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UNOPAR
Sociedade,
educação e
cultura

Sociedade, educação e cultura


Okçana Battini
Giane Albiazzetti
Fábio Luiz da Silva

ISBN 978-85-8143-647-0

C M Y K CL ML LB LLB
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Sociedade,
educação e
cultura

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Avaliação
Sociedade,e
ação docente
educação e
cultura
Sandra
Okçana Regina
Battini dos Reis Rampazzo
Marlizete Cristina Bonafini Steinle
Giane Albiazzetti
Edilaine Vagula
Fábio Luiz da Silva

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© 2013 by Pearson Education do Brasil e Unopar

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Capa: Solange Rennó e Wilker Araujo
Diagramação: Casa de Ideias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Battini, Okçana
Sociedade, educação e cultura / Okçana Battini, Giane Albiazzetti,
Fábio Luiz da Silva — São Paulo : Pearson Education do Brasil, 2013.

ISBN 978-85-8143-647-0

1. Antropologia cultural 2. Educação – Finalidades e objetivos


3. Educação e cultura 4. Professores – Formação 5. Sociologia
educacional I. Albiazzetti, Giane. II. Silva, Fábio Luiz da. III. Título.

13-01721 CDD‑306.43

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação e cultura : Sociologia educacional 306.43
2. Educação e sociedade : Sociologia educacional 306.43

2013
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CEP: 02712­‑100 — São Paulo — SP
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e­‑mail: vendas@pearson.com

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Sumário

Unidade 1 — A explicação sociológica


da vida coletiva..................................... 1
Seção 1 
Aspectos históricos na formação da sociedade
capitalista e seus rebatimentos na constituição da
sociologia como ciência...................................................3
1.1 Algumas transformações na sociedade: séculos XV a XVIII .................. 3
1.2 Sociedade capitalista: principais características ................................... 8

Seção 2 Positivismo: o início da sociologia .................................10


2.1 Auguste Comte e a filosofia positiva ................................................... 10
2.2 Sociologia clássica: Émile Durkheim ................................................. 20

Seção 3 Karl Marx e Friedrich Engels: “sociologia crítica” —


materialismo histórico dialético ....................................32
3.1 M
 arx e sua leitura sobre o processo de transformação da sociedade .....32
3.2 Marx e a educação politécnica .......................................................... 55

Seção 4 Max Weber e a sociologia compreensiva ......................58


4.1 A busca pela compreensão da sociedade ........................................... 58
4.2 Educação e a leitura weberiana ......................................................... 67

Unidade 2 — Função social da escola....................... 69


Seção 1 
Função social da escola.................................................70
1.1 Escola como lugar de diversidade...................................................... 72
1.2 Diversidade de ideias......................................................................... 73
1.3 Ação afirmativa e princípio da igualdade............................................ 76

Seção 2 Educação e diversidade: inclusão?..................................77

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vi  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Unidade 3 — Antropologia e cultura............................95


Seção 1 Cultura: o “cimento” que possibilita a união social............96
Seção 2 Antropologia: as correntes teóricas e a interpretação
sobre a construção da cultura............................................99
2.1 Por que a antropologia surgiu?................................................................. 99
2.2 O pensamento científico como base para o surgimento
da antropologia.....................................................................................102
2.3 Mas o que a antropologia estuda exatamente? ...................................... 103
2.4 O desenvolvimento da ciência antropológica........................................ 106
2.5 Evolucionismo ...................................................................................... 108
2.6 Escola sociológica francesa.................................................................... 110
2.7 Difusionismo......................................................................................... 110
2.8 Funcionalismo e estrutural-funcionalismo ............................................. 111
2.9 Culturalismo norte-americano............................................................... 112
2.10 Estruturalismo ..................................................................................... 114
2.11 Diversidade cultural: etnocentrismo e relativização............................. 122

Unidade 4 — Cultura e ideologia................................133


Seção 1 Ideologia e cultura: uma relação indissociável e espaço de
contradição ............................................................................... 134
Seção 2 O surgimento do modo de produção capitalista e a formação
da nossa sociedade.................................................................... 137

Unidade 5 — Cultura de massa, indústria cultural e


formação da cultura brasileira:
impactos na formação do professor...... 147
Seção 1 Indústria cultural e seus impactos na formação dos
sujeitos: positividades e negatividades.............................149
Seção 2 Globalização.....................................................................153
Seção 3 Formação da cultura brasileira e formação do
professor para a cultura .................................................. 160
3.1 Introdução ............................................................................................ 160
3.2 Processo histórico do surgimento da sociologia .................................... 160
3.3 A formação do professor e a leitura da sociedade ................................. 172

Referências.................................................................177

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Carta ao aluno

O crescimento e a convergência do potencial das tecnologias da informação e da co‑


municação fazem com que a educação a distância, sem dúvida, contribua para a expansão
do ensino superior no Brasil, além de favorecer a transformação dos métodos tradicionais
de ensino em uma inovadora proposta pedagógica.
Foram exatamente essas características que possibilitaram à Unopar ser o que é hoje:
uma referência nacional em ensino superior. Além de oferecer cursos nas áreas de humanas,
exatas e da saúde em três campi localizados no Paraná, é uma das maiores universidades
de educação a distância do país, com mais de 450 polos e um sistema de ensino diferen‑
ciado que engloba aulas ao vivo via satélite, Internet, ambiente Web e, agora, livros‑texto
como este.
Elaborados com base na ideia de que os alunos precisam de instrumentos didáticos que os
apoiem — embora a educação a distância tenha entre seus pilares o autodesenvolvimento —,
os livros‑texto da Unopar têm como objetivo permitir que os estudantes ampliem seu
conhecimento teórico, ao mesmo tempo em que aprendem a partir de suas experiências,
desenvolvendo a capacidade de analisar o mundo a seu redor.
Para tanto, além de possuírem um alto grau de dialogicidade — caracterizado por um
texto claro e apoiado por elementos como “ Saiba mais”, “Links” e “Para saber mais” —,
esses livros contam com a seção “Aprofundando o conhecimento”, que proporciona acesso
a materiais de jornais e revistas, artigos e textos de outros autores.
E, como não deve haver limites para o aprendizado, os alunos que quiserem ampliar
seus estudos poderão encontrar na íntegra, na Biblioteca Digital, acessando a Biblioteca
Virtual Universitária disponibilizada pela instituição, a grande maioria dos livros indicada
na seção “Aprofundando o conhecimento”.
Essa biblioteca, que funciona 24 horas por dia durante os sete dias da semana, conta
com mais de 2.500 títulos em português, das mais diversas áreas do conhecimento, e pode
ser acessada de qualquer computador conectado à Internet.
Somados à experiência dos professores e coordenadores pedagógicos da Unopar, esses
recursos são uma parte do esforço da instituição para realmente fazer diferença na vida e
na carreira de seus estudantes e também — por que não? — para contribuir com o futuro
de nosso país.
Bom estudo!
Pró‑reitoria

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Apresentação

O presente texto aborda a importância do homem como agente responsável pela cons‑
trução da realidade social, enfocando a cultura e a educação como categoria central para
a constituição das relações sociais vigentes. Para isso, torna-se essencial a discussão dos
princípios do modo de produção capitalista e sua influência nos aspectos econômicos,
políticos e culturais, sendo que são esses fatores que sustentam a sociedade e a formação
do ser social.
Para isso devemos analisar o processo de expansão europeia a partir do século XV e da
dominação colonialista e imperialista, com suas consequências sobre a organização social,
cultural, política e econômica dos povos dominados. Além disso, o livro propõe uma dis‑
cussão em relação às implicações desse processo colonialista e imperialista sobre o caso
particular do Brasil, especialmente no que se refere à formação histórica da sociedade e
da cultura brasileira, enfatizando-se as relações de dominação política e econômica como
fundamentos da hierarquização social e das desigualdades étnicas e de classe ao longo da
nossa história.
O passado, portanto, não pode ser tomado como obra do acaso ou de meros aciden‑
tes históricos, tampouco como o acúmulo progressivo de grandes atos e feitos heroicos
de homens especiais. O que o professor Mota (1974, p. 14, grifo do autor) propõe é que
“[...] há em curso uma história profunda, lenta, silenciosa, subterrânea, uma história das
estruturas, diversa de uma história de superfície, rápida, leve, do dia a dia, uma ‘história
dos acontecimentos’”.
Assim, o presente e o cotidiano passam a ser reconhecidos como resultado de um
contexto mais amplo, que comanda os bastidores da realidade social, e por isso todas as
evidências históricas têm que ser pesquisadas e analisadas em suas inúmeras facetas. Eric
Hobsbawm, em seu livro Era dos extremos (2000), afirma que essa articulação entre passado
e presente é recuperar dados precisos e comprováveis acerca da trajetória humana ao longo
do tempo, fornecendo informações indispensáveis para a compreensão da realidade social.
As questões tratadas neste livro procuram ser analisadas sob essa perspectiva crítica,
enfatizando especialmente as contribuições da Educação e da Antropologia Cultural atra‑
vés do entendimento dos conceitos educação e formação humana, inclusão e diversidade,
alteridade e relativismo cultural e sua importância para a superação do etnocentrismo que
sempre esteve presente nas relações entre grupos culturalmente diferentes. Trata-se, portanto,
de um material de apoio indispensável, cuja leitura e estudo se tornam obrigatórios para a
formação acadêmica e profissional de vocês.

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Unidade 1
A explicação
sociológica da vida
coletiva
Okçana Battini

Objetivos de aprendizagem: Nesta unidade você vai ser levado a


compreender o surgimento do modo de produção capitalista como
resultado de acontecimentos históricos oriundos das ações produzi-
das pelo homem, o que derivou transformações no âmbito político,
econômico, social e cultural.

Seção 1: Aspectos históricos na formação da


sociedade capitalista e seus rebatimentos
na constituição da sociologia como ciência
Nessa seção iremos estudar os principais aconteci-
mentos que modificaram a realidade, dando início
ao modo de produção capitalista.

Seção 2: Positivismo: o início da sociologia


Nessa seção iremos discutir o papel do positivismo
perante a sociedade, tendo como foco a consolidação
da expressão “ordem e progresso”.

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Seção 3: Karl Marx e Friedrich Engels: “sociologia


crítica” — materialismo histórico dialético
Marx e Engels realizam uma leitura crítica do modo
de produção capitalista, utilizando-se de conceitos
como exploração, mais-valia e alienação.

Seção 4: Max Weber e a sociologia compreensiva


Weber busca compreender a função e ação dos indiví-
duos dentro da sociedade. Para isso, ele busca estudar
os tipos ideais construídos socialmente.

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A explicação sociológica da vida coletiva  3

Introdução ao estudo
A mudança do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista propor‑
cionou transformação na história da humanidade e conse­quentemente nas relações sociais
existentes em sua totalidade. Esse processo deriva de determinados acontecimentos históricos,
séculos XV a XVIII, que trouxeram à tona novas leituras sobre o papel do homem e da ciência
na sociedade. Vamos conhecê-las?

  Seção 1 Aspectos históricos na formação


da sociedade capitalista e seus
rebatimentos na constituição da
sociologia como ciência

1.1 A
 lgumas transformações na sociedade: séculos
XV a XVIII
Um momento muito interessante de ser analisado dentro da história da nossa sociedade é
o surgimento de que alguns autores chamam de pré­-capitalismo, que vai do século XV — as
Grandes Navegações (século XV), o Renascimento (século XVI) e a Reforma Protestante (século
XVI) — até o final do século XVIII — com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Esses
acontecimentos são fundamentais para entendermos as condições históricas que permitiram o
surgimento da sociologia como ciência. Assim podemos perceber que a história e a sociologia
andam em conjunto, no que diz respeito a interpretação das transformações sociais.
Em um primeiro momento devemos pensar a sociedade estruturada sobre o modo de pro‑
dução feudal. A Europa nesse momento fundamentava-se principalmente em torno da terra e
da propriedade privada da terra, sendo que sua organização era ligada ao trabalho rural, sua
principal fonte de or­g anização social.
Nessa sociedade de base agrária, o modo de viver das pessoas era completa­mente diferente
de hoje, com pouco comércio, cujas cidades não passavam de pequenas aldeias e o pensamento
religioso moldava a vida das pessoas.
Segundo Mekesenas (1985, p. 38), a partir do sé‑
culo XIV, esse mundo come­ç ará a mudar rapidamente,
passando de um mundo agrário para o mundo urbano Saiba mais
industrial. Mas essa mudança não ocorreu em pouco
Para saber mais como as grandes
tempo, sendo necessários muitos séculos (no mínimo
três) para se concretizar efetivamente. No entanto, navegações influenciaram no pro-
como foi uma mudança social radical, muitos chamam cesso de transformação da socie-
de revolução. dade, veja o filme A missão (The
A necessidade de expansão de novas ter­ras e a
Mission, ING, 1986). Direção:
busca por novas mercadorias fizeram com que o povo
europeu desbravasse novas terras, com base na expan‑ Roland Joffé. Elenco: Robert de
são das fronteiras, em virtude do processo embrioná‑ Niro, Jeremy Irons, Liam Neeson.
rio do ca­p ital, que necessita de novos mercados para 121 min, Flashstar.
atender à chamada acumulação primitiva de capital.

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4  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Nesse contexto, as Grandes Na­vegações (século XV) são as responsáveis pelo “descobrimento
do novo mundo”.
O Renascimento (século XVI) trouxe uma nova visão de mundo, pautado na ci­ência e na
razão. A visão Teocêntrica (Deus como centro do Universo) que predominava na sociedade
feudal é suplantada pelo antropocentrismo, que coloca o homem como sendo responsável
pela construção das relações sociais, a partir desse momento o homem encontra seu lugar
de produtor da realidade social. A ciência passa a ser responsável pela explicação dos acon‑
tecimentos em sociedade, despertando nos indiví­d uos uma nova leitura sobre sua própria
existência. Nesse período, a realidade social começa a se tornar mais complexa: o homem,
agora racional, torna-se questionador, reflexivo sobre a realidade existente.
Nesse momento Galileu Galilei, Leonardo da Vinci e Copérnico desen­volveram novas
formas de compreender a realidade social, utilizando-se da experiência para comprovar os
fenômenos da sociedade e da natureza. É o início do conhecimento científico que mais tarde
com Francis Bacon e René Descartes ficará conhecido como o único responsável pelas expli‑
cações dos fenômenos naturais e sociais.
A Reforma Protestante (século XVI) traz uma nova forma de se relacionar com o sagrado,
colocando o homem como mediador das questões divinas, redirecionando a questão da he‑
gemonia da Igreja Católica, no que diz res­peito às explicações religiosas.
As transformações ocorridas a partir do século XV estão todas vincu‑
ladas entre si e não podem ser entendidas de forma isolada. Desse
modo, a expansão marítima, as reformas protestantes, a formação dos
Estados nacionais, as grandes navegações e o comércio ultramarino,
bem como o desenvolvimento científico e tecnológico, são o pano de
fundo para uma visão melhor desse movimento intelectual de grande
envergadura que irá alterar profundamente as formas de explicar a
natureza e a sociedade daí para a frente (TOMAZI, 2000, p. 1).

Dentro desse processo de mudança da estrutura social, devemos também compreender a


importância da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, como pontos culminantes para
o surgimento do modo de produção capita­lista, pois essas revoluções concretizaram mudanças
no âmbito produtivo e político que haviam sido iniciadas no século XVII.
A Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra a partir de 1750, consolida novas formas de
produção, onde o trabalho manufatureiro (trabalho manual, com auxílio de alguns instrumen‑
tos rudimentares de produção) passa a ser um trabalho baseado na maquinofatura (máquinas
dentro do processo pro­d utivo), reforçando o papel da classe burguesa como detentora dos
meios de produção (máquinas, matéria-prima, fábricas) e a classe trabalhadora com sua força
de trabalho, que é vendida nas relações de mercado. Esse contexto possibilitou uma nova visão
de produção: a produção industrial, em alta escala, o crescimento do mercado, dentre outros.
A compra de matérias-primas e a organização da produção [...] levavam
ao desenvolvimento de um novo processo produtivo em contraposi‑
ção ao das corporações de ofício. Ao se desenvolver a manufatura, os
organizadores da produção passaram a se interessar cada vez mais
pelo aperfeiçoamento das técnicas de produção, visando produzir
mais com menos gente, aumentando significativamente os lucros. Para
tanto, procuravam investir nos ‘inventos’, isto é, financiar a criação
de máquinas que pudessem ter aplicação no processo produtivo (TO‑
MAZI, 2000, p. 3).

Com o poder econômico e produtivo nas mãos, a burguesia alia-se ao chamado Terceiro
Estado (camponeses, trabalhadores e burgueses) para afirmar-se, também, enquanto classe
política dominante. Esse processo de mobilização do Terceiro Estado busca aca­bar com os
privilégios da nobreza feudal. Essa nobreza (uma minoria da população) era sustentada pelo

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A explicação sociológica da vida coletiva  5

trabalho e impostos dos camponeses, trabalhadores e


burgueses, aumentando a desigualdade social.
A Revolução Francesa é fruto da luta entre o Ter‑ Saiba mais
ceiro Estado e a nobreza, sendo que em 1789, com a
queda da Bastilha, inicia-se o processo de reformulação Outro filme interessante que de-
política e ideoló­gica, consolidando a figura de um novo monstra o processo de mudança
Estado que entre outros aspectos, defende os inte­resses
social através da revolução industrial
da maioria da população, fundado no lema “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade”. é Tempos modernos (Modern
Podemos perceber que tanto a Revolução Industrial Times. EUA, 1936). Direção: Charles
quanto a Revolução Francesa estabelecem novos para‑ Chaplin. Elenco: Charles Chaplin,
digmas para a sociedade, novas formas de compreender
Paulette Goddard 87 min, preto e
a realidade social.
Esse contexto, no final do século XVIII, faz com que branco, Continental.
a sociedade passe por grandes mudanças no âmbito
econômico, produtivo, cultural e político, desembo‑
cando em novos problemas sociais até então inexistentes para a população europeia. É a der‑
rocada do Feudalismo e o surgimento do Modo de Produção Capitalista, ou seja, a sociedade
capitalista, a nossa sociedade. Vejam que estamos falando de mudanças que aconteceram no
final do século XVIII e que ainda hoje, em pleno século XXI, estabelecem as estruturas so­
ciais, econômicas, políticas e ideológicas. Nesse sentido, temos a instituição de novas formas
de viver, a troca de ideias passa a ser maior, desembocando em novas formas de organizar a
vida, sendo necessário o estabelecimento de novas normas, leis que fixam novos costumes,
tradições e maneiras de agir, que passam a ser convenientes aos grupos sociais. Em síntese,
nasce uma nova formação social, juntamente com ‘novos’ problemas sociais, oriundos dessas
novas relações de trabalho, do ‘inchamento’ das cidades, desemprego, falta de infraestrutura
e saneamento básico, doenças...
São esses novos problemas sociais que levam alguns pensadores a refletir sobre a realidade.
Nesse contexto, surge a so­c iologia como ciência, com o objetivo de buscar compreender essa
estrutura social. Assim, a sociologia nasce no século XIX juntamente com a consolidação da
socie­d ade capitalista.
Historicamente a sociologia baseia-se em teorias e
autores, cada um com uma leitura específica da socie‑
dade capitalista. Essas teorias são chamadas de clássi‑ Saiba mais
cas, visto que são a base do pensamento sociológico,
sendo elas a sociologia positiva (Positivismo de Émile Há um filme interessante, chamado
Durkheim), a sociologia crítica (Materialismo Histórico Germinal, que aborda as novas
Dialético de Karl Marx e Friedrich Engels) e a sociologia relações sociais. (França, 1993).
compre­ensiva (Max Weber).
Direção: Claude Berri. Elenco:
Mas um ponto importante a ser esclarecido é que
essas teorias fizeram uma leitura de um determinado Gérard Depárdieu, Miou-Miou,
momento da sociedade. Historicamente po­demos com‑ Jean Carmet, Renaud, Jean-Roger
preender como foram constituídas as novas relações Milo.158 min, drama.
sociais, como os homens construíram novas formas de
viver em sociedade, novas formas de trabalho, novas
formas de poder... Nesse sentido, as teorias sociológicas e a história não nos apresentam
receitas prontas para o entendimento da so­ciedade. Elas nos apontam direções para que nós
possamos refletir, criticar ou até transformar a realidade em que vivemos.
[...] A profundidade das transformações em curso colocava a socie‑
dade num plano de análise, ou seja, esta passava a se constituir em
‘problema’, em ‘objeto’, que deveria ser investigado. Os pensadores
da época [...] não desejavam pro­duzir um mero conhecimento sobre

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6  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

as novas condições de vida geradas pela revolução industrial, mas


procuravam extrair dele orientações para a ação, tanto para manter,
como para reformar ou modificar radicalmente a sociedade de seu
tempo (MARTINS, 1987, p. 15).

Sendo assim, torna-se essencial estudarmos a sociologia não como uma disciplina datada
na história, com uma visão linear, mas entendê-la como uma ciência que nos ajuda a compre‑
ender a realidade, sendo essa realidade dialética, ou seja, uma realidade passível de mudanças,
sendo essas mudanças efetivadas pelo homem, como vimos no início do nosso texto.

Aprofundando o conhecimento
Antes de passar para o próximo tópico, vejamos o que diz Dias no livro Introdução
à sociologia (2005, p. 40-42).

A sociologia e a busca da verdade


3.5. A sociologia como ciência
Por tratar das interações e das relações humanas, a sociologia traz um fato novo para o campo
científico, que é o papel do observador, nesse caso, o cientista social. A sociologia, diferentemente das
outras ciências, tem como parte integrante do seu objeto de estudo o próprio observador. Pois este, ao
mesmo tempo em que observa o fenômeno, sofre influências e influencia o seu objeto de estudo. Essa
realidade traz para as ciências sociais a discussão sobre a objetividade do trabalho científico.
O cientista que estuda um fenômeno não pode interferir no objeto de estudo, caso contrário
seus resultados não serão válidos, estarão viciados pela sua intervenção. Ocorre que no estudo dos
fenômenos sociais há muito maior dificuldade de se permanecer neutro, pois sendo o cientista
social um ser humano, influencia e é influenciado.
O que caracteriza as ciências sociais, em contraste com as ciências físicas, é a circunstância
em que nelas o assunto ou objeto de que tratam se confunde com o próprio ser humano. O ser
humano é, ao mesmo tempo, ator e espectador. Os fatos sociais que são seu objeto de estudo fo-
ram originados por ação humana e ao mesmo tempo é ele — como ser humano — quem observa
e tece considerações sobre o fato, para constituir com ele o conhe­cimento e a ciência. Em outras
palavras, o homem tem um duplo papel nas ciências sociais — o que não ocorre nas ciências físicas.
“O homem é simul­taneamente objeto e sujeito do conhecimento: objeto, como participante dos
fatos que são ‘objeto’ de conhecimento ou das ciências sociais; sujeito do conhecimento como
indivíduo observador e analista daqueles fatos” (PRADO, 1957, p. 13).
Portanto, a sociologia como disciplina científica deve possuir seus próprios meios de investi-
gação — considerando esta dualidade do observador —, bem como atingir a maior objetividade
possível em todos os casos estudados.
Dentro de certos limites são utilizadas medidas quantitativas na interpre­tação de fenômenos
sociais. Dois outros métodos básicos — a observação e a comparação — são largamente utilizados,
tanto pela sociologia como por outras ciências.
Não é só a utilização de um grupo particular de técnicas e pesquisas que determina se a so-
ciologia é ou não uma ciência. A observação objetiva seguida de interpretação cuidadosa dos fatos
observados é o processo científico funda­mental de qualquer ciência; mantendo esse tipo de abor-

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A explicação sociológica da vida coletiva  7

dagem dos fenômenos sociais, a sociologia tornar-se-á cada vez mais respeitada como importante
ramo do saber científico.
Quando afirmamos que a observação científica deve ser ‘objetiva’, significa que, tanto quanto
seja humanamente possível, ela não deve ser afetada pela pró­pria crença, por emoções, hábitos,
preferências, desejos ou valores do observador. Em outras palavras: ‘objetividade significa ver e
aceitar os fatos como são, e não como desejaríamos que fossem’. Para o sociólogo, esse é um dos
procedimentos mais difíceis, pois é muito complicado assumir uma posição de neutralidade pe­rante
problemas sociais que estão sendo estudados. Não podemos confundir, no entanto, neutralidade
com objetividade.
A objetividade é absolutamente necessária ao se estudarem os fenômenos sociais, entendê-los
do modo como são. Ao obtermos o conhecimento acerca de nosso objeto de estudo é que se coloca
a questão da ética científica — e que muitos sociólogos não aceitam.
Muitos cientistas sociais consideram que essa neutralidade ética da ciência nada mais é do que
um modo de controle externo da ciência e da tecnologia científica pelos que detêm o poder político.
Derivam dessa característica da sociologia — particularmente daqueles que não aceitam essa
neutralidade ética — muitos quadros para movimentos reformistas ou revolucionários em todo o
mundo, e também o fato de serem os sociólogos uma das categorias mais perseguidas em regimes
ditatoriais ou em qualquer estrutura institucional autoritária.
Essa característica da pesquisa sociológica e da condição do sociólogo foi muito bem expressa
por Florestan Fernandes (1976, p. 179), que afirmou que:
“O sociólogo não possui um laboratório. Por isso, ele enfrenta muitas dificuldades, que não
existem (ou aparecem com intensidade desprezível) nas ciências nas quais é possível pôr em prática
a investigação experimental. A maior parte dessas dificuldades surge de um fato simples: o sociólogo
está sujeito às normas e aos critérios experimentais do saber científico, mas ele não dispõe dos meios
e das facilidades experimentais de descoberta e de verificação da verdade. Esse ‘limite abstrato’ é, com
frequência, negligenciado pelos que estudam a formação e a evolução da sociologia como ciência.
No entanto, ele deveria estar sempre presente, dos levantamentos iniciais às interpretações finais:
é que ele explica os ‘porquês’ dos avanços ou recuos dos sociólogos na investigação da realidade.
O ponto de vista científico enlaça o sociólogo a uma verdadeira condição humana, da qual ele não
pode escapar sem ‘trair’ as normas e os critérios científicos de observação e de interpretação da vida
em sociedade. Quando ele ignora essa condição humana — ou se subtrai a ela por omissão — sua
contribuição sociológica poderá ser o que se quiser, menos uma sociologia científica.
Para dizer tudo com poucas palavras: as normas e os critérios científico-expe­rimentais de ver-
dade e de verificação da verdade põem o sociólogo em relação de tensão com a sociedade (...)”.
Os sociólogos, pelo fato de terem como seu objeto de estudo a sociedade e de utilizarem
os métodos científicos que darão objetividade à sua pesquisa, encontram no estudo da realidade
concreta fatos sociais que influenciarão sua conduta, modificando consequentemente seus valores
e interferindo na sua capacidade de análise. Assim, a neutralidade em relação ao objeto de estudo
é uma impossibilidade real para o sociólogo, pois ao mesmo tempo em que estuda determinado
fato social, na realidade faz parte desse fato social, é observador e ao mesmo tempo participante
do fato observado. Levar a neutralidade às últi­mas consequências é ignorar esta sua condição hu-
mana e, portanto, render-se a forças sociais e políticas que poderão fazer uso de sua pesquisa em
detrimento de outros seres humanos.
Florestan Fernandes (1976, p. 129) se expressou com muita clareza sobre o significado da
neutralidade para o cientista social:
“A suposta neutralidade ética constitui uma capitulação às forças irracionais, que combatem a
ciência e a tecnologia científica e as submetem ao seu irracio­nalismo. O primeiro ato de autonomia
intelectual do sociólogo desenha-se nesse plano de autoafirmação como e enquanto cientista: a
ciência o compromete eticamente tanto com os seus critérios de verdade (e de verificação da verdade),
quanto com as transformações do mundo que possam resultar das aplicações de suas descobertas”.
Os dois intelectuais brasileiros — Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes — identificaram a dupla
condição do cientista social, enquanto ser humano e como cientista, o que implica duplo compro-
misso, com a humanidade e com a ética científica. Essa dupla condição, embora apareça em outras

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ciências, é muito mais presente nas ciências humanas, pois o objeto de estudo é o social, o homem
e suas interações, o que pressupõe inclusão do próprio pesquisador como objeto de análise, como
parte integrante do objeto que está estudando. Para obter resul­tados cientificamente válidos, o
cientista social não pode ignorar essa condição e ao mesmo tempo não pode permitir que o seu
julgamento de valor, seus hábitos e seus costumes interfiram nas suas conclusões, impedindo-o de
obter dados aceitáveis do objeto de pesquisa.
Quando foi perguntado ao cientista social e antropólogo Clifford Geertz “até que ponto a
sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de campo influem no trabalho
dos antropólogos?”, sua resposta indicou, claramente, a necessidade de busca da objetividade.
Afirmou que:
“Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se diz hoje, ‘ob­servadores situados’. A
única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consciência possível desse fato e pensar nisso,
não assumir que o modo como vemos as coisas é o modo como as coisas simplesmente são, mas
entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-americano ou um brasileiro ou um francês verão
as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razões é o contexto cultural do qual eles vêm, do
qual extraem suas percepções e seus princípios. Não há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre
quando as pessoas não se conscientizam disso e simplesmente assumem que qualquer sensação que
têm não precisa ser confrontada com a realidade. Claro, não há nada semelhante a um observador
totalmente neutro e abstrato. Isso não é tão fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar
sobre de onde as pessoas vêm, onde elas estão trabalhando etc”.
Não podemos esquecer que um dos cuidados que o cientista social deve ter para que proceda
com a maior objetividade possível na análise de dados sociais é a utilização metódica de técnicas
de pesquisa social, que são os instrumentos metodológicos de que dispõe para a abordagem dos
fatos sociais.

Antes de entrarmos propriamente na discussão das correntes sociológi­cas, devemos nos ater
às principais características da sociedade capitalista, já que é através da sua implantação que
iniciam-se as discussões de caráter sociológico da realidade social.

1.2 Sociedade capitalista: principais características


Como vimos, o processo de transformação da sociedade instituiu um novo modelo produ‑
tivo, político e ideológico que denominamos de modo de produção capitalista, ou seja, uma
forma de organizar a produção, definindo suas relações
(como vão ser produzidas, quanto produzir, quem vai
produzir, quem vai gerenciar, por quanto vender...).
Para saber mais Esse modo de produção baseia-se em alguns pon‑
tos que podem ser observados até hoje: propriedade
O modo de produção é a maneira privada dos meios de produção, existência de duas
pela qual a sociedade produz seus classes sociais (capitalistas e proletários), traba­lho
assalariado, a busca pelo lucro e a transformação de
bens e serviços, como os utiliza e todas as relações em mercadorias.
os distribui. O modo de produção A propriedade privada dos meios de produção é
de uma sociedade é formado por talvez a mais importante das características do capi‑
suas forças produtivas e pelas re- talismo, uma vez que é através dela que existe a se‑
paração entre os que possuem os meios de produção
lações de produção existentes (fábricas, matéria-prima...) e os que são expropriados
nessa sociedade. da propriedade, sendo assim todo produto produzido
está e será diretamente ligado aos proprietários dos

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A explicação sociológica da vida coletiva  9

meios de produção. Essa relação fundamenta-se na diferença entre as duas classes sociais
existentes no capitalismo: os capitalistas que detêm a propriedade privada dos meios de pro‑
dução (fábrica, matéria-prima...) e os proletários que vendem a sua força de trabalho para o
capital, em uma relação de compra e venda de produtos. Essa distinção de classe extrapola o
uni­verso da produção, instituindo-se também dentro das relações de poder em nossa sociedade.
Pensar as relações descritas acima é compreender o objetivo central do modo de produção
capitalista — o lucro —; essa preocupação generalizou-se em nossa sociedade. Todos objetivam
lucrar com algo, seja vendendo algum produto, seja consumindo algo: todos querem saber o
que vão lucrar com suas ações.
Nesse sentido, podemos analisar uma outra característica do capitalismo: a transformação
de todas as relações sociais em mercadorias. As relações sociais passam a ser relações de
troca de mercadorias. Trocamos trabalho por salário (vendemos nossa mercadoria — traba‑
lho — para que outras merca­d orias sejam produzidas), trocamos nosso salário por roupas,
comida, casa... reproduzindo uma relação ideológica em nosso cotidiano.
Imaginem, historicamente, como essas mudanças influenciaram a so­ciedade europeia do
século XIX. Essas transformações trouxeram inúmeros impactos sociais, tornando necessária
uma ciência que possibilitasse o estudo e a compreensão do rebatimento/reflexão, sendo esta
ciência a sociologia.
Seguindo a linha de pensamento de Meksenas (1994, p. 39), essa re­volução teve três
momentos importantes: uma revolução econômica, uma revolução política e uma revolução
ideológica e científica.
A Revolução Econômica em primeira instância, pois o processo de de­s envolvimento da
tecnologia, baseado na Revolução Industrial, mudou a concepção de trabalho/produção e
economia, instituindo novas relações sociais, agora pautadas na divisão de classes sociais
(burguesia e proleta­riado) e na divisão social do trabalho, na qual cada trabalhador realiza
uma função específica no processo produtivo. Com isso, o aumento do número de máquinas
de trabalho potencializa um mercado consumidor, fundamentado no surgimento de novas
mercadorias em escala produtiva, fundamentando a sociedade na relação econômica vs.
produção vs. trabalho.
Revolução Política foi quando a antiga nobreza feudal perdeu o seu domínio para a classe
burguesa, que detém o poder econômico e produ­tivo da sociedade. No modo de produção
feudal, a política representava o interesse dos senhores feudais, já no capitalismo, teremos o
surgimento do Estado Moderno, que fundamenta-se por formas de governo eleitas pelo voto
e regidas por uma constituição, dessa forma, o poder do Estado passa a ser dividido em três
dimensões: executivo, judiciário e legislativo. Para Meksenas (1994, p. 39), essas novas di‑
mensões do Estado Burguês, oriundo da Revolução Francesa, instituem a aparência de que o
Estado, acima dos interesses de classes, vem organizar democraticamente a sociedade.
E por último uma revolução ideológica e científica, pois toda essa estrutura social estabe‑
lece a ideia de que o progresso e o enriquecimento da sociedade estão atrelados ao trabalho
e à economia. Essas revoluções instituíram uma nova visão de mundo e, como já dissemos no
início dessa unidade, novos problemas sociais.

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  Seção 2  Positivismo: o início da sociologia

2.1 Auguste Comte e a filosofia positiva


Auguste Comte (1798-1857) definiu a sociologia como “física social”, considerando que
ela deveria localizar e estabelecer as leis imutáveis da vida social, identificando quais seriam
as irregu­laridades, ou qual deveria ser o funciona­mento normal da sociedade. Para Comte a
sociedade estava em crise, em desordem e o conhecimento a ser construído deveria, necessa‑
riamente, criar condições para que a ordem fosse novamente restaurada.
Os positivistas tinham como influência o pensa‑
mento conservador, que afirmava que as transforma‑
ções sociais ocorridas é que seriam responsáveis pelo
Links estado de desordem da sociedade. Nesse processo de
transição para a sociedade capitalista, os indivíduos
Um site interessante que mostra perderam a moral e os costumes não seguindo mais
uma hierarquia social, sendo que a preocupação cen‑
a história de Auguste Comte é
tral dos positivistas era o resgate da ordem social para o
< w w w. c u l t u r a b r a s i l . p ro . b r / desenvolvimento do pro­gresso. No Brasil, nós tivemos
comte.htm>. uma forte influência do pensamento positivista. Basta
olhar o lema da nossa bandeira: Ordem e Progresso.

Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar seus conhecimentos sobre o início da sociologia e a importância
de Auguste Comte, indicamos a leitura do trecho extraído do livro Introdução à socio-
logia, de Dias (2005, p. 21-24).

A questão social e a necessidade de uma


ciência social
2.4. O desenvolvimento da sociologia
O surgimento da sociologia ocorre num contexto histórico específico, que coincide com a
desagregação da sociedade feudal e a consequente consolidação da sociedade capitalista. A sua
criação não é obra de um só homem; representa o resultado de um processo histórico, intelectual
e científico que teve como apogeu o século XVIII.
São os acontecimentos desencadeados pelas duas revoluções desse século — a Revolução
Francesa e a Revolução Industrial — que possibilitam o aparecimento da sociologia.
No plano da realidade social, a introdução da máquina a vapor na indústria e o aperfeiçoamento
dos métodos produtivos trouxeram a Revolução Industrial, que significou o triunfo da indústria. Como
consequência dessa revolução houve mudanças profundas no campo social. As cidades cresceram
enormemente com o afluxo de massas camponesas atraídas para o trabalho nas fábricas, surgindo
uma nova classe social — o proletariado industrial.

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Os problemas decorrentes desse rápido processo de urbanização e de concen­tração de máqui-


nas, terras e ferramentas sob controle do empresário capitalista fazem surgir com bastante força
a ‘questão social’.
A sociologia surgiu em grande medida em decorrência dos abalos na sociedade provocados
pela Revolução Industrial.
Uma outra circunstância que contribuiu para o surgimento da sociologia foi a evolução dos
modos do pensamento e que somada aos problemas advindos da rápida industrialização possibilitou
o seu aparecimento.
No século XVII ocorreu um notável avanço no modo de pensar, com o uso sistemático da
razão — o livre exame da realidade —, característica marcante dos pensadores conhecidos como
‘racionalistas’. Tal avanço se completa no século XVIII, com os ‘iluministas’, que não buscavam
apenas transformar as velhas formas de conhecimento, mas utilizavam a razão para criticar com
veemência a sociedade. Os iluministas atacaram os fundamentos da sociedade feudal, os privilégios
dos nobres e as restrições que estes impunham aos interesses econômicos e políticos da burguesia.
Combinando o uso da razão e da observação, os iluministas analisaram vá­rios aspectos da socie-
dade. Seu objetivo ao analisarem as instituições da época era demonstrar que elas eram irracionais
e injustas e que impediam a liberdade do homem. Se impediam a liberdade do homem, deveriam
ser eliminadas. Esse pensamento revolucionário dos iluministas levou-os a ter um importante papel
na Revolução Francesa de 1789.
Essa evolução do pensamento humano, levando-o a utilizar a razão para um livre exame da
realidade, inclusive a social, juntamente com os problemas originados pela Revolução Industrial
foram as duas principais circunstâncias que possibilitaram o surgimento da sociologia, que em seu
início preocupou-se em ‘organizar’ a sociedade.

2.5. O papel do positivismo


Do ponto de vista intelectual surgiu uma reação conservadora às transforma­ções desencadeadas
pela Revolução Francesa e pela Industrial. Como vimos, essas transformações provocaram profundas
alterações na sociedade, novas situações que não eram ‘explicadas’ pelos filósofos da época, como
o aumento da urbani­zação, do número de suicídios, das epidemias e outras.
Esses conservadores inicialmente construíram suas obras contra a herança ilu­minista. Não
procuravam justificar a nova sociedade por suas realizações políticas e econômicas; ao contrário, a
inspiração do pensamento conservador era a socie­dade feudal, com sua estabilidade e acentuada
hierarquia social. Consideravam os iluministas ‘aniquiladores’ da propriedade, da autoridade e
da religião.
A sociedade moderna, na visão conservadora, estava em franco declínio. Não viam nenhum progresso
numa sociedade urbanizada, na indústria, na tecnologia, na ciência e no igualitarismo. Lamentavam o
enfraquecimento da família e da religião. Consideravam que a sociedade moderna era dominada pelo
caos social, pela desorganização e pela anarquia.
Preocupados com a ordem, a estabilidade e a coesão social, enfatizariam a importância da
autoridade, da hierarquia, da tradição e dos valores morais para a conservação da vida social. Ao
estudarem as instituições — como a família, a religião, o grupo social —, preocupavam-se com a
contribuição que poderiam prestar para a manutenção da ordem social.
As ideias dos conservadores constituíram-se numa referência para os pioneiros da sociologia,
particularmente os ‘positivistas’, interessados na preservação da nova ordem econômica e política
que estava sendo implantada.
Os positivistas foram bastante influenciados pelas ideias dos conservadores, pois também consi-
deravam que na sociedade francesa pós-revolucionária reinava um clima de ‘desordem’ e ‘anarquia’,
visto que todas as relações sociais tinham se tornado instáveis, e o problema a ser enfrentado era
o de restabelecer a ordem.

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A motivação da obra de Auguste Comte, o fundador da doutrina positivista (vide Quadro 2.2),
repousa nesse estado de ‘anarquia’ e de ‘desordem’ de sua época histórica. Segundo ele, as socie-
dades europeias se encontravam em estado de caos social. Para que houvesse coesão e equilíbrio
na sociedade, seria necessário restabelecer a ordem nas ideias e nos conhecimentos, criando um
conjunto de crenças comuns a todos os homens, a que deu o nome de ‘filosofia positiva’.
Para Comte, a filosofia iluminista somente criticava, abordava os aspectos negativos; em opo-
sição a ela, o espírito positivo não possuía caráter destrutivo, preocupando-se apenas em organizar
a sociedade.
Comte considerava o período de apogeu do racionalismo como o “momento em que o espírito
da filosofia positiva começou a pronunciar-se no mundo, em oposição evidente ao espírito teológico
e metafísico” (COMTE, 1973, p. 14). Considerava também que nas quatro categorias de fenômenos
naturais — os as­tronômicos, os físicos, os químicos e os fisiológicos — havia uma lacuna essencial
relativa aos fenômenos sociais. E, ainda em seu tempo (século XIX), utilizava-se os métodos teo-
lógicos ou metafísicos como meio de investigação e argumentação para o estudo dos fenômenos
sociais. Dizia que, para constituir a filosofia posi­tiva, era necessário preencher essa lacuna e fundar a
física social. Sendo assim, considerava ser este o primeiro objetivo de seu Curso de filosofia positiva.
Para Comte, a filosofia positiva se encontra dividida em cinco ciências fun­damentais: a astro-
nomia, a física, a química, a fisiologia e, enfim, a física social. “A primeira considera os fenômenos
mais gerais, mais simples, mais abstratos e mais afastados da humanidade, e que influenciam to-
dos os outros sem serem influenciados por estes. Os fenômenos considerados pela última são, ao
contrá­rio, os mais particulares, mais complicados, mais concretos e mais diretamente interessantes
ao homem; dependem, mais ou menos, de todos os precedentes, sem exercer sobre eles influência
alguma” (COMTE, 1973, p. 39).
A essa nova ciência, Comte denominou, num primeiro momento, física social, para posterior-
mente chamá-la ‘sociologia’, palavra por ele criada.

Quadro 2.2  Auguste Comte


Filósofo e matemático francês, Auguste Comte (1798-1857) foi o fundador do positivismo. Fez
seus primeiros estudos no Liceu de Montpellier, ingressando depois na Escola Politécnica de Paris, de
onde foi expulso em 1816 por ter-se rebelado contra um professor.
A partir de 1846, toda a sua vida e obra passaram a ter um sentido religioso. Ao se dedicar mais às
questões espirituais, afastou-se do magistério.
O pensamento de Comte influenciou as teorias existentes, provocando grandes mudanças. Teve
grande influência quer como filósofo social, quer como reformador social. Morreu em Paris, em 5 de
setembro de 1857.
Suas principais obras foram: Curso de filosofia positiva, 6 tomos (1830-1842); Discurso sobre o
espírito positivo (1844); Sistema de política positiva, 4 tomos (1851-1854); Síntese subjetiva (1856).

O estado positivo caracteriza-se, segundo Comte, pela subordinação da imagi­nação e da ar-


gumentação à observação. Cada proposição enunciada de maneira positiva deve corresponder a
um fato, seja particular, seja universal. Deve haver, por parte do cientista social, a busca constante
de leis imutáveis nos fenômenos sociais, à semelhança do que ocorre com os fenômenos físicos.
A principal obra de Comte é o Curso de filosofia positiva, publicado em seis volumes, durante
1830 e 1842. Formulou a teoria dos três estágios pelos quais se desenvolveria o conhecimento
humano: o teológico, o metafísico e o positivo ou empírico. Afirmava que a verdadeira ciência só
seria possível quando se atingisse o terceiro estágio, o positivo. Os fenômenos sociais, como os
fenômenos físicos, poderiam ser estudados objetivamente pelo emprego do método positivo.
O positivismo teve grande importância na evolução das ideias no Brasil. Vários dos mais destacados
propagandistas republicanos eram positivistas e, nos primeiros dias que se seguiram à queda do Império,
ocuparam posições importantes na administração pública. Podemos afirmar que toda a preparação
teó­rica de implantação da República foi feita sob o patrocínio do positivismo. A influência da doutrina
de Comte ficou marcada definitivamente na bandeira brasileira pelo lema ‘Ordem e Progresso’.

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Comte estabeleceu as bases iniciais do que seria uma ciência social, contribuindo de modo
importante para que se constituísse um novo campo de pesquisa científica que se ocupasse dos
fenômenos sociais. Outros filósofos ampliaram a metodologia da pesquisa social e estabeleceram
regras metodológicas que são seguidas por aqueles que desejam se aprofundar nesses estudos.

Questões para reflexão


O pensamento positivista foi e continua sendo um caminho para a interpreta‑
ção da sociedade, no intuito de buscar solucionar os problemas sociais, através
da criação de novas regras e normas de conduta para os indivíduos. Pense um
pouco: quantas regras e normas nós indivíduos, não precisamos seguir dentro
do nosso dia a dia?

Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a sociologia moderna, leia a seguir um
trecho extraído do livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 24-28).

A questão social e a necessidade de uma


ciência social
2.6. As bases de constituição da sociologia moderna
Muitos foram os cientistas sociais que contribuíram para a construção teórica da sociologia. No
entanto, há três que podem ser considerados os mais importantes e são tidos como clássicos — pela
elaboração teórica ampla — e que com o passar do tempo não perdem sua atualidade. São eles:
Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber.

Durkheim e o método
Considerado por muitos o verdadeiro fundador da sociologia como ciência independente das
demais ciências sociais, um dos méritos mais importantes de Durkheim (1858-1917) foi o esforço
empreendido por ele para conferir à sociologia o status de disciplina científica. Criou a chamada

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14  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Escola Objetiva Francesa, que agrupava intelectuais em torno da revista Année Sociologique, por
ele fundada.
Estudou na École Normale Supérieure de Paris, tendo-se doutorado em filo­sofia.
Muito influenciado pelas obras de Auguste Comte e Herbert Spencer, logo depois de formado,
começa a dar aulas na Universidade de Bordéus, onde ocupou a primeira cátedra de sociologia
criada na França (1887). Aí permaneceu até 1902, quando foi convidado a lecionar sociologia e
pedagogia na Sorbonne.
Seu livro As regras do método sociológico surge em 1895 e deu uma formidável contribuição
à sociologia, ao indicar como deveria se dar a abordagem dos problemas sociais, estabelecendo as
regras a serem seguidas na análise de tais problemas.
Utilizou sua metodologia em outro estudo, publicado em 1897, O suicídio, onde, em vez de
especular sobre as causas do suicídio, planejou o esquema da pesquisa, coletou os dados necessários
sobre as pessoas que se suicidaram, e desses dados construiu sua teoria do suicídio.
Um dos aspectos mais polêmicos, na época, de sua metodologia foi afirmar que os fatos sociais
deviam ser considerados como ‘coisas’, no sentido de serem individualizados e, portanto, observá-
veis. Somente assim procedendo, o cientista social poderia abordar os problemas sociais, do mesmo
modo que eram observados os problemas físicos e químicos nas ciências exatas.
Suas principais obras foram: A divisão do trabalho social (1893), As regras do método sociológico
(1895), O suicídio (1897), As formas elementares da vida religiosa (1912).

O papel de Marx
Enquanto a preocupação principal do positivismo foi com a manutenção e a preservação da
nova sociedade capitalista, o marxismo procurará fazer uma crítica radical a esse tipo de ordem
social, colocando em evidência seus antagonismos e suas contradições.
A elaboração mais significativa do conhecimento sociológico crítico foi feita pelo marxismo.
Devem-se a Marx e a Engels a formação e o desenvolvimento desse pensamento sociológico crítico
radical da sociedade capitalista.
Na concepção de Marx e de Engels, o estudo da sociedade deveria partir de sua base material,
e a investigação de qualquer fenômeno social da estrutura econômica da sociedade, que constituía
a verdadeira base da história humana.
Desenvolveram a teoria de que os fatos econômicos são a base sobre a qual se apoiavam os
outros níveis da realidade, como a política, a cultura, a arte e a religião. E, ainda, de que o conhe-
cimento da realidade social deve se converter em um instrumento político, capaz de orientar os
grupos e as classes sociais para a transformação da sociedade.
Dentro dessa perspectiva, a função da sociologia não era a de solucionar os ‘problemas so-
ciais’, com o propósito de restabelecer a ordem social, como julgavam os positivistas — ela deveria
contribuir para a realização de mudanças radicais na sociedade.
Enquanto a sociologia positivista preocupou-se com os problemas da ma­nutenção da ordem
existente, concentrando sua atenção, principalmente, na estabilidade social, o pensamento marxista
privilegiou, para o desenvolvimento de sua teoria, as situações de conflito existentes na sociedade
industrial. Para os marxistas, a luta de classes, e não a ‘harmonia’ social, constitui a realidade mais
evidente da sociedade capitalista.
A obra de Marx é fundamental para a compreensão do funcionamento da sociedade capitalista,
e tanto recorrem a ela seus simpatizantes como seus críti­cos; isto porque Marx estudou o capitalismo
em seus estágios iniciais, nos quais eram nítidas as posições ocupadas pelos capitalistas e pelos
operários e onde a exploração social do trabalho assalariado ocorria de forma brutal.
Karl Marx nasceu na Alemanha, em 5 de maio de 1818, numa família de classe média, sendo
seu pai um advogado bem conceituado.

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Um fato ocorrido quando dos seus 17 anos, no ginásio da cidade onde nas­ceu, Trèves, de-
monstra o que seria a vida futura do jovem Marx. Seu professor mandou-o dissertar sobre o tema:
‘Reflexões de um jovem a propósito da escolha de uma profissão’.
“Em sua dissertação, Karl desenvolveu duas ideias que deveriam acompanhá-lo por toda a vida.
A primeira era a ideia de que o homem feliz é aquele que faz os outros felizes; a melhor profissão,
portanto, deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de trabalhar pela felicidade do maior
número de pessoas, isto é, pela humanidade. A segunda era a ideia de que existem sempre obstáculos
e dificuldades que fazem com que a vida das pessoas se desenvolva em parte sem que elas tenham
condições para determiná-la.”5
A obra de Marx, embora não diretamente relacionada com os estudos aca­dêmicos de ciências
sociais, teve enorme importância para a sociologia. Trouxe para esta a teoria da luta dos contrários,
o ‘método dialético’, assim definido por Engels: “a dialética considera as coisas e os conceitos no
seu encadeamento; suas relações mútuas, sua ação recíproca e as decorrentes modificações mútuas,
seu nascimento, seu desenvolvimento, sua decadência”.6
Marx soube reconhecer na dialética o único método científico de pesquisa da verdade. Sua
dialética diferia das interpretações que a precederam, como ele mesmo afirmou. “No meu método
dialético ‘o movimento do pensamento não é senão o reflexo do movimento real, transportado e
transposto para o cérebro do homem’.” Para Marx era o mundo real, o âmbito da economia, das
relações de produção que determinavam o que pensava o homem, e não o contrário. Foi muito
criticado por outros autores por isso, pois consideravam sua teoria determinista do ponto de vista
econômico. E, na realidade, o deter­minismo econômico marcou as diversas correntes do marxismo
que proliferaram ao longo do século XX.
O método dialético proposto por Marx possui quatro características funda­mentais: tudo se
relaciona (lei da ação recíproca e da conexão universal); tudo se transforma (lei da transformação
universal e do desenvolvimento incessante); mudança qualitativa; e luta dos contrários.
Já no fim da vida, Marx mantinha-se atualizado e aborrecia-se com as defi­ciências dos socia-
listas, que se diziam seus seguidores. Sabendo das tolices que eram ditas ou praticadas em seu 7
nome, pilheriou com Engels, afirmando: “O que é certo é que eu — Marx — não sou marxista”.
Faleceu em 14 de março de 1883.
Suas principais obras são: Manuscritos econômico-filosóficos (1844), A ideo­logia alemã (1845),
A miséria da filosofia (1847), Manifesto comunista (1848), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852),
ep (1857) e a sua maior obra, O capital (1867).

Max Weber
Considerado um dos mais importantes pensadores do século XX, Max Weber (1864-1920),
como sociólogo, foi professor de economia nas universidades de Freiburg e Heidelberg. Participou
da comissão que redigiu a Constituição da Repú­blica de Weimar. Foi durante muito tempo diretor
da revista Arquivo de Ciências Sociais e Política Social e colaborador do Jornal de Frankfurt.
Desenvolveu estudo comparado da história, da economia e da história das doutrinas religiosas,
sendo por isso considerado o fundador da disciplina socio­logia da religião.
Deu inúmeras contribuições à sociologia, formulando conceitos e desenvol­vendo tipologias.
Entre suas contribuições mais importantes encontram-se os estudos sobre a burocracia, sobre os
sistemas de estratificação social e sobre a questão da autoridade; o desenvolvimento de uma rica
metodologia para os estudos da socie­dade e de um instrumento de análise dos acontecimentos
ou situações concretas que exigia conceitos precisos e claramente definidos, a que chamou ‘tipo
ideal’ — contribuição esta muito importante nesse campo. São famosas suas teses a respeito das
relações do capitalismo com o protestantismo.
Suas obras principais são: A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905) e Economia e
sociedade (publicação póstuma de 1922).
Morreu em Munique, a 14 de junho de 1920.

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2.6.1. Outras contribuições


Herbert Spencer (1820-1903). A sociologia surgiu como uma disciplina autô­noma por meio das
obras do inglês Herbert Spencer, que empreendeu a criação de uma ciência global da sociedade.
Em 1876, na Inglaterra, Spencer publicou Princípios de sociologia. Aplicou a teoria da evolu-
ção orgânica à sociedade humana, desenvolvendo a teoria da ‘evolução social’, que foi muito bem
aceita durante um certo tempo. Essa teoria comparava a sociedade com um organismo humano.
Desenvolveu também um vasto trabalho, Filosofia sintética (1860), no qual aplica os princípios
do processo evolutivo para todos os campos do conheci­mento — foi, na verdade, uma tentativa
de estruturação, num sistema coerente, de toda a produção científica e filosófica de seu tempo,
centrada na ideia da evolução. A doutrina de Spencer expressa-se e se identifica com o princípio
segundo o qual a evolução se processa do mais simples para o mais complexo, do mais homogêneo
para o mais heterogêneo e do mais desorganizado para o mais organizado.
Na sua aplicação em sociologia, Spencer parte da definição da sociedade como um organismo.
Por analogia destaca processos de crescimento expressos por meio de diferenciações estruturais
e funcionais. Mostra a importância dos processos de interdependência das partes, bem como da
existência de unidades nos organismos (células) e nas sociedades (indivíduos).
O organicismo de Spencer exerceu enorme influência nos estudos sociais do século XIX, tendo
sido retomado posteriormente por outros autores.
Suas obras principais no âmbito dos estudos da sociedade foram: Princípios de sociologia
(1876-1896) e O estudo da sociedade (1873).
Ferdinand Tönnies (1855-1936). Sociólogo alemão. Foi demitido da Univer­sidade de Kiel, na
Alemanha, por denunciar publicamente o nazismo e o antis­semitismo em 1933.
A contribuição de Ferdinand Tönnies foi marcante: ele concebia a sociedade e as relações sociais
como frutos da vontade humana, representada em interações. Os atos indivi duais se desenvolvem e
permitem o aparecimento de uma vontade coletiva. A esse autor se deve uma tipologia importante
de ‘comunidade’ e ‘so­ciedade’, estabelecendo uma distinção aparentemente simples, mas que
forneceu importantes elementos para os estudos comparativos.
Desenvolveu os estudos da sociologia e, do ponto de vista metodológico, dividiu-a em três partes:
a) Sociologia pura ou teórica — sistema integrado de conceitos básicos.
b) Sociologia aplicada — seria uma disciplina dedutiva, que fazendo uso da sociologia teórica,
tem como finalidade entender a origem e o desenvol­vimento das sociedades modernas.
c) Sociologia empírica ou sociografia — seria a descrição dos dados obser­vados em um contexto
social.
A tipologia que estabeleceu entre ‘comunidade’ e ‘sociedade’ foi, e continua sendo, referência
importante nos estudos dos grupos sociais.

2.6.2. A abordagem funcionalista


O funcionalismo é uma corrente de pensamento que considera que uma so­ciedade é uma
totalidade orgânica, na qual os diferentes elementos se explicam pela função que preenchem, pelo
papel que desempenham e pelo modo como estão ligados uns aos outros no interior desse todo.
Dito de outro modo, podemos afirmar que o funcionalismo estuda os fenômenos sociais a partir
das funções que desempenham na sociedade. O funcionalismo pressupõe que o sistema social de
uma sociedade como um todo é composto de partes inter-relacionadas e interdepen­dentes, com
cada uma preenchendo uma função necessária para a vida social.
Tem origem no organicismo biológico de Herbert Spencer, que entendia que os organismos
sociais, quanto mais crescem, mais se tornam complexos, ficando as respectivas partes mutuamente
dependentes. Utilizou os termos estrutura, órgãos e funções para explicar o funcionamento da
sociedade com base nas teorias evolucionistas.

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Posteriormente, a aplicação do conceito de função no domínio das ciências sociais recebeu um


grande impulso, a partir dos trabalhos de Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Alfred Reginald
Radcliffe-Brown (1881-1955). Para Malinowski (1997), em cada tipo de cultura, cada costume, cada
objeto material, cada ideia e cada crença preenchem uma certa função vital, têm uma tarefa a
cumprir, representando uma parte insubstituível do todo orgânico. Para ele, dizer função significa
satisfação de uma necessidade, e o todo social é visto como uma totali­dade orgânica, sendo que
cada elemento tem uma tarefa a desempenhar.
Já para Radcliffe-Brown (1973), a função social de um uso particular é a con­tribuição que ele
traz à vida social tida como o conjunto do funcionamento do sistema social. Considera que os
componentes ou unidades da estrutura social são pessoas que ocupam uma posição na estrutura
social, que se inter-relacionam num imenso número de interações e ações num processo social. O
sistema social aqui é entendido como unidade funcional, e a estrutura social é o acordo entre as
pessoas, que têm entre si relações institucionalmente controladas e definidas.
Um outro autor, Robert Merton, considera que “O conceito de função tem em conta o ponto
de vista do observador e não forçosamente o do participante. Por função social, referimo-nos às
consequências objetivas e observáveis... e não às intenções subjetivas. E não distinguir entre
consequências sociológicas e objetivas e intenções subjetivas conduz inevitavelmente a lançar a
confusão na análise funcional” (MERTON, 1965). É aqui que Merton introduz a noção de ‘função
manifesta’, que é o modo como uma instituição ou uma ação social são percebidas objetivamente,
e de ‘função latente’, que é a função verdadeira e não é imediatamente percebida pelo observa-
dor. As instituições educacionais, por exemplo, podem ter como função manifesta transmitir às
futuras gerações o conhecimento acumulado, contribuindo para o processo de socialização; no
entanto, a sua função latente pode ser a de manter a coesão da sociedade, ou seja, tem uma
importante função de controle social, reproduzindo os valores aceitos e que invariavelmente não
podem ser questionados.

Nota
5. Cf. Konder (1976, p. 21). 7. Cf. Konder (1976, p. 183).
6. Cf. Engels (1970)

Aprofundando o conhecimento
Aprofunde ainda mais seus conhecimentos e leia mais um trecho extraído do livro
Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 6-9).

A perspectiva sociológica
1.2. A imaginação sociológica
A habilidade que os sociólogos desenvolvem para ver a conexão entre a vida cotidiana dos
indivíduos e os problemas sociais, Charles Wright Mills (1916-1962)1 denominou de ‘imaginação
sociológica’. Esta pode ser caracterizada como um tipo incomum de pensamento criativo, que

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consegue estabelecer relações entre um indivíduo e a sociedade mais ampla. Um elemento funda-
mental para se obter a imaginação sociológica é desenvolver a habilidade para ver a sua própria
sociedade (ou o seu grupo social) como um estranho o faria, assim procurando diminuir a sua
própria influência (carregada de valores culturais obtidos ao longo de sua vida ) na análise.
Nas palavras de Mills (1972, p. 17): “Ter consciência da ideia da estrutura social e utilizá-la com
sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes de
pequena escala. Ser capaz de usar isso é possuir a imaginação sociológica”.
Aquele que possui a imaginação sociológica está capacitado a compreender o cenário histórico
mais amplo, o seu significado para a vida particular de cada um e para a carreira de numerosos
indivíduos. Torna-lhe possível compreender tam­bém como os indivíduos, envolvidos com as atribu-
lações da vida diária, adquirem frequentemente uma consciência falsa de suas posições sociais.
Para Mills (1972, p. 12), “o primeiro fruto dessa imaginação — e a primeira lição da ciência
social que a incorpora — é a ideia de que o indivíduo só pode compre­ender sua própria experiên­
cia e avaliar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período; só pode conhecer suas
possibilidades na vida tornando-se cônscio das possibilidades de todas as pessoas, nas mesmas
circunstâncias que ele”. É assim que a imaginação sociológica possi bilita compreender a história
e a biografia e as relações entre ambas, dentro da sociedade. Para Mills (1972, p. 12), “nenhum
estudo social que não volte ao problema da biografia, da história e de suas interligações dentro
de uma sociedade completou a sua jornada intelectual”. E todos os analistas sociais clássicos,
quer tenha sido o objeto do exame uma grande potência ou uma passa­geira moda literária, uma
família, uma prisão ou um credo, formularam repetida e coerentemente três séries de perguntas
(vide Quadro 1.1), que são feitas, segundo Mills, “por qualquer espírito que possua uma imagi-
nação sociológica”.

1.3. A visão sistêmica


O conceito de imaginação sociológica proposto por Mills faz parte de um con­texto de aborda-
gem sistêmica dos problemas sociais. Ter uma ‘visão sistêmica’ é identificar as ligações dos fenôme-
nos particulares, de um ponto de vista microsso­ciológico, ao sistema social como um todo. Em suma,
estabelecer ligações entre as ações sociais e o sistema de relações sociais que forma a sociedade
mais geral.
Um exemplo de visão sistêmica é o professor em sala de aula compreender que o seu
papel não se esgota na relação professor-aluno, e sim está inserido num contexto mais amplo,
em que um número indeterminado de relações semelhantes formam um sistema de relações
que integram o sistema educacional, e este, por sua vez, apresenta seu conjunto de interações
integrado ao sistema de relações que formam a sociedade brasileira. O professor que não tem
visão sistêmica considera que o seu papel se esgota na sala de aula; aquele que possui tal visão
compreende que as relações que estabelece com os alunos no ambiente escolar fazem parte
de um todo complexo de relações que integram uma sociedade, a qual apresenta determina-
dos valores sustentados pelo conjunto de relações existentes, das quais as que estabelece se
integram no todo como uma de suas partes constitutivas.

A abordagem sistêmica dos fenômenos sociais


Podemos definir ‘sistema’ como um conjunto de elementos interligados que sofrem influência
recíproca. Há uma interdependência entre as partes de um sistema, de tal modo que a alteração
em uma das suas partes provoca efeitos nas outras, podendo modificar todo o conjunto. Compre-
endido desse modo, as sociedades humanas formam um sistema social, no qual o conjunto de re-
lações entre as pessoas formam um todo, cujas partes apresentam uma interdependência recíproca
e qualquer alteração provocará algum tipo de modificação no todo, que num primeiro momento
pode ser imperceptível.

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Quadro 1.1 Perguntas básicas formuladas por aqueles que apresentam a imaginação sociológica,
segundo C. Wright Mills
1. Qual a estrutura dessa sociedade como um todo? Quais seus componentes essenciais, e como se
correlacionam? Como difere de outras variedades de ordem social? Dentro dela, qual o sentido de
qualquer característica parti­cular para a sua continuação e para a sua transformação?
2. Qual a posição dessa sociedade na história humana? Qual a mecânica que a faz modificar-se? Qual é
seu lugar no desenvolvimento da humanidade como um todo, e que sentido tem para esse desenvol-
vimento? Como qual­quer característica particular que examinemos afeta o período histórico em que
existe, e como é por ele afetada? E esse período — quais suas caracte­rísticas essenciais? Como difere
de outros períodos? Quais seus processos característicos de fazer a história?
3. Que variedades de homens predominam nessa sociedade e nesse período? E que variedades irão
predominar? De que forma são selecionadas, formadas, liberadas e reprimidas, tornadas sensíveis
ou impermeáveis? Que tipos de “natureza humana” se revelam na conduta e caráter que observa-
mos nessa sociedade, nesse período? E qual é o sentido que para a “natureza humana” tem cada
uma das características da sociedade que examinamos?
Fonte: Charles Wright Mills (1972, p. 13).

Em sociedades humanas que apresentam um maior grau de complexidade, podemos iden-


tificar subsistemas, que formam um conjunto interligado com o sistema mais geral. Para a socio-
logia, a possibilidade de identificação de subsis­temas menores é bastante útil como procedimento
metodológico no estudo das sociedades, pois facilita o entendimento das partes pelo pesquisador,
que desse modo poderá tornar-se cada vez mais especializado no estudo desse setor. Muitas
vezes, novas disciplinas surgem devido à importância desses subsistemas. Entre os mais impor-
tantes subsistemas, podemos citar os econômicos, os políticos, os religiosos, os educacionais e os
turísticos. Podemos ainda dividir cada um desses subsistemas em outros subsistemas para facilitar
sua compreensão.
De acordo com o ponto de vista de um pesquisador, a sociedade pode ser dividida em inúme-
ros sistemas, que estarão interligados. Assim, uma manifesta­ção política pode provocar mudanças
econômicas; ou uma ação econômica pode provocar problemas no sistema educacional.
Assim como os advogados dedicam-se ao estudo do subsistema jurídico, os economistas, do
econômico e assim por diante, um sociólogo pode dedicar-se a estudar o subsistema turístico, o
educacional ou o político etc. O que cada profis­sional deve compreender é que cada subsistema
está em permanente interação com outros e que no seu conjunto formam a sociedade maior
onde os subcon­juntos estão inseridos. Os sistemas sociais constituem-se em sistemas abertos e
permanentemente sofrem influências externas, sejam estas de outros sistemas sociais, ou mesmo
do meio ambiente.
A visão sistêmica pode ser definida como a capacidade que o pesquisador adquire de compre-
ender que cada ação social não está isolada na sociedade, faz parte de um todo interligado, assim
interferindo e sofrendo interferências. Sob esse aspecto, muitas ações que não podem ser compre-
endidas por si mesmas podem ser explicadas pelo papel que desempenham no todo ou pelas
influên­cias que recebem.
Por outro lado, o indivíduo que possui uma visão sistêmica compreenderá que suas ações co-
tidianas refletem, de algum modo, o todo ou são por ele influenciadas.
A visão sistêmica constitui-se numa abordagem holística das ações humanas. O pensamento
holístico não só procura compreender as ações sociais inseridas num todo mais complexo — no
caso, a sociedade —, mas prioriza o “entendimento integral dos fenômenos, em oposição aos
procedimentos analíticos em que seus componentes são tomados isoladamente” (HOUAISS, 2001).
Tanto a visão sistêmica como a holística estabelecem conexões entre o todo e as partes. Dife-
renciam-se no estabelecimento de prioridades, pois a abordagem holística prioriza a análise a partir
da sociedade mais geral, e não de um contexto particular ou mesmo de uma relação social especí-
fica. Já a abordagem sistêmica pode partir do indivíduo e estabelecer as conexões com o sistema

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em que está integrado. No entanto, as duas abordagens dão importância ao todo em relação às
partes e muitas vezes são utilizadas como sinônimos.
De todo modo, tanto uma como outra são imprescindíveis para a compreensão da realidade,
principalmente neste início do século XXI, em que cada vez mais fortemente se demonstram as
interconexões entre diferentes disciplinas. O direito com a biologia cria um novo campo de estudo,
o direito ambiental; a física e a biologia, a biofísica; há o desenvolvimento de computadores bioló-
gicos etc.

