Você está na página 1de 87

Índice

Editorial ------------------------------------------------------------ p. 05
Felipe Diógenes ---------------------------------------------------- p. 10
Nuno Gonçalves --------------------------------------------------- p. 12
Juliana Cavalheiro ----------------------------------------------- p. 22
Gabriella Araújo -------------------------------------------------- p. 24
Daniel Rodas ------------------------------------------------------- p. 29
Luciano Lanzillotti ----------------------------------------------- p. 39
Marcos Antonio Leite Junior ---------------------------------- p. 43
Mateus Ântoni Rúbia -------------------------------------------- p. 46
Ariel Von Ocker -------------------------------------------------- p. 51
Daniel Mazza ------------------------------------------------------ p. 54
Rodrigo Naranjo -------------------------------------------------- p. 57
Giovani Miguez --------------------------------------------------- p. 61
Rafael Rankzz ----------------------------------------------------- p. 64
Eduardo Wilker -------------------------------------------------- p. 69
Gabriele Rosa ----------------------------------------------------- p. 73
Beatriz Chaves ---------------------------------------------------- p. 76
David Marques de Ramos -------------------------------------- p. 79
Agradecimentos e Contatos ------------------------------------ p. 84
Editorial
Livro de stória é gente

Gente da gente é stória?

Tempo criado ao vento

Vento carrega stória

Nau na beira do porto

Cara de branco na vela

Pensam qu‘u povo é bobo:

Vai dormir que nem cinderela

Mas do mato resiste o ato

Mas do ato resiste o povo

Comendo a carne do novo

Dia nascido do mato

[IMPROVISO MORNO Nº14]

[o rito de Abril]

Abril.

Mês cruel do fogo (diz Eliot) mês cruel do frio.

Abril: saco sem fundo.

O final do quarto mês do ano onde o prenúncio surge nas asas do.
Bacurau? Catatau? Zé Mingal?

Abril.

O pobre que manga do rico que pensa que o pobre não manga do rico que manga do
pobre ao pensar que o pobre não pensa.

Não!

Pobre pensa e sente.

Mas nessa dança de pensar e sentir e sentir e sentar e dançar-se-acabar ninguém sabe
quem é o rico quem é o pobre quem é o rico quem é o pobre quem é o.

Rico de quê?

Pobre de quê?

Semente da ilusão do não. Queremos a verdade cabocla. O sim à Vida. Ao som da vida.
Ao céu da ida.

Pra onde? Onde de onde meu deus?

Pra onde se pensa donde se senta donde se sente.

Onde? Agora.

O quê? Lutar.

Lutar mas lutar por quê?

Pro crânio não rachar. Pra caravela afundar. Pra memória rugir. Pra o fogo do olhar.

O rito do fogo. O rito de Abril. O riso do céu em sorriso de anil:

SUCURU!

[Paraíba: Abril do Ano Caboclo de Dois Mil e Vinte e Dois]

Equipe Sucuru
*

* *
O Bicho

Ó vai lá não não não. Só tem baque-baque laque-laque. Já viu o vidro em forma de
bicho? Lá só tem bicho manso, desses que arrancam a carne com a falta do dente.
Amanhã você ainda acorda vivo. A cama no lugar, mas é só mover. De repente o
cobertor coberto de medo irrompe uma árvore no estado de folha caída. Você foi por
motivos diversos: o ônibus nem leva lá. Pega a moto, esquece o capacete. Pega o
capacete, esquece a moto. Pega alguma coisa e esquece o mote. Se fizer do começo algo
tenso dizem que é bom. Quem diz é o folhetim. Diz no presente mesmo pra aumentar o
aspecto. Dura até quando não der. Ó amanhã pega um ônibus e erra o lugar de descer.
Desce na rua da árvore. Se tiverem cortado a árvore é por motivo de oxigenação. À
procura de algo na cidade é bom achar tanto o fauno quanto o sátiro, melhor ainda achar
uma fauna e uma sátira. Aí é só cobrir o vidro com o medo do cobertor coberto e
descobrir na boca uma farsa.

