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C APÍTULO 1

Trajetória Histórica da
Psicopedagogia

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os


seguintes objetivos de aprendizagem:

33Analisar os diversos momentos históricos da Psicopedagogia


e sua construção como área do conhecimento e pesquisa.

33Apontar a evolução do fazer psicopedagógico.

33Esquematizar a história da Psicopedagogia no Brasil.

33Analisar o fracasso escolar e as implicações na aprendizagem.

A educação se divide em duas partes: educação das


habilidades e educação das sensibilidades... Sem a educação das
sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentido.

Rubem Alves
Introdução à Psicopedagogia

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

Contextualização
A Psicopedagogia vem se constituindo num processo que exige
sensibilidade para ver e habilidade para fazer. Portanto, consideramos este
primeiro capítulo o início de uma caminhada, por meio da qual buscaremos
as origens da Psicopedagogia, o contexto histórico, social e político, bem
como as concepções e teorias que revelavam o pensamento da época, a fim
de compreendermos sua trajetória até o Brasil. Também veremos o fracasso
escolar que permeia a trajetória histórica da Psicopedagogia, identificando-o e
analisando suas implicações na aprendizagem, desde a sua origem aos dias
atuais, numa perspectiva psicopedagógica.

Trajetória Histórica da Psicopedagogia


O homem é um ser que tem sua existência biológica e sua existência
social indissociáveis e que o caracterizam como tal. Portanto, devem ser
consideradas na sua totalidade. Afinal, não são meros fragmentos: são únicas,
singulares, ou seja, diferentes, inclusive na sua modalidade de aprendizagem.

Partindo dessa concepção de homem e de mundo, identificaremos o


contexto histórico, social e político em que nasceu a Psicopedagogia, a
partir do século XIX, na Europa. Nesse período, a sociedade consolidou o
capitalismo industrial, e a burguesia, que detinha o poder político e social, viu
seus princípios de fraternidade e de igualdade distantes da realidade social
vivida por meio dos avanços do capitalismo, que tornava visível o aumento das
desigualdades sociais. Essa realidade precisava ser justificada. Assim, houve
uma busca, nos avanços científicos e teorias da época, por explicações para
tais desigualdades.

Na fronteira da
Devido aos problemas de aprendizagem desencadeados na Europa, no
pedagogia e da
século XIX, no campo educacional, tais desigualdades eram evidenciadas.
psicologia, começou
Para explicar a problemática, suas causas e possíveis soluções, áreas do a surgir uma nova
conhecimento, como a medicina, a pedagogia e a psicologia, dedicaram seus área de estudo: a
estudos a respeito. Entretanto, não deram conta de explicar e tratar essa Psicopedagogia,
complexidade. Assim, na fronteira da pedagogia e da psicologia, começou tendo como foco
a surgir uma nova área de estudo: a Psicopedagogia, tendo como foco as as dificuldades de
dificuldades de aprendizagem. aprendizagem.

Esse contexto em que surgiu a Psicopedagogia ainda será aqui ampliado,


pois as concepções e teorias dessa época influenciaram e determinaram as
primeiras práticas psicopedagógicas, uma vez que estas se fundamentam num
campo teórico, numa concepção de ser humano e de aprendizagem. Neste

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Introdução à Psicopedagogia

sentido, os avanços e a crença na ciência, que concebia um conhecimento


certo e seguro mediante a aplicação do método positivo e científico, geraram,
na sociedade, o cientificismo, segundo o qual tudo é possível por meio da
ciência.

Cientificismo – cientismo: confiança na capacidade ilimitada de as


ciências resolverem todas as questões e problemas humanos.

Científico – representa o rigor da ciência.

Somaram-se a este fato as ideias de Francis Bacon (século XIX) que,


impulsionadas, geraram uma concepção de ciência moderna e positiva,
desta forma dominando o pensamento científico até os dias atuais, em que o
saber somente é possível se gerado da pesquisa científica. Hobsbawm (apud
BOSSA, 2000, p. 36) ilustra esta questão:

[...] a ciência positiva, ao operar com fatos objetivos e


precisos, rigidamente ligados entre si numa cadeia de
causas e efeitos, produzindo leis uniformes e invariáveis,
era a chave-mestra para o entendimento do universo. Os
estágios anteriores da humanidade, pautados na superstição
e na especulação metafísica, tinham finalmente se encerrado
e um novo mundo iniciava-se brindado pela ciência positiva.

