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O interacionismo freudiano

Material elaborado para a SEDIS por Cynara Teixeira Ribeiro (UFRN)

Psicanálise: definição, história e conceitos fundamentais

Atualmente é comum ouvirmos frases como ‘Freud explica’, ‘foi inconsciente’,


‘esta pessoa é recalcada’ etc. São frases que fazem alusão à psicanálise, campo de
saber fundado por Sigmund Freud na transição do século XIX para o século XX.
Não é muito simples responder qual é o lugar da psicanálise no rol das teorias
psicológicas sobre o desenvolvimento e a aprendizagem humana. Enquanto alguns
autores consideram-na como mais uma escola de psicologia, alguns psicanalistas
reivindicam seu reconhecimento como campo de saber autônomo, na medida em que
se dedica exclusivamente à investigação do inconsciente – diferentemente das teorias
psicológicas, que focam seus estudos nos aspectos conscientes do funcionamento
mental.
No que tange às contribuições da psicanálise para a educação, estas são
provenientes do modo particular de conceber a constituição do sujeito humano a partir
do campo do Outro. Para a psicanálise, o sujeito se constitui a partir das relações
vivenciadas e dos impasses a elas inerentes. Assim, na escola ou em demais
contextos educativos, a aprendizagem (ou não aprendizagem) de cada aluno levará a
marca de sua constituição subjetiva, sendo importante que o educador esteja atento
para a singularidade implicada no ato de aprender.
No intuito de iniciarmos nossos estudos acerca das indicações que a Educação
pode obter a partir da Psicanálise, precisamos primeiramente entender o contexto de
surgimento deste campo de saber, o que reporta inegavelmente à trajetória de seu
fundador: o médico Sigmund Freud.

Quem foi Sigmund Freud?


Sigmund Freud nasceu em 1856, em Freiberg, na Morávia, área atualmente
pertencente à República Tcheca. Filho de comerciantes judeus, mudou-se ainda
criança com sua família para Viena, cidade onde permaneceu a maior parte da sua
vida e que teve forte influência sobre sua história. Sua vida escolar foi marcada por
intensa dedicação aos estudos. Pairava sobre ele a expectativa de que se tornasse
um homem da ciência, o que culminou em um desejo pessoal de contribuir para o
saber humano, revelado ao longo de sua obra. Em 1872, ingressou na Faculdade de
Medicina e, após formar-se, foi trabalhar como médico neurologista. Em 1885, foi para
Paris, onde conheceu o também neurologista Jean-Martin Charcot, que trabalhava na
Salpetrière, um dos maiores hospitais psiquiátricos da França. Nesta época, Charcot
dedicava-se ao tratamento da histeria, quadro que intrigava a comunidade médica.
A palavra histeria, proveniente do termo grego hystera, que significa útero,
designava um distúrbio que acometia principalmente mulheres, caracterizado
principalmente por paralisias ou contrações involuntárias de partes do corpo,
causando diversas dificuldades relacionadas aos sentidos, sem que houvesse
afecção fisiológica. Charcot foi pioneiro no uso da hipnose em seu tratamento,
conseguindo obter a supressão dos sintomas. Com ele, Freud aprendeu esta técnica
e, em seu retorno à Viena, em 1890, começou a utilizá-la com suas pacientes. Neste
período, Freud estabeleceu parceria com o médico Joseph Breuer e juntos
perceberam que as falas das histéricas eram a chave para a compreensão dos seus
sintomas, o que levou ao abandono da hipnose e à adoção de uma nova técnica
chamada talking cure ou cura pela fala.
Uma das grandes inovações de Freud foi ter atribuído importância às falas de
seus pacientes, preocupando-se verdadeiramente em escutá-los. A partir desta
escuta, percebeu serem comuns, nas falas das histéricas, relatos de sedução
referidos à infância. Propôs, então, haver relação entre os sintomas histéricos e
questões sexuais e infantis. Inicialmente, defendeu que a origem da histeria seria um
abuso sexual ou sedução real ocorridos em tenra idade, cujo responsável seria, via
de regra, o pai dessas pacientes. Posteriormente, abandonou esta ideia e formulou a
hipótese de que os relatos de sedução não eram reais, mas fruto de fantasias
inconscientes. E esse foi o maior feito de Freud: a afirmação da existência de um
sistema mental inconsciente, o qual, segundo ele, articula-se ao sexual, o que o levou
a propor um novo olhar para a sexualidade infantil.
Em sua vasta obra de cunho psicanalítico, Freud aprofundou a relação entre
inconsciente e sexualidade infantil, bem como suas repercussões na cultura, nas
artes, na clínica e na educação. Apesar de não ter se dedicado a elaborar uma teoria
pedagógica, alguns de seus textos referem-se a aspectos educacionais, elucidando
pressupostos fundamentais ao diálogo da psicanálise com a educação, tais como:
sexualidade infantil, sublimação, desejo de saber, transferência etc. No entanto, Freud
afirmou deixar a tarefa de pensar as aplicações da psicanálise à educação para os
seus seguidores.
Aos 67 anos, Freud foi acometido por um câncer no maxilar, precisando enfrentar
várias intervenções médicas. A eclosão do nazismo e a perseguição aos judeus
obrigaram-no a se mudar para Londres, onde viveu seu último ano, morrendo em
conseqüência de um câncer em 1939. Seu legado, além de permanecer atual, instiga
diversos estudiosos a ampliarem sua teoria, tornando possível a continuidade e o
avanço da psicanálise.

