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A FUNÇÃO DA ESCOLA NA

CONTRUÇÃO DE VALORES
SÓCIO MORAIS
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_________________________________________________________Sumário

Aula 01 – Escola, Democracia e a Construção de Personalidades Morais


Aula 02 – Educação Moral na Escola: Caminho para a Construção da Cidadania
Aula 03 – Práticas de Cidadania na Escola e na Sala de aula
Aula 04 – Dimensão Pedagógica
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___________________________________________________Plano de Curso
EMENTA
O conhecimento e a Construção de valores. Família e escola: algumas
indagações. A orientação educacional frente à indisciplina. O que é ética?. A revisão
da função da escola e a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Objetivos
gerais de ética para o ensino fundamental. Orientações didáticas.
REFERÊNCIAS BÁSICA
ARAÚJO, U. F. Moralidade e indisciplina: uma leitura possível a partir do
referencial piagetiano. In. AQUINO, J. (Org.) Indisciplina na escola: alternativas teóricas
e práticas. São Paulo: Summus, 1996.
BUXARRAIS, M. R. La formación del profesorado en educación en valores:
propuesta y materiais. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1997.
FREITAG, B. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. São Paulo:
Papirus, 1992.
__________. Razão teórica e razão prática: Kant e Piaget. Revista Ande, 1990,
no. 19.
GERALDE, D. R. Escola: espaço para a construção da cidadania? Assis, 1999.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista.
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural,
1974.
LASCH, C. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
LA TAILLE, Y. A educação moral: Kant e Piaget. In. MACEDO, L. (Org.). Cinco
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LA TAILLE, Y. Limites: três dimensões educacionais. São Paulo: Ática, 1998.
LEPRE, R. M. Desenvolvimento moral e indisciplina na escola. Revista Nuances,
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MARTÍN, M. M. El contrato moral del profesorado: condiciones para una nueva
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MENIN, M. S. S. Autonomia e Heteronomia às regras escolares: observações e


entrevistas na escola. São Paulo, 1985. Dissertação (Mestrado em Psicologia Escolar)
– Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
________. Desenvolvimento Moral. In. MACEDO, L. (Org.). Cinco estudos de
Educação Moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
PIAGET, J. O juízo moral na criança (1932). São Paulo: Summus, 1994.
_________. A educação da liberdade (1945). In. Sobre a Pedagogia. Textos
Inéditos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
_________. É possível uma educação para a paz? (1934) In. Sobre a
Pedagogia. Textos Inéditos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
_________. O espírito de solidariedade e a colaboração internacional (1931). In.
Sobre a Pedagogia. Textos Inéditos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
_________. Observações psicológicas sobre o self-government (1934). In. Sobre
a Pedagogia. Textos Inéditos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
_________. Os procedimentos de Educação Moral. (1930) In. MACEDO, L.
Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
_________. Para onde vai a educação? (1948). Rio de Janeiro: J. Olympio,
1973.

PUIG, J. M. (a) A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998.


_________. (b) Ética e valores: métodos para um ensino transversal. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 1998.
ARAÚJO, Ulisses F. Um estudo da relação entre o “ambiente cooperativo” e o
julgamento moral na criança. Dissertação de Mestrado, Campinas,
FE/UNICAMP, 1993.
__________ . O ambiente escolar e o desenvolvimento do Juízo moral Infantil. ln:
MACEDO, L. et al. Cinco Estudos de Educação Moral. São Paulo: Editora Casa do
Psicólogo, 1996.
____________ . Conto de escola: a vergonha como um regulador moral. São
Paulo: Editora Moderna e Editora da Unicamp, 1999a. Revista Educação e Pesquisa
(FEUSP), vol.26, n.2, pp.91-107 25
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__________. Respeito e Autoridade na escola. In: AQUINO, J. (org). Autoridade


e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1999b.
____________. O ambiente escolar cooperativo e a construção do juízo moral
infantil: sete anos de estudo longitudinal. Revista Online Biblioteca Prof. Joel Martins,
SP, vol.2, n.2, p.1-12, fev.2001.
__________ . A construção de escolas democráticas: histórias sobre
complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna, 2001, no prelo.
ARAÚJO, U. F. & AQUINO, J. G. Os direitos humanos na sala de aula: a ética
como tema transversal. São Paulo: Moderna, 2001.
BOVET, Pierre. Le sentiment religieux et la psychologie de l’enfant. Neuchatel:
Delachaux & Niestlé, 1925.
HARKOT-DE-LA-TAILLE, E. Ensaio semiótico sobre a vergonha. São Paulo:
Humanitas, 1999.
MACHADO, N. Cidadania e Educação. São Paulo: Escrituras, 1997.
MORENO, Montserrat . Temas transversais: um ensino voltado para o futuro. In:
BUSQUETS, M.D. et al. Temas transversais em educação. São Paulo: Ática, 1997.
MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 1998.
PIAGET, Jean. Intelligence and affectivity: their relationship during child
development . Annual Reviews, Palo Alto-CA , 1954 (ed.USA, 1981).
____________. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial 1932.
PUIG, Josep. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998a.
__________ . Ética e Valores: métodos para um ensino transversal. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 1998a.
REFERÊNCIAS COMPLEMENTAR
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- BENEVIDES, Maria Victória. A Cidadania Ativa, São Paulo, Ática, 1991.
- BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
_________ A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
-BRASIL, Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal,
1998.
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-BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais – Introdução. Brasília, Ministério d


Educação-MEC/SEEF, 1997.
-BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE, Índice dos
Indicadores Sociais, 1999.
-BRASIL. Programa Nacional do Livro Didático. Brasília: Ministério da Educação,
1996.
-BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da
Justiça, 1996.
-CANDAU, Vera et alii. Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes 1995.
________, Sou Criança: tenho direitos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
-CARDIA, Nancy. Direitos Humanos e Cidadania. In: Os Direitos Humanos no
Brasil, 95. Universidade de São Paulo, São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência,
1996.
-COMPARATO, Fábio. Para Viver a Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989.
-GADOTI, Moacir e ROMÃO, José E. (org.). Autonomia da Escola: princípios e
propostas. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 1997.
-MEDIANO, Zélia. Novas Perspectivas Para O Trabalho na Escola. In: Cadernos
Novamerica, n º 02, Rio de Janeiro: Novamerica, 1999.
-NUNES LEAL, Victor. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Forense, 1949.
-ROMÃO, José e PADILHA, Paulo. Planejamento Socializado Ascendente na
Escola. In: GADOTI, Moacir e ROMÃO, José E. (org.). Autonomia da Escola: princípios
e propostas. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 1997.
-SILVA, Aida, M. M. Escola Pública e a Construção da Cidadania: possibilidade e
limites. Faculdade de Educação da USP- São Paulo, Tese de Doutorado, 2000.
- SILVA, Mª Alice S. S. et alii. A Escola como Foco de Análise: um estudo de 16
unidades escolares. In: Cadernos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas. nº 95, 1995.
-THURLHER, Monica G. Levar os Professores a uma Construção Activa da
Mudança: para uma nova concepção da gestão da inovação. In: PERRENOUD,
Philippe et alii. A Escola e a Mudança, Lisboa, Escolar Editora, 1994.
6

-WEFFORT, Francisco. Qual Democracia? São Paulo, Companhia das Letras,


1992.
-PERRENOUD, Philippe; THURLER, Mônica Gather. A Escola e a Mudança.
Lisboa, Escolar Editora, 1994.
-PINHEIRO, Paulo Sérgio et alii. Primeiro Relatório de Direitos Humanos:
realizações e desafios. São Paulo: Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da
Violência, 1999.
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_____________________________________________________Apresentação
Cabe à escola formar cidadãos críticos, reflexivos, autônomos, conscientes de
seus direitos e deveres, capazes de compreender a realidade em que vivem
preparados para participar da vida econômica, social e política do país e aptos a
contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. A função básica da escola é
garantir a aprendizagem de conhecimentos, habilidades e valores necessários à
socialização do indivíduo.
Estas aprendizagens devem constituir-se em instrumentos para que o aluno
compreenda melhor a realidade que o cerca, favorecendo sua participação em relações
sociais cada vez mais amplas, possibilitando a leitura e interpretação das mensagens e
informações que hoje são amplamente veiculadas, preparando-o para a inserção no
mundo do trabalho e para a intervenção crítica e consciente na vida pública.
É necessário que a escola propicie o domínio dos conteúdos culturais básicos,
da leitura e da escrita, das ciências, das artes, das letras. Sem estas aprendizagens,
dificilmente ele poderá exercer seus direitos de cidadania. A escola, portanto, tem o
compromisso social de ir além da simples transmissão do conhecimento sistematizado,
preocupando-se em dotar o aluno da capacidade de buscar informações segundo as
exigências de seu campo profissional ou de acordo com as necessidades de
desenvolvimento individual e social.
Precisamos preparar nossos alunos para uma aprendizagem permanente, que
tenha continuidade mesmo após o término de sua vida escolar. Isto significa que em
sala de aula devemos estar preocupados em desenvolver determinadas habilidades
intelectuais sem as quais o aluno nunca será capaz de uma aprendizagem autônoma. É
necessário a cada momento fazer o aluno pensar, refletir, analisar, sintetizar, criticar,
criar, classificar, tirar conclusões, estabelecer relações, argumentar, avaliar, justificar,
etc. Para isto é preciso que os professores trabalhem com metodologias participativas,
desafiadoras, problematizando os conteúdos e estimulando o aluno a pensar, a
formular hipóteses, a descobrir, a falar, a questionar, a colocar suas opiniões, suas
divergências e dúvidas, a trocar informações com o grupo de colegas, defendendo e
argumentando seus pontos de vistas. Um aspecto importante a ser considerado no que
se refere à formação da cidadania diz respeito à formação de determinados valores,
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atitudes e compromissos indispensáveis à vivência numa sociedade democrática, tais


como solidariedade, cooperação, responsabilidade, respeito às diferenças culturais,
étnicas e de sexo, repúdio a qualquer forma de discriminação e preconceito. É função
social de a escola propiciar a formação destes valores. Entretanto, valores não podem
ser ensinados, mas devem ser vivenciados. É preciso que a escola e o próprio
professor dêem testemunho daqueles valores que direcionam sua ação, fazendo da
escola um ambiente de vivência de valores democráticos.
Quando analisamos o debate que tem se processado em torno deste tema
observamos que três aspectos têm se destacado. O primeiro diz respeito à gestão da
escola. Para muitas pessoas, democratizar a escola diz respeito apenas à
democratização dos processos administrativos. Isto significa, por exemplo, requerer que
os diretores de escola, sejam eleitos através de formas participativas. Por outro lado
prega-se a administração colegiada, que nos últimos anos vem sendo instalada em
muitas escolas.
Cada vez mais fica claro que a escola deve abrir-se à participação de todos os
segmentos que constituem a comunidade escolar, para que estes tenham voz e voto e
sejam capazes de contribuir nas discussões que irão levar à tomada de decisões. Um
segundo aspecto da democratização, refere-se à concepção de que para se
democratizar a escola há que se democratizar a sua oferta. Isto significa que a escola
deve universalizar a sua capacidade de responder às demandas, isto é, enquanto
houver criança sem acesso à educação formal por falta de vagas, não podemos falar
que temos uma escola democrática. Ainda relacionado a este aspecto está a questão
de garantir a permanência do aluno na escola. Não basta apenas criar vagas para
todos. Dados estatísticos revelam que de cada 100 crianças matriculadas no primeiro
ano, apenas 33 concluem o primeiro grau, e destas apenas 05 chegam ao 8ª ano sem
repetência. A cada ano, milhares de crianças e adolescentes abandonam a escola sem
ter concluído o ensino fundamental.
O que é feito delas? Podemos chamar de democrática uma escola que exclui
tantos alunos? Ao manter estes mecanismos de seletividade a escola passa a servir
como instrumento de reforço às desigualdades sociais. Portanto, além de criar vagas
para todas as crianças em idade escolar, é preciso pensar formas de garantir sua
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permanência na escola. Um terceiro aspecto que tem sido considerado na discussão


sobre a escola democrática diz respeito à sala de aula, à democratização do processo
pedagógico, da relação professor/aluno, aluno/aluno, aluno/conhecimento. Diz respeito
também à utilização de metodologias participativas, centradas não na atividade do
professor, mas no trabalho do aluno. Aqui também se deve considerar a flexibilidade
dos planos e currículos, de modo a contemplar interesses emergentes.
E também não pode ficar de fora a discussão sobre um processo democrático de
avaliação da aprendizagem, preocupado não apenas em constatar as deficiências do
aluno para decidir se ele será aprovado ou não, mas uma avaliação diagnosticadora,
interessada em saber o que o aluno não aprendeu e por que não aprendeu, com o
objetivo de que sejam tomadas decisões que permitam a ele apropriar-se do
conhecimento.A discussão sobre a escola democrática certamente não se esgota
nestes pontos, no entanto estes aspectos têm centralizado os debates travados em
torno desta importante questão. Finalizando, deve-se dizer que a construção de uma
escola competente, democrática e de qualidade é uma exigência social.
De um lado somos responsáveis por sua construção, por outro lado, quando se
trata da escola pública, não podemos imaginar que será possível concretizar este
projeto de escola sem a decisão política dos órgãos governamentais. Sozinha, a escola
não pode cumprir com sua tarefa social, até porque ela não existe isolada do contexto.
Efetivamente o poder público vem elaborando uma política educacional clara, com
objetivos bem definidos, cujo foco central é o atendimento escolar de boa qualidade.
Faz-se agora necessário que a sociedade civil acompanhe controle e fiscalize as
medidas que serão implementadas, exigindo do Estado o cumprimento dos dispositivos
legais, pressionando para que seja garantida a infra-estrutura indispensável ao bom
funcionamento das instituições de ensino.
Ione campos Freitas

Bom estudo a todos


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__________________________________________________________Aula 01
Escola, Democracia e a Construção de Personalidades Morais

DEMOCRACIA, CIDADANIA E EDUCAÇÃO

Discorrer sobre as relações entre democracia, cidadania e educação só é


possível se pensarmos de maneira complexa. Não dá para refletir sobre tais fenômenos
a partir do pensamento simplificante. Uma questão que sempre me intrigou é o
emprego bastante difundido da palavra democracia no âmbito educacional. Se a origem
e uso do termo tradicionalmente referem-se a "forma de governo", ou a "governo da
maioria", será que uma escola democrática é aquela em que sua forma de organização
está pautada no princípio de que deve ser governada pelos interesses da maioria, que
são os alunos e as alunas? Existem exemplos no transcorrer da história que
demonstram os problemas que propostas desta natureza acarretam para a organização
e para o funcionamento de instituições escolares, e para se atingir as finalidades
educativas das escolas.

