Você está na página 1de 8

Uma Introduçâo à Psicanâlise em

A
H Cïnco Liçôes
Leandro de Lajonquière"
T
I
G
O

Com o objetivo de pôr em contato os âreas do conhecimento e, em particular, a conexâo


leitores - profïssionais da psieopedago- com a (psico)pedagogia - centro de nosso interesse,
gia - nâo sô com algumas temâticas e 0 termo inconsciente converteu-se no maior equf-
conceitos inerentes ao campo analïtieo voco que atormenta a psicanâiise e sua transmissào
mas também com o estilo propriamen- jâ que apesar de estar certo de que sem ele a psica-
te freudiano de pensâ-los, apresenta- nâiise desaparece, também nâo é menos verdadeiro
mos à continuaçâo urn comentârio in- que se o inconsciente é pensado como o négative
trodutôrio as Cinco Liçôes de Psicanâ- psicolôgico da consciêneia, como o produto das re-
lise que Freud ministrou na Clark Uni- pressôes da civilizaçâo moderna ou como a morada
versity em 1909. Mais ainda, e na me- dos instintos e ritmos biolôgicos, o prôprio invento
dida em que as linhas que se seguem freudiano acaba esterilizado. Por outra parte, cabe
sô merecem ser lidas junto ao texto assinalar que sâo, precisamente, estas versées psi-
objeto de comentârio, pode-se afirmar cologistas, culturalistas e biologistas da psicanâiise
que nosso objetivo é convidar o leitor a as que, em ûltima instância e através de diferentes
debruçar-se sobre os originais. A razâo rodeios argumentativos, sustentam a crença de que,
disto é muito simples. por um Iado, a psicanâiise dever ser entendida como
Geralmente costuma-se pensât que a uma teoria do desenvolvimento e, por outro, a expe-
psicanâiise é uma teorîa do desenvoivi- riência clfnica freudiana situa-se num para além da
mento afetivo e que, enquanto tal, isto "funçâo e campo da palavra e da linguagem..." (titulo
é, enquanto explicaçào mais ou menos do Discurso de Roma de Lacan),
vitalista do dito desenvolvimento psico- Desta forma, a conexâo psicanâlise-(psico)peda-
lôgico, ela é também o resultado de um gogia nâo poderia, mesmo na melhor das hipôteses,
processo linear e mecânico de produçâo se pensar nurna outra chave que nâo seja aquela
em funçâo do quai as variadas "linhas almejada por Anna Freud,
analïticas" divergeriam sô no acessôrio Por que na melhor das hipôteses? Lembremos sô
ou na ênfase que dâo a aspectos diverses (pois uma anâlise-critica do annafreudismo ultra-
da teoria. Nâo obstante, como ao nosso passaria os limites do présente) que Anna Freud
ver, tanto um como outro pressuposto pretendia fundar uma pedagogia analïtica, fruto das
sâo totalmente discutïveis à luz da expe- contribuiçôes que a psicanâiise teria para dar à
riência e do pensamento freudiano, pro- educaçâo nos très sentidos seguintes: crîtica das
pomos se nos aeompanhe no propedêuti- normas educacionais visando a prevençâo da neuro-
co exercicio de uma certa operaçào de se, ampliaçâo do conhecimento que se tem do homem
leitura. Essa empresa, claro esta, nâo e elaboraçâo de um método terapêutico especifico
nos parece, em absoluto gratuita uma afim de remediar os danos psicolôgicos que as crian-
vez que, ao nosso juizo, nâo sô esta em ças possam experimentar no curso de sua educaçâo.
jogo o que se deve entender por psicanâ-
iise mas também, mima outra instância,
a natureza das "interaçôes" com outras Psicanalista, Doutor em Educaçâo.

LAJONQUIÈRE. L. - Uma Introduçâo à Psîcanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27):! 1-18,1993.
12