Nota
1. Charles Wright Mills, sociólogo norte-america- publicou vários trabalhos sobre a estratificação
-no, nasceu em Waco, Texas, em 28 de agosto de social nos EUA. Entre suas principais obras es-
1916, e morreu em Nyack, Nova York, num aci- tão: The new men of power and America’s labor
dente automobilístico, em 20 de março de 1962, leaders (1948), White collar and the American
com 46 anos. Considerado um intelectual radical, middle classes (1951), The power elite (1956).

2.2 S
 ociologia clássica: Émile Durkheim
O Positivismo deu início à chamada sociologia clássica que tem como base os conceitos
elaborados por Émile Durkheim, Karl Marx e Friedrich Engels e Max Weber. O pensamento
de cada um desses autores possui características bem
específicas e distintas umas das ou­t ras. Apesar disso,
Para saber mais são reconhecidamente importantes, na medida em
que formam a estrutura a partir da qual a Sociologia
Émile Durkheim, de 1917, é conside- se desenvolveu e hoje engloba diferentes perspecti‑
vas contemporâneas.
rado um dos pais da sociologia mo-
Émile Durkheim (1858-1917) sofreu fortes influên‑
derna. Nasceu em Lorena (França, cias do trabalho de Comte. Durkheim foi responsável
1858). Formou-se em Filosofia e pelo caráter científico da sociologia, sendo ele o res­
desenvolveu métodos para a expli- ponsável pela criação de um rigoroso mé­todo para
análise dos problemas sociais, sendo que para ele a
cação da realidade social. Começou
sociologia seria a ciência responsável pelo resgate da
sua carreira como professor de so- ordem social.
ciologia na Universidade de Borde- Durkheim, baseado no pensamento de Comte,
aux (França) entre 1893 e 1895. Em considerava que todos os proble­m as da sociedade
capitalista eram de na­tureza moral, e que os pro‑
1902 começa a dar aula na Universi-
blemas sociais não estariam ligados ao desenvol‑
dade de Paris, onde permanece até a vimento da economia, ao desemprego gerado pela
morte em 1917. As principais obras automatização do processo produtivo, e sim à falta
de Durkheim são: A divisão do de moral desses indivíduos a se inserirem dentro das
relações sociais.
trabalho social (1893); As regras
Durkheim tenta buscar compreender como esses
do método sociológico (1895); O problemas se efetivam em sociedade, e o que poderia
suicídio (1897); A educação moral ser feito para que esses problemas fossem ameni­zados e
(1902); As formas elementares da a sociedade voltar-se a se desenvolver, restabelecendo
a ordem social. Era necessário compreender a socie‑
vida religiosa (1912); Lições de
dade, as instituições que a constituem e suas funções
sociologia (1912). e o papel do indivíduo dentro da sociedade.

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Nesse sentido, ele faz uma analogia da socie‑


dade como uma espécie de “orga­n ismo vivo”. Para
Durkheim a sociedade pode ser comparada a um or‑ Links
ganismo hu­m ano, sendo composta por várias partes,
onde cada parte teria uma função espe­c ífica a desem‑ Para saber mais sobre a vida de
penhar, sendo que essas funções são obrigatoriamente Durkheim um site bem interessante
interdepen­d entes. Para ficar mais claro: vamos pensar
em nosso corpo humano, onde todos os órgãos — co‑
é: <www.culturabrasil.pro.br/
ração, rins, pulmão, dentre outros — devem viver em durkheim.htm>.
consonância, pois, se algum órgão estiver com pro‑
blema, estamos doentes, sendo que para melhorarmos
precisamos tomar uma medicação para vol­tarmos ao nosso estado normal: o estado de saúde.
Durkheim faz uma analogia do corpo humano com a sociedade, por isso ele considera
a sociologia como uma espécie de biologia social. A sociedade seria um organismo, onde as
instituições (Estado, escola, po­lítica, família) seriam os órgãos, sendo que cada uma dessas
instituições deveria exercer sua função em consonância, para que a sociedade man­tivesse a
harmonia e buscasse o progresso. Segundo Meksenas (1994, p. 70), “Se a sociedade é o corpo,
o Estado é o seu cérebro, e por isso tem a função de organizar essa sociedade, reelaborando
aspectos da consci­ê ncia coletiva.“
Com o desenvolvimento do capitalismo, essas instituições não conseguem dar conta das
mudanças econômicas, políticas e culturais, não funcionando adequadamente, o que compro‑
mete o andamento da sociedade. Sempre que os problemas ultrapassam os limites tolerados,
a sociedade entra em estado de caos, o que prejudica a ordem social. Durkheim estabelece
que esse estado de “doença social” é chamado estado de anomia.

Aprofundando o conhecimento
Para compreender um pouco mais sobre esse conceito, leia a seguir um trecho do
livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 114-115).

Desvio social, crime e controle social


7.5 Anomia
Ao enfraquecimento das normas numa dada sociedade, Durkheim deu o nome de ‘anomia’.
E considerava-a como sendo uma desorganização tal da sociedade que enfraqueceria a integração
dos indivíduos que não sabem que normas devem seguir.
Numa sociedade ou grupo social em anomia “faltará uma regulamentação durante certo tempo.
Não se sabe o que é possível e o que não é, o que é justo e o que é injusto, quais as reivindicações
e esperanças legítimas, quais as que ultrapassam a medida” (DURKHEIM, 1974).
O conceito de anomia desempenha um papel importante na sociologia, principalmente no
estudo das mudanças sociais e de suas consequências. Quando as regras sociais e os valores que
guiam as condutas e legitimam as aspirações dos indivíduos se tornam incertos, perdem o seu
poder ou, ainda, tornam-se incoerentes ou contraditórios devido às rápidas transformações da
sociedade; resulta daí um quadro de desarranjo social denominado anomia.

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Num mundo de constantes mudanças, onde as crenças e as instituições perdem sua caracte-
rística de permanência e constância que possuíam nas sociedades tradicionais, as sociedades estão
sujeitas a algum tipo de desarranjo nos regulamentos que servem para estabilizar o grupo.
Podemos denominar ‘condutas anômicas’ aquelas que o indivíduo adota quando se vê privado
das referências e dos controles que organizam e limitam seus desejos e aspirações — são condutas
marginais e, de um modo geral, ligadas à violência.
Numa sociedade em estado de anomia, as pessoas estão predispostas a seguir uma liderança
carismática que lhes indique novos valores e que, de um modo geral, o líder personifica. Aqui,
a anomia possui uma dimensão que pode ter um resultado positivo ou negativo. A sociedade
alemã, no início da década de 1930, em profundo estado de anomia, com a economia desor-
ganizada, as instituições políticas enfraquecidas e a disputa radical entre os valores da esquerda
e da direita, tornou-se receptiva aos valores defendidos pelo Partido Nazista personificados no
seu líder, Adolf Hitler.
Quando os indivíduos vivem uma situação de anomia, perdem o sentido de pertencer ao grupo.
As normas do grupo não dirigem seu comportamento e, por algum tempo, não encontram nenhuma
norma que as substitua. Não abandonam totalmente as normas da sociedade, mas afastam-se, e
não se identificam com as demais normas.
Não podemos afirmar que anomia seja sinônimo de ausência de lei, embora aqueles que pos-
suam uma conduta anômica possam violar a lei.
Nos campos de concentração nazistas, muitos prisioneiros viviam em condições de anomia,
como mostra o Quadro 7.6; era como se um indivíduo anômico tivesse perdido o passado, não
previsse qualquer futuro e vivesse somente no presente imediato, o qual parece ser nenhum lugar.

Quadro 7.6 Confinamento e anomia


As pessoas que sobreviveram aos campos de concentração nazistas teste­munharam que, enquanto
encarceradas, elas estavam em um estado que poderia ser considerado de extrema anomia. Ao entrarem
nos campos, elas mantiveram os seus valores habituais, incluindo um sentimento de íntima identificação
com seus camaradas sofredores. Elas se tratavam com compaixão, cooperavam para tapear os guardas e
não se roubavam uns aos outros. Pouco a pouco, porém, algumas delas mudavam. Impelidas pela privação,
saúde precária, tortura e ameaça de exterminação, elas passavam a violar as normas que prezavam gran-
demente à época da admissão. Algumas roubavam dos seus camaradas; algumas informavam sobre os
prisioneiros que tinham violado os regulamentos; outras buscavam privilégios especiais colaborando com
os seus captores, de um modo ou de outro.
Estes desertores se afastaram dos seus colegas prisioneiros, não tanto física como espiritual e psiqui-
camente. Eles sabiam que não pertenciam àquele mundo, mas não tinham nenhum outro mundo no qual
participar. Eles abandonaram as normas às quais eles tinham anteriormente subscrito, mas eles não tinham
nenhum sistema de normas substitutivas que fosse consistente, amplo ou conscientemente reorganizado
e aceito. Não mais eram compassíveis em relação aos seus colegas, mas também não os odiavam. Eles
simplesmente não tinham nenhum sentimento, assim dizendo, para com eles ou a respeito deles. O com-
portamento atual não era nem “bom” nem “ruim”, era simplesmente um comportamento de sobrevivência.
Simplesmente era.
Fonte: DRESSLER e WILLIS JR. (1980, p. 160).

Nesse sentido, o cientista social deveria estudar esses problemas sociais buscando elaborar
novas regras sociais. Mas esses problemas, na leitura de Durkheim, deveriam ser estudados
como “coisas”, ou seja, o pesquisador deveria analisá-los de uma forma neutra, não se posi‑
cionando a favor ou contra, sendo que seu objetivo seria o de buscar compreender o funciona­
mento “normal” da sociedade, identificando os “sintomas” que estão levando a sociedade a
ficar em estado de anomia, “indicando” um tratamento para a sociedade.

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Para analisar os problemas sociais, além de compreendê-los como coi­s as, Durkheim
coloca que a sociologia deveria estudar os fatos sociais que acontecem em nossa sociedade.
Contundo, para compreendermos esses fatos sociais, deveríamos nos ater a três características
essenciais: coercitividade, exterioridade e generalidade.
Durkheim afirma que os fatos sociais, ou seja, o objeto de estudo da
sociologia, são justamente essa regras e normas coletivas que orientam
a vida dos indivíduos em sociedade. Tais fatos sociais são diferentes dos
fatos estudados por outras ciências por terem origem na sociedade, e
não na natureza (como nas ciências naturais) ou no indivíduo (como
na psicologia) (TOMAZI, 2000, p. 17).

A primeira característica que se refere ao fato social é a coercitividade. Durkheim coloca


que todo fato social é coercitivo, ou seja, exerce uma determi­nada força sobre o indivíduo,
obrigando-os a se adaptar às regras da sociedade em que vivem, deixando os indivíduos em
segundo plano. Essa coerção pode ser uma coerção física (a polícia muitas vezes usa da coerção
física para valer uma regra) ou uma coerção psicológica (sabemos que, se não cumprirmos as
regras estabelecidas pela sociedade, poderemos ser punidos). Um ponto interessante dessa
questão, é que se começarmos a refletir sobre a nossa sociedade, muitas ações do nosso dia
a dia, que pensamos ser fruto da nossa vontade, das nossas escolhas enquanto indivíduo, são
socialmente constituídas.
A segunda característica do fato social é a exterioridade. Muitos dos fenô­m enos que
acontecem em nossa sociedade são colocados como exteriores ao indivíduo, existem e atuam
independentemente da vontade do mesmo, sendo impostos por mecanismos sociais. Quando o
indivíduo nasce, a sociedade já está estruturada, com suas leis, seu padrão econômico, político
e cultural, cabendo ao indivíduo agir conforme os padrões instituídos socialmente. “As regras
sociais, os costumes, as leis, já existem antes do nascimento das pessoas, são a elas impostas
por mecanismos de coerção social, como a educação [por exemplo]” (COSTA, 2002, p. 60).
A última característica do fato social é a generalidade. É social todo o fato que é geral,
que se repete em todos os indivíduos ou, pelo menos, na maioria deles. Podemos chegar à
conclusão que só é fato social aquilo que se refere a um grupo de pessoas, aquilo que atinge
uma coletividade (COSTA, 2002, p. 60).
Bom, até aqui vimos que a sociedade é que estabelece regras e normas para que os indi‑
víduos as sigam, e que os problemas devem ser estudados como fatos sociais.
Apesar de todos os problemas existentes, Durkheim tinha uma visão oti­mista da socie‑
dade capitalista emergente, principalmente porque ela, segundo o autor, desenvolveu novas
relações que permitiram maior integração dos indivíduos com a sociedade, gerando novos
laços de solidariedade.
Para ele, o capitalismo trazia em seu interior um processo de crescente especialização
do trabalho: as pessoas eram levadas a especializar-se numa área ou num assunto, não sendo
possível que elas dominassem plenamente todos os assuntos, ou soubessem desempenhar
todas as profissões na so­c iedade. Assim, essa especialização do trabalho acabava provo‑
cando uma relação de interdependência entre os indivíduos, que deveriam cada vez mais
se relacionar de forma complemenmtar. Esse tipo de solidariedade, Durkheim chamou de
solidariedade orgânica.
[...] aquela típica das sociedades capitalistas, onde, pela acelerada
divisão do trabalho social, os indivíduos se tornam interdependentes
[...] que garante a união social, em lugar dos costumes, das tradições ou
das relações sociais es­treitas. Nas sociedades capitalistas, a consciência
coletiva se afrouxa. Assim, ao mesmo tempo em que os indivíduos são
mutuamente dependentes, cada qual se especializa numa atividade e
tende a desenvolver maior autonomia pessoal (COSTA, 2002, p. 64).

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A solidariedade orgânica substitui a solidariedade mecânica, onde existe pouca divisão


do trabalho, onde os indivíduos são mais autônomos, sendo os laços de solidariedade estabe‑
lecidos pela tradição, pelos costumes, pelos hábitos arraigados.
[...] aquela que predominava nas sociedades pré-capitalistas, onde os
indiví­duos se identificavam por meio da família, da religião, da tradição
e dos costumes, permanecendo em geral independentes e autônomos
em relação à divisão do trabalho social (COSTA, 2002, p. 64).

O interessante é perceber que, mesmo com o capitalismo avançado, ainda existem pessoas
que se relacionam através da solidariedade mecânica. Basta você olhar como as pessoas se
relacionam em cidades pequenas, sendo a tradição e os costumes que estabelecem os laços
de solidariedade entre os indivíduos.
Como vimos até aqui na teoria positivista de Durkheim, a sociedade é que estabelece o
modo de ser e de viver dos indivíduos. Para que isso acon­teça, é necessário o estabelecimento
de uma consciência coletiva, o que garantiria a coesão social, principalmente através de san‑
ções e punições estabelecidas pela sociedade. Independentemente da consciência de cada
indivíduo, existe a consciência coletiva (superior a todos), que é responsável pela criação,
execução e fiscalização de um conjunto de normas, valores que seriam defendidos por todos
em sociedade.
A consciência coletiva é objetiva, isto é, não vem de uma só pessoa
ou grupo, mas está difusa (espalhada) em toda a sociedade e, por
isso, ela é exte­r ior ao indivíduo, quer dizer, a consciência coletiva
não é o que um indivíduo pensa, mas é o que a sociedade pensa.
Por isso a consciência coletiva age sobre o indivíduo de forma
coercitiva, isto é, exerce uma autoridade sobre o modo de como o
indivíduo deve agir no seu meio social (MEKSENAS, 1994, p. 65).

Para saber mais


A consciência coletiva é um elemento necessário na leitura de Durkheim para o desenvolvimento
da sociedade. Por exemplo, a necessidade de construir uma cons­ciência coletiva sobre a impor-
tância da escola e da educação para os indivíduos. Sendo assim, esta instituição torna-se una-
nimidade entre os indivíduos.

Durkheim acredita que a sociedade estabelece os caminhos que cada indi­v íduo deve
trilhar, no sentido de tentar manter a ordem e buscar o progresso. Nesse contexto, a edu‑
cação e a escola têm o papel de socializar os indivíduos para que ele se desenvolva (so‑
cialmente, profissionalmente...) dentro dos padrões preestabelecidos a seu grupo social,
ou seja: socializar-se é aprender a ser membro da sociedade, e aprender a ser membro da
sociedade é aprender o seu devido lugar nela. Só assim, é possível preservar a so­c iedade
(RODRIGUES, 2000, p. 33).

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Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar nosso conhecimento sobre esses aspectos do pensa­m ento de
Durkheim, leia a seguir um texto extraído do livro de Meksenas (1988, p. 71-78).

A concepção funcionalista de sociedade;


o Positivismo de Émile Durkheim
1. Émile Durkheim: vida e obra
Em 15 de abril de 1858, nasce Émile Durkheim na pequena cidade francesa conhecida pelo
nome de Épinal. Descendente de uma família de rabinos, os valores de seu lar eram muito tradicio-
nais: respeito e obediência às ordens do chefe da família eram leis sagradas.
Perdeu seu pai quando ainda era garoto. Tal acontecimento iria influir muito em sua vida,
pois, como filho mais velho, tornou-se ele o chefe da família. É preocupado com sua nova res-
ponsabilidade e com as questões financeiras da família que se prepara para o concurso de entrada
na Escola Normal.
Vivendo numa época de mudanças, onde a nascente sociedade capitalista acabava de destruir
as velhas instituições feudais e impunha os novos valores burgueses, Durkheim afirmará sua preo-
cupação com o estabelecimento da nova ordem social.
A época em que iniciou seus estudos na Universidade é também a época em que se começam
a ensinar as Ciências Naturais (Biologia, Física e Química). Tendo amplo conhecimento dessas disci-
plinas, passa a enxergar a sociedade de uma forma peculiar: para ele, a sociedade como um imenso
corpo biológico que precisa ser bem observado, para, em seguida conhecer-se sua anatomia e aí
descobrir as causas e as curas de suas doenças.
Durkheim foi muito influenciado pelas obras de Augusto Comte e Herbert Spencer, que foram
os iniciadores do Positivismo. Recém-formado, começa a dar aulas na Universidade de Bordéus,
lecionando Ciência Social e Pedagogia; é, porém, em 1902, aos 44 anos de idade, que começa a
lecionar numa das mais importantes universidades da França e de toda a Europa: a Sorbonne. E será
ainda como professor da Sorbonne que fundará a Cadeira Universitária de Sociologia; assim, é
através de Durkheim que a Sociologia torna-se disciplina obrigatória no ensino de Ciências Huma-
nas nos cursos universitários.
Ao longo de sua vida, Durkheim formou vários discípulos, quo continuariam sua obra, sendo que,
em 1897, foi o responsável pela criação da revista “L’Anné Sociologique”, uma das primeiras publi-
cações especializadas na área de Sociologia e que reunia em torno de si famosos cientistas sociais.
Durkheim sempre lutou para provar que a Sociologia é uma ciência e que, por isso, deve ser
NEUTRA diante dos fatos sociais, isto é, que a Sociologia não deve envolver-se com a Política. Assim,
para Durkheim, toda reforma social deve estar baseada primeiramente no conhecimento prévio e
científico da sociedade, e não na ação política.
Quando criança, Durkheim presenciou um Movimento dos Trabalhadores que ficou conhecido
como “A COMUNA DE PARIS”; isso foi em 1871, quando os trabalhadores uniram-se contra a
exploração que sofriam nas fábricas e tomaram conta da cidade de Paris. Foi instituído o primeiro
governo dos trabalhadores e a primeira tentativa de implantação do socialismo (sociedade sem
classes). No entanto, passadas algumas semanas, a Comuna de Paris foi massacrada pelos burgue-
ses. Milhares de trabalhadores que lutavam por seus direitos foram mortos. Isso fez com que
Durkheim acreditasse que através da violência não se combate a violência e nem se pode criar uma

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nova sociedade. Para ele, os problemas sociais entre trabalhadores e empresários teriam que ser
resolvidos dentro da ordem e do progresso.
Um outro conflito social que abalou muito a Durkheim foi a Primeira Guerra Mundial, de 1914
a 1918. Ele tinha, então, 56 anos, e era um sociólogo mundialmente famoso. A morte de seu filho,
na guerra, e a de seus melhores amigos fizeram com que ficasse emocionalmente muito abalado.
A 15 de dezembro de 1917, Durkheim veio a falecer na cidade francesa de Fon tainebleau.
Principais obras:
A divisão do trabalho social, 1893
As regras do método sociológico, 1895
O suicídio, 1897
As formas elementares da vida religiosa, 1912
Lições de sociologia, 1912
Educação e sociologia
A educação moral, 1912

2. Os conceitos básicos do positivismo


A sociologia desenvolvida por Durkheim tenta compreender o capitalismo; para conseguir isso,
Durkheim desenvolve uma série de conceitos ou, dizendo de outra maneira, uma teoria. E o que
seria um CONCEITO?
PODEMOS DEFINIR CONCEITO COMO SENDO UM CONJUNTO DE
IDEIAS DESENVOLVIDAS A PARTIR DA NOSSA INTELIGÊNCIA E QUE
TEM POR OBJETIVO EXPLICAR UM FENÔMENO QUALQUER.

Assim sendo, quando afirmamos que Durkheim desenvolve sua teoria a partir de certos con-
ceitos, isso quer dizer que, ao observar, classificar e entender um fenômeno (no caso, a socie dade
capitalista), Durkheim acaba por desenvolver um conjunto de ideias a respeito desse fenômeno,
ideias contidas dentro de um ou vários conceitos.
Por isso, ao conhecer a teoria de Durkheim, vamos conhecer um conjunto de palavras novas
que foram criadas por ele para explicar o capitalismo. Essas palavras criadas por Durkheim são os
conceitos que formam sua teoria. E quais são estes conceitos? São eles:
CONSCIÊNCIA COLETIVA, DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL, SOLIDA-
RIEDADE MECÂNICA, SOLIDARIEDADE ORGÂNICA, CASO PATOLÓ-
GICO E ANOMIA.

A partir deste momento, vamos discutir cada um desses conceitos e ver como, a partir deles,
Durkheim tenta compreender o capitalismo.

Consciência coletiva
Por esse termo, Durkheim traduz a ideia do que seja o psíquico-social. Cada indivíduo tem uma
“psique”, isto é, um jeito de pensar e agir, de entender a vida. Assim, cada um de nós possui uma
CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL que faz parte de nossa personalidade. Esta, porém, não é a única forma
de consciência: existe também aquela formada pelas ideias comuns que estão presentes em todas
as consciências individuais de uma sociedade.
Essas ideias comuns formam a base para uma consciência de sociedade: uma primeira cons-
ciência que determina a nossa conduta e que não é individual, mas social e geral, denominada
por Durkheim de Consciência Coletiva.
COMO ESSA CONSCIÊNCIA COLETIVA APARECE NA SOCIEDADE?
COMO ELA SE MANIFESTA EM NOSSAS VIDAS?

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Podemos responder a esta questão afirmando que a consciência coletiva é OBJETIVA, isto é,
ela não vem de uma só pessoa ou grupo, mas está difusa (es­palhada) em toda a sociedade, e, por
isso, ela é EXTERIOR AO INDIVÍDUO, quer dizer, a consciência coletiva não é o que um indivíduo
pensa, mas é o que a “so­ciedade pensa”. Por isso, a consciência coletiva age sobre o indivíduo de
forma COERCITIVA, isto é, exerce uma autoridade sobre o modo de como o indivíduo deve agir no
seu meio social.
Vemos com isso que a consciência individual não determina as ações de uma pessoa; ao
contrário, será a consciência coletiva que irá impor as REGRAS SOCIAIS de uma sociedade; isto,
porque, ao nascer, o indivíduo já encontra a sociedade pronta constituída em suas leis. Assim, o
Direito, os costumes, as crenças religiosas, o sistema financeiro não são criados pelo indivíduo,
mas pelas gerações passadas, sendo transmitidas às novas através do processo da educação. Por
exemplo: na sociedade em que vivemos, se alguém sair à rua sem roupas irá provocar imedia­
tamente uma reação da sociedade contra si, pois, a partir desse momento, poderá ser taxado de
maníaco e até ser preso; isso, devido à ação da consciência coletiva que, presente em nossa so-
ciedade, proíbe-nos de andar nus.
Durkheim nos oferece vários outros exemplos neste sentido: “[...] não sou obri­gado a falar o
mesmo idioma que meus companheiros de pátria, nem empregar as moedas legais; mas é impos-
sível agir de outra maneira. Minha tentativa fracassaria lamentavelmente se procurasse escapar desta
sociedade. Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos técnicos do século
passado; mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável. Mesmo quando, posso realmente
libertar-me destas regras e violá-las com sucesso, vejo-me obrigado a lutar contra elas [...]” (In: As
regras do método sociológico).
Vimos acima vários exemplos do controle que a consciência exerce sobre o indivíduo. TENTE,
INDIVIDUALMENTE, DESCOBRIR OUTROS EXEMPLOS DE COMO A CONSCIÊNCIA COLETIVA EXERCE
UM CONTROLE SOBRE AS NOSSAS VI DAS. Pense um pouco e você irá descobrir vários exemplos
do nosso dia a dia.

Divisão do trabalho social


Outro conceito importante para entendermos a teoria de Durkheim; ele de­finia este termo
como sendo a especialização das funções entre os indivíduos de uma sociedade.
O Positivismo tenta entender o funcionamento da sociedade capitalista da mesma forma que
a Biologia entende o funcio namento de um corpo animal, isto é, Durkheim achava que, ao desen-
volver-se, a sociedade ia multiplicando-se em atividades a serem realizadas; a partir daí, cada indi-
víduo teria uma função a cumprir, a qual seria importante para o funcionamento de todo o corpo
social. Em suas palavras “[... ] as funções políticas, administrativas, judiciárias, especializam-se cada
vez mais. O mesmo acontece com as funções artísticas e científicas” (In: A divisão do trabalho social).
De acordo com Durkheim, cada membro da sociedade, de senvolvendo uma atividade útil e
especializada, PASSA A DEPENDER CADA VEZ MAIS DOS OUTROS INDIVÍDUOS, isto é, com a so-
ciedade progredindo, surgem novas atividades; estas, por sua vez, tornam-se divididas. Por exemplo,
o marceneiro, para fazer uma mesa, depende do lenhador que corta a árvore, depende do motorista
que transporta a madeira, depende do operário que prepara o verniz, depende daqueles que fabri-
cam pregos, martelos e serrotes etc. Assim, também o músico que depende daquele que faz seu
instrumento, depende daquele que faz o teatro para o público que assiste a ele, e assim por diante.
Com isso, o efeito mais importante da DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL não é apenas seu as-
pecto econômico (aumento da produtividade), mas também tornar possível a união e a SOLIDARIE-
DADE entre as pessoas de uma mesma sociedade.

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Da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica


Durkheim acentuava que nas sociedades anteriores ao capitalismo, isto é, nas sociedades tribal
e feudal, a divisão do trabalho social era pouco desenvolvida, não havia um grande número de
especializações das atividades sociais.
Na sociedade feudal, por exemplo, vimos que a produção dos bens de consumo era realizada
pelo trabalho artesanal e isso implicava o fato de que uma só pessoa fizesse aquilo de que neces-
sitava, sem depender de outras pessoas. Ao fazer uma mesa, o servo só dependia de seu trabalho
individual e isolado. Ao contrário, na sociedade capitalista, as atividades são muito divididas, sendo
que para fazer uma mesa o marceneiro depende do trabalho de outras pessoas.
Nas sociedades tribal e feudal, as pessoas não se unem porque uma depende do trabalho da
outra, e, sim, são unidas por uma religião, tradição ou sentimento comum a todos.
ESTA UNIÃO DAS PESSOAS A PARTIR DA SEMELHANÇA NA RELI-
GIÃO, TRADIÇÃO, OU SENTIMENTO É O QUE DURKHEIM CHAMA
DE SOLIDARIEDADE MECÂNICA.

A SOLIDARIEDADE ORGÂNICA, ao contrário, aparece quando a divisão do trabalho social


aumenta, e aí, como vimos, o que torna as pessoas unidas não é uma crença comum a todos, mas
uma interdependência das funções sociais.
A UNIÃO DAS PESSOAS A PARTIR DA DEPENDÊNCIA QUE UMA TEM
DA OU­TRA PARA REALIZAR ALGUMA ATIVIDADE SOCIAL É O QUE
DURKHEIM CHAMA DE SOLIDARIEDADE ORGÂNICA.

Podemos tornar estes conceitos mais fáceis de serem entendidos a partir de um exemplo:
imaginemos um professor que necessite formar grupos para desen­volver o tema da aula. O profes-
sor pode querer a formação dos grupos a partir de dois critérios: ele pode pedir nos alunos que
formem grupos livremente, a partir da AMIZADE existente entre eles. Uma segunda opção é pedir
aos alunos para formarem grupos de forma que em cada um dos grupos fique uma pessoa que
saiba DATILOGRAFIA, uma outra que saiba DESENHAR, outra que tenha experi­ência de REDAÇÃO,
e, por fim, uma que domine bem o conteúdo das aulas que seja o COORDENADOR do grupo.
No primeiro caso, o que uniu os alunos no grupo foi um SENTIMENTO, a Amizade, de onde
teríamos a SOLIDARIEDADE MECÂNICA. No segundo caso, o que uniu os alunos em grupo foi a
dependência que cada um tinha da atividade do outro: a união foi dada pela especialização das
funções, de onde teríamos a SOLIDARIEDADE ORGÂNICA.
DURKHEIM ADMITE QUE A SOLIDARIEDADE ORGÂNI CA É SUPERIOR
À ME­CÂNICA, POIS AO SE ESPECIALIZAREM AS FUNÇÕES, A INDI-
VIDUALIDADE, DE CERTO MODO, É RESSALTADA, PERMITINDO
MAIOR LIBERDADE DE AÇÃO.

O que significa afirmar que a solidariedade orgânica dá liberdade ao indivíduo?


Vimos, anteriormente, que a nossa conduta na sociedade é orientada pela CONSCIÊNCIA
COLETIVA, isto é, não fazemos o que queremos e, sim, o que as normas sociais permitem. Desta
forma, a consciência coletiva é coercitiva. No entanto, a partir do momento em que as atividades
sociais são muito di­vididas, as pessoas passam a depender uma das outras e ao mesmo tempo, cada
uma, ao especializar-se na atividade que realiza, passa a desenvolver a sua individualidade.
Nas palavras de Durkheim, “[...] é preciso que a consciência coletiva deixe descoberta uma
parte da consciência individual, para que, nesta parte, se esta­beleçam os funções que ela (cons­
ciência coletiva) não pode regulamentar [...] De fato (com a divisão do trabalho social) cada um
depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido for o trabalho; por outro
lado, a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais ela for especializada” (In: Divisão
do trabalho social).

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Voltemos ao exemplo do professor que forma grupos de pesquisa em sala de aula: no grupo
formado por amigos, pode acontecer que um elemento discorde muito das opiniões de outro; este
fato pode trazer um conflito que põe em risco a existência do grupo. Nesse caso, os elementos devem
agir de acordo com as ideias comuns do grupo, e não a partir das suas próprias ideias. Já no grupo
onde a união dá-se pela atividade especializada, a individualidade é ressaltada, pois, dentro da sua
atividade, cada um age como bem entende, e aí a divergência de opiniões não põe em causa a exis-
tência do grupo.

A sociologia diante do caso patológico e da anomia


Como já foi dito, Durkheim viveu numa época de grandes conflitos sociais entre a classe
dos empresários e a classe dos trabalhadores. É também uma época em que surgem novos
problemas sociais como favelas, suicídios, poluição, desem­prego etc. No entanto, o crescente
desenvolvimento da indústria e tecnologia fez com que Durkheim tivesse uma visão otimista
sobre o futuro do capitalismo. Ele pensava que todo o progresso desencadeado pelo capitalismo
traria um aumento generalizado da divisão do trabalho social e, por consequência, da solida-
riedade orgânica, a ponto de fazer com que a sociedade chegasse a um estágio sem conflitos
e problemas sociais.
Com isso, Durkheim admitia que o capitalismo é a sociedade perfeita; trata-se apenas de co-
nhecer os seus problemas e de buscar uma solução científica para eles. Em outras palavras, a socie-
dade é boa, sendo necessário, apenas, “curar as suas doenças”.
Tal forma de pensar o progresso de um jeito positivo fez com que Durkheim concluísse que
os problemas sociais entre empresários e trabalhadores não se re­solveriam dentro de uma LUTA
POLÍTICA, e, sim, através da CIÊNCIA, ou melhor, da SOCIOLOGIA. Esta seria, então, a tarefa
da SOCIOLOGIA:
COMPREENDER O FUNCIONAMENTO DA SOCIEDADE CAPITALISTA
DE MODO OBJETIVO PARA OBSERVAR, COMPREENDER E CLASSIFI-
CAR AS LEIS SOCIAIS, DES­COBRIR AS QUE SÃO FALHAS E CORRIGI-
-LAS POR OUTRAS MAIS EFICIENTES.

Assim, Durkheim acreditava que a sociedade, funcionando através de leis e regras já determi-
nadas, faria com que os problemas sociais não tivessem sua ori­gem na economia (forma pela qual
as pessoas trabalham), mas sim numa CRISE MORAL, isto é,
NUM ESTADO SOCIAL EM QUE VÁRIAS REGRAS DE CONDUTA NÃO
ESTÃO FUNCIONANDO.

Por exemplo: se a criminalidade aumenta a cada dia é porque as leis que regu­lamentam o
combate ao crime estão falhando, por serem mal formuladas. A este estado de crise social onde as
leis não estão funcionando, Durkheim denomina CASO PATOLÓGICO.
Por outro lado, os problemas sociais podem ter sua origem também na AU­SÊNCIA DE REGRAS,
o que por sua vez se caracterizaria como ANOMIA.
Frente ao CASO PATOLÓGICO (regras sociais falhas), cabe à Sociologia captar suas causas,
procurando evitar a ANOMIA (crise total), através da criação de uma NOVA MORAL SOCIAL QUE
SUPERE A VELHA MORAL DEFICIENTE.
Por ter essa confiança de que num futuro breve a sociedade capitalista eli­minaria, através da
ciência, dentro da ordem e do progresso, todos os seus pro­blemas, sua forma de pensar era CON-
SERVADORA. O que significa uma pessoa ser conservadora?

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30  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

É ACREDITAR QUE A SOCIEDADE ATUAL NÃO DEVE SER MUDADA,


QUE AS COI­SAS DEVEM PERMANECER COM ESTÃO. É TER RECEIO
DE QUALQUER TRANSFOR­MAÇÃO SOCIAL. POR FIM, É ADMITIR
QUE OS PROBLEMAS SOCIAIS CRIADOS PELO CAPITALISMO SERÃO
RESOLVIDOS DENTRO DO PRÓPRIO CAPITALISMO.

E pelo fato de Durkheim ser uma pessoa conservadora é que vamos encontrar na sua teoria
um certo apoio à sociedade capitalista.

A sociologia e o Estado
“[...] O Estado é um órgão especial, encarregado de elaborar certas repre­sentações que valem
para a coletividade. Estas, representações se distinguem das outras representações coletivas por
grau mais alto de consciência e de reflexão. [...] O Estado é, para falar com rigor, o órgão mesmo
do pensamento social. Nas condições presentes, esse pensamento está voltado para um fim prático
[...] O Estado, ao menos em geral, não pensa por pensar, para constiuir sistemas de doutrinas, e,
sim, para dirigir a conduta coletiva” (In: Lições de sociologia).
Como interpretar esta definição de Estado? Partindo do ápio de que a socie­dade capitalista
foi concebida por Durkheim como um corpo que, às vezes, fica doente, para esse corpo, funcio-
nar bem, depende de que todas as suas partes estejam funcionando harmonicamente. A respon-
sabilidade de desenvolver o funcionamento harmônico de todas as partes da socie dabe ao Estado.
Em outras palavras,
A SOCIEDADE É O CORPO, O ESTADO É O SEU CÉREBRO E POR ISSO
TEM A FUNÇÃO DE ORGANIZAR ESSA SOCIEDADE, REELABORANDO
ASPECTOS DA CONSCIÊNCIA COLETIVA.

Vimos que a sociedade capitalista está cheia de problemas, Durkheim admitia que o Estado é
uma Instituição que tem o dever de elaborar leis que corrijam os casos patológicos da sociedade.
Em resumo:
CABE À SOCIOLOGIA OBSERVAR, ENTENDER E CLASSIFICAR OS
CASOS PATO­LÓGICOS, PROCURANDO CRIAR UMA NOVA MORAL
SOCIAL, CABE AO ESTADO COLOCAR EM PRÁTICA OS PRINCÍPIOS
DESSA NOVA MORAL.

Neste contexto, a Sociologia e o Estado complementam-se na organização da sociedade para,


na prática, evitarem os problemas sociais. Isso levou Durkheim a acre­ditar que os sociólogos deves-
sem ter uma participação direta dentro do Estado.
Extraído do livro Aprendendo sociologia: a paixão de conhecer de Paulo Meksenas,
São Paulo: Edições Loyola, 1985.

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A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a   31

2.2.1 Durkheim e a educação


Como na concepção durkheiminiana a educação é um forte instrumento de coesão social,
cabe ao Estado ofertá-la e supervisioná-la, instituindo os princí­pios básicos para a concretização
da moral da sociedade, que através da escola seriam
transmitidos às crianças e aos jovens. Podemos dizer
Para saber mais que é na escola que aprendemos a nos tornar membros
da sociedade, sendo que é dentro dela que passamos
grande parte de nossas vidas nos socializando com
Para saber mais sobre a discussão de
outros indivíduos.
Durkheim e a educação, leia Educa- Nesse sentido, podemos perceber que a visão de
ção e sociologia, Editora Melhora- Durkheim da sociedade e da função que a educação
mentos. Esse livro de Émile Durkheim exerce sobre ela é formar indivíduos que se adaptem
à estrutura social vigente, instituindo os ca­m inhos e
aborda a questão da natureza peda-
normas que cada um deve seguir, tendo sempre como
gógica da educação e seu caráter horizonte a instituição e manutenção da ordem social.
social, seus fins e meios. Um outro Durkheim, o positivismo e seus con­ceitos têm uma
livro sobre a leitura da educação na leitura de que a sociedade capitalista está em primeiro
visão de Durkheim é A evolução pe- plano, e o in­divíduo deve a todo o momento adaptar-se
e cumprir as regras estabelecidas, visto que um indiví‑
dagógica, da Artmed. duo só tem valor se estiver inse­rido no contexto social,
sendo a sociedade que confere sentido a sua existência.

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32  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

  Seção 3 Karl Marx e Friedrich Engels:


“sociologia crítica” —
materialismo histórico dialético

3.1 M
 arx e sua leitura sobre o processo de
transformação da sociedade
Marx e Engels são pensadores importantíssimos para a realidade social, pois suas abor‑
dagens perpassam por questões econômicas, políticas, sociais, ideológicas e culturais, sendo
importante discutir que toda sua leitura está pautada na transformação da realidade social,
instituindo uma nova socie­d ade, ou seja, o socialismo.
Essa nova sociedade é chamada socialista, pois propunha uma sociedade sem classes so‑
ciais e desigualdade social. Socialismo é um regime político e econômico em que não existe
a propriedade privada nem as classes so­c iais. Todos os bens seriam de todas as pessoas e não
poderia haver diferenças econômicas entre os indivíduos. Existiria um governo (ditadura do
proletariado) que instituiria determinadas leis sociais para a totalidade dos indivíduos. Hoje,
contamos com a existência do Estado para defender os interesses dos traba­lhadores, pois
o pensamento nos padrões do capital ainda se faz presente, sendo necessário um período
de transição e formação do sujeito dentro de novos
padrões econômicos, políticos, ideológicos e cultu‑
Links rais. O socialismo é um processo de transição para o
comunismo, no qual todos os processos de divisão,
Um site interessante e que aborda inclusive do poder na figura do Estado, deixariam de
existir, pois todas as decisões seriam tomadas pela
a biografia de Marx é <www.verme- totalidade dos sujeitos.
lho.org.br/img/obras/karl.asp>. Vale O processo de transição da socie­d ade se daria,
a pena dar uma conferida. segundo Marx e Engels, por meio da classe trabalha‑
dora. É nesse sentido que eles realizaram a leitura da
sociedade capitalista tendo como pano de fundo a
divisão das classes sociais e a permanente luta entre
elas, denominada luta de classes.
Consideravam que o conhecimento poderia ser
Links um instrumento na luta dos trabalhadores por mu‑
danças na estrutura econômica capitalista, que era
Um site interessante que aborda injusta e desigual. Nesse contexto, enfatizaram o
essa questão é: <educacao.uol.com. papel dos tra­b alhadores no processo de superação
br/historia/ult1690u11.jhtm>. A ex- do modo de produção capitalista e na implantação
plicação está bem clara! de uma nova sociedade — inicialmente socialista e
em seguida comunista.

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A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a   33

Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar o conhecimento sobre essa questão, leia a seguir um texto extraído
do livro Sociologia, de Meksenas (1988, p. 55-61). O texto mostra o processo de de‑
senvolvimento do modo de produção capitalista dentro de uma perspectiva histórica.

A manufatura, a fábrica e o mundo urbano


A economia de mercado anterior ao capitalismo
A economia de mercado é muito antiga. Desde os pródromos da história, diferentes socie-
dades organizaram sua vida econômica sob a forma de produção especializada de bens que eram
intercambiados em feiras sazonais ou mercados permanentes. Nas formações sociais anteriores
ao capitalismo, a economia de mercado soía coexistir com uma economia de subsistência mais
ou menos extensa. Alguns bens eram produzidos como mercadorias, e muitos outros eram pro-
duzidos como valores de uso, para o consumo dos próprios produtores ou de outros membros de
seu círculo doméstico.
O camponês medieval, por exemplo, produzia sua alimentação, manufaturava seus instru-
mentos de trabalho, construía sua casa, estábulo, celeiro etc. Não poucas vezes produzia fibras
vegetais e animais, que fiava e tecia, fabricando vestuário, roupa de cama, sacaria etc. Os nobres,
naturalmente, não faziam nada disso, mas tinham, em seus domínios, servos que lhes forneciam
diretamente, sem contrapartida, isto é, como valores de uso, alimentos e muitos objetos. A pro-
dução mercantil soía concentrar-se em objetos de luxo (joias, armas, carruagens, arreios, vestuá-
rio de luxo etc.) para o consumo, sobretudo, da minoria privilegiada.
No Brasil, a economia de mercado se achava sitiada por amplo setor de subsistência praticamente
até o começo do atual século. Na fazenda distinguia-se a produção para o mercado (o cultivo de
café, cacau, cana, algodão ou a criação de gado) da ampla e diversificada produção de subsistência.
Além de horta, pomar, plantações de cereais, criação de pequenos animais, a fazenda contava com
oficinas em que se trabalhava madeira, couro, fibras, metais, barro etc. O consumo de mercadorias,
na fazenda, era muito limitado, reduzido a materiais não encontrados localmente e a objetos sofis-
ticados, em geral impor tados. Nas choupanas dos caboclos e nas vilas do interior, a presença da
economia de mercado ainda era mais restrita. A economia de mercado ocupava um espaço maior
nas grandes cidades, mas, mesmo aí, era comum que a maioria das famílias criasse galinhas, culti-
vasse árvores frutíferas e fabricasse, em casa, vestuário, roupa de cama e mesa, conservas etc.
A vida das pessoas dependia apenas parcialmente do mercado; seu consumo básico estava
ligado à economia doméstica. Em consequência, os padrões de consumo eram bastante rígidos em
quantidade e qualidade. O dinheiro era im­portante sobretudo para adquirir bens de ostentação. Ele
estava longe ainda de representar a riqueza em geral. Para a grande massa do povo, as necessida-
des a serem satisfeitas mediante o dinheiro eram limitadas e, por isso, a necessidade de dinheiro
também o era. Para muitos, um trabalho remunerado ocasional bas­tava. O tempo dedicado a ganhar
dinheiro devia ser menor do que o dedicado à produção para o autoconsumo e a atividades não
econômicas de cunho religioso, recreativo etc.
A produção para o mercado era artesanal, realizada em unidades pequenas, em geral por um
número reduzido de pessoas, muitas vezes ligadas por laços de parentesco. Os regimes de mercado
eram muito diversos, mas o mais comum era que, em cada cidade ou região, os produtores do
mesmo tipo de produto se orga­nizassem em corporações de ofício, para evitar concorrência mútua.
A corporação limitava o volume de produto, fixando o número de unidades de produção e o número

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34  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

máximo de trabalhadores por unidade. A limitação da oferta se destinava a sustentar um “preço


justo” dos artigos, impedindo que um excesso de oferta o aviltasse. A corporação justificava sua
utilidade para os consumidores, velando pela qualidade dos produtos. Sob este pretexto proibia
inovações técnicas, pois estas tendiam a favorecer determinados mestres em detrimento dos demais.
E pelo mesmo motivo proibia o lançamento de novos produtos, cuja qualidade não era comparável
aos demais.
A organização corporativa era avessa a mudanças, valorizava a tradição e a defesa das vantagens
adquiridas no passado.
Esta economia de mercado, característica da Idade Média, mas que sobrevive nas regiões intoca-
das pelo capitalismo até o presente, apresenta um dinamismo muito limitado. É possível demonstrar
que ela também sofre transformações, geralmente por efeito de catástrofes — guerras externas ou
internas, secas, terremotos, enchentes, epidemias —, mas seu potencial intrínseco de mudança é
extraordinariamente pequeno.

O capitalismo manufatureiro
O capitalismo é uma economia de mercado também, mas de índole comple­tamente diferente.
Ele surge, no século XVI, como fruto da formação do mercado mundial, resultante das Grandes
Navegações. Estas estabeleceram a interligação marítima de todos os continentes e elevaram o
comércio a longa distância a um novo patamar. Acima dos mercados locais e regionais segmentados,
surge um mercado mundial para produtos de grande densidade de valor, como o ouro e a prata, a
pimenta e o açúcar, tecidos de algodão e seda, tabaco, perfumes, pérolas etc. O grande capital
comercial e usurário se lança na expansão deste mercado mundial, levando de roldão as limitações
corporativas preexistentes. O capital, que até então se limitava à circulação de mercadorias e valores,
penetra na produção, tornando-se manufatureira. Surgem, na Europa, empresários capitalistas que
empregam grande número de artesãos e produzem em massa para mercados que crescem sobretudo
pela destruição de barreiras que separavam os mercados locais e regionais.
É claro que o desenvolvimento da navegação marítima e, por consequência, da navegação
fluvial, lacustre e de canais construídos pelo homem, foi condição necessária para esta unificação
de mercados, que constituiu a base do capitalismo manufatureiro. Mas esta condição não era sufi-
ciente. O capital manufatureiro necessitava não só do acesso físico aos mercados mas também do
acesso econô­mico, ou seja, da possibilidade de penetrar neles de fora para vender e comprar. E este
direito feria, obviamente, os interesses dos mestres e comerciantes locais, protegidos pelas regulações
corporativas. O período de desenvolvimento do ca­pitalismo manufatureiro, do século XVI ao século
XVIII, assiste ao embate entre o capital manufatureiro (apoiado, em vários países, pelas monarquias
absolutas) e as corporações, muitas vezes aliadas à nobreza local. Deste embate surgem as nações
modernas, politicamente dominadas pelo poder nacional e economica­mente unificadas pela abo-
lição das barreiras ao comércio interno e pela abolição das moedas e medidas locais. Os símbolos
da nação moderna são, ao lado da bandeira nacional, a moeda nacional de curso forçado e um
sistema único de pesos e medidas, que atualmente tende a ser o sistema métrico decimal.
No Brasil, a luta pela unificação dos mercados foi levada a cabo pela me­trópole portuguesa
nos limites do Pacto Colonial, que propunha o monopólio metropolitano do comércio com a colô-
nia. Um episódio desta luta fui a proibição da manufatura de panos, no Brasil, em 1785. A medida
se destinava a favorecer a importação de tecidos britânicos por capitais comerciais portuguesas.
Deste modo, o capital manufatureiro britânico, mediante os bons ofícios da diplomacia de Sua
Majestade, que tinha feito com Portugal o Tratado de Methuen, ampliava o seu mercado mundial.
Por este Tratado, o mercado português se abria aos tecidos britânicos, e o da Grã-Bretanha aos
vinhos portugueses. Obviamente, não bastava ao capital manufatureiro britânico ter acesso ao
mercado brasileiro. Precisava dominá-lo e para tanto não se hesitava em usar o poder do Estado
para eliminar a concorrência da manufatura local.
Foi também mediante o colonialismo que o grande mercado da Índia foi incor­porado ao mercado
mundial do capital manufatureiro britânico. A Índia possuía uma tecelagem de alto padrão, cujos

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produtos tinham larga aceitação na Europa. O governo colonial inglês conseguiu destruir esta manu-
fatura, assegurando tanto o mercado europeu quanto o da própria Índia aos tecidos britânicos.
De uma forma geral, o avanço do capitalismo manufatureiro foi lento e desi­gual, muito depen-
dente do apoio político de que podia dispor e das vicissitudes das lutas entre as diferentes nações
europeias pelo domínio das vias marítimas e dos mercados coloniais. No século XVIII, sucessivas
guerras resultaram no triunfo da Grã-Bretanha sobre o seu maior rival, a França. Em consequência,
o capita­lismo manufatureiro alcançou maior desenvolvimento na Grã-Bretanha, criando as condições
para a Revolução Industrial, que teve lugar logo a seguir.
O capitalismo manufatureiro foi capaz de explorar, em certa medida, a pos­sibilidade de aumen-
tar a produtividade mediante a produção em grande escala. Reunindo numerosos trabalhadores
sob o mesmo teto, o capitalista manufatu­reiro pôde criar uma divisão técnica de trabalho dentro
da manufatura, o que lhe permitiu alcançar maior produtividade do trabalho. Em lugar de cada
trabalhador realizar todas as operações, cada operação passava a ser tarefa de um grupo específico
de trabalhadores.
Esta nova divisão do trabalho proporcionava três formas de aumento da produtividade:
a) poupava o tempo que o operador perde quando passa de uma tarefa a outra;
b) aumentava a destreza do operador, que passava a se especializar num único tipo de trabalho;
c) ensejava a invenção de ferramentas especialmente adaptadas a cada tipo de trabalho.
A manufatura capitalista conseguiu, deste modo, reduzir os custos de pro­dução, barateando
seus artigos, que começaram a se tornar competitivos com a produção doméstica.
A economia de mercado, ao se tornar capitalista, começou a se expandir pela incorporação de
atividades até então integradas à economia de subsistência. E o que acontece, na Inglaterra, com
a agricultura, que se torna, ao mesmo tempo, mercantil e capitalista. Uma grande parte dos traba-
lhadores é expulsa da terra e, na medida em que consegue alienar sua força de trabalho ao capital
manufatureiro, passa a adquirir sua comida no mercado. Surge assim um mercado de bens para
assalariados como corolário do surgimento de uma classe de proletários puros, totalmente depen-
dentes do mercado para sua subsistência.

O capitalismo industrial
A dinamização da economia de mercado pelo capitalismo ganha impulso enorme com a Re-
volução Industrial, que tem início na Grã-Bretanha, no último quartel do século XVIII. Ela consiste
essencialmente na invenção de máquinas capazes de realizar tarefas que antes requeriam a mão do
homem. Na manu­fatura, a operação é realizada pelo trabalhador com o auxílio da ferramenta. Na
maquinofatura, a ferramenta é engastada numa máquina, que substitui o trabalhador na realização
da tarefa. O trabalhador em vez de produzir passa a ser necessário apenas para regular, carregar e
acionar a máquina e depois para desligá-la, descarregá-la e pô-la novamente em condições de
funcionar. De pro­dutor, o operário é literalmente reduzido a servente de um mecanismo, com cuja
força, regularidade e velocidade ele não pode competir.
A máquina é mais “produtiva” do que o homem porque supera facilmente os limites físicos do
organismo humano. Movida por força hidráulica e pouco depois pela energia do vapor, a máquina
pode dar conta de trabalhos para os quais o homem é fraco demais.
O movimento da máquina é muito mais uniforme do que o do corpo humano, para o qual a
monotonia aumenta a fadiga. Na produção, em grande escala, de objetos iguais, a máquina é muito
superior ao homem. Além disso, ela pode ser acelerada, atingindo velocidades de movimento inal-
cançáveis para o homem.
Por tudo isso, a substituição do homem pela máquina apresenta vantagens inegáveis para o
capital, pela redução do custo de produção que proporciona.
Com a Revolução Industrial, nasce o capitalismo industrial que difere do ca­pitalismo ma-
nufatureiro não só pela técnica de produção mas pela postura que assume perante a economia
de mercado.

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36  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

O capitalismo manufatureiro inspira o mercantilismo: sua estratégia de expansão requer a


unificação do merendo nacional (inclusive o das colônias) e sua dominação mediante o monopólio
político. Ele necessita da intervenção do Estado nacional para eliminar seus rivais do mercado, sejam
estes artesãos locais ou manufatureiros estrangeiros. Segundo a doutrina mercantilista, cabe ao
Estado promover as exportações e limitar as importações, de modo a maximizar o saldo comercial
e deste modo promover a entrada de dinheiro (ouro ou prata) no país, para reforçar o Tesouro real.
O capitalismo industrial por sua vez inspira o liberalismo: sua estratégia de expansão requer a
unificação de todos os mercados, locais e nacionais, sendo a competição livre para todos. Rejeita,
portanto, a intervenção do Estado no mer­cado, mesmo que seja em seu favor. Sua superioridade
produtiva dá-lhe confiança de poder vencer a competição, sem precisar da proteção estatal.
O liberalismo econômico é parte de uma doutrina maior, com desdobramento no nível político.
Ele propunha a liberdade do indivíduo, enquanto cidadão, pro­dutor e consumidor. A famosa pala-
vra de ordem fisiocrata “laissez faire, laissez passer” (deixai fazer, deixai passai) proclama o direito
de cada um produzir o que deseja e de comprar e vender em qualquer mercado. Este direito, no
plano eco­nômico, se conjuga com o direito de livre expressão do pensamento, de reunião e mani-
festação e de participação (mediante o voto) na escolha dos governantes. Estes direitos implicam o
controle do governo pelos cidadãos ou seus representan­tes eleitos, cumprindo notar que o direito
de votar e ser votado estava restrito aos indivíduos detentores de um mínimo de propriedade ou
renda. Não se supunha que a cida dania se estendesse aos pobres.
O liberalismo é o estandarte sob o qual a burguesia luta e conquista a he­gemonia econômica
e política. Na época do capitalismo manufatureiro, a classe capitalista procura um lugar ao sol sob
a tutela do Estado monárquico, que ela não pode encarar como seu. A luta principal se trava entre
a realeza e a nobreza, a primeira procurando centralizar o poder e eliminar os particularismos locais.
Nesta luta, a burguesia usurária, comercial e manufatureira não passa de aliada da monarquia, de
cujos propósitos unificadores se aproveita para se expandir. Com o triunfo do absolutismo e a
constituição dos grandes impérios coloniais, a relação de forças muda. A burguesia, agora industrial,
se torna imensamente rica e passa a enxergar no Estado absolutista um rival na disputa pelo exce-
dente. Já no fim do século XVIII, Adam Smith, o grande clássico do liberalismo, debatera contra o
parasitismo do aparelho de Estado, contra os elevados gastos militares e contra a interferência re-
guladora do governo no funcionamento do mercado. A burguesia quer agora um Estado “seu”,
sóbrio nos gastos, avesso às aventuras guerreiras e neutro em relação à disputa pelos mercados.
O fim do século XVIII é marcado pela Revolução Industrial na Inglaterra e pela Revolução Fran-
cesa. Ambas abrem caminho ao triunfo do liberalismo, no século seguinte, primeiro, a seguir, na
Europa Ocidental e nos Estados Unidos; na Rússia, no Japão e em diversos países da América Latina.
No Brasil, o liberalismo tem seu primeiro êxito em 1808, quando D. João VI decreta a abertura
dos portos brasileiros às “nações amigas”. Com a Indepen­dência, em 1822, o Brasil se torna uma
monarquia constitucional, nos moldes do parlamentarismo britânico. Mas a estrutura socioeconômica
do país era comple­tamente diferente, baseada ainda no escravismo colonial.
Durante o século XIX, o liberalismo serviu, no Brasil, para conciliar a unidade nacional, repre-
sentada pelo governo imperial no Rio de Janeiro, com a dominação local da oligarquia escravocrata,
O verdadeiro liberalismo era representado pelos abolicionistas, cuja vitória final, em 1888, criou
finalmente no Brasil condições para a im plantação e expansão do capitalismo industrial.

A economia de mercado se torna capitalista


A partir da Revolução Industrial, num país após o outro, o capitalismo passa a dominar a eco-
nomia de mercado e esta passa a abarcar a maior parte das ativi­dades econômicas. A ofensiva ca-
pitalista tem como motor o desenvolvimento das forças produtivas e a eliminação das barreiras
institucionais à livre concorrência.
O capitalismo industrial acelera o desenvolvimento das forças produtivas mediante o progresso
das ciências fisicas e a sistemática aplicação dos seus resultados na atividade produtiva. A pesquisa

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científica é realizada em escala crescente, em universidades e instituições públicas e privadas,


contando com amplo financiamento, proveniente, em parte, do orçamento governamental e, em
parte, de doações privadas, estas últimas em geral estimuladas por generosas isenções fiscais.
Pratica-se tanto a pesquisa pura, que visa o conhecimento em si, como a pesquisa aplicada, que
trata de encontrar conhecimentos necessários para desenvolver novos produtos ou aperfeiçoar
os processos produtivos.
É interessante observar como o ensino científico foi transformado em função das necessidades
do novo modo de produção. “Até meados do século XIX, o ensino universitário da ciência na Grã-
-Bretanha não estava orientado para os interesses dos industriais, que tinham ganho a liderança da
sociedade britânica. Antes daquela data, o ensino universitário da ciência estava inspirado pelos
mer­cantilistas de um período anterior ao desenvolvimento social da Grã-Bretanha. Sob sua influên-
cia, a astronomia era o ramo da ciência física de maior prestí gio, porque a segurança da navegação
dependia do conhecimento as tronômico e o sucesso do comércio marítimo dependia da segurança
da navegação. O prestígio da física nas universidades britânicas não ultrapassou o da astronomia
até que a importância do industrialismo ultrapassou a do mercantilismo.
A manufatura de máquinas, de motores a vapor e, mais tarde, de máquinas elétricas tornou o
conhecimento exato das propriedades da matéria necessário ao progresso social. [...] Thomson e
seu amigo Tait, que fora nomeado professor de filosofia natural em Edlmburgo, decidiram escrever
um Tratado de Filosofia Natural, em que expunham a física matemática de forma adequada à de-
manda contemporânea. Eles expuseram a ciência da mecânica inconscientemente, do ponto de
vista de um engenheiro ideal que fosse um mestre de física matemática. [...] Thomson e Tait reali-
zaram, para os líderes cultos da burguesia industrial, a conquista e a assimilação da cultura físico-
-matemática da classe mercantilista. A influência do resultado desta luta de classes numa das
regiões mais elevadas do empenho humano fez-se sentir em nível inferior, no ensino da matemática
ele­mentar. Os discípulos de Thomson, Ayrton e Perry, lideraram o movimento pelo ensino da ‘ma-
temática prática’. Eles explicaram que a nova classe de técnicos, criada pela indústria mecânica,
queria um conhecimento matemático que fosse de utilidade prática em suas tarefas.” (CROWTHER,
British scientists of the nineteenth century, citado em Hogben, 1940, p. 729.)
O extraordinário desenvolvimento das forças produtivas alcançado pelo capi­talismo industrial
resulta tanto do fomento da atividade científica como da estreita interligação dos laboratórios com
as fábricas, estas recebendo, com rapidez, os resultados das pesquisas e os aplicando à produção e
enviando de volta com igual rapidez os novos problemas suscitados pelo avanço técnico. É o que
explica o contínuo crescimento da produtividade e o consequente barateamento das mercadorias
produzidas pelo capital industrial. Bem ao contrário da economia de mercadoria anterior, em que
os preços eram mantidos deliberadamente constantes, a capitalista fomenta a sistemática redução
de custos e de preços. Nestas condi­ções, a produção não capitalista de mercadorias, operada em
pequenas unidades de caráter familiar, dificilmente poderia resistir ao avanço da produção capitalista.
A partir da Revolução Industrial, a indústria de transformação, o transporte de passageiros e de
carga e as comunicações se tornaram capitalistas nos vários paí­ses que se industrializaram. Na
agricultura, o capital se apoderou da maior parte das plantações e da criação em grande escala.
No comércio, aconteceu o mesmo com o atacado e o varejo operado em grandes unidades, como
os supermercados e as lojas de departamentos. E nos serviços, o capital explora cadeias de hotéis,
de lanchonetes (locais em que só servem refeições ligeiras), além de hospitais e clínicas, escolas em
todos os níveis, sem falar da rede cada vez mais extensa e diversificada de intermediação financeira
(bancos, financeiras, seguradoras etc.), que desde sempre tiveram caráter capitalista.
No fim do século passado, muitos observadores estavam convictos de que a produção simples
de mercadorias estava fadada a desaparecer em consequência dos ganhos de produtividade que a
utilização da ciência proporcionava ao capital. Um século depois, verifica-se que em diversos ramos
da produção mercantil a superioridade tecnológica do capital em face da produção familiar é pequena
ou mesmo inexistente. Nestes ramos, a produção simples de mercadorias não só persiste mas in-
clusive se desenvolve. É o que ocorre na maior parte da agri­cultura, em que a combinação de
plantio com a criação de pequenos animais não permite a mecanização de toda a atividade nem a

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38  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

rotinização da maioria das tarefas. Nestas circunstâncias, o trabalho do produtor autônomo tende
a ser tão ou mais produtívo que o do assalariado. Outros casos são os serviços de reparação, o
comércio varejista em pequena escala (particularmente de artigos caros: joalharias, butiques), certos
serviços pessoais (tinturarias, cabeleireiros, salões de beleza), o transporte por caminhão etc. Apesar
de a produção simples de mercadorias mostrar capacidade de resistir à concorrência do capital em
determinados ramos, é inegável que este domina a maior parte da economia de mercado.
A hegemonia do capital é consequência da livre concorrência, que está longe de ser uma
condição natural do mercado. A livre concorrência foi imposta em consequência do triunfo do libe-
ralismo em praticamente todos os países capi­talistas desenvolvidos. Mas este triunfo quase nunca
é completo, no sentido de uma exclusão total do Estado da vida econômica. O liberalismo se impôs
em medida suficiente para converter em concorrenciais a maioria dos mercados, mas em determi-
nadas áreas da produção a massa de pequenos operadores logra quase sempre obter alguma
proteção do Estado. A agricultura, por exemplo, em que as explorações familiares predominam, é
em geral subsidiada e protegida da concorrência dos produtos importados. Outros tipos de peque-
nas e médias empresas também têm obtido favores da política econômica: crédito a juros baixos,
assistência técnica, isenções fiscais. Estes tipos de ação estatal têm sido, no entanto, suficientemente
limitados para não estreitar significativamente a área de acumulação de capital, a qual abrange a
maior parte da economia de mercado.
E esta, impulsionada pelo desenvolvimento capitalista das forças produtivas, tem se expandido
mediante a criação de novos produtos, que suscitam e atendem a novas necessidades ou substituem
bens e serviços produzidos no âmbito doméstico. São exemplos os alimentos em conserva ou semi-
processados, vestuário, roupa de cama e mesa, o cuidado de crianças em idade pré-escolar, de
pessoas idosas ou inválidas. Nota-se a progressiva atrofia da produção para o autoconsumo, à
medida que o capital oferece bens e serviços análogos a preços acessíveis. E muitas atividades que
continuam a fazer parte da economia doméstica passam a ser realizadas com instrumentos produ-
zidos pelo capital (máquina de lavar roupa, máquina de lavar louça, aspirador de pó, liquidificador,
geladeira etc.). Desta maneira, a economia capitalista de mercado está sempre se diversificando e
atraindo parcelas crescentes da população — inclusive cada vez mais mulheres casadas — ao mer-
cado de trabalho. A oferta de novos produtos suscita novas necessidades, cuja satisfação requer
elevação da renda familiar. O assalariamento da dona de casa resolve frequentemente este problema,
mas não deixa de suscitar outros, particularmente o de aliviar o peso das tarefas domésticas. Mas
para estes o capital apresenta também soluções, sob a forma de mais bens e serviços postos à venda.
Desta maneira, o capital vai criando para si mesmo novas oportunidades de inversão, o que
lhe garante expansão perene. O seu destino parece ser o de crescer sempre, transformando ten-
dencialmente todos os membros da sociedade em vendedores de força de trabalho e comprado-
res de suas mercadorias. A força expansiva do capital tende a homogeneizar a sociedade,
tornando-a puramente capitalista. Há contratendências, como vimos acima. Além disso, o dina-
mismo do capital apresenta contradições, que explodem em geral sob a forma de crises. Isso
indica que a expansão do capital tem limites históricos, mas que, em países ainda pouco desen-
volvidos, estão longe de ser visíveis.
Extraído de SINGER, Paul. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica.
São Paulo: Moderna, 1907.

Torna-se essencial compreendermos alguns dos principais conceitos da teoria marxista,


visto que eles nos ajudam a compreender o pensamento e a leitura que Marx realizou da so‑
ciedade. Vamos abordar aqui somente alguns conceitos (os básicos), pois a teoria de Marx e
Engels é muito vasta. Iremos discutir os conceitos de: classes sociais, luta de classes, trabalho
e alienação, fetiche da merca­d oria, mais-valia e Estado.

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A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a   39

Para Marx a sociedade capitalista já nasce dividida em duas classes so­ciais: os burgueses
(capitalistas) e os proletariados (trabalhadores), e são essas classes que materializam as relações
sociais. Isso quer dizer que, dentro do capitalismo, as relações sociais são construídas pelo
processo de venda da força de trabalho dos proletários e compra dessa força pelos capitalistas
(donos dos meios de produção) que a exploram dentro da produção. Essa divisão de classes
é que sustenta a nossa sociedade, nascendo dessa relação todas as mercadorias que nós utili‑
zamos em nosso dia a dia. Olhe ao seu lado. Veja este livro, o seu caderno, a sua roupa. Tudo
isso é fruto de trabalho humano, trabalho assalariado.
Na sociedade capitalista as relações sociais de produção definem dois
grandes grupos dentro da sociedade: de um lado os capitalistas que
são aquelas pessoas que possuem os meios de produção (máquinas,
ferramentas, capital, etc.) necessários para transformar a natureza e
produzir mercadorias; do outro, os trabalhadores, também chamados,
em seu conjunto, de proletários, aqueles que nada possuem, a não ser
o seu corpo e sua disposição para trabalhar. A produção na sociedade
capitalista só se realiza porque capitalistas e trabalhadores entram em
relação (TOMAZI, 2000, p. 21).