Convém evidenciar que a Teoria Evolucionista, de Charles Darwin,


representou muito bem a ciência positiva. No entanto, deve-se a ela o
rompimento da fragmentação das ciências naturais, humanas e sociais,
uma vez que colocou o homem como sujeito biológico em evolução. Isto foi
Alguns testes de importante para outras áreas do conhecimento, que passaram a utilizar os
inteligência da época princípios biológicos para explicar e sustentar seu campo de atuação.
buscavam comprovar
que a inteligência, ou Ainda no século XIX, surgiu a psicologia como ciência independente, a
seja, a capacidade qual passou a fazer uso dos princípios biológicos de Darwin, transferindo para
intelectual era herdada
o homem e para o social as mesmas leis que regem a natureza. Segundo
geneticamente,
Bossa (2000), o objeto de estudo da psicologia – o comportamento humano
quer dizer, era um
– era medido e controlado em laboratório. Desse modo, alguns testes de
processo hereditário.
Este pensamento inteligência da época buscavam comprovar que a inteligência, ou seja, a
auxiliou a justificar capacidade intelectual era herdada geneticamente, quer dizer, era um processo
as desigualdades hereditário. Este pensamento auxiliou a justificar as desigualdades sociais e,
sociais e, no âmbito no âmbito da aprendizagem, explicou as diferenças de rendimento escolar e,
da aprendizagem, em contrapartida, a seleção e a exclusão escolar.
explicou as diferenças
de rendimento escolar Atividade de Estudo:
e, em contrapartida, a
seleção e a exclusão Observe que esta concepção social originou posturas que encontramos, ainda
escolar.

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

hoje, em nossas escolas: “Este aluno não aprende... os pais são analfabetos e
os irmãos também não aprenderam...” Pense sobre isto. Faça uma viagem por
sua história pessoal e de escolaridade e registre suas lembranças a respeito.
Elas serão úteis em nossos estudos, pois aprofundaremos a discussão. Em
nosso último capítulo, você será capaz de identificar as concepções clássicas
do ensino-aprendizagem que se encontram presentes nesse contexto
histórico.
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Considerando este contexto histórico-social do século XIX, podemos


verificar que foi o enfoque orgânico o primeiro a orientar médicos, psicólogos,
educadores, terapeutas quanto aos problemas de aprendizagem; logo, os
conceitos de “normalidade e anormalidade” eram aplicados. Dessa forma,
as crianças que não conseguiam aprender, ou não atendiam aos padrões
esperados pelas instituições de educação, geralmente eram consideradas
“anormais”, sob o ponto de vista diagnóstico, assim confirmando o olhar
patológico sobre a aprendizagem.

Orgânico – concepção organicista – entende que tudo provém do


organismo, do corpo humano; remete à patologia.

Patologia – modificação produzida no organismo por doença.

No contexto apresentado, a Psicopedagogia foi desenvolvendo seus Os estudiosos também


estudos. Segundo Mery (apud BOSSA, 2000, p. 39), “em 1946 foram procuravam conhecer
fundados e chefiados por J. Boutonier e George Mauco os primeiros Centros a criança em seu meio
Psicopedagógícos, onde se buscava unir os conhecimentos da Psicologia, para compreender
da Psicanálise e da Pedagogia” para tratar crianças com comportamentos as dificuldades de
inadequados, tanto na escola como na família, visando à melhoria da criança aprendizagem, tal
como a “lentidão” que
em seu meio e sua readaptação pelo acompanhamento psicopedagógico. A
algumas crianças
essa prática era dado o nome de pedagogia curativa, método desenvolvido no
apresentavam em
Centro Psicopedagógico para readaptar alunos. Tal readaptação era possível
relação a outras no
devido à união e aplicação dos conhecimentos da psicologia, da psicanálise e contexto escolar.