 O que é Psicanálise?
Como dito anteriormente, a psicanálise é um campo de saber fundado por
Sigmund Freud na transição do século XIX para o século XX. Segundo seu fundador,
se caracteriza por ser simultaneamente:
1. Prática de tratamento dos distúrbios mentais e psicológicos;
2. Técnica de investigação dos processos da mente humana;
3. Teoria que aglutina concepções obtidas a partir da prática e técnica psicanalíticas.
É importante salientar que tais dimensões são indissociáveis. Assim, esta
tripartição tem fins puramente didáticos e visa elucidar as possibilidades e alcances
deste saber.
Mesmo tendo surgido fortemente atrelada ao tratamento clínico dos distúrbios
psicológicos, desde sua origem a psicanálise revelou-se também uma arte
interpretativa capaz de demonstrar que certos atos mentais cotidianos (sonhos,
esquecimentos, lapsos de linguagem etc.) portam um significado em grande medida
desconhecido daqueles que os produziram, mas que pode tornar-se acessível através
dos meios psicanalíticos. Desse modo, a psicanálise torna-se de interesse para
diversas áreas, dentre as quais Freud (1913/1996) destacou a Psicologia, a
Linguística, a Filosofia, as Ciências Sociais, as Artes e a Educação.
Estas áreas podem se beneficiar do diálogo com a psicanálise na medida em
que estudam e atuam sobre fenômenos psíquicos afetados pelo inconsciente,
conceito inaugural e fundamental do campo psicanalítico. No que tange à educação,
o interesse pela psicanálise justifica-se em função dos esclarecimentos fornecidos
acerca da mente humana e, mais especificamente, dos desejos, estruturas de
pensamento e processos de desenvolvimento infantis, concebidos como marcados
por pulsões sexuais que, para os adultos, se tornam inconscientes, devido em parte à
repressão exercida pelas instâncias educativas. Segundo Freud (1913/1996), “só
pode ser pedagogo aquele que se encontrar capacitado para penetrar na alma infantil”
(p. 1866).

