas que vai precisar adotar também uma perspectiva distanciada, na hora de juntar todos
os dados. O trabalho está sendo realizado no âmbito do Núcleo de Antropologia Urbana, cujos
membros estão acostumados a uma prática etnográfica que não descarta o trabalho em comum,
as trocas de experiências, o levar a sério todos os atores.
Este e outros experimentos etnográficos evidenciam que esse nosso tema e recorte, a cidade,
é tão complexo, sua trama é tecida por tantos fios que a todo momento é preciso resistir não ape-
nas ao que já denominei de “a tentação da aldeia” (Magnani, 2000): isto é, considerar cada objeto
de estudo como um mundo fechado e autossignificante, como resistir também à recusa de se abrir
a outros pontos de vista, que podem revelar ângulos inesperados.
160 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 161
Links
A Semana de Arte Moderna de 1922 mudou a leitura da arte no Brasil. Um site interessante
para entender mais sobre o assunto é <www.puccamp.br/centros/clc/jornalismo/proje-
tosweb/2003/se-manade22/oquefoi.htm>.
162 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar ainda mais o seu conhecimento sobre o pensamento de Gilberto
Freyre, leia a seguir a introdução do texto de Barros (2009, p. 3-14).
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 163
Ou seja, qual é esse mito4 presente em Casa-Grande & Senzala, escondido por trás da narrativa,
saga ou epopeia, conforme é considerado o livro? Quais suas unidades significativas? Em que me-
dida é possível fazer-se esse levantamento? São outros pontos para reflexão, a que volto nas con-
clusões deste trabalho.
164 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Para Durand (1983, p. 87), a mitanálise nada mais é que uma mitocrítica, mas dessa vez em
um campo mais largo e mais aleatório, ou seja, o campo do aparelho ou instituições, ou das práti-
cas sociais. O campo da Sociologia, enfim. Ou seja, a mitanálise:
consiste em examinar sobre documentos e monumentos exprimindo
uma sociedade e abrangendo um largo período (...) A mitanálise
consiste, portanto em examinar ou determinar num segmento de
duração social os grandes esquemas míticos, os mitologemas (...)
a partir dos índices mitêmicos que podem passar por mitemas —
quer seja um estilo de pintura, quer seja uma atitude social, quer
seja uma atitude de estar à mesa. (Durand, 1983, p. 7) (grifos meus).
Para o autor, finalmente, uma mitanálise permite mostrar as camadas míticas que se imbricam
e a anatomia da sociedade, podendo-se dissecar um momento social num grupo e iluminar seus
componentes (Durand, 1983, p. 104). Essas camadas míticas suscitam aquilo que Durand (1983, p.
32) denomina de mitologema, que é: “o resumo, de certo modo, de uma situação mitológica, um
resumo abstrato (...) quanto mais amplo é o campo, mais o mitema se empobrece em mitologema
(...) mais os mitemas são pobres.”
No caso dos românticos, ele nos lembra que: “É o mitologema da culpa, ou da queda, da
descida a infernos diversos e da subida posterior para uma redenção” (Durand, 1983, p. 72)
Enunciados esses primeiros pressupostos, passo a tecer algumas considerações sobre o autor
e a obra estudados, bem como sobre o trabalho de mestrado já referido inicialmente.
Conforme procurei ressaltar em minha dissertação de mestrado (Barros, 1991, p. 10-87), Gilberto
Freyre vem sendo interpretado das mais diversas formas, inclusive contraditoriamente. Portanto, ele
é um daqueles autores que sempre provocarão discussões e polêmicas, como atestam as inúmeras
publicações sobre sua obra, desde que surgiu Casa-Grande & Senzala, em 1933. Naquela ocasião,
um dos objetivos do meu estudo foi mostrar a dificuldade que ocorre ao analista quando pesquisa
a obra gilbertiana, em virtude da multiplicidade de interpretações e significados que ela possa ter.