Pelo contrario, infelizmente, sabemos que, em nâo veio nos dizer que a Terra que habitâvamos nâo era
poucas oportunidades a consabida contribuiçâo nem o centre do sistema planetârio. Em segundo lugar,
chega a tanto: ela se reduz a um diagnostico mais ou Darwin disse que nossa existência nâo obedecia a
menos requintado. nenhum piano necessârio de nossa mâe natureza
Com efeito, nestes casos, a psicanâlise vem obtu- mas, muito pelo contrario, que nos eramos aleatoria-
rar, com uma soltura e uma simplicidade nem se mente seus filhos. Por sua vez, a reviravolta freudia-
quer sonhadas pela fîlha de Freud, uma certa falta na completou essas operaçôes de des-centramento
de saber (psicopedagogico). Eni outras palavras, ai ao postular a sobre-determinaçâo inconsciente do
quando os diverses saberes pedagôgicos. neurologi- agir humano.
cos, psicolôgicos e sociologicos convocados acabam Cada uma destas revoluçôes constituîram-se
recortando no horizonte um limite intransponivel, como tais em oposiçâo a uma tradiçâo paradigmâtica
costuma-se apelar à psicanâlise para que, suprindo- do pensamento ocidental. No caso particular dos
os, produza um saber sem falta/faîha - paradigma trabalhos freudianos, estes op6em-se à identidade
imaginârio de toda empresa cientîfîca, cartesiana sujeito=cogito=consciência, tradicional
Justamente em situaçôes como essas, a psicanâ- desde o século XVII. Por sinal, é precisamente esta
lise é convocada na direçâo contraria que Catherine identidade axiomâtiea a que Freud prétende ques-
Millot sintetizara desta forma: "... tudo o que o tionar na sua primeira liçâo nos U.S.A. a partir da
pedagogo pode aprender da anâlise e pela anâlise é caracterizaçào psicanalîtica do sintoma histérico.
saber pôr limites à sua açâo - um saber que nâo Nessa espécie de exportaçâo napoleônica dos pre-
corresponde a nenhuma ciência, e sim à arte ceitos revolucionârios, Freud relata as origens da
(1992:154). Direçâo que, alias, os trabalhos de Maud psicanâlise. Em primeiro lugar, destaca o trabalho
Mannoni começaram a trilhar pioneiramente jâ faz de hipnose que Breuer desenvolvera, pela primeira
tempo. vez, no tratamento de uma moça histérica (18807 82).
Neste sentido, afirmamos que a "contribuiçâo" da O trabalho clïnico com essa jovem, chamada Anna
psicanâlise, tendo em vista o contexto clïnico especï- O., aproximou Freud com seu professer circunstan-
fîco, passa, entâo, por uma certa "modulaçâo da cial - Breuer -, e possibilitou que escrevessem juntos
atençào" do profîssional ou, em outras palavras, por Estudos sobre a histeria (1895), mas também abriu,
possibilitar o atravessamento da experiência psico- simultânea e paradoxalmente, a brecha para o pos-
pedagôgica por uma escuta psicanalîtica visando terior distanciamento entre ambos. Nâo obstante
questionar cada "passo técnico" à luz da transferên- este desfecho, Freud nâo restou mérito algum as
cia que ele mesmo articula. Por sinal, ûnica chance observaçôes clinicas de Breuer. Estas, por um lado,
de nâo cairmos numa mecânica ortopédica de re- permitem-nos embasar "uma teoria puramente psi-
educaçâo que afaste toda possibilita de reabrir e colôgica da histeria, onde assinalamos o primeiro
recolocar, permanentemente, a pergunta acerca do lugar para os processos efetivos" (p.20); e, por outro.
destine da criança- enquanto sujeito do desejo in- levam-nos a reconhecer que "num mesmo individuo
consciente as voltas da procura de reconhecimento sâo possïveis varies agrupamentos mentais que po-
simbôlieo. dem ficar mais ou menos indépendantes entre si, sem
Mas... ficamos por aqui. Prometendo voltar sobre que um nada saiba do outro, e que podem se alternar
esta questâo numa outra oportunidade; eis à conti- entre si em sua emersâo à consciêncîa" (p.21).
nuaçâo as cinco ligôes. A primeira conclusâo se contrapôe àquelas idéîas
da época (e nâo tâo daquela época) que afirmavam
que a etiologia da histeria encontrava-se ern alguma
"afecçâo cérébral orgânica" (p. 14). Freud sustenta
que a doença deve-se ao fato do sujeito ter passade
m I por "violentes abalos emocionais" (p.14). Estes, no
Costuma-se afîrmar que o trabalho freudiano caso de Anna, tiveram lugar durante o periodo no
operou uma revoluçâo no pensamento ocidental. quai a jovem cuidou do pai doente. Assim foi que
Mais ainda, que a revoluçâo freudiana nâo era a "traumas psiquicos" ou "resfduos de experiências
primeira, mas a ûltima de uma série de révoltas: a emocionais" (p. 17) acontecidas nesse momento pas-
copernicana e a darwiniana. Em certo sentido, nos sade determinavam os sintomas atuais ou perturba-
podemos afirmar que de fato é assim. As très teriam çôes psiquicas e fisicas. Estas ûltimas deviam-se a
em comuna o fato de ter espatifado a imagem narcï- um processo chamado de "conversâo histérica" (p.20)
sica que a humanidade tinha, numa época determi- que consistia numa transformaçâo em "insolitas in-
nada, de si mesma. Em primeiro lugar, Copérnico versées e inervaçôes somâticas" (p.20) dos afetos

LAJONQUIERE, L. - Uma Introduçào à Psicanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27): 11-18, 1993.
13