Essa divisão de classes aparentemente é uma divisão natural. Marx conseguiu desvendar a
aparência dessas relações, buscando compreender a essência dos fenômenos, demonstrando
que na sociedade essa divisão se apresenta de forma ‘oculta’, pois não observamos em nosso
cotidiano o constante conflito entre elas. Esse conflito não é necessariamente armado e na
leitura de Marx não é passível de solução dentro do modelo capitalista de produção, pois essa
desigualdade entre classes é intrínseca à sociedade. Esse conflito é simbólico e ideológico,
daí a denominação de luta de classes. As duas classes sociais (proprietários e trabalhadores)
vivem em constante embate caráter ideológico e político.
Nesse contexto podemos perceber que a desigualdade entre as classes so­ciais aumenta
dentro do processo produtivo, pois a produção de mercadorias é realizada de forma coletiva,
sendo a apropriação das riquezas geradas pela produção privada, é desse processo que advém
a desigualdade social.
Um ponto essencial na teoria marxista é a questão do trabalho. Na leitura de Marx, o traba‑
lho é essencial para o homem, visto que é através dele que o homem transforma a natureza e,
ao mesmo tempo, se transforma em ser social. O trabalho aqui é a mediação entre a natureza
e o homem, sendo ele responsável pela construção da nossa sociedade.
Partimos do pressuposto de que é por meio do trabalho, no sentido mar­xiano, que reali‑
zamos transformações intencionais, planejadas, que têm como resultado um produto real e
concreto que antes só existia na mente humana. Marx (1985, p. 149) argumenta que é preci‑
samente o trabalho que diferencia os homens dos outros animais quando afirma que
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha
enver­gonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos
de sua colmeia. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto
da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes
de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um
resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador
e, portanto, idealmente.

É através do trabalho humano que as realizações objetivam e exteriorizam os sujeitos que


fazem parte do mundo. Esse trabalho é atividade humana que transforma o mundo ao mesmo
tempo em que transforma o sujeito. “Ao atuar, por meio deste movimento, sobre a natureza
externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX,
1985, p. 149). É assim que o homem se reconhece em seu trabalho e se orgulha daquilo que
constrói, dando-lhe significados.

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Na sociedade capitalista esse trabalho não é visto como trabalho cria­dor, e sim como
trabalho assalariado. No capitalismo, o trabalhador perde a autonomia do processo produtivo,
ficando sujeito às decisões tomadas pelos administradores, principalmente a partir da introdu‑
ção de modernas máquinas e mudanças na esfera produtiva que visa ao aumento da produ­ção
e do lucro. Assim, o trabalhador controla muito pouco da produção: ele deve submeter-se às
normas e deliberações de outras pessoas. Mais do que isso: quase sempre o trabalhador des‑
conhece todo o processo produtivo, o que o impossibilita de saber qual o produto que ajuda
a produzir e para que finalidade ele é utilizado. A este processo de separação do trabalhador
do fruto de seu trabalho, Marx e Engels chamaram de alienação.
Marx desenvolve o conceito de alienação mostrando que a industria‑
lização, a propriedade privada e o assalariamento separavam o traba‑
lhador dos ‘meios de produção’ — ferramentas, matéria-prima, terra
e máquina —, que se tornaram propriedade privada do “capitalista”.
Separava também, ou alienava, o trabalhador do fruto do seu trabalho,
que também é apropriado pelo capitalista. Essa é a base da alienação
econômica do homem sob o capital (COSTA, 2002, p. 84-85).

Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar o conhecimento sobre essa questão, leia a seguir um texto extraído
do livro Sociologia, de Meksenas (1988, p. 55-61). Esse texto discute o papel da alienação
e da ideologia.

Os conceitos de alienação e ideologia


3. O que é alienação?
Há vários sentidos para o conceito de alienação. Juridicamente, significa a perda do usufruto
ou posse de um bem ou um direito pela venda, hipoteca etc. Nas esquinas vemos cartazes de mar-
reteiros para os motoristas: “Compramos seu carro, mesmo alienado”.
Em outro contexto, referimo-nos a alguém como “alienado mental”, querendo, com isso, dizer
que tal pessoa é louca. Aliás, alienista é o médico de loucos.
A alienação religiosa aparece nos fenômenos da idolatria, quando um povo “constrói” ídolos
e passa a se submeter a eles.
Rousseau diz que a soberania do povo é inalienável, isto é, pertence ao povo, que não deve
outorgá-la a nenhum representante, mas deve ele próprio exercê-la.
Na vida diária, chamamos alguém de alienado quando o percebemos desinteressado de assun-
tos considerados importantes, tais como as questões políticas e sociais.
Em todos esses sentidos, há algo em comum: no sentido jurídico, perde-se a posse de um bem,
na loucura perde-se a razão, e o louco perde o controle de si; na idolatria perde-se a autonomia;
na concepção de Rousseau, o povo não deve perder o poder; o homem comum alienado perde a
compreensão do mundo em que vive e torna alheio à sua consciência um segmento importante da
realidade em que se acha inserido.
Etimologicamente a palavra alienação vem do latim alienare, alienus, que significa “que pertence
a um outro”. E outro é alias. Alienar, portanto, é tornar alheio, é transferir para outrem o que é seu.

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A e x p l i c a ç ã o s o c i o l ó g i c a d a v i d a c o l e t i v a   41

Retomando a discussão anterior, vimos que o surgimento do capitalismo deter­mina a intensi-


ficação da procura do lucro e confina o operário à fábrica, retirando dele a posse do produto. Mas
não é apenas o produto que não mais lhe pertence. Ele próprio deixa de ser o centro de si mesmo.
Não escolhe seu salário — embora isso apareça ficticiamente como um contrato livre — não esco-
lhe o horário, nem o ritmo de trabalho,
1
passa a ser comandado de fora, por forças estranhas a ele.
Ocorre o que se chama fetichismo da mercadoria, pois esta assume valor, superior ao homem.
Assume formas abstratas (o dinheiro, o capital) que, em vez de serem intermediários entre indivíduos,
convertem-se em realidades soberanas e tirânicas. Em consequência, a “humanização” da merca-
doria leva à desumanização do ho­mem, à sua coisificação, à reificação (res, “coisa”), sendo ele
próprio transformado em mercadoria (sua força de trabalho tem um preço no mercado).
Portanto, a alienação não é meramente teórica, mas se manifesta na vida real do homem, na
maneira pela qual, a partir da divisão do trabalho, o produto do seu trabalho deixa de lhe pertencer.
Todo o resto é decorrência disso.

Alienação na produção
Nos sistemas domésticos de manufatura, era comum o trabalhador co­nhecer todas as etapas
da produção, inclusive a de projeto do produto. A partir da implantação do sistema fabril, no entanto,
isso não será mais pos­sível, devido à crescente complexidade resultante da divisão do trabalho.
Chamamos dicotomia concepção-execução do trabalho justamente ao pro­cesso pelo qual um grupo
de pessoas concebe, cria, inventa o que vai ser produzido, inclusive a maneira como vai ser produ-
zido, e outro grupo é obri­gado à simples execução do trabalho, sempre parcelado, pois a cada um
cabe uma parte do processo. Essa divisão foi intensificada no início do século XX, quando Henry
Ford introduziu o sistema de linha de montagem na indústria au­tomobilística. O homem, reduzido
a gestos mecânicos, tornado “esquizofrênico” pelo parcelamento das tarefas, foi retratado em
Tempos modernos, filme clássico de Charles Chaplin, o popular Carlitos.
A expressão teórica desse processo de trabalho parcelado é levada a efeito por Frederick Taylor
(1856-1915), no livro Princípios de administração científica, onde estabelece os parâmetros de um
método científico de racionalização da produção — daí em diante conhecido como taylorismo — e
que visa aumentar a produtividade, economizando tempo, suprimindo gestos desnecessários e
com­portamentos supérfluos no interior do processo produtivo.
Esse sistema foi implantado com sucesso no início do século nos EUA e logo extrapolou os
domínios da fábrica, atingindo outros tipos de empresa, os esportes, a medicina, a escola e até a
atividade da dona de casa. Por exemplo, um ferro de passar deve ser fabricado de acordo com os
critérios de economia de tempo, de gasto de energia (de eletricidade e da dona de casa, por que
não?); a localização da pia e do fogão deve favorecer a mobilidade; os produtos de limpeza devem
ser eficazes num piscar de olhos.
Taylor parte do princípio de que o trabalhador é indolente, gosta de “fazer cera” e usa os
movimentos de forma inadequada. Observando esses gestos, determina a simplificação deles, de
tal forma que a devida colocação do corpo, dos pés, das mãos, possa aumentar a produtividade.
Também a divisão e parce­lamento do trabalho se mostra importante para a simplificação e maior
rapidez do processo. São criados cargos de gerentes especializados em treinar operários, usando
cronômetros e depois vigiando-os no desempenho de suas funções. Os bons funcionários são esti-
mulados com recompensas, os indolentes sujeitos a punições. Taylor tentava convencer os operários
de que tudo isso era para o bem deles, pois, em última análise, o aumento da produção reverteria
em benefícios também para eles, gerando a sociedade da opulência.
Esse sistema faz com que o setor de planejamento se desenvolva, tendo em vista a necessidade
de sofisticar as formas de controle da execução do trabalho.
A necessidade de planejamento desenvolve uma intensa burocratização. Os burocratas são
especialistas na administração de coisas e de homens, estabelecendo e justificando a hierarquia e
a impessoalidade das normas. A burocracia e o planeja­mento se apresentam com uma imagem de
neutralidade e eficácia da organização, baseando-se num saber objetivo, competente, desinteressado.

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Mas é apenas uma imagem, que mascara o conteúdo ideológico (ver Cap. 7) eminentemente polí-
tico: na verdade, trata-se de uma técnica social de dominação. Vejamos por quê.
Não é fácil submeter o operário a um trabalho rotineiro, irreflexivo, repetitivo, em que o próprio
homem se encontra reduzido a gestos estereotipados. Se não compreendemos o sentido da nossa
ação e se o produto do trabalho não é nosso, é bem difícil dedicar-nos com empenho a essa tarefa.
O taylorismo substitui as formas de coação visíveis, de violência direta, pessoal, de um “feitor de
escra­vos”, por exemplo, por formas sofisticadas e sutis que tornam o operário dócil e submisso.
Impessoaliza a ordem, que não aparece mais com a face de um chefe que oprime, mas a dilui nas
ordens de serviço vindas do “setor de planejamento”. Esse processo retira toda iniciativa do operá-
rio, que cumpre ordens, modelando seu corpo segun do critérios exteriores, “científicos”, e criando
a possibilidade da interiorização da norma, que culmina com a figura do operário-padrão.
O que ocorre é a desarticulação do operário, a fim de impedir sua agregação com outros
companheiros, dificultando a solidariedade entre eles. Estimula a com­petição por níveis cada vez
maiores de produção com a distribuição de prêmios, gratificações e promoções. Isso gera uma
“caça” aos postos mais elevados.
A fragmentação que ocorre nas fábricas facilita ao capitalista ser o único a ter o controle do
produto final. A “racionalização” do processo de trabalho traz em si uma irracionalidade básica:
desaparece a valorização do sentimento, da emoção, do desejo.
As “pessoas” que aparecem nas fichas do setor de pessoal são vistas sem amor nem ódio, de
modo impessoal. O burocrata-diretor é “profissional” e manipula as pessoas como se fossem cifras
ou coisas.
É interessante, no entanto, mostrar que esse processo não é exclusivo do capitalismo, pois a “ra-
cionalização” da produção também foi introduzida na URSS por Lênin, com a justificativa de que o sistema
não seria utilizado para a exploração do trabalhador, mas para sua libertação. O produto do trabalho
não seria apropriado pelo “capitalista”, já que a propriedade privada dos meios de produção fora elimi-
nada. O que resulta disso não é a empresa burocratizada, mas o próprio Estado burocrático. Não faltaram
críticas de grupos anarquistas, intelec­tuais, acusando Lênin de ter esquecido o princípio da realização do
socialismo a partir de organizações de base, ao introduzir relações hierárquicas de poder.
Com isso, chegamos a um impasse que nos deixa perplexos diante de uma técnica apresentada
de início como libertadora e que se mostra, afinal, geradora de uma ordem tecnocrática que oprime.
Enquanto prevalecerem as funções divididas do homem que pensa e do ho­mem que só executa,
será impossível evitar a dominação, pois sempre existirá a ideia de que só alguns sabem e são com-
petentes e portanto decidem, e a maioria nada sabe, é incompetente e obedece.
Não queremos assumir a posição ingênua de crítica à técnica, mas é preciso preocupar-se com a
absolutização do “espírito” da técnica. Onde a técnica se torna o princípio motor, o homem se en-
contra mutilado, porque é reduzido ao anonimato, às “funções” que desempenha, e nunca é um fim,
mas sempre meio para qualquer coisa que se acha fora dele.
Por isso, a questão que se coloca é a da necessidade de uma reflexão moral que levante o
problema dos fins a que a técnica se destina, a fim de observar em que medida ela está a serviço
do homem ou da sua exploração.

O que é ideologia?

Introdução conceitual
Há vários sentidos para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de ideias, concep-
ções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão.
Quando perguntamos qual é a ideologia de um determinado pensador, po­demos estar nos
referindo à sua doutrina, ao corpo sistemático de suas ideias e ao seu posicionamento interpretativo
diante de determinados fatos.

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a explicação sociológica da vida coletiva 43

Podemos ainda estar nos referindo à teoria, como organização sistemá tica dos conhecimentos
destinados a orientar a prática, a ação efetiva. Nesse sentido, já ouvimos a expressão “atestado
ideológico”, que é a declaração exigida a um indivíduo sobre sua filiação partidária e ideias que
orientam sua ação política. No Brasil, por exemplo, durante o recrudescimento do poder autoritário,
órgãos como o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) exigiam em certas cir-
cunstâncias que as pessoas apresentassem atestados desse tipo, a fim de controlar a adesão às
ideologias marxistas, consideradas perigosas à segurança nacional.
Em sentido pejorativo, ideologia é o conjunto de ideias e concepções sem fundamento, mera
análise ou discussão oca de ideias abstratas que não correspondem a fatos reais.
Há outros sentidos mais específicos, elaborados por autores como Destutt de Tracy, Comte,
Durkheim. Aqui, no entanto, não usaremos o conceito de ideologia em nenhum desses sentidos.
Vejamos, então:
“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e
de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem
pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e
como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo
(representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja
função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as
diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em
classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apa-
gar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade
social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a
Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado.”2 Fundamentalmente, a ideologia é
um corpo sistemá tico de representação e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir.
A ideologia tem como função assegurar uma determinada relação dos homens entre si e com
suas condições de existência, adaptando os indivíduos às tarefas prefixadas pela sociedade. Portanto,
a ideologia assegura a coesão dos homens e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e
pouco recompensadoras, em nome da “vontade de Deus” ou do “dever moral” ou simplesmente
como decorrente da “ordem natural das coisas”.
É interessante observar que não se trata de uma “mentira” que os indivíduos da classe dominante
“inventam” para subjugar a classe dominada. Também eles sofrem a influência da ideologia, o que
lhes permite exercer como natural sua dominação, aceitando como universais os valores específicos
de sua classe. Os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas certamente
não percebiam o caráter ideológico da sua ação ao querer implantar uma religião e uma moral estra-
nhas ao do povo dominado.
Essa universalidade das ideias e dos valores é abstrata porque na realidade concreta o que há
são classes particulares com interesses divergentes, e a ideologia de uma “sociedade harmoniosa e
una” oculta a divisão de classes. Portanto, a universalização e a abstração supõem uma lacuna ou
o ocultamento de alguma coisa que não pode ser explicitada sob pena de desmascaramento da
ideologia. Isto é, sob o aparecer da ideologia existe uma realidade concreta que precisa ser descoberta
pela análise da gênese do pro cesso, ou seja, pela verificação de como a realidade foi produzida.
Por exemplo, quando se diz que “o trabalho dignifica o homem”, estamos diante de um con-
ceito ideológico, na medida em que se trata:
de uma abstração, já que o trabalho se apresenta como uma “ideia de trabalho”, e a aná-
lise da situação concreta e particular da realidade histórico-social em que os operários rea-
lizam seu trabalho mostra exatamente o contrário: o embrutecimento e reificação
(“coisificação”) do homem, e não a sua dignidade.
de uma lacuna, pois, analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-
-valia e, portanto, o componente que leva à alienação do homem e à diferença de condição
de vida das pessoas na “comunidade”.
Outro exemplo: “A educação é um direito de todos” (e até um dever, já que há obrigatoriedade
legal de se completar o curso primário). Essa afirmação é abstrata e lacunar, pois apresenta como

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44  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

universal um valor que beneficia apenas uma classe. Quando observamos as estatísticas que mostram
evasão e o baixo índice de frequência escolar por parte das classes desfavorecidas, são comuns as
“explicações” em função das dificuldades de adaptação, do mercado de trabalho e até do desinteresse
ou preguiça. O que está oculto aí é que na sociedade de classes há uma contradição entre os que
produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que usufruem essas riquezas, excluindo
delas os produto­res. Assim, a educação é um dos bens a serem usufruídos pelos componentes da
classe dominante. A educação aparece como um direito de todos, mas, analisando a gênese da pro-
dução e usufruto dos bens, descobre-se que de fato a educação está restrita a uma classe.
Além disso, a ideologia mostra uma realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da reali-
dade é posto como produto e vice-versa. Por exemplo, a ideologia burguesa afirma que existem nos
homens diferenças individuais e que estas deter­minam a desigualdade social: a desigualdade natu-
ral seria a causa da desigualdade social. Ora, a sociedade e na verdade resultado da práxis, e as
desigualdades sociais estabelecidas pela divisão do trabalho e pelas relações de produção é que
determinam (são causas) das desigualdades individuais. Não estamos querendo desconsiderar as
diferenças que de fato existem entre os indivíduos, como inte­resses, aptidões, inteligência. Mas,
grosso modo, a atividade a que cada um se submete aparece como decorrente da competência e
não como resultado da divisão de classes (lembremos ainda que a própria divisão de classes não
deve ser vista como um “dado” inicial, mas como o resultado da práxis).
Mais um exemplo: se um filho de operário não melhora o padrão de vida, isto é explicado como
resultado da sua incompetência, falta de força de vontade ou disciplina de trabalho, quando na
realidade ele joga um “jogo de cartas marca­das”, e suas chances de melhorar não dependem dele,
mas da classe que detém os meios de produção.
Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual se estabelecem as relações entre
teoria e prática, colocando a teoria como superior à prática, porque a antecede e “ilumina”. As
ideias tornam-se autônomas e causa da ação humana (e não o contrário).
Essa divisão hierárquica entre o pensar e o agir se encontra também na di­cotomia da sociedade
em um segmento que se dedica ao trabalho intelectual e outro, ao trabalho manual. Uma classe
“sabe pensar”; a outra “não sabe pensar” e só executa. Portanto, uma decide, porque sabe, e a
outra obedece.

O que caracteriza o discurso não ideológico?


Se o discurso ideológico é abstrato e lacunar, faz uma análise invertida da rea­lidade e separa o
pensar e o agir, o discurso não ideológico será aquele que visa o preenchimento das lacunas pela
procura da gênese do processo. Isso não significa que se deva contrapor ao discurso lacunar um dis-
curso “pleno”, mas a elaboração de uma crítica, de um contradiscurso que revele a contradição interna
do discurso ideológico e que o faça explodir. É esse o papel da teoria, que não se confunde com o
papel da ideologia, pois a teoria está encarregada de desvendar os processos reais e históricos que
originam a dominação de uma classe sobre outra, enquanto a ideologia visa exatamente o contrário,
ou seja, a dissimulação dessa diferença.
Além disso, a teoria estabelece uma relação dialética com a prática, ou seja, uma relação de
reciprocidade e simultaneidade, e não uma relação hierárquica, como no discurso ideológico.
Explicando melhor: a práxis é justamente a relação indissolúvel teoria-prática, de modo que
não há agir humano que não tenha sido antecedido por um projeto, da mesma forma que a teoria
não é algo que se produza independentemente da prática, pois o seu fundamento é a própria
prática. Nós conhecemos as coisas na medida em que as produzimos, daí toda teoria ser lacunar,
sem o “vai e vem” entre o fato e o pensado.
Ora, o saber que decorre da produção é um saber instituinte e, nesse sentido, é “vivo”, móvel,
com toda a força do processo de se fazer. O saber ideológico é o saber instituído, petrificado, escle-
rosado, morto. Não é simples, no entanto, o trabalho de desvelamento do real, pois a ideologia pe-
netra em setores insuspei­táveis: na educação familiar e escolar, nos meios de comunicação de massa,

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nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade
entre o pensar e o agir e, ao contrário, determinando a repetição de fórmulas prontas e acabadas.
Por isso, é importante o papel da filosofia como crítica de ideologia, rompendo as estruturas
petrificadas que justificam as formas de dominação. Ainda neste capítulo, examinaremos rapidamente
a ideologia subjacente aos textos didáticos de 1o grau, às histórias em quadrinhos e à propaganda.
Por questão de espaço, não estudaremos as importantes reflexões de Michel Foucault, filósofo
francês contemporâneo, cujos estudos apontam conseguir-se a concordância dos inte­resses privados
de um grande número, nem por isso assim se estará atendendo ao interesse comum”.
Encontra-se aí o cerne do pensamento de Rousseau, aquilo que o faz reconhecer no homem
um ser superior capaz de autonomia e liberdade, entendida esta como a superação de toda arbi-
trariedade, pois é a submissão a uma lei que o homem ergue acima de si mesmo. O homem é livre
na medida em que dá o livre consen­timento à lei. E consente por considerá-la válida e necessária.
“Aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que
não significa senão que o for çarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão
a pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal.”
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins
Extraído do livro Filosofando. São Paulo: Moderna, 1987.

Aprofundando essa relação de trabalho alienado, Marx desenvolve o conceito de fetiche


da mercadoria, o que aumenta mais a desigualdade entre os homens. O fetiche da mercado‑
ria ‘esconde’ a principal característica da mercadoria, que é ser fruto de trabalho humano,
passando uma ideia de que o produto adquire vida própria. Nesse sentido, percebemos que
todas as rela­ç ões sociais são transformadas em mercadorias, ocultando o ponto central da
sociedade capitalista: a busca pelo lucro. Faça uma experiência: pare na frente de uma vitrine
e escolha um produto. Será que a gente consegue verificar que ele é fruto de múltiplos tipos
de trabalho? Trabalho essencialmente humano? Não parece que, ao olharmos o produto, só
vemos a marca, a propaganda? Isso é fetiche da mercadoria.
Somos levados a pensar que as mercadorias têm qualidades próprias,
que o dinheiro possui um poder de compra que é mágico. [...] Esse
fetiche faz com que as relações de exploração entre patrão e empregado
fiquem encobertas, favorecendo a própria continuação do capitalismo
(MEKSENAS, 1994, p. 79).

Dentro da discussão Marx analisa que no momento em que o capitalista compra a força
de trabalho de seu empregado é que nasce o processo de exploração capi­talista. Como assim?
O capitalista, ao pagar o salário aos trabalhadores, nunca paga a estes o que eles realmente
produziram, ou seja, é o trabalho não pago, o trabalho excedente, pelo qual o trabalhador
deixa de ser remunerado e que permite ao ca­pitalista acumular capital.

Links
Como o pensamento de Marx é reconhecido mundialmente, um site interessante e universal é
o <www.marxists.org/>, que disponibiliza todos os textos do próprio Marx e de autores marxis-
tas na íntegra. São textos originais.

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46  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

O capitalista ao pagar o salário aos trabalhadores, nunca paga a estes


o que eles realmente produziram. O excedente de valor produzido que
não é devolvido para o trabalhador, é apropriado pelo capitalista. Isso
é que Marx define como mais-valia (MEKSENAS, 1994, p. 79).

Mas como essas classes vivem em estado de luta, Marx coloca como ponto central a
necessidade dos trabalhadores orientar-se, inicialmente, na organi­zação de todos os trabalha‑
dores em sindicatos. Em seguida, essa organização deveria provocar a formação de um partido
específico para a defesa dos inte­resses dos trabalhadores. Este partido, por sua vez, deveria
fazer oposição ao Estado capitalista, considerado por Marx como “comitê da classe burguesa”,
ou seja, mero instrumento para a defesa dos interesses da burguesia.
Sendo o Estado no capitalismo um organismo da burguesia — que finan­cia a acumulação
privada de capital, favorecendo determinadas empresas, que mantém e defende o capitalismo
e que representa diferenciadamente as classes sociais, privilegiando a classe burguesa — seria
imprescindível acabar com este Estado para, em seu lugar, implantar uma nova sociedade,
baseada na igualdade de condições, e não na desigualdade e divisão de classes.

Saiba mais
Um dos textos mais significativos de Marx é o Manifesto do partido comu­nista. Todas as
categorias do materialismo histórico dialético encontram-se nele. Por esse motivo, vamos apro-
fundar nosso conhecimento e ler o texto completo, disponibilizado gratuitamente no site Domí-
nio Público, no link <www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000042.pdf>.

A obra de Marx é muito importante para a compreensão do capitalismo. Aqui discutimos,


basicamente, alguns dos seus conceitos. O interessante é pensar que Marx analisou o processo
de desenvolvimento do capitalismo, e seus estudos retratam o século XIX.

Questões para reflexão


Será que se nós pensarmos em nossa sociedade atualmente, em pleno século XXI,
não iremos encontrar respostas para muitas questões na teoria de Marx?

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Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar ainda mais o conhecimento sobre essa questão, leia a seguir um
texto extraído do livro Sociologia, de Meksenas (1988, p. 79-87). O texto trata de Karl
Marx e suas categorias explicativas sobre o modo de produção capitalista.

A concepção crítica da sociedade: o


materialismo histórico de Karl Marx
Produção simples de mercadorias e capitalismo
O produtor simples de mercadorias é um possuidor de meios de produção que os utiliza para
ganhar a vida. Ele produz mercadorias (M) que vende e, com o dinheiro (D), compra outras mercado-
rias (M) para consumir e continuar produ­zindo. O seu ciclo de produção toma a forma M-D-M, em
que o M final difere do M inicial em forma, mas não em valor. Ao final do ciclo, o produtor cumpriu
seu propósito — satisfazer as necessidades de consumo próprias e de sua família —, mas não se
tornou mais rico do que era no início.
O capitalista é um possuidor de meios de produção que emprega trabalhadores para movimentá-
-los. Vende a produção assim obtida e compara a soma de dinheiro recebida com a que investiu no
início. A sua finalidade é que aquela soma seja maior; a diferença entre o seu ‘capital inicial’ e o
final constitui o lucro. Toda sua atividade visa o maior lucro em relação ao capital inicial. Sendo a
relação lucro/capital a “taxa de lucro” em determinado período (geralmente em um ano), pode-se
dizer que seu objetivo é maximizar a taxa de lucro, isto é, obter o maior lucro anual possível por
cada milhão de cruzados investidos em determinado negócio.
O seu ciclo de produção tem a forma D-M-D’: D é o seu capital inicial, que toma necessariamente
a forma monetária (capital­-dinheiro);
M é o capital transformado em meios de produção e força de trabalho (capital­-mercadoria);
no processo de produção, os trabalhadores transformam os meios de produtos em produtos que
são vendidos;
D’ é a receita da venda, que reconstitui o capital-dinheiro inicial (D) acrescido de sua valorização,
isto é, de seu lucro (A D).
Por isso, D’ é, via de regra, maior do que D, sendo D’= D + AD, ou seja, o capital no final do
ciclo de produção é igual ao capital inicial acrescido do lucro.
Ilustremos o contraste entre produtor simples de mercadorias e capitalista, me­diante um exem-
plo. Suponhamos que o produtor simples de mercadorias seja um motorista de táxi, dono de seu
carro. Este carro, com o seu tanque cheio de combus­tível, é seu meio de produção M, o qual ele
usa para prestar serviços de transporte. No fim do mês, ele ganhou uma soma de dinheiro D que
ele utiliza de duas maneiras:
1. Para comprar combustível, pneus e outras peças de reposição e pagar serviços de repara-
ção, além de tributos e amortizar o valor do carro;
2. Para comprar mantimentos, pagar serviços (aluguel, luz, gás etc.) e fazer outras despesas
de consumo para si e seus dependentes. O primeiro tipo de despesa reproduz o seu carro,
ou seja, o seu meio de produção; o segundo tipo reproduz ele próprio e sua descendência.

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No ciclo M-D-M as condições de produção são normalmente repostas; ao fim de um mês, um


ano ou uma vida, sempre ressurge um motorista de táxi e seu carro, com o tanque cheio de com-
bustível.
No caso do capitalista, suponhamos que se trate do dono de uma frota de táxis. Este senhor
possui de início uma soma de dinheiro suficiente para comprar os carros, o combustível para eles e
para assalariar um número correspondente de motoristas, além de fiscal, contador, secretária etc.
O seu dinheiro também deve cobrir gastos com garagem, licenciamento dos carros etc. Este é o seu
capital inicial D. Na medida em que a frota opera, a venda de corridas gera uma receita. Convém
observar que no processo de produção de corridas, o trabalho dos moloristas transforma os carros +
combustível (capital-mercadoria) em produto que, neste caso, é passageiros/quilômetros transpor-
tados (também capital-mercadoria). Neste processo de produção, que podemos representar por M.
. .M’ ocorre uma mudança de valor: o total de passageiros/quilômetros transportados vale mais do
que o seu custo, isto é, a soma dos salários pagos aos motoristas + desgaste dos carros + combus-
tível + gastos improdutivos (ordenados do fiscal, contador etc. + garagem + tributos).
Esta mudança de valor é essencial para o funcionamento do capital.
No valor das corridas de táxi produzidas, o valor dos meios de produção — do carro e seus
consertos, reposição de pneus etc. e do combustível — reaparece por inteiro mas não aumentado,
o que aumenta é o valor criado pelos trabalhadores assalariados, no caso os motoristas, em relação
ao que sua força de trabalho custa ao capitalista, isto é, os salários que ele lhe paga. Digamos que
um motorista ga­nhe 3 salários mínimos por mês e que ele transforme meios de produção (carro +
combustível) em produto (corridas) no valor de outros 3 salários mínimos por mês. Isso quer dizer
que cada motorista “custa” ao nosso dono de frota 6 salários mínimos por mês. Ora, é óbvio que
nosso herói só dará emprego a motoristas que forem capazes de lhe entregar mensalmente uma
féria superior a 6 salários mínimos, sendo a diferença suficiente para, somados os lucros brutos de
todos motoristas da frota, pagar os gastos improdutivos (ordenados, aluguel, tributos) e ainda sobrar
um lucro líquido proporcional ao capital investido.
Temos portanto para o dono da frota de táxis um ciclo de produção que pode ser representado
por: D-M. . .M’-D\ Ao fim de um ano, ele terá uma frota de carros com seus tanques cheios de
gasolina e uma soma de dinheiro D’. Ao fazer seu balanço, ele apurará seu lucro da seguinte forma:
A D = D’ + valor dos carros com combustível, depreciados por um ano de uso-D (valor do ca-
pital inicial).
Se D’ acrescido do valor da frota depreciada for maior que o capital inicial D, A será positivo,
isto é, houve realmente lucro. Mas isso ainda não satisfará nosso capitalista. Ele quererá saber se o
seu lucro foi suficiente. Para tanto ele calculará a taxa de lucro A D/D.
Suponhamos que o capital inicial tenha sido de 10.000 salários mínimos e que o lucro anual
tenha sido de 1.000 salários mínimos. Neste caso, a taxa de lucro foi 1.000/10.000 ou 0,1 ou 10%.
Então ele tratará de comparar esta taxa com as que outros capitalistas obtiveram em frotas de táxis
ou em outras linhas de negócio. O nosso capitalista só continuará mantendo seu capital nesta ati-
vidade se se convencer que com um capital de 10.000 salários mínimos ele dificilmente obterá um
lucro anual superior a 1.000 salários mínimos em outro ramo de ne­gócio. Se ele achar que o plan-
tio de café ou a produção de microcomputadores proporcionam taxas mais elevadas de lucro, ele
sem dúvida porá sua frota à venda e transferirá seu capital a uma dessas atividades.

A especificidade do capital como relação de exploração


É possível que nesta comparação entre a produção simples de mercadorias e o capitalismo surja
a seguinte dúvida: mas por que não podemos chamar de “capital” o carro do motorista proprietá-
rio (com o tanque cheio de combustível)? Quem nos garante que sua receita D seja apenas suficiente
para seus gastos de reprodução? Não poderá ele economizar algo todo mês e ao cabo de certo
tempo comprar um segundo carro para entregá-lo a um motorista assalariado? Desse jeito, o pro-
dutor simples de mercadorias pode acabar como dono duma frota de táxis, porque ele já era dono

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de capital desde o início, embora pequeno. Neste caso, a diferença entre o motorista proprietário
e o dono de frota é apenas de grau: ambos são afinal “capitalistas” de tamanhos diferentes.
O erro nesta apreciação está em considerar os agentes individualmente e não como membros
de classes sociais. É óbvio que deve haver casos em que motoristas proprietários se tornaram donos
de frotas, só que estes casos constituem exceções e não regra. Se considerarmos os milhares de
taxistas proprietários que trabalham em nossas cidades, é claro que a grande maioria se esfalfa para
conseguir, a muito custo, unicamente se reproduzir, pagar as prestações do carro e ao fim de de-
terminado pe­ríodo comprar outro. Por isso, o seu carro não é “capital”, embora eles até possam
achar que é. Os meios de produção do produtor simples de mercadorias não são capital porque eles
não se valorizam, ou seja, não proporcionam lucro. E os produtores simples de mercadorias não
obtêm lucro porque a competição entre eles determina um valor para seus produtos que só lhes
permite se reproduzir. Eles, na verdade, são pobres, seu padrão de vida dificilmente é melhor que
o de um trabalhador assalariado com qualificação semelhante. Há exceções, por exemplo, entre os
chamados profissionais liberais — médicos, advogados, dentistas etc. —, mas é bom lembrar que
para cada profissional rico há muitos que mal conseguem ganhar a vida.
A discussão desta dúvida permite especificar melhor o que é capital. O capital é sempre uma
soma de riqueza que, para se valorizar, tem de sofrer as seguintes metamorfoses: de capital-dinheiro
tem de passar a capital-mercadoria, formado por meios de produção e força de trabalho; este ca-
pital-mercadoria tem de ser transformado, mediante o trabalho de trabalhadores assalariados cm
produto, outra forma de capital-mercadoria; e este último tem de ser realizado, ou seja, transformado
novamente, mediante a venda do produto, em capital-dinheiro. Capital não é, portanto, apenas
riqueza, mas valor que se valoriza, riqueza que é investida para engendrar mais riqueza para seu
possuidor. Um bilhão de cruzados colocado num cofre ou numa conta bancária não é capital, em-
bora possa vir a sê-lo numa sociedade capitalista. É, portanto, apenas capital virtual.
Isso é fácil de entender se imaginarmos o que faríamos com um bilhão de cruza­dos numa ilha
deserta ou se vivêssemos numa sociedade não capitalista, por exemplo, numa tribo de índios ou
em Cuba. Em tais situações, nosso bilhão não poderia fun­cionar como capital. Na ilha deserta, o
enterraríamos até sermos resgatados. Entre os índios, poderíamos talvez usar uma pequena parte
do dinheiro para comprar objetos com os quais faríamos presentes tendo em vista obter presentes
em troca. Em Cuba poderíamos depositar o bilhão num banco e obter um juro modesto. Em ne-
nhuma destas circunstâncias, o bilhão de cruzados pode ser considerado capital.
Para que determinada soma de riqueza seja de fato capital, ela deve poder ser submetida às
metamorfoses acima especificadas. Isso significa que tem que haver as seguintes condições:
1. Dinheiro funcionando como equivalente geral da riqueza mercantil: sem dinheiro, a riqueza
não pode assumir a forma de capital monetário para funcionar como meio de compra de
meios de produção e de força de trabalho;
2. Meios de produção colocados à venda, como mercadorias: se os meios de produção não
forem propriedade privada mas coletiva ou estatal, o capital dinheiro não pode se trans-
formar em capital produtivo e, portanto, não pode se valorizar. Em economias centralmente
planejadas, como a cubana, por exemplo, dinheiro acumulado só pode ser emprestado
ao Estado, o qual paga algum juro, mas isso não o torna capital;
3. Força de trabalho como mercadoria, ou seja, é preciso que uma parte significativa dos
trabalhadores não possua meios de produção e por isso eles só tenham acesso à produção
social mediante alienação de sua força de trabalho. Se todos os motoristas tivessem seu
próprio táxi, não poderia haver frotas operando com motoristas assalariados.
Ora, estas condições especificam o capitalismo. Uma sociedade em que o dinheiro é o repre-
sentante geral da riqueza, em que os meios de produção são produzidos e alienados como merca-
dorias e em que os trabalhadores, em boa parte, vendem sua força de trabalho para sobreviver é
uma sociedade capitalista. E é só em sociedades com estas características que somas de valor podem
ser e tendem a ser capital.

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O que é então capital? Uma soma de dinheiro? Meios de produção sendo movidos pelo traba-
lho de assalariados? Produtos de trabalho assalariado postos à venda?
Capital é tudo isso e, sobretudo, e tudo isso em relação. Capital é a contínua transformação
do valor através do processo de produção e de circulação. Na produção, o valor-capital se valoriza;
na circulação, o capital-valor já prenhe do mais-valor, da mais-valia, se realiza. É por isso que a
melhor maneira de entender o que é capital é entendê-lo como relação social. No fundo, capital é
uma forma específica de relacionamento entre homens em sociedade, na qual proprietários de ri-
queza empregam o trabalho de não proprietários para produzir mais riqueza.
Capital é portanto uma relação social que se materializa em objetos: em dinheiro, em meios
de produção, em trabalho pago por salário, em produtos vendidos em mercados. É claro que cada
forma material do capital corporifica relações específi­cas que, em seu conjunto, formam a relação-
-capital. Dinheiro corporifica a relação entre quem paga e quem recebe. Mercadorias corporificam
a relação entre quem compra e quem vende. Destas relações específicas, a que é essencial ao capi-
tal é a de compra e venda de força de trabalho. Porque é através desta relação que o capital se
valoriza, o lucro é trabalho não pago, é produto da exploração do trabalhador assalariado. A relação-
-capital é essencialmente uma relação de exploração.

Valor, valor de uso e valor de troca


Vejamos agora mais de perto o que é valor numa economia de mercado.
O valor é um atributo da mercadoria que tem duas dimensões; uma é que cada mercadoria
pode ser consumida, ou seja, há “alguém” que se dispõe a pagar para poder usá-la. Esta dimensão
recebe o nome de valor de uso. Meios de pro­dução são usados para produzir outras mercadorias,
isto é, servem para consumo produtivo. Bens finais são usados por indivíduos e famílias, isto é,
servem para o consumo individual. Qualquer que seja o consumo — produtivo ou individual — ele
tem por efeito destruir a mercadoria. O consumo produtivo do carro e do combustível os destróem
enquanto formas físicas, fazendo surgir em seu lugar o produto “transporte de passageiros”. O
consumo individual duma mesa e duma porção de feijão destrói igualmente suas formas físicas,
nada surgindo em seu lugar a não ser uma sensação no consumidor, que podemos chamar de
“satisfação” ou “saciedade”. O consumo do carro e da mesa é paulatino e leva tempo; o do com-
bustível e do feijão é imediato e instantâneo. O valor de uso da mercadoria revela que ela é produ-
zida para ser consumida (destruída) e que o consumidor se dispõe a pagar o suficiente para que a
produção seja retornada.
Mas mercadorias não são apenas compradas para serem consumidas, mas também para serem
revendidas. Cada mercadoria oferece ao seu possuidor a possibilidade de — mediante venda e
compra — obter outra mercadoria. Esta dimensão do valor é o chamado valor de troca. O valor de
troca das mercadorias se exprime em seus preços, é uma dimensão quantitativa. Ele pressupõe o
valor de uso, pois uma mercadoria só tem preço se há consumidores que se dispõem a comprá-la.
O valor de uso em si não é mensurável, pois o consumo de diferentes mercadorias não é com-
parável. Os partidários da teoria do valor-utilidade não entendem assim e sustentam que o valor
de troca é expressão direta do valor de uso ou “utilidade” da mercadoria. Explicam que se o
valor de troca de um anel de brilhantes é mil vezes maior do que o de um par de sapatos, é por-
que o primeiro é mil vezes mais “útil” aos consumidores do que o segundo. Como a utilidade é
subjetiva, variando de indivíduos a indivíduo, esta explicação é tautológica, isto é, ela só nos informa
que, se o anel encontra compradores dispostos a pagar por ele mil vezes mais do que pelo par de
sapatos, o anel deve ser mil vezes mais “útil” do que o par de sapatos. Que as diferenças de utilidade
sejam refletidas pelos preços é apenas presumido e é uma presunção improvável, pois os preços são
em geral fixados pelos vendedores, cabendo aos compradores decidir se desejam adquirir cada
mercadoria a este preço e (em caso positivo) em que quantidade.
O valor de uma mercadoria resulta do seu valor de uso e do seu valor de troca. Ele exprime o
fato de que a mercadoria resulta sempre de uma ação humana deli­berada — a produção dum bem

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ou serviço — que visa o intercâmbio por dinheiro, a venda. O valor é a razão de ser da mercadoria
para quem a suscita.
Para o produtor simples de mercadorias ou para o capitalista, a forma física da mercadoria é
indiferente; o que ele visa é a receita monetária que ele obtém com sua venda. Neste sentido, a
mercadoria é tão somente a materialização do valor. Para o capitalista tanto faz que seu capital
assuma a forma de corridas de táxi, café ou microcomputadores. O que lhe interessa é D’, o valor
destes produtos, que, comparado com o seu capital inicial D, permite-lhe saber quanto lucrou.

Valor e lucro
Mas se a mercadoria não passa economicamente de uma portadora de valor, o que origina este
valor? Para responder esta questão, temos que proceder por etapas. A origem do valor de uma
mercadoria é o seu custo de produção, acrescido de uma margem de lucro. O valor de uma corrida
de táxi de uma hora é a soma do salário do motorista (por hora de trabalho), da depreciação do
carro, do valor do combustível consumido etc. e do lucro do dono da frota. A questão passa a ser:
qual a origem do lucro do capitalista? A resposta imediata é a existência do seu capital, o monopó-
lio que a classe capitalista detém da riqueza social e especi­ficamente dos meios de produção. A
quantidade de lucro contida no valor de uma mercadoria específica (uma corrida de táxi) decorre
do valor do capital aplicado (a frota de táxis, combustível etc.) e da taxa de lucro aplicada a este
capital. Em outras palavras, o capitalista calcula o preço da sua mercadoria, de tal modo que ele
cubra os custos e obtenha um lucro tal que, multiplicado pela quantidade de mercadorias vendidas
durante o ano, proporcione a taxa de lucro almejada.
No exemplo anterior supusemos que o dono da frota tenha obtido um lucro anual de 1.000
salários mínimos. Imaginemos que a sua frota faça 250 000 horas de corrida por ano. Então, logi-
camente, o preço de uma corrida de uma hora inclui de salário mínimo de lucro. Com 250 esta
margem de lucro, o capitalista alcança uma taxa de lucro de 10% sobre o seu capital.
Mas vimos que cada capitalista procura obter a maior taxa de lucro possível. O que impede o
nosso dono de frota de incluir no preço uma margem maior de 23 lucro, 1
digamos de ou mesmo de
salário mínimo, para obter 250 250 uma taxa de lucro de 20 ou 30% . É a concorrência. O nosso
capitalista não é o único a possuir táxis. Ele
1. Estamos abstraindo aqui que as tarifas de táxi são controladas pelo governo muni-
cipal. Em geral, os capitalistas têm liberdade de fixar seus preços.
2. Do valor da força de trabalho total, ou seja, da soma de todos os salários pagos, que
chamaremos de V (de capital variável);
3. Do valor do lucro total, soma dos lucros de todos os capitais individuais, e que chamaremos
de M (de mais-valia).
A classe capitalista começou o ano com seu capital inicial D = C + V, isto é, meios de produção
e força de trabalho e chega ao fim do ano com D’= C + V + M, tendo lucrado D*— D = M. Qual a
origem de M? Só pode ser o trabalho dos assalariados, graças ao qual foram produzidas as merca-
dorias que compõem M’ e que são vendidas por D*.
Como se demonstra isso? Simplesmente perguntando qual é a origem de toda riqueza da classe
capitalista. Ora, esta riqueza é composta por mercadorias, que são produto de trabalho assalariado.
Cada corrida de táxi, cada quilo de café, cada microcomputador surge na posse da classe capitalista
graças à atividade da classe dos trabalhadores assalariados. Há uma relação evidente de causa e
efeito entre o volume de trabalho realizado pela classe trabalhadora e a quantidade de mercadorias,
de formas físicas portadoras de valor.
A classe trabalhadora recebe como salários um valor V menor do que o valor total criado pelo
seu trabalho, que é V -+- M. O valor C dos meios de produção consumidos no processo de produ-
ção só reaparece no valor M’ do capital­-mercadoria. Por isso o denominamos de capital constante,
pois no processo de produção o seu valor não varia. Mas o capital aplicado na compra de força de
trabalho V tem o seu valor alterado. A classe capitalista paga V de salário para obter mercadorias

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no valor de V + M, que é o novo valor, criado durante o ano. Por isso chamamos o capital gasto na
aquisição de força de trabalho de variável. Esta parte do capital aumenta de valor, a força de traba-
lho em funcionamento cria mais valor do que ela custa à classe capitalista. Este valor a mais cons-
titui o lucro e é por isso que o denominamos de mais-valia.

Os conflitos pela apropriação do valor


Demos uma volta muito grande para chegar a uma conclusão que não estava contida em
nossas premissas. Será que não? Vejamos. Começamos por demonstrar que a mercadoria, que é o
elemento da riqueza capitalista, tem um atributo, o valor, que constitui sua verdadeira razão de ser.
No capitalismo, quem suscita a produção de todas as mercadorias é a classe capitalista. É ela que
toma as decisões que tornam esta produção possível. Em cada empresa, o capitalista decide o
que é produzido e em que quantidade. Ora, a classe capitalista concorre com outros donos de frota
e com motoristas autônomos. Se ele cobrar demais, seus carros rodarão vazios, os consumidores
darão preferência a seus competidores.
Ainda não resolvemos o problema. Explicamos o valor, sob a forma de preço, pelos custos mais
a margem de lucro e a margem de lucro pela taxa de lucro, condicionada pela concorrência. Mas a
concorrência só iguala os preços das mesmas mercadorias e, portanto, em princípio, a taxa de lucro.
Cada capitalista tem de cobrar o mesmo preço e, se os custos forem semelhantes, as taxas de lucro
também o serão. Não só em cada mercado, como em todos os mercados, pois o capital é móvel e
passa dos mercados em que a taxa de lucro é menor aos em que ela é maior. Mas, no mercado de
que o capital sai, a oferta de mercadorias cai, o que faz subir o seu preço, portanto a margem e a
taxa de lucro. No mercado em que o capital entra, acontece o oposto: a oferta de mercadorias
aumenta, o que faz o preço diminuir, reduzindo a margem e a taxa de lucro. O incessante vaivém
de capitais individuais entre os diversos mercados faz com que flutuem a produção, os preços, as
margens de lucro e as taxas de lucro. Neste movimento, os capitais individuais elevam a taxa de
lucro nos mercados em que ela estava mais baixa e a reduzem nos mercados em que ela estava mais
alta. Não dá para dizer que as taxas de lucro de todos os capitais tornam-se iguais, mas a concor-
rência entre os capitais tende a aproximá-las. Pode-se falar de uma taxa geral de lucro, ao redor da
qual oscilam as taxas reais de lucro dos capitais individuais.

A origem do lucro
Chegamos agora ao âmago do problema: o que origina a taxa geral de lucro, que pode ser
concebida como a relação entre o lucro anual de todos os capitais individuais e o valor somado
dos mesmos?
A taxa geral de lucro nos permite visualizar o capitalismo como ele realmente funciona. Temos
de um lado o capital total, riqueza conjunta da classe capitalista, que aparece subdividido em inú-
meros capitais individuais. De outro lado temos a classe dos trabalhadores assalariados, que trans-
formam o capital produtivo total (M) em produto total (M’). Este se compõe de uma miríade de
mercadorias diferentes, que são vendidas, ou seja, transformadas num capital monetário total (D).
Examinemos agora o valor do capital total D’. Ele se compõe de 3 parcelas:
1. do valor dos meios de produção consumidos na produção de M’, que de­nominaremos de C
(de capital constante); estas decisões visando o lucro, ou seja, o valor a ser ganho com a venda das
mercadorias. O lucro decorre da diferença entre o valor da produção e o custo da produção. Esta
diferença é incluída no preço de cada mercadoria e o mais difícil é explicar o que a determina.
Se cada capitalista pudesse determinar unilateralmente o lucro que irá ganhar, os preços seriam
cada vez mais altos, impulsionados por margens crescentes de lucro.
Obviamente, a vontade ilimitada de lucrar de cada capitalista frustrar-se-ia porque os preços
de uns são os custos de outros. O superlucro do fabricante de carros ou de combustível esmagaria
o lucro do dono da frota. Este naturalmente aumentaria ainda mais o preço da corrida. Teríamos

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uma inflação galopante, coisa que ocorre realmente quando certos preços disparam, causando a
elevação dos outros.
Se deixarmos momentaneamente de lado nosso capitalista individual, obce­cado em lucrar ao
máximo, poderemos entender melhor o que se passa. Quando os capitalistas elevam os preços uns
contra os outros, o máximo que eles fazem é redistribuir entre si o mesmo lucro total. Mas eles
podem efetivamente aumentar o seu lucro total se aumentarem os seus preços contra os outros
participantes do jogo do mercado. Entre estes outros, o mais importante é a classe dos tra­balhadores
assalariados. Se os capitalistas elevarem os preços das mercadorias consumidas pelos trabalhadores
sem alterar o valor dos salários que lhes pagam, a margem de lucro total se eleva na mesma medida
em que a parcela do valor novo consumido pelos trabalhadores cai. Este tipo de inflação aumenta
M, o lucro total, em detrimento de V, e como o capital total continua o mesmo, a taxa geral de
lucro também aumenta. Através da concorrência, o aumento da taxa geral de lucro permite que as
taxas de lucro de muitos capitais individuais aumentem, embora as dos capitais que produzem
mercadorias especificamente para o consumo operário possam diminuir.
É claro que a classe dos trabalhadores assalariados, ao perceber que a subida dos preços
deteriora seus salários, irá reagir exigindo o reajustamento dos mes­mos. Conforme a força de
seus sindicatos, terá mais ou menos êxito. O que essa discussão mostra é que por mais dominante
que a classe capitalista seja, ela não determina sozinha a margem de lucro total nem a taxa geral
de lucro.
Estas magnitudes são determinadas no confronto de classes, na luta diuturna entre capitalistas
e trabalhadores.
E o mesmo confronto se verifica entre a classe capitalista e o Estado, que lhe extrai uma parte
do lucro total sob a forma de tributos. A inflação dos preços capitalistas desvaloriza a receita tribu-
tária, acarretando o déficit público, que os porta-vozes da classe capitalista vão atribuir à ineficiên-
cia e à corrupção na administração pública. A repartição do lucro total (ou excedente social) entre
a classe capitalista e o aparelho de Estado dá lugar a variados conflitos políticos e ideológicos, dos
quais, por falta de espaço, não nos ocuparemos aqui. E apenas mencionaremos os conflitos distri-
butivos que se produzem entre a classe capitalista e os produtores simples de mercadorias (que
constituem a pequena burguesia) e entre as classes capitalistas de diferentes nações. Em todos
estes conflitos, preços são esgrimidos como armas, acarretando contínuas mudanças na apropriação
do valor embutido nas mercadorias.
Cumpre notar que os conflitos pela apropriação do valor gerado na produção das mercadorias
assume forma de inflação, frequentemente, mas esta não é sua única forma. Os mesmos conflitos
podem ser travados mediante a baixa de al­guns preços e a alta de outros, de tal modo que a média
dos preços se mantenha constante, o que significa ausência de inflação.

A lógica do capital: aparência e realidade


O capitalista individual tem uma consciência muito imperfeita de que pertence a uma classe
e que o seu capital não passa de uma parcela do capital total. Envolvido na concorrência com
outros capitalistas, ele mal entrevê que a taxa de lucro que logra é determinada, em boa medida,
pela taxa geral de lucro. E os seus interesses o cegam totalmente perante o fato de que o lucro
é valor criado pelo trabalho assa­lariado que não é pago pelos salários. Não obstante, as regras
de jogo da economia capitalista o coagem a atuar conforme a lógica do capital. Estas regras se
manifes­tam através da concorrência. Para subsistir como capitalista, o empresário tem de acumu-
lar capital, isto é, tem de reinvestir grande parte do lucro para modernizar seu equipamento,
tendo em vista elevar a produtividade do trabalho como meio de reduzir seus custos. Na luta
concorrencial, o lucro é fim e meio.
E fim porque uma “boa” taxa de lucro é o atestado do êxito empresarial, de que a empresa
foi competentemente conduzida. A honra e o prestígio da empresa e de quem se encontra à sua
frente decorrem de seu balanço anual, particularmente sua conta de “lucros e perdas”. Uma
empresa com prejuízo é rapidamente aban­donada pelos credores, que passam a considerá-la um

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mau risco. Os investidores naturalmente fazem o mesmo. Perdendo o acesso a capital novo, a
empresa fica impedida de continuar na corrida tecnológica e em breve pode se encontrar falida.
Uma empresa bastante lucrativa recebe tratamento oposto: é cortejada por credores e investido-
res, o prestígio dos seus produtos cresce no mercado. Ter ou não ter lucro é, portanto, uma
questão de vida ou morte para o capital individual.
Mas o lucro também é meio, pois constitui a principal fonte de acumulação do ca­pital. O lucro
não tem por finalidade principal proporcionar ao seu detentor um elevado padrão de consumo. Este
acaba sendo um subproduto, de importância secundária. Não é que o capitalista enquanto pessoa
não goste de luxo e pompa. Ele até que gosta, mas não tem tempo para se dedicar a eles. O ver-
dadeiro requinte exige esforço e dedicação de quem deseja desfrutá-lo. É um apanágio das classes
ociosas, no capitalismo, dos que vivem de rendas de propriedades, herdeiros de grandes fortunas,
com tempo de se devotar ao mecenato ou à filantropia. O verdadeiro capitalista dedica todo o seu
tempo à atividade empresarial e pouco lhe importa a fatia do lucro que usa para o seu consumo
pessoal. Em empresas de porte médio e grande esta fatia é desprezível, a não ser que haja grande
número de herdeiros. No fundo, o usufruto parasitário do capital como fonte de renda é contrário
à lógica do capital e leva à ruína empresas antigas, cujo lucro é apropriado por uma quantidade
excessiva de herdeiros.
O lucro tem de ser acumulado, ou seja, transformado em novo capital. O nosso dono da frota
de táxis pode consumir um terço ou um quarto do seu lucro anual de 1.000 salários mínimos. O
restante ele tem de usar pura ampliar a frota ou, digamos, instalar rádios nos carros, transformando
sua empresa em uma empresa de radiotáxis. Se não o fizer, seus concorrentes o ultrapassarão e,
possivelmente, no ano seguinte seu lucro cairá, podendo até se tornar prejuízo.
O capitalista não imagina que o lucro provenha do trabalho de seus emprega­dos. Ele pensa,
ao contrário, que por “dar-lhes” emprego é ele, capitalista, quem os sustenta. Ocasionalmente ele
proclama (sobretudo para obter favores do poder público) que de sua empresa dependem x traba-
lhadores e suas famílias. Mas a realidade logo lhe ensina que as classes existem e se confrontam,
os trabalhadores se sindicalizam e apresentam reivindicações na negociação do contrato coletivo
de trabalho.
Estas reivindicações podem até lhe parecer justas, mas infelizmente elas sempre elevam os custos
e portanto ameaçam o sacrossanto lucro da empresa. Portanto, ele se opõe a elas com toda a força,
aliando-se a seus concorrentes para impedir que os salários sejam aumentados, que a jornada de traba-
lho seja reduzida ou que a segurança no trabalho seja reforçada. Ao agir, unidos, os capitalistas con­firmam
que efetivamente os lucros de cada um são parcelas do lucro total, fruto da exploração da classe traba-
lhadora pela classe capitalista.
A lógica do capital não se impõe apenas aos capitalistas, mas também aos trabalhadores. Como
vendedores individuais de força de trabalho, encontram-se à mercê do capital, que trata de fomen-
tar a concorrência entre eles.
Dentro da empresa, os trabalhadores são escalonados em níveis hierárquicos de mérito e
responsabilidade, em grande medida artificiais. Esta hierarquia salarial tem por fim oferecer ao
trabalhador um simulacro de carreira. A grande maioria deles encontra-se na base da pirâmide e
deve conformar-se com salários baixos em troca da perspectiva de ascender no futuro a níveis
mais altos. As promoções por mérito devem induzir os trabalhadores a se esforçarem ao máximo
na pro­dução e a se submeterem à disciplina da empresa. Mas os trabalhadores logo descobrem
que, unidos, eles ganham poder e podem conquistar concessões do capital. Organizados em
sindicato, usam a paralisação coletiva do trabalho para conquistar o aumento dos salários mais
baixos, achatando a pirâmide e destruindo o incentivo à competição entre eles. A solidariedade
de classe se impõe como imperativo ético e como meio prático de luta. Em lugar de se submete-
rem às chefias, os trabalhadores se protegem mutuamente (ocultando, por exemplo, da direção
da empresa a identidade de seus líderes) e assim conseguem se apropriar de uma parcela maior
do valor criado pelo seu trabalho.

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A lógica do capital desemboca na luta de classes e esta passa do plano eco­nômico ao social e
político. Viver perigosamente parece ser a sina histórica do capital.

Nota
1. Estamos abstraindo aqui que as tarifas de táxi são controladas pelo governo municipal. Em geral, os capita­
listas têm liberdade de fixar seus preços

Extraído de SINGER, Paul. Capitalismo: a sua evolução, a sua lógica e a sua dinâmica. São
Paulo: Moderna, 1987.

3.2 Marx e a educação politécnica


Como estamos em um curso de licenciatura em História e seremos pro­fessores mediadores
do conhecimento, acredito ser interessante analisarmos também a leitura do processo educativo
na vertente marxista, que se distingue bastante do pensamento durkheiminiano.
Na leitura marxista, a educação deve ser vista como um instrumento de transformação
social e não uma educação reprodutora dos valores do ca­pital. Dentro dessa concepção ele
aborda a necessidade de uma educação politécnica, estabelecendo três pontos principais:
1. O ensino geral, que compreenderia línguas e literatura materna
e estran­g eira, juntamente com o ensino de ciências, pois isso
elevaria o nível cul­tural da classe trabalhadora e lhe propiciaria
uma visão universalista.
2. A educação física, compreendendo os exercícios físicos que visa‑
vam salvaguardar a condição física dos meninos e futuros adultos.
3. Os estudos tecnológicos, que deveriam incluir os princípios gerais
e cientí­f icos de todos os processos de produção, a utilização dos
instrumentos de todos os ramos industriais. Isso permitiria um
saber fazer, que de um lado, exigia conhecimentos científicos e,
de outro, o aprendizado da manipula­ção dos instrumentos, o que
possibilitaria aos trabalhadores o conhecimento e a apropriação
das condições de produção (TOMAZI, 1997, p. 7).

Esse sistema educacional caracterizava-se na criação de escolas em tempo integral, dividi‑


das em dois períodos, que possibilitaria combinar na formação da criança, educação escolar e
trabalho na fábrica. No primeiro período a criança aprenderia questões pedagógicas (línguas,
matemática, ciência, literatura...) e no outro, desenvolvia-se a concepção de produção: como
funciona o processo produtivo, quais os instrumentos utilizados, como planejar e executar...
Podemos perceber que dentro desse “sistema educacional” não existe a separação entre
trabalho manual e intelectual, ou seja, o trabalho explorado, onde um grupo de pessoas manda
e outro obedece, diferenciando os homens. A escola politécnica possibilita a formação inte‑
gral do homem, não repas­sando conteúdos fragmentados, mas ensinando, ao mesmo tempo,
conteúdos pedagógicos e produtivos. E como é em nossa sociedade? Quem pensa não executa
e quem executa não pensa.
Essa educação politécnica desenvolveria o que Marx denomina de omnilateralidade, ou
seja, a possibilidade de o indivíduo se desenvolver em vários sentidos, ser formado plenamente,
sem ter um único caminho a seguir, um único conhecimento, impossibilitando a formação
unilinear, onde está pre­e stabelecidos e divididos os caminhos que cada indivíduo deve seguir,
tendo uma única formação.

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A educação politécnica fundamenta-se na possibilidade de romper com a alienação im‑


posta pelo trabalho capitalista, e esse novo saber seria a chave para a emancipação do homem
como ser humano, ou seja, a construção do ser social pleno.
A educação dará aos jovens a possibilidade de assimilar rapidamente
na prática todo o sistema de produção e lhes permitirá passar sucessi‑
vamente de um ramo de produção a outro, segundo as necessidades da
sociedade ou suas próprias in­clinações. Por conseguinte, a educação
nos libertará desse caráter unilateral que a divisão atual do trabalho
impõe a cada indivíduo. Assim, a sociedade [...] dará aos seus membros
a possibilidade de empregar em todos os aspectos suas faculdades de‑
senvolvidas universalmente (ENGELS apud RODRIGUES, 2000, p. 57).

Para Marx o ensino deveria ser universal, obrigatório, público e gratuito, principalmente
no ensino fundamental. Esse ensino não deveria ser oferecido pelo Estado, pois ele é a repre‑
sentação da burguesia no poder. Caberia ao Es­tado propiciar as condições materiais para a
efetivação da escola politécnica, que seria gerida pelos trabalhadores, no sentido de imple‑
mentar a educação para os alunos formando indivíduos sociais plenos.
[...] é somente trabalhando para o bem e a perfeição do mundo que
o cerca que
o homem pode atingir sua própria perfeição [...] Se ele cria somente
para si mesmo ele se tornará talvez um sábio célebre,um grande
sábio,um poeta distinto,mas jamais um homem completo,um homem
verdadeiramente grande [...] A história chama àqueles que, agindo no
interesse comum, se enobreceram (MARX, 2001, p. 11-16).

Podemos perceber que essa escola fundamenta-se na possibilidade de transformação da


sociedade através da ação do homem. Nesse momento, podemos estar nos perguntando: será
que essa educação politécnica estabeleceria novas perspectivas para a educação e para o ho‑
mem? Hoje em dia, será que estamos vivendo um período de politecnia, em vir­tude do avanço
tecnológico? Será que foi o homem ou o capital que revolucionou a educação?

Saiba mais
Existem muitas obra de primeira mão (escrita pelo próprio Marx) e de segunda mão (interpre-
tação do pensamento marxiano) sobre a teoria de Karl Marx. As mais significativas escritas
pelo próprio Marx são: A ideologia alemã, O capital, Os manuscritos econômicos e filo-
sóficos, além do Manifesto do partido comunista, que está disponibilizado na íntegra
dentro do nosso texto. Antonio Gramsci (Os intelectuais e a organização da cultura),
Vladimir Illitch Ulianov — Lênin (Estado e a revolução) são pensadores contemporâneos que
utilizam as bases marxianas para a interpretação da sociedade capitalista moderna.

Segundo Rodrigues (2000, p. 57),


Basta olharmos, nos dias que correm, para o perfil do trabalhador
polivalente, exigido pe­las indústrias contemporâneas, para compreen­
dermos que a mudança seria bem mais compli­cada. Foi o próprio ca‑
pital que revolucionou a divisão do trabalho. Hoje, o desenvolvimento
tecnológico possibilitou ao capitalista realizar a mesma produção do
que antes o obrigava a empregar milhares de operários, agora com

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apenas algumas dezenas de trabalhadores superqualificados. Educados,


mas nem por isso emancipados! Vivemos hoje os dias da “sociedade
da informação” da “sociedade do conhecimento” mas o fosso social
que separa as classes continua a aumentar!

Dentro desse contexto, percebemos que Marx propõe uma sociedade livre das condições
de contradição, das classes sociais e da exploração do trabalho. É dentro desse sentido que
a educação é vista como fator de trans­formação social e ponto central para a construção das
novas condições de vida humana. Vale ressaltar que seu pensamento é extremamente impor‑
tante para uma leitura crítica da sociedade capitalista dos dias de hoje.

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  Seção 4 Max Weber e a sociologia


compreensiva

4.1 A busca pela compreensão da sociedade


Um pensador importante da sociologia clássica é Max Weber e sua socio­logia com­
preensiva. Como o próprio nome já diz, ele vai buscar compreender as ações dos indivíduos
em sociedade.
Para começar, Weber acredita que o cientista deve estudar fragmentos da realidade social
para melhor compreendê-la. Nesse sentido, os estudos de Weber abordam a sociedade capi‑
talista não em sua totalidade, mas em alguns aspectos, como: política e dominação, a ação
social dos indivíduos, a relação capitalismo e religião, entre outros.
Para Weber, a sociedade não é uma instituição que se impõe aos indiví­duos, como pensava
Durkheim. Weber estabelece que a sociedade é fruto das ações racionais dos indivíduos, que
fazem conscientemente suas escolhas a todo momento e em todas as instâncias da vida, sendo
que são essas ações que estruturam a sociedade.
Segundo Weber, para compreender a sociedade torna-se necessário co­n hecer como os
indivíduos racionalmente constroem as relações políticas, econômicas, culturais e sociais.
Vimos que a análise de Weber centra-se nos atores e em suas ações, o que ele determina
como ação social.
Ação social é qualquer ação que o indiví­duo pratica orientando-se pela
ação de outros. [...] Só existe ação social quando o indivíduo tenta
estabelecer algum tipo de comunicação, a partir de suas ações, com
os demais (TOMAZI, 2000, p. 19).

Para saber mais


Max Weber, sociólogo, historiador e político alemão, nasceu em 1864 em Erfurt, Turíngia, e
morreu em 1920 em Munique. Filho de um grande industrial têxtil na Alemanha Ocidental, foi
professor na Universidade de Berlim. Dois anos depois, sofreu sérias perturbações nervosas que
o levaram a deixar os trabalhos docentes, só voltando à atividade em 1903, na qualidade de
coeditor do Arquivo de Ciências Sociais (Archiv tür Sozialwissenschatt), publicação extremamente
importante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Alemanha. A partir dessa época,
Weber somente deu aulas particulares, salvo em algumas ocasiões, em que proferiu conferências
nas universidades de Viena e Munique, nos anos que precederam sua morte.

Analisemos a definição acima, salien­tando alguns pontos. A ação social pode ser tam‑
bém uma omissão ou uma permissão, não só um ato propriamente dito. Além disso, essa
ação é dotada de um significado subjetivo, ou seja, de um significado que tem valor para
o executor do ato, não para a coletividade ou para a sociedade. Uma outra observação é
que o executor orienta sua ação pelas ações dos outros indivíduos, que podem ser ações
passadas, presentes ou futuras. Pode-se dizer, portanto, que é ação social tudo aquilo que
o indivíduo faz orientando-se pela ação dos outros.