Puig (2000), em um primeiro momento, nos lembra que, embora o termo


democracia seja útil para definir um modelo desejável de relações políticas na
sociedade, ele é inadequado para caracterizar instituições como a família, a escola e os
hospitais. Isto porque tais instituições sociais são constituídas por agentes que
possuem interesses e status diferentes. De acordo com ele,
"Essas instituições foram pensadas para satisfazer algumas
necessidades humanas que, de maneira inevitável, implicam a
ação de sujeitos com capacidades, papéis e responsabilidades
muito diferentes. São alheios à idéia de participação igualitária. Os
pais e as mães têm um papel assimétrico com respeito aos filhos
e às filhas, da mesma maneira que os professores e as
professoras o têm com respeito aos seus alunos e às suas alunas,
ou os médicos e às médicas com respeito aos seus pacientes e às
suas pacientes. É nesse sentido que dissemos que para essas
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instituições não serve o qualificativo de democráticas, pois não


são horizontais nem igualitárias"(2000,p.25).
Isso não significa, de fato, que para Puig as instituições escolares não possam
ser vistas como democráticas. Nesse mesmo livro, mais adiante, o autor demonstra que
pode haver escolas democráticas, desde que se consiga um equilíbrio no jogo entre a
assimetria funcional das relações e da simetria democrática dos princípios que devem
reger as instituições sociais.
Esta assimetria dos papéis de estudantes e docentes nas relações escolares,
assim como nas relações familiares e no âmbito médico, calcada na diferenciação de
conhecimentos e experiência, aponta problemas na compreensão de como a idéia de
democracia se apresenta em tais instituições.
Precisamos ter clareza de tais concepções e cuidado na sua interpretação. Será
que este paradoxo pode servir de justificativa para o estabelecimento de relações
autoritárias no âmbito de tais instituições sociais?
Essa parece ser uma boa justificativa para a forma tradicional com que pais e
mães, professores e professoras, médicos e médicas se relacionam com aquelas
pessoas que lhes são subordinadas. Será que o autoritarismo que permeia, em geral,
as relações nessas instituições se justifica em sociedades que almejam a democracia?
É melhor termos cuidado com tais conclusões, que podem ser nefastas para a real
democratização da sociedade.
Começo a discussão lembrando outro princípio inerente ao conceito de justiça e,
consequentemente, de democracia: a equidade, que reconhece o princípio da diferença
dentro da igualdade. Se pensamos a democracia somente a partir do ideal de
igualdade, acabamos por destruir a liberdade. Se todos forem concebidos como iguais,
onde ficará o direito democrático da diferença, a possibilidade de se pensar de maneira
diferente e de ser diferente?
Por isso, hoje se compreende que os regimes que tentaram buscar os ideais da
democracia a partir da igualdade pura, como o comunismo, terminaram por se constituir
em sistemas políticos absolutistas e autoritários. Para que o modelo de democracia seja
justo e almeje a liberdade individual e coletiva é necessário que a igualdade e a
equidade sejam compreendidas como complementares. Ao mesmo tempo que a
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igualdade de direitos e deveres deve ser objetivada nas instituições sociais, não deve-
se perder de vista o direito e o respeito à diversidade, ao pensamento divergente.
Voltando à escola, esta concepção de que a democracia e a justiça pressupõem
a igualdade e a equidade, nos ajuda a compreender como a democracia pode ser
concebida no âmbito educacional. Ou seja, parte-se, em primeiro lugar, da assimetria
dos papéis de estudantes e docentes entendendo sua diferenciação natural a partir do
princípio da equidade. Isso, porém, não quer dizer que em alguns aspectos ambos os
coletivos não sejam iguais perante a sociedade, tendo os mesmos direitos e deveres de
todos os seres humanos. Esta é uma relação complexa que solicita um raciocínio
dialético para sua compreensão.
Aos professores e às professoras são destinados papéis diferenciados dentro da
instituição escolar, devido a seus conhecimentos e sua experiência. A sociedade lhes
atribui responsabilidades e deveres que lhes permite, inclusive, avaliar alunos e alunas
e utilizar da autoridade da função para exigir o cumprimento das regras e normas
sociais. Por outro lado, tais poderes não lhes garante o direito de agir de maneira
injusta, desconsiderando, por exemplo, os direitos relativos à cidadania de seus alunos
e suas alunas. Nesse sentido, se queremos falar de democracia na escola devemos, ao
mesmo tempo, reconhecer a diferença nos papéis sociais e nos deveres e buscar
aqueles aspectos em que todos os membros da comunidade escolar têm os mesmos
direitos. Estou falando, por exemplo, do direito ao diálogo, à livre expressão de seus
sentimentos e idéias, ao tratamento respeitoso, à dignidade, etc. Tanto nas escolas
quanto nos hospitais e nas famílias. Estou me referindo, afinal, à igualdade de direitos
que configura a cidadania.
Com isso, entramos no tema da cidadania, outra palavra que pode ser
empregada em muitos sentidos. Desde sua origem na Roma antiga, a idéia de
cidadania está vinculada ao princípio de que os habitantes têm o direito de participar da
vida política da sociedade. Em seu sentido tradicional, a cidadania expressa um
conjunto de direitos que permite aos cidadãos e cidadãs o direito de participar da vida
política e da vida pública, podendo votar e ser votado, participar ativamente na
elaboração das leis e de exercer funções públicas, por exemplo.
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Partindo dessas idéias, podemos fazer um questionamento importante para a


compreensão atual dos significados possíveis para a cidadania. Será que a garantia de
participação ativa na vida política e pública é suficiente para garantir a todas as
pessoas o atendimento de suas necessidades básicas?
Acreditando que a cidadania pressupõe não apenas o atendimento das
necessidades políticas e sociais, com o objetivo de garantir os recursos materiais que
dêem uma vida digna às pessoas, mas também o atendimento de suas necessidades
psicológicas, reconhecendo a importância da vida afetiva, dentre outros aspectos mais,
para as relações que estabelecem com o mundo.
Acredito ser necessário que cada ser humano, para poder efetivamente participar
da vida pública e política, se desenvolva em alguns aspectos que lhe dêem as
condições físicas, psíquicas, cognitivas e culturais necessárias para uma vida saudável
que o leve à busca virtuosa da felicidade, individual e coletiva. Entender a cidadania a
partir da redução do ser humano a suas relações sociais e políticas não é coerente com
a multidimensionalidade que nos caracteriza e a complexidade das relações que
estabelecemos com a mundo à nossa volta e conosco mesmos. Devemos buscar
compreender a cidadania também em outras perspectivas.
Assim, a luta pela cidadania passa não apenas pela conquista de igualdade de
direitos a todos os seres humanos mas também pela conquista de uma vida digna, em
sua mais ampla concepção, para todos os cidadãos e cidadãs, habitantes do planeta.
Tal tarefa, complexa por natureza, pressupõe a educação de todos, crianças,
jovens e adultos, a partir de princípios coerentes com esses objetivos, com a intenção
evidente de promover a cidadania pautada na democracia, na justiça, na igualdade, na
equidade e na participação ativa de todos os membros da sociedade.
Chegamos, desta maneira, ao tema da educação para a cidadania, elemento
essencial para a democracia. Para introduzir o assunto, gostaria de citar algumas idéias
de Machado (1997, p.106), para quem "educar para a cidadania significa prover os
indivíduos de instrumentos para a plena realização desta participação motivada e
competente, desta simbiose entre interesses pessoais e sociais, desta disposição para
sentir em si as dores do mundo".
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Estamos falando, portanto, da formação e da instrução das pessoas visando sua


instrumentalização para a participação motivada e competente na vida política e pública
da sociedade. Ao mesmo tempo, entendo que essa formação deve visar o
desenvolvimento de competências para lidar com a diversidade e o conflito de idéias,
com as influências da cultura e com os sentimentos e emoções presentes nas relações
do sujeito consigo mesmo e com o mundo à sua volta.
Neste sentido, a educação para a cidadania e para a vida em uma sociedade
democrática não pode se limitar ao conhecimento das leis e regras, ou a formar
pessoas que aprendam a participar de forma consciente da vida coletiva. É necessário
algo mais, que é o trabalho visando a construção de personalidades morais, de
cidadãos e cidadãs autônomos que buscam de maneira consciente e virtuosa a
felicidade e o bem pessoal e coletivo.
Segundo (Araújo,1999a), esse é
um modelo de personalidade moral que incorpora em seu núcleo
central a "racionalidade autônoma baseada na igualdade, na
equidade, na justiça, no auto-respeito e no respeito pela natureza
(em seu sentido global). Mas neste modelo a razão não é
soberana, porque é também imbuída de afetividade, de
sentimentos e emoções, que considera em seus juízos, ao mesmo
tempo, os interesses e sentimentos do próprio sujeito e dos outros
seres presentes em suas interações". Trabalhar na formação
desse cidadão e dessa cidadã pressupõe considerar e atuar
intencionalmente sobre as diferentes dimensões constituintes da
natureza humana: a sócio-cultural, a afetiva, a cognitiva e a bio-
fisiológica (ver Araújo, 1999a, p.67).
Atuar sobre a dimensão sócio-cultural pressupõe propiciar uma educação que
leve as pessoas a conhecerem criticamente os dados e fatos sobre a cultura e a
realidade social em que estão inseridos, assim como ao domínio dos conteúdos
essenciais ao exercício da cidadania, principalmente a língua e as matemáticas. Atuar
sobre a dimensão afetiva pressupõe propiciar condições para que as pessoas
conheçam a si mesmas, seus próprios sentimentos e emoções, que construam o auto-
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respeito e valores considerados como universalmente desejáveis. No caso da dimensão


cognitiva partimos do princípio de que a construção de determinadas capacidades
intelectuais ou de estruturas mentais operatório-formais, no sentido piagetiano, é
importante para a compreensão da realidade e para a organização das relações das
pessoas com o mundo, sendo, portanto, essencial que a educação objetive sua
construção por parte de todos os seres humanos. Por fim, temos a dimensão bio-
fisiológica, que é nosso próprio organismo, sede de nossa personalidade.
Garantir seu desenvolvimento adequado, respeitando as diferenças e
características individuais, é essencial para o enriquecimento de nossas experiências e
para a interação com o mundo a nossa volta.
A observação que faço é que atuar com objetivos educacionais sobre essas
quatro dimensões não pressupõe fragmentar a natureza humana, pois seria
contraditório com os princípios do pensamento complexo abordados anteriormente. A
idéia, como salientamos naquele momento, é reconhecer as dimensões constituintes da
natureza humana, para atuar sobre elas sem, contudo, perder a dimensão de totalidade
da personalidade.
Sintetizando, em minha opinião a educação democrática para a cidadania deve
voltar-se para a atuação simultânea sobre essas quatro dimensões constituintes da
natureza humana, como condição para o desenvolvimento das competências
necessárias para a participação efetiva na vida pública e política, tendo como objetivo a
construção de personalidades morais que busquem de forma consciente e virtuosa a
felicidade e o bem, pessoal e coletivo.
Pensar na construção de escolas democráticas que almejem a construção de
personalidades autônomas e da cidadania, e de maneira coerente com os pressupostos
da complexidade abordados no primeiro capítulo, nos leva a buscar compreender
alguns dos diversos fatores que interferem neste processo dentro do cotidiano escolar.
A identificação destes fatores, no entanto, não significa uma tentativa reducionista de
interpretar a realidade e sim representam os resultados advindos de minha experiência
ativa no cotidiano de escolas que tentam incrementar seu processo de democratização.
Em tais experiências, nos últimos 10 anos, fui identificando aspectos que podiam
interferir freando ou incrementando a real democratização dos processos educativos.
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Até o presente momento já consegui identificar de maneira substantiva sete diferentes


aspectos, que se interrelacionam. Este número de aspectos, porém, não é mágico e
nem cabalístico, podendo e devendo ser aumentado a partir de novas experiências nos
complexos processos de democratização das escolas que tem tais objetivos. Sua
identificação pode auxiliar na compreensão da complexidade das relações presentes no
cotidiano escolar e na busca por formas mais realistas de intervenção na educação
para a cidadania.
Os aspectos identificados são: os conteúdos escolares; a metodologia das aulas;
o tipo e natureza das relações interpessoais; os valores, a autoestima e o auto-
conhecimento dos membros da comunidade escolar; e os processos de gestão da
escola.
As influência de tais aspectos, sugestões de como a escola pode se reorganizar
a partir de sua identificação, com a intenção de superação dos obstáculos à
democratização, e sua relação com as distintas dimensões constitutivas da natureza
humana.
• Os conteúdos escolares:
Um dos grandes problemas enfrentados pela educação brasileira, nos dia de
hoje, é a inadequação dos conteúdos trabalhados nas diversas disciplinas da grade
curricular. Uma visão mais crítica mostra que, de maneira geral, esses conteúdos estão
dissociados da realidade e do cotidiano dos alunos e das alunas. Isso, além de
provocar a falta de interesse, é uma das fontes para o grande problema de indisciplina
e violência que hoje assola as escolas. Um conteúdo em que o aluno não entende a
função para o seu dia a dia, ou mesmo para sua vida, aumenta a probabilidade de
apatia ou de manifestação das diversas formas de violência. À medida que a sociedade
e a escola se democratizam, inicia-se uma cobrança para que a escola, e os conteúdos
por ela trabalhados, sejam mais interessantes e próximos do cotidiano e da realidade
dos alunos.
Propostas de contextualizar na realidade dos estudantes os conteúdos escolares
e de trabalhar outros como a ética, a sexualidade, os sentimentos, etc, vêm sendo
implementadas em muitos lugares e estão presentes, inclusive, nos pressupostos das
recentes reformas dos referenciais curriculares do sistema de ensino brasileiro.
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Entendo que uma escola que almeje a democracia e a formação de sujeitos


éticos competentes para o exercício da cidadania precisa ter coragem e desejo político
de reorganizar sua estrutura curricular.
Uma das formas propostas de reorganização da escola, sem abrir mão dos
conteúdos curriculares tradicionais, é por meio da inserção transversal na estrutura
curricular de temas como: saúde, ética, meio ambiente, o respeito às diferenças, os
direitos do consumidor, as relações capital-trabalho, a igualdade de oportunidades, as
drogas e a educação de sentimentos (Moreno, 1998).
Essa incorporação não se dá por meio de novas disciplinas, mas com novos
conteúdos que devem ser trabalhados de maneira interdisciplinar e transversal aos
conteúdos tradicionais. Dessa maneira, não se abre mão de conteúdos como a
matemática, a língua portuguesa, as ciências e as artes, mas tais conteúdos deixam de
ser vistos como a "finalidade" da educação e passam a ser encarados como "meio"
para se alcançar sua real finalidade: a construção de personalidades morais autônomas
e críticas. Além disso, os conhecimentos da vivência pessoal e cultural que os
educandos trazem para a escola, a partir de sua história de vida e de seus interesses
pessoais, devem estar no centro da contextualização dos conteúdos trabalhados em
sala de aula. Considerar tal realidade na teia de conhecimentos a serem abordados na
escola dará maior significado à aprendizagem dos alunos e das alunas.
Em outra perspectiva, entendemos que os conteúdos escolares têm papel
importante na constituição da dimensão sócio-cultural dos sujeitos psicológicos. Sua
reorganização a partir dos pressupostos aqui discutidos permitirá que alunos e alunas
construam sua personalidade com base em conteúdos eticamente mais significativos,
com reflexos evidentes sobre as demais dimensões constituintes da natureza humana.
Não tenho dúvidas deque uma pessoa que, durante seu processo educativo,
experienciou sistematicamente o estudo sobre conteúdos de natureza ética e
relacionados à temáticas significativas para seu mundo pessoal (ex: sexualidade, saúde
e afetividade) e sua vida coletiva (ex: meio ambiente e consumo), terá maiores
possibilidades de coordenar de maneira competente sua vida pessoal e suas
responsabilidades pública e política.
18

Estar aberto a essas mudanças curriculares e buscar intencionalmente sua


implementação no cotidiano das salas de aula é papel essencial dos profissionais da
educação preocupados com a democratização da sociedade e com a construção de
personalidades morais autônomas. A manutenção da atual estrutura curricular das
escolas reforça o modelo de sociedade injusta e excludente que vivemos hoje em dia.
• A metodologia das aulas:
Por outro lado, de que adianta reorganizar os conteúdos escolares sem efetuar
mudanças na própria lógica de organização do ensino? De que adianta inserir
conteúdos de ética ou sobre sentimentos na escola, por exemplo, se ela seguir presa a
um modelo transmissivo e autoritário de conhecimento? Será que aulas em que o
sujeito da aprendizagem, alunos e alunas, exercem um papel passivo diante dos
conteúdos que lhes são transmitidos, formará o cidadão e a cidadã competentes? As
respostas, mais uma vez, são negativas, Revista Educação e Pesquisa (FEUSP),
vol.26, n.2, pp.91-107 12 de que não se constrói a cidadania a partir de relações
autoritárias e com base em metodologias de mera transmissão e reprodução do
conhecimento.
Desta maneira, relacionado à reestruturação curricular, um projeto educativo que
almeje a construção de personalidades morais autônomas e críticas deve prever
maneiras de se trabalhar o conhecimento privilegiando o desenvolvimento da
competência dialógica e reflexiva dos educandos, ao mesmo tempo que buscando
estratégias que tenham como pressuposto levar alunos e alunas a tomar consciências
de seus próprios sentimentos e emoções.
Para que a educação e os conteúdos abordados na escola possam tornar-se de
fato significativos para alunos e alunas, contribuindo para a construção de
personalidades morais, acredito que professores e professoras devem promover suas
aulas a partir de dinâmicas que incorporem três tipos diferentes de atividades:
reflexivas; conceituais concretas; e práticas experienciais. Exemplificando tais
propostas:
Atividades reflexivas: são atividades que pressupõem levar os estudantes a
refletir de maneira crítica sobre aspectos da realidade pessoal e coletiva, relacionando-
os aos conteúdos escolares. Assim, qualquer dinâmica que pressuponha o diálogo a
19

partir de trabalhos em grupo, debates, assistir a filmes e solicitações de trabalhos


individuais sobre temáticas socialmente relevantes, se inserem nesta categoria de
atividades. Além disso, técnicas como discussão de dilemas, resolução de conflitos,
clarificação de valores, exercícios autobiográficos e exercícios de construção conceitual
(Puig,1998b), são coerentes com tal proposta.
Atividades conceituais concretas: neste tipo de atividade saímos da reflexão
pura e nos aproximamos da realidade concreta do cotidiano. Estou falando de
atividades em que determinados conceitos são experienciados concretamente pelos
alunos e alunas e não somente por meio de formalizações conceituais abstratas. Assim,
proponho o trabalho com dinâmicas em que o conhecimento a ser estudado é
experienciado pelos estudantes a partir de situações hipotéticas ou a partir de dados de
seu cotidiano. Atividades de role-playing (dramatização), em que os sujeitos são
levados a vivenciar o que pensam e Revista Educação e Pesquisa (FEUSP), vol.26,
n.2, pp.91-107 13 sentem diferentes personagens envolvidos em um determinado
conflito; atividades de matemática baseadas em dados da própria realidade cotidiana,
como trabalhos de ética e consumo desenvolvidos a partir de valores e aumentos
percentuais aplicados em contas de eletricidade, água e de produtos consumidos pelo
grupo; são exemplos do que estamos definindo como atividades conceituais concretas.
Ou seja, conhecimentos são conceitualizados a partir da experiência concreta e
cotidiana dos sujeitos.
Atividades práticas experienciais: este tipo de atividade permite a construção
de conhecimentos e valores não a partir da formalização e/ou conceitualização da
realidade. Eles são construídos a partir das próprias experiências sociais. As propostas
de estudos do meio são um primeiro exemplo de aproximação a este tipo de
experiência. Além disso, como exemplo, estou falando de atividades em que o estudo
da nutrição e da desnutrição, suas causas, conseqüências e formas de atuar
socialmente no enfrentamento do problema são levadas a cabo pelo grupo classe, na
própria realidade. Por exemplo, procurando e visitando crianças nesta situação e
atuando de maneira politicamente organizada para ajudar na solução do problema, ao
mesmo tempo que utilizando a experiência para conhecer as informações científicas e
sociais relativas à qualidade da nutrição necessária à vida humana.
20