surgidos na cena traumâtica. Ao contrario, uma Acrescentamos, por ûltimo, que em virtude de ser
outra porçâo considerâvel dos afetos, pensados como a palavra o instrumente de intervençâo deste trata-
magnitudes deslocâveis ou "grandezas variâveis" mento singular, a jovem paciente de Breuer o cha-
(p.20) perdurava, em parte, como "carga continua da mou de "talking cure" (p.23).
vida psïquica e fonte permanente de excitaçâo para A segunda conclusâo se contrapôe diretamente ao
a mesma" (p.20). conceito tradicionaî de sujeito agente centrado no
Nestas conceitualizaçôes freudianas podemos, à cogito. Este é, precisamente, o ponte central da
simples vista, entrever a clâssica pergunta da meta- teoria psicanalitica que Freud tentava apresentar a
fisica ocidental peîa relaçâo mente-corpo. Pergunta seu auditôrio.
que adquire uma fisionomianova nos estudos atuais O pensamento cartesiano postula uma perfeita
de medicina psicossomâtica. Nâo obstante, quando coincidência do sujeito consigo mesmo (ou seja, o
nosso autor palestrava para seus ouvintes america- centramento do sujeito sobre si mesmo). A proposi-
nos nâo estava pensando numa espécie de conjunçào çâo analftica "cogito ergo sum" afirma que o momen-
somato-psiquica mas, muito pelo contrario, que o to da cogitatio é congruente com o da consciência.
organisme funciona como sustento ou suporte da Esta é, para Descartes, uma pura reflexividade:
letra sintomâtica. Isto é, sobre o organisme que os quando penso nâo faço outra coisa que constituir-me
médicos estudam se escreve/inscreve uma escrita em objeto pensado, Precisamente, este momento
hieroglîfîca que os psicanalistas decifram. absoluto é questionado pela experiência freudiana.
Este trabalho de escrita détermina as singulari- 0 sujeito freudiano esta marcado por uma ruptu-
dades dos fenômenos histérieos e coloca o médico na ra que diferencia instâncias topicas (consciente, pré-
mesma situaçâo que o profano jâ que "todo seu saber consciente e inconsciente) e que, portante, descentra
e todo seu prépare em anatomia, fîsiologia e patolo- a subjetividade. O sujeito esta subordinado a uma
gia deixam-no desamparado" (p.15). Isto acontece, outra cena assim como essa senhora de uns quarenta
precisamente, porque a maneira histérica de escre- anos que fora paciente de Freud. Com efeito, Freud
ver transgride e perverte as leis da medicina. O nos diz nesta primeira conferência que essa mulher
organisme médico adquire uma fisionomia fantas- era objeto de uma força ou "contra...vontade" (p.18)
magôrica como Freud o descrevera com relaçâo a que a condenava a ter um tic singular. Nesta opor-
paciente de Breuer: Anna "tinha uma paralisia es- tunidade, Freud também afirma que a consciência
pâstica de ambas as extremidades do lado direito, nâo é uma pura reflexividade quando diz que a
com anestesia, sintoma que se estendia por vezes "doente de Breuer.. .em seu estado normal...ignorava
aos membres do lado oposto; perturbaçôes dos mo- totalmente as cenas patogênicas" tante quanto a
vimentos oculares e varias alteraçôes da visâo; conexâo com os sintomas (p.20). Entre as cenas
dificuldade de manter a cabeça erguida; repugnân- patogenas e os sintomas foi destruïda a conexâo pela
cia aos alimentos,,." (p.14), quai os segundos aparecem como um "corpo...estra-
Assim, o organisme de Anna funcionava como nho.,.no estado normal" (p.21), Mais ainda, Freud,
suporte para a construçâo de mensagens que nâo acrescenta: "Casos destes, também ocasionalmente,
faziam mais do que manter présente sua historia aparecem de forma espontânea, sendo entâo descri-
passada (ou seja, o passado é, entâo, um passado- tos como exemples de double conscience, Quando
nâo-passado). Este fato leva Freud a afirmar, por um nessa divisâo da personalidade a consciência fica
lado, que "os histérieos sofrem de reminiscências" constantemente ligada a um desses dois estados,
(p. 18) (que, na medida em que o passado nâo passou, chama-se esse o estado mental consciente e o que
nâo podem ser confundidas com as reminiscências delà permanece separado o inconsciente" (p.21).
platônicas) e, por outro, que para poder compreender Essa fenda ou hiato estrutural da subjetividade
as mensagens deve-se realizar uma tarefa de deci- subverte a proposiçào cartesiana: em certo sentido,
fraçâo. Esta trata de desentranhar o côdigo perdido Freud estava dizendo a seus ouvintes americanos
que funciona na combinatoria dos "simbolos mnêmi- que onde nos pensam,os nâo somos.
cos" (p.lS),
No que diz respeito a estas idéias, Freud faz
questâo de assinalar as diferenças que mantem com
Breuer: "nern sempre era um ûnico acontecimento
que deixava atrâs de si os sintomas; para produzir
tal efeito uniam-se na maioria dos casos numerosos Na atualidade aceita-se, com certa facilidade, a
traumas, as vezes anâlogos e repetidos" (p.17). afïrmaçâo freudiana da divisâo do psiquismo em
consciente e inconsciente. Talvez o publiée reunido

LAJONQUIÈRE, L. - Uma Introduçâo à Psicanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27): 11-18, 1993.
14