O presente trabalho tanto pretende retomar as principais lições do anterior, aprofundando-as
na medida do possível, quanto objetiva lançar uma nova ótica sobre Casa-Grande & Senzala. Ou
seja, busca revelar a configuração que o imaginário, em especial o da brasilidade, adquire nesse
livro pioneiro do autor.
Em meu trabalho de mestrado, dediquei um item específico ao antagonismo em Gilberto Freyre
(Barros, 1991, p. 153-157), concluindo que esse antagonismo tanto faz parte de seu pensamento
(ideias) quanto de seu método analítico ambíguo, ou seja, de seu estilo. Daí uma espécie de fixação
de Freyre por aquilo a que ele denomina “equilíbrio de antagonismo”. Esse antagonismo gilbertiano
vem do início de sua formação. Seu próprio método híbrido — meta-método ou pluri-método —
advém desde pormenor. Concluí, ali, que o antagonismo é tema e estilo no autor.
Refiro-me ao fato de sua formação múltipla, pois, nos Estados Unidos, de 1918 a 1923, Freyre
realizou estudos de Economia, Direito, Geologia, Antropologia, Biologia, dentre outros, como se vê
em seu diário (Freyre, 1975) ou em algumas biografias (Menezes, 1944; Chacon, 1993).
Algumas publicações, nos últimos anos, vêm destacando a formação intelectual do autor (Vi-
lanova, 1994). O próprio Freyre (1968b, p. 118) ressalta seu plurimétodo, dizendo-nos:
Dentre o que possa ser destacado como novo ou inovador no livro
‘Casa-Grande & Senzala’ talvez nenhum traço se apresente mais
significativo do que (...) o seu múltiplo e por vezes simultâneo pers-
pectivismo.
Araújo (1994, p. 24) realiza um trabalho, no qual leva em consideração a questão desse “equi-
líbrio de antagonismo” e observa o: “(...) talento de Gilberto Freyre em aproximar visões diferentes,
antagônicas até, sem dissolvê-las ou mesmo reduzir consideravelmente a sua especificidade.”
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 165
No entanto, naquele trabalho, o autor lida com “os mais importantes argumentos substantivos
de Casa-Grande & Senzala” (Araújo, 1994, p. 24), ou seja, com “teses de conteúdo histórico-so-
ciológico” (Araújo, 1994, p. 24), concluindo que:
a opção de Gilberto Freyre vai lhe permitir transferir para o interior
de seu texto, para sua própria forma de escrever parte da ambigui-
dade, do excesso e da instabilidade que, segundo ele próprio, ca-
racterizavam a sociabilidade da Casa-Grande. (Araújo, 1994, p. 208)
O que nos revela um trabalho calcado na face mais patente da obra de Freyre, mas que se
refletirá no seu lado mais latente, ou do imaginário, conforme se verifica neste livro.
Tendo em vista a questão do equilíbrio no autor, como venho destacando desde a outra pes-
quisa, a contradição, ao invés de confundir, parece ser o ponto de partida para a compreensão de
sua obra; nela podemos localizá-lo, ou seja, as contradições são seu esconderijo (Barros, 1991,
p. 302), no sentido de que é nesse esconderijo que podemos encontrá-lo e, assim, revelá-lo. Desta
forma, o que parece bastante característico no livro é o fato de “ser e não ser”, o que o coloca
imediatamente numa lógica da inclusão, uma das características do paradigma holonômico ou
emergente, já citado. Em tal lógica, por exemplo, pares antagônicos não se excluem ou se eliminam
e podem mesmo complementar-se. Ou seja, Casa-Grande & Senzala é e não é um romance; é e não
é literatura, como se o antagonismo a que se refere Gilberto Freyre invadisse seu próprio fazer
artístico-científico.
A maioria de seus intérpretes vem analisando apenas a camada mais objetiva de sua obra; o
trabalho atual pretende mostrar uma outra mais profunda de seu livro primeiro. O que parece nos
“olhar”, do texto em estudo, é seu pedido de desvendamento, como se nos impusesse um desafio
de esfinge — “Decifra-me ou te devoro” — sendo o autor uma espécie de Édipo: investigador que
procura as origens do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que busca a si mesmo, ao seu próprio
passado.