Felipe Diógenes é autor do livro O Esquecimento das Coisas (Ed. Patuá, 2020).
Mineiro de Belo Horizonte, graduou-se em Letras pela Universidade Federal de Minas
Gerais (FALE/UFMG). No Coletivo Meticulosa, explora textos e mídias diversos.
Participou das edições Nº10 e Nº12 da Revista Sucuru (Revista de Literatura e Arte
Contemporânea).
Lírios brancos

chove sobre os séculos que me habitam

e sobre essa infinidade de objetos desconhecidos que me povoam

o entardecer nunca foi tão amarelo quanto ontem

e o laço nunca foi tão preciso e amoroso

chove sobre as dúvidas e aflições que me respiram

e sobre essa infinidade de estranhos afetos entre as ferrugens

o entardecer nunca foi tão roxo e sincero quanto ontem

e o chicote vibrou com a perfeição que exige todo mistério

todo poema é um tratado teológico

e a metafísica é um biscoito doce que se serve com café

fizemos spaguetti com ternura, josefinas, azeitonas e tomates

comemos no jardim com as mãos

olhando esperanças e louva-deuses

enquanto o laço e o chicote traçavam círculos concêntricos

sobre nossas cabeças

sobre nossos desalinhados cabelos

sobre nossas velhas roupas coloridas

Ele veio de longe e nos tocou com suas plumas de arara

percorremos uma vez mais nossas árvores genealógicas

guiados por seu sonho até a fronteira


onde seu avô buscava armas e oxigênio para a sobrevivência

a metafísica é um café amargo que se serve com biscoitos

a onça parda, a pintada e o maracajá

todos rezando sob as lágrimas de Oxalá

os tempos em que vestíamos negro desaparecendo no firmamento

e o gavião pairando sobre nossas delicadezas eróticas

pego um fósforo, acendo o cigarro

brinco de medir as distâncias entre o beijo e o escarro

ao contrário de Suassuna

que escrevia para espantar a morte

escrevemos para não esquecê-la

para sempre recordar que um dia ela chega

raios e tempestades sobre o que somos

e o que somos é sempre o último que nos chega

aos pés da Árvore nossos desejos mais sublimes

e todas aquelas imagens que brotam do pós-apocalipse

nenhum mal dura mil anos

todo poema é um tratado sobre nudez e eternidade

quem me sopra estes delírios com coisas reais?

quem acende entre minhas frestas estas súbitas intuições?

imprecisas inquietações que me flecham


e outras aparições inesperadas

tua avó cozinhando quirerinha

tua avó lapidando diamantes

tua avó fritando bolinhos caipiras

e o vento soprando do infinito

enquanto minhas mãos misturam o suco de limão ao açúcar mascavo

sonhando com os lírios brancos que colheram nos bambuzais...


Antropologia

Estávamos à beira de um penhasco muito alto.

Estávamos contentes e saudáveis.

Não nos comunicávamos.

Nem por palavras, nem por gestos.

Nem por quaisquer outros meios.

O penhasco era muito alto.

As falésias de Icapuí, talvez.

E no fundo uma água transparente.

Peixes pré-históricos ameaçadores.

Estávamos numa singela varanda.

O horizonte era imenso.

E nele se anunciava um arco-íris.

Uma queda seria fatal.

Estávamos imóveis e em paz.

Meu abdômen encharcado de abandono.

Aquele mesmo abandono que você com tanta razão detesta.

pai, quando eu corro muito

quando eu brinco muito

minha perna dói

filha, ainda quando eu não corro


ainda quando eu não brinco

todos os os meus ossos doem

Acordei bem e razoavelmente amoroso.

Algum dia teríamos que saltar no precipício.

Algum dia teríamos que nadar entre os ameaçadores peixes pré-históricos.

Éramos crianças não contaminadas por infantilismos.

Uma máquina de costurar havia costurado nossos corpos.

Estávamos imóveis e em paz.