na Clark também passou a sustentâ-la quando ela é "resultado de uma luta ativa da parte dos dois
Freud acabara de ministrar sua primeira liçâo. Po- agrupamentos psiquicos entre si" (p.26) (os coneien-
rém, nem por isso devemos nos apressar a tirar como tes e os inconcientes).
conclusâo que esses americanos do começo do século, Assim, a teoria da repressâo ou recalque que
bem como muitos de nossos contemporâneos, concor- Freud elaborou, quando conseguiu tirar de seus
dem com todas as conseqiiências que implica em si olhos os restes do hipnotismo, possibilitou-lhe arti-
mesma a peste que nosso autor, em virtude de sua cular uma maneira psicanalïtica de pensar "os pro-
viagem, dissera trazer para o Novo Mundo. Com cessos psiquicos da histeria" (p.25). Operado esse
efeito, nos temos sobre este ponto certas dûvidas movimento epistêmico, marcaram-se terminante-
pois, aceitar a existência de processos psiquicos in- mente as fronteiras entre a nascente psicanalise e
conscientes é condiçâo necessâria para comungar todas as outras numerosas teorias (pré-freudianas)
com a psicanalise, mas nâo é suficiente. Por sinal, sobre a divisâo do psiquismo. Por sinal, é precisa-
Freud faz este mesmo esclarecimento logo no começo mente essa fronteira - que sô a ponte da teoria da
de sua segunda conferência. repressâo une e desune - a que muitos nâo estâo
Nosso conferencista eomeça, precisamente, assi- dispostos a atravessar mesmo que aceitem facilmen-
nalaiido as diferenças existantes entre ele, Janet, te o suposto sobre a divisâo do psiquismo.
Charcot e Breuer embora todos concordassem sobre Nosso autor considéra que esta nova maneira de
o fenômeno da "dissociaçâo psïquica" (p.23). "1er" os sintomas é decisoria e, por conseguinte,
Em primeiro lugar, entre Freud e Charcot media- esforça-se por ser didâtico perante seu pûblico.
va a afirmaçào deste ûltimo sobre a influência pato- Mais ainda, Freud sabe que se conseguir conven-
logica de supostos traumas fïsicos. Ern segundo lu- cê-los disto, seus ouvintes terâo em seu poder a
gar, entre Freud e Janet, a afirmaçào deste relativa chave para compreender as forniaçôes do incons-
à "alteraçâo degenerativa do sistema nervoso" ciente das quais Ihes falarâ na terceira liçâo,
(p.23). E por ûltimo, entre Freud e Breuer interpu-
nham-se consideraçôes dissimeis sobre o fenômeno
do hipnotismo.
Tînhamos afirmado que o trabalho com o hipno-
tismo ao tempo que aproximou também distanciou
Freud de Breuer. O fato de que cada um deles A formulaçâo freudiana da teoria da repressâo foi
acabasse tomando por rumos diferentes nâo sô este- uma espécie de cerimônia de batismo para a psica-
ve relacionado com a impericia aiiedotica de Freud nalise. O jovem Freud eomeça, em certa forma, a
para hipnotîzar seus pacientes mas, fondamental - deduzir a partir delà um leque de afirmaçôes que vâo
mente, porque nosso autor começou a "ver" a expe- outorgar fisionomia defïnitiva à sua singular criatu-
riência breuriana a partir dos "olhos" de Bernhein. ra. Com efeito, se o par repressào/resistência Ihe
Com efeito, o médico de Nancy mostrou a Freud que possibilita pensar os sintomas como formaçôes subs-
seus pacientes, no estado normal, "so aparentemente titutivas do repriniido, entào, eomeça logo a fazer
perdiam a lembrança" (p.24); isso é, eles "sabiam" sentido a seguinte pergunta: quai é a lôgica que pode
sobre as "cenas patogênicas olvidadas" (p.24) embo- tornar inteligivel esse processo de formaçâo de sin-
ra num primeiro momento afirmassem nâo ter a tomas?
mmima idéia. Assim foi que se impôs a Freud a idéia A essa pergunta Freud dâ resposta no curso desta
de que "as recordaçôes esquecidas nâo se haviam terceira liçâo. Porém, antes de começar a analisâ-la
perdido" (p.25) e que podiam "ressurgir em associa- lembremos que essa questâo pressupôe a convicçào
çâo com outros fatos ainda sabidos" (p.25) na medida sobre a rigorosa sobre-determinaçâo dos processos
em que se vencesse uma certa força que as obrigava anïmicos. Em outras palavras, Freud sô pode per-
a permanecer inconscientes. A essa força, nosso au- guntar-se pela légica que descreve o processo de
tor a chamou de resistência e pensou-a como o indïcio formaçâo de sintomas uma vez que esta convicto de
do acontecer de um outro processo que, no seu mo- que no psiquismo nâo hâ aleatoriedade. Por sinal,
mento. expulsou da eonsciência certos acontecimen- assinalemos que a tese da sobre-determinaçâo é o nô
tos; este ûltimo processo foi chamado repressâo da psicanalise na medida em que ela é a chave que
(p.25) (verdrangung). coloca em andamento um jogo de perguntas e res-
A esta altura da histôria da psicanalise, Freud postas que so tem sentido no interior de seus pro-
estava totalmente persuadido de que a divisâo do prios limites paradigmeticos.
psiquismo pode ser explicada "dinamicamente pelo Freud no momento de suas Liçôes na Clark jâ
conflito de forças mentais contrarias" (p.26); isto é, sabia do papel centrai que tem a tese da sobre-de-

LAJONQUIÈRE, L, - Uma Introduçâo à Psicanalise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27):! S-18, 1993.
15