 O Inconsciente
O termo inconsciente não é originariamente psicanalítico. Seu surgimento é
anterior à fundação da psicanálise, tendo sido citado em estudos anteriores aos de
Freud. No linguajar popular designa o conjunto dos processos mentais que escapam
à consciência, sendo usado também para referir-se a alguém incapaz de
responsabilizar-se por seus atos.
Apesar de ser comum a afirmação segundo a qual Freud descobriu o
inconsciente, uma análise criteriosa revela que: a) o inconsciente não foi exatamente
descoberto, pois não é uma entidade empírica passível de observação ou
manipulação; b) a inovação de Freud foi alçá-lo ao estatuto de conceito, conferindo-
lhe definição e sistematização absolutamente originais.
Na perspectiva freudiana, o inconsciente é concebido como um sistema de
representações independente da consciência, que tem como características:
 Ser de natureza simbólica: a função simbólica é condição necessária tanto para a
constituição do inconsciente quanto para sua emergência sob a forma símbolos
(imagens, palavras, gestos etc.) que portam significados.
 Ser operado por leis de funcionamento próprias que:
 Ignoram a contradição: representações antagônicas podem coexistir sem a
eliminação de uma delas. Desse modo, sim e não podem conviver, é possível
querer e não querer algo ou dizer que não fará tal coisa e fazer mesmo assim.
 Desconhecem a negação: uma representação já existente não pode ser negada e,
portanto, não desaparece, apesar de poder mudar de estado (ao tornar-se
consciente ou ser reinvestida, por exemplo).
 Obedecem a uma temporalidade não cronológica: as representações inconscientes
não são temporalmente ordenadas (subvertendo à sequência de princípio, meio e
fim) assim como não sofrem a ação desgastante do tempo, sendo por esta razão
que às vezes uma lembrança muito antiga pode permanecer nítida, parecendo
atual.
 Como o inconsciente tem origem em nós?
As formações do inconsciente apontam para o funcionamento de um sistema
psíquico que opera em oposição à lógica da consciência. Porém, a questão acerca
das origens do inconsciente permanece interrogada: nascemos com ele ou este se
desenvolve após o nascer?
No referencial psicanalítico, o inconsciente se constitui em cada ser humano em
função de sua imersão no mundo da linguagem, não sendo inato nem adquirido.
Apesar da forte relação entre inconsciente e linguagem, este é constituído, sobretudo,
por representações imagéticas (que possuem o status de linguagem, mas não se
identificam à linguagem verbal).
A relação dos seres humanos com a linguagem os diferencia das demais
espécies. Sendo caracterizado pelo despreparo que possui ao nascer, o bebê humano
necessita do outro e da linguagem para assegurar sua sobrevivência. É no encontro
do bebê humano com alguém que satisfaz suas necessidades básicas que aquele
terá suas primeiras experiências de satisfação.
Após o nascimento, o ser humano insere-se em um mundo rico em estímulos
que incidem sobre o seu corpo (tanto externos: calor, frio, sons, imagens visuais, etc.;
como internos: fome, sede, dor, etc.), os quais são vivenciados como um aumento de
tensão que precisa ser descarregada. No caso da fome, por exemplo, esta descarga
acontece quando é ofertado o alimento, como o leite da amamentação. Ocorre, porém,
que paralelamente à satisfação produzida pela ingestão do alimento, dá-se a
excitação da boca pelo líquido quente que penetra o organismo, o que provoca outro
tipo de satisfação que não se reduz à satisfação da necessidade instintiva, apesar de
guardar relação com esta.
As excitações internas, assim como as satisfações delas decorrentes, originarão
as primeiras inscrições psíquicas, as quais serão os representantes psíquicos dos
estímulos que se originam no corpo e alcançam a mente. Tais representantes
psíquicos foram chamados por Freud de pulsões, conceito de crucial importância que
será aprofundado adiante.