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Introdução à Psicopedagogia

da pedagogia. Os estudiosos também procuravam conhecer a criança em seu


meio para compreender as dificuldades de aprendizagem, tal como a “lentidão”
Essa constituição que algumas crianças apresentavam em relação a outras no contexto escolar.
multidisciplinar já em
Em verdade, os estudos buscavam respostas para a não-aprendizagem,
sua origem caracteriza
pois identificavam que algumas crianças aprendiam e outras não, embora
a Psicopedagogia
consideradas “normais” e inteligentes.
como uma área
do conhecimento
essencialmente A direção desse Centro Psicopedagógico, situado em Paris, era
interdisciplinar e composta pelas áreas da medicina e da pedagogia e constituída por uma
transdisciplinar, o equipe de médicos, psicólogos, psicanalistas e pedagogos. Essa constituição
que já é apontado multidisciplinar já em sua origem caracteriza a Psicopedagogia como uma área
por vários autores, do conhecimento essencialmente interdisciplinar e transdisciplinar, o que já é
inclusive os brasileiros. apontado por vários autores, inclusive os brasileiros.

Ainda no fim do século XIX, a médica psiquiatra Maria Montessori dedicou


seus estudos às crianças com deficiência, desenvolvendo o método Montessori,
classificado como sensorial. Montessori também constatou deficiência na
educação e estendeu seu método a todas as crianças em muitas escolas
regulares, obtendo muito sucesso até os dias atuais. Você conhece alguma
escola montessoriana? Não? Você pode obter mais informações acessando a
internet.

Em se tratando, ainda, desse período, Mery (1985, p. 11) “aponta o século


XIX como aquele em que teve início o interesse por compreender e atender
portadores de deficiências sensoriais, deficiência mental e outras dificuldades
que comprometessem a aprendizagem”.

Hoje, conforme pesquisas na área da educação especial, não usamos


mais a terminologia “portador”. Utilizamos a palavra “pessoa”, bem como
“deficiência”, para pessoas que tenham alguma necessidade especial.

Considerando a constituição da Psicopedagogia, resumidamente


podemos dizer que, primeiramente, a Psicopedagogia teve seu fazer, isto é,
sua prática na reeducação de crianças com comportamentos considerados
A Psicopedagogia teve inadequados e em crianças com problemas, dificuldades de aprendizagem,
seu fazer, isto é, sua muitas com diagnóstico patológico.
prática na reeducação
de crianças com Posteriormente, seu foco foi para a “não-aprendizagem” que inicialmente
comportamentos evidenciava a falta, isto é, o que faltava para aprender. Depois, passou a ser
considerados
levada em conta a singularidade da pessoa ou do grupo, considerando a sua
inadequados.
história e o meio sociocultural. Dito de outra forma, passou a ser levada em
Posteriormente, seu
conta a história do sujeito e o meio social em que estava inserido. Entretanto,
foco foi para a “não-
aprendizagem” o foco não era mais o sujeito individual, mas o sujeito social. (Retomaremos

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

esta concepção sociocultural no sexto capítulo).


Nos dias atuais,
Nos dias atuais, o enfoque da Psicopedagogia está na inteireza e na o enfoque da
complexidade humana, na pessoa em processo de aprendizagem. Bossa Psicopedagogia
(2000, p. 22) ratifica nossa colocação ao afirmar que, está na inteireza e
na complexidade
Atualmente, a psicopedagogia trabalha com uma concepção humana, na pessoa
de aprendizagem segundo a qual participa desse processo em processo de
um equipamento biológico com disposições afetivas e aprendizagem.
intelectuais que interferem na forma de relação do sujeito
com o meio, sendo que essas disposições influenciam e são
influenciadas pelas condições socioculturais do sujeito e do A Psicopedagogia já
meio.
pôde ser observada
como uma área
Como vimos, no início do processo histórico, a Psicopedagogia já pôde ser do conhecimento
observada como uma área do conhecimento norteadora dos procedimentos norteadora dos
necessários ao trabalho com crianças que apresentam algum tipo de obstáculo procedimentos
à sua aprendizagem, inclusive desenvolvendo o trabalho de prevenção em necessários ao
instituições de educação. trabalho com crianças
que apresentam algum
Atividade de Estudo: tipo de obstáculo à sua
aprendizagem.,
Agora que você conheceu um pouco da trajetória da Psicopedagogia, já é
capaz de verificar seu entendimento a respeito. Vejamos:

1) Em que contexto (histórico, político e social) surgiu a Psicopedagogia?


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2) Como é caracterizada a prática psicopedagógica no início de seu


surgimento?
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Introdução à Psicopedagogia

3) Aponte, cronologicamente, a prática psicopedagógica.