terminaçâo. Logo, nâo poupa esforços para tentar résume a dois processus psiquicos batizados de con-
persuadir seus ouvintes a esse respeito. densaçâo e deslocamento (p.34). Estes sâo os respon-
Assim, retomando as consideraçôes que expus na sàveis das impressôes (as lembranças) do dia ante-
liçâo anterior sobre os acontecimentos que marca- rior estarem ligadas entre si conforme uma légica
ram a utilizaçâo, pela primeira vez. da associaçâo estranha. A ligaçâo-aparente entre elas détermina
livre, Freud vai levando, devagar, seu pûblico até a a fîsionomia do sonho manifeste que, por sinal, nâo
resposta àquela pergunta inicial. Em primeiro lu- é outra coisa que uma "realizaçào de um desejo
gar, preveniu-se das objeçôes que poderiani ser colo- nâo-satisfeito" (p.34) (observa-se que Freud opôe
cadas contra a tese do determinismo com a anâlise realizaçào a satisfaçâo; logo, o desejo realiza-se nias
de um suposto contra-exemplo: "a aparente falta de nâo se satisfaz). Justamente, entre as representaçô-
idéias", manifestada em diverses momentos do tra- es do complexe oculto entretecido pelo desejo e o
tamento pelos pacientes. Depois e pressupondo que conteûdo manifeste, intermedeia um trabalho de
conseguiu ganhar a partida contra as resistências de elaboraçâo que realiza o desejo à medida que cifra a
seu pûblico para aceitar a tese de que as "idéias ao disposiçâo das representaçôes. O conteûdo manifes-
acaso" dos pacientes sâo o meio técnico idôneo para te do sonho nâo é uma cornposiçâo pictorica que
a descoberta do inconsciente, Freud começa a Ihes expressa analogicamente as idéias latentes mas o
falar a respeito dos sonhos e dos atos falhos. Tanto produto de uma legalidade formai que détermina a
a interpretaçâo de uns quanto a de outros sâo apre- combinatoria ou disposiçâo de suas representaçôes.
sentadas ao pûblico americano como vias de acesso Desta forma, as imagens do sonho nâo podem ser
as représentâmes reprimidas ou inconscientes. As analisadas em bloco como o fazem aqueles que Ihe
très técnicas têm em comum o fato de partir sempre atribuem um valor profético. Freud é muito claro a
daquilo que nos aparece, isto é. das idéias "espontâ- este respeito: "Pondo de lado a aparente conexâo dos
neas" e isoladas do paciente. a partir dos elementos elementos do sonho manifesta, procurarâo os senho-
segmentados do sonho manifesta e, por ultime, das res evocar idéias por livre associaçâo, partindo de
bobagens da psieopatologiea vida cotidiana. Em resu- cada um desses elementos e observando as regras de
mo, sempre se trata de dirigir a atençâo para aquilo prâtica analïtica" (p.34).
mais "tonto" e insignifîcante visto que a repressâo, Essas idéias evocadas por associaçâo sâo conside-
embora tenha apagado a ligaçâo significativa (entre os radas por Freud como estando rigorosamente deter-
acontecimentos, entre as idéias) aos olhos da consciên- minadas e, portante, na medida em que se enca-
cia, nâo impede que a lembrança reprimida continue deiarn entre si, tornam perceptïvel a sintaxe do
présente ("agindo") no inconsciente. processo articulatôrio inconsciente. Este nâo tem
Desta forma, o fato de Freud dizer a seu pûblico um ponte de detençâo définitive jâ que sempre hâ
que as técnicas de interpretaçâo vâo em sentido alguma outra "idéia espontânea" que pode perder
contrario ao processo mesnio de formaçâo dos produ- sua espontaneidade (ou liberdade) ao ser encadeada
tos substitutos e que. em ûltima instância, as très (associada a outra anterior). Por sinal, Freud desde
agem da mesma maneira, cria a atmosfera propicia que abandonara a idéia do trauma ûnico estava
para que os americanos aceitem também a tese "disposto a aceitar causas mûltiplas para o mesmo
psicanalitica que afirma a identidade dos processus efeito, enquanto nossa necessidade causal, que su-
psïquicos envolvidos. Logo, sustentada tal identida- pomos inata, se satisfaz plenamente com uma ûnica
de, Freud esta Ihes dizendo que o inconsciente se causa psïquica" (p.36).
caracteriza, precisamente, por sua universalidade
estrutural. Assim, o inconsciente cifra suas mensa-
gens na cotidianeidade dos cbistes e sonhos, bem
como no interior da vida neurotica onde elas se . IV
apresentam mascaradas nos sintomas. A este res- Freud, nesses dias de 1909. tentava expor sinté-
peito, Freud se expressa nestes termos: "... testemu- tica, mas convincentemente, seus jâ quase 25 anos
nham a existência da repressâo e da substituiçâo do de estudo. Quando do inicio da quarta liçâo, Freud
mesmo na saûde perfeita" (p.36). jâ havia exposto a seu auditorio uma boa parte de
Pois bem, tratemos agora da resposta freudiana suas criaturas novedosas. Assim, havia falado a seu
à pergunta acerca das leis do processo formador/de- pûblico americano da universalidade estrutural do
formador. inconsciente, da formaçâo de sintomas, da histeria,
Freud a explica por ocasiâo de analisar a seme- da interpretaçâo dos sonhos e do desejo. Talvez, de
Ihança existente entre a elaboraçâo dos sonhos e a todas estas idéias freudianas, a mais esquisita e
dos sintomas neurôticos. Afirma que a operatôria se maluca para os ouvidos americanos foi esta ûltima.

LAJONQUIERE, L. - Uma Introduçâo à Psicanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIÂ 12(27):11-I8,1993.