Em texto anterior (Barros,1992c), chamei a atenção para o afã de Freyre em autoanalisar-se,
quando observei que ele teria extrapolado o conceito de Literatura enquanto arte e enquanto objeto
de estudo, galgando um degrau além na crítica ao cientificismo. O próprio autor acabou fazendo-
-se investigador e investigado, caça e caçador, um Édipo da investigação científica.
Aquele “olhar” do texto para o leitor está relacionado a um conceito específico de literatura e
tem a ver com a questão de que “a literatura não é inocente” (Durand, 1982, p. 66), ou mais pre-
cisamente:
essa literatura contém sempre, assimilado, no centro de si, um ser
(...) pregnante ou seja, um fundamento que interessa (...) Ora bem,
um texto olha-nos, quer dizer, é mais que um interesse, é um
cruzamento de olhares (...) um texto olha-nos e é o que num texto
nos olha que é o seu núcleo. E esse núcleo (...) pertence ao domínio
do mítico. (grifo meu)
A questão desse “cruzamento de olhares” entre Gilberto Freyre e sua própria obra não deixa
de revelar o caráter narcisista do autor, aspecto assumido por ele próprio e por seus intérpretes. E
isto, também, não pertence ao domínio do mítico? Seria sua obra uma espécie de espelho, no qual
o autor se veria o tempo todo?
O próprio fato de falar por imagens simbólicas torna seu texto ambíguo: literário e científico.
Em várias passagens de minha dissertação de mestrado tratei dessa questão. Naquele trabalho, quis
mostrar que se torna necessária uma nova concepção de leitura para a obra gilbertiana, que con-
sidere, sobretudo, seu estilo artístico-científico (Barros, 1991, p. 1).
Refleti, também, sobre esse aspecto em outro momento (Barros, 1992c, p. 97), quando concluí
que o autor parece querer levar às últimas consequências a comunicação entre arte e ciência, poe-
sia e mito, drama e relação social: o mito como ponto de chegada, nessa busca incessante, quase
166 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
É importante lembrar que, para Durand (1982, p. 72), é o conjunto de mitemas que pode
revelar o mitologema, ou um mito geral no livro. Esse mitologema está associado a imagens obses-
sivas, que levam a um esquema bastante geral dentro da obra. Esse mitemas são também
núcleos, núcleos duros, (...) núcleos redundantes que voltem, mas
que regem em diferentes pontos, mas regressem, constantemente,
e que são quer conjuntos de situações, quer emblemas, quer cená-
rios, lugares que se repetem. (Durand, 1982, p. 76).
Assim, constatei que a casa é um desses mitemas, mas uma casa imaginária, onírica ou cósmica,
que simboliza, de algum modo todo o imaginário gilbertiano.
A “análise compreensiva”, já referida, suscita uma “leitura compreensiva” (Durand, 1982),
através do levantamento dos “Regimes de Imagens”, pois o estilo de Freyre “está repleto de metá-
foras, de imagens fortes, impressionantes” (Barros, 1996), que dão conta de uma outra dimensão
de leitura da obra. Levantando-se o imaginário, em última instância, apreenderemos a camada mais
profunda do pensamento do autor naquele momento, ou seja, a parte mais simbólica, que, portanto,
permanece para além da “transitoriedade da ciência” (Barros, 1991). Tal método ou leitura com-
preensiva está ligado àquilo que Durand (1982, p. 77) fala, de que “(...) não há texto objetivo (...)
um texto é sempre um texto de leitura e uma leitura é sempre uma criação subjetiva de sentido”.
Portanto, um “cruzamento de olhares”.
Leitura compreensiva, regimes de imagens, configuração do imaginário e, finalmente, mitocrítica
e mitanálise, como consequências, passam a ser a forma como trato, metodologicamente, Casa-Grande
& Senzala, tendo em vista que a linguagem dos mitos também permanece para sempre.