Acorrentados à paz.

E nada sabíamos uns dos outros.

Nada além das linhas com as quais a máquina de costura nos costurara.

O penhasco era muito alto.

O horizonte era demasiado extenso.

Talvez estivéssemos em alguma das falésias de Icapuí.

Talvez.
Antropologia II

Talvez não fossem as falésias de Icapuí.


Talvez fossem os despenhadeiros de Mar del Plata.
Cuscuz com ovo e tapioca com queijo.
Um cheiro que só essa cidade tem né papai!
A vela dos santos.
A vela dos mortos.
Os incensos.
Domingo se encompridando feito cobra que acorda.
O vestido da Inaê.
Um cheirinho que só os bebês têm né papai!
Domingo se encaraminholando feito cobra que anoitece.
A falta que faz um bebê ou um ferro de engomar.
Nem o sabão desencardiu a roupa de reza.
Batem as portas.
Batem as janelas.
Têm muita gente morta que anda comigo.
Adélia Prado também disse dos bebês que são velhinhos.
Adélia disse bonito como eu jamais diria.
O livro em que ela disse se chama:
Quero minha mãe.
Não era Icapuí.
Não era Mar del Plata.
Era a avenida Conde da Boa Vista.
Minha mãe não estava imóvel.
Nenhuma paz lhe habitava.
Seu corpo sem vida no asfalto.
Adélia outra vez:
A morte não existe, tudo gera.
Hermenegildo passou a cavalo.
Os bebês são mesmo os velhinhos que voltam.
Os que morrem regressam à floresta.
As portas batem.
As janelas também.
O vento tange essa procissão de mortos que andam comigo.
Em algum lugar eles seguirão me aguardando.
Com as mãos órfãs estendidas.
E uma tristeza irresistível no olhar.
A morte não existe, tudo gira.
Quase esquecemos os terríveis peixes pré-históricos.
O terror acende náuseas e esquecimentos.
Lembrar que existe uma praia chamada piedade me sufoca.
Ter vivido numa praia chamada futuro me agoniza.
O terror ilumina.
Balanço a rede empurrando o pé na parede de rústicos tijolos.
Esperando que a cobra entorpeça o desespero.
Hermenegildo passou de volta.
Existem feitiços que não podem existir sem sal.
Os bebês são muito mais velhos que nós.
A tristeza só pode ser o que é quando irresistível.
Hermenegildo

Hermenegildo cruzou outra vez o meu sonho.

Seu cavalo ainda era o mesmo.

Apesar da lança do tempo que agora trazia ao peito.

E ao despertar quase nada recordei.

Somente a conversa entre a minha tristeza e a tristeza de um amigo.

Numa praça onde quando colônia se vendiam escravos.

Um chafariz jorrando águas e machados.

E a memória de um céu amarelado por ondas vulcânicas.

As mensagens da morte nos chegando.

E Hermenegildo seguindo seu caminho.

Com seu cavalo e suas preces manuscritas.

Ainda era em tudo o mesmo.

Apesar da lança do tempo que agora lhe atravessava o peito.

Como um arabesco servindo de ponte.

Ou uma lua nova mergulhando entre o cruzeiro e as três marias.

Havia certa palidez em meus gestos.

E o sentido das coisas parecia para sempre perdido.

Entre os sedimentos porosos e as ruínas ósseas.

Uma leve brisa reacendeu meu cigarro.

E os sapos saltaram sobre as folhas de cartolina.


Não existe atalho. A ideia de salvação é um ato falho.

O laço, o chicote e as corriqueiras hesitações.

Apesar de tudo, Hermenegildo e seu cavalo seguiam sua jornada.