16

Isto nâo poderia ter sido de outro modo pois os outros gunta articula, precisamente, a quarta liçâo pois
termos ou noçôes comportant, em certa medida, sig- esta destinada a persuadir seu pûblico de que em
nificaçôes mais ou menos familiares (embora o mé- estritos termos psicanaliticos nâo hâ saber sobre o
rito freudiano tenha sido, precisamente, descons- sexo. Porém, é muito comum supor o contrario, isto
truir essas noçôes carmins). No entanto, a idéia de é, supôe-se que hâ um saber sobre "A" sexualidade.
um desejo sempre insatisfeito e reprimido que se Este saber séria de ordem biologica e estaria encar-
realiza sem parar, sob a mascara das formaçôes do nado no instinto que leva o organisme a procurar
inconsciente, résume em si mesma o inconfundïvel seus objetos naturais de satisfaçâo.
carâter revolucionârio da psicanâlise no contexte Pois bem, se as coisas sâo colocadas deste rnodo,
das teorias psicologicas. entâo, as perversôes sâo desvios ou aberraçôes que
Ciente disso, Freud décide ocupar sua quarta sofre uma conduta padrâo. Complementariamente
liçâo na elucidaçâo da natureza sexual do desejo de a esta idéia, também se costuma sustentar esta
modo que nâo restem dûvidas do traço distintivo que outra: a cultura é a responsâvel por perverter esse
caracteriza a psicanâlise. Isto comportava apresen- percurso natural. Para tranqiiilidade de muïtos es-
tar ao pûblico outras criaturas tipicamente freudia- piritos assim mesmo isto deve ser, pois, é necessârio
nas: as noçôes de libido e de pulsâo (trieb) (na ediçâo manter honrosa a idéia de uma infância pura.
brasileira é traduzido de forma incorreta por instin- No entanto, a reflexâo freudiana subverte toda
to). Assim, nosso palestrante, apresentando estes esta certeza évidente. As perversôes nâo sâo consi-
très termos complementàrios entre si (desejo, libido deradas um desvio ulterior de uma conduta padrâo
e pulsâo) delimitava o carnpo do psfquico que cons- dada desde a infância, mas uma inibiçâo no "desen-
iitui o terreno da prdtica e da teoria da psicanâlise. volvimento" da caôtica sexualidade infantil. Assim,
Em outras palavras, poder-se-ia dizer que como es- nesta espécie de sexualidade-sem-sexo dos menores,
ses termos definem a "sexualidade freudiana", en- germinam "o nada raro infantilisme gérai da vida
tâo, Freud estava dizendo a seus ouvintes america- sexual" dos adultos (p.43). Mais ainda, Freud assi-
nos que o campo da psicanâlise se constitui como nala que também é necessârio ter em mente que "nas
uma reflexâo sobre "A" sexualidade. perversôes evidenciam-se... os mesmo componentes
Pois bem, esta quarta liçâo, que bem poderia instintivos (leia-se pulsionais) que mantêm os com-
intitular-se "uma reflexâo freudiana sobre A sexua- plexos e sâo formadores de sintomas; mas aqui eles
lidade para americanos", mostra-nos as claras que agem do inconsciente, onde puderam firmar-se ape-
as idéias de Freud acerca da sexualidade estâo longe sar da repressâo sofrida" (p.43). Desta forma, as
de constituir uma reflexâo à moda americana. neuroses e as perversôes (Freud afirma que as pri-
O que queremos dizer com isto? Por um lado, meiras sâo o negativo das segundas) sâo considera-
queremos remarcar aquilo que o proprio Freud dei- das rodeios particulares que a libido faz, na sua
xou entrever a seu pûblico quando comentara o empresa de cercar objetos para além da normativi-
estudo do Dr. Bell: o método de reflexâo freudiano dade biologica da espécie. Neste sentido, acrescen-
nâo se parece com essas empresas americanas de temos que o ûnico que esta determinado é a diferen-
observaçâo infatigâvel de fatos sexuais. Muito pelo ça sexuaî anatômica (e claro esta, sua complemen-
contrario, Freud constroi sua teoria sexual sem "ob- taridade em prol da sobrevivência da espécie} uma
servar" (de certa forma, da mesma maneira como as vez que a identidade sexual ou a escolha de objeto é
crianças constroem as suas prôprias e infantis teo- niera possibilidade.
rias na medida em que elas nâo "vêem" a diferença Contudo, precisemos um pouco mais estas idéias
anatômica); ele a constroi à medida que inventa freudianas. E isto pelo seguinte: ainda nesta altura
termos teôricos que visam tanto instituir coordena- do raciocmio se poderia pensar que o "desenvolvi-
das para escuta clinica quanto resolver as aporias mento" que comporta a sexualidade admite estar
que derivam do mesmo trabalho de montagem teô- regido por leis necessârias e apodïticas ou, em outras
rica. Por outro lado, queremos ressaltar que a refle- palavras, que o processo de desenvolvimento encar-
xâo freudiana sobre a sexualidade uma vez que nâo na em si mesmo algum saber natural. A este respei-
se confunde corn esses conhecidos manuais de sexua- to, Freud afirma: "Esta vida sexual infantil desorde-
lidade, escritos com inconfundïvel espïrito america- nada, rica mas dissociada, ...expérimenta uma con-
no, nosso autor nâo é uni sexologo mais. densaçâo e organizaçào em duas principais direçôes,
Mas, como isto pode ser possfvel? Ou seja, como de tal modo que ao fini da puberdade o carâter sexual
é possivel que Freud que fala sobre sexualidade nâo définitive esta completamente formado... Mas nem
seja um teorico que saiba sobre as qùestôes sexuais todos os componentes pulsionais originârios sâo ad-
tal como sabe um sexologo? A resposta a esta per- mitidos a tomar parte nesta fîxaçào defînitiva da

LAJONQUIERE, L. - Uma Introduçâo à Psicanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27):! 1-18, 1993.
17