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A Psicopedagogia Então, vimos que a Psicopedagogia surgiu na Europa, no século XIX,


surgiu na Europa, da necessidade de atender às dificuldades de aprendizagem, marcada por
no século XIX, da um enfoque na reeducação de crianças. Segundo Bossa (2000), a partir
necessidade de
desse movimento psicopedagógico europeu, a produção literária a respeito,
atender às dificuldades
principalmente francesa, de autores como Jacques Lacan, Françoise Dolto,
de aprendizagem,
Julian Ajuriaguerra, George Mauco e Pichón-Rivière e outros, começou a
marcada por
um enfoque na oferecer aporte teórico aos autores argentinos. Estes, por sua vez, influenciaram
reeducação de os autores brasileiros que buscam a identidade da Psicopedagogia e sua
crianças. construção a fim de entender melhor os problemas de aprendizagem e,
principalmente, a enfrentar o fracasso escolar.

Segundo Fernandez (apud BOSSA, 2000), a prática da Psicopedagogia


na Argentina iniciou antes da criação do curso de formação, pois profissionais
de outras áreas do conhecimento sentiram necessidade de atender a um
espaço que não era preenchido pelo psicólogo nem pelo pedagogo. Assim,
fundamentaram sua prática na reeducação de crianças com a finalidade de
resolver os problemas oriundos do fracasso escolar.

Na década de 1970, Conforme Fernandez (apud BOSSA, 2000, p. 41), “[...] a Psicopedagogia
foram criados, surgiu na Argentina há mais de 30 anos e foi Buenos Aires, sua capital, a
em Buenos Aires, primeira cidade a oferecer o curso de Psicopedagogia”. Na década de 1970,
os Centros de foram criados, em Buenos Aires, os Centros de Saúde Mental, nos quais
Saúde Mental, nos
equipes de psicopedagogos começaram a atuar, fazendo diagnóstico e
quais equipes de
tratamento psicopedagógico. Após o primeiro ano, já puderam ser verificados
psicopedagogos
os resultados positivos que resolveram e/ou minimizaram os problemas de
começaram a atuar,
fazendo diagnóstico aprendizagem. Em contrapartida, esses Centros observaram o surgimento
e tratamento de distúrbios da personalidade, como fobias, traços psicóticos etc., o que
psicopedagógico. levou os reeducadores (psicopedagogos) a realizarem estudos e mudarem
a abordagem psicopedagógica, incluindo em seu trabalho o olhar e a escuta
clínica da psicanálise, que caracterizam, atualmente, o perfil do psicopedagogo
na Argentina.

Neste sentido, Fernandez (1990, p. 130) esclarece:

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

Um espaço importante de gestação do saber psicopedagogo


é o trabalho de auto-análise das próprias dificuldades
e possibilidades no aprender, pois a formação do
psicopedagogo, assim como requer a transmissão de
conhecimentos e teorias, também requer um espaço para
a construção de um olhar e uma escuta psicopedagógica a
partir de uma análise de seu próprio aprender.

Muito há para conhecer do histórico da Psicopedagogia na Argentina, mas


optamos por uma rápida abordagem, com o objetivo de apresentar sua chegada
ao Brasil. Nesse contexto argentino, há um fator importante que desencadeou
a chegada da Psicopedagogia no Brasil, como veremos a seguir.

De acordo com Silva (apud BOSSA, 2000), na Argentina, os psicólogos,


até as primeiras décadas do século XX, não podiam clinicar, pois não tinham
autorização para tal. Com a problemática do fracasso escolar, a educação
passou a ser, para eles, uma área de trabalho, à qual dedicaram intensamente
seus estudos, bem como desenvolveram metodologias sobre a dificuldade de
aprendizagem. É atribuída a isso a origem da atual Psicopedagogia.

Atividade de Estudo

Imaginamos que você já deva estar se perguntando: Afinal, o que é


Psicopedagogia? Qual será seu objeto de estudo? Do que trata? O que faz?
Nesta leitura, você já pode encontrar alguma pista. Arrisque... ouse... pense...
registre.

Vamos continuar a caminhada, mas você pode ir além e aprofundar seu


conhecimento por meio da leitura e da pesquisa sobre a história e a atuação
psicopedagógica na Argentina.
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Neste momento, convido você para, juntos, descobrirmos como a


Psicopedagogia chegou ao Brasil.