Nuno Gonçalves Pereira. Nasci em Recife, mas sou cearense. Publiquei os livros de
poesia: Cacos de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação e Calabouço de
reticências ou a aridez do oceano. De prosa: O rio das onças. Recebi o Prêmio Ideal de
Literatura com o conto O caminho da novena e com o poema O canto do anjo
vermelho. Graduado em história pela UECE, mestre – na mesma disciplina – pela UFC
& doutor em Estudios Latinoamericanos pela UNAM. Sou professor de história da
América na UFRB, mas o que importa mesmo é que sou pai de Marialice. Escrevo no
blog http://insensatanau.blogspot.com/
Poema

_um corpo_

o tempo
tem razão e é
todo tempo

o tempo
tem a nós, ou será nós
que temos tempo?

o tempo:
do homem planta trópicos no quintal
das estrelas, ideias pelo céu

mas o tempo
tem razão, e é
todo tempo

o tempo
tem a nós, ou será o mundo
do tempo que nos tem?

o tempo
tem estradas próprias
multiplexo

: e em algum lugar
enquanto um seio se encabula
cinco amantes têm um filho

Juliana Cavalheiro. Arquiteta de formação e designer por prática, gosto de traduzir


ideias em objetos através do desenho ou das palavras. Com as letras gosto de explorar a
experiência do corpo, seja a sua crueza interior ou o limite estético do outro.
Escaramuça
Uma batalha ao amanhecer, e já me encontro sangrando por fogo amigo;

Sou exercito de uma mulher só, tribo sem aliados

Tentaram colonizar minha selvageria, mas ela só brotou barricadas maiores,

Sou a bala que atinge e a arma que dispara.

Sou o ditador que arquiteta e a bandeira branca hasteada.

Sou o alvo do morteiro e o tanque que intimida

Sou a enfermeira que estanca o sangramento e o bisturi que corta a fáscia.

Na escaramuça encenada por conhecidos sou qualquer coisa menos a heroína.

Luto uma batalha para alcançar minha morada

Território neutro, protegido e não maculado á beira mar,

Cuja trilha sonora é a valsa de ondas quebradas;

A morada que não me pertence e só existe em uma lembrança inventada,

Por ela continuo enfraquecendo fronteiras

Por ela sou escudada quando batalhas perdidas ricocheteiam meu alento

Por que me tomas como estrangeira minha própria casta?

Sinto frio enquanto incendeio.

Meus crimes de guerra contra eu mesma;

Não importa a guerra aqui fora

Outrora possuo uma linda morada na aurora.


CASA DA GANGORRA

Bata na porta, mas aqui não tem segurança para você, a vida que queres não encontrarás
nesse lar. No horário da saída você vai descobrir que ninguém vai te buscar na escola
hoje, o carro foi vendido e o ônibus já passou, quando chegar em casa espere ser
surpreendida, tem pão no forninho da mamãe, você não está sozinha, mas sente solidão.
Vamos ter que comprar pouca comida, menos que antes, mas mais que muitos. Você
está sozinha em casa, todos fugiram, se refugiaram no mato, a verdade é lógica: eles não
sabem ser juntos sem se sentirem separados.

Não espere visita, ao seu lado não tem descanso nem trégua, sempre tão descoberta,
sempre com frio, cuidado com o primo que mostra mais do que deveria, aprenda na
marra á ter garra, pela noite desempoeire seus livros e se encontre em um novo cenário
de recesso do real. Você risca um caminho de alívio na parte interna da coxa, onde a
vista não capta o vermelho, sempre á espera de um porto seguro em um mar de
incertezas, não acredita ainda que sua casa foi construída em cima de uma gangorra, sua
casa te segue onde você vá e agora está no fim da linha mais uma vez.

Aguarde até eu estar alimentada para essa conversa pesada sobre realidade e
dificuldade, não consigo me concentrar nas fatalidades com meu estomago troando.
Tenho me desfeito de prazeres, trocado de prioridades, me desmanchado para me
refazer mais adaptável para esse meio espinhoso que cobra por cada piscar.
UMA TIA

Uma garota conseguiu achar reconforto nas pinceladas de uma Tia

Uma garota achou passos incandescentes e cheirosos em uma trilha recheados de


otimismo

A garota que a Tia pincelava ontem cresceu sob orientação de suas pegadas

A garota já foi vestida pelas roupas da Tia, é aquecida por seu calor maternal até mesmo
agora