 As Formações do Inconsciente
Como vimos, o inconsciente não é uma entidade empírica, não podendo ser
observado nem manipulado. Assim, apenas é apreensível a partir de suas formações,
que se produzem nas lacunas das manifestações conscientes, trazendo à tona
representações que se encontram sob a ação da censura e que, em estado bruto,
seriam inacessíveis à consciência. Por esta razão, as formações do inconsciente
apresentam duas ordens de conteúdo: os conteúdos manifestos (elementos que se
apresentam à consciência) e os conteúdos latentes (elementos censurados que se
apresentam como uma mensagem cifrada, requerendo interpretação).
Dentre as formações do inconsciente Freud destacou:
 Sonhos
Considera-se que a obra inaugural da Psicanálise foi “A interpretação dos
sonhos”, em 1900. Nesta, os sonhos são apresentados como via régia para o
inconsciente e expressão da realização de um desejo inconsciente. Porém, devido
aos mecanismos básicos que regem o funcionamento inconsciente, os conteúdos
manifestos dos sonhos costumam parecer sem sentido quando rememorados em
estado de vigília, pois os conteúdos latentes, verdadeiramente reveladores,
encontram-se disfarçados.
É importante ressaltar que a inovação de Freud foi propor um método de
interpretação dos sonhos baseado no relato e associações do sonhador, bem como
nas circunstâncias em que o sonho teve lugar. Assim, a teoria freudiana afirma o
sujeito como chave para decifração dos sonhos, não autorizando interpretações
universais do tipo ‘sonhar com água significa nascimento ou renovação’, mas
apontando para a singularidade da realidade psíquica.
 Sintomas
Na psicanálise, o termo sintoma designa manifestações de natureza psíquica,
portadoras de um sentido determinado, apesar de sua aparência enigmática e
desprovida de significação. Como as demais formações do inconsciente, encobrem
conteúdos latentes que só podem ser acessados através da interpretação. É o caso
dos sintomas histéricos, obsessivos, fóbicos etc.
Tais sintomas, apesar de trazerem grande sofrimento ao sujeito, paradoxalmente
possibilitam o que Freud chamou de ganho secundário, que consiste em algum
benefício inconsciente trazido pelo sintoma. Para ilustrar essa ideia, Freud lançou
mão, ao longo de sua obra, de vários exemplos, como o de uma mulher que, sendo
apaixonada por um homem, é obrigada pela família a casar-se com outro e, às
vésperas do casamento, começa a apresentar sintomas graves que requerem adiar o
matrimônio – adiamento correspondente ao seu desejo.
No âmbito educacional, a noção de ganho secundário nos ajuda a refletir sobre
alguns fenômenos apresentados no contexto escolar, como dificuldades no aprender,
atos considerados indisciplinados, comportamentos agressivos ou tímidos, dentre
outros, que podem ter natureza sintomática.
Devemos, é claro, evitar generalizações, lembrando que o sintoma se define por
uma formação de compromisso entre uma intenção consciente e um desejo
inconsciente, sendo necessário que a interpretação de fenômenos aparentemente
sintomáticos leve em consideração a complexidade de fatores envolvidos bem como
a singularidade de cada caso.
 Atos Falhos
Consistem em equívocos cometidos na linguagem falada ou escrita que, apesar
de parecerem causados por inadvertência, revelam uma significação oculta e
relacionada às motivações inconscientes de quem comete. Se apresentam sob a
forma de lapsos de linguagem (quando dizemos alguma coisa que não queríamos
dizer) ou de esquecimentos de nomes, lugares ou objetos e demais formas de atos
aparentemente acidentais. Apesar de serem geralmente atribuídos ao acaso, o
constrangimento por eles causado bem como a tentativa exasperada de corrigi-los
são sinais de que eles revelam algo que gostaríamos de ocultar.
Os atos falhos devem ser interpretados em função da intenção a que serve.
Alguns exemplos nos ajudam a entender melhor como, no ato falho, o sujeito diz a
verdade através de um aparente equívoco. Freud citou o caso de um palestrante que
estava se sentindo muito cansado e, ao iniciar uma conferência, diz: ‘boa noite, vamos
encerrar a palestra de hoje’.
Os atos falhos podem ocorrer em qualquer cenário, inclusive no contexto
escolar. Um exemplo elucidativo é de uma professora que, ao chegar à escola em que
trabalha, encontra Graça, uma aluna que considera problemática e, para disfarçar,
tenta cumprimentá-la de maneira simpática, falando: ‘DizGraça’. A partir de atos falhos
desse tipo, o sujeito que o comete pode entrar em contato com seu desejo, primeiro
passo para um reposicionamento subjetivo.
 Chistes
Relacionam-se aos atos falhos, mas sua especificidade é o efeito de humor
produzido no espectador. Também chamados de ditos espirituosos, dão suporte aos
desejos inconscientes, fornecendo-lhes um modo de expressão socialmente
aceitável. Revelam a função lúdica da linguagem, cujo protótipo é a brincadeira
infantil, caracterizando-se por ser produtor de prazer (revelado no riso causado
naqueles que presenciam o chiste).
Um exemplo clássico de chiste, também citado por Freud, é o de um cobrador
de impostos que, ao se encontrar com um homem bem apresentado, a quem julgava
ser seu cliente, disse-lhe: “você me parece tão familionário”. O cobrador queria dizer
familiar, mas estava pensando tratar-se de um milionário, aspecto que
verdadeiramente o interessava, de modo que se operou uma condensação entre
familiar e milionário, culminando no neologismo familionário, o qual revelou as
intenções do cobrador.