vida sexual" (p.42), Isto é, as pulsôes jamais se havia feito aquilo mesmo que estava tentaiido expli-
fundem completamente mima résultante tida como car a seu pûblico a respeito da direçâo da cura: levar
normal: sempre fica um resto, umplus. o paciente a debruçar-se com o seu desejo. Porém,
O resto pulsional se comporta de uma forma agora dévia Ihes contar o final da histôria, isto é,
perversa, pois seu carâter errante escapa, precisa- ainda restava explicar quais, em certo sentido, se-
mente, a todo saber preditivo prôprio de qualquer lei riam os destines dos "desejos inconscientes liberta-
clâssica, Desta forma, o "desenvolvimento" da se- dos (desmascarados) pela psicanâlise" (p.49). Assim,
xualidade esta longe de aparecer-nos como um suce- nesta ocasiâo torna pûblico dois novos termes teôri-
der regulado pela sabedoria da natureza. cos: transferência e sublimaçâo. Estes termes nâo so
Entretanto, devemos esclarecer que com esta se relacionam entre si ao nivel da prôpria teoria, mas
afirmaçâo Freud nâo queria dizer que a sexualidade também no interior do imaginârio cotidiano: supôe-
se résume a um mero caos. Se assim fosse, nosso se, por um lado, que o fenômeno transferencial se
autor estaria cometendo o mesmo erro, mas em restringe à situaçâo analitica e, por outro, que a
sentido oposto, das ideologias naturalistas-vitalis- sublimaçâo poderia se converter num novo e requin-
tas, Ao contrario, Freud professa um certo artificia- tado objetivo de uma pedagogia mais cientificamen-
lismo que o leva a afïrmar que o sexual esta regrado, te humana.
isto é, que nâo é um mero caos, por uma lei um pouco Freud é claro e terminante a esse respeito. Pri-
sui generis. Esta lei é a lei o desejo (a outra cara da meiro, fala aos americanos sobre a transferência.
lei do signifîcante) que enquanto ignorante das leis Diz: "A transferência surge espontaneamente em
naturais que cuidam da sobrevida da espécie, co- todas as relaçôes humanas e de igual modo nas que
manda as cegas a pulsâo. o doente entretém com o médico; é ela, em gérai, o
Pois bem, da sexualidade pensada nestes termes verdadeiro veïculo da açâo terapêutica" (p.48) pois
nos fica, no final das contas, uma imagem um tanto os sintomas "se na elevada temperatura da transfe-
confusa ou, em outras palavras, que hâ um certo rência podem dissolver-se e transformar-se em ou-
grau de desordem que Ihe é inerente; talvez desor- tros produtos psiquicos" (p.48).
dem comparâvel com aquela que as crianças sabem Pois bem, por que a transferência é condiçâo
deixar depois de usufruir de um baû saturado de necessâria para o trabaiho analitico dos sintomas?
brinquedos. Por sinal, disto se trata, nâo sendo in- Porque as "forças instintivas sexuais da neurose"
gênua nossa comparaçâo: Freud fala da "vida sexual (p.47) sâo as mesmas que dâo suporte ao fenômeno
infantil desordenada" (p.42). E, precisamente, dessa da transferência. E isto é assim uma vez que a
desordem infantil que os adultes - "a maioria dos propria transferência consiste na consagraçâo ao
homens, observadores médicos e outros" (p.41) - analista de "uma série de sentimentos... nâo justifi-
nada querem saber. Por que? Ou mais ainda: o que cados em relaçôes reais e que, pelas suas partieula-
é inerente à vida sexual das crianças e aos infanti- ridades, devem provir de antigas fantasias tornadas
lismos dos adultos (em suma, o que é inerente à inconscientes" (p.47). Em outras palavras, dando
prôpria sexualidade) que deles nada se quer saber? uma definiçâo categôrica, pode-se afirmar que a
Esta quarta liçâo prétende dar resposta a essa transferência "é a atualizaçâo da realidade do in-
pergunta: aquilo que na sexualidade se recalca é o fato consciente" (Lacan, 1985:130). Assim, por um lado,
de que nâo comporta em si mesma nenhum saber. a transferência esta ai, esta entre o analista e o
Freud endereça seus argumentas nesta direçâo. Po- paciente (ou mais ainda, ambos estâo na transferên-
rém, nâo é seguro que todos os americanos que esta- cia) e, por outro, o primeiro "delà se apossa a fim de
vam Ihe ouvindo acabassem compartilhando seme- encaminhâ-la ao termo desejado" (p.48). Esta opera-
Ihante conclusâo pois, como diz Oscar Masotta, o su- çâo para tornar-se uma condiçâo suficiente da disso-
jeito "nada quer saber sobre o fato de que nào pode luçâo dos sintomas deve acompanhar aquela outra
saber que nâo existe saber sobre o sexual" (1988:26). que tende a elevar a temperatura do fenômeno
transferencial. Porém, para que isto aconteça o ana-
lista deve reconhecê-la e esperar. resguardado no
silêncio, o fracasso da repressào, pois se décide, pelo
contrario, enfrentâ-la de nada adiantarâ mesmo que
se esgrima o consabido principio de realidade. Mais
Podemos afïrmar que, quando do inïcio da quinta ainda, poder-ser-ia afîrmar que se se trata de arguir
liçâo, Freud j a havia desmascarado devidamente na a favor de alguma realidade, aquele que em melho-
frente de seus ouvintes a "plasticidade dos compo- res condiçôes se encontra de fazê-lo é o prôprio
nentes sexuais" (p.50). De certa forma, até entâo, paciente. Isto nâo poderia ser de outro modo uma vez