Do quebra cabeça que me tornei você junta os pares que não encaixam

A trilha que abriu é abrigadouro para minha espiritualidade

Um pequeno sol Elaine se reflete em um mar de olhos verdes

Capaz de dissipar um furação em brisas de calmaria por nossa genealogia


ARCABOUÇO (minimalista)
Se possível extirpar de meu arcabouço toda qualidade de amar,
Me acuso de não fazer bom uso dela
A mando para onde o vento faz chuva
Assim também serei solo encharcado que apanhou consolo.

Me chamo Gabriella Araújo, natural de Aracaju-SE mas moro no Maranhão desde os


6 anos, graduanda de Enfermagem na Universidade Federal do Maranhão, não me
imagino vivendo sem a escrita e livros, eles são companheiros fieis em meio a solidão,
divido morada com as folhas quando me sinto sem lar. Escrevo para sobreviver e para
confortar o máximo possível aqueles que se encontram em páginas.
Daniel Rodas (Teixeira-PB / 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Estudante de Letras
(UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata,
2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021), tem textos publicados em vários
meios eletrônicos nacionais e internacionais, a exemplo das revistas Mallarmargens,
Ruído Manifesto, Toró, Subversa, Kuruma´tá, Entreverbo, Trajanos, Aboio, LiterArte
(Argentina) e Granuja (México). Faz parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de
Monteiro-PB, onde colabora como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir
incontrolável da vida.

Arcanjo Meia-Noite, autor dos poemas-cartazes, é uma de suas personas literárias.


Molas

A culpa não é do relógio,


máquina indefesa:
parafusos e molas.

Que sabe do tempo, o relógio,


e de sua fria nostalgia?
Rua

A rua da minha infância


vai desaparecendo com o fim dos moradores.

Meu nome também vai com cada um deles:


primeiros passos, aniversários e
amanheceres.

São tantos os que se foram antes do tempo,


porque o tempo nunca estará certo
em nenhuma partida.

Brinco com aquele menino


morto pela meningite.

Ouço os mais antigos, felizes ao me verem


chegar da escola
ou sorrindo por ter trilhado caminho correto
em meio à tão raras escolhas.

Cada um resiste em mim a ir embora


e resisto a me ir de todos vocês.
Livraria

Caminha pelas ruas do bairro


buscando por uma livraria.

As ruas acabam, o bairro finda


e as livrarias desapareceram
em espaço e tempo.

É o produto não natural


mais vital que existe.

Tão vivo e com frutas,


como árvores.

Luminoso e vital,
como o sol.

Íntegro e complexo,
como mamífero.

Quando livrarias desaparecem,


algo finda em um povo.

Luciano Lanzillotti. Doutor em Letras pela UFRJ e autor de Geometria do Acaso,


Editora Dialética, 2021.
Uma borboleta que devora gente

Do outro lado do lago,


habita uma borboleta
que devora gente.
Bonita e igualmente perigosa.

Nunca gostei de nadar perto do sol,


olho para o mundo e o sorriso derrete.
Quando vejo o surreal fecho os olhos e peço para acordar.

Fui passando com você


no campo de flores.
Você que lê se mostra carente de entendimento,
não, sou pouco ilustrativo.
Olho e te mostro as flores lindas que iluminam o verde do campo.
O lago parece ser refrescante (até mesmo no inverno).
O despertar é meio cabalístico
e eu gosto.

Vejo a borboleta e sei que me condena de longe.

A borboleta sente que vou arrancar suas rosas


pra plantar no meu quintal.
Sou uma ameaça, sou um demônio infinito.

Arranquei.
Indiferente levei sua rosa.
A mais bonita e viva.

A borboleta devora o inimaginável.

Ela te levou e me deixou.


Deixou todo o jardim pra mim.
E por um segundo, achei que estava no lugar mais feio do mundo.
Fechei os olhos e desejei acordar,
a borboleta devora o inimaginável.
Precisei enxergar o surreal.