O conceito de Pulsão
Devido a alguns problemas na tradução da obra freudiana, é comum
confundirem-se pulsões e instintos, como se fossem conceitos equivalentes. Porém,
Freud deixou claras as diferenças entre eles, afirmando que a pulsão é um instinto
que se desnaturaliza. Para exemplificar esta distinção, utilizou estudos acerca do ato
de sugar o dedo nas crianças: se inicialmente o reflexo de sucção é um instinto
necessário à sobrevivência, em dado momento, este ato deixa de ter relação com as
necessidades biológicas e passa a ser comandado pela finalidade de produzir prazer,
realizando um desvio em relação ao instinto que lhe serviu de suporte.
As experiências de satisfação, situadas no âmbito do prazer-desprazer,
produzirão os representantes psíquicos da pulsão. Segundo definição de Freud
(1915/1996, p. 142), a pulsão “é o representante psíquico dos estímulos que se
originam dentro do organismo e alcançam a mente”, mas, não podendo tornar-se
objeto da consciência, mesmo no inconsciente apenas é conhecida através de seus
representantes psíquicos: a ideia e o afeto. São, portanto, a ideia e o afeto os únicos
registros psíquicos das excitações emanadas do interior do corpo.
O conceito de pulsão é considerado crucial em função da exigência de trabalho
que ela apresenta: por ter como único objetivo a satisfação, a pulsão usa diferentes
objetos como meio para alcançar seu fim. De acordo com Garcia-Roza (2009, p. 122),
a noção de objeto vai-se aplicar tanto a outras pessoas como à própria
pessoa, e não apenas a pessoas inteiras, mas também a partes do corpo de
uma pessoa. Finalmente, esse objeto pode ainda ser real ou fantasmático.