Notas
1. Adiante especifico melhor as razões desse proce- 3. Gilberto Freyre também possui um estilo próximo
dimento. ao jornalístico, na medida em que traça um perfil
2. “Morin entende como recursivo todo o processo no de um período da história do Brasil, como se esti-
qual uma organização ativa produz elementos e efei- vesse narrando os acontecimentos, ou seja, como
tos necessários a sua própria geração ou existência, se fosse um repórter.
processo que realiza um circuito em que o produto 4. O capítulo I mostra como Durand (1989, p. 44)
ou efeito último torna-se elemento primeiro ou causa chega a um conceito de mito, ou seja, “um sis-
primeira. (...). A recursividade compreende simulta- tema dinâmico de símbolos, de arquétipos e de
neamente a complementaridade, a concorrência e o esquemas”.
antagonismo.” (Porto, 1996, p. 65).
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 167
Feito o recorte necessário sobre a questão de raça e etnia, discutida em nosso segundo
capítulo, torna-se importante ressaltar que alguns autores contradizem essa visão “romântica”
do processo de surgimento do povo brasileiro e de sua cultura proposto por Freyre. Segundo
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Caio Prado Júnior (1907-1990), essa leitura imprime
uma visão sobre os diferentes grupos sociais como algo natural, sem estabelecer os conflitos
de classe existentes entre o dominador e os dominados.
168 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Segundo Caio Prado, o processo de colonização contribuiu para o atraso do país como
nação, pois o processo de exploração fazia com que todas as riquezas fossem retiradas daqui
e levadas para a metrópole, deixando o país sem o retorno desse processo.
Segundo Caio Prado, o processo de colonização desenvolvia uma leitura negativa sobre
o país:
[...] Um território primitivo habitado por rala população indígena inca‑
paz de fornecer qualquer coisa de realmente aproveitável. Para os fins
mercantis que se tinha em vista, a ocupação não se podia fazer como
nas simples feitorias comerciais, com um reduzido pessoal incumbido
apenas do negócio, sua administração e defesa armadas; era preciso
ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter
as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que
interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí.
(PRADO JÚNIOR, 1969, p. 24).
Aprofundando o conhecimento
Esses aspectos incidem diretamente no fator cultural, visto que a cultura negra
foi estereotipada como exótica, sendo sempre vista sob um olhar etnocêntrico. Dessa
forma, vamos aprofundar nosso conhecimento lendo a seguir o texto de Pereira (2009).
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 169
O Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. A Nigéria,
com uma população estimada de oitenta e cinco milhões, é o único país do mundo com uma po-
pulação negra maior que a brasileira.
Durante anos, sobretudo a partir da década de 1930, referenciando-se principalmente na
miscegenação e na forma envergonhada de expressão do discurso racista, desenvolveu-se no país
o mito da democracia racial. Durante a maior parte deste século, ações de combate ao racismo, a
organização cultural e política dos negros brasileiros, e a implantação de políticas para a superação
das desigualdades raciais foram inibidas.
A ausência de um sistema legal explícito que definisse as desigualdades e, ainda, as africani-
dades visíveis da cultura brasileira, serviram como argumento para que o Estado e a sociedade
desconsiderassem, no período pós abolição, a necessidade de se criar mecanismos para a inclusão
do povo negro no processo de desenvolvimento nacional.
A partir de 1995, com o engajamento pessoal do presidente da república, Fernando Henrique
Cardoso, sociólogo, estudioso das relações raciais, o debate nacional que era conduzido apenas
pelo movimento social negro, por alguns intelectuais e timidamente por poucos partidos políticos,
assumiu a relevância necessária para motivar transformações políticas e econômicas, e sobretudo
culturais, que permitam valorizar a diversidade e a riqueza do multiculturalismo no país. O investi-
mento no combate às desigualdades impostas aos negros deixou de ser retórica para se materializar
em ações de gestão, a partir da compreensão não apenas das necessidades dos negros, mas das
necessidades da nação que, para vivenciar a experiência da construção da democracia participativa,
precisa do engajamento do conjunto da nação.
A cidadania plena do povo negro passou a ser uma meta de governo com o reconhecimento
dos mecanismos de desenvolvimento desigual a que foi submetido esse conjunto da população
nacional.