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Introdução à Psicopedagogia

A Psicopedagogia no Brasil
No Brasil, a Psicopedagogia nasceu timidamente, nos anos de 1970, por
meio de conferências realizadas pelo professor Julio B. de Quirós, argentino
que já havia desenvolvido estudos sobre leitura e escrita em escolas argentinas
e feito publicações nos anos de 1950 e 1960. Nessa época, teve início a
influência argentina na educação, sendo que muitos profissionais brasileiros já
se dedicavam ao estudo sobre a aprendizagem, porém como grupos, núcleos
de estudo não-institucionalizados.

No Brasil, como na Europa, a atuação psicopedagógica se deu na área da


No Brasil, como na saúde e da educação, sendo que havia uma concepção organicista a respeito
Europa, a atuação das dificuldades de aprendizagem. Acreditava-se que as causas do não
psicopedagógica aprender ou dificuldades em aprender eram orgânicas. Dessa forma, foi lançado
se deu na área da
um olhar patologizante ao processo de aprendizagem e, consequentemente, à
saúde e da educação,
criança. Nos anos de 1970, a Disfunção Cerebral Mínima (DCM), disfunção
sendo que havia
neurológica que não é detectada em exame clínico, foi amplamente divulgada
uma concepção
organicista a respeito como justificativa das dificuldades de aprendizagem. Assim se configurou o
das dificuldades de contexto social brasileiro em que índices alarmantes denunciavam o fracasso
aprendizagem. escolar.

Nesse momento, surgiu, em Porto Alegre, RS, o Centro de Estudos


Psicopedagógicos que inicialmente utilizava os princípios europeus, ou seja, o
método terapêutico da pedagogia curativa. A atuação se dava no campo clínico
Em 1979, foi criado, individual e era denominada pedagogia terapêutica.
por um grupo
de profissionais Em 1979, foi criado, por um grupo de profissionais educadores, pedagogos
educadores, e psicólogos, o curso de Formação Clínica e Institucional de Psicopedagogia,
pedagogos e
o qual foi realizado no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Nessa época,
psicólogos, o curso
de acordo com Bombonatto e Maluf (2007, p. 23),
de Formação Clínica
e Institucional de
Era grande a procura de alternativas criativas para avaliações
Psicopedagogia, o e intervenções educacionais eficazes, diante dos problemas
qual foi realizado de aprendizagem, que se avolumavam nas escolas, às
no Instituto Sedes alterações políticas e socioeducacionais vigentes na época,
Sapientiae, em São intensificando o quadro de dificuldades.
Paulo.
O curso de formação criado, apesar da preocupação com a prevenção, no
primeiro momento concretizou sua ação na reeducação, como um processo
de reintegração, presentes os aspectos afetivo e cognitivo.

No segundo momento, o foco foi o processo de aprendizagem e sua


relação com o objeto do conhecimento, considerando todos os fatores que
intervêm neste processo. Assim, a Psicopedagogia aprofundou suas pesquisas

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

e marcou como terceiro momento a atual clareza de que seu fazer está na
aprendizagem humana, no processo de construção do conhecimento inter e
transdisciplinar.

Assim, surgiram os cursos de especialização, pós-graduação e mestrado


em instituições, como a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cuja formação é auxiliada
e impulsionada por autores argentinos, como Sara Pain, Jorge Visca, Alicia
Fernandez e suas publicações específicas sobre a Psicopedagogia.

Já na década de 1980, Jorge Visca criou os Centros de Estudos


Psicopedagógicos (CEP) no Rio de Janeiro, em Curitiba e em Salvador, cujos
cursos ofereciam a Formação Clínica Psicopedagógica. Ainda em 1980,
foi criada a Associação de Psicopedagogos de São Paulo e, em 1985, a
Associação Brasileira de Psicopedagogia.

Atividade de Estudo

Na seção anterior, você conheceu um pouco da história da Psicopedagogia


e, nesta, o seu surgimento no Brasil. Agora você deve analisar e apontar
as diferenças e as semelhanças entre a história da Psicopedagogia e o seu
surgimento no Brasil.
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No Brasil, a prática
Como vimos, no Brasil, a prática psicopedagógica surgiu das demandas
psicopedagógica
sociais, dos índices alarmantes quanto às “dificuldades de aprendizagem” e ao
surgiu das demandas
fracasso escolar, tratados como se fossem fenômenos de causa orgânica. Os
sociais, dos índices
resultados se apresentavam nos sujeitos aprendentes, os quais geralmente alarmantes quanto
eram responsabilizados por não aprenderem. Os estudos sobre o fracasso às “dificuldades de
escolar foram estendidos a um contexto mais amplo, ou seja, ao contexto das aprendizagem” e
políticas sociais, que veremos a seguir. ao fracasso escolar,
tratados como se
fossem fenômenos de
causa orgânica.
O Fracasso Escolar
O sistema capitalista e o avanço tecnológico suscitam mudanças