Marcos Antonio Leite Junior. Mora em Primavera, estado de São Paulo, é estudante
de História e desenvolve pesquisas na área de literatura. Usa a fotografia como parte do
processo criativo, e seus principais temas de escrita são: desigualdade social, racismo,
corpos introspectivos, emancipação de si e solidão. Instagram: @marcos_ljr
A TARTARUGA BOIA

Cristal líquido
Flútuo casco aéreo
Elãs serenos.
TÁRTAROS RUGOSOS

Piscina quieta
Vaivéns de nadadeiras
Ciclos imortais.

Mateus Ântoni Rúbia. É nordestino, baiano — nascido e crescente em terras do sertão


—, graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana, e amador,
nos vários sentidos atribuíveis à palavra, em quase tudo. É o autor do romance
psicológico de ficção-científica Santíssima Mãe dos Mortos (Editora Kazuá, 2022), e
possui textos publicados no Medium, em perfil pessoal e no coletivo de textos
impublicável, no seu perfil de fotografias amadoras no Instagram, nas revistas Sucuru,
LiteraLivre, e no blog WebTV. Reconhece-se como jovem demais para saber de
qualquer coisa, mas, também, ousado o suficiente para tentar entender algumas.
Instagram: r e l i c a r i u m (@_mateusantoniru) Facebook:
https://www.facebook.com/mateus.antony.773/ Perfil do Medium:
https://medium.com/@antoniorubia
A CONFISSÃO DE UM SER INÚTIL

Em vão, amor, eu chorei por todo o dia.


Inúteis suspiros murmurei ao vento sozinha.
Ninguém em resposta aos gritos meus veio correndo.
Ninguém abraçou-me para dizer que o mundo
Não mais me feriria.
Sangrei e gemi sem consolo por um amor que
Não existia. Não! Porquê não eras tu um alguém,
Que eu inútil desejava. Eras a sombra.
Eras vazio e refolho do que só eu sentia.
Eras a flor, em mim mesma, nunca desabrochada.
Sozinha dormi. Sozinha acordei.
E a casa era a mesma: os mesmos móveis corroídos
Por lembranças esquecidas
E espelhos trincados em miradas de agonia.
E eu ia pensando entre reflexos que só eu senti
O amor de infinitas vidas e o ódio de um só corpo condensado
E indescencendente de mim e dos que me precederam.
Eu: a estrangeira da terra, a filha ingrata de um
Mundo que nunca me desejou.
Mas, ainda assim, vivi, amor.
Vivi por ódio de mim e por desejo de desmentir a vida
De que eu falharia.
Como criança, eu fantasiei histórias fabulosas para não ver
Que ao meu lado dormia um cão sarnento.
Para fugir do horror, eu plantei rosas cujos espinhos furaram
Meu dedo quando tentei acaricia-las.
Tudo foi em vão: as palavras de afeto e os beijos trocados
Na escadaria antes da partida,
Os livros lidos e os desenhos sem técnica feitos no caderno.
Sento-me à mesa e peço ao garçom:
-Traga mais vinho, pois vida não vale nada.-
Nalgum lugar, uma gaivota voou para o coração do oceano.
E isso não importou de nada, pois haviam na praia
Outras mil gaivotas tão iguais a ela e indefensávelmente tolas.
O mar se revolveu. Peixes nadaram em profundidades ignoradas.
Eu bebi o vinho e depois, o café.
O primeiro veio quente e azedo pela má conservação.
O segundo estava frio e sem açúcar.
Paguei a conta sem discutir com quem me os trouxera e voltei para
casa.
Escrevi um poema e tentei sorrir vendo
A garoa que caía.
Não sorri nem chorei. Apenas olhei perdida
Um horizonte do qual apenas não fazia parte.

Ariel Von Ocker é escritora, psicanalista, poliglota e acadêmica de Letras e História.