A Sexualidade Infantil
Uma leitura retrospectiva da obra de Freud nos permite afirmar que, em sua
teoria, o conceito de pulsão está ligado à sexualidade, de forma que toda pulsão é,
em última instância, sexual. Tal proposição se encontra desenvolvida principalmente
a partir de 1905, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, quando Freud
afirma a existência da sexualidade infantil, a qual, segundo ele, deriva de um
investimento libidinal do corpo da criança, exercido por quem quer que seja o
responsável por seus cuidados.
Ao acariciar, beijar, embalar, alimentar, entre outras coisas, o outro proporciona
ao bebê uma fonte infindável de satisfação sexual. Sendo o sexual entendido, em
psicanálise, com uma conotação particular: trata-se de um campo constituído como
efeito da relação do filhote de humano com outro ser humano falante e desejante,
abarcando assim um conjunto de atividades que não se relacionam necessariamente
aos órgãos genitais e são geradoras de um prazer que extrapola as finalidades
biológicas (KAUFFMAN, 1998).
O componente central da sexualidade infantil é sua característica anárquica, ou
como disse Freud perverso-polimorfa, uma vez que se entrega a toda sorte de
experiências sexuais (diversos tipos de sucção, defecação, masturbação,
brincadeiras com o corpo etc.), desconhecendo leis ou proibições e visando a
satisfação imperiosa através de todos os objetos e alvos possíveis. Assim, desde o
início da vida, a pulsão sexual não se satisfaz orientada pela finalidade biológica do
instinto sexual, mas de maneira intermediária, o que permitiu Freud afirmar a
organização da sexualidade a partir de pulsões parciais.
Segundo Freud, a tenra infância caracteriza-se por uma anarquia pulsional que
paulatinamente cede lugar a formas de organização pré-genital que antecedem a
organização genital característica da sexualidade adulta. Essa concepção deu origem
ao que ficou conhecido como as fases psicossexuais, cada qual ligada a uma zona
erógena privilegiada, as quais se sucedem na ordem abaixo:
1. Fase Oral: o prazer sexual está associado principalmente a atividades que
envolvem a cavidade bucal (sugar, ingerir alimentos, morder etc.) e a relação com
o mundo externo é marcada pela incorporação, que gira em torno da dialética
incorporar X ser incorporado, cujo protótipo é a relação simbiótica da criança com
a mãe ou com quem quer que se ocupe de seus cuidados, o que deflagra um
sentimento ambivalente em relação a esta.
2. Fase Anal: o prazer sexual encontra-se sob o primado da zona anal, sobretudo
ligado à expulsão e retenção das fezes, o que explica determinados
comportamentos das crianças que podem tratar seus excrementos como um
presente para o outro (batendo palmas, chamando pessoas para verem etc.) bem
como ficar sem defecar por períodos prolongados como expressão de uma recusa
a perder algo de si.
3. Fase Fálica: o prazer sexual começa a convergir para os órgãos genitais, porém,
diferentemente da fase genital, nesta apenas há o reconhecimento do órgão sexual
masculino, o que gera nas crianças curiosidades acerca das diferenças entre os
sexos bem como interesses pela manipulação dos órgãos genitais, o que é vivido
de formas diferentes para meninos e meninas em função da presença ou ausência
do pênis, marcando a travessia pelo Complexo de Édipo, que consiste no conjunto
de ideias, sentimentos e pulsões, todos em grande parte ou inteiramente
inconscientes, que gravitam em torno das relações que uma criança estabelece
com os adultos que se encarregam de seus cuidados (em geral, os pais). Com esse
conceito, Freud quis chamar atenção não apenas para a existência dos desejos
amorosos e agressivos das crianças em relação aos genitores, mas também para
a angústia e a culpa que as crianças sentem por tais desejos.
4. Fase Genital: o prazer sexual organiza-se em torno da zona genital, a qual a partir
da puberdade desempenha papel central no desenvolvimento da sexualidade