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Introdução à Psicopedagogia

econômicas e estruturais na sociedade. Nesse contexto, o sistema educacional


é permeado por “concepções de educação” que, articuladas ao grande sistema
capitalista, logo geram a crença de que a escolarização é o único caminho, a
única possibilidade para que as pessoas possam ascender socialmente.

Assim, a escola se organiza e caminha conforme as políticas educacionais


de cada época. Somam-se a este fato, os modismos (teóricos, metodológicos)
incorporados, muitas vezes, sem o devido conhecimento, com discursos que
se distanciam da prática.

Foi nesse espaço institucionalizado da escola, na educação formal, na


escolarização, que surgiu o fracasso escolar. Suas causas são diversas e
são identificadas por meio dos problemas presentes nas salas de aula, nos
espaços escolares. Geralmente, os casos de fracasso escolar acabam nos
consultórios médicos, psicológicos e psicopedagógicos.

A Psicopedagogia, Nesse contexto, a Psicopedagogia, como área do conhecimento


como área do
essencialmente interdisciplinar, marcou seu espaço por meio do seu fazer, com
conhecimento
o intuito de minimizar e solucionar os problemas relacionados à aprendizagem,
essencialmente
devolvendo à pessoa ou ao aluno a sua capacidade de aprender.
interdisciplinar,
marcou seu espaço
por meio do seu O fracasso escolar constitui tema recorrente na educação, pois, como já
fazer, com o intuito de vimos, a concepção organicista exerceu uma forte influência na concepção
minimizar e solucionar de aprendizagem, principalmente nas instituições de educação. Dessa forma,
os problemas surgiu o paradigma da “culpabilização do aluno”, isto é, se ele não aprende, o
relacionados à problema é dele. Mais tarde, a culpa foi estendida à família.
aprendizagem,
devolvendo à pessoa Essa concepção patologizante, segundo Bossa (2000, p. 49), “não é
ou ao aluno a sua invenção de brasileiro”, mas foi rapidamente incorporada, principalmente
capacidade de pelas instituições de educação, pois estas acreditam que a pessoa, a criança,
aprender. o adolescente (o aluno) que “não aprende” de acordo com os padrões da
instituição é deficiente. Além disso, essas instituições atribuem os mais
variados rótulos para justificar o fracasso escolar, sendo, nesses casos,
o encaminhamento mais comum orientar a família para que leve seu (sua)
filho(a) ao médico.

Nos dias atuais, já existem pesquisas que denunciam a medicalização


exagerada e muitas vezes sem os devidos critérios, ou seja, já ocorre o
diagnóstico adequado nos casos de crianças e adolescentes que apresentam
problemas relacionados à aprendizagem e/ou ao comportamento.

Em se tratando do fracasso escolar, a instituição escolar também se


achou no direito de diagnosticar. Passou a utilizar rótulos, cada um a seu
tempo, bastando o aluno não estar nos padrões estabelecidos pela escola e

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

pela sociedade. De acordo com o tempo histórico, a atribuição do rótulo teve


variações. Primeiro, por exemplo, o aluno era visto como o “retardado”, o débil
mental, o autista, o tolo, e finalmente, quando não havia um rótulo novo, foi
identificado como o aluno que “tem problema” ou “o problema”. Esse olhar
extremamente patologizante e comportamentalista, além de proporcionar a
exclusão social, aumentou o fracasso escolar.