Estas diferentes maneiras metodológicas de se trabalhar os conteúdos escolares


se complementam quando as vemos articuladamente e não de forma fragmentada.
Quando pensamos em uma programação de conteúdos para todo um ano escolar ou
dentro de um determinado projeto, a articulação de atividades reflexivas, conceituais
concretas e práticas experienciais permitem que os conhecimentos e os valores tenham
maior significado para os estudantes, que as aulas sejam mais prazerosas e
interessantes, e que o currículo esteja contextualizado nas suas próprias experiências.
Neste sentido, a metodologia das aulas aliada à reorganização curricular da escola
passam a ter um papel relevante na construção da democracia e da cidadania. As
dimensões sócio-cultural e afetiva (pelos valores trabalhados), são especialmente
reforçadas na constituição da personalidade moral, a partir das técnicas educacionais
sugeridas.
• Os valores dos membros da comunidade escolar:
Parto do princípio de que os valores morais não são nem ensinados e nem
nascem com as pessoas. Eles são construídos na experiência significativa que o sujeito
estabelece com o mundo. Essa construção depende diretamente dos valores implícitos
nos conteúdos com que o sujeito interage no dia a dia, e da qualidade das relações
interpessoais estabelecidas entre o sujeito e as fontes dos valores.
Mas, afinal, o que são valores e como eles são construídos? Baseio nas idéias
de Piaget (1954) e defendo o princípio de que os valores referem-se a trocas afetivas
que o sujeito realiza com o exterior. Surgem da projeção dos sentimentos sobre
objetos, pessoas e/ou relações. Desde o nascimento, com as trocas interpessoais e a
intelectualização dos sentimentos, os valores vão sendo cognitivamente organizados, a
partir dos julgamentos de valor que o sujeito realiza. Essas valorações mais estáveis
levarão os sujeitos a definir normas de ação, que serão organizadas em escalas
normativas de valores e, de uma certa forma, forçarão sua consciência a agir de acordo
com eles. Desta maneira, cada sujeito constrói seu próprio sistema de valores, que
integram-se à sua identidade. Neste sistema que cada um constrói, alguns valores
"posicionam-se" como mais centrais e outros mais na periferia da identidade.
A importância desse modelo teórico é compreendermos que cada um de nós,
sujeitos psicológicos, possuímos determinados valores centrais em nossa identidade,
21

que influenciam nossa conduta. Uma ressalva muito importante é que, em geral,
quando se fala de valores pensamos em moral. Os valores, que são resultado da
projeção dos sentimentos e emoções sobre objetos, pessoas e/ou relações não são
necessariamente morais. O valor discutido até aqui é o que chamo de "valor psíquico",
no sentido de que está relacionado aos objetos, pessoas e/ou relações com que
estabelecemos vínculos afetivos, de que gostamos, em resumo. Assim, resolver os
conflitos por meio da violência pode ser um valor Revista Educação e Pesquisa
(FEUSP), vol.26, n.2, pp.91-107 15 central para uma determinada pessoa, ou então,
para outra, o autoritarismo pode ser um valor, no sentido psicológico. Para uma terceira
pessoa, respeitar os demais seres humanos pode ser um valor central. O que faz com
que um valor se torne moral é seu vínculo com conteúdos de natureza moral. Neste
sentido, é importante diferenciar o valor moral do valor psíquico.
Enquanto o segundo tipo é inerente à natureza humana e todos os seres
humanos constróem seu próprio sistema de valores a partir das interações no mundo,
desde o nascimento, o valor moral depende de uma certa qualidade. Depende se a
projeção afetiva que o constitui está vinculada com conteúdos de natureza moral. Ou
seja, todos nós possuímos nosso sistema de valores e ele é constituído por valores que
são morais ou não.
Retomando nosso objeto de estudo, a educação, cada criança e cada adulto que
freqüenta uma escola possui seu próprio sistema de valores. Se os valores centrais na
identidade dessas pessoas referem-se a valores não democráticos, por exemplo, suas
ações dentro do contexto escolar tenderão a ser autoritárias e a não legitimar as
tentativas de democratização do ambiente escolar em que atuam. Isso vale tanto para
crianças quanto para os adultos. As conseqüências diretas observáveis são pessoas
que agem e pensam defendendo o princípio de que na escola não existe espaço para a
democracia e que os papéis são bem definidos: quem detém o poder manda e quem
não detém obedece. Os reflexos aparecem na violência, na exclusão, no autoritarismo
e nas mais diferentes formas de organização que terminam por caracterizar as
instituições escolares como não democráticas.
A partir do exposto até aqui, entendo que a escola, consciente de seu papel
formativo e instrutivo, não pode trabalhar com qualquer valor. Se almeja a educação
22

para a cidadania sua responsabilidade encontra-se em propiciar a oportunidade para


que seus alunos e alunas interajam reflexivamente e na prática sobre valores e virtudes
vinculados à justiça, ao altruísmo, à cidadania e à busca virtuosa da felicidade. Esta
interação, no entanto, deve ser prazerosa, para que seja alvo das projeções afetivas
dos sujeitos. Caso contrário, o valor trabalhado poderá não se constituir como valor
para ele. O que quero dizer é que trabalhar valores de forma tradicional, chata, não
permitirá sua construção.
Se não acreditamos que a construção de personalidades autônomas se dê pela
transmissão e inculcação de valores, a educação moral pode ocorrer em qualquer
disciplina, desde que os conteúdos tradicionais estejam imbuídos de valores éticos e
sejam trabalhados com métodos que solicitem a ação, a reflexão, o diálogo e o prazer.
E quais seriam estes valores a serem trabalhados nas escolas? A premissa que
se utiliza é a da existência de alguns valores definidos como valores universalmente
desejáveis.
Defendendo o pressuposto de que os princípios e valores aludidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, apesar de não dever ser
impostos a toda e qualquer cultura existente hoje no planeta, para nós, brasileiros, eles
devem ser desejáveis quanto à sua universalização no contexto social. Vivemos hoje
numa cultura que almeja a democracia, ou seja, uma ordem social pautada em valores
como a justiça, a igualdade, a eqüidade e a participação coletiva na vida pública e
política de todos os membros da sociedade, e estes são os valores basais da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dessa maneira, os princípios presentes na
referida declaração podem ser um guia de referência para a elaboração de projetos
educativos que objetivem a educação para a cidadania e para a construção de
personalidades morais autônomas (ver Araújo, U. & Aquino, J., 2001).
Entendendo que os valores referem-se à dimensão afetiva da natureza humana,
seu trabalho na educação promove o fortalecimento deste aspecto da personalidade.
• As relações interpessoais:
Retomando algumas idéias já abordadas anteriormente, a construção da
cidadania pressupõe a instrumentalização das pessoas para a participação motivada e
competente na vida política e pública da sociedade. Ao mesmo tempo, essa formação
23

deve visar o desenvolvimento de competências para lidar com a diversidade e o conflito


de idéias, com as influências da cultura e com os sentimentos e emoções presentes
nas relações do sujeito consigo mesmo e com o mundo à sua volta. Necessitamos de
uma escola cujas relações entre seus membros se assente sobre as bases da
democracia e do respeito mútuo.
Afinal, o que é o respeito? Partimos da idéia básica de que é um sentimento e,
como tal, experienciado nas relações interpessoais e a partir de reflexões intrapessoais.
Ou seja, pode-se sentir respeito por outras pessoas, por seus valores e atitudes (por
exemplo), mas também pode-se senti-lo por si próprio, como é o caso do auto-respeito
(ver Araújo, 1999b).
De acordo com Piaget (1932) e Pierre Bovet (1925),
o respeito é fruto da coordenação entre dois sentimentos: o amor
e o temor. Da coordenação dialética entre esses dois sentimentos
nas relações interindividuais é que surgirá, por exemplo, a
obediência da criança aos pais e aos mais velhos. Uma criança
respeita seus pais porque ao mesmo tempo que gosta deles teme
perder seu amor, ou mesmo sofrer punições. No caso do respeito
mútuo, na relação entre esses dois sentimentos o que prevalece é
o amor. É a afetividade ou o amor nas relações entre as pessoas
que permite que o medo presente na relação não seja o da
punição, e sim o de decair perante os olhos do indivíduo
respeitado. Esse medo é totalmente diferente do medo da
punição, característico dos sujeitos heterônomos. O medo de
decair perante os olhos de quem a gente gosta é característico do
sujeito autônomo, que regula suas relações na reciprocidade e na
consideração pelas outras pessoas. Se a discussão vai para o
âmbito escolar podemos compreender que esse é o tipo de
respeito estabelecido entre os docentes que não necessitam
utilizar punições e ameaças autoritárias nas relações com alunos
e alunas.
24

Acreditand no respeito mútuo, ou recíproco, que se estabelece garante a


harmonia das relações interpessoais na escola.
Por fim, existe um elemento comum que está na origem do amor e do temor
sentidos pelo sujeito que respeita os outros: a admiração. O sentimento de admiração é
condição para o respeito e podemos admirar tanto quem amamos quanto quem nos
oprime. Creio que é a admiração que permite o vínculo dialético entre o amor e o temor
presentes no sentimento de respeito. Para respeitarmos alguém é necessário uma
identificação com essa pessoa, via admiração.
O outro eixo que apontamos ser fundamental neste aspecto é o da
democratização das relações interpessoais. Uma forma de operacionalizar o espaço
para a participação efetiva de alunos e professores nesse processo de democratização
das relações e na construção das regras é por meio das "assembléias de classe".
Do que temos conhecimento, o pedagogo francês Celestin Freinet foi quem
primeiro sistematizou a idéia das assembléias de classe. Meu trabalho, porém, está
baseado no modelo elaborado por Puig (2000), publicado no Brasil no livro Democracia
e participação escolar, onde aponta formas concretas de se operacionalizar o espaço
democrático das assembléias na escola e na sala de aula.
De acordo com Puig, as assembléias são o momento institucional da palavra e
do diálogo. O momento em que o coletivo se reúne para refletir, para tomar consciência
de si mesmo e para transformar tudo aquilo que os seus membros consideram
oportuno. É um momento organizado para que alunos e alunas, professores e
professoras possam falar de tudo que lhes pareça pertinente para melhorar o trabalho e
a convivência escolar. Neste sentido, o espaço das assembléias de classe não se
destina exclusivamente à resolução de conflitos, pois isso faria com que fosse um
momento sempre de tensão e não prazeroso. Este é o momento também de se falar
das coisas positivas, de felicitar as conquistas pessoais e do grupo e de se discutir
temáticas para projetos futuros.
O espaço das assembléias de classe permite experiências conceituais concretas
e práticas de democracia na escola, que poderão levar todos os membros da
comunidade a vivenciarem um ambiente democrático e respeitoso, contribuindo para a
educação para a cidadania. Sua implementação solicita a transformação das relações
25

interpessoais, ao mesmo tempo que intervêm na construção psicológica e moral de


seus agentes, atuando na multidimensionalidade constituinte dos sujeitos que
freqüentam esse espaço.
• A auto-estima:
Todos os aspectos analisados até o momento estão interrelacionados se
seguimos com a visão sistêmica e de complexidade que pauta este trabalho. Por isso,
relacionar a auto-estima das pessoas que compõem o universo escolar com o objetivo
de educação para a cidadania é perpassar também por todos os aspectos discutidos
até aqui.
Quando se fala de auto-estima se refere à auto-imagem que cada pessoa tem
de si mesma. De acordo com Harkot-de-La-Taille (1999, p.20), cada ser humano
constrói para si uma imagem que considera representá-lo, uma imagem com a qual se
identifica e se confunde. Esta imagem, portanto, desliza do parecer para o ser, quando,
então, imagem e sujeito constituem um mesmo e único valor. Esta auto-imagem,
porém, não é algo apenas racionalizado cognitivamente no nível da consciência, pois
ela possui toda uma dimensão afetiva em sua constituição, que também relaciona-se
com os valores da cultura e com a constituição bio-fisiológica do corpo que a sedia.
Assim, estamos novamente falando do sujeito psicológico constituído de
diferentes dimensões e que em sua história de vida constrói uma consciência de si
mesmo. Evidente que este sujeito não está isolado no mundo e que neste processo ele
se constitui ( e é constituído) nas relações com o mundo objetivo e subjetivo em que
vive.
Esta consciência, que a defino como a capacidade para dar-se conta da própria
atividade física e mental supõe, de acordo com Puig (1998a), acrescentar ao simples
"saber algo" ou "saber fazer algo" um "saber que se sabe".
Neste saber, ou consciência, encontra-se a auto-imagem e o que cada um sente
sobre si mesmo: a auto-estima. O valor, ou os sentimentos, que cada um projeta e
atribui a si mesmo. Sem poder falar de padrões definidos e nem de normalidade, esta
auto-estima pode ser mais negativa ou positiva, com conseqüências visíveis sobre as
interações do sujeito com o mundo e consigo mesmo.
26

Novamente, uma forma de se trabalhar tal realidade é por meio da


democratização das relações escolares, sobrepondo o autoritarismo.
Conteúdos escolares e metodologias de ensino mais significativas, a busca pela
construção de valores morais, relações interpessoais baseadas no respeito mútuo e o
trabalho sistematizado de assembléias de classe e escola, são aspectos que
seguramente podem reforçar a auto-estima das pessoas.
Isso, porém, não basta. É necessário também o resgate e a valorização dos
aspectos positivos que são encontrados na personalidade de todos os seres humanos.
O resgate e a valorização, por parte da escola, das habilidades de todos os membros
da comunidade, incorporando tais habilidades e aspectos positivos como conteúdos a
serem trabalhados no cotidiano das salas de aula.
Em suma, falo de uma escola prazerosa, onde estudantes e docentes queiram
freqüentar e tenham prazer com o que fazem e desenvolvem no seu dia a dia. Uma
escola em que seus membros sintam que tem significado para suas vidas e que não
existe apenas porque pode lhes ensinar a ler e a escrever, dando, pretensamente,
condições de ascensão social. Enfim, uma escola que tenha sentido para a construção
de personalidades autônomas e para o resgate e valorização da cidadania.
• O auto-conhecimento:
Conhecer a si mesmo, construir uma auto-imagem o mais próximo possível da
realidade, são condições que nos permitem, enquanto sujeitos inseridos no mundo
objetivo e subjetivo, viver uma vida mais saudável e equilibrada.
Sob a perspectiva de construção de personalidades morais autônomas e críticas,
que vimos discutindo em todo este trabalho como condição para a cidadania e para a
vida democrática, o auto-conhecimento impõem-se como uma necessidade. Isso
porque, em minha opinião, essa construção passa pela tomada de consciência sobre
como o próprio sujeito se vê e também pela tomada de consciência de seus próprios
valores e sentimentos.
Ao ignorar esta dimensão da natureza humana na estruturação de seu currículo
e nos objetivos da educação, em minha opinião a escola deixa aberta uma lacuna que
possui um caráter impeditivo para a construção adequada da auto-imagem e da
personalidade das crianças a quem lhes compete educar.
27