adulta, devido a basicamente duas ordens de fatores: sua relação com a função
reprodutora (que se articula à preservação da espécie, muito valorizada em nossa
cultura), e por tornar-se, com o amadurecimento dos órgãos sexuais, meio
privilegiado na ordem da inscrição do prazer.
 Entre a fase fálica e a genital, Freud localizou um período que denominou de
latência, em que as pulsões parciais, como efeito do declínio do Complexo de Édipo,
deixam de estar ligadas a uma zona erógena específica, de forma que as curiosidades
sexuais dão lugar a outras atividades que vinculam a criança ao mundo que a cerca:
é o momento em que ganham maior relevância as brincadeiras, jogos, amizades, vida
escolar etc. Essa indicação revela que as pulsões sexuais satisfazem-se com os mais
diversos objetos, vinculados ao corpo ou não, e sendo assim, podem ter diferentes
destinos, sendo que o mais importante para os propósitos educacionais é o que ele
nomeou como sendo sublimação.
o A sublimação como um dos destinos da pulsão sexual
A sublimação consiste em uma canalização das pulsões para fins socialmente
aceitáveis. Ocorre quando a pulsão, de natureza sexual, dirige-se a um alvo não
sexual – como é o caso, por exemplo, das produções científicas e artísticas. Apesar
de tais alvos não serem sexuais, por intermédio da sublimação, a busca por eles é
impulsionada por uma energia cuja origem é sexual, fazendo-lhes adquirir um colorido
especial que justifica a dedicação do sujeito a certas atividades que, para muitas
pessoas, não têm maior importância.
A fim de ilustrar o mecanismo de sublimação das pulsões, Freud recorreu às
famosas indagações que as crianças dirigem aos adultos, comumente sob a forma de
‘por quês?’. Do ponto de vista da psicanálise, tais questionamentos são fruto da
necessidade da criança de definir seu lugar no mundo, o qual, a princípio, é situado
em relação ao outro (pais ou quem quer que desempenhe esse papel).
Por situar-se no âmbito da relação com o outro, fonte das primeiras experiências
de satisfação, essas perguntas infantis são compreendidas como de origem sexual e
chamadas de investigações sexuais infantis. Porém, em conseqüência à instauração
do Complexo de Édipo, há um deslocamento da energia contida nessas investigações
para outros interesses. Assim, as crianças continuam a fazer perguntas que, apesar
de voltadas a outras questões, são formas de indagar sobre o seu lugar no mundo ou,
em outras palavras, seu lugar no desejo do outro.
Assim, parte das investigações sexuais infantis sofre a ação da censura e parte
é transformada, através do processo sublimatório, em pulsão de saber, de onde
derivam o prazer de pesquisar, o interesse pela observação da natureza, o gosto pela
leitura, o prazer de conhecer coisas novas etc. Infelizmente, Freud não conseguiu
explicar completamente as razões que conduzem à sublimação, não explicando
porque este destino pulsional pode adquirir diferentes direções na vida psíquica do
sujeito. Afirmou, no entanto, que por ser um processo inconsciente, não pode ser
deliberadamente dirigido por pais ou educadores, apesar de ter reconhecido que a
educação propicia a sublimação ao possibilitar a utilização da energia que move as
pulsões sexuais para a realização de atividades socialmente proveitosas.
De acordo com Kupfer (1992), a importância do conceito de sublimação para os
educadores reside no papel que esta desempenha no desenvolvimento da curiosidade
intelectual e do desejo de saber. Assim, com base na relação entre sublimação e
finalidades educacionais, um professor poderia, por exemplo,
oferecer argila em lugar de permitir que uma criança manipulasse suas fezes.
Não se ocuparia, de modo principal, em gritar furiosamente com ela,
ameaçando-a com castigos caso insistisse em sujar ali suas mãos. Convém
ressalvar, desde logo, que o exemplo acima, longe de se confundir com uma
receita pedagógica, permite mostrar como um educador poderia pensar e
agir, caso concordasse com as ideias de Freud sobre a educação de crianças
(p. 44-45).