Também já trabalhou no teatro como dramaturga e atriz. Autora com quatro livros
publicados, atua desenvolvendo pesquisas na área da psicanálise, literatura sob
perspectivas historiográficas e estudos de gênero Atualmente se dedica também às artes
plásticas através da iniciativa Projeto Simbiose, no qual atua no núcleo de direção em
parceria com Michelle Diehl e Cristina Soares, além de ser editora-chefe da Revista
Ikebana.
Não-binárie, às vezes, prefere o feminino na hora de escrever.
Contato: @ariel_von_ocker
O nascimento de Deus (A desolação de Zeus)

– Hera, rainha e esposa, Apolo e Artemis,


Meus filhos, não lhes posso dar respostas
Sobre esse galileu: não teme o César,
Seria filho de um Deus que não se mostra?

Não tem nas mãos a lança inquebrantável


De Atena, nem no peito, acoplada,
Do irascível Ares a armadura,
Nem a força inumana de Aquiles.

Mas... É como se a túnica que o veste


Fosse, então, impossível de esgarçar?
Haveria alguma luz de bronze sólida
Das mãos enclavinhadas a brotar?

Tem consigo guerreiros ocultados


Quando sozinho fala em nomes três?
É, pois, como o cavalo de madeira
Dos gregos, mas de carne e osso feito?

É possível que a águia dos romanos


De garras afiadas e aduncas,
De bico que destripa as suas presas
Pereça sob as asas de uma pomba?

Pois não vejo em seus olhos covardia,


Temor qualquer que seja, nem a homens,
Nem aos deuses do Olimpo, nem a Zeus.
Suponho que não tema o próprio Crono!

Sendo de carne fraca modelado,


De sangue que tão fácil se derrama,
De ossos que tão frágeis se esfarinham,
Eu contemplo em seu corpo um fogo etéreo
E abrasador que nasce sobre as águas
Do Jordão. É um fogo imperecível
Nutrindo-se de água! Um fogo eterno
Que não sucumbirá perante nada!

Não é a mansuetude das ovelhas,


Ou de presa acossada o que se vê
Em seus olhos profundos, olhos mansos,
Em seus olhos de homem, simples homem.

Mas o leão também se mostra manso


Deitado em sua relva, e sob a sombra
Das árvores de seus vastos domínios,
Porque não teme nada, e tudo vê.

Pressinto um panteão só de ruínas,


De deuses esquecidos e mofados,
Pela carne que agora é retalhada
Sob ordens sanguinárias de Pilatos.

Pressinto um império afogado


Pelo sangue que agora é derramado
Do alto dessa Cruz que será símbolo.
O símbolo do Deus que, morto, nasce.

***
Daniel Mazza.
Sacrificium (Itabuna – BA: Mondrongo, 2021)

Daniel Mazza (Fortaleza, CE, 1975). Médico e escritor. Teve a sua obra literária
analisada e louvada pelos renomados críticos literários e poetas Alexei Bueno,
Anderson Braga Horta, Fernando Py, Gerson Valle, Hildeberto Barbosa Filho, Jessé de
Almeida Primo, Washington Benavides e Marcos Pasche, entre outros. É também autor
de mais três livros de poesia: ‗Fim de Tarde‘ (2004), ‗A Cruz e a Forca‘ (2007; Prêmio
Gerardo Melo Mourão de Poesia) e ‗A sinfonia do tempo ˗ primeiro livro de filosofia‘
(2014).
À marronzinha

A ti dediquei todo o meu amor

o teu amor era diferente, algo animal

sua história é repleta de lutas

carregada de vitórias

forte, corajosa, brava e serelepe

mesmo não querendo, entendi que antes de partir

precisava deixar você ir

só não entendo o porquê de tanto sofrer

assim como as plantas do jardim que nos protegem

será que era você a nossa protetora?

Se estou seguro, eu já nem sei

se me afirmam dizendo que você não tem alma

eu prefiro acreditar que sim, você tem.

Minha companheira de todas as festas de final de ano,

ao longo dos seus 7 anos de vida.