Não vejo como formar o cidadão que não consegue enxergar-se a si mesmo,
enquanto sujeito individual, mas que vive em relação com as demais pessoas à sua
volta.
Entendemos que a construção de consciências autônomas passa pela
construção de processos de auto-regulação que permitam ao sujeito dirigir a própria
conduta por si mesmo; ao mesmo tempo que passa pela aquisição da sensibilidade
necessária para perceber os próprios sentimentos e emoções morais, para que possa
usá-los como componentes de procedimentos da consciência moral.
A escola pode e deve exercer um papel fundamental nesse processo de
construção. A proposta é de que isso seja feito por meio do trabalho constante baseado
em metodologias e conteúdos de aula que solicitem ao mesmo tempo a reflexão, a
percepção e regulação dos próprios sentimentos e emoções, e o desenvolvimento da
capacidade dialógica. Sua implementação cotidiana nas aulas regulares dos conteúdos
tradicionais podem auxiliar os processos de auto-conhecimento, de construção de
valores morais universalmente desejáveis e do auto-respeito, aspectos estes relevantes
para o exercício competente da cidadania.
• A gestão escolar:
Por fim, chegamos no tema da gestão escolar. A partir de todos os aspectos
analisados até o momento, fica evidente que uma escola gerida de maneira autoritária
não contribuirá para a formação de personalidades morais e para a construção do
cidadão e da cidadã que acreditam plenamente na democracia.
Uma escola com direção autoritária, em que todas as decisões são centralizadas
nas mãos de uma pessoa ou de um pequeno grupo, em que as regras de convivência e
o projeto pedagógico já encontram-se predeterminados a partir dos valores e crenças
de algumas pessoas, não permite o diálogo e a reorganização constante dos tempos e
espaços escolares com base na busca coletiva de novos e melhores caminhos para os
desafios cotidianos. Não será fácil professores e professoras que vivem em ambientes
autoritários baseados em relações de heteronomia e de respeito unilateral trabalharem
a construção de valores relativos à autonomia e à democracia com seus alunos e
alunas.
28

De que maneira promover este tipo de ambiente escolar? Retomamos aqui o


conceito de assembléia já discutido anteriormente. No âmbito escolar, no entanto, um
dos caminhos que visualizamos passa pela instituição das assembléias em dois níveis
distintos: o primeiro é o de assembléia escolar, com a participação representativa de
direção, docentes, estudantes e funcionários; o segundo é o de assembléia docente,
com a participação de todos os professores e professoras e da direção da escola.
A responsabilidade da assembléia escolar é regular e regulamentar as relações
interpessoais e a convivência no âmbito dos espaços coletivos. A responsabilidade da
assembléia docente é regular e regulamentar temáticas relacionadas: ao convívio entre
docentes e entre esses e a direção; o projeto político-pedagógico da instituição; a
conteúdos que envolvam a vida funcional e administrativa da escola.
Com isso, atinge-se a dupla finalidade de promover a participação das pessoas
nos espaços de tomada de decisão e de democratizar a convivência coletiva e as
relações interpessoais. Uma escola que consegue promover a participação de toda a
comunidade nos processos decisórios, por meio dos diversos tipos de assembléia que
aqui discutimos, seguramente estará caminhando para sua democratização efetiva.
Penso que a implementação de tais procedimentos promoverá a mudança nas relações
de poder e a conseqüente construção da cidadania.
A COMPLEXIDADE E A CONSTRUÇÃO DE PERSONALIDADES MORAIS
Nas últimas páginas descrevi sete aspectos que, a partir de minha experiência,
interferem no processo de construção de escolas democráticas e de personalidades
morais. Sua identificação e a discussão promovida, no entanto, precisam ser encaradas
de forma coerente com as idéias de pensamento complexo abordado neste artigo.
Conforme apontei, identificar tais aspectos e analisá-los de maneira disjuntiva,
reducionista e formalizada, não permitirá a compreensão de um fenômeno complexo
como o que estamos abordando.
Isso significa que identificar o papel que os conteúdos escolares, a metodologia
das aulas, o tipo e natureza das relações interpessoais, os Revista Educação e
Pesquisa (FEUSP), vol.26, n.2, pp.91-107 23 valores, a auto-estima e o auto-
conhecimento dos membros da comunidade escolar, e os processos de gestão da
escola não é suficiente para a compreensão do fenômeno da democracia escolar e
29

para a intervenção buscando a construção da cidadania participativa. É preciso


entender que tais aspectos encontram-se interelacionados entre si de tal maneira que
podemos analisá-los isoladamente somente na formalização que um texto escrito nos
permite fazer.
Na realidade concreta, em um mesmo momento dentro da sala de aula, o
professor está trabalhando um conteúdo, de uma determinada maneira, que está
relacionado também à forma com que se relaciona com seus alunos e alunas. Tais
aspectos podem solicitar ou não a construção de determinados valores na criança,
assim como reforçar sua auto-estima e o auto-conhecimento. Tudo isso permeado,
também, pela forma com que se dão as relações dentro da escola, a partir da maneira
com que é gerida pelos seus membros.
Em suma, todos os fatos mencionados, e muitos outros não abordados, estão
ocorrendo ao mesmo tempo e não é possível perder essa perspectiva se quisermos de
fato compreender a realidade e criar estratégias que visem a democratização escolar.
Existem muitas maneiras de se abordar o tema da educação e suas relações
com a moralidade, tendo como objetivo a formação ética das futuras gerações.
Educação moral, educação em valores, educação do caráter, educação em virtudes,
são alguns dos termos utilizados por diversos autores brasileiros e estrangeiros. Pensar
nesse tipo de educação, contudo, desconsiderando a complexidade da realidade em
que o processo educativo ocorre e a multidimensionalidade constitutiva dos seres
humanos, é trabalhar sob perspectivas reducionistas e simplificantes.
O foco, em minha opinião, deve centrar-se na construção do que costuma
chamar-se personalidades morais, independente do nome que se dê a tal tipo de
educação. Ou seja, o objetivo de uma formação ética deve ser o de atuar
intencionalmente para que a escola propicie aos sujeitos da educação os instrumentos
necessários à construção de sua competência cognitiva, afetiva, cultural e orgânica,
dando-lhes condições de agir moralmente no mundo.
Mesmo sabendo que o espaço escolar não é o único que interfere em tal
processo, pois existem as demais instituições sociais, como a família, as amizades e a
mídia, a escola pode ter um papel fundamental por ser a instituição socialmente criada
para a formação das futuras gerações. Nesse sentido é que compete aos profissionais
30

da educação estarem atentos às suas ações e propostas político-pedagógicas. Romper


com o modelo de escola que conhecemos, repensando e reorganizando os espaços, os
tempos e as relações interpessoais que lhe caracterizam é um passo importante.
Reconhecer as limitações dessa intervenção, conscientes dos princípios de
incerteza que permeiam a complexidade das relações humanas é um outro passo a ser
considerado.Nos últimos dois anos coordenei um projeto de pesquisa que se propôs a
auxiliar os membros de uma escola pública a construírem uma prática democrática a
partir das idéias aqui defendidas, com resultados significativos.
Este trabalho, que será publicado em breve (Araújo, 2001, no prelo), mostra que
é possível tal tipo de intervenção, mas que é necessário uma mudança de perspectiva
na forma com que concebemos tanto a complexidade das relações que ocorrem dentro
da escola quanto a multidimensionalidade constituinte da natureza humana.
A insistência em conceber a realidade de maneira simplificante será um
empecilho para o trabalho de construção de personalidades morais que sejam
competentes para a participação efetiva na vida pública e política, e que tenham como
objetivo a busca consciente e virtuosa da felicidade e do bem, pessoal e coletivo.
31

__________________________________________________________Aula 02
Educação Moral na Escola: Caminho para a Construção da Cidadania

Questões da Ética podem estar presentes em diferentes espaços da escola: nas


finalidades do ensino, no regulamento escolar, nas regras e expectativas explícitas ou
ocultas, nos julgamentos dos atos e critérios neles adotados, nos conflitos presentes
nas relações e nos critérios de resolução dos mesmos... Em todos esses espaços,
valores morais os mais diversos e nem sempre em coerência entre si, aparecem como
parâmetros para definir o bem e o mau. No entanto, apesar desta indiscutível presença,
raramente a Ética é objeto de estudo ou discussão coletiva entre professores (Silva e
Caetano em Estrela, 1997); por que isso acontece? Provavelmente porque este é um
campo teórico muito complexo tanto na Filosofia, como na Psicologia e na Educação.
Neste artigo, buscamos discutir algumas das posições possíveis de serem tomadas
pela escola para a Educação Moral ou Ética, principalmente aquelas derivadas da
teoria de Jean Piaget (1930/1996, 1932/1994) sobre o desenvolvimento do juízo moral.
Temos acompanhado as produções de um grupo de pesquisadores espanhóis
que têm se dedicado à educação moral ou em valores na escola (GREM – Grupo de
Ricierca en Educación Moral). Antes de nós e, provavelmente nos fornecendo modelos
atuais de educação moral, autores como Cabanas (1996), Puig (1998), Buxarrais
(1990,1997), Martinez (1994), e Martinez e Puig (1994) chegaram à proposição da ética
como tema transversal nas escolas, o que agora aparece em nossos Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998).
Mas o que é ética, ou moral, e como colocá-las nas escolas? Segundo Cabanas
(1996), a questão central da ética é a de responder à pergunta sobre o que nos obriga a
sermos bons? Ou seja, é a ética que nos possibilita critérios para definirmos o que é ser
bom, correto ou moralmente certo e que nos fornece explicações para nosso senso de
dever moral.
A essa questão: o que me obriga a ser bom – podem ser dadas respostas
diferentes, ancoradas em diversas posições filosóficas ou ideológicas; e é quando a
respondemos que encontramos valores morais.
32

Segundo Buxarrais (1997), há três modelos distintos de Educação Moral que


diferem entre si quanto aos objetivos, métodos e filosofia de trabalho.
Há modelos de educação baseados em valores absolutos, onde prevalece uma
visão de mundo povoada por valores e normas de conduta indiscutíveis e imutáveis.
Tais valores são impostos por um poder autoritário, passados como dogmas e não
passíveis de serem discutidos. Pretendem regular todos os aspectos da vida social e
pessoal dos indivíduos, através da coação ou de políticas sociais camufladas porém
dogmáticas. Não pretendem formar indivíduos pensantes que possam optar, discutir,
dialogar, mas sim fabricar representantes dos valores elegidos como os melhores. Tais
modelos têm como referência uma visão de cidadão pré-concebida e a educação moral
deve ser a responsável por essa reprodução.
Opostamente, há outros modelos de educação moral baseados em valores
relativos, onde os valores e as normas de conduta são vistos como critérios totalmente
subjetivos. Dessa forma não deve haver consenso sobre a melhor forma de agir em
determinada situação pois tal resolução depende das características pessoais de cada
um. As decisões devem ser sempre individuais e nunca coletivas, do contrário, feririam
o princípio da pessoalidade. O papel da educação moral, nesse caso, é quase nulo,
pois não há o que se ensinar já que os julgamentos morais dependem exclusivamente
da subjetividade de cada um.
Por fim, existem os modelos de educação baseados na construção racional e
autônoma de valores. É dentro dessa terceira tendência que se encontram os trabalhos
de Piaget (1930/1932), Kolhberg (1992), Puig (1994), Buxarrais (1997) e outros. Nesses
modelos procura-se propor situações que facilitem a construção da autonomia por parte
do educando.
Se trata de trabajar la dimensión moral de la persona, y desarrollar y fomentar su
autonomía, su racionalidad y el uso del diálogo como forma de construir principios y
normas, tanto cognitivos como conductuales – que afecten por igual al modo de pensar
y de actuar – que orientem a las personas ante situaciones de conflicto de valores.
(BUXARRAIS, 1997, p.86)
Mesmo dentro desses modelos há diferentes tendências em relação à definição
de Educação Moral e inúmeras obras foram escritas referentes ao tema.
33

Nesse artigo apresentaremos a Educação Moral segundo Piaget e as


investigações do professor Josep Maria Puig, pois acreditamos haver continuidade e
complementação das idéias de Piaget por esse autor.
A EDUCAÇÃO MORAL EM PIAGET
Piaget escreve o texto Os procedimentos de Educação Moral em 1930, ou
seja, dois anos antes do Juízo Moral na Criança, onde apresentaria os resultados de
suas pesquisas acerca da construção da moralidade. Nesse texto, o autor explicita sua
opinião sobre a necessidade de se educar moralmente e tece considerações sobre o
papel das relações sociais (interação) nessa educação.
No que se refere à educação moral, Piaget diz que tanto as relações de coação
como as de cooperação são importantes. Num primeiro momento, a coação se faz
necessária para que a criança conheça as regras e tenha noções sobre o bem e o mal,
o certo e o errado. Ninguém pode formular concepções acerca de algo que não
conhece. É necessário e inevitável, pois, uma primeira fase de heteronomia, de
obediência à autoridade, para que, depois, o espírito de cooperação possa ser
construído, através do respeito mútuo e da reciprocidade. O grande perigo e o que
frequentemente acontece, é que essa coação estende-se por muito mais tempo que o
necessário, prejudicando assim a queda do egocentrismo, o exercício da cooperação, a
capacidade de reciprocidade e, consequentemente, a construção da autonomia.
O objetivo da educação moral, portanto, é o de auxiliar as crianças à construírem
sua autonomia. Como afirma Piaget (1930)
No que se concerne ao fim da educação moral, podemos, pois, por uma legítima
abstração, considerar que é o de constituir personalidades autônomas aptas à
cooperação; se desejarmos, ao contrário, fazer da criança um ser submisso durante
toda a sua existência à coação exterior, qualquer que seja ela, será suficiente todo o
contrário do que dissemos. (PIAGET, 1930, In MACEDO, 1996, p. 09)
Com relação aos procedimentos de educação moral, Piaget diz haver duas
possibilidades: os procedimentos verbais e os métodos ativos.
Dos procedimentos verbais em educação moral Piaget (1930, In. Macedo, 1996)
diz: “Do mesmo modo que a escola em geral há séculos pensa ser suficiente falar à
criança para instruí-la e formar seu pensamento, os moralistas contam com o discurso
34

para educar a consciência.” (p. 15). Para Piaget, os procedimentos verbais ou as “lições
de moral” são de pouca valia para a educação moral, já que, quase sempre, são
impostas pelos educadores através da coação e do respeito unilateral. A criança por
não viver ou se envolver na situação exposta não compreende o seu significado, mas
finge aceitá-la pelo medo da punição ou perda do afeto.
Piaget diz, ainda, que as “lições de moral” podem ser válidas quando se
constituem como resposta à uma questão prévia, ou seja, quando as crianças pedem
explicações para determinadas situações que lhes causaram desequilíbrio. Vindo dessa
maneira, o procedimento verbal pode conseguir tocar o espírito da criança, já que essa
o abriu para reflexão. Entende-se, com isso, que a moralidade não pode ser imposta
como decreto, mas sim construída como um contrato.
Queremos apenas ressaltar, no momento, que mantidas as justas proporções, a
“lição de moral” não deve ser proscrita. Porém ela não se desenvolverá produtivamente
a não ser por ocasião de uma vida social autêntica e no interior da própria classe.
(PIAGET, 1930, In MACEDO, 1996, p.20)
Segundo Piaget o método mais efetivo para a educação moral é o ativo, onde a
criança participa de experiências morais através do ambiente proporcionado pela
escola. Quanto a isso, o autor diz que a criança deve estar em contato com outras
crianças e com situações onde possa experimentar a cooperação, a democracia, o
respeito mútuo e, assim, construir paulatinamente sua moralidade.
A educação moral, para Piaget, não constitui uma matéria especial de ensino
mas um aspecto particular da totalidade do sistema, dessa maneira, as crianças e os
jovens não devem ter “aulas” de educação moral, mas vivenciar a moralidade em todos
os aspectos e ambientes presentes na escola. Nesse sentido, os trabalhos em grupo
(ou trabalho por equipes, como prefere Piaget) são uma atividade facilitadora para a
construção da autonomia, pois as crianças, ao trabalharem juntas, podem trocar pontos
de vista, discutir, ganhar em algumas idéias e perder em outras, enfim, podem exercer
a democracia.
Piaget conclui seu trabalho dizendo que os procedimentos de educação moral
devem levar em conta a própria criança e que, nesse sentido, os métodos ativos são
superiores aos outros. Podemos dizer, então, que educar moralmente para Piaget é
35