Freud perguntava-se acerca do que move o sujeito na direção do saber bem


como do papel que pais e professores poderiam desempenhar no processo de
aprendizagem que, para ele, é de caráter fundamentalmente relacional, visto que
implica alguém que assuma a posição de aprendiz e alguém a quem este atribua uma
posição de saber. É esta atribuição de saber a outrem que reveste este outro de um
poder especial, que o possibilita ter influência sobre o aprendiz. Na perspectiva
freudiana, esse investimento é explicado pelo conceito de transferência, uma
manifestação do inconsciente que permeia toda e qualquer relação humana, havendo
peculiaridades quando se trata da relação professor-aluno.

 A Transferência
É um processo, de ordem inconsciente, que consiste em reeditar estados
psíquicos anteriores e revivê-los, não como passado, mas nas relações atuais. Seu
modus operandi consiste em promover um deslocamento da energia investida em
representações anteriores, instituindo, na relação com outros significativos, um lugar
de poder e saber especiais, no qual podem ser artificialmente instalados algumas
figuras: médico, analista, professor ou outros. É importante ressaltar que esse lugar
de poder e saber é, na realidade, vazio, mas o inconsciente preenche-o conforme o
desejo do sujeito. E devido à instalação de uma pessoa neste lugar especial, o sujeito
passa a demandá-lo um saber completo sobre suas questões fundamentais,
ignorando que este saber demandado remete, em última instância, ao inconsciente,
não sendo, portanto, totalmente acessível.
Segundo Kupfer (1992), “na relação professor-aluno, a transferência se produz
quando o desejo de saber do aluno se aferra a um elemento particular, que é a pessoa
do professor” (p. 90-91) e uma das consequências produzidas é que se o aluno dirige-
se ao professor movido pela transferência, o que quer que o professor diga ou faça
será interpretado a partir desse lugar onde ele foi colocado, o que significa que suas
posturas serão tomadas pelo aluno não de forma objetiva, mas subjetivamente, o que
explica alguns casos em que o mesmo professor é amado por um aluno e odiado por
outro.
Pela transferência, o aluno pode dirigir ao professor demandas de saber, bem
como de amor ou de ódio, cabendo a este a difícil tarefa de manejá-las, considerando
que estas se articulam de modo singular para cada sujeito. Caso considerem as
recomendações de Freud, os professores são convidados a empregar o poder que
lhes é imbuído pela transferência para favorecer a formação de um sujeito pensante
e desejante de saber.
Obviamente, analisar a transferência como uma via de acesso ao inconsciente
do sujeito não é tarefa do professor, mas posicionar-se de forma advertida quanto aos
contornos transferenciais que se instalam na relação professor-aluno é importante
para evitar algumas situações problemáticas. Como exemplos destas, podemos citar
casos em que professores abusam deste poder, seja por um lado humilhando ou
desdenhando da posição de não-saber do aluno ou por outro cedendo à tentação de
formatar o aluno, querendo fazê-lo coincidir ao seu modelo ideal.
Desta forma, podemos sintetizar como principais contribuições do conceito de
transferência para o âmbito da educação:
 Se aprender é sempre aprender com alguém (mesmo nos casos de autodidatismo,
em que se supõe a figura imaginária de outrem que se encarrega da transmissão),
trata-se de um processo relacional, que implica colocar-se e ser colocado em
determinadas posições, as quais podem propiciar ou não a construção do saber;
 No processo de ensino-aprendizagem, todos os envolvidos assumem uma posição
de sujeito de desejo e não podem simplesmente abrir mão do desejo que lhes
move, pois é apenas este que justifica que estejam ali;
 Para favorecer a aprendizagem, o professor precisa abrir mão do impulso de
exercer domínio sobre o aluno, abstendo-se de decidir, por conta própria, acerca
do destino deste, desmontando, assim, as profecias auto-realizadoras que geram
tantos problemas, tais como as dificuldades no aprender, os atos chamados de
indisciplina, alguns casos de bullying etc.

 Outras contribuições da Psicanálise à Pedagogia


Diversos psicanalistas advertem não ser possível fazer da psicanálise um
método pedagógico no sentido estrito, salientando que esta seria uma direção
contrária aos próprios fundamentos da psicanálise. Porém, esta ressalva não diminui
a importância das indicações que este referencial fornece aos pedagogos. É a partir
da concepção central de professores e alunos como sujeitos de desejo que a
psicanálise convida os educadores a reconhecerem a educação como um processo
que, por envolver subjetividades, requer atuações (por vezes invenções) que
considerem a singularidade de relações que permeiam o cotidiano escolar.
Esta é uma das razões pelas quais Freud afirmou que educar é uma das três
tarefas impossíveis, juntamente com governar e psicanalisar, não por considerá-las
irrealizáveis, mas por admitir que delas sempre haverá um resto. Assim, não é
possível educar completamente, sendo impossível calcular os efeitos de uma ação
pedagógica, pois estes são imprevisíveis por envolverem processos inconscientes de
alunos, professores, pais e demais envolvidos no ato educativo.
Assim, mesmo sem se propor a oferecer respostas prontas, há várias reflexões
importantes acerca dos processos e fenômenos educacionais que podem ser
propiciadas pelo diálogo entre psicanálise e educação. A Psicopedagogia se apropriou
de algumas dessas reflexões, porém estas não esgotam as inúmeras outras
possibilidades de contribuição da psicanálise ao campo educacional.

Referências
_____. O interesse científico da psicanálise [1913]. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas (Vol. XIII). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____. O inconsciente [1915]. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____. Dois verbetes de enciclopédia [1922]. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas (Vol. XVIII). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KUPFER, Maria Cristina. Freud e a educação: o mestre do impossível. São Paulo:
Scipione, 1992.
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