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Dentro desse contexto, Weber agrupa as ações sociais em quatro tipos: ação tra­dicional,
ação afetiva, ação racional com relação a fins e ação racional com relação a valores.
A ação tradicional é determinada pelas tradições, costumes e hábitos arraigados, por
exemplo: almoço de domingo na casa dos avós... sempre foi assim, é uma ação baseada na
tradição passada de geração para geração.
A ação afetiva é determinada pelos sentimentos, emoções e afetivida­des, onde o indiví‑
duo age por suas emoções imediatas. A ação afetiva não leva em consideração os fins que
quer atingir nem os meios para isso, pois a racionalidade, tanto neste tipo de ação quanto na
tradicional, fica como que “suspensa”. Um exemplo: em uma discussão podemos perder a
razão e brigarmos com a pessoa amada, pois ela agiu sem pensar racionalmente nos objetivos
e consequências de sua ação.
Já a ação racional com relação a fins é uma ação planejada, ou seja, uma ação racional
em que pensamos quais os objetivos queremos alcançar, e quais os meios que iremos utilizar
para consegui-los. Prestem atenção que aqui existe um pensamento, é uma ação consciente.
Exemplo: tenho como objetivo fazer um curso superior e, para isso, tenho que agir racional‑
mente, estudando muito para passar no vestibular e terminar a universidade.
A relação racional com relação a valores também é uma ação racional, visto que é de‑
terminada pela crença consciente em um valor que se con­s idera importante. Exemplo: vou a
igreja todos os domingos, pois acredito, conscientemente, nos valores que são transmitidos
por ela, e não porque é uma tradição da minha família.

Questões para reflexão


Se pararmos para pensar, em todos os momentos da nossa vida estamos realizando
os tipos de ação propostos por Weber. Quer ver? Coloco aqui uma questão a ser
pensada: considere no seu cotidiano e reflita sobre suas ações. Muitas vezes elas
não se encaixam no que foi descrito no parágrafo acima?

Baseado nos tipos de ação social, Weber distingue que, para existir a so­ciedade, é neces‑
sário que o sentido das ações realizadas pelos indivíduos seja o mesmo, pois um indivíduo
sozinho não é capaz de construir a sociedade. Torna-se necessário que o sentido da ação seja
compartilhado por um grupo de indivíduos, visto que, para Weber, a sociedade é fruto das
relações sociais.
[...] para que se estabeleça uma relação social, é preciso que o sentido
seja com­partilhado. Por exemplo, um sujeito que pede uma informação
a outro estabelece uma ação social: ele tem um motivo e age em rela‑
ção a outro indivíduo, mas tal motivo não é compartilhado. Numa sala
de aula, onde o objetivo da ação dos vá­r ios sujeitos é compartilhado,
existe uma relação social (COSTA, 2002, p. 73).

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Aprofundando o conhecimento
Para compreender um pouco mais sobre essa questão, leia a seguir um trecho do
livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 11-13).

A perspectiva sociológica
1.5. Os fundamentos da ação social
Enquanto Durkheim prioriza a sociedade na análise dos fenômenos sociais, considerando-a
externa aos indivíduos e determinadora de suas ações, Max Weber prioriza o papel dos atores e as
suas ações individuais reciprocamente referidas. A sociedade, para Weber, deve ser compreendida
a partir desse conjunto de interações sociais.
A sociologia, para Weber (1991, p. 3), significa: “uma ciência que pretende compreender in-
terpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos”.
A ‘ação social’ toma o significado de uma ação que, quanto ao sentido visado pelo indivíduo,
tem como referência o comportamento de outros, orientando-se por estes em seu curso. Como
exemplo: o simples ato de com­prar sapato é realizado tendo como referência um conjunto de opiniões
de outras pessoas, entre as quais o vendedor, a namorada, a mãe, os amigos, e assim por diante.
Desse modo, a ação social — aí incluídas a omissão ou a tolerância — orienta-se pelo compor-
tamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro. Os ‘outros’ podem ser
indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade de pessoas completamente desconhecidas. Por
outro lado, “nem todo tipo de contato entre pessoas tem caráter social, senão apenas um compor-
tamento que, quanto ao sentido, se orienta pelo comportamento de outra pessoa” (Weber, 1991,
p. 14). O autor fornece um exemplo do que afirma ao explanar sobre o choque entre dois ciclistas,
que, quando ocorre, trata-se de um acontecimento do mesmo caráter de um fenômeno natural, e,
ao contrário, tratar-se-ia de um fenômeno social, constituindo-se de ações sociais, as tentativas de
desvio de ambos, o xinga­mento, ou uma discussão pacífica após o choque. Fica estabelecida uma
relação social entre ambos.
Nessa interpretação, a interação torcedor e jogador constitui-se num fenômeno social, pois
seus agentes têm um ao outro como referência para seus atos. Do mesmo modo, podem ser trata-
das todas as interações existentes no âmbito do esporte, que, no geral, tomam o comportamento
do jogador como referência, orientando seus atos a partir desse parâmetro.
Uma vez estabelecida a definição de ação social, podem-se encontrar seus dife­rentes tipos
agrupando-os de acordo com o modo pelo qual os indivíduos orientam suas ações. E, segundo
Weber (1991, p. 15), a ação social pode ser determinada de quatro modos: racional referente a fins;
racional referente a valores; afetivo, especialmente emocional; tradicional.
A ‘ação social racional referente aos fins’ é determinada pelo cálculo ra­cional que estabelece os fins
e organiza os meios necessários. Por exemplo: ao fazer a aquisição de um aparelho de televisão, o com-
prador levará em conta o custo, se o tamanho do aparelho é adequado para o alojamento onde ficará
instalado, se é colorido, e assim por diante. Um jovem escolherá uma namorada levando em consideração
se ela é comunicativa, se está vestida adequadamente, o seu nível de escolaridade etc. O torcedor decidirá
se irá ao campo levando em consideração as acomodações, o preço, as facilidades de acesso etc.
A ‘ação social referente a valores’ é determinada pela importância do valor, não sendo considerado
o êxito que se possa obter assumindo-se esse valor. É uma ação social valorizada socialmente, e é
relevante a opinião do grupo social ao qual pertence o indivíduo. Por exemplo: na aquisição de um
aparelho de televisão, o comprador dará importância à marca; os outros fatores que determinam a

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escolha serão secundários. A namorada será escolhida tendo em conta os valores que predominam
na sociedade da qual faz parte, que terão papel preponderante na escolha, ficando os demais num
segundo plano. Se a beleza feminina é o valor fundamental, este será o critério predominante na ação;
se há uma valorização do papel da mulher como dona de casa, a beleza ficará num plano secundário.
A escolha de assistir ou não ao jogo no campo de futebol ou em casa, por parte do torcedor,
levará em consideração os valores do grupo social ao qual pertence. Por exemplo: pode ser de
fundamental importância para o seu grupo social a ida ao campo, constituindo-se num motivo de
aumentar os contatos sociais e valorizar sua presença nos grupos durante a semana, pois será
portador de imagens que não foram mostradas pelos meios de comunicação.
A ‘ação social de modo afetivo’ é determinada pelos afetos ou estados emocionais; a relação
entre os indivíduos se expressa em termos de lealdade e antagonismo. Por exemplo: o comprador
adquirirá o modelo de televisor de que mais goste, ou não comprará um determinado modelo em
hipótese nenhuma. A namorada será escolhida ou rejeitada de modo emocional, incluídas aí mani-
festações de paixão ou rancor.
A escolha da ida ao campo de futebol será motivada pela emoção, pelos sentimentos etc.
Poderá ir porque foi humilhado num jogo anterior com o mesmo time e quer se vingar; ou por ser
o time que desperta suas mais fortes emoções; ou porque está um dia muito bonito para se ir ao
campo etc.
A ‘ação social de modo tradicional’ é aquela determinada pelas tradições, pelos costumes arrai-
gados. Por exemplo: alguém poderá adquirir um televisor da mesma marca da que foi dos seus pais
ou da sua família. A namorada poderá ser escolhida baseada numa tradição familiar de se escolherem
“moças de família”, estereótipo passado de pai para filho.
A ida ao campo, nesse caso, será decidida em função dos costumes e das tradições adquiridas.
O indivíduo poderá não faltar a jogos com determinado time. Vai sempre no campo porque é tra-
dição de pai para filho etc.
Está claro que as ações sociais não são determinadas, de modo geral, por um único tipo. No
caso da escolha da namorada, o jovem pode levar em consideração tanto a tradição (a moça de
família) como os valores predominantes na sociedade em que vive (bonita, magra etc.). Do mesmo
modo, as diversas ações sociais que ocorrem em qualquer âmbito podem ser determinadas por
vários tipos. A ida a um campo de futebol pode ser motivada pelo dia bonito, por ser um jogo em
que não se pode faltar por envolver um time adversário específico, pelo baixo preço dos ingressos
naquele dia etc.
A ação social para Weber é um componente universal e específico na vida social e fundamen-
tal para a organização da sociedade humana.

No entanto, a explicação do cientista social será sempre parcial, já que Weber concebe
a sociedade como composta por diferentes esferas — a econômica, a religiosa, a política, a
jurídica, a social, a cultural, entre outras — cada uma delas funcionando de maneira autô‑
noma e totalmente desligada das demais. Assim, é somente através da análise das ações dos
indivíduos que podemos compreender as relações entre essas diferentes esferas que compõem
a sociedade. Portanto, o conhecimento será sempre limitado, referindo-se somente a uma
parcela da realidade, já que esta não possui lógica e funcionamento próprios, autônomos,
independentemente dos indivíduos, como pensava Durkheim, por exemplo.
Um outro fragmento social estudado por Weber foi a relação política e dominação.
Intrigava-o pensar que, nas diversas formações sociais, existiram sempre os indivíduos que
“mandavam” e os que “obedeciam”. Analisando essa questão, Weber distingue três tipos de
dominação: a dominação legal, a dominação tradicional e a dominação carismática.
A dominação legal é aquela onde a obediência é baseada nas leis, estatutos e normas
estabelecidas em nossa sociedade. Temos como exemplo o nosso Estado De­mocrático.
A dominação tradicional é aquela onde existe a obediência nas crenças das santidades e
das tradições, dos hábitos e dos costumes, que devem ser respeitados. Podemos pegar como

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exemplo o poder que o rei exerce sobre seus discípu‑


los, sendo que esse poder está vinculado a tradição
Para saber mais da monarquia.
Já na dominação carismática, a obediência se dá
A história do Brasil está repleta de pelo carisma do líder, sendo esse carisma definido
líderes políticos carismáticos — como uma qualidade, um atributo pessoal de quem
que exerce liderança, como a coragem, o heroísmo,
Getúlio Vargas, Fernando Collor de
a forma de se ex­p ressar verbalmente, entre outros.
Melo, entre outros, que “conquis- Podemos citar aqui Hitler, que conseguiu, através do
taram” a população por algumas seu carisma, mobilizar todos os alemães em prol da
de suas características pessoais. raça pura, exterminando um grande número de judeus.
Analisando os conceitos discutidos até agora, po‑
demos perceber que Weber não analisa as regras e
normas sociais como exteriores ao indivíduo, conforme afirmava Durkheim. As normas são
resultado do conjunto de ações individuais, sendo que são os próprios indivíduos que escolhem
o tempo todo diferentes formas de conduta.
As ideias coletivas, como o Estado, o mercado econômico, as religiões,
só existem porque muitos indivíduos orientam reciprocamente suas
ações num determinado sentido. Estabelecem, dessa forma, relações
sociais que têm de ser mantidas continuamente pelas ações individuais
(TOMAZI, 2000, p. 20).

Um outro ponto discutido por Weber é a análise que ele realiza sobre a consolidação do
modo de produção capitalista. Para ele, o capitalismo teve sua base inicial nas ações sociais dos
indivíduos que seguiam os princípios da Religião Calvinista (fruto da Reforma Protestante — que
já elencamos no início do nosso texto) baseados em princípios como a ética e disciplina para o
trabalho e a importância do ato de poupar, pois acreditavam que esses mecanismos que levavam
ao trabalho e sucesso seriam indícios de estarem glorificando a figura divina.
Com o passar do tempo, a ideia de predestinação e salvação vai perdendo forças, mas o
trabalho disciplinado e a busca pelo sucesso — acúmulo de capital — continuam a existir. Essa
prática estimulou e favoreceu a acumu­lação capitalista. Esta tese é apresentada e discutida no
livro A ética protes­tante e o espírito do capitalismo, no qual Weber analisa obras de puritanos
e de autores que representavam os valores disseminados pelo calvinismo, relacionando-os
às condições para o estabelecimento do capitalismo (QUIN­TANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA,
2001, p. 130).
Nesse contexto, um outro ponto importante no pensamento de Max Weber é a sua preo‑
cupação com a crescente racionalização e burocratização da so­ciedade capitalista moderna.
Essa racionalização da sociedade estabelece-se como o desenvolvimento histórico da socie‑
dade, em que certas ações sociais dos indivíduos se consolidam criando instituições sociais
(Igreja, Estado) que estabelecem certas regras e normas para serem seguidas pelos indivíduos,
desembocando em um consenso geral que concretiza a dominação legal, em detrimento dos
outros tipos de dominação.
Vimos que Weber estabelece que a sociedade é constituída das ações dos indivíduos e
suas interações, visando estabelecer valores a serem com­partilhados em sociedade. Com o
desenvolvimento da sociedade moderna, ocorreu uma maior racionalização dessas ações,
necessitando estabelecer um maior número de regulamentos e normas a serem obedecidas,
para ameni­zar o conflito existente entre os indivíduos. Essas leis partem do pressuposto da
dominação legal, de modo que alguns indivíduos as criam e as impõem sobre outros.
Juntamente com essa sociedade moderna e a aplicação de suas leis, necessita-se de um
quadro administrativo, hierarquizado, burocrático e profissional para implementá-las e fazer
com que seja estabelecido o consenso entre os indivíduos, para que todos ajam conforme
essas determinações sociais existente em sociedade.

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Mas Weber afirma que as relações sociais não são instituídas definitiva­mente. Como é o
homem que estabelece ações para a concretização da so­ciedade, ela pode modificar-se no
decorrer da história, pois são essas mesmas ações que podem desenvolver um processo de
transformação social.
Weber também discute a questão da desigualdade social, elaborando as categorias de
castas e estamentos. Segundo Weber, as castas expressam um tipo de desigualdade pautado
em elementos que são peculiares às sociedades que as tornam possíveis, sendo que essas so‑
ciedades agrupam os indivíduos em posições econômicas e políticas. A sociedade de castas
fundamenta-se em algumas categorias básicas, como, por exemplo, a hierarquização rígida,
fundada em itens como hereditariedade, profissão, etnia, religião, que são definidos a partir de
um conjunto de valores, hábitos e costumes oriundos de uma tradição. Esse sistema de castas
fundamenta-se em uma relação de privilégios que alguns indivíduos possuem sobre outros.
Segundo Rezende (1993, p. 97):
[...] esse tipo de organização social parte do pressuposto de que os
direitos são desiguais por natureza, uma vez que os elementos que
os caracterizam são definidos fora dos indivíduos. Pode-se dizer que,
nas sociedades antigas, a organização social baseava-se no sistema de
castas, sendo que as desigualdades política e jurídica expressavam‑
-se através do lugar que o indivíduo ocupava na estrutura de cargos e
profissões, definidos pela hereditariedade, em primeiro plano.

Uma outra forma de discutir a questão da desigualdade social para Weber é a questão dos
estamentos. Em seu estudo Economia e Socie­dade ele analisa a sociedade feudal como uma
sociedade estamental, que desenvolveu sua organização política fundada na hierarquização
dos estamentos (clero, nobreza, servos) na qual cada grupo realizava suas fun­ções determinadas
pela hierarquia fundada na propriedade de terras, na política e na religião.

Aprofundando o conhecimento
Para compreender um pouco mais sobre a estratificação social e outros conceitos,
leia a seguir um trecho do livro Introdução à sociologia, de Dias (2005, p. 156-159).

Estratificação social
10.4. A estratificação social em Max Weber
Diferentemente de Marx, Max Weber insistiu que uma única característica da realidade social
(como classe social, com base no sistema de relações de produção) não define totalmente a posição
de uma pessoa dentro do sistema de estratificação.
Weber utiliza três dimensões da sociedade para identificar as desigualdades nela existentes — a
econômica, a social e a política —, que estão relacionadas com três componentes analiticamente
distintos de estratificação: classe (riqueza e renda), status (prestígio) e poder. A posição de uma pessoa
em um sistema de estratificação refletiria um pouco da combinação de sua classe, de seu status e de
seu poder. Ao mesmo tempo, essas três dimensões de estratificação poderiam operar um pouco in-
dependentemente umas das outras, determinando igualmente a posição de uma pessoa.

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De acordo com Weber, há três sistemas, ou três ordens, de estratificação em qualquer sociedade:
a ordem econômica, a ordem social e a ordem política (ou legal). Cada uma dessas apresenta sua
própria hierarquia, muito embora existam relações entre elas. Como exemplo: um indivíduo numa
classe social elevada (or­dem econômica) facilita sua permanência numa camada de grande prestígio
(ordem social) ou o seu acesso a um cargo político importante (ordem política), podendo ocorrer o
mesmo na ordem inversa.
Chama de classe “a todo grupo de pessoas que se encontra em igual situação de classe”, e a
situação de classe é definida por ele como (Weber, 1991, p. 199) “a oportunidade típica de 1)
abastecimento de bens, 2) posição de vida externa, 3) destino pessoal, que resulta, dentro de de-
terminada ordem econômica, da extensão e natureza do poder de disposição (ou falta deste) sobre
bens ou quali­ficação de serviço e da natureza de sua aplicabilidade para a obtenção de rendas ou
outras receitas”.
Diferentemente de Marx, que conceituou classe social como determinada pelas relações sociais
de produção (como na sociedade capitalista, em que os proprietá­rios dos meios de produção formam
a classe social dominante — burguesia — e aqueles que não detêm o controle dos meios de pro-
dução, possuindo somente sua força de trabalho, constituem a classe social dominada — proleta-
riado), Max Weber afirmava que as classes sociais se estratificam segundo o interesse econô­mico,
em função de suas relações de produção e aquisição de bens. A diferen­ciação econômica, segundo
Weber, é representada, portanto, pelos rendimentos, bens e serviços que o indivíduo possui ou de
que dispõe. As classes sociais estão diretamente relacionadas com o mercado e com as possibilida-
des de acesso que os grupos na sociedade possuem a este.
O tipo de estratificação que corresponde ao status e baseia-se no prestígio é a contribuição
mais importante de Max Weber no estudo da hierarquia social. Tem base na ‘honra social’. O pres-
tígio e a honra não podem ser avaliados obje­tivamente, como o podem a posse de bens e a riqueza
econômica: são objeto de opiniões pessoais e fundamentam-se no consenso estabelecido numa
determinada sociedade. Uma pessoa terá sempre apenas o prestígio que a sociedade lhe quiser
reconhecer. Desse modo, a hierarquia com base no status firma-se em critérios de prestígio social
aceitos numa determinada coletividade.
Os grupos de status podem ser facilmente reconhecidos segundo seu modo de vida — costu-
mes, instrução, prestígio do nascimento ou da profissão. As pessoas que pertencem à mesma
camada de status têm tendência de frequentar os mesmos lugares e conviver com uma certa
frequência — estão quase sempre nos mesmos clubes, nos mesmos bairros, nas mesmas áreas
de lazer e de com­pras, e seus filhos estudam em escolas semelhantes. Os clubes sociais existentes
em qualquer cidade expressam com clareza essa tendência: se perguntarmos a vários membros de
uma comunidade a hierarquia de status dos clubes sociais (excluindo-se os exclusivamente esporti-
vos), veremos que todos apresentam uma hierarquia igual, ou muito semelhante, estabelecendo-se
um certo consenso. Além disso, o prestígio social está ligado a comportamentos definidos, como:
a maneira de falar, de gastar, de ler, de comprar, de se comportar em sociedade.
Além das classes sociais e dos grupos de status, Max Weber distinguia um terceiro tipo de
estratificação social, com base no poder político. Do ponto de vista político, a diferenciação se dá
pela distribuição do poder entre grupos e partidos políticos e também no interior destes. ‘Partido
político’, do ponto de vista de Weber, é uma associação cuja adesão é voluntária e que visa asse-
gurar o poder a um grupo de dirigentes, a fim de obter vantagens materiais para seus membros. O
poder político, de modo geral, está institucionalizado.
Os partidos políticos podem representar interesses determinados pelas ou­tras ordens de
estratificação — a econômica e a social —, mas não coincidem totalmente com as classes sociais
ou os grupos de status. Esta terceira forma de estratificação — a política com base nos partidos
políticos — não é muito clara e por isso pouco empregada; ocorre uma hierarquia entre os par-
tidos políticos, sendo bastante evidente a posição que ocupa aquele que detém mais poder ins­
titucionalizado (o controle do Executivo federal) e aqueles que somente ocupam o poder nas
pequenas cidades. No interior dos partidos políticos encontramos uma outra hierarquia de poder,
que começa no topo, com o líder do partido, e vai até o militante de base.

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10.5. Os estamentos
Um outro conceito formulado por Weber é o de ‘estamento’. De acordo com ele, o estamento
é formado por quem compartilha uma situação estamen­tal, definida como um privilegiamento típico,
positivo ou negativo, quanto à consideração social, com base: no modo de vida, no modo formal
de educação (aprendizagem empírica ou racional) e no prestígio obtido hereditariamente ou pro-
fissionalmente.
A situação estamental se manifesta sobretudo: pela endogamia dentro do grupo, na comen-
salidade (ou seja, no trato), na apropriação monopólica de oportunidades de aquisição privilegiadas
ou estigmatização de determinados modos de adquirir.
Pode originar-se de um “modo de vida estamental próprio e, dentro deste, par­ticularmente da
natureza da profissão”; secundariamente, por carisma hereditário (descendência estamental) e pela
apropriação estamental de poderes de mando.
Weber (1991) chama de sociedade estamental quando a estrutura social orienta-se preferen-
cialmente pelos estamentos. Para ele, toda sociedade esta­mental é convencional, “regulada por
normas de modo de vida, criando, por isso, condições de consumo economicamente irracionais e
impedindo, deste modo, por apropriações monopólicas [...] a formação livre do mercado”.
Os estamentos ou ‘estados’ existiram durante séculos, e, na sociedade euro­peia, o feuda-
lismo representou uma sociedade de estamentos que apresentavam muita semelhança com as
castas — caráter fechado, uniões endogâmicas e con­sanguíneas, e transmissão hereditária do
status —, mas diferenciavam-se destas por não serem tão fechados.
Os estamentos mantinham uma hierarquia de ocupações sancionada por Deus. Cada pessoa
tinha de executar as tarefas próprias de sua ocupação, não podendo abandoná-la. Um indivíduo
não poderia sair de seu estamento, visto que este era regido por normas que definiam a posição do
indivíduo dentro da sociedade, bem como seus privilégios e suas obrigações.
Os três estados que existiam na França do século XVIII são exemplos de esta­mentos. No primeiro
estado — o da nobreza —, seus membros se degradavam ao exercer qualquer atividade econômica.
O segundo estado — o do clero — dis­punha de certos privilégios em matéria de imposto e gozava
de certos direitos. O terceiro estado era constituído do resto, e todo aquele que não era nobre nem
sacerdote era deste estado. Nessa época, os estados tinham existência legal, eram reconhecidos
juridicamente e dispunham de representação no Parlamento. Fato curioso dessa situação que durou
até a Revolução Francesa era que no Parlamento a nobreza sentava-se do lado direito, o clero pos-
suía assento no centro e o povo de modo geral (os comuns) sentava-se sempre do lado esquerdo.
Daí a origem da palavra ‘esquerda’ relacionada com aqueles identificados com posições populares,
ligados ao povo, que é utilizada até hoje.
Dizia-se dos estamentos que “a nobreza era constituída para defender a todos, o clero para
rezar por todos, e os comuns para proporcionar comida para todos”.
O intelectual Raymundo Faoro (1975) publicou em sua obra Os donos do poder: formação do
patronato político brasileiro um estudo do que chamou de ‘estamento burocrático’, que controlaria
o Estado no Brasil desde o Império. Nesse estudo, Faoro considerou o estamen to como uma camada
organizada e definida politicamente por sua relação com o Estado.

10.6. As castas sociais


Entende-se por ‘casta’ um rígido sistema de estratificação social, no qual as pessoas não podem
passar livremente de um nível ao outro. Uma pessoa que nasce numa determinada casta deve
permanecer nela pelo resto da vida. O casamento entre diferentes castas é rigorosamente proibido.
Na maior parte das sociedades antigas, a organização social baseava-se no sistema de castas,
no qual a hierarquização rígida, fundamentada em critérios como hereditariedade, religião, profis-
são ou etnia, determinava a posição do indivíduo na sociedade.

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Por exemplo, embora o sistema de castas tenha sido abolido oficialmente na Índia, em 1949,
ele existiu e foi parte básica da vida do povo durante 2.500 anos. Na prática, as castas existem no
país até os dias de hoje. Os ‘párias’, ou intocáveis, são tão desprezados na hierarquia social que até
mesmo ser ‘tocado’ por sua sombra requer um ritual de purificação.
A casta brâmane é a casta superior em toda a Índia e é considerada a mais pura. Há um número
infinito de castas, inclusive as determinadas por ocupação hereditária — dos barbeiros, dos oleiros,
dos coureiros etc.
O sistema de castas indiano baseia-se numa classificação que vai do ‘puro’ ao ‘impuro’ e que
está em constante oposição. Os intocáveis pertencem à categoria das impurezas permanentes, pois
esta pode ser de dois tipos: permanente e temporária. A impureza temporária pode ser adquirida
pelas pessoas afetadas por acontecimentos, tais como: nascimento, morte, menstruação. As funções
da sociedade que são consideradas impuras são entregues a especialistas. Por exemplo, o barbeiro
é o sacerdote funerário e, por isso, fica encarregado das impurezas. O lavadeiro, ou lavadeira, fica
encarregado de lavar a roupa suja pelo parto ou menstruação. A purificação é feita por meio da
água do banho. Mas nem todos os banhos têm o mesmo poder. O banho que tem o máximo de
virtudes purificadoras ou religiosas é o que o indivíduo faz com as roupas sobre o corpo, nas cor-
rentes sagradas, como, por exemplo, a do Rio Ganges.
A vaca, além de pura, é considerada um animal sagrado. Há cinco produtos do animal que cumprem
um papel purificador, dos quais um é a urina. Ela separa os homens mais elevados dos homens mais
inferiores. Seus produtos são considerados agentes purificadores poderosos e o seu assassinato tem
proporções semelhantes ao assassinato de um brâmane.
As reformas sociais, as mudanças econômicas e a intensificação do processo de urbanização
têm rompido muitas das regras de relacionamento entre as castas, e a tendência é o desaparecimento
gradativo desse sistema.
No entanto, ainda hoje, no começo de um novo milênio, é socialmente forte a presença da
rígida diferenciação social. Um exemplo são os rituais dos mortos nas margens do Rio Ganges, na
Índia. Os corpos dos homens são envoltos em faixas azuis; os de mulheres, em vermelhas; e os de
idosos, em douradas. Há áreas de cremação reservadas a membros da Polícia e do Exército, comer-
ciantes e membros das castas superiores. As mulheres grávidas, os bebês, as crianças com menos
de 12 anos e as vítimas de lepra e varíola são transportados de barco para o rio e jogados nas águas
com uma pedra amarrada ao corpo. Para manter o rio limpo, o governo povoou-o com tartarugas
que se alimentam de cadáveres.1

Nota
1 Informações obtidas em “Vida e morte povoam o Ganges em Varanasi”, jornal Gazeta Mercantil, 30 set.
1999, Caderno Viagens e Negócios, p. 16.

Podemos dizer que seu pensamento propicia uma reflexão das diversas formas de agir de
cada indivíduo. Essa interação entre as partes influencia­ria a construção da realidade social.
Vimos que para Weber a sociedade é racionalizada, ou seja, ela é fruto do conjunto de ações
individuais, pois o homem é o único que pode definir o seu caminho. Por isso é extremamente
importante reconhecer o papel das ações que esses homens executam, para a compreensão
da totalidade social.
Mas vimos também que o capitalismo moderno estabeleceu novas formas de ações para
os homens, através da instituição de leis e princípios burocrá­ticos, para a busca do consenso
entre os indivíduos, através do processo de racionalização da sociedade. Sendo assim,
[...] a educação é o modo pelo qual o homem ou determinados tipos
de homens, são preparados para exercer as funções que a transforma‑
ção causada pela racio­n alização da vida lhes colocou à disposição
(RODRIGUES, 2000, p. 75).

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4.2 Educação e a leitura weberiana


Nesse sentido, podemos dizer que a educação, para Weber, é o modo pelo qual os
homens são preparados para exercer as funções dentro da sociedade. Essa educação é uma
educação racional.
A educação e a escola, como instituição do Estado Moderno, passaram a ser um fator de
estratificação social e não mais visam a educar para o mundo. Nesse sentido, Weber estabe‑
lece que o ato de educar é uma ação (olha a ação social novamente!!!) socialmente dirigida
e segue três tipos, segundo Rodrigues (2000, p. 79):
Despertar o carisma: não são para todos os indivíduos, mas somente
para aqueles que têm capacidade de revelar capacidades mágicas ou
dons heroicos;
Preparar o indivíduo para uma conduta de vida (pedagogia do cultivo):
formar um tipo de homem que seja culto, onde o ideal de cultura de‑
pende da camada social para qual o indivíduo está sendo preparado;
Transmitir conhecimento especializado (pedagogia do treinamento):
preparar um especialista para cumprir determinada função dentro da
estrutura hierarqui­zada e burocrática da sociedade capitalista.

Podemos perceber que a educação para Weber não está vinculada en­quanto formação
integral do homem, mas sim uma educação como treina­mento para habilitar o indivíduo para
a realização de determinada tarefa, a fim de obter poder e dinheiro, dentro dessa sociedade
cada vez mais racio­n alizada, burocratizada e estratificada.
Essas são algumas concepções weberianas da função da educação. Per­cebemos que existe,
através dessa racionalização da sociedade, uma formação específica, única, sem a possibilidade
do desenvolvimento criativo do ho­mem, pois esse, através da dominação legal, estabelece sua
ação, dentro dos princípios instituídos pela educação capitalista moderna.
Mas não podemos perder a dimensão da individualidade do homem e da possibilidade
que ele tem de criar mecanismos de mudança dentro da sociedade. O homem, e as ações que
realiza, faz com essa teia de relações preestabelecidas possa ser reconstruída pelos próprios
indivíduos, no sentido de estabelecer novos princípios para a sociedade.
A obra de Weber é bastante vasta e aqui apresentamos apenas alguns pontos de sua teoria,
os mais significativos, para que possamos compreender os fundamentos teóricos desse autor
tão importante da sociologia clássica.

Para concluir o estudo da unidade


Vimos nesta unidade a importância do pensamento sociológico clássico
e como Durkheim, Marx e Weber nos auxiliam a compreender o processo de
constituição da sociedade capitalista.

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Resumo
As discussões realizadas pelos autores da sociologia clássica nos fazem
refletir sobre o processo de constituição da sociedade capitalista. O importante
é entendermos como essas relações estão sendo produzidas e reproduzidas em
nossa sociedade. Nenhum dos autores nos dá respostas prontas sobre a realidade,
mas, sim, auxilia no processo de entendimento da nossa complexidade social.

Atividades de aprendizagem
1. Explique os conceitos ligados ao positivismo: anomia e fato social.
2. Por que para Marx a sociedade capitalista é desigual por natureza?
3. Exemplifique os tipos de ação social trabalhados por Weber.
4. Quais as características da educação politécnica de Marx?
5. Explique o conceito de alienação na teoria marxista.

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Unidade 2
Função social
da escola
Okçana Battini
Fábio Luiz da Silva

Objetivos de aprendizagem: Nesta Unidade você será levado a


compreender a função social da escola e a questão da diversidade,
visto o espaço escolar ser permeado de significados. Discutiremos
o papel do professor no contexto escolar e as ferramentas para
implementar a questão da diversidade.

Seção 1: Função social da escola


Nesta seção vamos discutir a função da escola dentro
de uma sociedade complexa. Elencaremos as especi-
ficidades da escola como uma instituição complexa.

Seção 2: Educação e diversidade: inclusão?


Nesta seção trabalharemos a questão da educação
para a diversidade, bem como o papel das políticas
afirmativas e da educação étnico-racial.

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70  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Introdução ao estudo
Pensar nas relações culturais existentes em nossa sociedade muitas vezes nos deixa perple‑
xos visto que nos deparamos com um emaranhado de fenômenos que nos colocam em xeque:
Como é possível existir uma enormidade de padrões culturais em uma mesma sociedade?
Como sujeitos de grupos distintos podem viver em sociedade, de forma coletiva? E se pensar‑
mos em uma sala de aula: quantos alunos, quantas histórias de vida, quantas experiências.
Nesse momento realmente a única certeza que existe é que somos diferentes culturalmente!
E saber dessa diferença muitas vezes assusta ou nos faz procurar saber mais sobre ela. É para
traçar esse caminho, convido vocês a seguirem comigo pela fascinante estrada, produzida pelo
homem, que ao transformar a natureza a seu favor criou símbolos e signos que nos auxiliam
a viver hoje em dia.

  Seção 1 Função social da escola


Nesses anos todos, tenho percebido uma resistência
dos educadores em aceitar que as escolas (ou outras
instituições educativas) são organizações que precisam
Saiba mais ser administradas, bem administradas. Há uma dificul‑
dade ideológica em perceber a necessidade de gestão
Você poderá ler o item 2.3 da profissional. É como se bastasse o conhecimento peda‑
Dissertação de Mestrado: Os ca- gógico para isso. Mas o fundamento da Pedagogia não
minhos para a construção da é a gestão. Por isso existem cursos de pós-graduação
como esse que estamos realizando. Há um conjunto de
escola inclusiva: a relação entre saberes próprios sobre como administrar uma organi‑
a gestão escolar e o processo de zação que devem ser dominados por aqueles que pre‑
inclusão. Disponível em: <www. tendem fazer com que a escola chegue a seus objetivos
essenciais. É a partir desse pressuposto que preparei o
bdtd.ufscar.br/htdocs/tedeSimpli-
conteúdo dessa disciplina.
ficado/tde_arquivos/8/TDE-2005- Existe um livro muito interessante chamado Ima-
02-01T09:39:51Z-488/Publico/ gens da organização, de Gareth Morgan, e que pode
DissTCRT.pdf>. O item sugerido ser muito útil aos gestores de escolas. O autor nos
apresenta as principais metáforas (imagens) que po‑
trata da gestão escolar e inclusão.
demos utilizar para compreender as organizações. A
partir do estudo dessas imagens podemos aprimorar
nossas habilidades de “ler e interpretar” a realidade
organizacional.
Morgan propõe o estudo das organizações a par‑
Links tir de algumas metáforas. São as imagens que nos
permitem vê-las como: máquinas, organismos vivos,
Você pode ler um resumo do livro em: cérebros, culturas, sistemas políticos, entre outras. Para
<www.institutosiegen.com.br/do- o autor, podemos desenvolver a habilidade de “ler” as
cumentos/imagens_organizacao_re- organizações pela experiência, adquirida de forma não
metódica. No entanto, acredito que seja uma habilidade
sumo.pdf>. que pode ser aprendida.
Então, podemos “ver” as escolas como máquinas.
Se pensarmos que a escola é uma máquina, então a
administraremos como se fosse um conjunto de engrenagens onde cada um tem uma função
específica. Se as pessoas são vistas como engrenagens, elas devem ser submissas, pois deverão

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   71

realizar exatamente o que foi ordenado. Caso contrário, serão substituídos por engrenagens
novas. Não permitindo autonomia, os membros da organização tendem a apegarem-se às
normas em excesso, criando uma organização burocrática. A imagem abaixo representa essa
escola... cada um realizando a sua função.
A organização como máquina é a metáfora que divulga este modelo.
A concepção da organização como máquina evoca os fundamentos da
organização burocrática e a imagem da máquina, implicando o funcio‑
namento mecanicista da organização, ou seja, a rotina, a eficiência, a
certeza e a previsibilidade, está ligada ao processo de industrialização
e ao capitalismo (OS MODELOS..., 2012, p. 1, grifo do autor).

Em uma escola assim, não há espaço para a diversidade. Talvez essa imagem seja útil para
uma fábrica de automóveis, mas não para uma escola. Afinal não estamos produzindo alunos,
todos, iguaizinhos.
A segunda imagem é mais interessante. Ao considerar a escola um ser vivo, o gestor deve
estar atendo às mudanças no meio ambiente. O que faz da escola um organismo capaz de
modificar-se conforme se altera o lugar onde ela está. Nesse caso, a escola seria considerada
um sistema aberto, em que cada parte, apesar de especializada, somente pode ser compre‑
endida a partir do todo. Uma escola vista como ser vivo, portanto, é mais flexível que aquela
considerada uma máquina. Mas temos algumas limitações nessa perspectiva. As inovações e as
ideais novas tendem a ser vistas como um perigo à organização: alguém com uma ideia nova
poderia ser considerado uma doença, um tumor que deve ser retirado. Levada ao extremo,
essa metáfora tem o mesmo destino da anterior: a diversidade não é estimulada.
A metáfora seguinte, proposta por Morgan, é a do cérebro. Esta imagem enfatiza a impor‑
tância do processamento de informações, da inteligência e da aprendizagem. Nesse caso, as
escolas são vistas como organizações necessariamente inovadoras. Assim, devem ser pensadas
e planejadas como organizações que aprendem, ou seja, estão abertas à investigação e à au‑
tocrítica. A escola, nesse caso, deve estimular a intuição e a criatividade, bem como o uso da
tecnologia. Nesse caso, há estimulo à diversidade e à autorregulação. No entanto, sempre há o
problema dos conflitos entre o sistema maior (Secretarias de Educação, por exemplo) e a escola.
A mais interessante é a metáfora da cultura, pois ela é útil em todas as organizações.
Para “lermos” a escola é utilíssima. Se considerarmos a escola como uma cultura, veremos a
importância dos aspectos simbólicos dos processos organizacionais.
A metáfora da organização como cultura, stricto sensu, permite tornar
saliente a dimensão simbólica da acção organizacional, valorizando as
subculturas, aproximando-se dos modelos políticos, e, de acordo com
Torres (1997, p. 29), “confere aos actores o protagonismo no processo
de criação e recriação da cultura em contexto organizacional” (OS
MODELOS..., 2012, p. 45, grifo do autor).

Perceberemos que as relações entre as pessoas que estão na escola não são mecânicas,
nem puramente orgânicas e nem mesmo totalmente
racionais. Veremos que a cultura organizacional é
extremamente complexa e que, portanto, demanda
uma compreensão mais profunda do que as metáforas
anteriores permitem. Nesse caso, a diversidade pode ser
Saiba mais
estimulada ou não, dependendo dos valores construídos Vamos assistir a este filme para re-
na escola pelos sujeitos que nela convivem. Como o
fletir sobre o processo de trabalho
gestor escolar deve garantir o direito à diversidade e
à participação, seus esforços devem ser dirigidos para do gestor.
a mudança nos valores presentes na escola. O grande <www.youtube.com/watch?v=m
perigo é transformar os valores do gestor em uma es‑
BluNKV2SWQ&feature=related>.
pécie de ideologia.

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72  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

A escola vista como um sistema político também é bastante útil para o gestor escolar.
Esta metáfora pode ser entendida como parte da anterior, pois a questão do poder é parte
de qualquer sistema cultural. A escola será vista como um espaço onde diferentes interesses
levam a conflitos e jogos de poder. A realidade da luta pelo poder dentro das escolas deve
ser considerada, e mais, esta luta deve ser compreendida como um fenômeno nem sempre
racional. O gestor, ao reconhecer esse aspecto, deverá garantir a manifestação dos interesses,
mas deverá estar atento aos objetivos da escola, que não podem ser desprezados em favor de
interesses individuais ou de pequenos grupos. A diversidade deve ser entendida como origem
de muitos desses conflitos de poder.
Agora que já vimos alguma teoria sobre gestão, vamos enfatizar a questão da diversidade
no ambiente escolar e seus reflexos na gestão.

1.1 Escola como lugar de diversidade


Quando consideramos a escola, ao mesmo tempo, um sistema cultural, uma organização
que aprende e um lugar de lutas pelo poder, devemos estar preparados para encarar o problema
da diversidade. É ingenuidade imaginar que a escola é diferente da sociedade onde ela está
localizada. Os mesmos conflitos que existem fora de seus muros também estão presentes em
seu cotidiano.

Questões para reflexão


Você acha que a infraestrutura e aspectos organizacionais impactam no cotidiano
escolar?

1.1.1 O aspecto físico e de organização


Vamos começar com a questão da estrutura física. Muito desse assunto extrapola a compe‑
tência dos gestores escolares, pois os governos deixam de fazer aquilo que deveriam: manter
as escolas com recursos financeiros abundantes. Vemos escolas que não possuem o mínimo
que se espera de uma instituição construída para educar.
No entanto, minha experiência demonstra que muito depende da direção da escola. Caso
contrário, como explicar que escolas do mesmo sistema, que recebem o mesmo recurso, se‑
jam tão diferentes? Trabalhei em uma escola cujas salas eram limpas, os banheiros dos alunos
brilhavam (acredite!) e a merenda era ótima. Em outra, do mesmo município, a direção da
escola mandava jogar serragem no chão das salas, os alunos entravam e saíam quando que‑
riam e uma telha quebrada (lecionei lá há mais de 10 anos) continua do mesmo jeito. Nessa
última escola, não havia calçamento e tudo estava sempre muito sujo. E parece que outros
têm a mesma posição:
As condições de gerenciamento da muitas das escolas públicas são
precárias. Infraestrutura deficiente, professores mal preparados, clas‑
ses barulhentas. É difícil falar em gestão inovadora nessas condições.
Mesmo reconhecendo essa dificuldade organizacional estrutural, a
competência de um diretor de escola pode suprir boa parte das defi‑
ciências (MORAN, 2003, p. 151).

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Questões para reflexão


Vocês já passaram por questões como essa no seu cotidiano de trabalho? Como
isso afetou o seu trabalho?

Em outra, onde trabalhei por mais de 10 anos, certa vez, as zeladoras resolveram lavar a
calçada da escola justamente em um dia de muita chuva, o que fazia as crianças desviarem
delas pisando no barro! Bom, estas são decisões da gestão escolar local. Não foi o secretário
de educação que mandou encher as salas de serragem.
Você pode perguntar: o que isso tem a ver com a diversidade? Bem, a direção da escola
é responsável pela inclusão de todos e isso passa por uma escola agradável para todos.
Muitas vezes, a construção de uma rampa é somente uma questão de prioridade no uso
dos recursos disponíveis. Outras vezes uma boa merenda é uma questão de organização
e orientação das merendeiras e uma boa merenda é uma questão de inclusão social. Mui‑
tos de nossos alunos chegam à escola com fome e comer bem é um direito. Na escola onde
trabalho, a qualidade e a variedade da merenda servida melhoraram muito quando a direção
designou um funcionário para pensar e planejar o cardápio. Com os mesmos alimentos que as
outras escolas recebem, estão sendo preparados pratos mais criativos e saborosos.

1.2 Diversidade de ideias


A escola, necessariamente, é um lugar de ideias. Deveria ser. Em algumas, é quase
impossível ter ideias, tão totalitária é a direção da escola. Qualquer pensamento diferente
é combatido, pois é encarado como ameaça ao poder conquistado por aquele grupo. Já vi
intimidação, mentira, fofoca e várias outras atitudes nem um pouco democráticas nas escolas
onde trabalhei. O gestor que tenha um real interesse na escola deverá estar preparado para
esse lado mais sombrio da natureza humana.
O gestor deve manter um clima de liberdade de expressão, onde a diversidade de ideias
possa fazer surgir soluções para os problemas da escola — eles sempre existirão. Para isso,
um bom sistema de comunicação é importante. Muitos dos conflitos de ideias têm origem
nas distorções das notícias. Há aqueles que distorcem a informação sem perceber, outros o
fazem para tumultuar. A solução é uma organização que permita aos professores, alunos e pais
acesso à informação clara e objetiva. A imagem abaixo representa essa diversidade de ideias.

Questões para reflexão


Como trabalhar a diversidade dentro de uma escola monocultural?

Nos últimos anos tem aumentado muito a quantidade e tem havido


também grandes avanços na qualidade das informações disponíveis
on-line para a comunidade escolar e para o público em geral. Os
grandes colégios estão se transformando em verdadeiros portais de
informação, com áreas dedicadas aos professores, outras aos alunos,
aos pais e ao público em geral.

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74  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Internet é um espaço virtual de comunicação e de divulgação. Hoje é


necessário que cada escola mostre sua cara para a sociedade, que diga
o que está fazendo, os projetos que desenvolve, a filosofia pedagógica
que segue, as atribuições e responsabilidades de cada um dentro da
escola. É a divulgação para a sociedade toda. É uma informação aberta,
com possibilidade de acesso para todos em torno de informações gerais
(MORAN, 2003, p. 151).

Assim, se pensarmos a escola como um cérebro, devemos deixar livres as conexões que
permitam a rápida transmissão das informações.
Aqui, entramos em um terreno bastante delicado. A questão da liberdade religiosa. Para
que o gestor possa tratar desse assunto com competência, é preciso saber a origem da escola
laica. A partir do Iluminismo, século XVIII, houve uma progressiva separação da religião e do
Estado. A criação do Estado laico permitiu a liberdade religiosa, pois antes disso a religião
do rei tinha de ser a religião dos súditos. Por isso as inúmeras guerras religiosas, cada grupo
matando o outro em nome de Deus. A partir, então, do século XVIII, a escolha religiosa passou
a ser uma questão do espaço privado. O Estado deixou de se preocupar com isso, permitindo
a cada um a escolha, ou não, de sua crença.
Assim, a escola pública é laica, isto é, não tem uma religião em especial. Na prática sig‑
nifica que a escola não deve fazer propaganda dessa ou daquela denominação religiosa, não
deve obrigar os alunos a praticarem certos tipos de rituais, não deve julgar os alunos pelas suas
crenças. Isso significa que, a rigor, na escola pública não deve haver símbolos de qualquer
credo religioso. Se houver um, então todos deverão ter o mesmo direito. Isso afeta inclusive
o ensino religioso nas escolas. A metáfora da cultura serve muito bem para compreender essa
questão. O gestor deve ter em mente que os alunos não chegam à escola como folhas de papel
em branco, chegam repletos de valores que estarão interagindo com outros dentro da escola.

1.1.2 Diversidade e hierarquia


Hierarquia, esta é outras daquelas palavras que causam arrepios em muitos educadores.
Ainda impressionados com o tempo em que essa palavra esteve vinculada às forças armadas
e, portanto, à ditadura militar, muitos acreditam que seja possível que não exista, na prática,
nas escolas.
Evidentemente que escola não é exército e nem
empresa. Mas há posições de gestão que correspondem
a níveis hierárquicos. O diretor da escola tem o dever
Saiba mais democrático de administrar a escola para atinja seus
objetivos. Então, respeitar a diversidade de ideias não
Este vídeo representa a função do significa abdicar dos deveres de gestor da coisa pública.
gestor e a diversidade. O gestor deve ter em mente que, ao administrar uma
escola pública, deve prestar contas à sociedade e não
<www.youtube.com/watch?v=2Xl
a determinados grupos com interesses particulares.
e8CyBFjw&feature=related>. Como pedagogos, enfrentarão situações em que a
diversidade de valores e de práticas levará a limites que,
se ultrapassados, a própria função essencial da escola
estará ameaçada. Vamos a alguns exemplos. Imagine uma professora que tenha valores morais
bem liberais, que goste de manter uma postura bem próxima dos alunos. Até aí tudo bem.
Há professores mais reservados e outros que preferem manter uma relação quase de amizade
com seus alunos. A diversidade. Mas vamos supor que essa professora comece a mostrar
fotos pornográficas aos alunos. É claro que a professora tem o direito de achar que isso não
é problema, que o sexo não é pecado, que os alunos já têm acesso a esse material. Mas nem
todos os alunos possuem os mesmos valores da professora, nem todos os professores. Muitos

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ficarão ofendidos. Você é o gestor, o pedagogo que receberá a reclamação de pais indignados
com a postura da professora. O que você faria? E se a professora continuar? E se ficar pior?
Portanto, a hierarquia, que supõe a liderança, não é oposta à gestão democrática.
[...] participação é um meio de alcançar os objetivos educacionais
esperados, mas adverte que é necessária a combinação entre a par‑
ticipação e ação, para obter o resultado esperado. Dentro da gestão
democrática, a participação é para todos, mas é necessário enunciar
que o diretor possui um papel relevante dentro deste processo, pois a
tomada de decisão é coletiva, porém a realização desta ação cabe ao
diretor, o qual é o representante formal da instituição (NASCIMENTO;
SCHNECKENBERG, 2012, p. 12).

A palavra liderança é outra que tem resistência nos ambientes escolares. O quase total
desconhecimento dos gestores escolares e dos professores do que seja liderar leva-os a con‑
fundir autoridade com autoritarismo. É evidente que onde o gestor age com autoritarismo, a
diversidade não existe, pois a vontade do administrador é a lei. Por isso, muitos ainda têm um
bloqueio em relação a esse termo. Conforme Dejuors (apud NASCIMENTO; SCHNECKENBERG,
2012, p. 14) “Na escola, a referência ao poder perturba. Ela remete, fantasticamente, à ideia
da potência absoluta, da violência e, por via de consequência, à insubmissão, ao conflito, ao
sofrimento, à avareza afetiva e mental”.
No entanto, a recusa em falar sobre “poder”, “liderança” e “autoridade” não evita que
os conflitos ocorram. Muito pelo contrário, o não tratar do assunto apenas mascara formas
mais sutis de manipulação e controle. Há dois caminhos que são consequências desse tipo
de situação. No primeiro, alguém tem o poder, mas finge que a decisão é democrática. No
segundo, a escola fica sem direção, “matando um leão por dia”.
Uma escola bem gerida, portanto, é construída pela verdadeira participação de todos,
mas também pela ação efetiva de quem deve fazer as coisas acontecerem. Vamos ilustrar com
uma situação bastante simples. Imaginem que uma escola esteja planejando uma gincana.
Uma reunião é convocada pelo diretor. Os professores se reúnem para resolver como ela será
feita. Todos podem participar com sugestões. Algumas decisões são tomadas. Algumas pessoas
ficaram responsáveis por algumas ações. Essas pessoas devem fazer o que o grupo decidiu e
devem ser cobradas, pois toda a escola depende disso.
Portanto, a diversidade somente poderá se manifestar adequadamente se a escola for
bem administrada.
Praticar a pedagogia da inclusão de todos e de todas as formas. A inclu‑
são não se faz somente com os deficientes, ou com os marginalizados.
Dentro da escola muitos alunos se sentem excluídos pelos professores
e colegas. São excluídos pelos professores, quando nunca falam deles,
quando não lhes dão valor, quando são ignorados sistematicamente.
São excluídos quando falam com e dos mesmos e descuidam os
demais. São excluídos quando exigem de pessoas com dificuldades
intelectuais, emocionais e de relacionamento, os mesmos resultados
(MORAN, 2009, p. 55-59).

Até agora discutimos a questão da função do gestor no processo de construção de uma


escola democrática, mesmo ela sendo diversa e complexa. Por falar nessa complexidade
e na necessidade cada vez maior de inclusão social e cultural, torna-se interessante com‑
preendermos os caminhos construídos para a efetivação desses direitos, sendo um deles as
políticas afirmativas.
As Políticas de Ações Afirmativas surgiram nos Estados Unidos nos anos 60, como uma
política pública resultante das reivindicações democráticas.
Assim, foram concebidas nos EUA como forma de enfrentamento da desigualdade das
minorias étnicas, com relação à religião, de gênero ou de origem nacional. Uma vez conso‑

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lidadas tais ações na esfera pública, tais políticas afirmativas foram sendo aplicadas também
nas universidades.
Mais tarde as ações afirmativas se estenderam em muitos países, segundo Sowel (2004), os
programas para aqueles de condições socioeconômica inferior chegam na Índia, na Nigéria,
na Malásia e chegam ao Brasil em 2001, através de um decreto do governo do Estado do Rio
de Janeiro. No entanto, a maneira de diferenciar positivamente já era implementada desde
1990, em órgãos públicos.
Nessa mesma década com a Conferência Mundial sobre Educação Para Todos a educa‑
ção para os países pobres passou a ser entendida como equidade social. Também a Unesco
e a Cepal têm lutado para que os governos nacionais implantem políticas educativas. Fruto
disso é o a implantação do projeto PRELAC, que constituiu a base de quatro princípios e
cinco focos estratégicos que surgem como propostas políticas, dentre os princípios: ruptura
com enfoques neoclássicos; produção do conhecimento, promoção da diversidade; dever
da sociedade a educação.

1.3 Ação afirmativa e princípio da igualdade


Para o Estado liberal burguês, a lei deve ser igual para todos, portanto, bastaria a in‑
clusão da igualdade efetivamente assegurada na constituição. No entanto, essa concepção
começou a ser vista com outros olhos quando se verificou que a igualdade de direitos não
era suficiente para que todos tivessem as oportunidades de que desfrutavam os indivíduos
privilegiados socialmente.
Sendo assim, o que de fato importaria seria possibilitar que os grupos minoritários fossem
colocados no mesmo nível de igualdade de condições daqueles privilegiados economicamente
na sociedade.
Portanto, o público alvo das ações afirmativas em nosso país abrangeu os negros, os
índios, as mulheres, os idosos, os portadores de necessidades especiais, os marginalizados
economicamente e outros... Sendo as áreas contempladas o mercado de trabalho, o sistema
educacional e a esfera política.
Essas definições introduzem a ideia da necessidade de buscar ações na busca da correção
da desigualdade, ou seja, dar um tratamento próprio para grupos minoritários cuja particula‑
ridade ou diferença é travada historicamente de forma desigual.
Sendo assim, o objetivo da ação afirmativa busca coibir a discriminação do presente, mas,
sobretudo, eliminar os efeitos persistentes da discriminação do passado que tendem a se perpe‑
tuar, pois desde o seu surgimento, o nosso país vem sendo marcado por grandes desigualdades.
Quantas questões estão vinculadas ao gestor escolar e a função social da escola, não é?!

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  Seção 2  Educação e diversidade: inclusão?


Como vimos em nossa primeira seção, o processo de trabalho do gestor depende de uma rede
de relações que estão presentes no contexto escolar. Vimos também que a questão da diversidade e
inclusão também perpassa pelo contexto escolar e pelos agentes educacionais, dentre eles o
gestor. As políticas afirmativas surgem com o intuito de minimizar a questão da desigualdade
social existente. Sendo assim, coloco nosso primeiro momento de reflexão:

Questões para reflexão


O Brasil é um país de conflitos raciais? Existem o preconceito e a discriminação
no contexto escolar? Como isso se efetiva?

Pensar sobre essa questão nos ajuda a compreender como o processo de divisão de cul‑
turas reflete na inserção dos sujeitos na sociedade vigente, e, por consequência, na escola. O
racismo resultante da divisão de culturas e das relações étnico-raciais impõe a necessidade
das minorias se organizarem contra a perpetuação da hierarquização da sociedade. Romper
com ideologias presentes há anos em nossa sociedade é um desafio, principalmente porque
para muitos essa é uma das maneiras de justificar o domínio de uns sobre os outros.
Mais que resgatar as dívidas que a sociedade brasileira tem com esses grupos sociais e
étnico-raciais, as ações afirmativas devem ser uma forma de democratização da sociedade
e do acesso a bens materiais e oportunidade de crescimento das pessoas.
Para Gomes (2005, p. 41) a discriminação é um componente
[...] indissociável do relacionamento entre os seres humanos,
reveste-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal,
discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as
perspectivas de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa
a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que
impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre
discriminador e discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos
esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contra‑
ponham os interesses de outros na manutenção do estatus quo. É
curial, pois, que as ações afirmativas, mecanismo jurídico concebido
com vistas a quebrar essa dinâmica perversa, sofram o influxo dessas
forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo da
parte daqueles que historicamente se beneficiaram da exclusão dos
grupos socialmente fragilizados.

Daí a necessidade da atuação ativa do Estado com a implantação de ações afirmativas


como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou
voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por porta‑
dores de necessidades especiais e de origem nacional, sintetizando-se como uma política e
mecanismos de inclusão social (GOMES, 2005).

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78  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Links
Seria interessante conhecer as políticas sociais que buscam garantir alguns direitos sociais. Clique
e conheça o que está sendo discutido para esses sujeitos.
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> — Estatuto da Criança e do Adolescente
<www.camara.gov.br/sileg/integras/432201.pdf> — Estatuto do Deficiente
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm> — Estatuto do Idoso
<www.funai.gov.br/quem/legislacao/estatuto_indio.html> — Estatuto do Índio
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm> — Lei contra Preconceito de Raça e de Cor

A ação afirmativa também é uma forma de implantar a diversidade e a representatividade


das minorias nos diferentes atividades profissionais, tanto na esfera pública como privada.
Partindo da premissa de que tais grupos normalmente não são repre‑
sentados em certas áreas ou são sub-representados seja em posições
de mando e prestígio no mercado de trabalho e nas atividades estatais.
seja nas instituições de formação que abrem as portas ao sucesso e
às realizações individuais, as políticas afirmativas cumprem o impor‑
tante papel de cobrir essas lacunas, fazendo com que a ocupação
das posições do Estado e do mercado de trabalho se faça, na medida
do possível, em maior harmonia com o caráter plúrimo da sociedade
(GOMES, 2005, p. 41).

Portanto, o efeito dessas políticas afirmativas além da implantação da diversidade e repre‑


sentatividade, é o fato de acabar com barreiras “invisíveis” que impossibilitam o avanço dos
grupos minoritários. Nesse sentido, o pluralismo que se implanta por conta das ações afirmativas
traz inúmeros avanços e benefícios, principalmente para os países que se denominam como
multirraciais e que assistem ao aumento do multiculturalismo.
Se estamos falando de inclusão, via políticas afirmativas e diversidade cultural, temos
que conhecer os princípios que instituíram a desigualdade em nossa sociedade. A palavra
preconceito deriva do latim prejudicium, que designa um julgamento ou decisão anterior, um
precedente ou um prejuízo. Segundo Outhwaite e Bottomore (1996), no uso moderno, o termo
veicula muitos significados, sendo comum à maioria deles, contudo, as noções de julgamento
prévio desfavorável, efetuado antes de um exame ponderado e completo, e mantido rigidamente
mesmo em face de provas que o contradizem.
Inúmeras pesquisas mostram que as atitudes rotuladas como preconceituosa podem ser
específicas para um grupo ou generalizadas para muitos; podem ser primordialmente cogni‑
tivas, afetivas ou avaliatórias; podem referir-se unicamente a intervenções sociais pessoais ou
dirigir-se a amplas políticas públicas. Diante dessas variações, Outhwaite e Bottomore (1996)
colocam que na área de ciências humanas e sociais, concentram-se, de modo geral, em orien‑
tações desfavoráveis dirigidas a grupos e categorias.

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Função social da escola 79

Para saber mais


O termo preconceito refere-se a opiniões ou atitudes defendidas por membros de um grupo em
relação a outro grupo. Os pontos de vista preconcebidos de uma pessoa preconceituosa, em geral,
se baseiam em boatos, ao invés de em evidências diretas, e resistem a mudanças, mesmo diante
de novas informações. As pessoas podem nutrir preconceitos favoráveis em relação a grupos
com os quais se identificam e preconceitos negativos contra outros. Quem é preconceituoso em
relação a um grupo específico se recusará a escutá-lo de maneira justa. Se o preconceito define
atitudes e as opiniões, a discriminação refere-se ao comportamento concreto em relação a um
grupo ou individuo. A discriminação pode ser percebida em atividades que excluem membro de
grupos as oportunidades abertas a outras pessoas (GIDDENS, 2001, p. 208).

Assim, levantamos algumas conclusões importantes para pensarmos o preconceito em


nossa sociedade:
Tais preconceitos negativos, embora generalizados, não são universais;
O preconceito não é monopólio desta ou daquela sociedade, desta ou daquela cultura;
O preconceito não é inato, mas deve ser aprendido;
Os preconceitos em relação a diferentes grupos tendem a andar juntos: as pessoas que
manifestam preconceito para com um grupo étnico mostram tipicamente atitudes se‑
melhantes para com outros “grupos de fora”;
Os indivíduos variam imensamente na intensidade espécie de seus preconceitos;
Os preconceitos encorajam os comportamentos discriminatórios e as orientações dadas
às políticas públicas.
Um conceito estreitamente relacionado com o preconceito é o etnocentrismo. Para enten‑
dermos melhor o etnocentrismo, precisamos nos ater a discussão antropológica de cultura. A
antropologia desenvolve‑se no intuito de estudar o “outro”, visto que a partir do descobrimento
de novos povos, fruto do desenvolvimento da ciência
e da tecnologia, possibilitou‑se o desvendar de novas
realidades sociais.
Os primeiros estudos antropológicos iniciam‑se no Links
século XVI, tendo como eixo a perspectiva etnocên‑
trica. A primeira corrente antropológica que buscou Antes de iniciarmos a discussão so-
entender o “outro” é o Evolucionismo, sendo a ideia bre o evolucionismo, vamos assistir
de evolução importantíssima. Segundo Rocha (1994), a este vídeo. Reflita!
evolução no sentido mais amplo, equivale a desenvol‑
vimento. É a transformação progressiva, ou seja, a rea‑ <www.youtube.com/watch?
lização plena de algo latente. É a manifestação plena v=NDhHJpik7As>.
do que estava oculto. Evolução em outras palavras é
o desenvolvimento obrigatório de uma determinada
unidade que revela, pelo processo evolutivo, uma segunda forma, mostrando, então, sua po‑
tencialidade. É um processo permanente no qual uma unidade qualquer se transforma numa
segunda que, por sua vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente.
Nesse sentido, o evolucionismo antropológico institui que a noção de progresso passa a
ser essencial, pois é por meio do desenvolvimento da história e do tempo que o homem e
a sociedade se constroem. Nesse momento acredita‑se na unidade básica da espécie humana,

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80  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

ou seja, a existência de um desenvolvimento único para todos os homens e sociedade, sendo


o fator tempo importantíssimo para a explicação social.
Esses estudos pautavam-se na busca por compreender os estágios mais primitivos de uma
sociedade, sendo que eles afirmavam que todas as formações humanas têm origens remotas e
caminham no mesmo sentido, na direção do progresso. Esses estudos começaram a relacionar
os “povos primitivos” e os “povos civilizados” para traçar um paralelo de desenvolvimento
para a sociedade, sendo que todos sairiam de um estágio de barbárie, passando pelo estágio
de selvageria e finalmente chegando a civilização, esta fundada nos princípios da Europa e
Estados Unidos. Nesse sentido, o evolucionismo institui a categoria Etnocentrismo como eixo
na interpretação da cultura.
A primeira geração de antropólogos buscava estabelecer as etapas de evolução das socie‑
dades encontradas pelo mundo, sendo eles Sir James George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor
(na Inglaterra) e Lewis Morgan (nos Estados Unidos). A definição dos estágios da civilização,
pode ser baseada na definição de cultura de Tylor, em seu livro A origem das culturas que
fundamenta-se que “[...] cultura ou civilização, no sentido etnográfico escrito, é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, leis, moral, costumes e quaisquer outras
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (TYLOR apud
ROCHA, 1994, p. 30). Esses itens estão presentes em todas as culturas, umas mais “civilizadas”
do que outras, sendo que esses itens eram pensados como uma linha de evolução, a partir do
“polo primitivo”, e por via do progresso, chegando ao “polo da civilização”. Morgan, antro‑
pólogo americano, institui alguns pontos que “moldaram” essa linha de evolução: governo,
meios de subsistência, arquitetura, religião, família... Dividindo o a história em três grandes
períodos básicos da sociedade: selvageria, barbárie e civilização.
O etnocentrismo, segundo Rocha (1994, p. 7), pode ser entendido como uma “[...] visão
do mundo no qual o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os ‘outros’
são pensados e sentidos por meio de nossos valores, nossos modelos, nossas definições do
que é existência”.
Continuando na linha de pensamento de Rocha (1994, p. 9), o grupo do “eu” faz, então,
da sua visão a única possível ou, as discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior,
a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo o engraçado, absurdo, anormal ou
ininteligível. Esse processo resulta num considerável
reforço à identidade do “meu” grupo.
Em outras palavras, o comportamento etnocêntrico
Links é aquele pelo qual o indivíduo analisa, avalia e julga os
procedimentos dos outros grupos (dos quais ele não faz
Estudo da Universidade Federal do Rio parte) baseado em seu próprio mundo, seus próprios
de Janeiro demonstra os reflexos do hábitos, modelos e critérios. Essa visão etnocêntrica
etnocentrismo em nossa sociedade. muitas vezes prejudica o entendimento da realidade
de “outros” grupos do qual não fazemos parte, pois se
<www.estadao.com.br/especiais/ adotamos um comportamento etnocêntrico para ava‑
os-numeros-da-desigualdade-racial- liar uma situação que não faz parte de nossa realidade,
-no-brasil,36780.htm>. muitas vezes vamos julgá-las dentro de nossos próprios
valores, não levando em consideração as razões, os
sentimentos do “outro”.
Essa postura perdurou por muito tempo como a responsável pela explicação da diversidade
cultural, sendo que dela derivaram a leitura do racismo e do preconceito. Qualquer conjunto de
crenças que classifiquem a humanidade em coletividades distintas, definidas em funções de atri‑
butos naturais e/ou culturais, e que organize esses atributos em uma hierarquia de superioridade e
inferioridade, pode ser descrita como racista. Sob condições sociais e políticas que lhes sejam
favoráveis, essas crenças são associadas a conjuntos de práticas e instituições discriminatórias
que favorecem determinada coletividade em detrimento de outra, de acordo com a suposta
diferença e superioridade.

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   81

Essa postura perdurou por muito tempo como a responsável pela explicação do precon‑
ceito existente socialmente. Torna-se importante realizarmos aqui um recorte para discutir‑
mos um pouco a relação entre raça e etnia, visto que essa questão é muito importante para
a compreensão da diversidade cultural brasileira. O conceito de raça é um dos conceitos
mais complexos, devido à contradição em seu uso cotidiano e sua base científica. Segundo
Giddens (2001, p. 205), “[...] raça pode ser entendida
como um conjunto de relações sociais que permitem
situar os indivíduos e os grupos e determinar vários
atributos ou competência como base em aspectos
biologicamente fundamentados”. Muitas vezes o termo
Saiba mais
raça é utilizado para classificar ideologicamente (hie‑ Um texto interessante que traz o
rarquizar) os indivíduos, ou seja, o racismo. Por isso
debate entre raça e etnia é Uma
é um termo contraditório, e devemos ter clareza para
não utilizarmos de forma pejorativa. Uma categoria abordagem conceitual das no-
que melhor ajudaria a compreender a questão da ções de raça, racismo, identi-
formação da sociedade é o conceito de etnia. A etnia dade e etnia, do Prof. Dr.
ou etnicidade refere-se às práticas e às visões cultu‑
rais de uma determinada comunidade, que partilham Kabengele Munanga, da Univer-
bens culturais comuns como a linguagem, a comida, sidade de São Paulo (USP).
manifestações religiosas.
Disponível em:
Sabemos que com o próprio desenvolvimento da
sociedade a Antropologia buscou novas formas de <www.acaoeducativa.org.br/
entender a cultura e a diversidade cultural. Outras downloads/09abordagem.pdf>.
correntes teóricas, dentre elas o Difusionismo ou Es‑
cola Americana, o Funcionalismo e o Estruturalismo,
auxiliaram no processo de ruptura do etnocentrismo em nossa sociedade.
Mas sabemos que as consequências do etnocentrismo estão presentes até os dias de hoje.
No Brasil podemos verificar a existência de grupos minoritários e que muitas vezes sofrem
com o etnocentrismo presente em nossa cultura. Aqui cabe uma explicação sociológica. É
comum empregarmos o termo “minoria” em um sentido não literal quando se referem à po‑
sição subordinada de um grupo dentro da sociedade, e não a sua representação numérica.
Segundo Giddens (2001), em algumas regiões geográficas, como em áreas urbanas decadentes,
os grupos de minoria étnicas compõem a maioria da população, mas, no entanto, são citados
como “minorias”, já que o termo expressa sua situação de desamparo. Ex.: as mulheres, às
vezes, são descritas como um grupo minoritário, embora constituam a maioria numérica em
muitos países. Porém, em comparação com os homens (os “majoritários” quer pela força
física, quer pelo preconceito existente socialmente), as mulheres tendem a ser desfavorecidas.
Giddens (2001) continua sua explicação alegando que o termo “minorias” para referir-se
coletivamente a grupos que tenham sofrido preconceito nas mãos da sociedade “majoritária”.
Esse termo traz a atenção para a difusão da discriminação. Podemos utilizar aqui também o
exemplo das crianças e adolescentes, dos idosos, dos homossexuais, dos negros, índios, ou
seja, grupos minoritários dentro da sociedade.
Gilberto Freire (1900 — 1987) em seu livro Casa Grande & Senzala (1933) aborda que o
processo de integração social entre o negro, branco e o índio no processo de colonização do
Brasil, estabeleceu-se de forma harmoniosa, sendo que essa miscigenação proporcionou um
equilíbrio entre os diferentes grupos culturais. Segundo Freire, as relações sociais brasileiras
fundamentavam-se no trabalho escravo, no poder e mando do senhor de engenho e da família
patriarcal, o que identificava o processo de colonização portuguesa no Brasil.