proporcionar à criança situações onde ela possa vivenciar a cooperação, a


reciprocidade e o respeito mútuo e assim, construir a sua autonomia.
Complementando as idéias contidas nesse primeiro texto, Piaget escreve, ainda,
O espírito de solidariedade e a colaboração internacional (1931), Observações
psicológicas sobre o self-government (1934), É possível uma educação para a
paz? (1934), A educação da liberdade (1945), entre outros, onde retoma as
discussões acerca do papel da cooperação e, consequentemente, da reciprocidade, na
construção de espíritos autônomos. Com isso, é possível notar que Piaget nunca
abandonou suas pesquisas acerca da moralidade, ainda que, em suas últimas obras,
tenha dado mais atenção aos assuntos referentes à epistemologia.
Em O espírito de solidariedade e a colaboração internacional (1931), Piaget
centra suas reflexões nas relações entre os povos e, mais uma vez, afirma que para
que a solidariedade se desenvolva nas crianças, não são suficientes os métodos orais,
onde são ensinados exemplos a serem seguidos, mas uma vivência pessoal e coletiva
da questão por parte das crianças.
Afirma Piaget (1931/1998)
A educação internacional, e em particular a educação da solidariedade, não
poderia ser reduzida a um ensino oral que forneceríamos de uma vez por todas às
crianças: o que necessitamos é da constituição de um espírito novo de colaboração e
de justiça, que torna os indivíduos suscetíveis de cooperar independentemente das
divergências de raças e de nacionalidade (p. 76)
Em Observações psicológicas sobre o self-government (1934), Piaget
analisa as principais relações psicológicas em jogo no exercício do self-government
como, por exemplo, a questão das relações que unem os professores aos alunos e que
devem ser analisadas através de um triplo ponto de vista: do egocentrismo do
indivíduo, da coerção dos mais velhos e da cooperação entre os iguais. Também nesse
caso, Piaget afirma ser necessário que as crianças experimentem a cooperação e o
respeito mútuo para que possam construir seu auto-governo (autonomia). O self-
government é, segundo esse autor, “um procedimento de educação social que tende,
como todos os outros, a ensinar os indivíduos a sair de seu egocentrismo para
colaborarem entre si e a se submeter a regras comuns.” (PIAGET, 1934/1998: 126)
36

É apenas no trabalho em grupo que essa construção é possível. A auto-


regulação grupal surge da experiência com as atividades coletivas e no que se refere à
educação moral “o self-government contribui para desenvolver ao mesmo tempo a
personalidade do aluno e seu espírito de solidariedade.” (PIAGET, 1943/1998: 126)
Em É possível uma educação para a paz? (1934), Piaget retoma suas
reflexões acerca das relações internacionais. Segundo ele, a luta entre as nações, a
desconfiança, o medo e a disputa por fronteiras tornam difícil uma educação para a
paz. O ensino da colaboração internacional permaneceu, por muito tempo, superficial e
os objetivos propostos pode-se dizer que eram mesmo contrários à essa idéia.
Para que uma educação para a paz seja realmente possível, é necessário que se
trabalhe as posições egocêntricas das crianças em relação aos pequenos estrangeiros;
levando-as a se interessar e compreender o outro. Nesse sentido, afirma Piaget, a
simples propaganda pacifista torna-se ineficaz se não houver uma adaptação de todo o
espírito às relações internacionais.
Esclarece Piaget (1934/1998)
A idéia que defendemos é bem mais concreta: trata-se apenas de criar em cada
pessoa um método de compreensão e reciprocidade. Que cada um, sem abandonar
seu ponto de vista, e sem procurar suprimir suas crenças e seus sentimentos, que
fazem dele um homem de carne e osso, vinculado a uma porção bem delimitada e bem
viva do universo, aprenda a se situar no conjunto dos outros homens. (p. 135)
Finalmente, em A educação da liberdade (1945), Piaget afirma que
“foi somente quando a cooperação começou a prevalecer sobre a
coerção que a liberdade individual tornou-se um valor necessário”
(p. 153), mas adverte que essa liberdade não deve ser entendida
como anomia ou anarquia, e sim como autonomia.
Esses textos revelam a posição piagetiana acerca da Educação Moral que
deveria servir como base para o desenvolvimento de um trabalho efetivo nas escolas.
A EDUCAÇÃO MORAL PÓS-PIAGET
37

Como dissemos anteriormente elegemos para orientar nossa reflexão, as


investigações do professor Josep Maria Puig1, pois acreditamos haver continuidade e
complementação das idéias de Piaget por esse autor.
Puig (1998) entende a educação moral como construção da personalidade moral;
o que introduz um novo conceito às idéias de Piaget que considera a educação moral
como desenvolvimento.
Segundo Puig, a educação moral deve apresentar-se como um espaço de
reflexão individual e coletiva que possibilite a elaboração autônoma de valores e que
auxilie a:
 Detectar e criticar os aspectos injustos da realidade cotidiana e das normas
sociais vigentes.
 Construir formas de vida mais justas, tanto nos âmbitos interpessoais como
nos coletivos.
 Elaborar autônoma, racional e dialogicamente princípios de valor que ajudem
a julgar criticamente a realidade.
 Conseguir que os jovens façam seus aqueles tipos de comportamentos
coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram.
 Fazer com que adquiram também aquelas normas que a sociedade, de modo
democrático e visando a justiça, lhes deu.
(PUIG, 1998b: 17)
Para esse autor, a educação moral pressupõe uma tarefa construtiva e deve
levar em consideração as diferenças e os valores culturais de todos os grupos sociais.
É necessário, ainda, atentar para alguns elementos presentes na moralidade, como por
exemplo, as emoções e os sentimentos. É exatamente neste ponto que Puig introduz
novidades às idéias de Piaget. Para esse autor,
A educação moral como desenvolvimento entende que o domínio progressivo de
formas de pensamento moral é um valor desejável em si mesmo e, sem dúvida
nenhuma, o seu principal objetivo. Isso deve ser assim à medida que nos aproxima de
raciocínios mais equilibrados e amplos, isto é, raciocínios mais justos... No entanto, vale
38

destacar sua capacidade de fundamentar uma idéia de autonomia baseada na reflexão,


e não na escolha, assim como sua eficácia para fundamentar a educaçào moral além
das crenças concretas. Esta é, portanto, uma proposta muito útil em sociedades
abertas, plurais e democráticas... A educação moral como desenvolvimento não
esclarece muito quando se trata de considerar problemas morais contextualizados e
concretos; não consegue localizar corretamente as aquisições morais das gerações
anteriores que parece lógico conservar e transmitir; tem dificuldade para acomodar
elementos da personalidade moral tais como os sentimentos e as emoções ou, ainda, a
necessidade de explicar a própria conduta moral. (PUIG, 1998 a, p.72)
É com base nessas críticas que Puig propõe certas reformulações à teoria
piagetiana da construção da autonomia, inserindo a idéia de construção da
personalidade moral, o que, obviamente, inclui, também, a autonomia. Num primeiro
momento, essa construção propõe a adaptação dos indivíduos à sociedade e à si
mesmos, ou seja, a aquisição de normas básicas de convivência e o reconhecimento
de seus próprios pontos de vista. À esse primeiro passo para construção da
personalidade moral, Puig (1998b) dá o nome de clarificação de valores. São propostos
exercícios para auxiliar esse auto-conhecimento, que têm como objetivo,
... iluminar melhor o horizonte valorativo do sujeito, ou
conduzir processos de valoração que provoquem a assimilação
de novos valores. Esse tipo de exercícios torna-se especialmente
apropriado, como apontávamos ao referirmo-nos às finalidades
da educação moral, para construir a própria identidade moral;
uma identidade moral complexa, aberta e crítica, que se defina
como espaço de diferenciação e criatividade pessoal no âmbito
dos valores. (PUIG, 1998b, p.36)
Os procedimentos metodológicos incluem: perguntas clarificadoras, frases
inacabadas, dinâmicas e exercícios expressivos como folhas de pensamento, folhas de
revisão, jogos de entrevista, jogos de seleção e trabalhos com fotografias. (PUIG,
1998b.)
39

O segundo momento da construção da personalidade moral consiste em adquirir


elementos culturais e de valor que se constituem como horizontes normativos
desejáveis, tais como a justiça, a igualdade, a liberdade e a solidariedade. É
necessário, ainda, formular capacidades pessoais de julgamento, compreensão e auto-
regulação, o que permitirá o enfrentamento autônomo do indivíduo com os inevitáveis
conflitos de valores. “Trata-se, pois, de formar a consciência moral autônoma de cada
sujeito e fazê-lo como espaço de sensibilidade moral, de racionalidade e de diálogo,
para que seja realmente o último aspecto da vida moral.” (PUIG, 1998 a, p.75)
Nesse sentido, Puig propõe, como procedimentos metodológicos, uma série de
recursos, tais como: discussão de dilemas morais (baseados nos procedimentos de
investigação de Kohlberg), exercícios de role-playing, compreensão crítica, enfoques
socioafetivos, exercícios de auto-regulação, exercícios de role-model, exercícios de
construção conceitual, habilidades sociais, resolução de conflitos e atividades
informativas. (PUIG, 1998b)
“Por fim, a construção da personalidade moral conclui com a construção da
própria biografia como cristalização dinâmica de valores, como espaço de diferenciação
e de criatividade moral.” (PUIG, 1998 a, p.75) Assim, o último momento da educação
moral com vistas à construção da personalidade, seria o de tomar conhecimento de sua
própria biografia moral, conhecer seus valores e ter as habilidades necessárias para
viver uma vida que “valha a pena ser vivida e que produza felicidade a quem a vive.”
(PUIG, 1998 a, p.75/76)
Se as análises do professor Puig aprofundam as reflexões de Piaget por um
lado, elas deixam a desejar no que se refere às relações sociais estabelecidas dentro
da escola e que têm, como afirma Piaget (1932), papel central na construção da
autonomia. Nesse sentido, outros pesquisadores do GREM oferecem contribuições
valiosas.
Trabalhos como os de Maria Rosa Buxarrais (1997) e Miguel Martínez Martín
(1998) são bons exemplos de aprofundamento da questão social (interação), fator
importante para a construção da moralidade e face pouco explorada por Puig.
Segundo Buxarrais (1997), um “projeto de educação moral” deve levar em conta
a realidade do país, as questões políticas relacionadas à concepção de escola e a
40

preparação do corpo docente , para que possa elaborar um currículo onde estejam
presentes: o conceito de educação, as características sócioculturais do grupo, as
dimensões da personalidade moral (PUIG), as estratégias de trabalho e os âmbitos
temáticos a serem trabalhados.
Dessa forma, toda a escola deve estar engajada em seu programa de educação
moral, caso tenha optado por ele de forma democrática. Esse trabalho não pode ser
desenvolvido apenas na sala de aula, entre professor e alunos, mas em toda a escola,
que deve constituir-se como um ambiente sócio-moral que permita a construção da
autonomia mora e intelectual.
Ainda segundo essa autora, a educação moral deve contribuir para a aquisição
de critérios que guiem, regulem e proporcionem normas orientadoras para a vida
prática das pessoas e da coletividade, tais como a crítica, o princípio de alteridade, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a implicação e compromisso.
A crítica é o instrumento que permite ao indivíduo analisar a realidade e entrar no
mundo dos valores determinando aquilo que é justo e o que não é. O princípio de
alteridade é o que leva à descentração e a trocas efetivas entre pessoas, onde a justiça
e a solidariedade devem ocupar lugar central. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos e outras leis, no caso do Brasil podemos citar o Estatuto da Criança e do
Adolescente, podem se apresentar como instrumentos úteis para se fazer uma análise
crítica da realidade cotidiana. A implicação e o compromisso são fatores que tornam os
critérios anteriores possíveis, não fazendo deles simples declarações mas princípios
que tenham significado em nível pessoal e coletivo.
Martín (1998), também membro do GREM, introduz, ainda, um novo conceito à
educação moral: o de contrato moral dos professores. Segundo esse autor, é
necessário haver um clima sócio-moral na instituição educativa e um “estilo” do corpo
docente que garantam um bom convívio entre professores e alunos. O que Martín
propõe é um compromisso efetivo do corpo docente com a questão dos valores, criando
um clima institucional de caráter moral oportuno para o êxito dos objetivos que
presidem a proposta de educação moral e em valores desse grupo.
Esclarece Martín (1998)
41

La tarea del profesorado supone un compromiso social y ético


que procura transformaciones anto de carácter personal como
comunitario. El contrato a través del cual el professorado está
obligado laboralmente y, a la vez, se protege de aquello que
pueda lesionar suas derechos, no es suficiente hoy. Es necesario
avanzar hacia un nuevo modelo de relación que incorpore
elementos éticos y morales y que denominamos por ello contrato
moral. (p.09)
Enfim, dos modelos construtivistas de educação moral que surgiram após Piaget,
acreditamos que as reflexões apresentadas pelo professor Josep Maria Puig e pelo
GREM, mostram-se como as mais ricas e completas, dignas de receberem o mérito de
“complementar” as idéias piagetianas sobre educação moral, introduzindo conceitos até
então não assuntados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ESCOLA COMO LUGAR DE EDUCAÇÃO
MORAL
Vimos que, a partir de Piaget, pesquisas e sugestões de Educação Moral
puderam ser feitas e trazem para a escola possíveis aplicações. Em Piaget (1930, em
MACEDO,1996) vimos que o objetivo de toda educação moral deveria ser o de formar
pessoas autônomas , no sentido de saberem construir as normas, regras e princípios
de sua conduta pautados nas suas relações com os outros. Se educar moralmente é
educar para autonomia, então os métodos dessa educações só podem ser os ativos,
aqueles em que os sujeitos participam da construção e discussão dos valores e normas
morais. Assim, a educação moral não pode ser dada através de lições de moral
apenas por transmissão verbal, ao contrário deve acontecer em todos os espaços em
que as pessoas estão em relação e, em decorrência dessa convivência, possam
experimentar as vantagens da cooperação, da solidariedade, da igualdade, da justiça.
Assim, Piaget (1930, em MACEDO, 1996) sintetiza as duas regras básicas da
educação moral para autonomia nas escolas: deixar que as crianças descubram entre
si os princípios morais da reciprocidade, da cooperação, do respeito mútuo, etc, e
estruturar experiências nas quais possam fazer essas descobertas.
42

Puig (1998 a e b), além de entender a autonomia como a capacidade de


construção racional e dialógica de valores e princípios morais, detalha as finalidades da
educação moral salientando que certas habilidades são aí fundamentais: ser capaz de
detectar e criticar injustiças, estar comprometido com a construção de uma vida mais
justa para todos, comportar-se de acordo com princípios auto-escolhidos, adquirir as
normas e valores considerados justos em sociedade.
Segundo esse autor, a educação moral pode se dar em momentos distintos que
vão da adaptação às normas da sociedade ao conhecimento e reconstrução dos
próprios valores e, em suas obras (1998a e 1998 b), são propostos exercícios diversos
que podem ser realizados em escolas pelos professores com seus alunos. Buxarrais
(1997) e Martín (1998) ampliam a proposta de Puig quando acrescentam que a
educação moral deve abarcar toda a escola e ir além de seus muros.
Buxarrais enfatiza que a realidade de um país pode retratar a e contextualizar as
possibilidades de educação moral e que questões políticas podem se relacionar à
escola determinando suas possibilidades de realmente educar moralmente. Além disso,
essa autora e Martín (1998) insistem em que deve haver uma preparação do corpo
docente para educação moral a ser levada por toda a escola e é essencial um
compromisso dos professores nesse sentido.
Inspirados em autores como os anteriores nossos Parâmetros Curriculares
Nacionais, os PCN (1997) recolocam a ética como tema escolar após o vazio deixado
depois da retirada dos decretos ditatoriais que haviam colocado, autoritariamente,
Educação Moral e Cívica como um disciplina de educação moral. Sendo fiéis as
indicações de Piaget e de seus seguidores, os PCN afirmam a ética como tema
transversal a acontecer, portanto, nos cruzamentos de todos as disciplinas escolares.
Longe de aparecer como lição de moral por transmissão, a educação moral é agora
vista como a vivência e construção de, principalmente, quatro princípios: o respeito
mútuo, a justiça, o diálogo e a solidariedade. Destaca-se que esses princípios não são
colocados como valores absolutos ou acabados mas como procedimentos obrigatórios
se o que se quer é formar pessoas capazes de construir autonomamente seus próprios
valores.
43

Piaget, os autores espanhóis que nesse artigo sintetizamos e os PCN, buscam,


de diferentes formas, ampliar os espaços onde a ética, ou a moral ocorrem e, portanto,
onde podem ser focos de educação, de aprimoramento. De fato, se entendemos a
Moral como um conjunto de critérios, normas, princípios ou valores que definem o que
certo ou justo para uma população, e se, de forma semelhante aos PCN, entendermos
a Ética como a reflexão sobre esses valores e princípios morais, toda a vez que nos
defrontamos com as tentativas de tomadas da melhor decisão, de melhor resolução de
problemas de relações entre as pessoas, ou com os julgamentos sobre atos ou valores,
nos defrontamos com a Moral. Assim, considerando a escola como um amplo espaço
de relações humanas onde decisões e julgamentos são feitos a todo tempo, para
analisarmos a Moral na escola, é preciso considerarmos o que se faz na escola, de
forma refletida ou irrefletida, consciente ou não, em busca da defesa de finalidades ou
bens maiores inscritos em nos nossos valores morais.