LAJONQUIERE, L. - Uma Introduçào à Psicanâiise ern Cinco Liçôes REVISTAPSICOPEDAGOGIA 12(27): 11-18,1993.
18

que ele défende uma justa causa: a defesa do direito pela psicanâlise" (p.49). Os outres dois seriam a
de usufruîr o gozo ou bénéficie do sintoma. Estas condenaçâo e a satisfaçâo direta (p.50).
conclusôes nâo devem ter surpreendido os ouvintes A condenaçâo tem lugar quando os desejos "sâo
americanos na medida em que, logo no começo, anulados pela açào mental, bem conduzida. dos me-
Freud jâ afirmara: o sujeito "se desprende da reali- Ihores sentimentos contrârios" (p.49). Isto é, graças
dade, recolhendo-se aonde pode gozar, isto é, ao seu à condenaçâo (ao dizer nâo), o paciente se dâ tempo
mundo de fantasia, cujo conteûdo, no caso de molés- como o desejo o faz. exatamente, no sonho pois, ao
tia, se transforma em sintoma" (p.47). passo que neste articula-se, mediatiza e demora sua
Assim, temos que o sintoma apresenta duas ca- prôpria satisfaçâo.
ras: a do prazer e a da dor. Isto é, o sintoma nâo é Jâ em relaçâo ao ûltimo destino possivel, Freud
mais do que um gozo menor e substituto, produto de afirma: "Certa parte dos desejos libidinais reprimi-
uma estratégia de refûgio para se evitar uma insa- dos faz jus à satisfaçâo direta e deve alcançâ-la na
tisfaçào maior. Ressaltemos, por sinal, que a satis- vida" (p.50). Como vemos, ela também nâo passa de
façâo maior que o sintoma pode comportai* nâo é "A" ser, em ûltima instância, uma satisfaçâo parcial de
satisfaçâo mas sô uma parte da satisfaçâo, portante uma parte do corpo. A satisfaçâo Total, como temos
ele nâo deixa de ser, no final das contas, também afirmado, é impossïvel e este é o preço que o parlêtre
uma insatisfaçâo. paga por sua dita normalidade. Porém, ao passo que
Pois bem, por que o neurôtico, em certo sentido, este ûltimo consiste em atingir parcialmente o fini,
conforma-se com tào pouco? ou seja, por que se a sublimaçâo constitui (para decepçâo de todos) uma
contenta com uma (in)satisfaçâo menor? poderiam satisfaçâo que diretamente nâo chega a seu fini.
estar se perguntando alguns dos présentes na Clark, Esta "faculdade..." que a pulsâo tem "de permutar o
Nosso palestrante, à sua maneira, responde: "acha- fini sexual por outro mais distante e de maior valor
rnes a realidade de todo insatisfatôria" visto que o social" (p.50) obedece ao fato de que no falante o fim
aparelho psïquico padece de uma "ausência de adap- e a satisfaçâo estâo cindidos. Desta forma, a subli-
taçâo interna" (p.46). maçâo, ou seja, este se por a fazer outras coisas
Mas que coisa mais esquisita Freud esta dizendo? sempre outras, desloca na "normalidade" a exclusi-
Ele nâo esta afirmando outra coisa que esta: a rea- vîdade que, outrora na "doença", detinha a repressâo
lidade sô pode ser vivida, experimentada, necessa- para refrear "A" satisfaçâo (chamada de Gozo Outro
riamente como insatisfatôria. O principio de reali- por Lacan).
dade apenas nos diz que o objeto que encontrarnos As empresas que o sujeito empreende na "norma-
circunstancialmente nâo é aquele procurado (aquele lidade" de sua psicopatolôgica vida cotidiaiia subli-
batizado por Freud no Projeta como Das Ding). Este, mam a pulsâo e afastam o sujeito do Gozo uma vez
puro ser fantasmagôrico, leva consigo a chave "dA" que pôem a funcionar a fantasia. Em outras pala-
Satisfaçâo. Assim, o falante (Lacan; parlêtre) repré- vras, a "vida de fantasia" (p.46) pôe em marcha as
senta a opereta da sua busca abrigando a intima empresas humanas mais ou menos fantâsticas no
esperança de nâo encontrar-se cara a cara com ela pois interior das quais o desejo se realiza.
nâo suportaria ver seu rosto sinistre. A Satisfaçâo so
pode ser entrevista por causa de uma "ausência de
adaptaçào interna" do aparelho psiquico (p.46).
Pois bem, ordenando um pouco nossas idéias e o Bibiiografi*
texto mesmo de Freud, résumâmes: "A" Satisfaçâo 1. LAJONQUIÈRE, L. - DePiageta Freud: para repensa* as aprendi-
do desejo inconsciente nâo so é impossïvel como zagens. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber,
também evitada, pois se consumasse acabaria, pa- Petrôpolis, Vozes, 1993.
2. FREUD, S. - Cinco liçôes de psicanatise. In; Ediçâo Standard
radoxalmente, fazendo-o como uma categôrica e Brasileira das Obras Psicolôgicas Complétas, Vol. XI, Rio Janeiro,
mortal insatisfaçâo. Por conseguinte, o neurôtico se Imago Editora, 1970.
contenta (se satisfaz) so com (na) realizaçâo do de- 3. LACAN, J. - SeminârioXI, Rio Janeiro, Zahar Editor, 1985.
sejo. Eealizaçâo ou articulaçâo do desejo que tenta 4. CORSO, D. et ai - A propôsito do texto de A. Freud. In: Bolettm da
domesticar o mal-estar na civilizaçâo. Justamente, APPOA, ano III, 7,1992.
é a respeito deste destine do desejo que Freud fala 5. MANNONI, M. - La Primera Entrev/sta com el Psicoanalista, Bue-
nos Aires, Gedisa, 1982,
aos americanos quando explica em que consiste a 6. MASSOTA, O. - O Comprovante da Fatta, Campinas, Papirus,
sublimaçâo, 1988.
Freud diz que a sublimaçâo é um dos destines 7. MILLOT, C. - Freud Anti-Pedagogo, Rio Janeiro, Zahar Editer,
possïveis para os "desejos inconscientes libertados 1992.

LAJONQUIÈRE, L. - Uma Introduçâo à Psicanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27): 11-18, 1993,

Você também pode gostar