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82  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Saiba mais
As obras de Gilberto Freire estão disponíveis na Biblioteca Virtual Gilberto Freire, no site: <www.
bvgf.fgf.org.br>. O prefácio do livro Casa Grande & Senzala está disponível no site:
<www.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/livros/pref_brasil/casagrande.htm>.
Esse vídeo da Tv Cultura mostra uma síntese da obra de Gilberto Freire.
<www.youtube.com/watch?v=bGmtS_ybTpg>.

É dessa relação entre poder e sobrevivência, respectivamente entre brancos e negros, que
surgiu uma cultura propriamente brasileira, expressa na fusão do vocabulário das duas raças,
nas práticas diárias, nas crenças e nas representações de poder, o que resultou em um processo
de democratização racial entre os indivíduos.
Já Florestan Fernandes contradiz essa “visão romântica” de democracia racial, desmistifi‑
cando essa questão em seu trabalho A integração do negro na sociedade de classes de 1978.
Para Florestan, o negro e sua cultura sempre participaram do processo de desenvolvimento do
país, mas sempre em posição de inferioridade dentro da estrutura social, visto que no início do
processo de colonização eram vistos como mercadorias e depois da abolição da escravidão,
em 1888, a presença do negro sempre foi vinculada ao trabalho não capacitado.
Para Fernandes (1978), o negro sempre esteve pre‑
sente no processo de construção da sociedade brasileira
e essa participação também influenciou os padrões
Links culturais do povo brasileiro. Mas a sociedade, historica‑
mente e ideologicamente, colocou o negro à margem do
Um texto interessante sobre essa processo social, visto que com o desenvolvimento das
relações de trabalho assalariado nas cidades os negros
questão da democracia racial é o
passaram a concorrer com os trabalhadores imigrantes,
da Profa Dulce Maria Pereira, cha- que já estavam acostumados com o trabalho estipulado
mado a A face negra do Brasil pelo modo de produção capitalista.
multicultural. Disponível em: Esses estudos nos ajudam a compreender como o
processo de divisão de culturas impacta na inserção
<www.dominiopublico.gov.br/ dos sujeitos na sociedade. O racismo e o preconceito
download/texto/mre000073.pdf>. oriundos dessa divisão de culturas impõe a necessi‑
dade desses grupos minoritários se unirem contra essa
hierarquização social.
Na busca por igualdade cultural os Movimentos Sociais tornam-se instrumentos essenciais
para a garantia dos direitos sociais. Segundo Rocha (2006, p. 54), desde 1929 podemos ver
ações que buscam melhoria na vida da população negra no Brasil, “[...] desde a organização
de diversas associações e clubes recreativos e culturais preocupados com a solidariedade e
cooperação mútua. Disso surgem as reivindicações para o acesso ao trabalho, à educação e
contra a desigualdade racial”. Hoje o Movimento Negro tem forte participação na luta contra
o preconceito e o racismo existentes em nossa sociedade.
Como fruto dessa mobilização popular, não somente por parte do Movimento Negro, mas
pela atividade crescente dos Movimentos Sociais (MST, Movimento GLBT, Movimento Indi‑
genista, Movimento Feminino, Movimento a favor dos Direitos da Criança e do Adolescente)
são criadas Políticas de Ação Afirmativas, no intuito de assegurar as minorias o processo de
inclusão social.

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   83

Nosso foco é discutir como as políticas afirmativas impactam no processo educativo e na


inclusão e diversidade. Para isso, temos que discutir o que se tem feito, no âmbito legal, para
garantir esses direitos.

Saiba mais
Leia a dissertação de mestrado de Luiz Carlos Paixão da Rocha, Políticas afirmativas e edu-
cação: a Lei 10.639/03 no contexto das políticas educacionais no Brasil contemporâneo. Outra
leitura interessante é Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos, de Petrônio
Domingues, disponível em:
<www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf>.

Essas definições introduzem a ideia da necessidade de promover a representação de grupos


inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência a fim de assegurar seu acesso a
determinados bens, econômicos ou não.
Antonio Sergio Guimarães (1997) apresenta uma definição da ação
afirmativa baseado em seu fundamento jurídico e normativo. A con‑
vicção que se estabelece na Filosofia do Direito, de que tratar pessoas
de fato desiguais como iguais, somente amplia a desigualdade inicial
entre elas, expressa uma crítica ao formalismo legal e também tem
fundamentado políticas de ação afirmativa. Estas consistiriam em
“promover privilégios de acesso a meios fundamentais — educação
e emprego, principalmente — a minorias étnicas, raciais ou sexuais
que, de outro modo, estariam deles excluídas, total ou parcialmente”
(1997, p. 233). Além disso, a ação afirmativa estaria ligada a socieda‑
des democráticas, que tenham no mérito individual e na igualdade de
oportunidades seus principais valores. Desse modo, ela surge “como
aprimoramento jurídico de uma sociedade cujas normas e mores
pautam-se pelo princípio da igualdade de oportunidades na competição
entre indivíduos livres”, justificando-se a desigualdade de tratamento
no acesso aos bens e aos meios apenas como forma de restituir tal
igualdade, devendo, por isso, tal ação ter caráter temporário, dentro
de um âmbito e escopo restrito (1997, p. 233). Essa definição sintetiza
o que há de semelhante nas várias experiências de ação afirmativa,
qual seja, a ideia de restituição de uma igualdade que foi rompida
ou que nunca existiu. Na explicitação desse objetivo, também se
diferencia de práticas discriminatórias raciais, étnicas ou sexuais,
que têm como fim estabelecer uma situação de desigualdade entre
os grupos (MOEHLECKE, 2002, p. 200, grifo do autor).

Saiba mais
Se quiser aprofundar melhor essa discussão leia o texto de Sabrina Moehlecke, intitulado: Ação
afirmativa: história e debates no Brasil:
<www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf>.

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84  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

No material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para


a Valorização da População Negra no Brasil encontramos essa distin‑
ção, em que a ação afirmativa é definida como uma medida que tem
como objetivo: eliminar desigualdades historicamente acumuladas,
garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como
compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização,
decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros
(SANTOS, 1999, p. 25 apud MOEHLECKE, 2002, p. 200).

Nesse sentido temos uma vinculação entre as Ações Afirmativas e as Políticas Públicas
Educacionais. As tensas relações entre brancos e negros fazem parte do universo das escolas
e inúmeras vezes são simuladas como harmoniosas ou
tratadas como singulares e normais. Segundo a profes‑
sora Silva (2005) (estudiosa da questão do negro no
Saiba mais Brasil), a sociedade brasileira precisa conhecer a histó‑
ria brasileira sob o ponto de vista não dos vencedores,
Conheça a Lei 10.639/03 — Lei do mas daqueles que realmente foram os protagonistas.
No bojo das Políticas Afirmativas referente ao papel
Ensino da História e Cultura Afro-
do negro, juntamente com a atividade do Movimento
-brasileira e Africana: Negro no Brasil, temos a promulgação da Lei 10.639/03
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/ — Lei do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e
Africana (BRASIL, 2003) — que representa um avanço
leis/2003/l10.639.htm>. no sentido da promoção da igualdade racial, pois co‑
loca o tema na pauta do professor e da escola.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) alterou a Lei 9394/96 — Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira — ao incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática de História e Cultura Afro-brasileira. A relevância do estudo da história e cultura
afro-brasileira e africana dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se
enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de
construir uma nação realmente democrática.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) exige um repensar das relações étnico-raciais dos
conteúdos pedagógicos e dos procedimentos de ensino na perspectiva de uma ampliação do
foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Baseado nas discussões realizadas no início de nossa web aula, torna-se necessário com a
promulgação da Lei, buscar desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira,
mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os
negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares
que a estrutura social hierárquica criou como prejuízo para os negros.
A partir da lei, tornou-se obrigatória a inclusão nos currículos dos estabelecimentos de
ensino fundamental e médio conteúdos relacionados à História da África e à Cultura Afro‑
-brasileira, até então quase inexistentes ou quando apresentados com visões distorcidas,
além de buscar corrigir versões desvirtuadas no processo didático-pedagógico, bem como
inserir as histórias da população afrodescendente de maneira mais ampliada dentro do
contexto educacional.
Além disso, não podemos esquecer os Parâmetros Curriculares Nacionais que contempla
em um de seus documentos a Pluralidade Cultural, conhecido como temas transversais que
norteiam o ensino fundamental com seus objetivos, habilidades e competências, elencando a
delimitação de conteúdos para o ensino de cultura Afro-Brasileira e Africana. Os denomina‑
dos PCNs também buscam o fim do preconceito contra as minorias étnicas em nosso país e
apontam alguns princípios norteadores para a ação docente.

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Função social da escola 85

Assim, os PCNs de Pluralidade Cultural apontam os seguintes objetivos:

[...] conhecer a diversidade do patrimônio étnico‑cultural brasi‑


leiro, tendo atitude de respeito para com pessoas e grupos que a
compõem, reconhecendo a diversidade cultural como um direito
dos povos e dos indivíduos e elemento de fortalecimento da de‑
mocracia;
[...] valorizar as diversas culturas presentes na constituição do
Brasil como nação, reconhecendo sua contribuição no processo
de constituição da identidade brasileira;
[...] reconhecer as qualidades da própria cultura, valorando‑as
criticamente, enriquecendo a vivência de cidadania;
[...] desenvolver uma atitude de empatia e solidariedade para com
aqueles que sofrem discriminação;
[...] repudiar toda discriminação baseada em diferenças de raça/
etnia, classe social, crença religiosa, sexo e outras características
individuais ou sociais;
[...] exigir respeito para si, denunciando qualquer atitude de
discriminação que sofra, ou qualquer violação dos direitos de
criança e cidadão;
[...] valorizar o convívio pacífico e criativo dos diferentes compo‑
nentes da diversidade cultural;
compreender a desigualdade social como um problema de todos e
como uma realidade passível de mudanças (BRASIL, 1997, p. 40).

Saiba mais
Vale a pena conhecer os Parâmetros Curriculares Nacionais para Pluralidade Cultural:
<portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pluralidade.pdf>.

Cabe ao professor e ao gestor adequar as temáticas propostas do documento a sua


realidade escolar, não se esquecendo de levar em consideração concomitantemente a Lei
10.639/03 (BRASIL, 2003).
Portanto, a relevância do estudo da história e cultura afro‑brasileira e africana diz respeito
a todos, pois faz parte da história brasileira, como a história dos indígenas e a dos coloni‑
zadores europeus. Conhecer nossos costumes, heranças, tradições culturais é uma forma de
nos conhecermos, de afirmar nossa identidade. Além disso, a escola deve formar para que
todos possam se reconhecer enquanto cidadãos atuantes, em uma sociedade multicultural e
pluriétnica, capazes de construir uma nação igualitária e democrática.
O termo multiculturalismo, todavia, pode indicar diversas ênfases:
a) atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural; b)
meta a ser alcançada em um determinado espaço social; c) estratégia
política referente ao reconhecimento da pluralidade cultural; d) corpo
teórico de conhecimentos que buscam entender a realidade cultural
contemporânea; e) caráter atual das sociedades ocidentais (CANEN;
MOREIRA, 2001, p. 66).

Sintetizando, o multiculturalismo representa uma condição inescapável do mundo oci‑


dental, à qual se pode responder de diferentes formas, mas não se pode ignorar. Por isso, a

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86  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

importância na escola de se trabalhar com um currículo que promova uma educação multi‑
cultural para compreender a pluralidade de valores culturais, resultantes de trocas culturais
dentro de cada sociedade e entre várias sociedades.
A educação nesse propósito busca eliminar preconceitos/discriminações na busca de um
mundo menos opressivo, desigual e injusto e que se propõe compreender o processo de cons‑
trução das diferenças e das desigualdades, ainda que as mesmas sejam complexas e conflituo­
sas (CANEN, MOREIRA, 2001).
A obrigatoriedade da inclusão da História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação
Saiba mais Básica trata-se de uma lei, com repercussões na base‑
-pedagógica, inclusive no que tange a formação de
Leia a entrevista com a professora professores. Assim, para que uma História multicultu‑
ralista seja efetiva, deverá ter como maior propulsor os
Petronilha Gonçalvez e Silva sobre
professores, os disseminadores do conhecimento no
essa questão. ambiente escolar que podem contribuir para romper
<negraldeia.blogspot.com/2007/01/ com o preconceito, e propiciar atitudes de respeito às
diversas culturas. Portanto, o docente para atender esses
perfil-petronilha-beatriz-goncalvez-
anseios deve ser um pesquisador/professor, desprovido
e_01.html>. de preconceitos, trabalhando-as de forma concisa,
promovendo nos alunos um olhar novo olhar a respeito
das culturas existentes em nosso país.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) tem como objetivo que todos os alunos negros e não negros,
bem como seus professores, sintam-se valorizados e apoiados no que se refere a sua cultura.
Nesse sentido a escola e o professor têm o papel preponderante para proporcionar acesso aos
conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados que demonstram a valorização
das relações sociais e raciais. A escola e o professor não podem improvisar. Temos que superar
a visão etnocêntrica e discriminadora existente em nossa sociedade, reestruturando relações
étnico-raciais e sociais, desalienando os processos pedagógicos.
Torna-se necessária uma “pedagogia de combate ao racismo e a discriminação”. Claro
que nosso foco aqui é com relação a questão do negro. Mas será que só existe preconceito
em relação ao negro? Será que nas escolas e nos livros didáticos somente o negro é tratado de
forma discriminatória? Como as “minorias” são tratadas dentro de nossa sala de aula?
É importante destacar que não se trata de mudar o foco etnocêntrico marcadamente de
raiz europeia por um africano, mas da necessidade de ampliar o foco dos currículos escolares
para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Outra questão vinculada a essa discussão é a educação indígena. Diferentemente do negro,
ainda não se estruturou efetivamente um sistema que atenda as necessidades educacionais dos
povos indígenas, de acordo com seus interesses, respeitando seus modos e ritmos de vida. O
que se busca discutir hoje não é se o índio tem ou não tem que ter escola, mas sim que tipo
de escola.
Além de ser garantido na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1991), o direito a edu‑
cação diferenciada, a educação indígena, vem sendo regulamentada, além das Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, de 1996, está contemplada no Plano Nacional de Educação,
aprovado em 2001, e no projeto de Lei que busca a revisão do Estatuto do Índio. O Plano
Nacional de Educação, que tem como um de seus elementos a educação indígena, estabe‑
lece a necessidade de uma escola indígena, incluída no sistema nacional de ensino, e que
mantenha especificidades para o uso da língua indígena, a sistematização de conhecimentos
e saberes tradicionais, o uso de materiais adequados e preparados pelos próprios professores
índios, um calendário que se adapte ao ritmo de vida e das atividades cotidianas e rituais, a
elaboração de currículos diferenciados, a participação efetiva da comunidade na definição
dos objetivos e rumos da escola. A legislação educacional indígena busca colocar o índio e
sua comunidade como protagonistas da escola indígena, resguardando a eles os diretos de

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   87

terem seus próprios membros indicados para a função de professores a partir de programas
específicos de formação e titulação.

Saiba mais
Plano Nacional de Educação
Para mais informações, um site bem interessante é <pib.socioambiental.org>.

Saiba mais
Vamos conhecer o Referencial Curricular Nacional para Escola Indígena? Acesse: <www.domi-
niopublico.gov.br/download/texto/me002078.pdf>.

Assim, caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação pedagógica dos


estabelecimentos de ensino e aos professores, com base na Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) e
nas discussões realizadas pelos Referenciais Curriculares para Escola Indígena, estabelecer
conteúdos de ensino, unidades de estudo, projetos e programas abrangendo os diferentes
componentes curriculares.
Sabemos que a institucionalização da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) e os Referenciais
da Educação Indígena são um grande avanço no atendimento as demandas da sociedade em
busca da equidade entre os grupos sociais. Sabemos também da dificuldade em trabalhar
esses quesitos em sala de aula, visto que somos fruto do processo de etnocentrismo existente
em nosso país.
Nesse sentido é essencial o fortalecimento de iden‑
tidades e de direitos, sendo que esse princípio deve
orientar para o esclarecimento a respeito de equívocos
quanto a uma identidade humana universal, buscando Saiba mais
o combate à privação e violação de direitos. Deve-se
buscar o rompimento com imagens negativas forjadas Este vídeo retrata bem a questão
por diferentes meios de comunicação, contra o negro da sociedade brasileira:
e os povos indígenas ampliando o acesso a informa‑
ções sobre a diversidade da nação brasileira e sobre <www.youtube.com/watch?v
a recriação das identidades, provocada por relações =dwGrIUGKi8U&feature =related>.
étnico-raciais.

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88  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Aprofundando o conhecimento
O texto abaixo traz uma excelente discussão acerca da questão racial no Brasil, por
um importante pesquisador brasileiro Guimarães (2004). Trata-se de um debate central
na atualidade, que ajuda a refletir criticamente sobre o chamado “mito da democracia
racial”, que tanto vem imperando no imaginário do povo brasileiro. Vale a pena conferir!

Ora, o que muda nos anos 1970 é justamente a definição do que seja racismo. E isso não muda
apenas no Brasil. Nem é produto da geração brasileira negra que estava exilada na Europa ou nos
Estados Unidos, como Abdias de Nascimento, como se tal transformação conceitual fosse um fe-
nômeno de imitação e de colonialismo cultural. A mudança é mais abrangente. Permito-me traçar,
com brevidade, as grandes linhas.
São vários os núcleos com base nos quais se processa a eleição do racismo em conceito analí-
tico central da vida social moderna. Tomemos, por exemplo, a historiografia sobre a escravidão
negra nas Américas, a começar por Boxer que, em 1963, já interioriza o modelo sociológico para o
tratamento das sociedades coloniais em seu Relações raciais no império ultramarino português. Nos
anos 1970, essa historiografia já fala abertamente em “racismo”. Em 1971, Genovese, por exemplo,
referindo-se às várias sociedades escravistas das Américas, escreveu: “Uma vez implantado o sistema
escravista, o etnocentrismo, o preconceito de cor transformaram-se rapidamente, ainda que talvez
não imediatamente, em racismo” (Genovese, 1971, p. 105).
Em 1973, Hoetink, um dos nomes mais respeitáveis dos estudos de relações raciais nas
Américas, diz: “Toda sociedade multirracial é racista no sentido de que a pertinência a um grupo
sociorracial prevalece sobre a realização na atribuição de posição social” (apud Hasenbalg, 1979,
p. 66). Nos Estados Unidos, a recepção do marxismo nas universidades (seja em sua variante histo-
ricista, seja em sua variante estrutura lista) pode ser medida pela capacidade da teoria do capitalismo
absorver e dar explicações mais vigorosas sobre o racismo americano, e, na Inglaterra, tanto o
marxismo quanto as teorias sobre o racismo se tornam instrumentos da nova esquerda em sua luta
pelos direitos das minorias étnicas e dos imigrantes.
Refletindo sobre a utilização do termo “racismo”, nas ciências sociais e na política, dizem-nos
Michael Banton e Robert Miles:
Até o final dos anos 1960, a maioria dos dicionários e livros escolares definiam [o racismo]
como uma doutrina, dogma, ideologia, ou conjunto de crenças. O núcleo dessa doutrina era de
que a raça determinava a cultura, e daí derivam as crenças na superioridade racial. Nos anos 1970,
a palavra foi usada em sentido ampliado para incorporar práticas e atitudes, assim como crenças;
nesse sentido, racismo [passa a] denota[r] todo o complexo de fatores que produzem discriminação
racial e, algumas vezes, frouxamente, designa também aqueles [fatores] que produzem desvantagens
raciais. (Banton & Miles, 1994, p. 276)
Em 1971, foi justamente o Minority Rights Group, de Londres, que publicou a brochura de
Anani Dzidziyeno, The Position of Blacks in Brazilian Society. Nela, Anani registra, entre a esquerda
brasileira, a opinião uniforme de que a democracia racial era um mito, mas observa também que,
entre os marxistas brasileiros, ainda prevalecia a ideia de que o único meio de combater o preconceito
racial era a organização e luta da classe trabalhadora.
A brochura de Anani é importante, um marco, por ser uma das primeiras publicações feita por
um cientista social, além do mais, negro e africano, a falar de racismo no Brasil. Naquele momento,
em que o marxismo também conquistara a intelectualidade brasileira, a relação entre “classe” e
“raça” era ainda pensada segundo um modelo no qual “as distinções entre grupos que se definem
como racialmente diversos e desiguais exprimem, em geral de modo mistificado, relações reais de
dominação-subordinação”, para citar Octávio Ianni (1972, p. 248).

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   89

Existia, portanto, no começo dos anos 1970, uma certa defasagem teórico-metodológica entre
os estudos de relações raciais que se faziam no Brasil e aqueles no resto do mundo, principalmente
de língua inglesa. Tal defasagem só começa a ser superada com o livro de Carlos Hasenbalg, Discri-
minação e desigualdades raciais, de 1979. Do mesmo modo, esse livro pode ser também lido, na
clave dos movimentos sociais, como a primeira tentativa de introdução do racismo na agenda po-
lítica da nova esquerda brasileira e do novo marxismo, com a ressalva, entretanto, que, ao contrário
do que se passava na Inglaterra ou nos Estados Unidos, será grande a reação a tal tentativa, e que
a agenda da luta de classes, e não do racismo, ainda predominará aqui, no Brasil, até recentemente,
pelo menos até os anos 1990. Mas vejamos mais de perto as novidades teóricas.
Um dos traços mais marcantes do trabalho de Carlos foi o de deslocar a relação marxista
clássica entre “classe” e “raça”. Segundo ele, “o racismo, como construção ideológica incorpo-
rada em e realizada através de um conjunto de práticas materiais de discriminação racial, é o
determinante primário da posição dos não brancos nas relações de produção e distribuição”
(Hasenbalg, 1979, p. 114).
Carlos, assim como os jovens marxistas dos anos 1970, ao enfocar as desigualdades sociais,
enfatiza a estrutura de classes e as hierarquias sociais em detrimento do preconceito racial e dos
modelos explicativos que tomam como ponto de partida os valores e as atitudes construídos pelos
sujeitos na interação social. Diz ele:
Como se verá, se o racismo (bem como o sexismo) torna-se parte da estrutura objetiva das
relações políticas e ideológicas capitalistas, então a reprodução de uma divisão racial (e sexual) do
trabalho pode ser explicada sem apelar para o preconceito e elementos subjetivos. (Hasenbalg,
1979, p. 114)
Poderia parecer, portanto, que em seu modelo teórico, a discriminação racial, em vez de ser
pensada como comportamento efetivo, observável pela ação dos sujeitos, passa a ser deduzida dos
seus resultados sobre a estrutura social.
No entanto, para contrapor-se a Florestan e à crença dos clássicos da sociologia europeia, para
quem adscrições como raça ou sexo não eram funcionais para alocação de posições na sociedade
de classes, Carlos vê- se também obrigado a teorizar sobre comportamentos e crenças: (a) discrimi-
nação e preconceito raciais não são mantidos intactos após a abolição mas, pelo contrário, adquirem
novos significados e funções dentro das novas estruturas e (b) as práticas racistas do grupo dominante
branco que perpetuam a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão
funcionalmente relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da
desqualificação competitiva dos não brancos. (Idem, 1979, p. 85)
De certo modo, os anos 1980 e 1990 serão tomados na sociologia brasileira pelo avanço des-
sas novas teses e novidades conceituais que se irradiarão a partir do trabalho conjunto de Carlos
Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1988; 1992). Podemos mesmo ver na ação institucional de
ambos um certo programa de trabalho, no qual, ao lado dos estudos de desigualdades raciais, que
utilizam modelos matemáticos cada vez mais refinados, se desenvolvem estudos especializados por
áreas (educação e mercado de trabalho, principalmente), ou estudos que buscam descobrir os mi-
cromecanismos de discriminação (no âmbito da escola, do livro didático, da sala de aula, da mídia,
da propaganda, dos locais de trabalho, dos locais de consumo e do mercado de trabalho etc.).
Mas, se os estudos sobre o racismo no Brasil avançaram em termos empíricos, seu cresci-
mento deu-se sobre bases teóricas que, até os dias de hoje, não estão bem assentes na socio-
logia. E é a isso que vou dedicar o restante do texto, exemplificando o que acabo de dizer a
partir de três problemas.
O primeiro advém do fato de que, por acharem que sua teoria deva se aplicar a todas as so-
ciedades multirraciais da América, alguns autores acabam por recusar qualquer especificidade às
relações raciais no Brasil. Ou seja, ao negar o exclusivismo brasileiro em termos de raça, defendido
por Freyre, acabam também por negar a originalidade das condições em que se dão as relações
raciais no Brasil.

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90  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

O segundo problema tem a ver com o estatuto teórico das desigualdades raciais. São elas o
resultado de processos de interação, acomodação, competição, conflito e luta ideológica por clas-
sificação e formação de grupos raciais, de classe e de cor? Se assim for, ao teorizar sobre mecanis-
mos institucionais de reprodução ampliada ou retroalimentação sistêmica, não podemos fazê-lo no
vácuo das ações sociais. Para colocar de outro modo: as desigualdades raciais, além de constatadas,
precisam também ser compreendidas, sob o risco de dar-se margem a uma excessiva politização do
tema e a uma certa contaminação moral e ideológica, como se estes estudos pudessem ser reduzi-
dos a dados estatísticos a munir o ativismo e as políticas sociais.
O terceiro problema está na própria noção de “racismo”, tal como é usada em nossos escritos,
que se tornou por demais ampla e imprecisa. Eis como Howard Winant define o racismo
(1) práticas simbólicas que essencializam ou naturalizam identidades humanas baseadas em
categorias ou conceitos raciais; (2) ação social que produz uma alocação injusta de recursos sociais
valiosos, baseada em tais significações; (3) estrutura social que reproduz tais alocações. (Winant,
2001, p. 317)
Ou seja, sob o rótulo de racismo, são tratados objetos tão distintos quanto os sistemas de
classificação racial, o preconceito racial ou de cor, as formas de carisma (para usar o conceito de
Elias), que podem ser observadas em diversas instituições e comunidades, a discriminação racial nos
mais distintos mercados, e as desigualdades raciais e sua reprodução.
Sobre o primeiro problema que apontei, é ilustrativa a polêmica envolvendo Peter Fry (1995-
-1996) e Michael Hanchard (1994), na qual o primeiro acusa o segundo de fazer uso de catego-
rias nativas americanas para entender as relações raciais no Brasil, desprezando, desse modo, as
categorias nativas brasileiras e fazendo crer que as categorias americanas pudessem funcionar
como conceitos analíticos. Polêmica que chegou a Europa pelas penas de Pierre Bourdieu e Loïc
Wacquant (1998).
Na verdade, o mal-estar dos antropólogos com a progressiva substituição dos estudos sobre
relações raciais, nas quais os sujeitos e os significados culturais eram realçados, por estudos de
desigualdades e de racismo, nos quais os aspectos estruturais são enfatizados, já se manifestara
antes, nos anos 1980, quando Roberto DaMatta (1990), em um artigo que se tornou famoso – A
fábula das três raças –, utilizando-se fartamente do estruturalismo e das categorias de Dumont,
procura explicar “o racismo à brasileira” como uma construção cultural ímpar e específica.
A noção de pessoa e as relações pessoais, no dizer de Roberto, substituem, no Brasil, a noção
de indivíduo, para recriar, em pleno reino formal da cidadania, a hierarquia racial, ameaçada com
o fim da escravatura e da sociedade de castas. A proposta teórica de DaMatta é clara: o Brasil não
é uma sociedade igualitária de feição clássica, pois convive bem com hierarquias sociais e privilégios,
é entrecortada por dois padrões ideológicos, ainda que não seja exatamente uma sociedade hierár-
quica de tipo indiano.
Por seu turno, aqueles que recusam tal “exclusivismo” e tentam analisar a sociedade brasileira
segundo os mesmos moldes teóricos das sociedades modernas e individualistas do Ocidente, não
desenvolveram, contudo, um sistema teórico que dê conta do modo preciso em que se articulam
os diversos elementos ou aspectos do racismo. No mais das vezes, o seu esquema interpretativo
reduz todas as demais esferas a uma espécie de “falsa consciência”, representada pelo “mito da
democracia racial”, urdido e nutrido pelas elites e pelo Estado. Contra o que, mais uma vez, se
voltam os antropólogos a reivindicar um esforço sério de pensar a democracia racial enquanto mito
fundador da sociabilidade entre brasileiros.
De fato, ao tratar a “democracia racial” como uma “superestrutura”, os marxistas acabaram
por reforçar a ideia de mito, transformando-a em construto supraconjuntural, própria a uma for-
mação social, muito próxima dos processos de longa duração, de que nos fala Braudel. Deixaram
de investigar o modo concreto e as circunstâncias em que tal ideologia foi produzida por intelec-
tuais, que procuraram dar sentido a práticas e experiências também concretas, respondendo a
conjunturas bem específicas. Por outro lado, os críticos estruturalistas do marxismo e dos ativistas

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   91

negros acabaram por levar a sério o mito, vendo nele permanências e características estruturais tí-
picas da sociedade brasileira, reforçando, mais uma vez, a sua a-historicidade.
Parte do meu trabalho nos últimos anos tem sido devolver a “democracia racial” aos seus
criadores e à época em que nela se acreditou mais profundamente. Posta assim, no contexto dos
interesses culturais e materiais que a motivaram nos anos 1940, 1950 e 1960, a democracia racial
não é nem mais nem menos duradoura que o “racismo científico”. As décadas em que se acreditou
que a democracia poderia ser reduzida à convivência pacífica entre pessoas de diferentes cores,
raças e credos, e que tal convivência poderia ser garantida pelas leis e pelos costumes, foram en-
cerradas com os golpes de Estado de 1964 e 1968. A partir desse momento, a democracia racial já
não serve nem mesmo como ideal ou inspiração: não por acaso, a luta contemporânea dos negros
pelos direitos sociais inerentes à democracia brasileira passou a ter como mote a luta por cidadania
e respeito aos direitos humanos.
E o que acontece na militância encontra rápida resposta na academia e vice-versa. Tome-se o
abstract de uma tese defendida, no ano passado, nos Estados Unidos. Segundo o autor:
Esta dissertação analisa o obstáculo mais saliente para a consolidação da democracia no Brasil,
qual seja a exclusão racializada profundamente enraizada naquela sociedade. Tal exclusão tornou-se
“normal” na sociedade brasileira e faz parte do senso comum ordinário. A brancura simbólica tem
sido utilizada pelas elites para justificar os seus próprios privilégios e para excluir a maioria dos
brasileiros do exercício de seus direitos de cidadãos plenos e iguais. (Reitner, 2003, p. iv)
Nesse sentido, as enormes desigualdades raciais brasileiras são o que realmente importa, fazendo
com que a esfera das relações raciais pareça pura ilusão provocada por um plano muito bem urdido
de dominação e opressão sociais.
Enfrentar o segundo e terceiro problemas, que apresentei anteriormente, significa, pois, supe-
rar o hiato criado entre os estudos de interação social e os de estrutura social, entre aqueles da
cultura e os da sociedade, um hiato que ganhou contornos disciplinares, cada vez mais rígidos, com
a separação entre sociologia e antropologia, e o crescente interesse de ambas em estudar os mesmos
espaços territoriais. Essa tarefa é também difícil porque requer que elaboremos uma trama narrativa
mais densa, circunscrevamos com maior precisão o tempo e os eventos a serem tratados em nossos
estudos, o que, ainda que esteja nas origens da nossa tradição disciplinar, nos desabituamos a fazer
na sociologia. Mas, felizmente, outros fazem: sem esconder a ironia, poderíamos, hoje, reencontrar
a inspiração na historiografia contemporânea sobre a escravidão no Brasil, a mesma que adotou o
paradigma das “relações raciais” há 40 anos. Estão aí os trabalhos de João Reis (2003), Sidney
Chaloub (1990), Manolo Florentino (1997), Laura de Mello e Souza (1989), Hebe Mattos (2000) e
outros, que têm enfrentado com absoluto êxito esse desafio.
Na teoria sociológica, podemos optar por construir uma teoria sistêmica ou estrutural do
racismo, como queriam os marxistas; ou podemos tratar as relações raciais como um processo de
classificação social teoricamente autônomo da estrutura de desigualdades de classe, como suge-
riram Blumer (1965) e Blumer e Duster (1980). No entanto, em qualquer dos casos, é certo que
a reprodução das desigualdades raciais se articula com três diferentes processos: primeiro com a
formação e atribuição de carismas, algo que não se limita apenas ao racial, mas que atinge pra-
ticamente todas as formas de identidade social; segundo com o processo político de organização
e representação de interesses na esfera pública; e terceiro, justamente por se tratar de uma es-
trutura, há que se ter em mente os constrangimentos institucionais que funcionam como verda-
deiros mecanismos de retroalimentação.
Chegou a hora de concluir. O que faço, sintetizando quatro tempos. Para a geração de Pierson,
Wagley e Harris, nos Estados Unidos, as desigualdades raciais de classe entre negros e brancos se
perpetuavam graças ao preconceito, à discriminação e à segregação raciais. Porque, no Brasil, havia
as mesmas desigualdades, mas os fatores causais acima referidos eram relativamente fracos, os
autores americanos concluíram que tais desigualdades dever-se-iam apenas a diferenças de pontos
de partida, devendo desaparecer no futuro (ou seja, os negros provinham de castas subordinadas).
Para Florestan e sua geração, entretanto, o preconceito não só existia como, de certo modo, impe-
dia que a nova ordem competitiva se desenvolvesse em sua plenitude. Tratava-se, entretanto, de

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92  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

preconceitos e discriminações fora do lugar, uma espécie de consciência alienada dos agentes sociais.
Para Carlos, Nelson e a minha geração, não apenas tais preconceitos eram funcionais para o desen-
volvimento do capitalismo brasileiro, como a reprodução do sistema de desigualdades raciais pres-
cindia, até certo ponto, da consciência dos atores.
O nosso desafio atual, ao formar as novas gerações, é teorizar a simultaneidade desses dois
fatos aparentemente contraditórios, apontados por todos os que nos precederam: a reprodução
ampliada das desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavização crescente das atitudes e dos
comportamentos racistas. Para alguns, como DaMatta, trata-se de uma sociedade semi-hierárquica
e dual; para outros, assistese à reatualização de mitos (Fry, 1995-1996); Livio Sansone (2003), re-
centemente, teorizou sobre a existência de áreas moles e áreas duras nas relações raciais (as barrei-
ras e distâncias raciais reproduzindo-se apenas nas últimas); Edward Telles (2003), por seu turno,
falou de relações raciais horizontais e verticais (constatando a ambiguidade das primeiras e a rigidez
das últimas); os ativistas, por seu turno, realçam a pouca força política dos grupos anti-racistas e a
grande resistência das elites brancas como responsáveis pelas desigualdades. Antes de contraditó-
rias, é preciso tratar tais soluções e sugestões como os temas relevantes de nossa agenda atual.
Uma agenda que, para responder aos desafios políticos de nosso tempo, tem de ultrapassar não
apenas o encapsulamento da discussão acadêmica por categorias nativas do presente, mas, também,
por fórmulas que deram legitimidade intelectual às categorias nativas do passado.
Como vimos, o texto contribui com um melhor entendimento acerca do problema das relações
sociais no Brasil, especialmente porque a sociedade brasileira, em geral, se revela, do ponto de vista
histórico, como profundamente desigual e preconceituosa diante de questões relacionadas às di-
versidades étnico-raciais.

Para concluir o estudo da unidade


Esse assunto é importante para compreendermos como muitas vezes repro‑
duzimos os valores instituídos pela sociedade, desconsiderando a diversidade
cultural existente em nossa sociedade. Mas como todas as questões devem ser
analisadas pela contradição, devemos ter claras as positividades existentes nesse
processo, buscando ir para além da realidade instituída socialmente. Como já
colocamos, pode ser uma tarefa difícil, mas vale a pena realizarmos.

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F u n ç ã o s o c i a l d a e s c o l a   93

Resumo
O educador tem uma função bem importante: possibilitar a inclusão e
a valorização da diversidade. Esse processo deve acontecer em rede, com
o engajamento de todos os envolvidos no processo educativo, valorizando
a gestão democrática e cultura, pois a escola é um encontro de sujeitos de
identidades culturais diferentes. Os professores podem (e devem!) possibilitar
o crescimento da cultura pessoal de cada um, agindo democraticamente na
escola e na sociedade.

Atividades de aprendizagem
1. Discuta o papel do professor no processo de superação do etnocentrismo.
2. Como o professor pode trabalhar a questão da Lei 10.639 no contexto escolar?
3 Qual a função das politicas afirmativas para a superação do racismo em nossa
sociedade?
4. Como valorizar a diversidade cultural na escola e construir uma educação
multicultural?
5. Qual a função da relativização no trabalho docente?

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Unidade 3
Antropologia e
cultura Okçana Battini
Giane Albiazzetti
Isso nos ensina que as crises em nível de teorias são sanáveis: ou pela eliminação
de uma por outra; ou pela articulação das mesmas [...]; ou, ainda, pela convivência
pacífica de teorias contrárias, porém não contraditórias, das quais, aliás, a antropolo-
gia está plena. [...] Apesar de muitas delas, ou todas, serem passíveis de restrições e
de críticas, particularmente quando constroem modelos diferentes sobre uma mesma
sociedade e/ou cultura, isso não significa que essas teorias não convivam de algum
modo, compulsoriamente, uma vez que uma não dispõe de força suficiente — isto é,
de argumentos — para eliminar a outra.
Roberto Cardoso de Oliveira

Objetivos de aprendizagem: Nesta unidade você vai ser levado a


analisar o desenvolvimento da Antropologia como ciência e seus
desdobramentos teóricos oriundos das transformações históricas da
sociedade, pautado nas seguintes correntes teóricas: Evolucionismo,
Escola Sociológica Francesa, Difusionismo, Funcionalismo e Estrutural-
-funcionalismo, Culturalismo norte-americano, Estruturalismo, An-
tropologia interpretativa ou Hermenêutica. Assim, torna-se essencial
discutirmos as principais propriedades da cultural. Vamos a elas?

Seção 1: Cultura: o “cimento” que possibilita a


união social
Nesta seção vamos discutir as características da cul-
tura e seu impacto na formação do sujeito. Discuti-
remos também o caráter social da cultura, visto ser
fruto do desenvolvimento do homem.

Seção 2: Antropologia: as correntes teóricas e a


interpretação sobre a construção da cultura
Nesta seção vamos trabalhar as correntes teóricas da
Antropologia e a forma como as mesmas discutem o
processo de formação cultural da sociedade.

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96  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Introdução ao estudo
Sabemos que o termo cultura é muito amplo e cheio de significados. Muitas vezes ouvimos:
Nossa, esse sujeito é muito culto, ele tem muita cultura. E por outro lado: Está vendo aquele
indivíduo ali? Ele não tem cultura nenhuma, ou seja, não sabe se comportar! Quem já não se
deparou com uma situação assim em nossa sociedade? Será que falar em cultura é somente
elencar as ações dos indivíduos conforme sua formação? O que especificamente a cultura tem a
ver com a nossa sociedade? Como ela ajuda a explicar as relações existentes entre os homens?
Primeiro devemos refletir que o termo cultura traz muitos significados, dentre eles:
Originalmente, esta expressão [cultura] vem do latim — colere e sig‑
nifica cultivar. Com os romanos, na Antiguidade, a palavra cultura foi
usada pela primeira vez no sentido de destacar a educação aprimorada
de uma pessoa, seu interesse pelas artes, pela ciência, filosofia, enfim,
tudo aquilo que o homem vem produzindo ao longo de sua história
(CALDAS, 1986, p. 11, grifo nosso).

No processo de desenvolvimento da civilização, a sociedade e os indivíduos se transfor‑


maram, sendo que o termo cultura também sofreu grandes modificações, não ficando preso
somente ao ato de estudar, ou seja, a educação aprimorada de uma pessoa.
Holanda (2000) pode nos indicar algumas definições para o termo cultura:
O conjunto de características humanas que não são inatas, e que
se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e
cooperação entre indivíduos em sociedade. O conjunto dos códigos
e padrões que regulam a ação humana individual e coletiva, tal qual
como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico, e que
se manifestam em praticamente todos os aspectos da vida: modos
de sobrevivência, normas de comportamento, crenças, instituições,
valores espirituais, criações materiais etc.

  Seção 1   ultura: o “cimento” que


C
possibilita a união social
Podemos falar que toda realidade fundamenta-se nos aspectos culturais produzidos pelos
homens? Sim, e para ficar mais fácil a compreensão dessa relação, torna-se importante conhe‑
cermos a ciência que estuda essas manifestações: a Antropologia.

Saiba mais
Podemos definir Antropologia como uma ciência que estuda o homem como ser biológico, social
e cultural, sendo que ela busca investigar o desenvolvimento, as semelhanças das sociedades hu-
manas assim como suas diferenças. A palavra Antropologia, etimologicamente, vem de anthropos
que quer dizer homem, e logos, que significa “pensamento” ou “razão”. Para maiores informações
acesse o site da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) <www.abant.org.br>.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   97

A esses símbolos e signos, que fundamentam a ação humana, é dado o nome de cultura.
Nesse sentido, podemos falar que cultura engloba formas de linguagem, pensamentos, modos
de agir, os costumes, as instituições, enfim, todas as esferas da atividade humana.
Ela é o “cimento” que dá unidade a certo grupo de pessoas que dividem as mesmas ações,
costumes e valores. Deste ponto de vista, portanto, podemos dizer que tudo o que faz parte
do mundo humano é cultura.
Ou seja, a cultura surge das relações que os seres humanos estabelecem entre si e com o
meio em que vive, em busca de formas de sobreviver. Podemos falar que a cultura tem uma
relação tão intrínseca ao homem, que se pode afirmar que não existe ser humano sem cultura.
O homem é produto e produtor da cultura. A cultura compreende os bens materiais, como
utensílios, ferramentas, moradias, meios de transporte, comunicação e outros; e também os
bens não materiais, como as representações simbólicas, os conhecimentos, as crenças e os
sistemas de valores, isto é, o conjunto de normas que orientam a vida em sociedade.
Outro autor que nos ajuda a iluminar, e, portanto, melhor compreender a interpretação
de cultura é Émile Durkheim, pois segundo ele as normas, as regras de comportamento e
conduta, são produzidas e apreendidas socialmente, transmitidas de geração em geração com
o objetivo de manter ou criar uma coesão social. Quando elabora o conceito de fato social,
nos revela que a sociedade produz e impõe seus valores através da coerção com o objetivo de
autopreservação, mesmo que muitas vezes (ou na maioria delas), isso possa gerar desconforto
para alguns indivíduos na coletividade (DURKHEIM, 1988).
Chaui (1995, p. 294, grifo do autor) define muito claramente a cultura em três sentidos:
1) Criação da ordem simbólica da lei, isto é, de sistemas de interdições
e obrigações, estabelecidas a partir da atribuição de valores e coisas
(boas, más, perigosas, sagradas, diabólicas), a humanos e suas relações
(diferença sexual, e proibição do incesto, virgindade e fertilidade, puro‑
-impuro, virilidade; diferença etária e forma de tratamento dos mais
velhos e mais jovens; diferença de autoridade e formas de relação com
o poder etc...) e aos acontecimentos (significado da guerra, da peste,
da fome, do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os mortos,
proibição de ver o parto etc.).
2) Criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalhado, do
espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível.
Os símbolos surgem tanto para representar quanto para interpretar a
realidade, dando-lhe sentido pela presença do humano no mundo.
3) Conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas
quais os humanos se relacionam entre si e com a natureza e dela se
distinguem, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a. Este con‑
junto funda a organização social, suas transformações e sua transmissão
de geração para geração.

Dentro dessa discussão, podemos tirar algumas considerações e características da cultura:


1. a cultura é simbólica — se organiza em torno de símbolos e signos, cujos significados
são constituídos pela sociedade, isto é, envolve a elaboração e aceitação de padrões, normas,
hábitos e costumes, histórias, cujo significado é partilhado por indivíduos em sociedade.
2. a cultura não é inata — o fato de não ser inata concede a cultura um caráter de apren‑
dizado, isto é, os indivíduos não nascem portadores de cultura, mas eles apreendem as capa‑
cidades, habilidades e valores que são definidos pela sociedade como importantes.
3. a cultura pressupõe uma linguagem — sendo a cultura algo que é aprendido, ela neces‑
sita, obrigatoriamente, de uma linguagem, de um instrumento de comunicação. Não estamos
dizendo que a cultura necessita somente da escrita, sendo que as formas de comunicação
utilizadas para a transmissão cultural são inúmeras (fala, gestos, símbolos...).

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4. a cultura possui um caráter social — ela se refere sempre a um grupo do qual o in‑
divíduo faz parte. Não há cultura produzida por um indivíduo isoladamente. Para que haja
a produção da cultura, é essencial o engajamento dos indivíduos no grupo, na coletividade.
5. a cultura é um instrumento de coesão social — a cultura mantém os indivíduos unidos
em torno de determinados ideais que são socialmente constituídos. Sendo assim, a cultura
é um elemento indispensável à manutenção da ordem social, na medida em que envolve o
aprendizado de hábitos, normas, tradições, valores e comportamento por parte dos indivíduos.
Nesse sentido, a cultura pode ser vista como socializadora.
6. a cultura é dinâmica — a cultura está sempre em movimento, mesmo que de maneira
imperceptível, pois muitas vezes essas mudanças são lentas e não aparecem de imediato a
nossos olhos.
O termo cultura é realmente cheio de especificidades, visto que aborda questões que muitas
vezes estão escondidas sob as relações de nossa sociedade. Não podemos pensar em nossa
sociedade sem pensar nas relações culturais que a construíram e as que a modificam, sendo
que a realidade existente hoje em nossa sociedade, é muito diferente de vinte, trinta anos atrás.
Só podemos compreender essas mudanças, se levarmos em consideração os aspectos sociais,
históricos e culturais da nossa sociedade.
Para sabermos um pouco mais sobre como essas categorias explicativas sobre a cultura se
efetivam, necessitamos saber como historicamente a cultura e a diversidade cultural entre os
indivíduos foram tratadas. Vamos a elas?

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   99

  Seção 2   ntropologia: as correntes


A
teóricas e a interpretação sobre
a construção da cultura
Como vimos a Antropologia desenvolve-se no intuito de estudar o “outro”, visto que a
partir do descobrimento de novos povos, fruto do desenvolvimento da ciência e da tecnologia
(as Grandes Navegações iniciaram esse processo, visto que havia interesse em descobrir o que
existia para além da Europa. Ocorriam perguntas desse tipo: Quem habita os espaços do outro
mundo? Será um mundo desconhecido?) possibilitou o desvendar de novas realidades sociais.
A Antropologia Social ou Cultural é a responsável por interpretar esse mundo tão distante
e diferente. Torna-se importante lembrarmos que devemos compreender os processos sociais
na perspectiva histórica discutida em nosso primeiro capítulo, pois o homem, através dos
tempos, desenvolve formas de agir e pensar pautado nessa história, em sua materialidade...
Sendo que esse pensar e agir transforma-se na medida em que as próprias condições materiais
se modificam, exigindo novas explicações econômicas, políticas, culturais e sociais.
Aqui buscaremos demonstrar como esse processo ocorreu com a Antropologia, visto que
sobre ela incidiu novas leituras através dos tempos, mas todas muito importantes e significativas
para o conhecimento de nossa sociedade. Vamos procurar ver as principais formas pelas quais
a Antropologia pensou a diferença ao longo de sua história e reflexões. Sua história inicia-se
no século XVI, marcando sua “estreia” em uma perspectiva etnocêntrica, mas pouco a pouco
essa leitura vai cedendo lugar para novos conjuntos de ideias. Mas para frente discutiremos a
questão do etnocentrismo e seu impacto em nossa realidade.

2.1 Por que a antropologia surgiu?


A história, tal como a conhecemos, sempre nos mostrou, desde a pré-história até os dias
atuais, a luta incessante do homem pela sobrevivência, pela superação de suas limitações
físicas frente à natureza, pelo enfrentamento de adversidades, e pelo esforço em desenvolver
suas capacidades. Na sua interação com a natureza e o meio ambiente, o homem teve que
dominar as forças naturais através da inteligência, da criatividade e do trabalho, mas seu su‑
cesso enquanto espécie parece derivar, sobretudo de sua capacidade gregária, ou seja, do fato
de associar-se com outros homens, estabelecendo relações de cooperação e de ajuda mútua,
formando, assim, diversos grupos sociais. Segundo Auzias (1976, p. 28), “[...] é pelo trabalho
que o homem, sujeito a agrupamentos naturais, entra na cultura”.

Questões para reflexão


Será que podemos pensar a vida humana sem levar em conta a cultura?

Quando analisamos a historiografia dos diferentes povos que já habitaram o planeta, os


chamados “povos ou civilizações extintas”, e mesmo dos povos que continuam existindo,
observamos que nem sempre as relações entre grupos sociais diferentes se revela pacífica e
amistosa, mas, ao contrário, o que se observa é uma sucessão de conflitos e confrontos, com
menor ou maior intensidade, motivados por uma infinidade de razões. Entre os inúmeros
exemplos possíveis, destacaremos a seguir alguns que representam importantes marcos his‑
tóricos (CAMPOS; MIRANDA, 2005): a) na antiguidade grega, no século I a.C., a luta entre
os estados helenísticos e o exército romano, que marcou o início da dominação de Roma

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sobre a Grécia; b) na Idade Média, as invasões turcas na região da Ásia Menor e a conquista
de Constantinopla em 1453, marcando o fim da era bizantina; c) a Revolução Francesa, em
1789, que marcou o início da ascensão política burguesa sobre as monarquias absolutistas
europeias durante a consolidação do capitalismo; d) a Primeira Guerra Mundial, no início do
século XX, entre os países da Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro) e
a Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia), que culminou com a derrota dos alemães
e seus aliados em 1917; e) a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, que opôs os países
intitulados “Aliados” (Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, União Soviética e China) aos
países “do Eixo” (Alemanha, Itália e Japão); f) a chamada “Guerra Fria”, que durou quase cin‑
quenta anos (de 1945 até 1991), e representou o conflito político-ideológico entre os Estados
Unidos, expoentes do capitalismo, e a União Soviética, representante dos países socialistas;
g) os conflitos político-ideológicos entre os países fundamentalistas muçulmanos e os demais
países, especialmente os capitalistas e sua cultura ocidental. Estes são apenas alguns exemplos
que retratam a tendência conflituosa das relações interétnicas.

Questões para reflexão


Será que o homem é um ser conflitivo por natureza?

Apesar desses inúmeros exemplos registrados pelos historiadores que revelam a dificul‑
dade de se estabelecerem contatos pacíficos entre diferentes sociedades e grupos étnicos, a
necessidade de encontrar respostas capazes de explicar cientificamente os motivos desses
confrontos começou a surgir somente no século XIX, quando pensadores europeus passaram
a se interessar pelas culturas não europeias, “descobertas” através das viagens marítimas dos
espanhóis e portugueses entre os séculos XV e XVI.
Dentre as ciências que se lançaram na explicação do homem e das sociedades, a Antro‑
pologia — ciência que nasce no século XIX — destacou-se por eleger como seu objeto de
estudos a diversidade humana em seus aspectos biológicos, sociais e culturais. Costa (2003,
p. 106) afirma que enquanto a Sociologia, que também é uma ciência social, se dedicava à
compreensão da sociedade europeia de sua época, a Antropologia se voltava para “o estudo
dos povos colonizados da África, Ásia e América”, utilizando métodos de observação direta e
de coleta de dados sobre essas outras sociedades, que em muito se diferenciavam da cultura
dos países europeus. Neste sentido, a autora afirma que o pensamento antropológico surge
através da descoberta da “alteridade”, isto é, da relação dos europeus com os outros povos.
Antes de falarmos da Antropologia é necessário entendermos o que estava acontecendo
no mundo, mais especificamente na Europa, entre os séculos XI e XIX. Esse período corres‑
ponde à lenta e definitiva passagem da Idade Média para a Moderna, devido ao surgimento e
desenvolvimento do capitalismo.
Conforme Campos e Miranda (2005), o capitalismo é uma ordem social que se inicia
com as relações econômicas estabelecidas ao longo desse período, e que se estabelece em
consequência da ampliação das novas formas de comércio e de produção do território euro‑
peu, fruto do aumento populacional e da produção agrícola, da criação de rotas comerciais
terrestres (após o movimento das Cruzadas), e da formação dos burgos e das cidades, onde se
davam as trocas econômicas entre os diferentes povos. Pode-se dizer que durante a chamada
Baixa Idade Média os comerciantes se tornaram verdadeiros mestres na arte de vender e de
trocar mercadorias, enquanto os artesãos, por sua vez, dedicaram-se ao aperfeiçoamento e à
criação de técnicas de produção, fatos estes que desencadearam profundas transformações na
composição da sociedade europeia.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   101

Questões para reflexão


Por que será que a atividade produtiva passou a depender da atividade comercial
a partir desse período?

É importante destacar que durante o feudalismo


o poder era centralizado nas mãos dos reis, os quais
dividiam o governo de seu povo com a nobreza e o
clero. Como legítimos representantes dos reis, os se‑ Para saber mais
nhores feudais detinham parte desse poder, à medida
que comandavam porções do território que lhes eram O Iluminismo pode ser entendido
destinadas por seu rei. O governo absolutista dos reis como o conjunto de ideias e valores
e a divisão social baseada em estamentos (reis, nobres, que se desenvolveu em alguns paí­
clero, servos e escravos) eram amplamente aceitos pe‑
las pessoas, pois a ordem social era determinada pela
ses da Europa entre os séculos XVII
tradição e pela crença de que os reis eram os legítimos e XVIII (especialmente França e In-
representantes de Deus na terra. glaterra), após o movimento Renas-
Além do movimento de caráter econômico, surge centista. Os pensadores iluministas,
outra forma de entender o mundo, a qual buscava
filósofos e intelectuais ligados às
compreender a realidade por meio da valorização da
ação humana e das forças da natureza, bem como a artes e às ciências, passaram a lutar,
desmistificação das explicações míticas e religiosas ao lado da burguesia, pela liber-
tão enraizadas nesse período (COSTA, 2003). Essas dade política e econômica, o que
novas formas de pensar começam com o Renascimento
e desenvolvem-se até o Iluminismo, formando uma vai inspirar a Revolução Francesa
cultura racional que impulsionou os ideais liberais e a no ano de 1789, em meio à Revo-
tomada do poder político e econômico pela burguesia. lução Industrial.
Todo esse contexto histórico representa, na ver‑
dade, uma sucessão de eventos de caráter econômico,
político, social e cultural que produziram profundas transformações na sociedade europeia
entre a Idade Média e a Modernidade, resultando no enfraquecimento da cultura feudal e no
consequente fortalecimento da cultura capitalista.

Questões para reflexão


Quais as principais características da cultura capitalista?

O capitalismo se estrutura, portanto, em decorrência de diversos fatores, sobretudo o


crescimento intelectual e científico da sociedade europeia, a invenção de novas técnicas de
produção, as descobertas de novos territórios e continentes por meio das Grandes Navegações,
o comércio marítimo e a consequente expansão europeia, a dominação e colonização dos
territórios descobertos, a Revolução Francesa, que no ano de 1789 estabeleceu o início da
dominação política e econômica da classe burguesa, e, finalmente, a consolidação plena do
capitalismo durante a Revolução Industrial — a revolução das forças produtivas que reorgani‑
zou o modo de fazer comércio e de acumular riquezas entre os países (HOBSBAWM, 2001).

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102  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

2.2 O
 pensamento científico como base para o
surgimento da antropologia
Em uma sociedade que baseava suas verdades fundamentalmente no pensamento mítico
e religioso, é possível imaginarmos a revolução intelectual e cultural que representou a in‑
trodução de concepções científicas acerca do mundo e da realidade social. O pensamento
científico se distingue do teológico (religioso), do senso comum e da filosofia, e pode ser en‑
tendido, em linhas gerais, como o conjunto de verdades ou de respostas que se estabelecem
a partir do estudo sistematizado das leis e regras que explicam um determinado fenômeno,
sendo necessário, para tanto, a utilização de uma metodologia de observação, experimenta‑
ção, comparação, análise e interpretação (MENDES et al., 2006). Se quisermos, por exemplo,
compreender de fato como uma determinada sociedade se originou e se desenvolveu, será
necessário estudarmos sua história e seus elementos concretos, que são passíveis de observação
e análise. Nesse sentido, nenhuma afirmação sobre tal sociedade que decorra de ideias meta‑
físicas ou sobrenaturais poderá ser reconhecida como científica, daí a refutação ou negação
das verdades e dos dogmas difundidos pela fé e pelas crenças religiosas, os quais não podem
ser comprovados concretamente.

Questões para reflexão


Por que a ciência e a religião são formas de pensamento tão diferentes entre si?
Por que a ciência contesta as “verdades” religiosas?

Além disso, todas as concepções fundamentadas na ciência são, a priori, questionáveis,


pois uma das principais características desse tipo de pensamento é o fato de levantar diversas
hipóteses, possibilitando, assim, diferentes análises acerca de um mesmo fenômeno, depen‑
dendo do método de investigação utilizado pelo cientista e da teoria que fundamenta sua
pesquisa. As verdades científicas não são, portanto, definitivas, porque se resumem ao estudo
e à interpretação de um fenômeno sob a óptica de um determinado pesquisador, ainda que
este faça sua análise tendo como base estudos científicos anteriores e teorias desenvolvidas
por outros cientistas.
No campo das ciências humanas e sociais, o desenvolvimento do pensamento científico
pode ser considerado tardio se comparado com outros campos, como nas ciências exatas e
biológicas. Foi apenas no século XIX que alguns pensadores e intelectuais se interessaram
em explicar os diversos fenômenos que configuravam a nova ordem social capitalista, pois
ainda não conseguiam entender o caos em que a Europa havia mergulhado depois de tantos
acontecimentos e revoluções.

Questões para reflexão


Mas como a Europa podia estar “mergulhada” em um caos se estava tão desen‑
volvida do ponto de vista científico e tecnológico?

Por um lado surgem os pensadores empenhados em estudar a própria sociedade europeia,


os quais deram origem à Sociologia. Por outro lado, e ao mesmo tempo, surgem alguns inte‑
lectuais mais dedicados em compreender os povos não europeus, movidos pela curiosidade

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   103

em descobrir os motivos do que eles entendiam por “atraso cultural” dessas sociedades. Serão
estes os primeiros representantes da Antropologia, ciência que surge no século XIX, juntamente
com a Sociologia, mas que tem como objeto de estudos a compreensão das sociedades não
europeias (COSTA, 2003). É exatamente neste contexto de plena efervescência intelectual que
surge a ciência antropológica.

2.3 Mas o que a antropologia estuda exatamente?


Para respondermos a esta questão, vamos fazer primeiro um exercício de imaginação.
Imagine que você está fazendo uma viagem pela Amazônia e tem a oportunidade de conhecer
uma comunidade indígena que vive no interior da floresta, mantendo pouco contato com a
população urbana. Ao se deparar com essas pessoas — os indígenas — e com o modo como
vivem é bastante provável que você estranhe alguns costumes, crenças, hábitos de alimenta‑
ção e vestuário, os rituais que praticam, a língua, as moradias, seus jeitos de ser, de pensar e
de se expressar, a religiosidade, o modo como estabelecem ligações afetivas e como educam
as crianças, o jeito de cuidarem da saúde, a divisão do trabalho, as tradições que cultivam,
como contam sua história, a relação que estabelecem com a natureza e com os outros povos,
enfim, todas as suas particularidades.

Questões para reflexão


Por que será que a humanidade se desenvolveu de modo tão diversificado, isto
é, diversas etnias e diferentes culturas?

Imagine o quanto os perceberia como diferentes e estranhos em um primeiro momento,


tamanha a distância cultural em relação a tudo aquilo que você está acostumado. Mas diga‑
mos que você resolve ficar mais alguns meses nessa região, e passa a conviver mais de perto
com a comunidade indígena. Aos poucos irá conhecê-los melhor, podendo, assim, entender
certos aspectos de sua cultura. Em relação a esta experiência, Laplantine (1988) afirma que:
Apenas a distância em relação à nossa sociedade [...] nos permite fazer
esta descoberta: aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos
é, de fato, cultural [...]. Disso decorre a necessidade, na formação
antropológica, daquilo que não hesitarei chamar de “estranhamento”
(depaysement), a perplexidade provocada pelo encontro das culturas
que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma mo‑
dificação do olhar que se tinha sobre si mesmo (p. 21, grifo do autor).

O autor se refere à experiência da “alteridade”, ou seja, do contato com pessoas que são
de uma cultura diferente, que possibilita conhecer melhor o “outro” e, ao mesmo tempo, a
si mesmo:
A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva‑
-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa
dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar,
cotidiano, e que consideramos “evidentes”. Aos poucos, notamos que
o menor dos nossos comportamentos [...] não tem realmente nada de
“natural”. [...] O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa
inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos
especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas
outras, mas não a única (LAPLANTINE, 1988, p. 21, grifo do autor).

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104  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Diante disto, poderíamos perguntar: em que medida os indígenas podem ser considerados
diferentes ou iguais aos demais habitantes de todo o planeta Terra? Para a Antropologia esta é
uma questão essencial, pois todas as sociedades se assemelham no sentido de que possuem
cultura (ainda que culturas diferentes), e seus integrantes pertencem ao gênero humano (dotados
de todas as capacidades humanas, como a inteligência, a razão, as emoções e a criatividade).
Mas as culturas não são idênticas, porque têm especificidades, e é isso exatamente que faz com
que as sociedades e os grupos humanos mantenham diferenças entre si (RODRIGUES, 1989).

Questões para reflexão


O que mais diferencia os povos tribais (como os indígenas, por exemplo) dos
povos ocidentais?

A Antropologia é a ciência que estuda o homem na sua totalidade, ou mais especificamente


nas suas dimensões biológicas, sociais e culturais, procurando compreender o modo como
estas dimensões interagem e o que resulta dessa interação. Podemos dizer que é o estudo do
homem pelo próprio homem, ou, ainda, o estudo do “outro” (da alteridade) e de si mesmo
(LAPLANTINE, 1988). Sendo uma ciência que trata do homem e da cultura, tem um campo de
estudos abrangente, e por isso abarca três dimensões essenciais: o tempo, através do estudo
da história da humanidade (desde os primeiros ancestrais hominídeos até os dias de hoje);
o espaço, com suas especificidades geográficas e ambientais; e as populações organizadas
enquanto contingentes sociais e culturais. De acordo com Leach (1982), embora haja diversi‑
dades biológicas de pouca ou mesmo nenhuma importância distintiva, a principal característica
da humanidade é ser tão diversa no que se refere aos aspectos históricos, sociais e culturais.

Questões para reflexão


Será que a história é contada da mesma forma por todos os povos? Pensem em
sociedades como a nossa, com cultura ocidental, e nas sociedades ágrafas, que
não utilizam a escrita.

A Antropologia pensa o homem como um ser que


age sobre a natureza, apropriando-se dela e transfor‑
mando-a de acordo com suas necessidades e interes‑
Links ses. Este modo de ser e de agir no mundo é fruto do
aprendizado cultural: aprende-se no cotidiano, atra‑
Para ter mais informações sobre a vés das experiências vividas no dia a dia, e também
Antropologia acesse o link: <www. pelos costumes e tradições passados de geração em
antropologia.com.br/>. geração. Isto quer dizer que todos os seres humanos
aprendem, de uma forma ou de outra, a seguir regras,
desempenhar papéis sociais, respeitar certos valores e
manter o padrão de comportamentos culturalmente aceitos por seus pares, fazendo com que
haja semelhanças nos modos de ser, de pensar, de sentir e de agir no mundo por parte dos
indivíduos que compartilham uma mesma cultura.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   105

Saiba mais
Proponho que conheçam o livro de François Laplantine, intitulado Aprender antropologia.
Consta nas referências e é leitura obrigatória para os estudantes que estão iniciando nesta ciência.

A Antropologia é, portanto, a ciência que estuda a diversidade cultural e social existente na


humanidade, quer seja analisando os diferentes povos e sociedades que existiram no passado
(extintos), os povos e sociedades que existem no presente (países do Ocidente e do Oriente,
sociedades tribais e demais comunidades étnicas espalhadas pelo globo), ou uma mesma so‑
ciedade, debruçando-se sobre sua diversidade cultural e social interna (um país, por exemplo).
Os grandes ramos nos quais se divide são: “Antropologia Biológica ou Física”, por um lado, e
a “Antropologia Social, Cultural e a Etnologia”, por outro.
Segundo Costa (2003), a Antropologia Biológica ou Física dedica-se ao estudo dos re‑
gistros e dados históricos sobre os povos da Pré-História e da Antiguidade (os ancestrais do
homem contemporâneo e as grandes civilizações do passado), utilizando-se dos achados da
Arqueologia (vestígios, ossadas, fósseis, objetos e achados arqueológicos), com a finalidade
de reconstruir os modos de vida dos grupos humanos extintos. Panoff e Perrin (1973) afirmam
que este ramo da Antropologia também procura analisar os aspectos genéticos e biológicos do
homem, inclusive do homem contemporâneo, procurando identificar semelhanças e diferenças
entre as diversas etnias, além de investigar as semelhanças e diferenças entre o homem e os
outros animais, sobretudo os primatas.

Questões para reflexão


Será mesmo que o homem e os primatas evoluíram biologicamente a partir de
um mesmo tronco genético? Que tal pesquisar sobre isto?

Em relação à Antropologia Social, Cultural e Etnologia, são denominações utilizadas


para especificar o ramo da Antropologia que se direciona para o estudo das sociedades con‑
temporâneas, as diversas formas de organização social e de cultura espalhadas pelo globo,
especialmente no que se refere a linguagem, organização social, política e econômica, relações
de gênero e de parentesco, instituições em geral (família, casamento, religião etc.), sistemas
simbólicos, mitos, rituais, crenças, modos de agir e de se expressar, as particularidades histó‑
ricas, a arte, a produção do conhecimento, entre outros aspectos.
Sobre a Etnologia, trata-se de um termo que se relaciona com o estudo das diversas etnias
ou “raças”, através do uso da metodologia etnográfica, da observação direta e da coleta de
dados junto à sociedade estudada:
A etnografia é a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos fenô‑
menos que observamos [...]. Esses fenômenos podem ser recolhidos
tomando-se notas, mas também por gravação sonora, fotográfica ou
cinematográfica (LAPLANTINE, 1988, p. 25).