O que estamos advogando é que nem sempre as propostas de educação moral


alcançam todos os espaços onde a moral cotidiana acontece na escola: nas atitudes,
julgamentos e decisões de todos os seus membros. Por isso, corremos o risco de
sermos "moralistas" se limitarmos os espaços de educação moral para apenas aqueles
ambientes pedagógicos tradicionais: a sala de aula, os temas transversais estruturados
por certas disciplinas, as campanhas em momentos específicos. Nada soaria mais falso
que um professor preconceituoso com seus alunos pobres fazer uma campanha contra
o racismo, ou que professores punitivos, excludentes e mau relacionados com seus
alunos pedirem reflexões dos mesmos sobre a não-violência. Assim, propostas de
educação moral devem estar atentas para os espaços não-formais de experiência
morais e/ou éticas nas escolas.
Se a moral e a reflexão ética estão presentes informalmente em tantos espaços
escolares, questionamos por que é tão pouco discutida na escola ou nas instituições de
formação de professores. Acreditamos que isso aconteça em função dos modos como
a moral tem sido vista nas escolas. Como indicou Buxarrais (1997) sobre educação
moral, ou Cabanas (1996) sobre valores, duas grandes tendências predominam no
campo da educação moral: ou se consideram alguns valores e normas como corretos
44

por si, absolutos e basta transmiti-los uniformemente, como nas escolas religiosas ou
militares, ou se considera que moral é uma questão privada, de decisão particular de
cada um; o que na escola se reflete por uma posição neutra e relativista. Ora, já
mostramos na introdução desse livro as conseqüências dessas duas posturas. Os
demais capítulos desse livro buscaram mostrar um terceiro caminho: a moral como fruto
de uma construção autônoma, racional, dialógica, coletiva. Na escola, esse caminho
pede, antes de tudo, uma conscientização das morais informais que ocorrem em todos
os espaços escolares que acabamos de descrever e a adoção de procedimentos de
discussão e reflexão sobre a moral que se quer. A moralidade de professores, alunos e
demais membros da escola é importante demais para acontecer de modo implícito e
irrefletido.
Terminamos esse artigo colocando mais uma questão: se devemos construir ou
reconstruir valores, normas, princípios para a nossa conduta e de nossos alunos, em
que nos inspirarmos?
Acreditamos que a situação econômica - social - cultural que a maioria de
nossas crianças vivem como cidadãos brasileiros deva ser um ponto de partida. Jornais
e revistas diversos têm insistentemente mostrado estatísticas que revelam o Brasil
como um país extremamente injusto para sua população, e em especial, as crianças. A
repetência escolar continua imensa - a Folha de São Paulo (1999) exibiu estatísticas
que revelam, por exemplo que a repetência nas 1ª séries de escolas públicas em 1997
ocorreu em 55% das crianças no Norte, 53% no Nordeste, 35% no Sul e 30% no
Sudeste.
O descompasso entre série e idade, a conseqüente evasão escolar e o trabalho
infantil continuam a ser a realidade da maioria das crianças pobres. O agenciamento de
crianças para o tráfico de drogas, a miséria, a violência doméstica e nas ruas (a Folha
de São Paulo apresentou estatística de que em 1998, 68% das mortes de jovens entre
15 a 19 anos ocorreu por: acidentes domésticos, trânsito e homicídios), ainda ocorrem
para grande parte de crianças nesse Brasil; país que tem cerca de 32% da população
analfabeta e 30% da população considerada como miserável, sendo 50 milhões os
brasileiros com renda inferior a R$ 80,00 mensais (Folha de São Paulo, 2001). Enfim, a
pobreza cultural do país é a norma segundo a Folha de São Paulo que mostrou
45

pesquisa revelando que 92% dos municípios brasileiros não tem cinema, 83% não tem
museus, 85% não tem teatro, 65% não tem nenhuma livraria ( 2001).
Ora, nesse país, quais as prioridades a se colocar em Educação? Educar quem,
para o que? Que cidadão formar para esse país? Um cidadão que sobreviva a esse
país que fizemos ficar assim - é o que nossas crianças encontram - e um cidadão que
ajude a construir um país melhor para a sua geração e as futuras. Os professores, tão
premidos pelas péssimas condições de seu trabalho, por vezes, ficam alheios a
urgência que temos em colocar a educação para uma digna vida como a nossa mais
importante tarefa - e esse é o primeiro compromisso moral.
Por todas essas questões acreditamos que a Ética deva ser pensada como um
dos componentes mais importantes da Educação sendo, portanto, alvo de debates, de
reflexão e de formação de educadores tanto quanto o são os aspectos tradicionalmente
considerados pedagógicos. Esse é o convite do presente artigo!
46

_________________________________________________Aula 03
Práticas de Cidadania na Escola e na Sala de aula

“Formar o cidadão é dar as orientações básicas


de respeito e de condição social. A condição social é
que faz o cidadão. É conscientizar e para isso é
fundamental a escrita, a leitura, a compreensão do
mundo. Através da educação, o aluno vai saber
conhecer os seus direitos, as suas obrigações e saber
respeitar o próximo. Saber ser gente” (Fala do professor
Escola Estadual de Pernambuco).
Na história do povo brasileiro nunca se falou tanto em cidadania e em direitos
humanos como nas últimas décadas. Essa temática vem se constituindo em um dos
focos de interesse de diferentes instâncias da sociedade: movimentos sociais, meios de
comunicação, partidos políticos, organizações sindicais, instituições governamentais e
não-governamentais e o meio acadêmico.
A motivação por essas questões eclodiu, principalmente, com o processo de
redemocratização da sociedade brasileira, após longo período de mutilação da
cidadania, no qual os direitos civis e políticos foram cerceados, e devido ao
distanciamento que separa o direito proclamado e a sua concretização, mesmo a
despeito de o Brasil ter avançado em termos político-jurídicos dos ideais proclamados
da democracia, conforme o que está prescrito no Artº 5º da Constituição Federal.
O Estado brasileiro, além de suas leis específicas, tem um Programa Nacional de
Direitos Humanos-1966, e é signatário dos principais acordos e pactos internacionais
de garantia e proteção dos direitos humanos2. É regido pela Constituição (1988) mais
democrática da história do país, conhecida como a “Constituição Cidadã”, na qual os
direitos foram ampliados em todas as dimensões: civil, política, social e cultural.
No entanto, o avanço da democracia, no campo do ordenamento jurídico, não foi
acompanhado de políticas públicas mais conseqüentes, de forma a assegurar à maioria
da população os direitos fundamentais, principalmente os sociais, e fortalecer o regime
47

democrático. Essa situação faz com que a sociedade brasileira conviva com uma
permanente contradição – o desrespeito aos direitos humanos e a negação da
cidadania, pelo próprio Estado.
O fato de a sociedade brasileira ser organizada e estruturada por um modelo
econômico capitalista, extremamente excludente, caracterizado por grande
concentração de renda - aliás, uma das maiores do mundo -, constitui um dos principais
fatores da desigualdade social, da discriminação e da violência, sendo esta última
presente nas diferentes instituições da sociedade.
No campo da educação, apesar de ter havido avanços em relação ao aumento
do número de matrículas, das taxas de escolaridade no ensino fundamental e uma
queda da taxa de analfabetismo, no período de 1960 a 1995, de 39,5% de analfabetos
passou para 15,5% (IBGE - 1999), os avanços não aparecem de forma homogênea no
país.
Essas grandes diferenças geram relações profundamente desiguais: privilégios
para alguns e, conseqüentemente, a ausência de direitos, para muitos. Nancy Cardia
(1995) chama a atenção para um fator extremamente preocupante no comportamento
da população, ou seja, no Brasil as desigualdades econômicas e sociais apresentam-se
como uma normalidade, pois não são percebidas como injustiças graves por aqueles
que as sofrem.
No conjunto dos dados estatísticos, o Brasil atravessa uma crise econômica e
social que se apresenta de forma mais visível nas grandes cidades. Essa crise tem se
agravado nos últimos anos com o fortalecimento do projeto neoliberal, que não favorece
a efetivação da cidadania.
Segundo Vera Candau et alii (1998, p.11), a política neoliberal implantada no
país dificulta o fortalecimento da cidadania e da democracia, pois:
“incorpora o discurso democrático e favorece a democracia e a
cidadania de baixa intensidade. Promove mudança estrutural com
reformas econômicas e políticas e exclui e compromete direitos
sociais conquistados. Reconhece a importância da educação
básica, mas assume um enfoque técnico-científico de seu
tratamento e não valoriza o profissional da educação”.
48

Algumas iniciativas de políticas governamentais estão sendo propostas, nos


últimos anos, no sentido de fomentar uma cultura de respeito e proteção aos direitos
humanos, a exemplo dos Programas Nacional e Estaduais de Direitos Humanos, os
Parâmetros Curriculares Nacionais–PCNs e o Programa Nacional de Livro Didático3.
Essas iniciativas, embora tenham a sua validade, ainda são muito tímidas diante do
quadro de desigualdade econômico-social e da baixa produtividade da escola para
grande parte da população brasileira.
Essa realidade brasileira mostra que apenas a formulação de leis não garante os
direitos aos cidadãos, havendo, portanto, uma diferenciação entre a proclamação do
direito e a forma de desfrutá-lo (Norberto Bobbio,1986).
Entendemos que para desfrutar o direito é necessário que o indivíduo tenha
condições de exercer a sua cidadania. Esse exercício está relacionado ao nível de
conhecimento e de conscientização que o indivíduo tem dos direitos e deveres, dos
mecanismos para efetivá-los e do nível de organização que a sociedade possa ter para
fazer valer os direitos. Essa é uma ação que tem início no plano individual mas exige
uma articulação coletiva.
A grande questão que se evidencia no início deste século não é mais o de
fundamentar os direitos dos homens, mas de garanti-los, conforme ressalta Norberto
Bobbio (1992):
“O problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico
e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e
quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e o seu
fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou
relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los,
para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados” (p.25).
Concordamos com Bobbio no sentido de que a garantia dos direitos humanos é
um problema político, e está relacionada ao nível de compromisso que os gestores das
políticas públicas têm em assegurá-los e do poder da população de reivindicá-los.
49

Nessa direção, acreditamos que a escola, entre outras instâncias da sociedade,


como partidos políticos, sindicatos, igreja, movimentos sociais, associações de classe,
ou seja, os estratos mais organizados da sociedade, têm um papel fundamental a
desempenhar nesse processo.
No campo da escola, essa aparece como um “locus” privilegiado, na medida em
que trabalha com conteúdos, valores, crenças, atitudes e possibilita o acesso ao
conhecimento sistematizado, historicamente produzido, de forma que o aluno se
aproprie dos significados dos conteúdos, ultrapassando o senso comum de maneira
crítica e criativa.
O grande desafio colocado às instituições que visam contribuir para a formação
de cidadãos conscientes, possibilitando a estes o exercício da cidadania ativa, como
afirma Maria Victoria Benevides (1991), é o de romper com a cultura escravocrata,
clientelista e patrimonialista que embasa a formação do povo brasileiro, e que permeia
as diferentes relações no conjunto das instituições sociais. A escola não está isenta
dessas influências. E como conceber uma escola que busque contribuir para o
exercício da cidadania democrática?
OBJETIVOS DO ESTUDO
Ao focalizarmos a educação como instrumento de formação da cidadania,
através do trabalho desenvolvido na escola pública, temos a clareza de que a escola
sozinha não dá conta da tarefa de formar o cidadão, uma vez que a formação da
cidadania vai além de seus muros. Ela é forjada no dia-a-dia das relações dos
indivíduos e no conjunto das organizações da sociedade, a exemplo dos movimentos
sociais que têm apresentado contribuições relevantes nesse processo.
O principal objetivo desse estudo é, portanto, investigar como a escola pública
pode contribuir para formação da cidadania democrática, a partir de pesquisa
realizada em 04 escolas situadas na Região Metropolitana do Recife e Grande Recife,
no período de 1999 a 2000. Para a coleta de dados foram utilizados questionários com
alunos, professores, direção da escola e gestores da Secretaria de Educação de
Pernambuco; observação na escola; entrevistas e análise de documentos.
Este estudo parte do pressuposto de que a concretização de uma proposta de
escola nessa perspectiva tem como principal determinante o nível de consciência e de
50

conhecimento que o educador tem dos direitos e deveres, além de uma vivência cidadã
que se efetiva no campo individual, mas, principalmente, enquanto sujeito coletivo. Isto
requer um trabalho compartilhado e participativo de todos os atores que estão
envolvidos no projeto pedagógico. Dessa forma, a efetivação de uma política
educacional deve assegurar processos de capacitação dos sujeitos responsáveis pela
sua implantação.
Nesse entendimento, a formação desses sujeitos deve possibilitar, além da
apropriação dos conhecimentos básicos, dentro de um contexto histórico e político dos
direitos humanos e da cidadania, a mudança de valores, atitudes e posturas. Essa
formação compreende a apreensão de uma nova cultura em que o educador se
perceba, bem como perceba o aluno e os demais integrantes do trabalho escolar, como
sujeitos de direitos e deveres, e veja a escola como espaço de exercício permanente de
construção coletiva da cidadania.
Analisar a escola enquanto “locus” de formação da cidadania democrática,
requer a explicitação dos conceitos básicos que orientaram este trabalho.
Compreendemos que a formação da cidadania está imbricada no entendimento que se
tem de democracia e direitos humanos em um determinado contexto social, cultural,
político e econômico.
Partimos do princípio de que o regime democrático é o que oferece melhor
condição para o respeito e a fruição dos direitos humanos, bem como a formação da
cidadania. Compreendemos democracia na perspectiva de Fábio Comparato (1989),
como sinônimo de soberania popular com total respeito aos direitos humanos, fundada
nos princípios da liberdade e da igualdade. A igualdade é aqui entendida no sentido de
igualdade diante da lei e de garantia do acesso aos bens sociais e às condições
básicas necessárias a uma vida digna para todos os indivíduos. A liberdade é algo
inerente à condição do ser humano, em termos da liberdade de expressão, de
pensamento, de ir e vir, de participar e de intervir na construção do projeto de
sociedade em que o indivíduo está inserido.
Neste trabalho, assumimos o conceito de direitos humanos a partir do
pressuposto do direito à vida, condição primeira, sem a qual deixam de existir os outros
direitos, e do reconhecimento da dignidade intrínseca ao ser humano. São os direitos
51

fundamentais a toda pessoa, sem distinção de etnia (raça), opção sexual, credo
religioso, opinião política, sexo, nível de instrução, posição sócio-econômica,
julgamento moral ou nacionalidade. E a cidadania, na perspectiva democrática, é a
materialização dos direitos legalmente reconhecidos e garantidos pelo Estado, que
inclui o exercício da participação política e o acesso aos bens materiais. É, também, a
condição de participar de uma comunidade com valores e história comuns, a qual
permite aos indivíduos uma identidade coletiva. É, na verdade, o pleno exercício do
direito.
Nessa direção, a prática pedagógica voltada para a construção da cidadania
democrática é essencialmente romper com a cultura autoritária, de submissão, de
mando, impregnada nas diferentes relações sociais; é criar uma nova cultura a partir do
entendimento de que todo e qualquer indivíduo é portador de direitos e deveres; é
garantir o acesso ao conhecimento que permita-lhe apreender a complexidade das
relações e determinações do conjunto da sociedade; é prepará-lo para sua inserção no
mundo do trabalho, para compreender o avanço tecnológico e a participação ativa na
organização da sociedade.
Para que a escola possa desenvolver um trabalho nesta perspectiva, faz-se
necessária a construção de um projeto pedagógico, democrático e participativo, em que
a formação do sujeito possa ser assumida coletivamente. Esse processo se desenvolve
na prática diária, através da apreensão dos conteúdos curriculares e na vivência do
exercício da cidadania.
– PRÁTICAS DE CIDADANIA NO ESPAÇO ESCOLAR
Ao assumirmos neste trabalho que a escola é um dos principais “locus” de
formação da cidadania e tem como função principal a socialização dos conhecimentos
historicamente acumulados e a construção de saberes escolares, algumas questões
orientaram nosso olhar para o interior da escola: qual o objetivo dessa formação, como
esses saberes estão contribuindo, quais os valores, comportamentos, atitudes e hábitos
que têm permeado a prática escolar? Como a escola organiza o trabalho na perspectiva
dessa formação?
Assim, organizamos a análise dessas questões em duas grandes categorias: a
dimensão organizacional-administrativa e a dimensão pedagógica.
52