170 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
tes da miscegenação, na sua maioria filhos de relações destinadas a manter o sistema escravista. As
práticas culturais e religiosas, a visão de mundo desse conjunto humano, mesmo se integrados ao
modo de ser nacional, após mais de 350 anos de convivência cultural, assim como sua força de
trabalho, responsável pelo desenvolvimento da economia local, foram continuamente desqualifica-
dos. A aparência física dos negros, exceto quando se tratava de servir sexualmente os senhores, foi
associada à dos animais e esteticamente desagradável ou inferior. Seu corpo era para o trabalho e
sua força utilizada como a dos animais.
Se o movimento abolicionista foi longo, heterogêneo e, por fim vitorioso, a República surgiu
como reação ao fim absoluto da escravidão, apesar do engajamento de lideranças negras no mo-
vimento republicano.
A urbanização e a industrialização do século XX introduziram tensões graves no sistema
de hierarquia racial, mas não potencializaram as possibilidades dos afro-brasileiros para
competir em condições iguais por habitação, saúde, educação, empregos e salário.
Principalmente a partir da promoção, pelo Estado, da imigração italiana subvencionada, e da
substituição da mão de obra negra pela imigrante, da criação de status superior de cidadania para
os imigrantes recém chegados em relação aos negros — também excluídos do sistema de educação
formal — , das promessas do Estado de embranquecer a nação, da participação periférica dos afro-
-brasileiros no processo de industrialização, da fraca representatividade política, da desqualificação
de suas referências culturais, estruturou-se o que pode ser chamado o sistema de exclusão racial
informal. O desejo, a quase que necessidade brasileira de ser uma democracia racial confundiu-se
com o mito desmobilizador longamente cultivado.
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 171
O conceito de nacionalidade passou a ser inclusivo . As mudanças têm exigido novas e rápidas
ações do governo para que a realidade de desigualdade econômica seja transformada pela mate-
rialização de oportunidades iguais, o que demanda tempo, após tantos anos de tratamento super-
ficial e equivocado dos efeitos e das formas de manifestação do racismo em nosso país.
As mudanças objetivas e subjetivas, culturais e econômicas para assegurar ao negro plenas
oportunidades, cidadania plena têm ampliado o conceito de direitos humanos.
A Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, responsável pelas
políticas culturais para a inclusão da população negra no processo de desenvolvimento, realizou
uma análise profunda sobre as relações sociais no país, suas dinâmicas, a indústria cultural, a pre-
servação dos bens culturais e a tutela das diferenças entre as culturas nacionais. Foi possível diag-
nosticar a necessidade da reformulação dos instrumentos de promoção nacional da cultura e de
acesso dos promotores culturais afro-brasileiros aos recursos para a cultura e aos meios de comu-
nicação social, e de potencialização e valorização no mercado das atuais atividades culturais dos
negros, quer da área urbana, quer da área rural.
As ações na área da cultura passaram a incluir mudanças na cultura do Estado, cultura do
governo, cultura econômica e cultura de desenvolvimento.
Como marco simbólico dessa nova postura histórica está sendo construído um espaço físico
de grande dimensão para a aglutinação e difusão da cultura negra, antiga reivindicação dos movi-
mentos negros, da população acadêmica e dos educadores. Trata-se do Centro Nacional de Infor-
mação e Rerefência da Cultura Negra, que integra as ações da Fundação Cultural Palmares no marco
do V Centenário do Descobrimento do Brasil e inclui bancos de dados, imagem e som para coletar
e difundir dados sobre a história e cultura dos povos negros. Como parte do projeto está sendo
realizada a coleta e a recuperação de documentos históricos no Brasil e no exterior. A partir de ações
do Ministério das Relações Exteriores, vários governos têm apoiado o trabalho dos pesquisadores
brasileiros e estrangeiros envolvidos. Está sendo realizado o mapeamento, a sistematização e a di-
fusão da produção cultural afro-brasileira.