Os termos Antropologia e Etnologia, embora possam ser pensados como sinônimos, são
identificados como distintos em alguns aspectos: na tradição terminológica francesa encontra-se
mais o uso do termo “Etnologia”, enquanto que o termo “Antropologia” corresponde à Escola

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Anglo-Saxônica. Laplantine (1988), seguindo a linha de Lévi-Strauss, afirma que a Etnologia e


a Antropologia são momentos distintos “de uma mesma abordagem”, os quais são posteriores
à Etnografia:
A etnologia consiste em um primeiro nível de abstração: analisando
os materiais colhidos, faz aparecer a lógica específica da sociedade
que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste em um segundo
nível de inteligibilidade: constrói modelos que permitem comparar as
sociedades entre si (LAPLANTINE, 1988, p. 25).

Outros autores, como Leach (1982), preferem distinguir uma da outra. Os antropólogos
sociais podem ser pensados como aqueles pesquisadores mais voltados ao estudo do funcio‑
namento das instituições sociais, como a família, a religião, a política, a economia, as relações
entre os diferentes grupos a atores sociais no interior de uma sociedade etc.

Questões para reflexão


Quando comparamos diferentes tipos de sociedade, encontramos muitas seme‑
lhanças entre elas, por exemplo, o fato de que em todas há algum tipo de ma‑
nifestação religiosa ou de organização familiar. Por que será que todos os povos
desenvolveram, cada um a seu modo, a religiosidade e a família?

Panoff e Perrin (1973, p. 21) entendem que o maior objetivo da Antropologia Social é
“estabelecer leis gerais da vida em sociedade” que possam ser aplicadas na análise de toda
e qualquer sociedade. Além disso, os antropólogos sociais estariam menos interessados na
perspectiva diacrônica, isto é, na busca por elementos históricos da população estudada. Sendo
assim, os antropólogos sociais estariam mais empenhados em análises sincrônicas, voltadas
para os elementos do tempo presente. Os principais nomes da Antropologia Social são: Bro‑
nislaw Malinowski, Radcliffe Brown, Evans-Pritchard, Fortes, Raymond Firth, Max Glukman,
Victor Turner e o próprio Edmond Leach.
Ainda segundo Leach (1982) os antropólogos culturais, por outro lado, sempre se debru‑
çaram mais sobre os problemas relativos às questões de etnia e de comportamentos cultural‑
mente aprendidos em cada sociedade pesquisada, principalmente as chamadas “sociedades
tribais” e as não ocidentais. Ao contrário dos antropólogos sociais, os culturais reconhecem a
necessidade de se analisar a história dos diversos povos e etnias. Para Panoff e Perrin (1973),
os antropólogos culturais sempre estiveram mais preocupados com os “problemas de relati‑
vismo cultural”, defendendo a necessidade de respeitar as especificidades culturais de cada
sociedade. Entre os representantes da Antropologia Cultural estão: Franz Boas, Margaret Mead
e Ruth Benedict, da Escola Culturalista norte-americana.

2.4 O desenvolvimento da ciência antropológica


A Antropologia é uma ciência que vem se desenvolvendo desde o século XIX, mas é possí‑
vel afirmar que os primeiros “registros etnográficos” começaram a ser produzidos já no século
XVI, quando os europeus começaram a viajar por terras distantes. É claro que nessa época
não se falava ainda em Antropologia ou Etnologia, mas para os pensadores desta ciência essas
etnografias representam o marco inicial do saber antropológico.
Etnografia é um método de coleta de dados que possibilita identificar as características
específicas de uma determinada sociedade ou grupo humano, através da observação direta,

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descrição (anotações e registros) e análise dos modos de vida e da cultura. Sua finalidade é
reconstituir, o mais fielmente possível, os diversos aspectos e elementos da organização e da
dinâmica social. Embora atualmente o método etnográfico seja utilizado em pesquisas sobre
qualquer sociedade (inclusive a nossa), durante o século XIX e nas primeiras décadas do século
XX as etnografias foram direcionadas mais para o estudo dos povos chamados “primitivos”,
ou seja, as sociedades tribais e nativas que vivam nos continentes colonizados pelos países
europeus, ainda distantes do modo de produção industrial (PANOFF; PERRIN, 1973).

2.4.1 Primeiros registros etnográficos feitos por viajantes


europeus (séculos XVI a XIX)
Durante o período que compreende os séculos XVI e XIX, na transição histórica entre
o mundo feudal e o capitalista, houve a produção e o acúmulo de um grande volume de
informações e descrições sobre as culturas não europeias, obtidas através dos registros etno‑
gráficos realizados durante as viagens feitas pelos exploradores, colonizadores, missionários,
comerciantes e militares europeus aos territórios situados fora da Europa. Esses viajantes eram
incumbidos de fornecer aos governos de seus países (sobretudo Portugal, Espanha, Inglaterra
e França) uma série de descrições acerca dos recursos naturais disponíveis nesses territórios,
bem como dos povos que, segundo se acreditava na época, eram selvagens e atrasados, e,
portanto, deveriam ser civilizados de acordo com os padrões impostos pela cultura europeia.
Nesse período havia muitos interesses econômicos e políticos em jogo, levando os países
exploradores a investir muito nessas viagens. Esses investimentos de caráter exploratório
acabaram favorecendo a produção de conhecimentos sobre os povos nativos que viviam nas
áreas colonizadas (LAPLANTINE, 1988).

Questões para reflexão


É correto afirmar que os europeus tinham “consciência” do abuso que esta‑
vam cometendo ao impor sua cultura sobre os povos nativos dos territórios
do Novo Mundo?

Segundo Pelto (1967, p. 27), outro fato importante foi o fortalecimento da Filosofia Ilu‑
minista, que defendia “[...] ideias de progresso e evolução que passaram a ser centrais para
a teoria antropológica do século XIX”, e a publicação da obra de Charles Darwin, A Origem
das Espécies, em 1859, que revolucionou o pensamento científico sobre a relação do homem
com a natureza, levando muitos pesquisadores e estudiosos da cultura humana a explicarem
as diferenças entre as sociedades por meio dos princípios da evolução natural.
Os filósofos do Iluminismo, especialmente Turgot e Condorcet, são
as principais fontes de muitas das ideias que constituíram a teoria da
evolução cultural. Afirmavam que a história dos seres humanos pode
ser descrita como progresso (melhoria) desde o início simples até a
nossa civilização complexa. Apresentavam supostos estágios através
dos quais teria progredido a cultura humana [...] até a civilização
moderna (PELTO, 1967, p. 30, grifo do autor).

A sociedade burguesa europeia, embora fosse bastante heterogênea na sua conformação


étnica, linguística e cultural, acreditava ser mais evoluída que as demais pelo fato de ter de‑
senvolvido formas de pensamento e costumes que eram decorrentes da concepção científica/

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racional do universo e do modo de produção capitalista. Essas formas de pensar e de agir não
faziam parte da cultura dos povos colonizados, por isso os europeus se colocaram como o
modelo de civilização que devia ser seguido.
Como exemplos dos registros etnográficos sobre os povos indígenas do Brasil, nesse pe‑
ríodo, destacam-se a “Carta do Descobrimento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha, e a obra
“Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, de Jean Baptiste Debret. Nesses registros era comum
a referência aos indígenas brasileiros como homens que, apesar de serem “selvagens” e de
andarem nus, eram puros pacíficos. Embora esses primeiros etnógrafos tenham manifestado
uma concepção totalmente etnocêntrica, por entenderem a cultura europeia como a mais
evoluída e civilizada, seus registros são reconhecidos como fundamentais para se compreender
os caminhos percorridos pela Antropologia após o século XIX.

Questões para reflexão


Nós, brasileiros, ainda temos o hábito de pensar que as culturas estrangeiras,
principalmente a norte-americana e a europeia, são melhores do que a nossa.
Por que fazemos isto?

2.5 Evolucionismo
Uma primeira forma de entender a diversidade cultural existente é conhecida como
Evolucionismo, sendo essa ideia (evolução) um ponto importantíssimo para o pensamento
antropológico. Podemos pensar essa leitura baseada em uma pergunta: “O ‘outro’ é diferente
porque possui diferentes graus de evolução?”.
Segundo Rocha (1994), evolução, no seu sentido mais amplo, equivale a desenvolvimento.
É a transformação progressiva no sentido da realização plena de algo latente. É a manifestação
plena do que estava oculto. Evolução em outras palavras é o desenvolvimento obrigatório de
uma determinada unidade que revela, pelo processo evolutivo, uma segunda forma, mostrando,
então, sua potencialidade. É um processo permanente onde uma unidade qualquer se trans‑
forma numa segunda que, por sua vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente.
A partir do século XIX os primeiros pensadores da Antropologia começaram a realizar
estudos sistematizados sobre os povos não europeus, denominados “primitivos” (não civili‑
zados). Baseavam seus estudos nos conhecimentos da Arqueologia e das Ciências Naturais,
principalmente a Biologia, e nos registros etnográficos produzidos desde o século XVI.
Com uma perspectiva diacrônica unilinear (valorização da evolução do homem ao longo
da história), os evolucionistas procuravam compreender as origens do homem e suas várias
formas de evolução cultural, concentrando-se principalmente no estudo da organização social,
sistemas de parentesco, crenças e religiões.
Nesse momento os estudos biológicos e naturais é que buscavam explicar o desenvolvi‑
mento dos homens, sendo que o livro A origem das espécies de Darwin passa a ser o principal
referencial. Essa noção biológica de evolução se uniu ao pensamento e discussões filosóficas
dos estudos iluministas do século XVIII, dando uma leitura de organismo social.
Esses intelectuais, também conhecidos como “darwinistas sociais”, preferiam permanecer
dentro de seus gabinetes, desenvolvendo teorias que pudessem explicar os modos de vida
desses povos, comparando-os entre si, e o porquê de não terem conseguido se desenvolver
como sociedades civilizadas, a exemplo dos europeus.

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A Europa se vê confrontada com uma conjuntura inédita. Seus modos de


vida e suas relações sociais sofrem uma mutação sem precedente. Um
mundo está terminando, e um outro está nascendo. Se o final do século
XVIII começava a sentir essas transformações, ele reagia ao enigma
colocado pela existência de sociedades que tinham permanecido fora
dos progressos da civilização [...]. Ora, no século XIX, o contexto geo‑
político é totalmente novo: é o período da conquista colonial [...]. É no
movimento dessa conquista que se constitui a Antropologia moderna,
o antropólogo acompanhando de perto, como veremos, os passos do
colono (LAPLANTINE, 1988, p. 64, grifo do autor).

Nesse sentido o Evolucionismo Antropológico institui que a noção de progresso passa


a ser essencial, pois é através do desenvolvimento da história e do tempo que o homem e a
sociedade se constroem. Nesse momento acredita-se na unidade básica da espécie humana
(um desenvolvimento único para todos os homens e sociedade, sendo o fator tempo impor‑
tantíssimo para a explicação social).
A direção é a de um estágio superior de civilização. Saindo de estágios
mais primitivos numa trajetória de permanente progresso onde o tempo
é a teia onde se tece a evolução. Assim, a origem da humanidade tem
de ser num passado longínquo para que as etapas se sucedam na di‑
reção de uma civilização mais e mais avançada, mais e mais absoluta
em suas conquistas (ROCHA, 1994, p. 28).

Diante desse contexto, esses “pesquisadores-eruditos do século XIX”, como afirma La‑
plantine (1988, p. 63), desenvolvem uma postura etnocêntrica, pois suas análises partiam do
referencial de superioridade do povo europeu sobre os demais. Para esses teóricos todos os
povos não civilizados teriam que passar, necessariamente, pelos mesmos estágios de desen‑
volvimento para chegar até a civilização. Apenas a cultura europeia era considerada por eles
como desenvolvida no maior estágio evolutivo.
A primeira geração de antropólogos buscava estabelecer as etapas de evolução das socie‑
dades encontradas pelo mundo, sendo eles Sir James George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor
(na Inglaterra) e Lewis Morgan (nos Estados Unidos).
Esses estudos pautavam-se na busca por compreender os estágios mais primitivos de uma
sociedade, sendo que eles afirmavam que todas as formações humanas têm origens remotas e
caminham no mesmo sentido, na direção do progresso. Esses estudiosos começaram a relacionar
os “povos primitivos” e os “povos civilizados” para traçar um paralelo de desenvolvimento para
a sociedade, sendo que todos sairiam de um estágio de barbárie, passando pela selvageria e
finalmente chegando à civilização, esta fundada nos princípios da Europa e dos Estados Unidos.
Essa definição dos estágios da civilização podem ser baseadas na definição de cultura de
Tylor em seu livro A origem das culturas, em que fundamenta-se que:
Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico estrito, é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, leis, moral, costu‑
mes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem
enquanto membro da sociedade (TYLOR apud ROCHA, 1994, p. 30).

Esses itens estão presentes em todas as culturas, umas mais “civilizadas” do que outras,
sendo que esses itens eram pensados como uma linha de evolução, a partir do “polo primitivo”,
e por via do progresso, chegando ao “polo da civilização”.
Morgan, antropólogo norte-americano, institui alguns pontos que “moldaram” essa li‑
nha de evolução: “governo”, “meios de subsistência”, “arquitetura”, “religião”, “família”...
Dividindo o período da história em três grandes períodos básicos da sociedade: selvageria,
barbárie e civilização.

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2.6 Escola sociológica francesa


Paralelamente à Escola Evolucionista, surge no final do século XIX, na França, uma cor‑
rente de pensamento antropológico fundamentada na Sociologia, mas que ainda se limitava
em estudar as sociedades ditas “primitivas”. Os teóricos procuravam se debruçar sobre os
fenômenos sociais que se expressavam na forma de representações coletivas de caráter bio‑
lógico, psicológico e social, dando início, assim, à Antropologia Social, que se desenvolveu
posteriormente com os antropólogos funcionalistas britânicos.
Os pensadores da chamada Escola Sociológica Francesa, representados especialmente por
Émile Durkheim, autor de Regras do Método Sociológico (1895); As formas elementares da
vida religiosa (1912); e Algumas formas primitivas de classificação (1901), escrito em conjunto
com Marcel Mauss, que também publicou Ensaio sobre a dádiva (1923). Nessas obras, esses
teóricos procuraram analisar as manifestações de solidariedade mecânica e orgânica, o tote‑
mismo, o fato social total, o sistema de trocas e a reciprocidade, considerando-os conceitos
fundamentais para se conhecer a ordem social em qualquer sociedade.
Também pensavam nas sociedades “primitivas” de modo similar aos evolucionistas, de tal
forma que o processo de desenvolvimento da ordem social necessariamente deveria passar
pelos estágios da selvageria, barbárie e civilização, concentrando suas análises na comparação
com a sociedade industrializada e capitalista (MAIR, 1979).
Um aspecto fundamental desta Escola é que se privilegiou o conhecimento científico através
do rigor metodológico, e para isso procuraram utilizar o método comparativo da Sociologia
Positivista, o que serviu de base para os antropólogos ingleses do início do século XX.

Questões para reflexão


Quando afirmamos que um povo é mais culto e educado do que outro, estamos
manifestando, de certa forma, uma visão evolucionista e etnocêntrica, na medida
em que supervalorizamos um e desvalorizamos outro. Por que fazemos isso?

2.7 Difusionismo
A Escola Difusionista foi contemporânea à Evolucionista e à Sociológica Francesa, mas
procurou focalizar sua atenção em outras dimensões da cultura. Teve maior expressão nos
Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, e foi crítica do pensamento evolucionista. Os antro‑
pólogos difusionistas dedicaram-se ao estudo das origens e extensões de todas as culturas, e
estabeleceram alguns conceitos específicos para explicar as semelhanças e diferenças entre
uma sociedade e outra. Um conceito importante desta escola antropológica é o de “empréstimo
cultural”, através do qual procuravam demonstrar que as diversas sociedades, interagindo entre
si por meio de encontros e de “áreas culturais” comuns, teriam desenvolvido uma mistura de
características e modos de ser, como resultado de uma tendência humana natural à imitação
e à absorção de elementos culturais, quer as tornaria muito semelhantes em alguns aspectos
(PANOFF; PERRIN, 1973). Os difusionistas defendiam que alguns traços culturais estariam
presentes em todos os povos, e estudando a história da humanidade, chegaram à conclusão
de que existiram “centros de difusão” em determinadas regiões, especialmente no Egito, que
foram responsáveis pela disseminação desses traços culturais pelo mundo, embora cada so‑
ciedade os tivessem desenvolvido de modo específico (MAIR, 1979).
Mas as ideias desses pensadores foram superadas pelas escolas seguintes, não sendo mais
aceitas na Antropologia contemporânea. Entre os autores mais conhecidos estão: A. Bastian;

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F. Ratzel; G. Elliot Smith; W. J. Perry; W. H. R. Rivers; F. Graebner; e F. W. Schmidt (fundador


da Revista Anthropos).
Queremos deixar claro que aqui estamos indicando somente como a Antropologia com
ciência se desenvolveu, pontuando as correntes teóricas oriundas dessas transformações.
Intrinsecamente a isso, temos processos críticos sobre as teorias em um debate construtivo
para a cultura como um todo, pois podemos analisar a preocupação dos estudiosos em não se
acomodar com certas explicações, mas sim, sempre buscar novas leituras sociais.

2.8 Funcionalismo e estrutural-funcionalismo


A Escola Funcionalista, cujo maior representante é Bronislaw Malinowski, e sua variante
Estrutural-Funcionalista, de Radcliffe-Brown (1973), se consolidou na Grã-Bretanha, nas
primeiras décadas do século XX. Esses antropólogos,
em especial Malinowski e seus seguidores, passaram a
criticar a Antropologia Evolucionista e a Difusionista.
Fizeram uma certa ruptura com os estudos teóricos de Saiba mais
gabinete (nos quais os estudiosos limitavam-se a teori‑
zar sobre os vários povos sem conhecê-los de perto), e Proponho que conheçam o livro
elaboraram análises empíricas, procurando conhecer de Malinowski, um clássico da
as diversas culturas humanas por meio de pesquisas de Antropologia, intitulado Argo-
campo. Resgataram, portanto, a etnografia, ou seja, as
observações e registros in loco, bem como entrevistas
nautas do Pacífico Ocidental.
com informantes nativos (LAPLANTINE, 1988). Consta nas referências e é uma
O que importava para os funcionalistas e para leitura muito interessante, pois o
os estrutural-funcionalistas era o modo como as so‑ autor relata sua experiência junto
ciedades se organizavam e se expressavam no tempo
aos habitantes das Ilhas Trobriand.
presente, por isso abdicaram da perspectiva diacrônica
(histórica), concentrando-se nas instituições sociais e É muito curioso! Recomendo tam-
sua interdependência funcional observadas no tempo bém que tenham contato com a
presente, portanto, uma perspectiva sincrônica (PELTO, obra de Radcliffe-Brown, sobretudo
1967; LAPLANTINE, 1988).
Estrutura e função na sociedade
Nesse contexto temos outra explicação, agora de‑
nominada de Funcionalismo, que discorda de uma lei‑ primitiva.
tura unicamente histórica como eixo para compreensão
do presente. Não existe a necessidade de explicação
dos fatos presentes pela história, ou seja, a sincronia — presente — não está submetida à
diacronia — história.
Os funcionalistas propunham a leitura da cultura baseada nos estudos funcionais das so‑
ciedades, ou seja, não mais uma leitura historicista, mas sim uma abordagem funcional. Nesse
contexto estão presentes Radcliffe Brow, Bronislaw Malinowski.
Aqui a Antropologia se desvincula unicamente da história e fundamenta-se em estudar a
sociedade sem se preocupar exclusivamente com o seu passado. Assim torna-se importante
compreender o “funcionamento” de uma sociedade.
Vamos deixar mais claro: a sincronia (presente) deve ser analisada por alguns conceitos
bem estabelecidos, por exemplo, “processo”, “estrutura” e “função”, sendo que esses itens
formam um esquema interpretativo da realidade social. A união dos itens descritos formaria
um processo social, como sendo um encadeamento das relações, das ações, das interações
entre os seres humanos que passam a ocupar “papéis sociais”.
Aqui podemos colocar a noção de função, pois cada processo e estrutura social teriam sua
funcionalidade na sociedade. Assim existe uma comparação entre o sistema social e o corpo
humano. No que se refere à sociedade, segundo Durkheim (1988), ela pode ser comparada
a um organismo vivo. O que isto significa? O que é um organismo vivo? Vejamos: para ele a

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112  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

sociedade é como um “corpo humano”: é composta por diferentes partes, cada qual com sua
função específica a desempenhar e que são interdependentes, isto é, que dependem umas das
outras. Além disso, o estado “natural“ deste “corpo” seria a saúde, que seria obtida através da
integração das partes. Na sociedade, algumas instituições desempenham uma “função” crucial
na manutenção dos “processos” e “estruturas”, sendo que essas instituições e suas funções
podem variar de sociedade para sociedade.
A outra corrente advém de Radcliffe-Brown, reconhecido como um estrutural-funcionalista
por focalizar sua atenção nas estruturas sociais que determinavam o funcionamento das ins‑
tituições culturais. Menos preocupado com os trabalhos de campo, e mais influenciado pela
cientificidade positivista de Durkheim (Escola Sociológica Francesa), este antropólogo se des‑
tacou por reconhecer cada sociedade como um sistema natural, autossuficiente, e que existia
independentemente dos indivíduos que o compunham. Concentrava-se na classificação das
instituições sociais e no seu papel determinante das relações entre os homens. É identificado
como um dos precursores da Antropologia Social contemporânea.
Aqui se faz presente uma nova leitura antropológica. Com o funcionalismo a sociedade
dos “outros” deixam de ser pensadas por noções da sociedade do “eu”. Nesse momento a
Antropologia tornou-se capaz de pensar igualmente a nossa sociedade e aquelas que dela
diferem, sendo que a noção de tempo (linear, histórico) passa a não ser a única a explicar as
diferenças. Existem muitas formas de conceber e interpretar o tempo.
Os maiores representantes do funcionalismo são: B. Malinowski (Argonautas do Pacífico
Ocidental — 1922); Radcliffe-Brown (Estrutura e função na sociedade primitiva — 1952 e
Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento — 1950); Evans-Pritchard (Bruxaria,
oráculos e magia entre os azande — 1937 e Os nuer — 1940); R. Firth (Nós, os tikopia —
1936 e Elementos de organização social — 1951); M. Glukman Ordem e rebelião na África
tribal — 1963); V. Turner (Ruptura e continuidade em uma sociedade africana — 1957 e O
processo ritual — 1969); e E. Leach (Sistemas políticos da Alta Birmânia — 1954).

2.9 Culturalismo norte-americano


No início do século XX, surge nos Estados Unidos uma corrente que, utilizando-se do
método histórico (diacrônico), das pesquisas de campo e da etnografia, reconhecia também o
princípio da difusão cultural, mas criticava a concepção generalista dos difusionistas, enten‑
dendo que as trocas culturais entre sociedades diferentes ocorriam somente em regiões próximas
geograficamente. Através da perspectiva diacrônica (histórica) e com influência da Psicologia,
os culturalistas defendiam que era necessário “[...] descobrir as características de uma cultura
mediante o estudo das suas manifestações através dos indivíduos e das suas influências sobre
o seu comportamento” (PANOFF; PERRIN, 1973, p. 50). Tal premissa esteve, sobretudo ligada
às ideias de Ruth Benedict e de Margaret Mead, ambas discípulas de Franz Boas, antropólogo
alemão que desenvolveu sua carreira nos Estados Unidos, e um dos grandes nomes da geração
que precedeu a Antropologia moderno-contemporânea.
Boas (2005, p. 25), precursor da corrente culturalista, afirma que:
A Antropologia moderna descobriu o fato de que a sociedade humana
cresceu e se desenvolveu de tal maneira por toda a parte, que suas
formas, opiniões e ações têm muitos traços fundamentais em comum.
Essa importante descoberta implica a existência de leis que governam
o desenvolvimento da sociedade e que são aplicáveis tanto à nossa
quanto às sociedades de tempos passados e de terras distantes; que seu
conhecimento será um meio de compreender as causas que favorecem
e retardam a civilização; e que, guiados por esse conhecimento, po‑
demos ter a esperança de orientar nossas ações de tal modo que delas
advenha o maior benefício para a humanidade.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   113

Segundo Boas (2005), uma das grandes tarefas da Antropologia, e que depende do método
diacrônico, é desvendar os processos históricos responsáveis pelo desenvolvimento de certos
estágios culturais, afirmando que: “Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem
a finalidade última da pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e cren‑
ças existem — em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento”
(BOAS, 2005, p. 33).

Questões para reflexão


Por que será que o ser humano se tornou, historicamente, tão dependente de
tradições, costumes, crenças, valores, regras etc.?

O culturalismo americano, como é chamado, toma como premissa essencial a apreensão


da cultura em sua totalidade (CASTRO apud BOAS, 2005), mas foi muito criticado pelos antro‑
pólogos sociais britânicos (os funcionalistas e estruturais-funcionalistas). Uma das principais
contribuições desta escola é o fato de terem elaborado e difundido o conceito de “relativismo
cultural”, cujo significado corresponde à atitude de respeito às diferenças por meio da am‑
pla compreensão do “outro”. Também defendiam que era necessário conhecer as diversas
características de uma cultura por meio da análise das ações individuais, identificando suas
influências sobre o comportamento humano (PANOFF; PERRIN, 1973).
Sobre o método culturalista, o próprio Boas (2005) afirma que:
Antes de mais nada, todo o problema da história cultural se apresenta
para nós como um problema histórico. Para entender a história é preciso
conhecer, não apenas como as coisas são, mas como elas vieram a ser
assim (BOAS, 2005, p. 45).

A preocupação central dos culturalistas, como se pode observar na citação acima, é di‑
recionar suas análises para as mudanças e as dinâmicas próprias de cada sociedade, a fim de
que se possa esclarecer a ocorrência dos processos culturais que são específicos.
Em primeiro lugar, a história da civilização humana não se nos apre‑
senta inteiramente determinada por uma necessidade psicológica
que leva a uma evolução uniforme em todo o mundo. Vemos, ao
contrário, que cada grupo cultural tem sua história própria e única,
parcialmente dependente do desenvolvimento interno peculiar ao
grupo social e parcialmente de influências exteriores às quais ele
tenha estado submetido. Tanto ocorrem processos de gradual diferen‑
ciação quanto de nivelamento de diferenças entre centros culturais
vizinhos. Seria completamente impossível entender o que aconteceu a
qualquer povo particular com base num único esquema evolucionário
(BOAS, 2005, p. 47).

Boas (2005) foi um crítico contundente às correntes etnocêntricas que se baseavam na tese
da divisão da humanidade em grupos raciais, considerando que a ideia de “raças” fortalecia
atitudes sectárias e antipatias entre os povos. Para este pesquisador tais atitudes são decorrentes
de ideias socialmente construídas, não explicadas em nível biológico.
Não importa quão fraco o argumento em favor da pureza racial possa
ser, nós compreendemos seu apelo social em nossa sociedade. Embora
as razões biológicas aduzidas possam não ser relevantes, a estratifica‑
ção da sociedade em grupos sociais de caráter racial irá sempre levar
à discriminação de raça. Tal como em todos os outros agrupamentos

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114  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

humanos bem marcados, o indivíduo não é julgado como um indivíduo,


mas como membro de sua classe. Podemos ter uma razoável certeza
de que, onde quer que os membros de diferentes raças formem um
único grupo social com laços fortes, os preconceitos e antagonismos
raciais irão perder sua importância. Eles podem mesmo vir a desapa‑
recer inteiramente. Enquanto insistirmos numa estratificação segundo
camadas raciais, devemos pagar um preço alto na forma de luta inter‑
-racial (BOAS, 2005, p. 47).

Neste sentido parece muito justo atribuir a Boas


e a seus seguidores a introdução do conceito de re‑
Saiba mais lativização cultural no pensamento antropológico, e
a defesa de se considerar todos os diferentes grupos
Quero sugerir que procurem co- sociais como igualmente pertencentes à humanidade.
nhecer também um dos livros mais Boas (2005) chega a lançar uma importante questão,
que nos faz pensar em nossa própria forma de conce‑
importantes da obra de Franz Boas,
ber a diversidade humana, ainda definida a partir de
básico para os estudantes de An- critérios raciais, e essa construção social da desigual‑
tropologia Cultural. O título é An- dade étnica: “Será melhor para nós continuar como
tropologia cultural e está men- estamos, ou devemos tentar reconhecer as condições
que levam aos antagonismos fundamentais que nos
cionado nas referências.
atormentam?” (BOAS, 2005, p. 85).

Questões para reflexão


O que quer dizer “relativismo ou relativização cultural”? Por que este conceito
se tornou um conceito tão importante para a Antropologia?

Os principais representantes do Culturalismo são: Franz Boas (Os objetivos da etno-


logia — 1888; e Raça, língua e cultura — 1940); Margaret Mead (Sexo e temperamento
em três sociedades primitivas — 1935); Ruth Benedict (Padrões de cultura — 1934 e O
crisântemo e a espada — 1946).

2.10 Estruturalismo
É essa leitura que o Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss vai trabalhar. Segundo Strauss
não são todas as sociedades que utilizam a forma de tempo como a nossa (cronológico, his‑
tórico, linear), sendo que para muitas sociedades, o tempo e a sua passagem não podem ser
vistos como uma cadeia de acontecimentos. “Aqui a Antropologia se coloca como uma ciên‑
cia interpretativa, que busca apenas conhecer os significados que os seres humanos, tanto da
sociedade do ‘eu’ quanto do ‘outro’, dão às formas pelas quais escolheram viver suas vidas”
(ROCHA, 1994, p. 87, grifo do autor).
O Estruturalismo antropológico teve sua origem na França, em meados da década de 1940,
com Claude Lévi-Strauss, conhecido por seu um teórico revolucionário pela forma como buscou
compreender as culturas humanas (SILVA, 2013). Contrapondo-se às escolas anteriores, sobre‑
tudo o Funcionalismo, e colocando-se no limite entre a Antropologia Social e a Antropologia
Cultural (LEACH, 1982) seu pensamento se baseia na Psicologia, na Mitologia e na Linguística
(teoria de Saussure), concebendo a noção de que todas as sociedades possuem uma estrutura

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   115

comum, cuja lógica se fundamenta na maneira como o cérebro humano (a mente) processa
as informações e os códigos da linguagem.

Questões para reflexão


É possível imaginar, nos dias de hoje, alguma sociedade que não utilize a lingua‑
gem como forma de expressão? Impossível, não é mesmo?

Lévi-Strauss retoma a análise sincrônica, focalizando a atenção nos elementos culturais


que são persistentes e recorrentes em toda e qualquer sociedade, independentemente das
mudanças observadas ao longo da história. Lévi-Strauss (1998) também introduz conceitos
como os de “sociedades quentes” (que se preocupam com a análise de sua própria história) e
“sociedades frias” (que não se preocupam em analisar sua história), explicando tal distinção
da seguinte forma:
Ela não postula, entre as sociedades, uma diferença de natureza, não
as coloca em categorias separadas, mas se refere às atitudes subjetivas
que as sociedades adotam diante da história, às maneiras variáveis com
que elas a concebem. Algumas acalentam o sonho de permanecer tais
como imaginam ter sido criadas na origem dos tempos. É claro que elas
se enganam: essas sociedades não escapam mais da história do que
aquelas — como a nossa — a quem não repugna se saber históricas, en‑
contrando na ideia que têm da história o motor de seu desenvolvimento.
Nenhuma sociedade pode, portanto, ser dita absolutamente “fria” ou
“quente”. São noções teóricas, e as sociedades concretas deslocam-se
no correr do tempo, em um sentido ou em outro, sobre um eixo cujos
polos nenhuma delas jamais ocupará. Depois de ter salientado que
sociedades outrora frias se aquecem quando a história as traga e as
arrasta (como se observa nas duas Américas, onde os povos indígenas,
assumindo seu passado, descobrem que têm interesses comuns e se
agrupam em nações para defendê-los), eu me perguntei se, nesse fim de
século, nossas próprias sociedades não mostravam sinais perceptíveis
de esfriamento (LÉVI-STRAUSS, 1998, grifo do autor).

Lévi-Strauss (1996, p. 49) afirma que “[...] a recorrência, em regiões afastadas do mundo
e em sociedades profundamente diferentes [...], faz crer que, em ambos os casos, os fenôme‑
nos observáveis resultam do jogo de leis gerais, mas ocultas”. Assim, a estrutura que permite
analisar as diversas sociedades se situa no nível do inconsciente coletivo, e se traduz em mitos
que são recorrentes.

Questões para reflexão


Mitos são falsas-verdades, isto é, “verdades” em que as pessoas acreditam, mas
que a ciência não comprova, por exemplo: é perigoso para a saúde tomar banho
depois de fazer uma refeição. Isto é um mito, mas muita gente acredita, não é
mesmo? Que outros exemplos de mito vocês conhecem?

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Além dos mitos, Lévi-Strauss dedicou-se à análise da estrutura das linhagens familiares e
parentesco, o tabu do incesto, a religião, a reciprocidade (trocas) e a linguagem, procurando
estabelecer leis gerais capazes de explicar os sistemas sobre os quais se desenvolvem as es‑
truturas sociais.
Para este pensador a linguagem humana é a base de sustentação de uma cultura, e por
isso é carregada de signos, símbolos e significados. Estes, por sua vez, sempre seguem uma
lógica binária, compondo pares de oposição, do tipo: feio/bonito, alto/baixo, certo/errado etc.
Segundo Lévi-Strauss (1996, p. 63, grifo do autor), a análise estrutural permite identificar os
“‘[...] pares de oposições que são necessários para a elaboração do sistema’”, daí a importân‑
cia atribuída ao estudo da linguagem e dos mitos em qualquer sociedade. O trecho a seguir,
extraído de sua obra de referência Antropologia estrutural, sintetiza a tese do autor sobre a
importância da análise linguística para a compreensão da vida social:
Procedendo assim, o antropólogo vai do conhecido ao desconhecido
[...]. Pois estaria aberta a rota para a análise estrutural e comparada de
costumes, instituições e condutas sancionadas pelo grupo. Estaríamos
aptos a compreender certas analogias fundamentais entre manifestações
da vida em sociedade, aparentemente muito afastadas umas das outras,
como a linguagem, arte, direito, religião. Ao mesmo tempo, finalmente,
poderíamos esperar superar um dia a antinomia entre a cultura, que
é coisa coletiva, e os indivíduos que a encarnam, porque, nesta nova
perspectiva, a pretensa “consciência coletiva” se reduziria a uma
expressão, no nível do pensamento e condutas individuais, de certas
modalidades temporais de leis universais em que consiste a atividade
inconsciente do espírito (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 82, grifo do autor).

Claude Lévi-Strauss (1996) faz questão de afirmar que os povos antes chamados de “primi‑
tivos” são, na verdade, “povos sem escrita”, e suas formas de pensar a realidade são diferentes
das sociedades que utilizam a escrita e a ciência — os povos modernos, mas não são menos
desenvolvidas por conta disso, como afirmavam os antropólogos das escolas anteriores. Neste
sentido, Lévi-Strauss rompe com o paradigma evolucionista, e também com o funcionalismo,
atribuindo às sociedades ágrafas atributos que não as desqualificam se comparadas com as
demais. O autor defende que o pensamento “selvagem”, ou a mente “primitiva” revelam um
profundo interesse em explicar a realidade, isto é, esses povos “[...] são movidos por uma ne‑
cessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade
em que vivem” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 26), e para isso utilizam a razão, a intelectualidade,
mas de um modo diferente do pensamento científico.
Enquanto a ciência moderna se ocupa da investigação de recortes, de “pedaços” da realidade,
para melhor compreendê-la e conseguir desenvolver mecanismos de controle do homem sobre
a natureza, os povos ágrafos se valem de explicações totalizantes fundamentadas em mitos, os
quais não lhes possibilitam controlar os eventos naturais, embora os expliquem a seu modo.
Neste sentido pode-se perceber o caráter relativizador do estruturalismo de Lévi-Strauss,
na medida em que reconhece a diversidade das formas de pensar e de existir sem, contudo,
qualificá-las. O autor chega, inclusive, a duvidar que no futuro essa diversidade deixará de
existir, pois acredita que cada grupo se adapta às mudanças sem perder sua identidade cultural.

Questões para reflexão


Então a diversidade entre os povos e sociedades continuará existindo, mesmo
que o mundo esteja vivendo sob o império da lógica capitalista e da globalização
da economia?

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   117

Provavelmente, uma das muitas explicações que se podem extrair da


investigação antropológica é que a mente humana, apesar das dife‑
renças culturais, entre as diversas frações da Humanidade, é em toda
parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades. Creio que
esta afirmação é aceita por todos. Não julgo que as culturas tenham
tentado, sistemática ou metodicamente, diferenciar-se umas das outras.
A verdade é que durante centenas de milhares de anos a Humanidade
não era numerosa na Terra, e os pequenos grupos existentes viviam iso‑
lados, de modo que nada espanta que cada um tenha desenvolvido as
suas próprias características, tornando-se diferentes uns dos outros. [...]
Na realidade, as diferenças são extremamente fecundas. O progresso
só se verificou a partir das diferenças (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 30-31).

É claro que ele reconhece o pensamento científico como mais elaborado e eficaz no sen‑
tido de permitir o domínio do homem sobre a realidade, mas isto não o torna melhor ou mais
evoluído do que o pensamento “selvagem”. Este pensar “primitivo”, ou mítico, segundo Lévi‑
-Strauss (1978, p. 28) “[...] dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode
entender o universo”, pois para essas sociedades é isto o que realmente importa: entender o
mundo, ainda que não possam controlá-lo. Além disso, o autor defende que apesar de serem
tão diferentes entre si, as sociedades humanas podem conviver perfeitamente bem, ainda que se
julguem por vezes superiores e melhores que as demais: “Nada impede, com efeito, que
culturas diferentes coexistam e que prevaleçam entre elas relações relativamente tranquilas”
(LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 23).
Interessante como o autor destaca em seu livro Mito e significado que a mente humana,
independentemente da condição sociocultural, é extremamente competente na observação
e compreensão das coisas, e seletiva ao dirigir sua atenção para a realidade, o que explica o
fato de que muitos povos sem escrita (ágrafos) conseguem “enxergar” e explicar eventos da
natureza sem, contudo, utilizar instrumentos complexos e elaborados como fazem os cientistas.
Frequentemente os chamados nativos apenas observam e sentem o mundo à sua volta, reco‑
nhecendo suas propriedades e sua dinâmica, o que lhes possibilita conviver com os eventos da
natureza de uma maneira harmônica e produtiva, e para isso se utilizam dos mitos (a linguagem
metafórica e mitológica que, do ponto de vista científico, não é verdadeira) e do pensamento
mágico para tentar resolver os problemas lógicos que não conseguem abstrair de outra forma.
Portanto, em lugar de opor magia e ciência, seria melhor colocá-las
em paralelo, como dois modos de conhecimento desiguais quanto aos
resultados teóricos e práticos (pois, desse ponto de vista, é verdade
que a ciência se sai melhor que a magia, no sentido de que algumas
vezes ela também tem êxito), mas não devido à espécie de operações
mentais que ambas supõem e que diferem menos na natureza que na
função dos tipos de fenômeno aos quais são aplicadas (LÉVI-STRAUSS,
2008, p. 28, do autor).

Lévi-Strauss (2008) estabeleceu em seu Estruturalismo algumas bases essenciais, presen‑


tes em toda e qualquer sociedade: a linguagem, os aspectos inconscientes do pensamento e
os mitos, que formam uma rede de representações e significações. Em suas pesquisas — na
grande maioria com povos tribais — ele reconhece a existência dessa estrutura comum, de um
eixo central por meio do qual se desenvolvem todos os demais elementos que caracterizam
os modos de vida humanos, e este eixo universal se fundamenta na esfera do pensamento e
da linguagem, através da representação do mundo e das coisas por meio de símbolos e signi‑
ficados que são arbitrariamente atribuídos por cada sociedade.
Lévi-Strauss critica e sintetiza a definição de cultura mais utilizada:
“hábitos; atitudes; comportamentos; maneiras próprias de agir sentir
e pensar de um povo” e enfatiza a “estrutura sub-consciente de pen‑
samento”. Para o estruturalismo de Lévi-Strauss, a diversidade humana

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118  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

não é importante, e sim a similaridade humana de pensamento. Nesta


teoria, o conceito de cultura ganha um sentido residual. “Residual,
porém irredutível”, como coloca Carneiro da Cunha (1986), em que a
identidade de grupo é fundamental na construção da Pessoa Humana
(VERANI, 2008, p. 1, grifo do autor).

Sua abordagem é sincrônica e sistêmica, focada na observação do presente e do modus


operandi das atitudes humanas e seus respectivos termos, utilizando-se da linguística para fazer
a análise estrutural das culturas. Lévi-Strauss rejeita a pesquisa histórica como fonte exclusiva
de dados para a compreensão dos diversos grupos sociais, afirmando que “[...] o conheci‑
mento histórico, qualquer que seja seu valor (que não se pensa em contestar), não merece
ser oposto às outras formas de conhecimento como uma forma absolutamente privilegiada”
(LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 291, grifo do autor), e acres‑
centa que a história cronológica, linear, tão valorizada
Links pelos antropólogos das escolas anteriores, acaba por
ignorar “[...] uma natureza muito mais complexa do
Mais informações sobre a Antropo- que se imagina” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 287), uma
vez que privilegia fatos e ocorrências específicas em
logia no Brasil acesse: <www.abant. detrimento da infinidade de aspectos envolvidos no
org.br/>. comportamento social do homem.

Saiba mais
Não deixem de conhecer alguns dos mais importantes livros de Lévi-Strauss, todos citados nas
Referências: Antropologia estrutural, onde apresenta seu método; Mito e significado, onde
discute a importância dos mitos nas diversas sociedades; e O pensamento selvagem, que trata
da especificidade do conhecimento dos povos tribais. Belíssimas obras!

Segundo Goldman (1993), Lévi-Strauss se contrapôs à supervalorização da história por


parte de muitos antropólogos, que restringiram suas análises à historicidade de povos que nem
eles mesmos reconheciam. Chega a comparar diferentes sociedades em relação à importância
que atribuem ao passado, concluindo que algumas dão mais valor que outras à sua história
(que ele acaba conceituando como sociedades quentes, aquelas que reconhecem sua própria
história, e sociedades frias, que não se prendem ao seu passado).

Questões para reflexão


Nem todos os povos contam sua história a partir de registros escritos. Nas socie‑
dades ágrafas (sem escrita) a história é contada oralmente, de uma geração para
outra. Será que no “mundo ocidental” isso seria possível?

A abordagem levistraussiana defende a valorização do pensamento e da lógica existente


em cada cultura como um caminho mais seguro para se analisar e se compreender a sociabili‑
dade humana em seu sentido mais geral, uma vez que seu método permite analisar diferentes

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   119

sociedades identificando nelas elementos que lhes são comuns, isto é, os sistemas universais
que explicam a natureza estrutural de todas e quaisquer culturas. Em relação a isto, o próprio
Lévi-Strauss (1996) considera que as tradições, os costumes, as crenças e todos os demais
aspectos de uma cultura têm que ser pensados como um complexo sistema, o qual “[...] deve
ser considerado em seu conjunto, para se perceber sua estrutura” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.
63). Por exemplo, aplicando seu método na análise das relações de parentesco e dos vínculos
familiais em diversas sociedades tribais estudadas por outros antropólogos (Radcliffe-Brown,
Malinowski, Lowie, Kroeber, entre outros). Lévi-Strauss (1996, p. 64) acaba por concluir que:
Para que uma estrutura de parentesco exista, é necessário que se en‑
contrem presentes nela os três tipos de relações familiais sempre dados
na sociedade humana, isto é, uma relação de consanguinidade, uma
relação de aliança, uma relação de filiação.

Deixando evidente que, independentemente dos modelos de parentesco ou de família,


e da importância que isto assume em cada grupo humano, essas três condições básicas ne‑
cessariamente se apresentam. Outro exemplo de uma estrutura comum presente em todas as
sociedades e que envolve os sistemas de parentesco é o tabu do incesto, a proibição de rela‑
ções sexuais entre parentes consanguíneos de primeira linhagem, como pode ser observado
nos estudos deste antropólogo.
Finalmente, pode-se dizer que Lévi-Strauss foi um otimista, no sentido de acreditar que a
humanidade tende a preservar sua diversidade cultural, ainda que esta diversidade se fundamente
em estruturas universais e que exista o risco da imposição de algumas sociedades sobre outras.
Isto pode ser observado em sua resposta a um questionamento sobre o risco de algumas culturas
tribais desaparecem em função do contato com as sociedades maiores, quando afirma que nenhuma
cultura desaparecerá totalmente, pois elas se misturam com outras e assim vão formando uma
nova cultura, que carrega em si os elementos particulares que se misturaram por meio do contato.
Pouco antes de sua morte, aos noventa anos, fez questão de deixar claro que não se pode
afirmar com certeza o quanto de uma cultura pode ser preservado ou transformado, a não ser
que o antropólogo se proponha a conhecê-la profundamente, concluindo que a diversidade
humana sempre existirá (MOISÉS, 1999).
As obras mais conhecidas de Lévi-Strauss são: As estruturas elementares do parentesco —
1949; Tristes trópicos — 1955; Pensamento selvagem — 1962; Antropologia estrutural — 1958
e 1973; O cru e o cozido — 1964; O homem nu — 1971.

2.10.1  Antropologia interpretativa ou hermenêutica


Escola representada por Clifford Geertz, cujas ideias se tornaram tão importantes para o
pensamento antropológico quanto as de Malinowski e Lévi-Strauss. O autor é considerado como
um dos fundadores da Antropologia contemporânea (SILVA, 2013). Geertz realizou uma série de
pesquisas de campo colocando em prática um método desenvolvido por ele próprio — o método
hermenêutico em Antropologia. Sua compreensão de cultura é assim definida: “Acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise” (GEERTZ, 1973, p. 15), sendo
que para fazer essa análise o homem não precisa necessariamente lançar mão de métodos
experimentais, ou de procurar as leis gerais capazes de explicar a cultura, mas sim realizar
“uma ciência interpretativa”, capaz de encontrar os significados dos elementos culturais.
Para a antropologia atual, cultura é um sistema simbólico (Geertz,
1973), característica fundamental e comum da humanidade de atribuir,
de forma sistemática; racional e estruturada, significados e sentidos “às
coisas do mundo”. Observar; separar; pensar e classificar; atribuindo
uma ordem totalizadora ao mundo, é fundamental para se compreender
o conceito de cultura atualmente definido como “sistema simbólico”,

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e sua diversidade nas sociedades humanas, mesmo neste período atual


de modernidade tardia (VERANI, 2008, grifo do autor).

A cultura, para o autor, é pública e é produzida por seus próprios membros, e para ser
interpretada deve ser analisada em todas as suas dimensões — somente assim o pesquisador
poderá fazer uma “leitura” e compreender qual a sua importância para os próprios indivíduos
que dela fazem parte.
Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretativa sugere
que a diferença [...] que surge nas ciências experimentais ou obser‑
vacionais entre “descrição” e “explicação” aqui aparece como sendo
[...] entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especificação” (“diag‑
nose”) — entre anotar o significado que as ações sociais particulares
têm para os atores [...] e afirmar, tão explicitamente quanto nos for
possível, o que o conhecimento assim atingido demonstra sobre a
sociedade na qual é encontrado e, além disso, sobre a vida social
como tal. Nossa dupla tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que
informam os atos dos nossos sujeitos, o “dito” no discurso social, e
construir um sistema de análise [...] no qual possa ser expresso o que
o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo — isto é, sobre o papel
da cultura na vida humana (GEERTZ, 1973, p. 37-38, grifo do autor).

Retomando a perspectiva diacrônica, e defendendo a etnografia, esta escola prioriza a


“leitura” das sociedades em todas as suas manifestações, que são carregadas de significados,
através de “descrições densas” acerca da compreensão dos habitantes sobre sua própria cultura.
Ao dialogar com outros estudiosos do comportamento sociocultural humano. Geertz (1973,
p. 47) afirma que:
O que quer que seja que a antropologia moderna afirme [...] ela tem a
firme convicção de que não existem de fato homens não modificados
pelos costumes de lugares particulares, nunca existiram e, o que é mais
importante, não o poderiam pela própria natureza do caso.

O antropólogo é, portanto, um intérprete do “outro”, um pesquisador que procura explicar


a cultura que não lhe é a mais familiar (por isso do “outro”) sob um prisma científico. Neste
sentido, ao falar sobre a tarefa da interpretação antropológica, Geertz afirma que:
Nada mais necessário para compreender o que é a interpretação an‑
tropológica, e em que grau ela é uma interpretação, do que a compre‑
ensão exata do que ela se propõe dizer — ou não se propõe — de que
nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros povos devem
ser orientadas pelos atos. [...] Elas devem ser encaradas em termos de
interpretações às quais pessoas de uma determinada denominação
particular submetem sua experiência, uma vez que isso é o que elas
professam como descrições. São antropológicas porque, de fato, são
os antropólogos que as professam. [...] Resumindo, os textos antropo‑
lógicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e
terceira mão. Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em
primeira mão: é a sua cultura (GEERTZ, 1973, p. 24-25, grifo do autor).

Assim, Geertz (1973, p. 321) conclui: “[...] as sociedades, como as vidas, contêm suas
próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas”. Desta forma, compete ao
antropólogo estudar profundamente as diversas culturas e suas respectivas redes de símbolos
e significados, os quais fazem todo o sentido para as pessoas que participam dessas culturas
(os intérpretes de primeira mão, como afirma Geertz), mas que devem ser analisados e com‑
preendidos também através da perspectiva antropológica (científica, portanto), por meio do
trabalho do pesquisador (o intérprete de segunda e de terceira mão).

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   121

Visto sob esse ângulo, o objetivo da antropologia é o alargamento do


universo do discurso humano. De fato, esse não é seu único objetivo
[...] e a antropologia não é a única disciplina a persegui-los. No en‑
tanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se
adapta especialmente bem. Como sistemas entrelaçados de signos
interpretáveis (o que eu chamaria de símbolos, ignorando as utiliza‑
ções provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser
atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos,
as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual
eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com
densidade (GEERTZ, 1973, p. 24, do autor).

Questões para reflexão


Então é preciso valorizar o saber popular, isto é, o conhecimento que cada so‑
ciedade tem acerca de si mesma e sobre o mundo à sua volta?

Com sua concepção hermenêutica, ou interpretativa, este autor rompe com qualquer
tentativa de explicar o universo cultural do homem por meio de leis gerais, como muitos
antropólogos filiados a outras escolas teórico-metodológicas fizeram (ele menciona a teoria
estruturalista de Claude Lévi-Strauss como exemplo). Geertz reconhece que cada sociedade
(e, portanto, cada sistema cultural) se desenvolve ao longo da história segundo seus próprios
parâmetros: “O que é importante nos achados do antropólogo é sua especificidade complexa,
sua circunstancialidade [...] que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre
eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente com eles” (GEERTZ, 1973,
p. 33, grifo nosso) — neste caso, “eles” são os indivíduos que falam sobre sua própria socie‑
dade e sobre sua própria cultura, isto é, os “nativos”. Sendo assim, a tarefa do antropólogo
é, ao mesmo tempo, desvendar as concepções que os próprios “informantes” têm acerca de
sua realidade sociocultural, e “construir um sistema de análise” (GEERTZ, 1973, p. 38) que
estabeleça uma correlação entre aquilo que é dito pelos informantes locais e aquilo que é
observado e interpretado pelo próprio pesquisador.
Resumindo, precisamos procurar relações sistemáticas entre fenô‑
menos diversos, não identidades substantivas entre fenômenos simi‑
lares. E para consegui-lo com bom resultado precisamos substituir a
concepção “estratigráfica” das relações entre os vários aspectos da
existência humana por uma sintética, isto é, na qual os fatores bioló‑
gicos, psicológicos, sociológicos e culturais possam ser tratados como
variáveis dentro dos sistemas unitários de análise. [...] É uma questão
de integrar diferentes tipos de teorias. [...] Na tentativa de lançar tal
integração do lado antropológico e alcançar, assim, uma imagem mais
extada do homem, quero propor duas ideias. A primeira delas é que a
cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de
comportamento — costumes, usos, tradições, feixes e hábitos —, como
tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos
de controle — planos, receitas, regras, instruções [...] para governar
o comportamento. A segunda ideia é que o homem é precisamente
o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de
controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para
ordenar seu comportamento (GEERTZ, 1973, p. 56, grifo do autor).

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122  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Neste trecho o autor explicita sua compreensão


de que a cultura, com sua complexa rede de símbolos
e significados, existem em todas as sociedades com a
Saiba mais finalidade de governar e controlar os comportamentos
individuais, e assim assegurar o convívio harmonioso
Não deixem de ter acesso também entre os homens. Talvez seja esta a única conclusão
ao clássico de Clifford Geertz, o generalizante a respeito do homem na obra de Clifford
livro A interpretação das cultu- Geertz, a de que a cultura impõe a todos os indivíduos
determinados parâmetros por meio dos quais cada um
ras (1973). pode se auto-orientar ao longo de sua existência. As
obras mais conhecidas de Geertz são: A interpretação
das culturas — 1973 e Saber local — 1983.

Questões para reflexão


Vejam os comentários do Professor Vagner Gonçalves da Silva sobre a ciência
antropológica acessando o link
<www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html>.

Links
É importante aprofundarmos nossa leitura sobre as teorias antropológicas, sendo que existem
muitos sites que discutem essas questões: <www.admead.ufla.br/moodle/file.php/1/moddata/
glossary/1/3/002>.

2.11 D
 iversidade cultural: etnocentrismo e
relativização
A partir da leitura da Declaração sobre a Diversidade Cultural da UNESCO e de nossa
discussão, de que o indivíduo vive em sociedade e que muitas vezes nos deparamos com
várias informações vindas de todos os cantos do mundo, e essas informações nos ajudam a
formar uma opinião sobre os diversos assuntos que constituem a realidade social, torna-se
imprescindível a compreensão da sociedade em sua totalidade, ou seja, formar opiniões sobre
os países, os povos, a maneira de viver de outros grupos sociais etc.
Não é apenas as crenças culturais que diferem através das culturas. As diversidades das
práticas e do comportamento humano também fazem parte desse “jogo” cultural. Existem
várias formas de comportamento, que variam amplamente de cultura para cultura e, com
frequência, contrastam drasticamente com o que as pessoas que não fazem parte desse grupo
consideram “normal”.
Giddens (2001) dá um exemplo bem significativo para ilustrar essa questão: o casamento.
Em nossa sociedade o casamento é um momento em que duas pessoas adultas resolvem se

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   123

unir por amor, paixão e construir uma vida a dois “até que a morte os separe!” Se observarmos
em nossa sociedade ocidental moderna, consideramos essa atitude vinculada a vida adulta,
com responsabilidades... Mas em algumas culturas, casamentos são arranjados para crianças
de 12, 13 anos e deve ser considerado normal. Se pensarmos na questão da alimentação, da
vestimenta, da música, da dança, das formas de trabalho... Iremos perceber que existem inú‑
meras representações que são inerentes a determinado grupo cultural.
Mas, nesse contexto, é muito comum “julgarmos”
o comportamento de outros grupos diferentes do nosso,
a partir da nossa realidade, dos nossos valores e há‑
bitos. Lembram da leitura do Evolucionismo como Para saber mais
padrão explicativo da cultura? Pois bem, dessa leitura
desenvolveu o que chamamos de Etnocentrismo. “Et‑ Etimologicamente a palavra Etno-
nocentrismo é uma visão do mundo de onde o nosso centrismo que dizer: etno (etnia,
próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos grupo, sendo unidos por um fator
os “outros” são pensados e sentidos através dos nossos
comum, tal como a nacionalidade,
valores, nossos modelos, nossas definições do que é a
existência” (ROCHA, 1994, p. 7). religião, língua, bem como demais
Para entendermos melhor a questão do etnocen‑ afinidades históricas e culturais, e
trismo precisamos entender a constituição do euro‑ centrismo (centro).
centrismo. No final do século XIX e início do século
XX, em plena era da expansão colonialista dos países
industrializados, a conquista de territórios teve como principal objetivo a busca de matérias‑
-primas e a ampliação de mercados para as mercadorias produzidas e os excedentes de capital.
Segundo Bruit (1994, p. 5):
Entre 1870 e 1914 a Europa e os Estados Unidos arquitetaram a
conquista política, econômica e cultural da África, Ásia, Oceania e
América Latina. Repartiram o mundo entre si e organizaram poderosos
impérios coloniais que só tinham em comum o desenvolvimento da
acumulação capitalista.

Ao longo da segunda metade do século XIX, as principais potências capitalistas consolida‑


ram seu domínio com um amplo movimento de conquista militar e econômica, promovendo
uma divisão geopolítica dos continentes africano e asiático. Esses países desenvolveram uma
economia internacional baseada na concorrência de mercados, na ampliação do consumo e
no aumento de investimento em capitais, fortalecidos por ideais nacionalistas. Paralelamente
intensificou-se a produção armamentista, considerada estratégica para garantir o processo de
colonização e dominação.

Questões para reflexão


Interessante: a dominação capitalista depende do investimento em armas, o que
nos leva a crer que ela somente é possível mediante o uso da força, certo? Então,
quem detém maior poderio bélico (de armas) tem também maior potencial do‑
minador? Será que é por isso que os Estados Unidos investem tanto na indústria
armamentista?

Outro aspecto importante desse contexto é que as indústrias conquistaram rapidamente


os mercados de muitos países latino-americanos, causando, nestes últimos, uma dependência

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124  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

econômica típica do imperialismo. A industrialização permitiu um grande enriquecimento dos


países europeus e, consequentemente, uma melhora das condições de vida da população, que
passou a incorporar os padrões de consumo burguês-capitalista (HOBSBAWM, 2001).
Contudo, a ocupação de diversas áreas da África e da Ásia levou a uma série de revoltas
que simbolizaram a indignação e resistência dos povos colonizados, e ao surgimento, nos
territórios coloniais, de uma elite intelectual “nativa” ocidentalizada, que acabaria tendo um
papel fundamental nos processos de independência ocorridos nesse período, como na Argentina
em 1816 e no Brasil em 1822, e ao longo do século XX, na África e Ásia.
Nesse contexto político-econômico, estabeleceu-se um posicionamento etnocêntrico por
parte das nações europeias, na medida em que intensificaram a imposição de sua cultura. A
Europa, considerada “berço” da civilização ocidental, difundiu os valores da cultura burguesa
capitalista sobre os demais territórios do globo, fortalecendo seus mecanismos de dominação.
No Brasil, por exemplo, a chegada da família real em 1808 reforça ainda mais a introdução
dos costumes europeus nas maiores cidades do país, começando pelo Rio de Janeiro, trans‑
formada em capital da província.

Questões para reflexão


Etnocentrismo é um conceito que representa a imposição de uma determinada
etnia (ou “raça”) sobre as demais. Lembram dos nazistas, no período da Segunda
Guerra Mundial, com sua tentativa de promover a “raça” ariana perante o mundo?

Links
O nazismo representou um exemplo do que estamos tratando, isto é, do etnocentrismo. Acesse o site:
<www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/nazismo/>.

Do ponto de vista antropológico, o maior mal causado pelas práticas colonialistas foi o
fato de difundirem as ideias de superioridade racial e cultural das nações europeias, sobretudo
porque isso provocou uma série de consequências sobre a cultura e os costumes dos povos
dominados. Segundo Quijano (2005), tais práticas inauguraram uma forma de poder funda‑
mentada na ideia de raça e na divisão da humanidade a partir das características biológicas,
linguísticas e culturais de cada povo, estabelecendo de modo arbitrário a superioridade dos
europeus e do estilo de vida capitalista.
A difusão de uma concepção racial permitiu, desta forma, explicar e justificar o processo
de dominação e de imposição de costumes burgueses como meio de contribuir com o problema
do “atraso” civilizatório em que os povos colonizados pareciam se encontrar. Para o autor, a
ideia de diferenças raciais “[...] foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento
constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia” (QUIJANO, 2005,
p. 227-278), possibilitando, portanto, classificar as sociedades nativas das Américas, primeiramente,
e depois as de outras regiões colonizadas, estabelecendo parâmetros distintivos e discriminatórios
entre os diversos grupos humanos existentes.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   125

A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhe‑


cida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às
diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o
que importa é que desde muito cedo foi construída como referência
a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A for‑
mação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América
identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e
redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde
europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou
país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas
identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações
sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais
identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais cor‑
respondentes, como constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão
de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade
racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social
básica da população (QUIJANO, 2005, p. 227-278, grifo do autor).

A classificação dos povos em categorias raciais é compreendida por Quijano (2005) como
resultado de uma construção social (arbitrária, portanto) por parte dos colonizadores, que,
durante os primeiros séculos de práticas colonialistas, se autodefiniram como “brancos” em
oposição aos grupos nativos, cujos tipos físicos tinham características distintas e as peles outras
tonalidades. O chamado “homem branco” se colocou em posição de superioridade na “escala
evolutiva”, impondo-se como uma raça dominante, mais forte e civilizada, tendo como base as
explicações científicas (darwinismo social). Desta forma, “[...] novas identidades históricas e
sociais foram produzidas” (QUIJANO, 2005, p. 227-278), facilitando a exploração do trabalho
humano escravo em benefício do capitalismo colonial.

Questões para reflexão


Olhem que coisa incrível: a partir da colonização europeia e da expansão da
dominação capitalista o mundo passou a conhecer uma nova lógica nas relações
interétnicas: a supremacia da chamada “raça branca” e a desvalorização das
demais. E hoje, será que podemos afirmar com toda a certeza que a humanidade
em geral já superou essa concepção etnocêntrica?

Quijano (2005) observa que a distribuição dos postos de trabalho, ao longo da colonização,
esteve diretamente vinculada à origem racial, de tal forma que aos brancos eram reservados os
postos mais nobres, como a administração das colônias e outros postos de poder, e o trabalho
livre assalariado; por outro lado, aos “negros” e aos “índios”, considerados inferiores, foram
destinados os trabalhados braçais e escravos, necessários à exploração dos recursos naturais
e à produção colonial.
Essas formas de organização e controle do trabalho foram elaboradas em torno da lógica
de acumulação capitalista e do mercado mundial, representando, do ponto de vista histórico,
um novo padrão de organização e controle do trabalho com vistas a fortalecer o poder dos
países colonizadores. Esse padrão de dominação foi, portanto, ao mesmo tempo político, eco‑
nômico e cultural, fundamentado na equivocada ideia de superioridade e inferioridade racial.
A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um
único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma
configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente

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126  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

à articulação de todas as formas de controle do trabalho em torno do


capital, para estabelecer o capitalismo mundial. Com efeito, todas as
experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram tam‑
bém articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia
europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão
de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o
controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e
em especial do conhecimento, da produção do conhecimento (QUI‑
JANO, 2005, p. 227-278).

Aprofundando o conhecimento
Apresentamos a você, caro leitor, o documento da Organização das Nações Unidas
(UNESCO, 2002), no qual os povos são conclamados a reafirmarem o compromisso com
a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na
Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente
reconhecidos.

Declaração universal sobre a diversidade


cultural
UNESCO — 2002
A Conferência Geral,
Reafirmando seu compromisso com a plena realização dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumen-
tos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais de 1966 relativos respectiva-
mente, aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos, sociais e culturais,
Recordando que o Preâmbulo da Constituição da UNESCO afirma “(...) que a ampla difusão
da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis para
a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir com
um espírito de responsabilidade e de ajuda mútua”,
Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros objetivos, o de
recomendar “os acordos internacionais que se façam necessários para facilitar a livre circulação das
ideias por meio da palavra e da imagem”,
Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais
que figuram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO[1],
Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espi-
rituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que
abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de
valores, as tradições e as crenças[2],
Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a iden-
tidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber,

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   127

Afirmando que o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação,


em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e
da segurança internacionais,
Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade cultural, na
consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais,
Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tec-
nologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade
cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações,
Consciente do mandato específico confiado à UNESCO, no seio do sistema das Nações Unidas,
de assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas,
Proclama os seguintes princípios e adota a presente Declaração:

IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO


Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade
A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta
na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que
compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cul-
tural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.
Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e conso-
lidada em benefício das gerações presentes e futuras.
Artigo 2 – Da diversidade cultural ao pluralismo cultural
Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma inte-
ração harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas
e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a parti-
cipação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz.
Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade
cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios
culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública.
Artigo 3 – A diversidade cultural, fator de desenvolvimento
A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das
fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas
também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória.

DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS


Artigo 4 – Os direitos humanos, garantias da diversidade cultural
A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade
humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais,
em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém
pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito interna-
cional, nem para limitar seu alcance.
Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural
Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociá-
veis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização
dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos
e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa
deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular,
na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite
plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha

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128  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos hu-
manos e às liberdades fundamentais.
Artigo 6 – Rumo a uma diversidade cultural accessível a todos
Enquanto se garanta a livre circulação das ideias mediante a palavra e a imagem, deve-se
cuidar para que todas as culturas possam se expressar e se fazer conhecidas. A liberdade de expres-
são, o pluralismo dos meios de comunicação, o multilinguismo, a igualdade de acesso às expressões
artísticas, ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive em formato digital — e a possibilidade,
para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão, são garantias da
diversidade cultural.

DIVERSIDADE CULTURAL E CRIATIVIDADE


Artigo 7 – O patrimônio cultural, fonte da criatividade
Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em
contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preser-
vado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações
humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo
entre as culturas.
Artigo 8 – Os bens e serviços culturais, mercadorias distintas das demais
Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a
criação e a inovação, deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao
justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter específico dos bens
e serviços culturais que, na medida em que são portadores de identidade, de valores e sentido, não
devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais.
Artigo 9 – As políticas culturais, catalisadoras da criatividade
As políticas culturais, enquanto assegurem a livre circulação das ideias e das obras, devem criar
condições propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais diversificados, por meio
de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolver-se nos planos local e mundial.
Cada Estado deve, respeitando suas obrigações internacionais, definir sua política cultural e aplicá-
-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na forma de apoios concretos
ou de marcos reguladores apropriados.

DIVERSIDADE CULTURAL E SOLIDARIEDADE


INTERNACIONAL
Artigo 10 – Reforçar as capacidades de criação e de difusão em escala mundial
Ante os desequilíbrios atualmente produzidos no fluxo e no intercâmbio de bens culturais em
escala mundial, é necessário reforçar a cooperação e a solidariedade internacionais destinadas a
permitir que todos os países, em particular os países em desenvolvimento e os países em transição,
estabeleçam indústrias culturais viáveis e competitivas nos planos nacional e internacional.
Artigo 11 – Estabelecer parcerias entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil. As
forças do mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultu-
ral, condição de um desenvolvimento humano sustentável. Desse ponto de vista, convém fortalecer
a função primordial das políticas públicas, em parceria com o setor privado e a sociedade civil.
Artigo 12 – A função da UNESCO
A UNESCO, por virtude de seu mandato e de suas funções, tem a responsabilidade de:
a) promover a incorporação dos princípios enunciados na presente Declaração nas estratégias
de desenvolvimento elaboradas no seio das diversas entidades intergovernamentais;
b) servir de instância de referência e de articulação entre os Estados, os organismos internacio-
nais governamentais e não governamentais, a sociedade civil e o setor privado para a elaboração
conjunta de conceitos, objetivos e políticas em favor da diversidade cultural;

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   129

c) dar seguimento a suas atividades normativas, de sensibilização e de desenvolvimento


de capacidades nos âmbitos relacionados com a presente Declaração dentro de suas esferas
de competência;
d) facilitar a aplicação do Plano de Ação, cujas linhas gerais se encontram apensas à
presente Declaração.