-DIMENSÃO ORGANIZACIONAL-ADMINISTRATIVA
Focalizamos nesta categoria os aspectos referentes ao processo de organização
administrativa da escola: participação e planejamento participativo; boa administração;
profissionalismo.
 Participação e planejamento participativo
A questão da participação nos espaços públicos tem se constituído em
necessidade da população e ao mesmo tempo em desafio. A necessidade é decorrente
do processo de abertura política que aponta para a construção de espaços,
organizações mais democráticas, com a inserção mais direta da população na definição
e nos destinos de um projeto mais amplo de sociedade. O desafio está na construção
desse projeto, em que os sujeitos são aprendizes iniciais desse processo.
A escola pública que se propõe a trabalhar em busca de uma proposta
democrática de forma a contribuir para a formação da cidadania ativa, de sujeitos
construtores do projeto de sociedade, não pode perder de vista essas
necessidades/possibilidades e os desafios.
Concordamos com José Romão e Paulo Padilho (1997 :
“que planejar a escola de forma socializada é exercitar a
cidadania, pois implica a tomada de decisões, em envolvimento
com as ações do cotidiano escolar e em avaliações dos serviços
prestados à população, o planejamento deve começar pela
inserção de toda a sociedade no debate democrático sobre as
questões relativas não só ao processo de ensino aprendizagem,
mas também em relação às questões administrativas e financeiras
da escola e às questões da própria sociedade em que ela se
insere, considerando sempre os condicionantes sócio-culturais e
políticos que influenciam e afetam diretamente o cotidiano escolar”
(p.85).
Assim, ao adentrarmos na análise do processo de elaboração do projeto
pedagógico, a participação nas atividades da escola foi bastante enfatizada pelos
educadores das quatro escolas, os quais entendem participação como envolvimento do
53

corpo docente, do corpo discente e da comunidade com o trabalho escolar, conforme


verificamos nas falas dos educadores:
“Na escola há participação tanto do professorado, dos alunos, do
pessoal administrativo, da comunidade e do conselho escolar”.
A participação está associada, também, ao trabalho integrado e a coesão entre
os atores.
“Aqui há um entrelaçamento muito bom entre corpo docente e
discente, que nos ajuda no dia-a-dia a enfrentar os problemas
sociais. Os professores procuram, em sua maioria, evoluir, se
renovar. Há uma integração do colegiado com os pais”.“Na escola
há coesão, todo mundo se entrosa, é como se essa escola fosse
única”.
Os educadores parecem demonstrar clareza quanto aos objetivos do projeto
pedagógico, ao afirmarem que para permanecer na escola é necessário adesão ao
trabalho e quando chega algum professor que não consegue se adaptar à proposta, a
direção conversa no sentido de conscientizá-lo sobre o projeto que a escola defende e
que deve ser assumido no coletivo.
Merece ser ressaltado que os educadores demonstram compreensão de que a
participação não é algo acabado, pronto. Uma das diretoras chama atenção para o fato
de que a gestão participativa, na vida da escola, é um processo que está em
construção, até porque o grupo tem pouco tempo de serviço na escola e, de certa
forma, é um grupo jovem, em idade e em experiência na educação4.
É dentro desses limites que os alunos em duas escolas não conseguiram
estruturar o grêmio escolar, enquanto organização e instância de representação mais
ampla. O que existia no conjunto das escolas era a representação dos alunos por
classe, escolhidos através de eleição direta, organizada pelos próprios alunos.
Nesse sentido, Moacir Gadotti e José Romão (1997) mostram
a importância da participação como forma de possibilitar à
população uma melhor organização e compreensão do Estado,
54

para poder influir no seu funcionamento. Na escola a participação


“contribui para democratização das relações de poder no seu
interior” (p.16).
Essa maneira de administrar permite aos seus atores e à comunidade conhecer
e acompanhar melhor o seu trabalho para poder nela intervir, fazendo com que esses
sujeitos deixem de ser espectadores e usuários para assumirem o papel de autores e
atores do projeto escolar.
Nesse entendimento, e procurando cumprir com a legislação educacional, a
Secretaria de Educação, ao organizar o calendário oficial, previu, durante o ano letivo,
períodos para trabalhar o projeto pedagógico nas escolas, nas suas diferentes fases:
elaboração, acompanhamento e avaliação. É, portanto, tarefa da escola construir o
Projeto Pedagógico nos seus diferentes momentos.
Segundo os educadores, o projeto pedagógico foi elaborado a partir de um
processo de discussão das necessidades e objetivos da escola, contando com a
participação dos seus atores:
“O projeto pedagógico foi levado para discussão com os pais e se
procura atender as necessidades da escola de forma
democrática”.
Essa disposição de a escola trabalhar de forma mais participativa, em busca de
melhores resultados para o trabalho pedagógico, não elimina as dificuldades
encontradas pelos educadores para gerir sua administração, pois algumas dessas
dificuldades estão relacionadas à definição e à decisão de política mais ampla, como no
caso dos recursos financeiros. Além disso, a estrutura organizacional da Secretaria de
Educação e a máquina governamental burocratizadas não acompanham o ritmo e a
dinâmica do trabalho escolar. Mas, é através do trabalho integrado com a comunidade
que as escolas pesquisadas procuravam minimizar essas dificuldades:
“A comunidade tem um relacionamento diferente com a escola. O
trabalho é grande, mas procuramos conseguir o que se idealiza.
Na escola há um grupo que se une, discute e toma posições em
conjunto”.
55

Nessa ótica, o planejamento participativo é destacado pelos educadores como


uma forma de contribuir para melhorar o ensino, uma vez que há o envolvimento dos
educadores nas questões da escola:
“Eu acho a escola muito dinâmica. Se tem algo que podemos
fazer para melhorar, todo o mundo corre atrás, ou se precisa
melhorar uma turma, a gente se reúne e vê o que pode fazer.
Todas as turmas são de todos os professores, os alunos
conhecem todos os professores da escola”.
Essa forma de envolver a comunidade no projeto da escola possibilita outra
compreensão da responsabilidade e do significado do trabalho no espaço público, pois,
segundo os educadores:
“A comunidade hoje tem uma concepção diferente dessa escola;
eu não sei se é pela integração, pela dedicação da diretora, pelo
profissionalismo dos professores, a escola é cobrada pela
comunidade”.
Uma das maneiras de a comunidade se posicionar é através da avaliação sobre
a escola. No momento da matrícula os pais avaliam o desempenho da escola através
de questionário e um dos pontos focalizado por eles foi a necessidade de melhorar o
ensino. Essa dinâmica permite à escola avaliar o trabalho como um todo e a buscar no
coletivo as alternativas para concretização da ação pedagógica de melhor qualidade.
Como podemos observar, as falas apresentadas pelos educadores e gestores,
até então, demonstram que há um trabalho de grupo na escola, compreendido
enquanto interesse maior do coletivo.
Boa administração
A boa administração é destacada pelo conjunto dos educadores como um dos
fatores mais relevantes no trabalho escolar. Uma das escolas, localizada na região do
Grande Recife, chega a ser considerada por estes como uma das melhores do Estado
e, a sua administração é o ponto principal para assegurar a qualidade do trabalho.
“Na escola existe uma diretora que tem dedicação ao trabalho,
que indica caminhos, conversa, participa. Existe uma cabeça que
tem posição e orienta o trabalho. Aqui não funciona como uma
56

escola pública que o povo faz o que quer. Mesmo se você chegar
aqui sem muito interesse, você se contagia com o andamento dos
trabalhos e termina caminhando com os outros”.

Essa escola apresenta, de fato, um trabalho diferenciado diante das demais


escolas da comunidade e até mesmo em relação às outras observadas. A maioria dos
professores trabalhava na escola há bastante tempo, em média de 8 a 10 anos. A
estrutura física é muito boa e tem legitimidade da comunidade, a tal ponto que para se
conseguir uma vaga é muito difícil. Apresenta um bom nível de aprovação e a evasão é
muito pequena. A estrutura administrativa segue o modelo definido pelo Conselho
Escolar, com Departamentos de Estudo nas áreas do conhecimento, Centro de Língua,
e Departamento de Esporte, Cultura e Lazer.
A positividade em relação à administração é evidenciada nas falas também dos
alunos, ao solicitarmos que eles falassem sobre a escola:
“A escola é boa, é ótima, porque ensina, quer o bem da gente.
Educa, ajuda na vida”.
Em uma segunda escola o sentimento dos alunos é muito semelhante:
“Eu acho a escola super-legal. É o máximo ter uma escola como
essa, onde todas as pessoas são unidas, é isso que eu acho mais
bonito aqui. Eu sempre digo: os professores gostam muito dos
alunos e os alunos gostam muito dos professores, demonstram
carinho um pelo outro”.
A percepção dos alunos dessa escola é mais enfática porque esta foi construída
após muitos anos de luta da comunidade (área de invasão) e a primeira administração
teve um trabalho avaliado de forma negativa, conforme as suas falas.
“A escola mudou muito, pois antigamente não era assim. Os
alunos badernavam e os professores tinham medo de ensinar na
escola. Agora melhorou, os professores têm maior carinho pelos
alunos e os alunos pelos professores”.
Quando indagamos sobre o que mais contribuiu para haver essa mudança os
alunos e professores creditaram ao trabalho empreendido pela direção, eleita pelos
57

seus pares, e ao trabalho participativo, que envolve os atores da escola e a


comunidade na gestão escolar. Vale destacar que três escolas entre as quatro
observadas receberam prêmio da UNICEF devido ao bom desempenho administrativo-
pedagógico.
Quanto ao bom relacionamento entre os atores e principalmente entre os alunos,
a avaliação dos diretores das escolas apresenta outros dados de realidade que não
foram destacados pelos alunos, ou seja, a violência nas relações sociais,
principalmente entre os alunos, que se manifesta de diferentes formas, sobre o que
trataremos mais adiante.
Essa avaliação muito positiva dos alunos e até de alguns educadores pode ser
explicitada, possivelmente, como uma projeção, um dever ser criado no imaginário
desses atores, a partir do desejo de ter uma escola mais tranqüila, sem violência.
Um outro ponto destacado pelos educadores como favorável ao projeto escolar é
a permanência da direção, no sentido de sedimentar e dar seqüência à proposta
pedagógica:
“A direção está trabalhando há muitos anos na escola. É especial
e não tem mudança de direção por causa da política. Muda o
governo, muda diretor, essa coisa de interferir na educação. A
escola é privilegiada porque tem uma seqüência de trabalho por
vários anos. Aí você vê o crescimento em termos de estrutura e do
relacionamento”.
Essa forma de intervenção do governo na educação está relacionada às práticas
clientelista e coronelista, que têm permeado as relações na nossa sociedade e,
principalmente, com maior destaque nas administrações públicas, conforme vimos nos
estudos de Victor Nunes Leal (1949) e Francisco Weffort (1992), destacados
anteriormente.
Historicamente, os cargos de diretor e de diretor-adjunto das escolas são
considerados cargos de “confiança” do governo. A experiência mostrou que estes têm
servido, essencialmente, para atender aos interesses dos chefes políticos que dão
apoio e sustentação às propostas do governo, razão pela qual a Secretaria de
58

Educação e o próprio Sindicato encontraram dificuldades de assegurar, através de


legislação própria, o processo de eleição direta para ocupação desses cargos.
Os educadores destacaram também o Conselho Escolar como um aspecto
importante para assegurar a democratização da gestão e uma boa administração. Eles
chamam atenção, ainda, para o fato de que o processo de elaboração do Regimento
Escolar, orientado pela Secretaria de Educação, favoreceu o envolvimento dos
educadores e do Conselho no projeto da escola.
“A escola tem uma boa organização, consegue mobilizar o
Conselho Escolar e tem um grupo que discute as regras e as
normas”.
Os gestores da Secretaria reafirmam a importância do Conselho Escolar como
um ponto relevante ao avaliarem a política educacional, além da participação da
comunidade e da qualificação do educador.
O Conselho Escolar é, portanto, entendido como órgão de gestão democrática
organizado sob a forma de colegiado, cuja composição integra a representação de
todos os segmentos da escola – direção, professores, alunos, funcionários e a
comunidade. É tarefa do Conselho Escolar decidir sobre aspectos administrativos,
financeiros e pedagógicos, cujo parâmetro é o projeto pedagógico da escola, devendo o
Conselho Escolar acompanhá-lo e avaliá-lo.
A esse conjunto de fatores que interferem mais diretamente na organização e
dinâmica do trabalho escolar os educadores atribuem outro fator que contribuiu
positivamente, que é o profissionalismo.
 Profissionalismo
Este é entendido pelos educadores como compromisso com o trabalho,
cumprimento de horário, das tarefas definidas no coletivo e da compreensão do papel
social da escola. Isso é evidenciado quando perguntamos aos educadores quais os
fatores que favoreceram o desempenho positivo da escola:
“Eu considero o profissionalismo e a forma democrática do
trabalho da escola. Os professores são comprometidos, raramente
faltam, só em casos de doença”.
59

Ao indagarmos gestores da Secretaria de Educação sobre o trabalho das


escolas, de um modo geral, em relação à política educacional, eles apresentaram
exemplos de práticas ocorridas em outras escolas que diferenciam radicalmente dos
achados da pesquisa com relação à questão do profissionalismo:
“Houve casos de professores que reprovaram alunos para manter
a carga horária de trabalho. É a falta de profissionalismo desses
professores, do entendimento do papel da escola. Eles utilizavam
o poder do professor para reprovar e se acham donos da
verdade”.
Essa constatação mostra que em um sistema de ensino existem realidades
bastante diversificadas, de níveis de comprometimento profissional, de ritmos de
trabalhos e de compreensão de política educacional diferentes, uma vez que:
“teve escolas que caminharam muito bem, outras caminharam de
forma média e outras não caminharam” (Fala dos gestores).
Esses achados vêm confirmar os estudos de Moacir Gadotti e José Romão
(1997), ao enfatizarem que as experiências de gestões democráticas implantadas no
Brasil vêm
“exercendo influência positiva sobre a educação brasileira como um todo:
a) Sobre a estrutura e funcionamento dos sistemas: ‘colaboração’ entre os
sistemas e comunicação direta da administração com as escolas;
b)Sobre a organização do trabalho na escola: autonomia, projeto político-
pedagógico e avaliação compartilhada;
c)Sobre o órgão de gestão da educação; plano estratégico de participação,
canais de participação e transparências administrativas;
d)Sobre a qualidade do ensino: formação para cidadania (cria possibilidade de
participar da gestão pública);
e)Sobre a definição e acompanhamento da política educacional: aumenta a
capacidade de fiscalização da sociedade civil sobre a execução da política educacional”
(p.18).
60