Estão sendo financiadas de forma direta, ou viabilizadas através das leis de incentivo, obras de
produtores culturais negros, de modo que sua participação no mercado cultural nacional e interna-
cional seja potencializada.
O governo está investindo, em parceria com entidades do movimento negro, na sensibilização
de órgãos, empresas e pessoas financiadores de cultura para que invistam nos projetos de artistas
afro-brasileiros através do mecenato.
Estão sendo financiados projetos de capacitação e requalificação, para o aprimoramento de
produtores culturais negros nas várias áreas das artes e gestão cultural, em regiões urbanas e rurais,
e para a consolidação de uma dramaturgia afro-brasileira e de uma dramaturgia multicultural.
Pela primeira vez as comunidades remanescentes de quilombos, descendentes de escravos que
resistiram de forma coletiva à escravidão e que habitam sobretudo no meio rural, estão sendo re-
conhecidas pelo Estado como territórios culturais, sendo mapeadas, tendo suas terras demarcadas
e recebendo os títulos a que têm direito. Já foram oficialmente identificadas 511 pelo governo fe-
deral, demarcadas 55 e tituladas 4 delas.
Estão sendo implantados projetos de intercâmbio com países africanos e outros onde o tema
do multiculturalismo seja relevante de forma a se ampliar conceitos dos aspectos positivos da diver-
sidade e consolidar a participação de artistas e produtores culturais afro-brasileiros nos novos
mercados internacionais.
Uma importante referência da mudança da cultura do próprio Estado refere-se à publicidade
governamental que, apenas neste final de século, passou a incluir negros de forma qualificada. Os
vários grupos humanos que integram a nação são finalmente representados, segundo conceitos de
valorização da diversidade. O reconhecimento de que as mudanças exigem explicitação da vontade
política faz com que a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República tenha como
uma de suas orientações básicas evitar quaisquer atos discriminatórios nas ações de publicidade,
no âmbito dos órgãos, entidades e sociedades controladas pelo Poder Executivo Federal.
172 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 173
cidades do trabalho do professor. Um autor que trabalho essas questões é Wanderlei Codo em
seu livro Educação, carinho e trabalho (2000), que discute como é importante compreender
o trabalho do professor dentro de suas múltiplas facetas. Para isso precisamos apreender e
compreender o trabalho docente ultrapassando a barreira do empírico, viabilizando o enten‑
dimento do fenômeno através de seus elementos constitutivos, evidenciando a qualidade da
sua essência (MARX, 1985), ou seja, buscar compreender o que está para além da figura de
um professor de jaleco branco em frente ao quadro-negro.
Uma primeira especificidade do trabalho do professor diz respeito ao produto do seu
trabalho. Segundo Codo (2000), o produto do trabalho do professor é a formação de outra
pessoa, ou seja, o aluno educado.
A diferença está na qualidade do vínculo que o trabalhador necessitou
estabelecer com seu produto para que a atividade se realize. Num caso,
a atividade de trabalho tem que se objetivar em um sujeito, o uno; no
outro, num objeto. No primeiro caso, o trabalhador precisa entrar em
um certo acordo, negociar, para poder desenvolver sua atividade, no
segundo ele não tem na sua frente ‘um outro’, mas um objeto sobre o
qual imprime sua atividade (CODO, 2000, p. 45).
Nesse sentido, para o professor, o produto de seu trabalho é o outro e o meio para a sua
realização são as condições de ensino criadas por ele mesmo, ocorridas numa relação social
professor-aluno, que é repleta e permeada das histórias de ambos os sujeitos que fazem parte
do contexto, contendo nessas histórias componentes subjetivos, mas que se mesclam com as
condições de trabalho desse exercício profissional.
Ressalte-se que essa relação direta e imediata do professor com o outro é permeada pelo
vínculo afetivo, considerado um terceiro aspecto essencial do trabalho docente. O vínculo
afetivo é aqui entendido como uma relação de compromisso, de respeito às potencialidades e
aos limites do outro, de condução ética do trabalho de ensinar. Esses aspectos foram banidos
do trabalho de forma geral, pela organização taylorista-fordista, que propunha uma divisão
rígida das tarefas, onde nos espaços de trabalho estipulava-se unicamente a racionalidade
tecnicista e a burocracia.