LINHAS GERAIS DE UM PLANO DE AÇÃO PARA A


APLICAÇÃO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA UNESCO
SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL
Os Estados Membros se comprometem a tomar as medidas apropriadas para difundir ampla-
mente a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural e fomentar sua aplicação
efetiva, cooperando, em particular, com vistas à realização dos seguintes objetivos:
1. Aprofundar o debate internacional sobre os problemas relativos à diversidade cultural, es-
pecialmente os que se referem a seus vínculos com o desenvolvimento e a sua influência na formu-
lação de políticas, em escala tanto nacional como internacional; Aprofundar, em particular, a
reflexão sobre a conveniência de elaborar um instrumento jurídico internacional sobre a diversidade
cultural.
2. Avançar na definição dos princípios, normas e práticas nos planos nacional e internacional,
assim como dos meios de sensibilização e das formas de cooperação mais propícios à salvaguarda
e à promoção da diversidade cultural.
3. Favorecer o intercâmbio de conhecimentos e de práticas recomendáveis em matéria de
pluralismo cultural, com vistas a facilitar, em sociedades diversificadas, a inclusão e a participação
de pessoas e grupos advindos de horizontes culturais variados.
4. Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais, conside-
rados como parte integrante dos direitos humanos.
5. Salvaguardar o patrimônio linguístico da humanidade e apoiar a expressão, a criação e a
difusão no maior número possível de línguas.
6. Fomentar a diversidade linguística — respeitando a língua materna — em todos os níveis da
educação, onde quer que seja possível, e estimular a aprendizagem do plurilinguismo desde a mais
jovem idade.
7. Promover, por meio da educação, uma tomada de consciência do valor positivo da diversidade
cultural e aperfeiçoar, com esse fim, tanto a formulação dos programas escolares como a formação
dos docentes.
8. Incorporar ao processo educativo, tanto o quanto necessário, métodos pedagógicos tradi-
cionais, com o fim de preservar e otimizar os métodos culturalmente adequados para a comunica-
ção e a transmissão do saber.
9. Fomentar a “alfabetização digital” e aumentar o domínio das novas tecnologias da infor-
mação e da comunicação, que devem ser consideradas, ao mesmo tempo, disciplinas de ensino e
instrumentos pedagógicos capazes de fortalecer a eficácia dos serviços educativos.
10. Promover a diversidade linguística no ciberespaço e fomentar o acesso gratuito e universal,por
meio das redes mundiais, a todas as informações pertencentes ao domínio público.
11. Lutar contra o hiato digital — em estreita cooperação com os organismos competentes do
sistema das Nações Unidas — favorecendo o acesso dos países em desenvolvimento às novas tec-
nologias, ajudando-os a dominar as tecnologias da informação e facilitando a circulação eletrônica
dos produtos culturais endógenos e o acesso de tais países aos recursos digitais de ordem educativa,
cultural e científica, disponíveis em escala mundial.
12. Estimular a produção, a salvaguarda e a difusão de conteúdos diversificados nos meios de
comunicação e nas redes mundiais de informação e, para tanto, promover o papel dos serviços
públicos de radiodifusão e de televisão na elaboração de produções audiovisuais de qualidade,

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130  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

favorecendo, particularmente, o estabelecimento de mecanismos de cooperação que facilitem a


difusão das mesmas.
13. Elaborar políticas e estratégias de preservação e valorização do patrimônio cultural e natu-
ral, em particular do patrimônio oral e imaterial e combater o tráfico ilícito de bens e serviços cul-
turais.
14. Respeitar e proteger os sistemas de conhecimento tradicionais, especialmente os das po-
pulações autóctones; reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais para a proteção
ambiental e a gestão dos recursos naturais e favorecer as sinergias entre a ciência moderna e os
conhecimentos locais.
15. Apoiar a mobilidade de criadores, artistas, pesquisadores, cientistas e intelectuais e o de-
senvolvimento de programas e associações internacionais de pesquisa, procurando, ao mesmo
tempo, preservar e aumentar a capacidade criativa dos países em desenvolvimento e em transição.
16. Garantir a proteção dos direitos de autor e dos direitos conexos, de modo a fomentar o
desenvolvimento da criatividade contemporânea e uma remuneração justa do trabalho criativo,
defendendo, ao mesmo tempo, o direito público de acesso à cultura, conforme o Artigo 27 da
Declaração Universal de Direitos Humanos.
17. Ajudar a criação ou a consolidação de indústrias culturais nos países em desenvolvimento
e nos países em transição e, com este propósito, cooperar para desenvolvimento das infraestruturas
e das capacidades necessárias, apoiar a criação de mercados locais viáveis e facilitar o acesso dos
bens culturais desses países ao mercado mundial e às redes de distribuição internacionais.
18. Elaborar políticas culturais que promovam os princípios inscritos na presente Declaração,
inclusive mediante mecanismos de apoio à execução e/ou de marcos reguladores apropriados,
respeitando as obrigações internacionais de cada Estado.
19. Envolver os diferentes setores da sociedade civil na definição das políticas públicas de sal-
vaguarda e promoção da diversidade cultural.
20. Reconhecer e fomentar a contribuição que o setor privado pode aportar à valorização da
diversidade cultural e facilitar, com esse propósito, a criação de espaços de diálogo entre o setor
público e o privado.
Os Estados Membros recomendam ao Diretor Geral que, ao executar os programas da UNESCO,
leve em consideração os objetivos enunciados no presente Plano de Ação e que o comunique aos
organismos do sistema das Nações Unidas e demais organizações intergovernamentais e não go-
vernamentais interessadas, de modo a reforçar a sinergia das medidas que sejam adotadas em favor
da diversidade cultural.

Notas
[1] Entre os quais figuram, em particular, o acordo e os Preconceitos Raciais, de 1978, a Recomen-
de Florença de 1950 e seu Protocolo de Nairobi dação relativa à condição do Artista, de 1980 e
de 1976, a Convenção Universal sobre Direitos a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura
de Autor, de 1952, a Declaração dos Princípios Tradicional e Popular, de 1989.
de Cooperação Cultural Internacional de 1966, a [2] Definição conforme as conclusões da Confe-
Convenção sobre as Medidas que Devem Adotar- rência Mundial sobre as Políticas Culturais
-se para Proibir e Impedir a Importação, a Expor- (MONDIACULT, México, 1982), da Comissão
tação e a Transferência de Propriedade Ilícita de Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Nossa
Bens Culturais, de 1970, a Convenção para a Pro- Diversidade Criadora, 1995) e da Conferência
teção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural Intergovernamental sobre Políticas Culturais para
de 1972, a Declaração da UNESCO sobre a Raça o Desenvolvimento (Estocolmo, 1998).

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   131

Como vimos, esse documento da UNESCO define parâmetros gerais para nortear as leis
dos países que compõem a Organização das Nações Unidas em relação ao compromisso de
respeito às diversidades humanas, em respeito ao que já estava contemplado anteriormente
na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Para concluir o estudo da unidade


Ao tratarmos da alteridade e do relativismo cultural na contemporaneidade,
percebemos que nem sempre esses conceitos tão importantes para a Antropologia
e as demais ciências sociais nem sempre se traduzem em práticas cotidianas.
A proposta que fazemos em relação isso se dirige em dois sentidos: o da re‑
flexão teórica e da construção de novas formas de interação sociocultural. Ao
analisarmos a história das relações inter e intrapovos desde a consolidação do
capitalismo moderno até o mundo globalizado dos dias atuais, observamos um
grave problema, ou melhor, um grande desafio: a dificuldade que as sociedades
em geral têm de aceitar as diversidades humanas, bem como de lidar com as
diferenças, seja em termos étnicos, sociais ou culturais.
Destacamos no texto que toda análise que tenha a pretensão de contribuir
com a melhoria das relações sociais e dos padrões de aceitação, diálogo e
respeito entre os homens deve levar em conta os parâmetros da alteridade e da
compreensão relativista, os quais se colocam duramente contrários a todas as
formas de etnocentrismo, discriminação, preconceito, violência e desigualdades.

Resumo
Nesta terceira unidade do livro você pode conhecer os conceitos de alte‑
ridade e de relativismo cultural, e teve a oportunidade de compreender por
que a Antropologia adota positivamente o uso dos mesmos. Com o texto foi
possível refletir a respeito de como vêm se dando as relações sociais entre os
mais diferentes povos, sociedades e grupos, e os desdobramentos das práticas
etnocêntricas com as quais ainda convivemos nos dias de hoje. Nossa ênfase foi
ampliar o entendimento de como a noção de alteridade e de relativismo cultural
pode auxiliar no estudo das diversidades humanas em nossos dias, e também
em nossas práticas diárias e profissionais.

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132  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Atividades de aprendizagem
1. Explique as principais propriedades da cultura (a cultura é simbólica, a cultura não
é inata, a cultura pressupõe uma linguagem, a cultura possui um caráter social,
a cultura é um instrumento de coesão social, a cultura é dinâmica).
2. Por que podemos falar que a Antropologia é uma ciência que se transformou com
o desenvolvimento da sociedade?
3. A corrente evolucionista de explicação sobre a diversidade cultural deixou algumas
sequelas negativas em nossa sociedade? Explique e exemplifique.
4. Discuta sobre a questão da diacronia e da sincronia na perspectiva da Antropo‑
logia.
5. Explique as definições de etnocentrismo e relativização, e discuta como esses
dois conceitos nos ajudam a compreender a diferença entre os indivíduos em
sociedade.

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Unidade 4
Cultura e
ideologia
Okçana Battini
Giane Albiazzetti

As condições gerais de vida das pessoas são ordenadas


hegemonicamente enquanto forma social e destino coletivo
pelas disposições particulares dos poderes estabelecidos.
Marshall Sahlins (Ilhas de História)

Objetivos de aprendizagem: Nesta Unidade você será levado a com-


preender o processo de surgimento do modo de produção capitalista
e seu rebatimento na formação da cultura e da sociedade. Nesse
sentido, descobrirá que existe uma relação direta entre a forma como
a cultura é produzida e sua relação com a ideologia capitalista, no
sentido da configuração dos sujeitos e de suas atividades cotidianas.

Seção 1: Ideologia e cultura: uma relação


indissociável e espaço de contradição
Nesta seção discutiremos como a ideologia pode ser
vista como um processo inerente ao modo de pro-
dução capitalista, sendo necessário compreender seu
processo de contradição.

Seção 2: O surgimento do modo de produção


capitalista e a formação da nossa sociedade
Nesta seção levantaremos as principais características
do modo de produção capitalista e sua relação com
a formação cultural da sociedade e do ser humano.

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134  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Introdução ao estudo
Pensar nas relações culturais existentes em nossa sociedade muitas vezes nos deixam
perplexos, visto que nos deparamos com um emaranhado de fenômenos que nos colocam em
xeque: Como é possível existir uma enormidade de padrões culturais em uma mesma sociedade?
Como sujeitos de grupos distintos podem viver em sociedade, de forma coletiva? E se pensar‑
mos em uma sala de aula: quantos alunos, quantas histórias de vida, quantas experiências...
Nesse momento realmente a única certeza que existe é que somos diferentes culturalmente!
E saber dessa diferença muitas vezes assusta ou nos faz procurar saber mais sobre ela. É, para
traçar esse caminho, convido vocês a seguirem comigo pela fascinante estrada, produzida pelo
homem, que ao transformar a natureza a seu favor criou símbolos e signos que nos auxiliam
a viver hoje em dia.

  Seção 1 Ideologia e cultura: uma relação


indissociável e espaço de
contradição
O termo cultura se destaca no campo das Ciências Humanas como sendo um dos mais
plurais, assim como o termo ideologia. Seus significados assumem as mais diversas interpre‑
tações, o que gera muitas vezes uma ambiguidade e esvaziamento do conceito, pois ao passo
que é utilizado para “explicar quase tudo”, perde seu contexto científico de especificidade e
precisão metodológica.
Antes de discutirmos a importância da cultura em nossa sociedade, torna-se essencial
compreendermos o papel da ideologia e como a mesma estabelece vínculos com as questões
culturais, econômicas, políticas e sociais. Em grande parte dos estudos que se propuseram a
elucidar o termo ideologia, encontramos uma certa concordância, sobretudo no que se refere
a dois aspectos relevantes: 1) o termo é um dos conceitos mais complexos e polissêmicos
da ciência social moderna; 2) é com Marx e Engels (2001) que o termo ganha a mais rica e
fecunda contribuição teórico-metodológica (Chaui, 1992; LÖWY, 1993; KONDER, 2002).
Esses estudos revelam os esforços no sentido de conceituar o termo ideologia, pois este
se encontra até então num emaranhado e eclético campo de interpretações, ambiguidades,
paradoxos, arbitrariedades, contrassensos e equívocos (LÖWY, 1998).
Uma primeira leitura do termo ideologia surge em 1801, através do trabalho de Destutt
de Tracy, intitulado Elementos de ideologia, que propunha a elaboração de uma ciência da
gênese das ideias, sendo que essas ideias seriam fenômenos naturais, produtos da interação
entre o organismo vivo e o meio ambiente. Esse tratado visa elaborar uma teoria sobre a re‑
lação dos sentidos dos homens com o meio ambiente, sendo que dessa relação resultariam
um conjunto de ideias.
Mas foi com Marx que a questão da ideologia passa a ter uma nova leitura, visto que ele
busca compreender que as ideologias não são apenas conjuntos de ideias de um determinado
momento histórico, mas uma forma de fetichizar as relações sociais existentes. Marx busca
em sua análise compreender a estrutura do capitalismo para detectar as fontes e as origens
das ideias que fornecer sustentação a sociedade. Ou seja, a produção das ideias para Marx
está fundamentalmente baseada na materialidade social, no modo como vivem os homens.
Nesse sentido as origens da ideologia estão no próprio modo de organização da vida material
de uma determinada época histórica.

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   135

A produção das ideias, das representações e da consciência está,


a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao
comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens
aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu comportamento
material. O mesmo acontece com a produção intelectual tal como se
apresenta na linguagem da política, na das leis, da moral, da religião,
da metafísica etc. de todo um povo. São os homens que produzem suas
representações, suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, tais
como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas
forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as
mais amplas formas que estas podem tomar. A consciência nunca pode
ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de
vida real (MARX; ENGELS, 2001, p. 18).

Essa relação pode ser vista como uma relação pautada na divisão entre os sujeitos
sociais, oriundas de práticas históricas, sendo que Marx observou que a sociedade nasce
pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social
do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão social do poder
econômico, divisão social do poder militar, divisão social do poder religioso e divisão social
do poder político. Por que divisão: porque em todas as instituições sociais (família, trabalho,
comércio, guerra, religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, ideias e
saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui nada disso,
estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída (CHAUI, 1995).
Podemos notar que esses conjuntos de divisões vão se tornando cada vez mais amplo e
complexo, multiplicando-se em muitas outras divisões, sob forma de instituições desenvol‑
vendo o que conhecemos como nossas estruturas sociais, sendo essas estruturas fundadas na
divisão de classes sociais. Essa divisão Marx e Engels (2001) chamam de condições materiais
de existência, sendo que se referem às práticas sociais que os homens realizam através do
trabalho, visto que é esse trabalho que garante nossa existência.
Segundo Marx e Engels (2001), existem variações dessas condições materiais de existên‑
cia, oriundas do momento histórico em que os homens realizam as ações descritas acima,
produzindo os chamados Modo de Produção. Chaui (1995) utiliza-se de Marx para discutir
que é através da história que existem as mudanças, passagens ou transformações de um modo
de produção para outro.
Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos ho‑
mens, mas acontece de acordo com condições econômica, sociais e
culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas de uma maneira
também determinada, graças à práxis humana diante de tais condições
dadas (CHAUI, 1995, p. 172).

Nesse contexto Marx e Engels (2001) colocam que as mudanças de uma sociedade esta‑
belecem-se em condições determinadas. Assim, ele fundamenta: “os homens fazem a História,
mas não a sabem que a fazem” (CHAUI, 1995, p. 172).
Podemos chamar isso de alienação social, sendo que essa questão
pauta-se no desconhecimento das condições histórico-sociais con‑
cretas em que vivemos produzidas pela ação humana também sob o
peso de outras condições históricas anteriormente determinadas. Há
uma dupla alienação: por um lado, os homens não se reconhecem
como agentes e autores da vida social com suas instituições, mas, por
outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos livres, capazes
de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem, apesar das
instituições sociais e das condições históricas. No primeiro caso, não

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136  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

percebem que instituem a sociedade; no segundo caso, ignoram que


a sociedade que a sociedade instituída determina seus pensamentos e
ações (Chaui, 1995, p. 172).

Continuando a linha de pensamento de Chaui (1995), podemos determinar três tipos de


alienação em nossa sociedade: alienação social: na qual os humanos não se reconhecem como
produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou aceitam passiva‑
mente tudo o que existe, por ser tido como natural,
divino ou racional, ou se rebelam individualmente,

Saiba mais julgando que, por sua própria vontade e inteligência,


podem mais do que a realidade que os condiciona,
sendo que nos dois casos, a sociedade é o outro (alie-
Um dos textos mais significativos nus), algo externo a nós, separado de nós, diferente
de Marx sobre a questão da aliena- de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós;
ção é A ideologia alemã. É um alienação econômica: na qual os produtores não se
texto denso, com significados es- reconhecem como produtores, nem se reconhecem
nos objetos produzidos por seu trabalho e a aliena-
senciais para a compreensão da ção intelectual: que resulta da separação social entre
nossa realidade social. Acreditamos trabalho material (que produz mercadorias) e trabalho
ser essencial a sua leitura: intelectual (que produz ideias), sendo que a divisão
social entre as duas modalidades de trabalho leva a
<www.dominiopublico.gov.br/do- crer que o trabalho material é uma tarefa que não exige
wnload/texto/cv000003.pdf>. conhecimentos, mas apensa habilidades manuais, en‑
quanto o trabalho intelectual é responsável exclusivo
pelos conhecimentos.
Dentro desse contexto, devemos nos remeter a alguns aspectos.

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   137

  Seção 2 O surgimento do modo de


produção capitalista e a formação
da nossa sociedade
A questão da alienação está vinculada, em nosso recorte, ao Modo de Produção Capitalista,
sendo que é ela que fundamenta a vida dos indivíduos nos dias atuais. Quando falamos de
Modo de Produção Capitalista, da nossa sociedade de hoje, devemos nos remeter ao processo
de desenvolvimento histórico que viemos discutimos no início de nosso texto.
Alguns acontecimentos marcaram o surgimento do capitalismo, sendo que esses aconte‑
cimentos datam do início do século XV até o final do século XVIII, que desemboca em numa
nova forma de produzir a realidade social.
As transformações ocorridas a partir do século XV estão todas vincu‑
ladas entre si e não podem ser entendidas de forma isolada. Desse
modo, a expansão marítima, as reformas protestantes, a formação dos
Estados nacionais, as gran‑
des navegações e o comér‑
cio ultramarino, bem como

Saiba mais
o desenvolvimento científico
e tecnológico, são o pano de
fundo para uma visão melhor
desse movimento intelectual Para compreender melhor como as
de grande envergadura que Grandes Navegações influenciaram
irá alterar profundamente as
formas de explicar a natu‑
no processo de transformação da
reza e a sociedade daí para a sociedade, ver o filme: A missão
frente (TOMAZI, 2000, p. 1). (The Mission, ING., 1986) Direção:
Com a expansão marítima, os europeus ampliaram Roland Joffé, Elenco: Robert de
sua perspectiva de mundo, ao estabelecer contato com Niro, Jeremy Irons, Lian Neeson,
novos povos, novas culturas e novas mercadorias. Uma
121 min, Flashstar.
nova estruturação estatal acompanha esse processo de
expansão marítima, com a formação e o fortalecimento
dos Estados nacionais, dotados de orçamento e aparato
jurídico-burocrático-militar próprios.
O Renascimento (século XVI) trouxe novamente a
figura do homem como elemento central da sociedade, Para saber mais
visto que coloca como paradigma a perspectiva Antro‑
pocêntrica em detrimento do Teocentrismo, sendo que O filme O nome da rosa mostra
esse ideal pode ser entendido como a valorização do um retrato bastante fiel do poder da
homem e da natureza, em oposição ao divino e ao so‑
Igreja Católica no século XIV. Dire-
brenatural, conceitos que haviam impregnado a cultura
da Idade Média. Nesse momento Galileu Galilei, Leo‑ ção de Jean-Jacques Annaud, com
nardo da Vinci, Copérnico desenvolveram novas formas os atores Sean Connery, Christian
de compreender a realidade social, utilizando-se da Slater, F. Murray Abraham, Valentina
experiência para comprovar os fenômenos da sociedade
Vargas, Ron Perlman, Michael Lons-
e da natureza. É o início do conhecimento científico que
mais tarde com Francis Bacon e René Descartes ficará dale, William Hickey, Elya Baskin,
conhecido como o único responsável pelas explicações Feodor Chaliapin Jr., Helmut Qual-
dos fenômenos naturais e sociais. tinger, Volker Prechtel, Michael Ha-
A Reforma Protestante, com Martin Lutero e João
beck, Urs Althaus no elenco.
Calvino,institui uma nova forma de mediar a questão com

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138  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

o divino, rompendo com a hegemonia da Igreja Católica, ao entrar em conflito com a autoridade
papal e a estrutura da igreja, propiciando uma tendência que contribui de modo significativo para
a valorização do conhecimento racional, em contraposição à revelação, ao permitir a livre leitura
das Escrituras Sagradas e, dessa forma, o confronto com o monopólio do clero na interpretação
baseada na fé e nos dogmas (TOMAZI, 1993, p. 2).
No século XVIII, o processo de transformação da vida social, econômica e política euro‑
peia são consolidados, principalmente em decorrência das inovações trazidas pela Revolução
Industrial na Inglaterra, quanto à esfera econômica, e pela substituição da nobreza pela bur‑
guesia, no direcionamento político, na França.
A Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra a partir de 1750 significa o coroamento de
um processo iniciado no século XVII, que fez da burguesia comercial, formada principalmente
por comerciantes e banqueiros, uma classe economicamente poderosa e influente. Essa classe
foi a responsável pela introdução da produção manufatureira, inicialmente, e por seu desen‑
volvimento, marcado pela maquinofatura e pela produção industrial, num momento posterior.

Para saber mais


Outro filme interessante que demonstra o processo de mudança social através da Revolução
Industrial é Tempos Modernos (Modern Times, EUA, 1936). Direção: Charles Chaplin Elenco:
Charles Chaplin, Paulette Goddard, 87 min, preto e branco, Continental.

A compra de matérias-primas e a organização da produção, [...] leva‑


vam ao desenvolvimento de um novo processo produtivo em contra‑
posição ao das corporações de ofício. Ao se desenvolver a manufatura,
os organizadores da produção passaram a se interessar cada vez mais
pelo aperfeiçoamento das técnicas de produção, visando produzir
mais com menos gente, aumentando significativamente os lucros. Para
tanto, procuravam investir nos inventos, isto é, financiar a criação de
máquinas que pudessem ter aplicação no processo produtivo (TOMAZI,
2000, p. 3).

Na França, por sua vez, as mudanças provocadas pela Revolução Francesa centralizavam-se
no âmbito político. A burguesia contou com a colaboração efetiva dos filósofos iluministas,
que criticavam duramente a nobreza feudal e o sistema (desigual) de privilégios que até então
a sustentara.
Estas críticas foram muito importantes para mobilizar os trabalhadores e dar sustentação
à proposta burguesa de reorganização da sociedade, efetivada com a Revolução Francesa.
A burguesia, ao tomar o poder em 1789, investiu decididamente contra os fundamentos
da sociedade feudal, procurando construir um Estado que assegurasse sua autonomia em face da
Igreja e que protegesse e incentivasse a empresa capitalista. Para a destruição do antigo regime,
foram mobilizadas as massas, especialmente os trabalhadores pobres das cidades (MARTINS,
1987).
Pode-se perceber, portanto, que tanto a Revolução Industrial quanto a Francesa trouxeram
novas condições de sobrevivência — econômicas, políticas e sociais — para o mundo europeu.
Embora estes dois acontecimentos históricos tenham sido extremamente importantes para a
organização da sociedade que temos hoje, suas consequências sociais marcaram significati‑
vamente a população europeia. Na verdade, o principal “mérito” destas revoluções foi o de
possibilitar a plena e absoluta consolidação do modo de produção capitalista, inicialmente
na Europa, e em seguida em todo o mundo.

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   139

A população, no entanto, sofreu muito com todas essas transformações. A adaptação ao


meio urbano e à disciplina imposta pelo trabalho fabril foi um processo muito doloroso aos
trabalhadores, principalmente porque eles estavam completamente habituados à dinâmica da
vida no meio rural.
As consequências da rápida industrialização e urbanização levadas
a cabo pelo sistema capitalista foram tão visíveis quanto trágicas:
aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do
infanticídio, da criminalidade, da violência, de surtos de epidemia
de tifo e cólera que dizimaram parte da população etc. (MARTINS,
1987, p. 13-14).

Em outras palavras, a sociedade europeia do século XVIII passou a conviver com problemas
até então inexistentes, já que a sociedade era bastante estável. E são justamente estes “novos”
problemas sociais que irão preocupar os pensadores da época, que passam a dedicar-se a
estudá-los, com o objetivo de compreender como “melhorar” ou resolver estes problemas.

Para saber mais


Esses novos problemas sociais estão presentes na sociedade capitalista até hoje, visto que a base
da nossa sociedade (desigualdade social, classes sociais, trabalho assalariado) permanece a mesma
do início do século XIX, sendo que as mudanças se dão somente ao entorno da sociedade, como
por exemplo: tecnologia, medicina, alimentação.

[...] A profundidade das transformações em curso colocava a socie‑


dade num plano de análise, ou seja, esta passava a se constituir em
‘problema’, em ‘objeto’, que deveria ser investigado. Os pensadores
da época [...] não desejavam produzir um mero conhecimento sobre
as novas condições de vida geradas pela revolução industrial, mas
procuravam extrair dele orientações para a ação, tanto para manter,
como para reformar ou modificar radicalmente a sociedade de seu
tempo (MARTINS, 1987, p. 15).

Essa sociedade capitalista fundamenta-se na separação entre o trabalho manual do tra‑


balho intelectual, a propriedade privada, as classes sociais e a divisão do trabalho. Com a
divisão do trabalho capitalista, fruto da Revolução Industrial, que separou o trabalho manual
do intelectual, a consciência (pensamento) passa a ser considerada algo exterior à prática, à
ação, deslocando-se para fora do mundo real, como sendo um conjunto de ideias separadas
e independentes da realidade social.

Questões para reflexão


Será que aqui não podemos relacionar com a questão da alienação que discutimos
acima? Lembram a questão de que o homem produz a sua realidade, mas em
virtude da manipulação de uma classe sobre a outra, essa leitura é fetichizada, ou
seja, escondida sobre um véu de fumaça, que impede os sujeitos de compreender
a realidade da forma que ela é!

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140  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

O capitalismo é um modo de produção, ou seja, uma forma de organizar a produção em


uma sociedade, definindo quem, quanto e como trabalha; o que e quanto produzir, e para
quem vender. Possui características bem específicas, que podemos identificar olhando para
nossa própria sociedade contemporânea, sendo que ele pauta-se na:
a) baseia-se na propriedade privada dos meios de produção;
b) pressupõe a existência de duas classes sociais: os capitalistas (ou burgueses) e os tra‑
balhadores (ou proletários);
c) utiliza-se do trabalho assalariado;
d) tem como preocupação central o lucro;
e) transforma todas as relações em mercadorias.
A primeira característica acima exposta nos é bastante familiar: sabemos da existência da
propriedade privada em nossa sociedade. Nesse sentido as pessoas, quase sempre, trabalham
para que possam adquirir bens diversos, que se tornam sua propriedade: um carro, uma casa,
uma roupa, um sapato... Assim é também nas empresas, quanto ao trabalho: as empresas são
privadas, ou seja, pertencem a alguém, seja a uma pessoa apenas ou a um grupo.
Uma segunda característica da sociedade capitalista refere-se à divisão existente em seu
interior. Os indivíduos são separados em classes sociais distintas: os capitalistas, que são os
proprietários dos meios de produção; e os trabalhadores, que são os proprietários da força de
trabalho. Assim, os capitalistas, que possuem as empresas (a estrutura física, a matéria-prima
etc.), empregam os trabalhadores que, com sua mercadoria (a força de trabalho), produzem
de fato os bens (produtos) a serem comercializados.
O modo de produção capitalista destaca-se, também, por utilizar-se do trabalho assalariado,
isto é, por pagar um salário ao trabalhador. Já que o trabalhador não possui os meios de pro‑
dução e precisa empregar-se para poder trabalhar, ele será contratado mediante o pagamento
de um salário, para satisfazer suas necessidades básicas e sociais.
O capitalismo tem como objetivo a obtenção de lucro. É interessante observar que, na so‑
ciedade em que vivemos, esta é uma preocupação generalizada: todos querem saber o que vão
lucrar com suas ações. Até mesmo na situação de sala de aula encontramos manifestações que
demonstram o quanto esta perspectiva (de obtenção de lucro) está impregnada nos indivíduos:
ao solicitarmos que os alunos executem alguma atividade, é comum eles brincarem dizendo
“Quanto vai valer, professora?”, ou “Só vale um ponto? Então não farei, porque não compensa.”
O capitalismo transforma todas as relações em mercadorias. A mercadoria tem papel fun‑
damental nesse modo de produção, já que o lucro só pode ser obtido através de sua comercia‑
lização. Assim, as relações sociais passam a ser relações de troca de mercadorias. Nas relações
de produção (as relações de trabalho), o trabalhador “vende” sua única mercadoria — a mão de
obra ou força de trabalho — para que outras mercadorias sejam produzidas. Poderíamos listar
inúmeros exemplos que demonstram como as relações sociais são mediadas pela mercadoria.
É em virtude deste modo específico de organizar a produção social — o capitalismo — que
a sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX vê-se atingida por inúmeros problemas sociais, os
quais, por sua vez, irão determinar a necessidade de uma ciência específica para estudá-los.
Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam
e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento,
na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar
aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua ativi‑
dade real, e a partir de seu processo de vida real que representamos
também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas
desse processo vital. São os homens que, desenvolvendo sua produção
material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que
lhes é própria, seu pensamento e também os produtos de seu pensa‑
mento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que
determina a consciência (MARX; ENGELS, 2001, p. 19).

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   141

Dentro desse contexto, as ideologias agem nos sentido de inverter a realidade e transformá‑
-la em ideais de mundo da classe dominante, tornando-se representações universais, autônomas,
justamente para poder camuflar sua origem: a divisão da sociedade em classes, em proprietários
e não proprietários, a separação dos que pensam e daqueles que executam, ocultando assim
as contradições internas ao modo de produção capitalista.
Mas... por que falar de ideologia e alienação para discutir cultura?
É comum ouvirmos a seguinte expressão, comumente usada, para se referir a pessoas com
pouca ou nenhuma instrução escolar formal: “Ele(a) não tem cultura”; obviamente essa “afir‑
mativa” nada tem de verdadeiro ou concreto, dado que mesmo sem ter tido a oportunidade
de sentar-se em um banco escolar a referida pessoa possui cultura, já que está inserida em
sociedade, em um grupo, em uma religião, em uma comunidade, enfim, tem passado, tem
história, portanto tem cultura, uma vez que partilha de valores, crenças, costumes, hábitos
com seus interlocutores sociais.
Evidente que a referida afirmação citada no parágrafo anterior está intimamente ligada à
divisão da sociedade em classes desiguais, e que tem seu motor na dominação econômica, mas
que, no entanto, passa fundamentalmente pela dominação cultural, ideológica, moral, espiri‑
tual... Isso pode ser visto quando relacionamos a separação entre cultura popular e erudita, a
questão do etnocentrismo, a indústria cultural, a relação direta de cultura com escolarização...
Enfim, em todas as relações sociais temos, mesmo que veladamente, a relação alienação e
cultura imposta. Esses itens serão discutidos no decorrer de nosso texto, mas já posso indicar
algumas reflexões para vocês: Será que existe mesmo uma separação entra a cultura do povo
e a cultura da elite? Qual é a correta? Qual representa a “verdadeira” cultura? Será mesmo
que só tem cultura quem frequenta a escola? Para iniciar a sua reflexão deixo aqui uma frase
do Marx sobre isso...
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épo‑
cas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que
é o poder material dominante numa determinada sociedade é também
o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios da pro‑
dução material dispõe também dos meios de produção intelectual, de
tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios
de produção intelectual está submetido também à classe dominante
(MARX; ENGELS, 2001, p. 48).

Aprofundando o conhecimento
O texto a seguir ajuda a compreender o atual debate sobre a neutralidade das
ciências, levando-nos a refletir sobre a própria cultura, educação e a ciência que his‑
toricamente surgiu com um forte apelo ideológico. O autor se baseia no conteúdo dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, e analisa a tese da suposta neutralidade científica
a partir dos aspectos relativos à imparcialidade, neutralidade aplicada e neutralidade
cognitiva (OLIVEIRA, 2003).

O conceito de neutralidade da ciência, num sentido amplo, deve ser analisado em alguns
componentes, um dos quais é a imparcialidade.

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Outro dos componentes da neutralidade no sentido o amplo é a neutralidade no sentido estrito,


que por sua vez é formada pela neutralidade aplicada e a neutralidade cognitiva.
O relativismo é evitado pela afirmação da tese da imparcialidade, ou seja, a tese de que a
ciência, nos termos a serem especificados, é imparcial; o espírito crítico é mantido pela tese da não
neutralidade no sentido estrito, ou seja, pela afirmação de que a ciência não tem como atributos
nem a neutralidade cognitiva nem a neutralidade aplicada.
Vejamos então em que consiste a imparcialidade. A imparcialidade diz respeito ao processo de
seleção de teorias no interior da ciência, ou seja, dado um conjunto de teorias rivais sobre um do-
mínio da realidade, como decidimos qual delas é a melhor, qual deve ser aceita como parte do
conhecimento científico? A resposta de Lacey para esta pergunta baseia-se numa distinção muito
fundamental, a distinção entre valores cognitivos e valores não cognitivos. Os valores não cognitivos
são os valores sociais e morais, ou, em outras palavras, os valores subentendidos quando se afirma
que a ciência é livre de valores. Os valores cognitivos formam um conjunto do qual o mais importante,
seguindo a tendência empirista que acabou prevalecendo na epistemologia moderna, é a adequa-
ção empírica, a capacidade de uma teoria de dar conta dos dados observacionais e experimentais
disponíveis. Outros valores cognitivos importantes: são a consistência lógica, o poder explicativo, a
simplicidade etc. Com isso podemos definir o conceito de imparcialidade: a imparcialidade consiste
no uso exclusivo de valores cognitivos na seleção de teorias. Na medida em que há interferência de
valores não cognitivos, a ciência deixa de ser imparcial. Com o conceito de imparcialidade podem
ser formuladas duas teses sobre a ciência: uma normativa – a ciência deve ser imparcial –; outra
descritiva, ou factual – a ciência é imparcial.
A tese normativa por um lado pressupõe que a ciência pode ser imparcial, por outro ela é
compatível com a negação, pelo menos até certo ponto, da tese factual, ou seja, o fato de a ciência
às vezes se afastar doideal de imparcialidade não implica que o ideal deva ser abandonado – da
mesma forma, por exemplo, que o fato de o mandamento “não matarás” nem sempre ser obede-
cido não implica que ele deva ser revogado. As versões mais radicais da tese da não neutralidade
são as que abrem mão inclusive do ideal de imparcialidade, sustentando ser impossível excluir os
valores não cognitivos do processo de seleção de teorias no interior da ciência. Nesta linha de pen-
samento, a ciência não apenas sempre foi e continua sendo parcial, mas o próprio ideal de impar-
cialidade deixa de fazer sentido.
O grande problema com este radicalismo é o que já foi apontado, a saber, que ele implica uma
forma de relativismo. Se quisermos evitar o relativismo, devemos portanto preservar a imparcialidade
como um ideal, ou seja, como um valor. É apenas desta maneira, inclusive, que se terá uma base
para fazer uma crítica da ciência quando ela deixa de ser imparcial. Com isso dou por encerrada a
discussão da imparcialidade, e passo à neutralidade no sentido estrito, que, como vimos, divide-se
em neutralidade aplicada e neutralidade cognitiva.
A neutralidade cognitiva constitui um tema bem mais complexo que, devido à limitação de
tempo, escapa dos limites desta apresentação, e será tratado numa outra oportunidade. A neutra-
lidade aplicada diz respeito às aplicações da ciência, ou seja, à tecnologia. Os termos em que a
discussão é posta nos dias de hoje derivam em grande parte de uma versão particular da tese da
neutralidade no sentido amplo, surgida num momento histórico determinado.
Trata-se de uma versão em que a neutralidade da ciência é afirmada em contraste com a tec-
nologia, cuja não neutralidade é admitida. O momento histórico é o do pós-segunda guerra mundial,
e neste ponto vou recorrer a um livreto recentemente publicado, Thomas Kuhn and the Science
Wars, de Ziauddin Sardar. Sardar diz o seguinte:

Na percepção popular da ciência, a segunda guerra mundial com-


pletou o que a primeira havia iniciado. Desta vez, via-se a ciência
dirigindo o espetáculo no campo de batalha, e participando dos
governos. Os cientistas eram responsáveis não apenas pela invenção
de formas novas e mais letais de armas químicas e biológicas, mas

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   143

por conceber, produzir e finalmente lançar a bomba atômica. As


nuvens em forma de cogumelo das bombas jogadas sobre Hiroshima
e Nagasaki significaram o fim da era da inocência científica. Agora
a conexão entre ciência e guerra havia se tornado mais que evidente,
a cumplicidade entre a ciência e a política tinha vindo à tona, e todas
as noções de autonomia científica haviam evaporado. O público,
que até então havia prestado atenção em grande parte nos benefí-
cios da ciência, viu-se de repente tendo de encarar seu lado devas-
tador. O processo contra a ciência militarizada começou com o
lançamento da publicação dissidente chamada Bulletin of the Atomic
Scientists por um grupo de físicos nucleares totalmente desencan-
tados com o Projeto Manhattan nos Estados Unidos, e se consolidou
com o surgimento do CND (a Campanha pelo Desarmamento Nu-
clear) no fim do anos 50. [...] Muitos cientistas estavam preocupados,
querendo que a Bomba não fosse vista como uma consequência
inevitável da física. [...] A tática consistia em alegar que a ciência é
neutra; é a sociedade que a pode usar para o bem ou para o mal.
Este argumento da neutralidade tornou-se a principal defesa da
ciência durante as décadas de 50 e 60; e permitiu que muitos cien-
tistas trabalhassem em física atômica, até mesmo aceitando finan-
ciamentos de órgãos militares, sem que deixassem de se considerar
politicamente radicais (Sardar, 2000, p. 13-4).

Como se pode ver então, a conjuntura histórica pós-segunda guerra mundial gerou uma for-
mulação particular da tese da neutralidade da ciência em que ela aparece contrastada com a não
neutralidade de suas aplicações, que podem ser voltadas para o bem ou para o mal.
Esta perspectiva tem em princípio certa validade. Não há dúvida de que não apenas a ciência,
mas qualquer artefato humano admite diferentes formas de utilização. Uma faca de cozinha, por
exemplo, pode ser usada “para o bem” – para, digamos, descascar batatas – ou para torturar ou
assassinar uma pessoa, e neste sentido ela é neutra. Entretanto, como um ponto de vista para a
avaliação dos benefícios e malefícios da ciência aplicada, ela deixa muito a desejar. Deixa a desejar
porque de acordo com ela, como no caso paradigmático da bomba atômica, o mal figura como
intenção explícita. Se nos limitarmos a casos desta natureza, deixaremos de enxergar os aspectos
perniciosos das utilizações da ciência que não fazem parte das intenções daqueles que as promovem,
mas nem por isso são menos importantes.
O autor defende a ideia de que as ciências não podem se sujeitar ao relativismo, conceito tão
importante para os antropólogos na contemporaneidade, mas que muitas vezes leva a concepções
equivocadas de que tudo pode ser permitido e realizado em nome do desenvolvimento da huma-
nidade. Segundo o mesmo, as ciências, incluindo a Antropologia, precisa manter uma posição de
imparcialidade, o que não pode ser confundido com a pretensa neutralidade aplicada. Sendo assim,
é preciso que todos os pesquisadores se posicionem criticamente em relação ao papel social das
ciências e das tecnologias, especialmente no mundo de hoje.

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144  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Saiba mais
Existem muitos elementos que nos ajudam a analisar e compreender essa relação alienação X
sociedade X cultura, dentre eles documentários, livros, sites...
Um documentário interessante é Ilha das flores, do diretor Jorge Furtado, ano 1989, com du-
ração de 13 min, produzido no Brasil. O filme pode ser visto no site: <www.portacurtas.com.br/
Filme.asp?Cod=647#>. Esse documentário aborda como as relações sociais pautadas na questão
do trabalho estão presentes em simples atos do nosso dia a dia.

Links
Um site interessante que aborda um livro da Marilena Chaui, autora que utilizamos para a
construção de nossa unidade é: <www.admativa.com.br/claudio/arquivos_gerais/
%5Blivro%5D_o_q_e_ideologia_marilena_chaui.pdf>.

Para concluir o estudo da unidade


Temos que ter claro que a nossa sociedade capitalista é fruto das relações
entre os homens que culminaram até o presente momento na sociedade em que
vivemos. Essa sociedade é constituída pela relação entre aspectos econômicos,
políticos, sociais e culturais. Como vimos, esses aspectos se relacionam ideolo‑
gicamente para a manutenção da estrutura social vigente, sendo que a cultura é
um importante instrumento para a formação e manutenção da realidade social,
sendo muitas vezes utilizada de forma contraditória: impondo e reproduzindo
determinados valores e ao mesmo tempo instituindo novas formas de compre‑
ender a realidade através de elementos de resistência entre os diversos grupos
culturais existentes em nossa sociedade.

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   145

Resumo
Nesta unidade discutimos o surgimento do modo de produção capitalista,
por ser ele o responsável por instituir um “novo” padrão social, pautado na
divisão de classes sociais, na desigualdade e na propriedade privada dos meios
de produção. Nesse sentido, analisamos o pensamento marxista que desvela o
processo de alienação imposto sobre os indivíduos, buscando romper com o
processo de hierarquização social.
Existem muitos livros que trabalham essa questão, sendo que indico alguns
para vocês, dentre eles: O que é alienação, de Wanderley Codo, da série “Pri‑
meiros Passos” da Editora Brasiliense; Marx: a teoria da alienação, de István
Mészáros, e o próprio texto do Marx Ideologia alemã, que está indicado no
item saber mais.
Uma coleção interessante que nos ajuda compreender o desenvolvimento
da nossa sociedade historicamente é do historiador Eric Hobsbawn, que de‑
monstra como ocorreram as principais mudanças, fruto da ação e do pensa‑
mento do homem.

Atividades de aprendizagem
1. Por que precisamos discutir a questão do surgimento do Modo de Produção
Capitalista para falarmos de alienação e cultura?
2. Explique, com suas palavras, dois pontos centrais do capitalismo: a importância
da propriedade privada e a existência de duas classes sociais.
3. Analise o impacto da divisão de classes sociais (burguesia e proletários) na for‑
mação da cultura e da sociedade.
4. O que podemos fazer para romper com a alienação imposta sobre nossa
sociedade?
5. Discuta como podemos relacionar conceitos como ideologia e cultura para a
interpretação da realidade social?

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Unidade 5
Cultura de massa,
indústria cultural e
formação da cultura
brasileira: impactos na
formação do professor
Okçana Battini
Giane Albiazzetti

A descoberta de que a terra se tornou mundo, de que o globo não é mais


apenas uma figura astronômica, e sim o território no qual todos encontram-se
relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos — essa descoberta sur-
preende, encanta e atemoriza! [...] O centro do mundo não é mais voltado só
ao indivíduo [...] A Terra mundializou-se de tal maneira que deixou de ser uma
figura astronômica para adquirir mais plenamente sua significação histórica. Daí
nascem a surpresa, o encantamento e o susto!
Octávio Ianni

Objetivos de aprendizagem:  Nesta unidade você vai ser levado a


analisar criticamente como o modo de produção capitalista institui,
através dos meios de comunicação de massa (TV, rádio, Internet,
jornal, revistas...), uma visão de mundo pautada nos princípios da
mercadorização das relações sociais (lembra da questão da ideologia
e alienação discutida em nosso primeiro capítulo?). Por outro lado,
como falamos sempre da necessidade de olharmos pela contradição
existente entre as relações, compreenderemos que existem positi-
vidades nos próprios meios de comunicação de massa, através da
perspectiva dos integrados, na leitura de McLuhan.

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Seção 1: Indústria cultural e seus impactos na


formação dos sujeitos: positividades e
negatividades
Nesta unidade trabalharemos o impacto da indústria
cultural em nossa sociedade, principalmente a questão
da cultura de massa. Interessante também compreen-
der como esses elementos formam o pensamento dos
sujeitos no modo de produção capitalista.

Seção 2: Globalização
Nesta unidade discutiremos a globalização como
processo econômico, político e ideológico e seus
impactos na formação social.

Seção 3: Formação da cultura brasileira e formação


do professor para a cultura
Nessa seção estudaremos a importância do conhe-
cimento da cultura brasileira para a formação do
professor.

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C u l t u r a d e m a s s a , i n d ú s t r i a c u l t u r a l e f o r m a ç ã o d a c u l t u r a . . .   149

Introdução ao estudo
Hoje em nossa sociedade existem diversas formas de comunicação como o rádio, a te‑
levisão, os jornais e a Internet. Fala-se que vivemos em uma sociedade digital, ou seja, uma
sociedade tecnológica.
Como vimos no início do nosso texto, a sociedade é fruto das ações entre os homens,
sendo que essas ações modificam o social no decorrer da história. Antigamente para nos co‑
municarmos utilizávamos cartas, existiam as conversas de rodas nas ruas, nem todos tinham
telefone e aparelho de televisão em casa. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista,
os meios de comunicação passam a ser a principal forma de produzir e reproduzir notícias,
informações... Agora tudo acontece em tempo real. Isso só foi possível com o desenvolvimento
do capitalismo.

  Seção 1  I ndústria cultural e seus


impactos na formação dos
sujeitos: positividades e
negatividades
Nas ciências sociais, essa generalização dos meios
de comunicação de massa, a partir da consolidação do
modo de produção capitalista, é designada por “cultura
de massa” ou “indústria cultural”.
Para saber mais
Segundo Crespo (1993), podemos trabalhar a con‑ Essa discussão foi realizada por
cepção de indústria cultural a partir do século XVIII,
através da multiplicação dos jornais na Europa. Até a
HORKHEIMER, M., e ADORNO, T.
Idade Média a leitura e a escrita eram privilégios do W. Dialética do esclarecimento:
clero e da nobreza, mais isso se transforma com o ca‑ fragmentos filosóficos. Trad. Guido
pitalismo através da urbanização, da industrialização Antonio de Almeida. Rio de Ja-
e pela ampliação do mercado consumidor. Com todas
essas questões, as cidades passam a se tornar centros neiro: Jorge Zahar, 1997.
de referência nas questões políticas, econômicas e
culturais. O processo de migração para a cidade, o
aumento da população urbana, o trabalho fabril, maior produção, preços mais baixos... enfim
uma cadeia de relações que coloca a burguesia como classe revolucionária, sendo que a mesma
passa a conquistar não só o mercado em geral, mas também o mercado cultural.
Existe um aumento pela busca de informações, e o jornal passa a ser um meio importantís‑
simo de divulgação de todos os tipos de informação: emprego, notícias das cidades, economia,
cultura, crônicas políticas e os folhetins (precursores dos romances e das novelas de televisão
atual). Segundo Crespo (1993, p. 194), “as estórias que os jornais publicavam no rodapé de
suas páginas vinha em capítulos, obrigando o leitor a comprar o próximo exemplar para saber
a continuação da trama”.
A partir do final do século XIX, o processo de industrialização em larga escala, oriundo das
transformações tecnológicas, coloca como essencial uma “nova leitura” de cultura. O maior
desenvolvimento dessa tecnologia deve ser entendida, nesse nosso recorte, como maior acesso
as informações, principalmente pelos meios de comunicação de massa (televisão, Internet,
rádio, jornal, revistas...). Essa cultura, segundo Brandão e Duarte (2004), não está ligada a

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150  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

nenhum grupo social específico, apesar de a burguesia utilizá-la em seu proveito para obter lu‑
cro, com a sua comercialização, sendo transmitida de maneira industrializada (daqui pode tirar
a ideia massificada) para um público generalizado, de diferentes camadas socioeconômicas.
Mas por que denominar cultura de massa ou indústria cultural?
O primeiro termo faz com que vejamos a sociedade moderna como
uma sociedade de massa, de multidões padronizadas e homogêneas
[...] O segundo termo remete às ideias de produção em série, de co‑
mercialização e de lucratividade, características do sistema capitalista.
Podemos imaginar então o estabelecimento de uma indústria produtora
e distribuidora de jornais, livros, peças, filmes, em resumo, de merca‑
dorias culturais (CRESPO, 2000, p. 205).

O termo “indústria cultural” foi criado por Theodor Adorno e Max Horkheimer, membros de
um grupo de filósofos conhecidos como Escola de Frankfurt. Esses autores buscaram analisar cri‑
ticamente o funcionamento dos meios de comunicação
de massa, chegando à conclusão de que eles funcionam
como um instrumento da indústria cultural, que produz
Saiba mais produtos culturais, visando exclusivamente o consumo.
Para Adorno e Horkheimer apud Crespo (1993), a
O livro Indústria cultural e socie- indústria cultural produz e vende mercadorias, utili‑
zando ideologicamente os meios de comunicação de
dade da Editora Paz e Terra é uma
massa para vender imagens do capitalismo, sendo que
leitura essencial para compreender muitas vezes essas imagens são fetichizadas, buscando
a importância da indústria cultural reproduzir o status quo vigente. Essa indústria cultural
na sociedade capitalista. e a cultura de massa produzem “bens culturais” — mú‑
sica, filmes, novelas, propagandas, centrados em dois
pontos: o lucro e manutenção da sociedade capitalista.
O modo de produção capitalista produz mercadorias (carros, aparelhos domésticos, roupas)
e a indústria cultural também estaria mais preocupada com o lucro de suas “mercadorias”, por
exemplo, um programa que tem bastante audiência vende muito, ao passo que uma novela
que não dá ibope logo é tirada do ar. Dentro desse contexto não está em jogo a qualidade dos
programas, e sim o lucro que eles viabilizam.
Já no que diz respeito a manutenção da sociedade capitalista são transmitidos pelos
programas, propagandas, imagens, buscando um estímulo à imutabilidade das condições de
sobrevivência das pessoas. Assim, os produtos culturais devem “produzir” e mostrar (distribuir)
aos indivíduos imagens falsas, irreais, imaginárias, ilusórias da realidade, fazendo com que os
indivíduos permaneçam passivos e obedientes.

Links
Um texto interessante para compreender o impacto da indústria cultural nas escolas e em
nosso trabalho como docente é: “A indústria cultural invade a escola brasileira” (MEDRANO;
VALENTIM, 2001):<www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-3262200
1000200007&lng=pt&nrm=iso>.

Para Adorno (2007), esses produtos culturais ajudam a manter no “devido lugar” aque‑
les que têm baixo poder aquisitivo. Isso acontece porque os conteúdos da formação dos

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sujeitos passam a ser ajustados pelos mecanismos de mercado e reprodução dos valores da
sociedade capitalista.
Sarlo (2004 apud LIMA, 2008, p. 36) coloca que essa sociedade de consumo está pautada
pela estética do mercado onde a “[...] constância das marcas internacionais e das mercado‑
rias se soma à uniformidade de um espaço sem qualidades”. Construímos nossa identidade
pautada nos ícones do mercado, sonhamos com os objetos e imagens que estão expostos nas
vitrines. Há um jogo da sociedade capitalista para transformar em consumidores eternamente
insatisfeitos, em busca de ícones que possam trazer algum tipo de prazer imediato, instituindo
valores que mudam conforme a vontade do capital.
Adorno (2003 apud LIMA, 2008, p. 38) reforça o papel da televisão como instrumento da
indústria cultural, sendo que ela é vista como uma ideologia que tenta “[...] incutir nas pessoas
uma falsa consciência e um ocultamento da realidade”, impondo um conjunto de valores que
atuarão na formação dos telespectadores, no sentido de modificar a consciência das pessoas,
pois os processos de formação se dão mais de fora para dentro do que o inverso. Olhem a
questão da alienação e da ideologia presente novamente em nossa realidade!
Nesse contexto, podemos destacar alguns pontos negativos dos meios de comunicação
de massa e da indústria cultural, dentre eles: a padronização do gosto do consumidor bus‑
cando uma padronização dos indivíduos, tirando o senso crítico das pessoas, eliminando sua
capacidade de julgar e decidir sobre suas próprias vidas; o incentivo do consumo exagerado,
que tem como agente central à propaganda, que divulga um único padrão de vida para as
pessoas, fazendo com que os indivíduos fiquem submetidos ao consumo, transformando-os
em consumidores potenciais.
Aqui coloco algumas questões: Será que não temos um rebatimento direto dos meios de
comunicação de massa na formação de nossas crianças e adolescentes? Como esses instru‑
mentos afetam o nosso trabalho em sala? Será que só existe uma leitura negativa?
Um exemplo para ilustrar a ideia de indústria cultural e cultura de massa que estamos
discutindo é o poema Eu etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade (2002).
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.

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152  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Estou, estou na moda.


É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar a minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.

Apesar de todas as críticas, existem autores que


destacam os pontos positivos dos meios de comunica‑
ção de massa, como Marshall McLuhan (1911-1980).
Links Segundo Tomazi (2000), esse autor levanta que os
meios de comunicação de massa são grandes fontes
Para ler o poema na integra acesse de informação, pois muitas pessoas têm acesso às mais
o site <www.radarcultura.com.br/ variadas notícias através da televisão, do rádio e da
node/12065 >. Internet. Nesse sentido, com os meios de comunicação
de massa, haveria uma democratização das informa‑
ções e do saber na sociedade capitalista, contribuindo
também para a formação intelectual dos indivíduos (leitores, telespectadores, internautas), o
que seria essencial para a nossa sociedade, pois atualmente vivemos os acontecimentos em
tempo real, ou seja, nossa sociedade está globalizada.
Crespo (1993) coloca uma abordagem pautada na leitura crítica de Humberto Eco que
acredito ser bem interessante de reproduzir aqui. Segundo a autora, Eco faz uma distinção
polêmica entre os autores dedicados ao estudo da indústria cultural, dividindo esses autores
entre os “apocalípticos” (aqueles que criticam os meios de comunicação de massa) e “inte‑
grados” (aqueles que elogiam), elencando alguns motivos de crítica e elogio aos meios de
comunicação de massa.

Questões para reflexão


Aqui coloco mais uma reflexão para vocês: O que vocês acham sobre essa dis‑
cussão? Será que podemos discutir positividades e negatividades? Como trabalhar
essas questões em sala de aula?

Será que dentro dessa perspectiva não podemos falar em um mundo globalizado? Uma
cultura que flui de um lugar para o outro em questões de segundos?

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  Seção 2  Globalização
E por falar em globalização, esse fenômeno tem provocado muitas transformações em
nossa sociedade. A globalização teve seu início com a expansão econômica europeia, mas
foi a partir da segunda metade do século XX que tem se manifestado com mais intensidade,
extrapolando os limites da esfera econômica, resultando em mudanças também na cultura, na
política e em todos os outros aspectos da vida.
Podemos dizer que o termo globalização é uma nova expressão do capital, que desen‑
cadeia um complexo processo de produção e circulação de mercadorias, que tem início nos
anos de 1970 e concretiza-se com o final da Guerra Fria, em 1989. Segundo Ianni (1995),
esse processo representa, para além de um novo ciclo de expansão do capitalismo, um modo
de produção e modificação da civilização em escala mundial, que engloba nações, regimes
políticos, culturas e economias. De acordo com o autor,
Os fatores da produção ou as forças produtivas, tais como o capital,
a tecnologia, a força de trabalho e a divisão do trabalho social, entre
outras, passam a ser organizadas e dinamizadas em escala bem mais
acentuada que antes, pela sua reprodução em âmbito mundial. Também
o aparelho estatal [...] é levado a reorganizar-se ou “modernizar-se”
segundo as exigências do funcionamento mundial dos mercados, dos
fluxos dos fatores de produção, das alianças estratégicas entre corpo‑
rações (IANNI, 1995, p. 48-49, grifo do autor).

Essas exigências são fundamentadas na liberalização dos mercados e na desregulamentação


financeira mundial. Assim,
É preciso que a sociedade se adapte (esta é a palavra-chave, que hoje
vale como palavra de ordem) às novas exigências e obrigações, e,
sobretudo que descarte qualquer ideia de procurar orientar, domi‑
nar, controlar, canalizar esse novo processo. A necessária adaptação
pressupõe que a liberalização e a desregulamentação sejam levadas
a cabo, que as empresas tenham absoluta liberdade de movimentos e
que todos os campos da vida social, sem exceção, sejam submetidos
à valorização do capital privado (CHESNAIS, 1996, p. 25).

Para saber mais


Globalização é o termo utilizado para o processo de transformações econômicas e políticas que
vêm acontecendo nas últimas décadas. A principal característica é a integração dos mercados
mundiais com a exploração de grandes empresas multinacionais.

Uma questão levantada por Giddens (2001, p. 61, grifo do autor) é importante:
Inicialmente a leitura da globalização estava vinculada aos padrões
econômicos e políticos, mas devemos ter claro que esse termo significa
muito mais, ou seja, que estamos vivendo “num único mundo”, em
que os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdepen‑
dentes. A globalização é criada pela convergência de fatores políticos,
econômicos, políticos, sociais e culturais. Foi colocada como impor‑
tante, sobretudo pelo desenvolvimento de tecnologias da informação
e da comunicação que intensificaram a velocidade e o alcance da
interação entre as pessoas em todo o mundo.

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154  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Enfim, tudo está globalizado. As particularidades e especificidades dos países — sua cul‑
tura, sua música, seus hábitos e costumes — estão presentes em todos os cantos do mundo.
Parecem estar desenraizadas, por diferentes tempos e espaços, que não são os seus de origem.
Isso quer dizer que a estrutura social responsável pela existência e difusão da cultura em um
país vai se enfraquecendo, e, como consequência vai sendo substituída por diferentes práticas,
diferentes formas de pensar, agir, de trabalhar que não são suas originalmente! Sendo assim,
a cultura de um país vai se “desenraizando” e passa a “flutuar” mundo afora, perdida, sem
sentido, sem povo, sem nação, totalmente descontextualizada.
Todo esse processo alterou os padrões tradicionais aceitos de indivíduos, cidadania, de
cultura etc. Ianni (1999) expressa as preocupações em torno das questões ligadas à cidadania
e à liberdade do indivíduo, ou seja, a formação de um “cidadão do mundo” que é fruto dessa
nova configuração de mundo globalizado.
As referências habituais na constituição do indivíduo, compreendendo
língua, dialeto, religião, seita, história, tradições, heróis, santos, mo‑
numentos, ruínas, hinos, bandeiras e outros elementos culturais, são
completadas, impregnadas ou redescobertas por padrões, valores, ideais,
signos e símbolos em circulação mundial. O inglês como língua franca,
a música pop como elemento da cultura internacional-popular, o turismo
de todos os lados, as mercadorias de muitos países, as pessoas migrando
por diferentes nações e mercados, as ideias flutuando por todos os ares,
são muitos os elementos que entram na formação da individualidade e
cidadania, subalternidade e autoconsciência, de habitantes de campos
e cidades, países e continentes (IANNI, 1999, p. 113).

Saiba mais
Uma leitura interessante sobre essa discussão é o livro de Otavio Ianni, Teorias da globalização,
da Civilização Brasileira, 1995.

Mais devemos ter claro aqui a perspectiva da contradição, como em todos os itens discuti‑
dos em nosso texto, pois a globalização deve ser vista como uma questão aberta e contraditória.
Uma questão interessante a ser discutida é que esse processo estabelece-se de forma
desigual e está aumentando a desigualdade social entre os países, aprofundando o abismo
entre os países mais ricos e mais pobres. A riqueza, a renda, os recursos e o consumo estão
concentrados nas sociedades desenvolvidas, enquanto muitos países em desenvolvimento
lutam contra a pobreza, a desnutrição, a doença... Sendo que muitos desses países, que estão
inclusos no processo de globalização, estão excluídos.
Enfim, a globalização produz riscos, desafios, desigualdades, positividades que atravessam
as fronteiras nacionais e escapam ao alcance das estruturas sociais vigentes. Por isso torna-se
importante discutirmos formas de governo que busquem pensar de forma global, visto que
segundo Giddens (2001) existem governos individuais despreparados para controlar essas
questões, sendo necessário enfrentar os problemas globais e uma forma global.
Por outro lado, devemos pensar que todo esse processo abre espaço para novas possibilida‑
des e perspectivas. É importante considerarmos a globalização como um processo que promove
o contato intenso entre as diferentes culturas e as trocas culturais abrem sempre possibilidades
de crescimento, de amadurecimento, de ganho para os lados envolvidos.
O processo de globalização é também um processo cultural, civiliza‑
tório. Ao mesmo tempo em que há muitas perdas, há muitos ganhos.
É como se os indivíduos, as coletividades, etnias e minorias, grupos

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e classes, se humanizassem também por intermédio dos vastos e


intrincado processo de globalização. Acontece que as culturas são
expressões de modos de vida e trabalho, tradições e esperanças, forma
de ser, sentir, agir, pensar e sonhar. O intercâmbio das culturas [...] é
também necessariamente um intercâmbio de indivíduo, coletividades,
povos, nações, nacionalidades (IANNI, 1999, p. 159).

Links
Um artigo interessante que aborda as duas faces da indústria cultural é <www.webartigos.com/
articles/10725/1/cultura-de-massa/pagina1.html> e um outro texto que aborda a questão do
impacto da indústria cultural na educação é Indústria cultural e educação: o novo canto da
sereia de Antônio Álvaro Soares Zuin, da Editora Autores Associados. Para quem tiver interesse,
esse site traz a resenha do livro: <www2.pucpr.br/reol/index.php/DIALOGO?dd1=754&dd99=pdf>.

Aprofundando o conhecimento
O texto a seguir é parte de uma publicação de Magnani (2009), onde se discute
o trabalho e os desafios da Antropologia Urbana na contemporaneidade. Um ótimo
material para refletir sobre diversas questões tratadas na unidade.

Atualidade
De lá a esta parte, muita coisa mudou e atualmente a oposição centro versus periferia já não
é operativa; ademais, nem sempre se aplicou a todas as metrópoles brasileiras, como é notório no
caso do Rio de Janeiro, com outro padrão de desenvolvimento territorial. O processo acelerado de
urbanização produziu outros cenários, o que implicou ajuste nas formas de análise. No entanto, é
sintomático e significativo que este congresso em Lisboa, a Primeira Conferência Internacional de
Jovens Pesquisadores Urbanos (FICYurb), tenha incluído uma reflexão com base em experiência de
um país do terceiro mundo, muitas vezes visto e identificado principalmente na chave de processos
desordenados de urbanização, altos níveis de desemprego, desigualdades sociais, violência.
Com base nesse quadro, até seria previsível imaginar qual a contribuição esperada: apresenta-
ção de situações-limite, experimentos como que de laboratório, estudos de caso extremados que
serviriam, então, de contraponto, de contraste para pôr em evidência conjunturas de certa forma
análogas em outros países e contextos. Enfim, seria a repetição de um estereótipo, já veiculado pela
mídia, mas agora revestido com números, casos exemplares, relatos e outros dados de campo.
Não é isso, contudo, que pretendo apresentar neste texto, para interlocutores certamente bem
informados e vacinados contra clichês. Meu propósito é desenvolver uma reflexão que leve à busca
de pontos em comum, para que se possa melhor compartilhar a multiplicidade de experiências em
diferentes contextos. Assim, o que principalmente vincula e reúne pesquisadores interessados em
questões urbanas contemporâneas não é um tema em particular, pois eles são variados; não são os
recortes regionais ou locais, pois cada qual tem lá suas idiossincrasias; não é uma bibliografia espe-
cífica, pois se pode beber de várias fontes. O que pode constituir um ponto de interesse comum é

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156  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

o olhar, o olhar etnográfico. Buscar sua especificidade, fazer dele um diferencial, algo que se possa
eleger como eixo para valorizar as inevitáveis diferenças.
Em outro momento (Magnani, 2002) afirmei que não é preciso muitos malabarismos pós-
-modernos para aplicar com proveito a etnografia a questões próprias do mundo contemporâneo
e da cidade, em particular: desde as primeiras incursões em campo, a antropologia vem desenvol-
vendo e colocando em prática uma série de estratégias, conceitos e modelos que, não obstante as
inúmeras revisões, críticas e releituras (quem sabe até mesmo graças a esse continuado acompa-
nhamento exigido pela especificidade de cada pesquisa), constituem um repertório capaz de inspi-
rar e fundamentar abordagens sobre novos objetos e questões atuais.

A etnografia
Tendo, pois, feito esta escolha, impõe-se qualificá-la. Não se trata de etnografia em geral, mas
de etnografia no contexto urbano, contemporâneo e de metrópoles. Certamente já não se pode
fazer como Evans-Pritchard, que escreveu, a propósito de sua estada entre os Nuer: “da porta de
minha barraca podia ver o que acontecia no acampamento ou aldeia e todo o tempo era gasto na
companhia dos Nuer” (1978 [1940]: 20). Mas não é o caso, aqui, de repassar a história da pesquisa
etnográfica; talvez valha a pena tomar como ponto de partida algumas situações típicas vividas em
campo. Vou tentar essa empreitada a partir de três experiências, bem diversas, de meu próprio re-
pertório e de alguns pesquisadores que comigo trabalharam.
Antes, porém, convém assinalar alguns supostos básicos a respeito da etnografia. Inicialmente,
vale a pena repassar o que ela não é, e, nesse plano, não são poucos os mal-entendidos por parte
do senso comum: às vezes, é confundida com o detalhismo, com a busca obsessiva dos pormeno-
res na descrição das situações de campo; em outras, é identificada com a atitude de vestir a camisa
ou ser o porta-voz da população estudada, principalmente quando esta é caracterizada como grupo
excluído ou uma minoria; em algumas ocasiões, é identificada com a reprodução do discurso nativo,
através da transcrição de trechos de entrevistas nos quais, para melhor efeito de verossimilhança,
são cuidadosamente preservados alguns erros de concordância, sintaxe ou regência.
Finalmente, para citar mais alguns desvios, o método etnográfico é também visto como um
esforço em transmitir o ponto de vista do nativo em sua pretensa autenticidade, não contaminada
com visões externas, ou ainda é identificado com as técnicas do chamado método qualitativo. Para
estabelecer um contraponto a essas visões e construir um argumento em tom assertivo, cabe uma
citação de Lévi-Strauss:
É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza
da disciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo
necessita da experiência do campo. Para ele, ela não é nem um
objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma
aprendizagem técnica. Representa um momento crucial de sua
educação, antes do qual ele poderá possuir conhecimentos descon-
tínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente, estes
conhecimentos se “prenderão” num conjunto orgânico e adquirirão
um sentido que lhes faltava anteriormente (1991: 415-416).