Outros estudos desenvolvidos por Zélia Mediano (1999), Maria Alice Setúbal
Silva et alii (1995) reafirmam esses aspectos considerados positivos no trabalho
escolar.
Tais pesquisas, ao investigarem os requisitos básicos que mais contribuíram
para a melhoria do projeto pedagógico-administrativo, escolas consideradas bem
sucedidas, evidenciaram as seguintes características:
 Gestão participativa – a escola poder contar com equipe técnico-
administrativa forte e comprometida com o trabalho. A escola é vista como espaço
efetivamente público.
 Existência de projeto político-pedagógico – instrumento orientador das
ações dos atores da escola.
 Relações abertas e solidárias – o trabalho da escola tem como base o
diálogo para trabalhar as relações, inclusive os conflitos.
 Estabilidade dos professores e da gestão – a permanência do corpo
docente e da direção contribuem para solidificar o trabalho e fortalecer as relações
entre os atores da escola.
 Apoio efetivo da autoridade educacional – este se reveste de maior
importância no sentido de garantir as condições materiais e apoio pedagógico ao
desenvolvimento do trabalho na escola.
61

_________________________________________________________Aula 04
Dimensão Pedagógica
A dimensão pedagógica é aqui entendida enquanto trabalho pedagógico que
engloba os elementos constituintes da ação educativa como um todo, e do fazer
docente, que se concretizam no espaço escolar, especialmente, na sala de aula.
A ação educativa significa que a função da escola não é só a instrução, é
também a educação, de forma a aumentar a capacidade do indivíduo de ser sujeito,
enquanto sujeito de direitos e de deveres para com a sociedade em que está inserido.
Assim, além dos conteúdos básicos considerados universais, é papel da escola
trabalhar o conhecimento que permita ao indivíduo situar-se na condição de sujeito
social, o que requer, também, trabalhar valores, hábitos, atitudes e comportamentos
que possibilitem o pleno exercício da cidadania.
Nessa compreensão, a escola deve:
“contribuir para desenvolver a tolerância em relação às minorias
(...); proporcionar abertura às outras culturas, a igualdade dos
homens e das mulheres, a participação democrática na vida
política, a solidariedade para os menos favorecidos, a integração
dos deficientes, o respeito pelo meio ambiente, a defesa dos
direitos humanos, a rejeição das discriminações de todo gênero”
(Lan 2000, c’est demanin, p.p.9-10. In: Philipe Perrenoud, 1994,
p.21).
Ao focalizarmos a prática docente, procuramos compreender como o processo
de ensino-aprendizagem é produzido no espaço escolar, quais os seus elementos
constituintes na ótica de uma proposta de escola que busca formar sujeitos cidadãos.
 A prática docente: avanços e dificuldades
Ao analisarmos a ação docente partimos do pressuposto de que o professor tem
um papel fundamental a desempenhar nesse processo, enquanto mediador entre o
conhecimento sistematizado e o aluno, mas, principalmente, pela possibilidade de
trabalhar valores, comportamentos e atitudes.
62

Dessa forma, concordamos com Mônica Thuller (1994) que “a mudança em


educação depende daquilo que os professores pensarem dela e dela fizerem e da
maneira como eles a conseguirem construir ativamente” (p.33).
Na busca de compreendermos como os professores construíram a prática
docente e de que forma esta contribui para a formação da cidadania, focalizamos a
nossa análise, partindo inicialmente da seguinte questão: É possível desenvolver na
escola pública um projeto pedagógico na perspectiva da formação da cidadania? A
maioria dos educadores afirmou:
“Isso é muito trabalhado na escola. Cidadania não é isolada, a
gente trabalha todo dia. A partir do momento que se ensina ao
aluno como se comportar, a ter um comportamento diferente na
sociedade, mostrar os prós e os contra. Então, se está
trabalhando a cidadania. É ensinar o aluno o que é votar, quem
eles vão colocar lá em cima para fazer alguma coisa pela pobreza.
É conversar sobre isso tudo com os alunos para que no futuro
tenha uma juventude mais politizada, consciente dos seus
deveres”.

“É complicado, muito difícil. Deve ser por conta dessa contradição


toda. Quando você diz: é possível? deve ser possível. Eu não sei
se isso surte efeitos, que tipo de efeito essa política, o que o
Estado espera com isso”.

De acordo com esses depoimentos fica evidente que os professores


compreendem esse processo de forma bastante diversificada. Para um grupo, a escola
tem um trabalho iniciado e a construção da cidadania se dá no cotidiano, a partir da
reflexão da realidade mais próxima articulada aos seus determinantes, aproximando-se
do que propõem Vera Candau et alii:
“A luta pelos direitos humanos se dá no cotidiano, em nosso dia-a-
dia, e afeta profundamente a vida de cada um de nós e de cada
grupo social. Não é mera convicção teórica que faz com que os
63

direitos sejam realidade, se essa adesão não é traduzida na


prática em atitudes e comportamentos que marquem nossa
maneira de pensar, de sentir, de agir, de viver” (1995, p.99).
Outros professores sentem dificuldade de desenvolver uma proposta nessa
perspectiva, embora a direção da escola tenha recebido orientação da Secretaria de
Educação e seu objetivo era repassar a orientação para os professores. Nesse
processo o educador demonstra expectativas, inseguranças e mostra que a escola vem
fazendo tentativas na busca de construir essa proposta. Isso fica bastante explícito nas
suas falas.
“Até que a escola teve iniciativas e não foram adiante, além disso
o que mais, dentro da própria questão do próprio currículo? Eu
acho que o currículo está sendo voltado um pouco para
comunidade. Sinto uma grande dificuldade da comunicação, das
expectativas, é uma coisa mais cotidiana, do dia-a-dia, de saber
das possibilidades da comunidade. Eu vejo tantas iniciativas, eu
vejo tanta coisa interessante, mas que parece que não caminha.
Nessa linha de educação para a cidadania, formar o indivíduo
mais para ver os seus direitos e os seus deveres”.

Continuando a análise do trabalho da escola, consideramos importante


diagnosticar como os professores percebiam a direção e os objetivos do seu trabalho,
em termos da contribuição para que tipo de aprendizagem, de comportamentos e de
valores.
“Eu tento mostrar o mundo para os alunos, dizer que a escola não é o mundo,
tem muita coisa lá fora, a partir dos conteúdos que a gente vê, inclusive, de conversas
que a gente tem em sala de aula. Eu procuro mostrar a realidade prática mesmo, de
vida profissional, do que eles podem alcançar e do que eles têm condição, sem fugir
muito, sem sonhar muito, que a gente sabe da realidade”.
“Com a minha prática eu pretendo dar a eles o máximo,
explorando a realidade atual do nosso país, as relações humanas
que nós devemos ter. Isso é uma coisa muito importante, os
64

valores familiares, que a gente deve explorar, devem servir não só


com aqueles conteúdos pedagógicos, mas também entrar na
relação, entre a vivência dos alunos com os pais, com a família,
como ele deve se comportar na vida. É uma aula mista, de tudo,
porque é um campo de estudos sociais”.
Como é possível observar, para esse professor há um enfoque na sua prática
direcionado à valorização das relações pessoais, familiares, e, no que se refere ao
trabalho pedagógico, não fica claro qual é a dinâmica estabelecida para trabalhar os
conteúdos. A própria definição de aula mista entendemos ser colocada devido à falta de
clareza do que o professor pretendia alcançar, em termos dos fundamentos teórico-
metodológicos e dos objetivos do seu trabalho.
Outro exemplo é quando o professor mostra a contradição que ele enfrenta entre
uma perspectiva que denomina de abordagem tradicional da prática pedagógica e a
progressista, embora não se perceba também uma explicitação de como é a dinâmica
da sala de aula, conforme podemos verificar em sua fala:
“Todo professor tem alguma coisa de tradicional e de progressista.
Eu não me libertei ainda do tradicional. É muito difícil, está
enraizado. Acho que estou melhorando. Às vezes a gente entende
que a linha progressista é para deixar o aluno fazer o que ele quer
mas, a gente sabe que isto é libertinagem e precisamos trabalhar
a liberdade direcionada”.
A dificuldade apresentada pelo professor no processo de mudança é explicada
por Mônica Thurler (1994), ao analisar os fatores que interferem nos processos de
mudança da prática docente, mostrando que só a adoção intelectual de uma mudança
não garante a sua aplicação e a sua incorporação no sistema educacional: “Os
professores adaptam a idéia e o princípio às suas atividades ao projeto. Por esta razão
tanto a idéia central do projeto como as atitudes modificam-se com o tempo” (p.36).
Isso mostra que a incorporação de novos conhecimentos se dá em um
determinado contexto de vida do indivíduo, em diferentes estágios, muitas vezes
conflituosos, exigindo tomada de posições, revisões, provocando desequilíbrios e
reelaborações. Portanto, não depende apenas da decisão, do querer do professor, mas
65

certamente das condições objetivas que possibilitem a este efetivar esse processo.
Entre os requisitos que interferem nesse processo podemos destacar as condições de
trabalho e de salário e das oportunidades de capacitações.
E como os professores percebem o seu trabalho no processo de construção da
cidadania?
Para o professor de educação artística o trabalho pedagógico contribui para
desenvolver o que denomina de aprendizagem significativa:
“A proposta que procuro desenvolver na sala de aula contribui no sentido de o
aluno ter uma aprendizagem significativa. Ele sabe o que está fazendo e porque está
produzindo e não é produzir por produzir. Ele sabe que ao produzir ele partiu de uma
produção estética e da observação da obra. Apresento sempre quem a produziu
através de vídeo, textos, recortes de jornal. Não é cópia, o aluno faz a partir do que ele
vê e também recria. Tem trabalhos bons aqui na escola” (Nesse caso, a professora faz
referência aos trabalhos realizados pelos alunos sobre as obras do artista Portinari, que
foram expostos em um grande painel na entrada da escola).
Essa prática incentiva o aluno a trabalhar a capacidade criativa, a ampliar o seu
capital cultural no momento em que ele tem conhecimento da história de vida de
pessoas e de outra cultura, além de contribuir para a auto-estima, pois os alunos-
autores desses trabalhos sentiam-se orgulhosos e fizeram questão de nos levar para
observá-los, inclusive com explicações sobre a vida e a obra do artista.
Ao buscarmos verificar junto aos alunos como os professores desenvolviam o
trabalho docente, foi possível observarmos diferentes formas e dinâmicas utilizadas
pelos professores:
“A professora de História traz umas apostilas e daquelas apostilas nós mesmos
vamos elaborar as perguntas e responder. Depois a professora verifica se está de
acordo com o que ela deu e, se tiver certo, ela dá ponto à gente. Eu acho melhor
aprender assim porque a mente da pessoa se desenvolve mais. Às vezes ela explica
aquele assunto, ilustrando, traz figuras, passa filmes, exercícios para a gente procurar
no texto”.
“A professora de Matemática, ela primeiro coloca todas as perguntas, todos os
cálculos no quadro, porque são muitos cálculos, uns vinte e cinco. No outro dia ela dá
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exemplos. É uma maneira mais fácil da pessoa aprender, porque se ela fosse logo
explicando ia ser mais difícil entender”.
“A professora de Português chega na sala, ela escolhe um assunto no livro e
manda a gente abrir na página. Ela lê o assunto e explica, duas, três vezes, até a gente
entender direito. Quando todos entendem, vamos copiar do livro para o caderno e fazer
exercícios. Às vezes ela faz exercícios no quadro para a gente copiar, mas ela explica
primeiro”.
“A professora de Português é uma pessoa que vai muito pela cidadania; o
professor tem direitos e o aluno também tem direitos. Se o aluno estiver errado, com
certeza o professor vai falar com o aluno, mas se o professor também estiver errado a
gente tem o direito de falar com ele, tanto com ele como com a secretaria da escola”.
Nos depoimentos dos alunos percebemos as diferentes formas de os
professores trabalharem o conteúdo. Há preocupação em incentivar a crítica, o debate
e os próprios alunos afirmaram que eram incentivados a perguntar, a questionar. Mas,
ao mesmo tempo, existem práticas docentes mais tradicionais, privilegiando a cópia, a
resposta a questionários e a problemas matemáticos dentro de uma compreensão de
aprendizagem passiva e enquanto acúmulo de informação.
Mas outros exemplos de práticas docentes relatados pelos professores destacam
dinâmicas mais diferenciadas em que o aluno é visto como sujeito ativo no processo de
aprendizagem:
Professora de Educação de Jovens e Adultos – “Eu trabalho muito com
Português, compreensão e leitura de textos e da escrita a partir dos conteúdos de todas
as matérias. Oriento aos alunos a que eles façam textos a partir da realidade. A gente
fez uma pesquisa em jornal, na comunidade e com textos. Depois os alunos montam
peças de teatro e apresentam. No início eles ficaram muito inibidos, mas quando chega
o meio do ano já começam a se desinibirem. Essa forma eu acho que os alunos se
interessam mais pelo assunto”.
Professora da 4ª série – “Procuro trabalhar Português, Geografia, Ciências e
Matemática de forma integrada. Por exemplo: ao trabalhar o corpo humano faço
relações com a língua portuguesa em relação aos significados das palavras, da
ortografia. Ao fazer um trabalho de grupo mostro a importância do trabalho de grupo,
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que ninguém vive isolado, que o ser humano tem o direito de ser livre, mas que existem
normas, tem o direito de participar. E faço relação com a comunidade, como ela se
organiza, sem dizer que é aula de Geografia ou de Português”.
Essa mesma professora chamou atenção para um trabalho que realizou sobre as
galeras, no sentido da galera sadia, ou seja, trabalhar com grupo de alunos/jovens
envolvidos com drogas e prostituição através da música com a formação de coral.
“Isso foi feito junto com a igreja, com o objetivo de tirar os alunos
das drogas, da prostituição. E tem que haver uma motivação.
Toda causa tem que ter um efeito. E por isso tento motivá-los.
Estamos tentando. Não é fácil, mas tem que tentar”.
Outra professora de 4ª série mostra experiência em que relaciona o conteúdo da
música aos conteúdos curriculares:
“Se for a minha intenção trabalhar Educação Artística, coloco a
música para eles relaxarem. Peço para eles fecharem os olhos e
vou levantando situações relacionadas à natureza, ao amor, ao
mar, ao sol para eles irem criando imagens. Depois eles fazem
expressão corporal e em seguida peço que eles descrevam e
desenhem o que perceberam com a música. Na descrição vou
trabalhando com redação e as outras áreas”.

Continuando, a professora descreve como utiliza os textos com conteúdos sobre


a criança de rua através da música O Meu Guri, de Chico Buarque.
“Eu desenvolvi um projeto a respeito dessa música e foi muito bom. Procurei
explorar todas as áreas, e os alunos fizeram outros textos sobre a situação dos
meninos de rua para teatro de fantoche. Eles elaboraram textos maravilhosos. E fomos
apresentar no Fórum que houve na Universidade Federal sobre a Violência. Eu sempre
trabalho com textos que tenham essência, porque ajudam ao aluno a pensar e têm
conteúdo para debater”.
Em uma segunda escola, vale destacar a experiência da professora de 4ª série,
também utilizando a música.
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“Eu utilizo textos de músicas que enfatizam a questão do


respeito, do companheirismo, da amizade. E discuto a questão da
individualidade, os limites de cada um, pois em uma comunidade
como essa em que a pornografia impera, a violência também, nós
educadores temos que mostrar o inverso disso, que existem
outras maneiras de agir, de se relacionar e de conviver”.
Nas diferentes práticas observadas nesta pesquisa é possível inferir que há
intenção dos professores em desenvolver o ensino de forma mais prazerosa, lúdica e
crítica, possibilitando ao aluno ser agente ativo da aprendizagem e construtor do seu
conhecimento. Além disso, no conjunto das escolas havia experiências de trabalhos
muito interessantes, com grupos de dança, música, teatro, cujo objetivo era melhorar a
sociabilidade, a auto-estima e a aprendizagem do aluno. Embora essas atividades
tenham uma importância no desenvolvimento da aprendizagem e da sociabilidade do
aluno, compreendemos que precisam ter sempre em vista os objetivos do projeto
escolar e dos conteúdos curriculares para não se correr o risco de esvaziá-las, ou seja,
estas devem ser trabalhadas de forma integrada a esses conteúdos.
No processo de análise da prática pedagógica o que nos chamou a atenção foi
que a escola é capaz de desenvolver práticas significativas que estimulam o respeito ao
aluno, à criatividade, à crítica, à autonomia, à participação e ao diálogo, mas em sua
maioria evidencia-se uma ausência de conteúdos relacionados à temática dos direitos
humanos e da cidadania de forma mais consistente e sistemática.

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