Se essa relação afetiva com os alunos não se estabelece, se os movi‑
mentos são bruscos e os passos fora do ritmo, é ilusório querer que
o sucesso do educar seja completo. Se os alunos não se envolvem,
poderá até ocorrer algum tipo de fixação de conteúdos, mas certa‑
mente não haverá nenhum tipo de aprendizagem significativa; nada
174 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
O que vocês acham da questão do vínculo afetivo entre professor e aluno? Vocês acham
essencial? Por quê? Vamos utilizar o nosso?
Dentre outras coisas, devemos recuperar o papel ético e político do professor e da escola
dentro do processo educativo dos seus alunos, desenvolvendo o que chamamos de crítica
transformadora. Nesse sentido, o professor deve mobilizar-se coletivamente (escola, comu‑
nidade, alunos, familiares) no intuito de contribuir para uma reordenação da discussão sobre
a cultura e suas implicações na formação do homem, possibilitando o rompimento de uma
ideologia cultural fundada no preconceito e na desigualdade entre os grupos sociais presente
em nossa sociedade.
Segundo Giroux (1997, p. 163), essa prática transformadora só se efetiva mediante o seguinte
aspecto: tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico.
“Tornar o pedagógico mais político significa inserir a escolarização di‑
retamente na esfera política, onde a reflexão e ações críticas tornem-se
parte do projeto social fundamental de ajudar os estudantes a desen‑
volverem uma fé profunda e duradoura na luta para superar injustiças
econômicas, políticas e sociais, e humanizem-se mais como parte
desta luta. Apesar de parecer uma tarefa difícil para os educadores,
essa é uma luta que vale a pena travar. Proceder de outra maneira é
negar aos educadores a chance de assumirem o papel de intelectuais
transformadores”.
C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . . 175
Sendo assim, para que o trabalho do professor se torne significativo para o aluno e para
a sociedade como um todo, não pode se efetivar, simplesmente aceitando passivamente as
determinações e as influências da sociedade capitalista, mas para que isso ocorra é necessário
que os professores consigam manter o espaço da escola como um espaço aberto à crítica e a
resistência, tal como historicamente tem sido construído pelos professores brasileiros.
O caminho da crítica transformadora promove condições mais efetivas para garantir a auto‑
nomia do professor, para trazer uma possibilidade de revalorização do seu trabalho e de efetivar
a sua especificidade em um conjunto complexo de relações sociais. Nessa linha, o produto do
seu trabalho — o aluno educado — contribuirá para a valorização das potencialidades tanto
do aluno quanto da sociedade, na direção da reconstrução permanente da sua cidadania.
Ora, resgatar essa função da escola e do professor é possibilitar à sociedade uma abertura
ao diálogo e a possíveis transformações. Sendo assim, torna-se essencial compreendermos que
nossa sociedade é repleta de especificidades, possibilitando a abertura para que o preconceito
instituído socialmente dê lugar à valorização da diversidade cultural por ser diferença. Com
certeza essa é uma luta que vale a pena travar. Vamos a ela?
Resumo
A ação docente é uma atividade cheia de significados. Torna-se essencial
discutirmos o trabalho do professor e a cultura, sendo que a escola é um lócus
das representações culturais de nossa sociedade. Sendo assim, a discussão sobre
a cultura e a diversidade cultural é essencial.
176 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
Atividades de aprendizagem
1. Por que discutir a importância da diversidade cultural dentro da escola?
2. Qual a leitura que Florestan Fernandes realiza da sociedade capitalista?
3. Qual o sentido do termo “homem cordial” trabalhado por Sérgio Buarque de
Hollanda?
4. Explique a democracia racial na leitura de Gilberto Freyre.
5. Quais os períodos da sociologia brasileira, segundo Octavio Ianni?
Referências
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R e f e r ê n c i a s 179
180 S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a
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Sugestões de leitura
Anotações
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