Nesse sentido, você poderia me perguntar: Quais os “diagnósticos”, ou


melhor, os “rótulos” usados nos dias atuais? Sem dúvida, você respondeu
rápido e correto: hoje, todos são hiperativos ou possuem déficit de atenção... Se
refletirmos sobre os dados atuais, em relação à DCM em 1970, confirmaremos
o aspecto cíclico da história. Vejamos o que nos diz Bossa (2000, p. 48) a
respeito dos anos de 1970: “A impressão que se tinha era de que convivíamos
com uma população de anormais, pois esta cifra atingia até 40% dos escolares”.
E hoje, qual é a cifra?
O fracasso escolar
Kiguel (apud BOSSA, 2000) nos diz que as tentativas de explicar o e o “problema de
fracasso escolar por outras vias que não a psicologia e a pedagogia podem ter aprendizagem
sido um fator importante quando do surgimento da Psicopedagogia. A nosso escolar” passaram
a ser concebidos
ver, aqui iniciou a busca de seu objeto de estudo e sua construção como área
como “problema de
do conhecimento.
ensinagem”. Assim, foi
rompido o paradigma
Na década de 1980, por meio de pesquisas e estudos de autores como de que o fracasso é
Maria Helena S. Patto, Collares e outros, o fracasso escolar e o “problema somente de quem (não)
de aprendizagem escolar” passaram a ser concebidos como “problema de aprende (o aluno), e se
ensinagem”. Assim, foi rompido o paradigma de que o fracasso é somente de passou a questionar
quem (não) aprende (o aluno), e se passou a questionar sobre o ensinar e toda sobre o ensinar e toda
sua complexidade no contexto social e político. De acordo com Patto (apud sua complexidade.
BOSSA, 2000, p.49), o “[...] processo social de produção do fracasso escolar
se realiza no cotidiano da escola [...]”.

Será que houve real deslocamento de foco quanto à atribuição do fracasso


escolar?

PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: história


de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996.

21
Introdução à Psicopedagogia

Atividade de Estudo

- Observe a figura “a grande máquina escolar”.

Figura 1 - A grande máquina escolar


Fonte: Tonucci (1997, p. 100).

Para facilitar o entendimento da figura, elaboramos uma legenda. Porém, esta


disposição não deve engessar seu olhar e sua análise.

Legenda: Vejamos o que dizem as placas:

1 – Escola obrigatória

2 – Material didático

3 – Entrada proibida aos estranhos: pais; jornais; trabalho; política; sexo;


cultura popular

4 – Carreira, bem-estar, cultura, dignidade, poder

5 – Sejam bons cidadãos! A sociedade os espera!

6 – Turmas especiais e especializadas – Retardo – Trabalho das crianças –

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Capítulo 1 Trajetória Histórica da Psicopedagogia

Droga – Bar – Ignorância

7 – Lixo

Primeiramente, olhe, analise, registre: O que você vê? Como vê? Que leitura
faz desta figura? Aponte a relação entre a sua leitura, o fracasso escolar e a
aprendizagem.
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Nesse contexto da “grande máquina escolar”, a Psicopedagogia vai


definindo seu objeto de estudo, avança em suas pesquisas em busca
de soluções e de alternativas para minimizar os problemas referentes à
aprendizagem. Assim, constrói e efetiva seu fazer.

Fazer – refere-se à prática psicopedagógica.

Refletir sobre o fracasso escolar é uma exigência para todo educador,


todo professor, e, principalmente, para o psicopedagogo. Isso evitará práticas
equivocadas.

Algumas Considerações
Como podemos perceber, a discussão sobre a Psicopedagogia, desde
seu surgimento até os dias atuais, caracteriza sua atuação na área da saúde e
educação. A Psicopedagogia, que ainda está sendo organizada e construída,
conseguiu um espaço muito grande nos últimos anos. A definição de seu
objeto de estudo se deu por meio dessas conquistas e do avanço de suas
pesquisas.

Consideramos importante destacar, aqui, em nossas reflexões finais sobre


este capítulo, a trajetória percorrida pela Psicopedagogia, pois as concepções
sobre as dificuldades de aprendizagem e sobre o próprio fracasso escolar
mudaram significativamente no decorrer dos anos. De uma abordagem
patologizante, de culpa única e exclusivamente do aluno, numa visão
organicista, passaram a ser questionados os métodos de ensino e o sistema

23
Introdução à Psicopedagogia

educacional como fatores que podem ocasionar o fracasso escolar.

Hoje temos a visão do aprendente e do ensinante como seres


indissociáveis. Ademais, a Psicopedagogia, no Brasil, passou a evoluir
juntamente com a Psicopedagogia argentina, tornando-se uma área da ciência
que estuda e investiga os processos de aprendizagem humana.

“A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade


mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual
se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, histórico,
necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção e de
decisão”. (FREIRE, 2004, p. 110).

Referências
BOMBONATT O, Quezia; MALUF, Maria Irene (Org.) História da
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