Todos os antropólogos, nas introduções de seus relatórios, teses e dissertações, procuram


descrever o momento crucial em que os dados de campo se prendem nesse “conjunto mais orgâ-
nico”. Merleau-Ponty, no texto “De Mauss a Claude Lévi-Strauss” (1984), chega a dizer que, após
essa experiência, o antropólogo como que adquire um novo “órgão de conhecimento”. Na realidade,
para descrever esse momento às vezes fugidio, mas de capital importância, muitas vezes lança-se
mão de metáforas, de aproximações, como tentativas de cercar a especificidade da etnografia. A
revisão de algumas dessas tentativas pode ser reveladora.
Marisa Peirano, autora do livro A Favor da Etnografia (1995), por exemplo,fala em “resí-
duos” — certos fatos que resistem às explicações habituais e só vêm à luz em virtude do confronto

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entre a teoria do pesquisador e as ideias nativas; Márcio Goldman, no artigo “Os tambores dos
mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia” (2003), refere-
-se à “possibilidade de buscar, através de uma espécie de ‘desvio etnográfico’, um ponto de vista
descentrado”; há que lembrar ainda os anthropological blues de Roberto Da Matta (1974) e a ex-
pressão experience-near versus experience-distant usada por Geertz (1983).
À sua maneira — com ênfases diferentes — cada uma dessas paráfrases, entre outras, deixam
entrever alguns núcleos de significado recorrentes: o primeiro deles é uma atitude de estranhamento
e/ou exterioridade por parte do pesquisador em relação ao objeto, a qual provém da presença de
sua cultura de origem e dos esquemas conceituais de que está armado e que não são descartados
pelo fato de estar em contato com outra cultura e outras explicações, as chamadas “teorias nativas”.
Na verdade, essa co-presença, a atenção em ambas é que acaba provocando a possibilidade de uma
solução não prevista, um olhar descentrado, uma saída inesperada.
Por outro lado, essa experiência tem efeitos no pesquisador: ela o “afeta” (Favret-Saada, 1990);
o “transforma” (Merleay-Ponty, 1984), produz-se “nele” e, no limite, o “converte” (Peirano, 1995).
O pesquisador não apenas se depara com o significado do arranjo do nativo, mas ao perceber esse
significado e conseguir descrevê-lo, agora nos seus termos (dele, analista), é capaz de apreender
sua lógica e incorporá-la de acordo com os padrões de seu próprio aparato intelectual e até mesmo
de seu sistema de valores.
Com base nas observações desses autores e de muitos outros antropólogos que sempre refle-
tiram sobre seu trabalho de campo, é possível concluir, de uma maneira mais sintética, que a etno-
grafia é uma forma especial de operar, em que o pesquisador entra em contato com o universo dos
pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica
de sua visão de mundo, mas para segui-los até onde seja possível e, numa relação de troca, com-
parar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento
ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente.
Esse é um insight, uma forma de aproximação própria da abordagem etnográfica, que produz
um conhecimento diferente do obtido por intermédio da aplicação de outras técnicas. Trata-se de
um empreendimento que supõe outro tipo de investimento, um trabalho paciente e continuado ao
cabo do qual e em algum momento, como mostrou Lévi-Strauss, os fragmentos se ordenam, per-
fazendo um significado até mesmo inesperado.
Nesse sentido vale lembrar também a advertência de Clifford Geertz (1978:15) de que, dife-
rentemente do que ensinam os manuais, praticar a etnografia não se resume a selecionar informan-
tes, transcrever textos, levantar genealogias.
Mais do que um conjunto de técnicas, o que a define é um tipo de esforço intelectual em busca
de uma “descrição densa”. E já que estamos no campo das metáforas, aproximações e paráfrases,
mesmo correndo o risco de ser acusado de enveredar por um lado meio místico, não resisto a fazer
mais uma comparação, desta vez buscando ajuda na sabedoria oriental com um exemplo do amplo
repertório das anedotas zen-budistas.
A literatura sobre a experiência do satori — estado de iluminação da mente que desperta e
que adquire uma nova forma de percepção — traz muitas histórias que mostram as particularidades
dessa vivência. Uma delas relata a experiência de Kyogen, um praticante que, após muitos anos de
meditação e estudo, chega à iluminação, ao satori, quando, ao varrer, pela enésima vez, o pátio do
mosteiro, percebe o barulho produzido por um pedregulho que, ao ser projetado pela vassoura,
bateu contra a haste de um bambu. Aquele som foi o fator casual e externo que fez sua mente
despertar para a resolução do koan (espécie de enigma, proposição paradoxal) proposto por seu
mestre e, em consequência, para um novo entendimento da natureza das coisas, até então perce-
bidas de acordo com o padrão habitual. Não foi, porém, um acontecimento mágico: nem o bambu
nem a pedra tinham qualquer qualidade intrínseca e misteriosa para provocar o súbito insight; este
foi produzido em virtude de uma predisposição, de um estado anterior de atenção viva e contínua
(voltada, dia e noite, para o deciframento do koan), de forma que o incidente trivial e inesperado
funcionou como gatilho que detonou a ruptura, a quebra e o consequente reordenamento da
mente, capaz agora de ver as coisas sob uma nova perspectiva.

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158  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Também o insight na pesquisa etnográfica, quando ocorre — em virtude de algum aconteci-


mento, trivial ou não — só se produz porque precedido e preparado por uma presença continuada
em campo e uma atitude de atenção viva. Não é a obsessão pelo acúmulo de detalhes que carac-
teriza a etnografia, mas a atenção que se lhes dá: em algum momento os fragmentos podem ar-
ranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento, voltando à citação de
Lévi-Strauss.

Os casos:
Com o propósito de tornar mais concreta e palpável essa perspectiva, vou trazer alguns exem-
plos; não serão os achados dos grandes mestres, nos textos clássicos, já sobejamente conhecidos;
ficarei num âmbito mais doméstico de algumas pesquisas feitas no Núcleo de Antropologia Urbana
da USP.
Quando comecei uma investigação sobre modalidades de lazer, cultura popular e entreteni-
mento na periferia de São Paulo, a pergunta com a qual fui a campo estava fundamentada nas
relações entre ideologia e cultura. No contexto dos estudos sobre os movimentos sociais urbanos
e a emergência de novos atores sociais, questionava-se se a cultura popular era fator de libertação
ou se era mero reflexo da ideologia dominante. Assim, com base nessa discussão, saí a campo
para realizar a pesquisa etnográfica e, sem entrar em maiores detalhes, posso dizer que fui com
uma determinada pergunta ou hipótese e a resposta que obtive dos moradores, surpreendente,
apontou para outra direção.
Em poucas palavras, a resposta foi a seguinte: não é o conteúdo da cultura popular, do en-
tretenimento ou do lazer o que importa, mas os lugares onde são desfrutados, as relações que
instauram, os contatos que propiciam. Mais do que a suposta capacidade de liberação da cultura
popular ou o poder da ideologia dominante sobre tradições populares, surgia uma questão nova:
a da própria existência de uma rica rede de lazer e entretenimento — e suas modalidades de
fruição — na periferia urbana da cidade de São Paulo, paisagem habitualmente descrita como
uma realidade cinzenta, indiferenciada (hoje se diria o território da exclusão, que é uma outra
forma de reduzir as diferenças a um denominador comum, a um fator de homogeneização).
Na verdade, o olhar paciente do etnógrafo terminou apreendendo que há, sim, classificações,
regras, diferenciações. Assim, foi possível descobrir que, naquele universo aparentemente monótono,
havia uma extensa rede de lazer e diferenciações na forma de, por exemplo, praticá-lo: havia lazer
de homens solteiros e casados, de mulheres e moças, de crianças e adultos; e também modalidades
desfrutadas em casa e fora de casa, e neste último caso ainda era possível distinguir “fora de casa,
mas no pedaço”.
Foi então que surgiu essa noção de pedaço (vertida como turf numa tradução para o inglês),
uma ideia nativa mas que terminou se transformando numa categoria mais geral, na medida em
que permitiu discutir e se integrar em outros esquemas conceituais. Em diálogo com a conhecida
dicotomia “rua versus casa” de Roberto Da Matta (1979), revelou um outro domínio de relações:
enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua o dos estranhos, o pedaço evidencia outro plano,
o dos “chegados” que, entre a casa e a rua, instaura um espaço de sociabilidade de outra ordem.
Assim se desvelou um campo de interação em que as pessoas se encontram, criam novos laços,
tratam das diferenças, alimentam, em suma, redes de sociabilidade e negociam conflitos numa
paisagem aparentemente desprovida de sentido ou lida apenas na chave da pobreza ou exclusão.
Foi realmente um achado, não previsto pelas hipóteses do projeto original da pesquisa, pois
surgiu no contato com os pesquisados, foi sugerido por eles, e só se transformou numa categoria
de alcance mais geral quando contrastado com outro esquema conceitual e, aplicado em novos
contextos, diferentes daquele em que fora encontrado, deu origem a outras categorias.
Outro exemplo vem da experiência de campo de um ex-aluno, hoje professor de antropologia
na Universidade Federal de São Carlos, no interior do estado de São Paulo. Como ocorria com vários
estudantes de graduação, na disciplina “A pesquisa de campo em antropologia”, Luiz Henrique
escolheu um botequim, para seu exercício etnográfico — sempre está presente a possibilidade de

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aproveitar ao máximo todas as possibilidades abertas pela observação participante…O tema era
sobre o tempo livre e era preciso descobrir as concepções que os usuários tinham sobre lazer. A
resposta obtida foi: “não, isto aqui não é lazer”. Mas, como? O pesquisador estava todo preparado
com as teorias do lazer e do tempo livre e o informante diz que aqueles momentos passados no
botequim, entre cervejas e snooker, no final da tarde, não constituíam lazer. Que eram, então?
“Higiene mental”, foi a inesperada resposta.
Tal perspectiva não cabia, não se encaixava nas hipóteses; no entanto, ofereceu uma pista:
aqueles momentos passados no botequim, em companhia de colegas após a jornada de trabalho,
antes de voltar para casa, eram vividos como uma passagem entre o mundo do trabalho e o mundo
doméstico. Então fazia sentido falar em higiene mental: aquelas pessoas eram trabalhadores que
ainda traziam na roupa, no corpo, no cheiro, nos temas das conversas, as marcas dessa condição;
a passagem pelo botequim era encarada como uma espécie de “descontaminação” antes da volta
ao convívio com a família.
Tudo bem, mas afinal o que eles consideravam lazer? “Lazer é quando eu me arrumo e vou
com minha mulher a um barzinho ou, no fim-de-semana, quando vou passear na área verde do
campus da USP”. De certa maneira, o entrevistado, ao mostrar de que forma usava seu tempo livre,
deu uma pista para pensar as diferenças no modo de entendimento do lazer. Não se tratava de
optar por uma visão supostamente mais autêntica ou verdadeira, mas de estar atento para nuanças,
modulações, princípios de classificação diferentes, a partir dos arranjos dos próprios atores. Essas
pistas podem ser seguidas, aprofundadas e permitem enriquecer, no caso, uma compreensão mais
ampla do que seja o lazer.
[...]
E os exemplos poderiam multiplicar-se: pichadores e grafiteiros, hip-hop, as bandas gospel, as
baladas black (para ficar apenas no circuito dos jovens) e, muito recentemente, uma etnografia
levada a cabo por alunos meus do primeiro ano de ciências sociais sobre um movimento que cul-
minou com a ocupação do prédio central da reitoria da USP, por parte dos estudantes,em maio de
2007. A propósito, uma delas me disse, após as primeiras idas a campo — “Professor, agora não
consigo mais ir à ocupação sem ficar reparando o tempo todo nos atores, no cenário e nas regras!”
— “Pois é”, respondi-lhe, “você perdeu a inocência…” Neste caso, inocência quer dizer o filtro do
senso comum ou de uma perspectiva parcial, seja a do militante favorável à ocupação, seja daquele
que é visceralmente contra: aquela aluna, ao contrário, estava mais atenta ao que todos os atores
envolvidos diziam e faziam, às redes que teciam e desfaziam, aos trajetos que percorriam.
Eram mais de trinta, experimentando pela primeira vez esse, por vezes, estranho lugar do et-
nógrafo e vendo as coisas através de um novo olhar: inicialmente de “perto e de dentro” (Magnani,
2002), mas que vai precisar adotar também uma perspectiva distanciada, na hora de juntar todos
os dados. O trabalho está sendo realizado no âmbito do Núcleo de Antropologia Urbana, cujos
membros estão acostumados a uma prática etnográfica que não descarta o trabalho em comum,
as trocas de experiências, o levar a sério todos os atores.
Este e outros experimentos etnográficos evidenciam que esse nosso tema e recorte, a cidade,
é tão complexo, sua trama é tecida por tantos fios que a todo momento é preciso resistir não ape-
nas ao que já denominei de “a tentação da aldeia” (Magnani, 2000): isto é, considerar cada objeto
de estudo como um mundo fechado e autossignificante, como resistir também à recusa de se abrir
a outros pontos de vista, que podem revelar ângulos inesperados.

Como se pode perceber, o trabalho dos antropólogos na atualidade é bastante desafiador,


sobretudo quando se trata de pensar questões relativas à vida social que ocorre em centros
urbanos, todos tão permeados pela lógica da acumulação capitalista.

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160  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

  Seção 3 Formação da cultura brasileira


e formação do professor para a
cultura
3.1 Introdução
O pensamento sociológico no Brasil pode ser compreendido a partir da década de 1930,
passando a se consolidar como eixo explicador dos problemas sociais nas décadas seguintes.
Nesse contexto, temos inúmeros pensadores e suas interpretações derivam das teorias
descritas anteriormente, que são a base clássica da sociologia. Por isso vocês poderão se
deparar com o pensamento durkheiminiano, marxista e weberiano no decorrer desta seção.

3.2 Processo histórico do surgimento da sociologia


Segundo alguns autores (IANNI, 1999; FERNANDES, 1978; TOMAZI, 1993), podemos
dizer que o pensamento sociológico passa a se efetivar a partir da década de 1930, com a
fundação da Escola Livre de Sociologia e Política e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
em São Paulo (1934) e no Rio de Janeiro (1935). Segundo Tomazi (1993), não é que não exista
produção de cunho sociológico antes de 1930, mas é que, a partir da criação das primeiras
faculdades no Brasil, o pensamento sociológico passou a ser mais sistematizado, ganhando
um caráter mais investigativo e explicativo.
Esse caráter mais investigativo está vinculado aos
movimentos sociais críticos existentes nesse período
Saiba mais da história do Brasil. Podemos citar como propulsores
desse processo o Modernismo, oriundo da Semana
Um filme que retrata o surgimento de Arte Moderna em 1922, e a formação do partido
do partido comunista no Brasil e os comunista, no mesmo ano.
movimentos de transformação na Esses acontecimentos trouxeram transformações de
ordem social, econômica, política e cultural ao país, e
sociedade brasileira é Olga (2004). instigaram os pensadores a buscar explicações a esses
Informações Técnicas: fenômenos. É nesse contexto que a sociologia passa
a constituir-se uma forma de reflexão sobre a nossa
Título no Brasil: Olga sociedade.
Título Original: Olga Segundo Ianni (1999), podemos dividir a sociologia
brasileira em períodos para a sua implantação. Aqui
País de Origem: Brasil abordaremos três fases, que se complementam e nos
Gênero: Drama auxiliam a compreender a nossa sociedade.
Uma primeira fase a ser abordada é composta por
Classificação etária: 14 anos autores que fizeram estudos históricos sobre a realidade
Tempo de Duração: 141 min social, com um caráter voltado à literatura mais do que
à sociologia. Abordaremos o escritor Euclides da Cunha
Ano de Lançamento: 2004 como expoente desse período.
Estreia no Brasil: 20/08/2004 Euclides da Cunha (1866-1909) foi um autor escre‑
veu sobre as relações sociais existentes no país. No livro
Site Oficial: <www.olgaofilme.com. Os sertões, Cunha registra de forma literal a guerra de
br/> Canudos, descrevendo não só questões geográficas e
Estúdio/Distrib.: Europa Filmes físicas, mas também o perfil dos homens, ou seja, dos
sertanejos e suas impressões sobre a guerra de Canu‑
Direção: Jayme Monjardim dos, que representa uma leitura sobre os problemas
do período histórico pelo qual o país estava passando.

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Nessa descrição, podemos analisar sociologicamente o conflito existente entre a República


que estava sendo consolidada e os indivíduos que viviam em precárias condições de vida no
interior do nordeste. Euclides da Cunha conseguiu descrever um retrato da sociedade brasileira
que não conseguia suprir as necessidades básicas de grande parte da sua população.
Para os autores indicados, o livro Os sertões, por fazer essa leitura social, deve ser visto
como uma obra que traz referências importantes para o pensamento sociológico brasileiro.
Um segundo momento citado por Ianni é o período em que a pesquisa de campo passa
a ser essencial para a sociologia. Podemos dizer que o pesquisador busca conhecer in loco a
realidade social do nosso país. Existem inúmeros autores que são conhecidos nesse momento
(Fernando de Azevedo, Raymundo Faoro, Nelson Wernek Sodré...), mas pautaremos nossa
leitura em três pensadores: Giberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

Links
A Semana de Arte Moderna de 1922 mudou a leitura da arte no Brasil. Um site interessante
para entender mais sobre o assunto é <www.puccamp.br/centros/clc/jornalismo/proje-
tosweb/2003/se-manade22/oquefoi.htm>.

3.2.1 Gilberto Freyre


Um dos principais autores que discutem esse pro‑
cesso é Gilberto Freyre (1900-1987), em seu livro Casa
Grande & Senzala. Freyre defende que essa integração Links
social entre o negro, o branco e o índio estabeleceu-se de
forma harmoniosa, sendo que essa miscigenação propor‑ A biografia de Euclides da Cunha
cionou um equilíbrio entre os diferentes grupos culturais. pode ser lida no site <www.cultura-
Segundo Freyre (2001), as relações sociais fundamenta‑ -brasil.pro.br/euclides.htm>.
vam-se no trabalho escravo, no poder e mando do senhor
de engenho e da família patriarcal, o que identificava o Um site de que aborda a questão
processo de colonização portuguesa no Brasil. da Guerra de Canudos e suas con-
Essa leitura inaugura uma visão que colocava sequências para a sociedade brasi-
em cheque o pensamento elitista existente na época,
leira é <www.historiadobrasil.net/
importado da Europa, o qual privilegiava a cor branca
e sustentava que a “mistura” entre as raças seria a guer-racanudos/>.
responsável pela formação “defeituosa” da sociedade O livro Os sertões está disponível
brasileira, o que poderia ocasionar um atraso no pro‑
para leitura no site: <www.domi-
cesso de desenvolvimento social.
Dessa relação entre poder e sobrevivência, res‑ niopublico.gov.br>.
pectivamente entre brancos e negros, surgiria uma
cultura propriamente brasileira expressa na fusão do
vocabulário das duas raças, nas práticas diárias, nas crenças e nas representações de poder, o
que resultou em um processo de democratização racial entre os indivíduos.
Torna-se importante realizarmos aqui um recorte para discutirmos um pouco a relação
entre raça e etnia, visto que essa questão é muito importante para a compreensão da diversi‑
dade cultural brasileira.
O conceito de raça é um dos conceitos mais complexos, devido à contradição em seu uso
cotidiano e sua base científica. Segundo Giddens (2001, p. 205), “raça pode ser entendida como
um conjunto de relações sociais que permitem situar os indivíduos e os grupos e determinar
vários atributos ou competências com base em aspectos biologicamente fundamentados”.

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162  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Muitas vezes, utiliza-se o termo raça para classificar


Links ideologicamente (hierarquizar) os indivíduos, ou seja,
o racismo. Por isso é um termo muito contraditório, e
Acessem o site <www.bvgf.fgf.org. devemos ter clareza para não o utilizarmos de forma
pejorativa.
br/portugues/obra/livros/pref_brasil/
Uma categoria que melhor nos ajudaria a com‑
casagrande.htm> para ler o prefácio preender a questão da formação da sociedade é o
do livro Casa Grande & Senzala conceito de etnia. A etnicidade ou etnia, refere-se às
que aborda como o livro foi pen- práticas e às visões culturais de uma determinada co‑
sado e produzido. Vale a pena! munidade, que partilham bens culturais comuns como
a linguagem, a comida, manifestações religiosas...

Aprofundando o conhecimento
Para aprofundar ainda mais o seu conhecimento sobre o pensamento de Gilberto
Freyre, leia a seguir a introdução do texto de Barros (2009, p. 3-14).

Imaginário da brasilidade em Gilberto


Freyre
O fato de Gilberto Freyre situar-se num caminho intermediário entre a ciência e a arte é que o
torna polêmico e instigante até hoje.
O livro Casa-Grande & Senzala sempre despertou grande curiosidade e somente depois desse
estudo sistemático, agora apresentado como livro, é que consegui situá-lo, com propriedade, den-
tre aquelas obras de ciência, dado seu caráter sociológico e antropológico principalmente — mas
que resvala para o romance e mesmo a poesia. No Brasil, talvez Os Sertões, de Euclides da Cunha,
compare-se em ambiguidade e riqueza de expressão ao livro primeiro de Gilberto Freyre, na medida
em que inúmeras passagens daquele livro são verdadeiros poemas em prosa.
Dessa forma é que o presente estudo sobre “o mestre1
de Apipucos” teve que ser realizado de
uma abordagem simultaneamente científica e poética , a partir de teóricos como Gilberto Durand
e suas “estruturas antropológicas do imaginário” e Gaston Bachelard e suas “poéticas”.
Valemo-nos também das próprias lentes interpretativas de Gilberto Freyre, como se vê no livro
Oh de casa!, em que o autor realiza uma ampla análise do complexo “casa brasileira”, inclusive
percebendo-se aproximações teóricas com os autores anteriormente citados.
Convém antecipar que o termo brasilidade aqui utilizado, o foi como uma ideia de caráter ou
personalidade de um povo, fato que o aproxima muito de ethos. Ou seja, brasilidade é um modo
característico e mesmo específico de ser do povo brasileiro, resultado de sua história e da forte
miscigenação social e cultural ocorridas.
Esclareço, também que trabalhar com Durand e Bachelard justifica-se, na medida em que o
primeiro autor possui uma visão predominantemente científica, mais precisamente antropológica e
o segundo outra mais poética, embora calcada em bases científicas. Nesse sentido, ambos parecem
completar-se nos dois eixos bachelardianos — o da ciência e o da poesia.
O trabalho que empreendi só foi possível porque utilizei uma outra visão paradigmática, com
um conceito transdisciplinar de ciência e um certo espírito de aventura e de descoberta, onde entrou
alguma intuição pessoal. Situei-me, assim, dentro de um paradigma holonômico ou emergente,
como explico, ainda que sucintamente adiante.

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Foram levadas em consideração as próprias lentes interpretativas de Gilberto Freyre, conforme


mencionei antes, por ser um dos maiores intérpretes dele próprio, em trabalhos de auto-hermernêu-
tica, normalmente desprezados em estudos como estes. O livro Como e porque sou e não sou soció-
logo (1968b) é básico e o mais adequado para esse aspecto do trabalho, na medida em que fornece
vários conceitos necessários para a compreensão de sua obra. Tais pressupostos são utilizados, muitas
vezes, de forma implícita, na medida em que Freyre também previa a possibilidade de o saber cientí-
fico e o poético se completarem, sobretudo no livro acima, conforme já tratei (Barros, 1991, p. 152).
Assim, o principal objetivo do presente estudo é levantar ou apreender as imagens simbólicas
ou o imaginário, em busca de uma concepção de brasilidade em Casa-Grande & Senzala, por ex-
tensão. Para tanto, procedi a uma análise compreensiva dessa obra, que mesmo sendo de 1933,
continua suscitando inúmeras indagações.
Trata-se de uma “análise compreensiva”, na medida em que não concebe o texto como uma
estrutura fixa, mas como um “cruzaremento de olhares” dele com o leitor (Durand, 1982, p. 66), que
especifico mais adiante. Para esta análise, estudei as imagens simbólicas do texto a partir dos “Regimes
de Imagens” levantados por G. Durand, no livro “As estruturas antropológicas do imaginário”. Veri-
fiquei, também, como Gilberto Freyre trabalha a imagem da casa e suas metáforas, o que, não sendo
o principal objetivo da pesquisa, constitui-se em um de seus aspectos importantes. Pois, se num
momento a casa é o engenho, noutro ela é o trópico, e noutro, ainda, pode ser o próprio corpo.
Alguns pressupostos básicos encaminham este trabalho:
Através das imagens, podemos captar de forma mais precisa o pensamento de Gilberto
Freyre — transdisciplinar e revestido de ciência e arte (poética). Essa foi uma das mais impor-
tantes conclusões da dissertação de mestrado e que motivou o seu aprofundamento no presente
estudo.
O imaginário organiza recursivamente2 o real social ou a poética gilbertiana constrói o seu
mundo social. A partir das imagens, é possível levantar esse mundo gilbertiano, sendo a casa im-
portante nesse levantamento, por aglutinar em torno de si diversas outras imagens.
Mesmo não sendo objetivo do trabalho a realização de uma mitocrítica ou mitanálise, conforme
são entendidas por Durand (1982, 1983, 1989), o levantamento dos regimes de imagens trará como
consequência alguns de seus elementos, uma vez que Casa-Grande & Senzala é um livro
predominantemente narrativo, que pode ser considerado como painel de um período de longa
duração. Desta forma, convém transcrever as palavras de Durand (1982, p. 65-66) acerca do que
seja mitocrítica e mitanálise:
a mitocrítica é justamente uma crítica do tipo crítica literária, como
se diz, crítica de um texto, crítica que tenta pôr a descoberta por
detrás do texto, quer seja um texto literário (poema, romance, peça
de teatro, etc.) ou mesmo o estilo de todo o conjunto de uma
época — mas em rigor, texto jornalístico — que tenta pôr a
descoberto um núcleo mítico, uma narrativa fundamentadora.3

Enfim, para o autor:


uma mitocrítica é o pôr em relevo na obra, um mito inocente, que-
rendo dizer com isso um mito que não esteja obrigatoriamente
embarcado no pan-sexualismo de Freud ou numa interpretação
demasiada estreita, um mito em liberdade, um mito que atua por
detrás da narrativa. (Durand, 1982, p. 73).

Ou seja, qual é esse mito4 presente em Casa-Grande & Senzala, escondido por trás da narrativa,
saga ou epopeia, conforme é considerado o livro? Quais suas unidades significativas? Em que me-
dida é possível fazer-se esse levantamento? São outros pontos para reflexão, a que volto nas con-
clusões deste trabalho.

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164  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

Para Durand (1983, p. 87), a mitanálise nada mais é que uma mitocrítica, mas dessa vez em
um campo mais largo e mais aleatório, ou seja, o campo do aparelho ou instituições, ou das práti-
cas sociais. O campo da Sociologia, enfim. Ou seja, a mitanálise:
consiste em examinar sobre documentos e monumentos exprimindo
uma sociedade e abrangendo um largo período (...) A mitanálise
consiste, portanto em examinar ou determinar num segmento de
duração social os grandes esquemas míticos, os mitologemas (...)
a partir dos índices mitêmicos que podem passar por mitemas —
quer seja um estilo de pintura, quer seja uma atitude social, quer
seja uma atitude de estar à mesa. (Durand, 1983, p. 7) (grifos meus).

Para o autor, finalmente, uma mitanálise permite mostrar as camadas míticas que se imbricam
e a anatomia da sociedade, podendo-se dissecar um momento social num grupo e iluminar seus
componentes (Durand, 1983, p. 104). Essas camadas míticas suscitam aquilo que Durand (1983, p.
32) denomina de mitologema, que é: “o resumo, de certo modo, de uma situação mitológica, um
resumo abstrato (...) quanto mais amplo é o campo, mais o mitema se empobrece em mitologema
(...) mais os mitemas são pobres.”
No caso dos românticos, ele nos lembra que: “É o mitologema da culpa, ou da queda, da
descida a infernos diversos e da subida posterior para uma redenção” (Durand, 1983, p. 72)
Enunciados esses primeiros pressupostos, passo a tecer algumas considerações sobre o autor
e a obra estudados, bem como sobre o trabalho de mestrado já referido inicialmente.
Conforme procurei ressaltar em minha dissertação de mestrado (Barros, 1991, p. 10-87), Gilberto
Freyre vem sendo interpretado das mais diversas formas, inclusive contraditoriamente. Portanto, ele
é um daqueles autores que sempre provocarão discussões e polêmicas, como atestam as inúmeras
publicações sobre sua obra, desde que surgiu Casa-Grande & Senzala, em 1933. Naquela ocasião,
um dos objetivos do meu estudo foi mostrar a dificuldade que ocorre ao analista quando pesquisa
a obra gilbertiana, em virtude da multiplicidade de interpretações e significados que ela possa ter.
O presente trabalho tanto pretende retomar as principais lições do anterior, aprofundando-as
na medida do possível, quanto objetiva lançar uma nova ótica sobre Casa-Grande & Senzala. Ou
seja, busca revelar a configuração que o imaginário, em especial o da brasilidade, adquire nesse
livro pioneiro do autor.
Em meu trabalho de mestrado, dediquei um item específico ao antagonismo em Gilberto Freyre
(Barros, 1991, p. 153-157), concluindo que esse antagonismo tanto faz parte de seu pensamento
(ideias) quanto de seu método analítico ambíguo, ou seja, de seu estilo. Daí uma espécie de fixação
de Freyre por aquilo a que ele denomina “equilíbrio de antagonismo”. Esse antagonismo gilbertiano
vem do início de sua formação. Seu próprio método híbrido — meta-método ou pluri-método —
advém desde pormenor. Concluí, ali, que o antagonismo é tema e estilo no autor.
Refiro-me ao fato de sua formação múltipla, pois, nos Estados Unidos, de 1918 a 1923, Freyre
realizou estudos de Economia, Direito, Geologia, Antropologia, Biologia, dentre outros, como se vê
em seu diário (Freyre, 1975) ou em algumas biografias (Menezes, 1944; Chacon, 1993).
Algumas publicações, nos últimos anos, vêm destacando a formação intelectual do autor (Vi-
lanova, 1994). O próprio Freyre (1968b, p. 118) ressalta seu plurimétodo, dizendo-nos:
Dentre o que possa ser destacado como novo ou inovador no livro
‘Casa-Grande & Senzala’ talvez nenhum traço se apresente mais
significativo do que (...) o seu múltiplo e por vezes simultâneo pers-
pectivismo.

Araújo (1994, p. 24) realiza um trabalho, no qual leva em consideração a questão desse “equi-
líbrio de antagonismo” e observa o: “(...) talento de Gilberto Freyre em aproximar visões diferentes,
antagônicas até, sem dissolvê-las ou mesmo reduzir consideravelmente a sua especificidade.”

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No entanto, naquele trabalho, o autor lida com “os mais importantes argumentos substantivos
de Casa-Grande & Senzala” (Araújo, 1994, p. 24), ou seja, com “teses de conteúdo histórico-so-
ciológico” (Araújo, 1994, p. 24), concluindo que:
a opção de Gilberto Freyre vai lhe permitir transferir para o interior
de seu texto, para sua própria forma de escrever parte da ambigui-
dade, do excesso e da instabilidade que, segundo ele próprio, ca-
racterizavam a sociabilidade da Casa-Grande. (Araújo, 1994, p. 208)

O que nos revela um trabalho calcado na face mais patente da obra de Freyre, mas que se
refletirá no seu lado mais latente, ou do imaginário, conforme se verifica neste livro.
Tendo em vista a questão do equilíbrio no autor, como venho destacando desde a outra pes-
quisa, a contradição, ao invés de confundir, parece ser o ponto de partida para a compreensão de
sua obra; nela podemos localizá-lo, ou seja, as contradições são seu esconderijo (Barros, 1991,
p. 302), no sentido de que é nesse esconderijo que podemos encontrá-lo e, assim, revelá-lo. Desta
forma, o que parece bastante característico no livro é o fato de “ser e não ser”, o que o coloca
imediatamente numa lógica da inclusão, uma das características do paradigma holonômico ou
emergente, já citado. Em tal lógica, por exemplo, pares antagônicos não se excluem ou se eliminam
e podem mesmo complementar-se. Ou seja, Casa-Grande & Senzala é e não é um romance; é e não
é literatura, como se o antagonismo a que se refere Gilberto Freyre invadisse seu próprio fazer
artístico-científico.
A maioria de seus intérpretes vem analisando apenas a camada mais objetiva de sua obra; o
trabalho atual pretende mostrar uma outra mais profunda de seu livro primeiro. O que parece nos
“olhar”, do texto em estudo, é seu pedido de desvendamento, como se nos impusesse um desafio
de esfinge — “Decifra-me ou te devoro” — sendo o autor uma espécie de Édipo: investigador que
procura as origens do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que busca a si mesmo, ao seu próprio
passado.
Em texto anterior (Barros,1992c), chamei a atenção para o afã de Freyre em autoanalisar-se,
quando observei que ele teria extrapolado o conceito de Literatura enquanto arte e enquanto objeto
de estudo, galgando um degrau além na crítica ao cientificismo. O próprio autor acabou fazendo-
-se investigador e investigado, caça e caçador, um Édipo da investigação científica.
Aquele “olhar” do texto para o leitor está relacionado a um conceito específico de literatura e
tem a ver com a questão de que “a literatura não é inocente” (Durand, 1982, p. 66), ou mais pre-
cisamente:
essa literatura contém sempre, assimilado, no centro de si, um ser
(...) pregnante ou seja, um fundamento que interessa (...) Ora bem,
um texto olha-nos, quer dizer, é mais que um interesse, é um
cruzamento de olhares (...) um texto olha-nos e é o que num texto
nos olha que é o seu núcleo. E esse núcleo (...) pertence ao domínio
do mítico. (grifo meu)

A questão desse “cruzamento de olhares” entre Gilberto Freyre e sua própria obra não deixa
de revelar o caráter narcisista do autor, aspecto assumido por ele próprio e por seus intérpretes. E
isto, também, não pertence ao domínio do mítico? Seria sua obra uma espécie de espelho, no qual
o autor se veria o tempo todo?
O próprio fato de falar por imagens simbólicas torna seu texto ambíguo: literário e científico.
Em várias passagens de minha dissertação de mestrado tratei dessa questão. Naquele trabalho, quis
mostrar que se torna necessária uma nova concepção de leitura para a obra gilbertiana, que con-
sidere, sobretudo, seu estilo artístico-científico (Barros, 1991, p. 1).
Refleti, também, sobre esse aspecto em outro momento (Barros, 1992c, p. 97), quando concluí
que o autor parece querer levar às últimas consequências a comunicação entre arte e ciência, poe-
sia e mito, drama e relação social: o mito como ponto de chegada, nessa busca incessante, quase

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166  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

obsessiva, da transdisciplinaridade. Daí o caráter narrativo de sua obra, a semelhança ao romance,


ao mito enfim.
Dediquei, ainda, um item específico ao escritor Gilberto Freyre (Barros, 1991, p. 149-52), no
qual se observa, em suas próprias palavras e nas de seus intérpretes, sua condição de artista-cientista.
No presente trabalho, procuro mostrar como, no livro Casa-Grande & Senzala, “a literatura não
é inocente”, preferindo chamar de antropoético ao método analítico que utilizo, na medida em que
tanto capta o lado antropológico (via Durand) quanto o poético (via Bachelard).
Pelo fato de ser uma obra mista, não é recomendável uma leitura somente objetiva, como se
Casa-Grande & Senzala fosse apenas um tratado de sociologia ou antropologia. É uma grande obra
simbólica, não apenas por representar um marco na história intelectual do Brasil, mas por estar car-
regada de símbolos, passíveis de desvendamentos, inclusive de mitemas, que são, segundo Durand
(1982, p. 75), temas recorrentes, ou seja, unidades significativas que se repetem. Para este autor:
É preciso encontrar unidades, mitemas, na narrativa diacrônica, (...)
que se desenrola no próprio tempo da obra (...) A indicação, o indi-
cador do mito (...) é a sua redundância e a determinação do mitema
vem do que se repete.

É importante lembrar que, para Durand (1982, p. 72), é o conjunto de mitemas que pode
revelar o mitologema, ou um mito geral no livro. Esse mitologema está associado a imagens obses-
sivas, que levam a um esquema bastante geral dentro da obra. Esse mitemas são também
núcleos, núcleos duros, (...) núcleos redundantes que voltem, mas
que regem em diferentes pontos, mas regressem, constantemente,
e que são quer conjuntos de situações, quer emblemas, quer cená-
rios, lugares que se repetem. (Durand, 1982, p. 76).

Assim, constatei que a casa é um desses mitemas, mas uma casa imaginária, onírica ou cósmica,
que simboliza, de algum modo todo o imaginário gilbertiano.
A “análise compreensiva”, já referida, suscita uma “leitura compreensiva” (Durand, 1982),
através do levantamento dos “Regimes de Imagens”, pois o estilo de Freyre “está repleto de metá-
foras, de imagens fortes, impressionantes” (Barros, 1996), que dão conta de uma outra dimensão
de leitura da obra. Levantando-se o imaginário, em última instância, apreenderemos a camada mais
profunda do pensamento do autor naquele momento, ou seja, a parte mais simbólica, que, portanto,
permanece para além da “transitoriedade da ciência” (Barros, 1991). Tal método ou leitura com-
preensiva está ligado àquilo que Durand (1982, p. 77) fala, de que “(...) não há texto objetivo (...)
um texto é sempre um texto de leitura e uma leitura é sempre uma criação subjetiva de sentido”.
Portanto, um “cruzamento de olhares”.
Leitura compreensiva, regimes de imagens, configuração do imaginário e, finalmente, mitocrítica
e mitanálise, como consequências, passam a ser a forma como trato, metodologicamente, Casa-Grande
& Senzala, tendo em vista que a linguagem dos mitos também permanece para sempre.

Notas
1. Adiante especifico melhor as razões desse proce- 3. Gilberto Freyre também possui um estilo próximo
dimento. ao jornalístico, na medida em que traça um perfil
2. “Morin entende como recursivo todo o processo no de um período da história do Brasil, como se esti-
qual uma organização ativa produz elementos e efei- vesse narrando os acontecimentos, ou seja, como
tos necessários a sua própria geração ou existência, se fosse um repórter.
processo que realiza um circuito em que o produto 4. O capítulo I mostra como Durand (1989, p. 44)
ou efeito último torna-se elemento primeiro ou causa chega a um conceito de mito, ou seja, “um sis-
primeira. (...). A recursividade compreende simulta- tema dinâmico de símbolos, de arquétipos e de
neamente a complementaridade, a concorrência e o esquemas”.
antagonismo.” (Porto, 1996, p. 65).

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Feito o recorte necessário sobre a questão de raça e etnia, discutida em nosso segundo
capítulo, torna-se importante ressaltar que alguns autores contradizem essa visão “romântica”
do processo de surgimento do povo brasileiro e de sua cultura proposto por Freyre. Segundo
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Caio Prado Júnior (1907-1990), essa leitura imprime
uma visão sobre os diferentes grupos sociais como algo natural, sem estabelecer os conflitos
de classe existentes entre o dominador e os dominados.

3.2.2 Sérgio Buarque de Holanda


Para Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro
Raízes do Brasil (2003), a formação da cultura bra‑
sileira tem relação com o período de transição do
Brasil tradicional para uma ordem moderna, em que
Links
o modelo agrário, rural e patriarcal dava lugar para o Um site interessante que aborda
modelo industrial, urbano e democrático. toda a obra de Sérgio Buarque
A formação da cultura bra‑ de Holanda é <www.unicamp.br/
sileira tem relação com o
período que o Brasil atra‑ siarq/sbh/>.
vessava desde o século XIX
sob uma prolongada crise
de transição de uma ordem tradicional a uma ordem moderna. Tratava‑
-se de uma revolução lenta, com a superação de um modelo agrário,
rural e patriarcal, por um outro modelo — industrial urbano e democrá‑
tico. A dificuldade de ultrapassagem para esta última fase se originava
de uma série de entraves que a estrutura colonial havia legado e que
se manifestava desde então no modo de ser do brasileiro. Premido
entre os novos imperativos da civilização ocidental e os condicionan‑
tes arcaicos da sua formação histórica,o Brasil assistia a um impasse
na definição de seu destino
(HOLANDA, 2003).

Dentro desse contexto, Holanda (2003) estabelece


a relação entre o português, o índio e o negro, fundado Saiba mais
na questão da dominação legal do branco sobre as ou‑
tras culturas, instituindo uma relação de superioridade Bastante interessante também é o
e de poder sobre o homem simples (fruto da mistura de filme: Raízes do Brasil: uma cine-
raças). Sendo assim, institui-se culturalmente o homem
biografia de Sérgio Buarque de
cordial, que aceita as estruturas sociais vigentes, sem
questionar, pois é muito forte culturalmente, o domínio Holanda
de uma classe sobre a outra. Aqui podemos relacionar Informações Técnicas
novamente a questão da cultura e da ideologia presente
no início do nosso texto. Título Original: Raízes do Brasil:
uma cinebiografia de Sérgio
3.2.3 Caio Prado Júnior (1907-1990) Buarque de Holanda

O autor recorreu a uma abordagem marxista, ou País de Origem: Brasil


seja, partiu das questões econômicas e políticas para Gênero: Documentário
compreender a sociedade brasileira. Um livro impor‑
tante, A formação do Brasil contemporâneo (1942), de Tempo de Duração: 148 min
Caio Prado discute a tese de que os problemas sociais Ano de Lançamento: 2003
existentes no Brasil têm relação com o processo his‑
tórico de colonização a que o Brasil foi submetido Estúdio/Distrib.: Estação Filmes
por Portugal, sendo o país uma colônia periférica e Direção: Nelson Pereira dos Santos
de exploração.

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Segundo Caio Prado, o processo de colonização contribuiu para o atraso do país como
nação, pois o processo de exploração fazia com que todas as riquezas fossem retiradas daqui
e levadas para a metrópole, deixando o país sem o retorno desse processo.
Segundo Caio Prado, o processo de colonização desenvolvia uma leitura negativa sobre
o país:
[...] Um território primitivo habitado por rala população indígena inca‑
paz de fornecer qualquer coisa de realmente aproveitável. Para os fins
mercantis que se tinha em vista, a ocupação não se podia fazer como
nas simples feitorias comerciais, com um reduzido pessoal incumbido
apenas do negócio, sua administração e defesa armadas; era preciso
ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter
as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que
interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí.
(PRADO JÚNIOR, 1969, p. 24).

3.2.4 Florestan Fernandes


Já Florestan Fernandes, em seu livro A integração do negro na sociedade de classes (1978),
analisa o processo de exclusão social do negro na formação da cultura brasileira. Segundo
Fernandes, o negro e sua cultura sempre participaram do processo de desenvolvimento do
país, mas sempre em posição de inferioridade dentro da estrutura social, visto que no início
do processo de colonização eles eram visto como mercadorias e, depois da abolição da es‑
cravidão, em 1888, a presença do negro sempre foi vinculada ao trabalho não capacitado.
Para Fernandes (1978), o negro sempre esteve presente no processo de construção da socie‑
dade brasileira e essa participação também influenciou os padrões culturais do povo brasileiro.
Mas a sociedade, histórica e ideologicamente, colocou o negro à margem do processo
social, visto que com o desenvolvimento das relações de trabalho assalariado nas cidades os
negros passaram a concorrer com os trabalhadores imigrantes, que já estavam acostumados
com o trabalho estipulado pelo modo de produção capitalista.

Aprofundando o conhecimento
Esses aspectos incidem diretamente no fator cultural, visto que a cultura negra
foi estereotipada como exótica, sendo sempre vista sob um olhar etnocêntrico. Dessa
forma, vamos aprofundar nosso conhecimento lendo a seguir o texto de Pereira (2009).

A face negra do Brasil multicultural


O Estado brasileiro, pela primeira vez na sua história, trata das desigualdades raciais como uma
questão nacional específica, relevante, importante para a nação do ponto de vista social e econômico.
Os conceitos de desenvolvimento, historicamente excludentes, pensados com referência na
conjuntura e desconsiderando as desigualdades estruturais, estão sendo reformulados no Brasil para
incluir os grupos humanos que têm sido, no processo histórico, imobilizados na parte inferior da
pirâmide social.

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O Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. A Nigéria,
com uma população estimada de oitenta e cinco milhões, é o único país do mundo com uma po-
pulação negra maior que a brasileira.
Durante anos, sobretudo a partir da década de 1930, referenciando-se principalmente na
miscegenação e na forma envergonhada de expressão do discurso racista, desenvolveu-se no país
o mito da democracia racial. Durante a maior parte deste século, ações de combate ao racismo, a
organização cultural e política dos negros brasileiros, e a implantação de políticas para a superação
das desigualdades raciais foram inibidas.
A ausência de um sistema legal explícito que definisse as desigualdades e, ainda, as africani-
dades visíveis da cultura brasileira, serviram como argumento para que o Estado e a sociedade
desconsiderassem, no período pós abolição, a necessidade de se criar mecanismos para a inclusão
do povo negro no processo de desenvolvimento nacional.
A partir de 1995, com o engajamento pessoal do presidente da república, Fernando Henrique
Cardoso, sociólogo, estudioso das relações raciais, o debate nacional que era conduzido apenas
pelo movimento social negro, por alguns intelectuais e timidamente por poucos partidos políticos,
assumiu a relevância necessária para motivar transformações políticas e econômicas, e sobretudo
culturais, que permitam valorizar a diversidade e a riqueza do multiculturalismo no país. O investi-
mento no combate às desigualdades impostas aos negros deixou de ser retórica para se materializar
em ações de gestão, a partir da compreensão não apenas das necessidades dos negros, mas das
necessidades da nação que, para vivenciar a experiência da construção da democracia participativa,
precisa do engajamento do conjunto da nação.
A cidadania plena do povo negro passou a ser uma meta de governo com o reconhecimento
dos mecanismos de desenvolvimento desigual a que foi submetido esse conjunto da população
nacional.

Democracia racial: o mito, o desejo, a história


A construção diferenciada da cidadania no Brasil aconteceu, como na maioria dos países,
desde o início da sua história. O encontro entre colonizadores e colonizados sempre se deu com
referência em relações hierarquizadas, com a imposição do padrão civilizatório daqueles que
ocupam o território e subordinam os povos locais. Outros povos introduzidos em tal contexto,
sejam quais forem as suas origens, seja qual for o processo de inclusão no conjunto social —
imigração livre ou planejada, escravidão etc. — tendem, quase sem exceção na história da
humanidade, a ser forçados a ocupar espaços hierarquicamente inferiores. De acordo com os
conceitos contemporâneos diremos que não têm seus direitos de cidadãos assegurados ou vivem
em estado de cidadania parcial.
Assim foi quando os portugueses chegaram ao Brasil e impuseram seu modelo de colonização
aos povos indígenas e, depois, introduziram o sistema escravista como modo de produção e de
organização social.
Mais de trezentos anos de escravidão, do século XVI até o final do século XIX, como instituição
legal, social e econômica, que determinou o estilo de vida do Brasil colônia e depois até um ano
antes da República, representam uma realidade fundamental para se compreender as desigualdades
raciais no país e o aprofundamento da hierarquização dos direitos e da própria definição de huma-
nidade, do humano associado a direitos e das escalas de valor social da pessoa atribuídas na nação.
Responsável pelo maior translado humano da história, de várias partes de um continente para um
só país — entre 5 e 3,6 milhões de africanos foram importados para o Brasil — a escravidão gestou
estruturas, relações sociais e econômicas, valores e conceitos, visão de mundo que inclui visão de
Estado, que tinha por meta sua permanência, sobrevivência e sobrevida, e a manutenção dos pri-
vilégios, também estratificados, resultantes.
O escravo, para que a perversidade da escravidão se justificasse, não era considerado um ser
totalmente humano por nenhuma das instituições, inclusive a igreja. Os afrodescendentes resultan-

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tes da miscegenação, na sua maioria filhos de relações destinadas a manter o sistema escravista. As
práticas culturais e religiosas, a visão de mundo desse conjunto humano, mesmo se integrados ao
modo de ser nacional, após mais de 350 anos de convivência cultural, assim como sua força de
trabalho, responsável pelo desenvolvimento da economia local, foram continuamente desqualifica-
dos. A aparência física dos negros, exceto quando se tratava de servir sexualmente os senhores, foi
associada à dos animais e esteticamente desagradável ou inferior. Seu corpo era para o trabalho e
sua força utilizada como a dos animais.
Se o movimento abolicionista foi longo, heterogêneo e, por fim vitorioso, a República surgiu
como reação ao fim absoluto da escravidão, apesar do engajamento de lideranças negras no mo-
vimento republicano.
A urbanização e a industrialização do século XX introduziram tensões graves no sistema
de hierarquia racial, mas não potencializaram as possibilidades dos afro-brasileiros para
competir em condições iguais por habitação, saúde, educação, empregos e salário.
Principalmente a partir da promoção, pelo Estado, da imigração italiana subvencionada, e da
substituição da mão de obra negra pela imigrante, da criação de status superior de cidadania para
os imigrantes recém chegados em relação aos negros — também excluídos do sistema de educação
formal — , das promessas do Estado de embranquecer a nação, da participação periférica dos afro-
-brasileiros no processo de industrialização, da fraca representatividade política, da desqualificação
de suas referências culturais, estruturou-se o que pode ser chamado o sistema de exclusão racial
informal. O desejo, a quase que necessidade brasileira de ser uma democracia racial confundiu-se
com o mito desmobilizador longamente cultivado.

A população negra, a cultura e o Estado — perspectivas


para o próximo milênio
Cerca de 44,2% da população brasileira é composta por afro-brasileiros. As desigualdades
históricas produzidas pelos mais de três séculos e meio de escravidão, aprofundadas pela falta de
políticas para a inclusão do negro brasileiro no processo de desenvolvimento durante os anos do
período pós-abolição, fazem com que esse grupo ocupe as posições inferiores da pirâmide social,
vivenciando profundas desvantagens no mercado de trabalho e no sistema educacional.
A cultura do Estado está sendo modificada para se tornar representativa da pluralidade nacio-
nal e para eliminar os mecanismos discriminatórios.
Em 1995 foi criado, pelo presidente da república, o Grupo Interministerial para a Valorização
da População Negra, sediado no Ministério da Justiça, integrado por representantes de ministérios
estratégicos e por pessoas do movimento social negro, com a tarefa de formular políticas para a
superação das desigualdades raciais. As ações de políticas públicas e parcerias com órgãos esta-
duais e governamentais foram potencializadas.
O reconhecimento da importância da cultura negra no dia a dia nacional e de suas dinâmicas
positivas como modelo civilizatório deixam pouco a pouco de ser caricaturadas. Sua essência mu-
sical, sua capacidade de transformar condições adversas em fatores de desenvolvimento humano e
alegria, sua estética rica em diversidade, sua religiosidade inclusiva passam a operar no conjunto da
nação como elementos positivos da diversidade.
O sistema de valores culturais do Estado, ao incluir a história do negro, tem se transformado.
O conjunto de órgãos do governo federal passou a atuar de forma a valorizar nossa diversidade
e a expressar em seus programas e na sua comunicação essa nova determinação do governo, que
representa importante referência para a nação.
Criou-se no país um clima favorável ao desenvolvimento de iniciativas nas áreas empresa-
riais, acadêmicas e científicas, na mídia e nas artes para a expressão da história e da produção
dos negros, rompendo-se assim a invisibilidade perversa a que eram submetidos.

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O conceito de nacionalidade passou a ser inclusivo . As mudanças têm exigido novas e rápidas
ações do governo para que a realidade de desigualdade econômica seja transformada pela mate-
rialização de oportunidades iguais, o que demanda tempo, após tantos anos de tratamento super-
ficial e equivocado dos efeitos e das formas de manifestação do racismo em nosso país.
As mudanças objetivas e subjetivas, culturais e econômicas para assegurar ao negro plenas
oportunidades, cidadania plena têm ampliado o conceito de direitos humanos.
A Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, responsável pelas
políticas culturais para a inclusão da população negra no processo de desenvolvimento, realizou
uma análise profunda sobre as relações sociais no país, suas dinâmicas, a indústria cultural, a pre-
servação dos bens culturais e a tutela das diferenças entre as culturas nacionais. Foi possível diag-
nosticar a necessidade da reformulação dos instrumentos de promoção nacional da cultura e de
acesso dos promotores culturais afro-brasileiros aos recursos para a cultura e aos meios de comu-
nicação social, e de potencialização e valorização no mercado das atuais atividades culturais dos
negros, quer da área urbana, quer da área rural.
As ações na área da cultura passaram a incluir mudanças na cultura do Estado, cultura do
governo, cultura econômica e cultura de desenvolvimento.
Como marco simbólico dessa nova postura histórica está sendo construído um espaço físico
de grande dimensão para a aglutinação e difusão da cultura negra, antiga reivindicação dos movi-
mentos negros, da população acadêmica e dos educadores. Trata-se do Centro Nacional de Infor-
mação e Rerefência da Cultura Negra, que integra as ações da Fundação Cultural Palmares no marco
do V Centenário do Descobrimento do Brasil e inclui bancos de dados, imagem e som para coletar
e difundir dados sobre a história e cultura dos povos negros. Como parte do projeto está sendo
realizada a coleta e a recuperação de documentos históricos no Brasil e no exterior. A partir de ações
do Ministério das Relações Exteriores, vários governos têm apoiado o trabalho dos pesquisadores
brasileiros e estrangeiros envolvidos. Está sendo realizado o mapeamento, a sistematização e a di-
fusão da produção cultural afro-brasileira.
Estão sendo financiadas de forma direta, ou viabilizadas através das leis de incentivo, obras de
produtores culturais negros, de modo que sua participação no mercado cultural nacional e interna-
cional seja potencializada.
O governo está investindo, em parceria com entidades do movimento negro, na sensibilização
de órgãos, empresas e pessoas financiadores de cultura para que invistam nos projetos de artistas
afro-brasileiros através do mecenato.
Estão sendo financiados projetos de capacitação e requalificação, para o aprimoramento de
produtores culturais negros nas várias áreas das artes e gestão cultural, em regiões urbanas e rurais,
e para a consolidação de uma dramaturgia afro-brasileira e de uma dramaturgia multicultural.
Pela primeira vez as comunidades remanescentes de quilombos, descendentes de escravos que
resistiram de forma coletiva à escravidão e que habitam sobretudo no meio rural, estão sendo re-
conhecidas pelo Estado como territórios culturais, sendo mapeadas, tendo suas terras demarcadas
e recebendo os títulos a que têm direito. Já foram oficialmente identificadas 511 pelo governo fe-
deral, demarcadas 55 e tituladas 4 delas.
Estão sendo implantados projetos de intercâmbio com países africanos e outros onde o tema
do multiculturalismo seja relevante de forma a se ampliar conceitos dos aspectos positivos da diver-
sidade e consolidar a participação de artistas e produtores culturais afro-brasileiros nos novos
mercados internacionais.
Uma importante referência da mudança da cultura do próprio Estado refere-se à publicidade
governamental que, apenas neste final de século, passou a incluir negros de forma qualificada. Os
vários grupos humanos que integram a nação são finalmente representados, segundo conceitos de
valorização da diversidade. O reconhecimento de que as mudanças exigem explicitação da vontade
política faz com que a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República tenha como
uma de suas orientações básicas evitar quaisquer atos discriminatórios nas ações de publicidade,
no âmbito dos órgãos, entidades e sociedades controladas pelo Poder Executivo Federal.

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172  S o c i e d a d e , e d u c a ç ã o e c u lt u r a

A cultura da educação passa por mudanças profundas que se materializam, sobretudo, na


redefinição dos parâmetros curriculares com a inclusão da história do negro e combate a todas as
formas de discriminação no livro didático e no ambiente escolar, com a finalidade de se educar a
partir de conceitos multiculturais. Outras áreas têm sido impulsionadas de forma dinâmica, como a
saúde, que sempre desconsiderou as especificidades dos afrodescendentes, entretanto, em 1995,
foi criado o Programa Nacional de Saúde da População Negra.
O acesso dos afro-brasileiros ao sistema formal de ensino, ao mercado de trabalho, aos espaços
de representação política e de exercício do gerenciamento de órgãos do Estado representam hoje
metas importantes a serem atingidas.
A estabilização da economia vivenciada pelo país permite, de forma mais objetiva, através
da análise dos indicativos socioeconômicos, a conclusão de que o crescimento da economia
precisa considerar as desigualdades históricas de gênero e étnicas, para que se materialize em
crescimento nacional. Por isso, se outrora havia o medo atrasado (gestado na escravidão) de que
o tratamento das desigualdades raciais poderia ser um fator de fragmentação nacional, hoje há
a compreensão de que nossa consolidação como nação emergente depende da criação de mo-
bilidade para os negros, segmento humano que representa uma parcela extremamente significa-
tiva da população e que, imobilizado pelas desigualdades deixa de produzir e consumir riqueza.
Ainda, a compreensão de que o multiculturalismo representa riqueza social apenas quando
seus atores, os seres diversos, têm condições e direitos plenos para exprimir sua própria capacidade
criativa, sendo condutores parceiros do destino da nação, representa um aprendizado novo para as
instituições brasileiras.
Há muito o que fazer, mas muitas têm sido as vitórias à medida que o governo e seus agen-
tes respeitam o vigor e a responsabilidade histórica dos movimentos sociais negros e suas lide-
ranças, ao contrário de submetê-los ao assassinato político, tão frequentemente praticado na
história da humanidade.
O lamento negro pode, na terra Brasilis, ser o canto nostálgico do longo e sofrido caminhar
histórico, introdutório do som vitorioso dos tambores que cele-bram o processo democrático dinâ-
mico, de construção digna da igualdade, sem mitos, mas a partir dos esforços solidários.

Dulce Maria Pereira


Arquiteta, documentarista, presidenta da Fundação Cultural Palmares/MinC; membro do
Inter-American Dialogue e conselheira do Programa de Apoio à Liderança e Representação
Feminina do BID

Questões para reflexão


O texto no link abaixo demonstra como a classe menos favorecida dificilmente é
incluída nas relações sociais. Será que, nesse sentido, podemos fazer uma relação
com o pensamento de Florestan Fernandes?
<www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1006200725.htm>.

3.3 A formação do professor e a leitura da sociedade


Como discutimos em todo o texto a questão do ensino como elemento essencial para a
formação dos sujeitos e da sociedade acredito ser significativa à discussão sobre as especifi‑

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cidades do trabalho do professor. Um autor que trabalho essas questões é Wanderlei Codo em
seu livro Educação, carinho e trabalho (2000), que discute como é importante compreender
o trabalho do professor dentro de suas múltiplas facetas. Para isso precisamos apreender e
compreender o trabalho docente ultrapassando a barreira do empírico, viabilizando o enten‑
dimento do fenômeno através de seus elementos constitutivos, evidenciando a qualidade da
sua essência (MARX, 1985), ou seja, buscar compreender o que está para além da figura de
um professor de jaleco branco em frente ao quadro-negro.
Uma primeira especificidade do trabalho do professor diz respeito ao produto do seu
trabalho. Segundo Codo (2000), o produto do trabalho do professor é a formação de outra
pessoa, ou seja, o aluno educado.
A diferença está na qualidade do vínculo que o trabalhador necessitou
estabelecer com seu produto para que a atividade se realize. Num caso,
a atividade de trabalho tem que se objetivar em um sujeito, o uno; no
outro, num objeto. No primeiro caso, o trabalhador precisa entrar em
um certo acordo, negociar, para poder desenvolver sua atividade, no
segundo ele não tem na sua frente ‘um outro’, mas um objeto sobre o
qual imprime sua atividade (CODO, 2000, p. 45).

A especificidade do trabalho do professor se efetiva quase sem a mediação de aspectos


exteriores, pois sua ação objetiva transformar o outro, através do outro mesmo. Para entender‑
mos melhor essa concepção, demonstramos a seguir, a diferença entre o trabalho do professor
e o da maioria dos trabalhadores (CODO, 2000, p. 45).
O segundo aspecto particular é que o saber e o saber-fazer estão especificamente rela‑
cionados ao professor, e são as condições centrais para o desenvolvimento do seu trabalho,
embora determinados pelas condições econômicas, políticas, sociais e culturais. Portanto,
há determinações internas e externas ao exercício profissional, e o professor faz a mediação
entre essas determinações na sua prática profissional. A diferença da atuação do professor,
comparada a outros trabalhadores assalariados, está em se objetivar, através do seu trabalho,
em um outro sujeito, o aluno em seu processo de formação.
O saber e o saber-fazer estão nas mãos do professor, condição principal
de sua atividade de trabalho. Por isso, o planejamento de seu trabalho,
as etapas a serem seguidas no processo de ensino-aprendizagem,são
por ele decididos,o ritmo imposto ao seu trabalho não escapa com‑
pletamente do seu controle,embora existam prescrições externas, às
quais ele poderá, por diferentes motivos, resistir (CODO, 2000, p. 47).

Nesse sentido, para o professor, o produto de seu trabalho é o outro e o meio para a sua
realização são as condições de ensino criadas por ele mesmo, ocorridas numa relação social
professor-aluno, que é repleta e permeada das histórias de ambos os sujeitos que fazem parte
do contexto, contendo nessas histórias componentes subjetivos, mas que se mesclam com as
condições de trabalho desse exercício profissional.
Ressalte-se que essa relação direta e imediata do professor com o outro é permeada pelo
vínculo afetivo, considerado um terceiro aspecto essencial do trabalho docente. O vínculo
afetivo é aqui entendido como uma relação de compromisso, de respeito às potencialidades e
aos limites do outro, de condução ética do trabalho de ensinar. Esses aspectos foram banidos
do trabalho de forma geral, pela organização taylorista-fordista, que propunha uma divisão
rígida das tarefas, onde nos espaços de trabalho estipulava-se unicamente a racionalidade
tecnicista e a burocracia.
Se essa relação afetiva com os alunos não se estabelece, se os movi‑
mentos são bruscos e os passos fora do ritmo, é ilusório querer que
o sucesso do educar seja completo. Se os alunos não se envolvem,
poderá até ocorrer algum tipo de fixação de conteúdos, mas certa‑
mente não haverá nenhum tipo de aprendizagem significativa; nada

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que contribua para a formação destes no sentido de preparação para


a vida futura, deixando o processo ensino-aprendizagem com sérias
lacunas (CODO, 2000, p. 50).

O que vocês acham da questão do vínculo afetivo entre professor e aluno? Vocês acham
essencial? Por quê? Vamos utilizar o nosso?
Dentre outras coisas, devemos recuperar o papel ético e político do professor e da escola
dentro do processo educativo dos seus alunos, desenvolvendo o que chamamos de crítica
transformadora. Nesse sentido, o professor deve mobilizar-se coletivamente (escola, comu‑
nidade, alunos, familiares) no intuito de contribuir para uma reordenação da discussão sobre
a cultura e suas implicações na formação do homem, possibilitando o rompimento de uma
ideologia cultural fundada no preconceito e na desigualdade entre os grupos sociais presente
em nossa sociedade.
Segundo Giroux (1997, p. 163), essa prática transformadora só se efetiva mediante o seguinte
aspecto: tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico.
“Tornar o pedagógico mais político significa inserir a escolarização di‑
retamente na esfera política, onde a reflexão e ações críticas tornem-se
parte do projeto social fundamental de ajudar os estudantes a desen‑
volverem uma fé profunda e duradoura na luta para superar injustiças
econômicas, políticas e sociais, e humanizem-se mais como parte
desta luta. Apesar de parecer uma tarefa difícil para os educadores,
essa é uma luta que vale a pena travar. Proceder de outra maneira é
negar aos educadores a chance de assumirem o papel de intelectuais
transformadores”.

Não estamos sugerindo, aqui, que esse processo


de mudança seja fácil e imediato. Então, para isso,
Links proponho dois caminhos distintos: o da neutralidade, o
da subsunção das imposições da sociedade capitalista e
Um texto superinteressante de sua relação com a cultura e o da crítica transformadora.
O primeiro caminho é aquele em que os profes‑
uma pesquisa realizada sobre a
sores se colocam como neutros a todas as possíveis
leitura dos professores sobre a di- transformações do sistema educativo e cultural, inde‑
versidade cultural dos alunos está pendentemente das forças que se fazem presentes em
disponibilizado no site: <www. um determinado momento. Os professores que assim
atuam mantêm a prática tradicional de ensino efetuando
scielo.br/scielo.php?pid=S0101 ações rotineiras e burocratizadas. Esses professores in‑
73302001000400010&script=sci_ ternalizam a prerrogativa de que tudo continua como
arttext&tlng=es>. está independente da conjuntura social vivida e modi‑
ficada pela sociedade. Continuam a reproduzir o seu
O texto intitula-se Universos cul- trabalho, pautados no que acham viável e necessário
turais e representações docen- para o aluno, respaldados pelo senso comum.
tes: subsídios para a formação O segundo caminho diz respeito à resistência em
de professores para a diversi- aceitar a realidade cultural existente. Esses professores
resistem, através da sua prática, buscando propostas
dade cultural, de Ana Canen. inovadoras para seus alunos, buscando dar prioridade
à natureza transformadora da educação, e não simples‑
mente reprodução do sistema pela escola. Devemos
voltar nossa prática à possibilidade de estabelecer uma universalização do direito e da cidada‑
nia, capaz de propiciar o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos e conduzi-los
ao desabrochar de uma nova visão de mundo. É justamente essa condução que poderá criar
condições favoráveis à crítica transformadora.

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Sendo assim, para que o trabalho do professor se torne significativo para o aluno e para
a sociedade como um todo, não pode se efetivar, simplesmente aceitando passivamente as
determinações e as influências da sociedade capitalista, mas para que isso ocorra é necessário
que os professores consigam manter o espaço da escola como um espaço aberto à crítica e a
resistência, tal como historicamente tem sido construído pelos professores brasileiros.
O caminho da crítica transformadora promove condições mais efetivas para garantir a auto‑
nomia do professor, para trazer uma possibilidade de revalorização do seu trabalho e de efetivar
a sua especificidade em um conjunto complexo de relações sociais. Nessa linha, o produto do
seu trabalho — o aluno educado — contribuirá para a valorização das potencialidades tanto
do aluno quanto da sociedade, na direção da reconstrução permanente da sua cidadania.
Ora, resgatar essa função da escola e do professor é possibilitar à sociedade uma abertura
ao diálogo e a possíveis transformações. Sendo assim, torna-se essencial compreendermos que
nossa sociedade é repleta de especificidades, possibilitando a abertura para que o preconceito
instituído socialmente dê lugar à valorização da diversidade cultural por ser diferença. Com
certeza essa é uma luta que vale a pena travar. Vamos a ela?

Para concluir o estudo da unidade


Vimos a importância do professor para a formação da cultura. Sabemos que
o processo é longo e cheio de obstáculos. Torna-se necessário o estabelecimento
de processos de trabalho que valorizem a escola como um espaço repleto de
especificidades.

Resumo
A ação docente é uma atividade cheia de significados. Torna-se essencial
discutirmos o trabalho do professor e a cultura, sendo que a escola é um lócus
das representações culturais de nossa sociedade. Sendo assim, a discussão sobre
a cultura e a diversidade cultural é essencial.

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Atividades de aprendizagem
1. Por que discutir a importância da diversidade cultural dentro da escola?
2. Qual a leitura que Florestan Fernandes realiza da sociedade capitalista?
3. Qual o sentido do termo “homem cordial” trabalhado por Sérgio Buarque de
Hollanda?
4. Explique a democracia racial na leitura de Gilberto Freyre.
5. Quais os períodos da sociologia brasileira, segundo Octavio Ianni?

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Anotações
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