Até me pego dizendo as vezes,

―Se a Marronzinha tivesse aqui, estaria com medo de tantos fogos!‖

Mas hoje eu sei que nada te dói, não te amedronta,

não choras e não sangras.

Faz companhia ao Altíssimo,

me espera no plano espiritual,

junto aos meus avós.


E me recebe com toda a alegria de sempre

que o abanar do seu rabo demonstrava

quando eu, meu irmão e minha mãe chegávamos.

Amamos-te

Rodrigo Naranjo de Oliveira é manauara, tem 21 anos, graduando em licenciatura em


Educação Física pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Admira a arte, a
natureza, o equilíbrio mental e as práticas de aventura. A partir de agora, escrever
servirá para deixar os registros de seus pensamentos, enquanto faz sua passagem pela
Terra.
Ele precisava escrever

Todos os dias, pela manhã, ele sentava-se no último banco do último vagão do trem e
punha-se a escrever. Ele precisava escrever. Ele escrevia sobre tudo, desde os sonhos
que tivera na noite passada até as cenas que testemunhava no trajeto entre a sua casa e o
trabalho e, no fim do dia, entre o trabalho e a sua casa. Escrevia também sobre aqueles
pensamentos teimosos que chegavam e que, anotados, iam embora. Não se apegava a
nada depois que registrava naquele caderninho que sempre tinha em mãos. Ninguém,
entretanto, tinha acesso ao pequeno diário daquele escritor persistente.

Ao chegar em casa, depois de tomar banho, jantar e ver um pouco de televisão, lia, relia,
corrigia, reescrevia. Ele precisava passar por aquela alquimia textual tanto quanto
escrever. Era tão meticuloso tanto com a letra quanto com as ideias que fazia colapsar
naquelas páginas. Não era um escritor, dizia quando questionado. Era apenas um
vivente angustiado, tentando relacionar-se com seu mundo através das palavras que
chegavam confusas, mas se aquietavam quando pousadas nas páginas do pequeno
caderno.

Foram semanas, meses, anos. Uma vida inteira anotada com o único intuito de aquietar
a sua mente. Nunca soube de ninguém que tivesse lido alguma linha sequer daqueles
diários. Sim, diários. Eram muitos, dezenas, talvez centenas. Vai saber... Afinal, era um
hábito que ele cultivou solitariamente por toda uma vida. Não tinha filhos, esposa e nem
família. Vivia um silêncio quase monástico entre a casa e o trabalho. No trabalho,
dizem, falava bem pouco, o estritamente necessário. Era almoxarife de uma grande
companhia estatal, seu primeiro e único emprego até a aposentadoria.

Um dia, meses depois de aposentar-se, foi encontrado morto no seu modesto quarto e
sala. Causas naturais, disseram. O seu semblante era sereno. Semblante de quem viveu a
vida possível, sem expectativas e modesta. ―E os cadernos?‖ Em um canto da sala, uma
grande lata de lixo metálica com todas aquelas anotações... queimadas! Uma vida inteira
tornou-se cinzas de uma existência agora inexistente. Ao lado, um bilhete dizia: ―Finda
a finda, tudo deve virar pó, até as palavras. Um homem só deve ser lembrado pelo que
foi; e eu fui.‖
Escrever foi seu ato de desapego. Quando morreu, levou com ele suas memórias, tudo
que ele tinha de mais precioso. Seu testamento foi o pó de suas palavras. Seus
pensamentos, como ele, tornaram-se silêncio.

Ele precisava escrever, mas não desejou ser lido.

Giovani Miguez é poeta. Autor de oito livros, entre eles, ―Na escuridão da travessia,
poesia‖ (2 vols.), pela Selin Trovar, 2022.
Inverno

O gelo do inverno
A nossa relação
Um frio interno

Entre Noites de inverno


A Solidão passageira
Entre Amores e dores

Nosso Kaos interno


O Vermelho do amor
O nosso Azul interno

Antes nosso abraço


Hoje um cigarro
Antes uma poesia
Hoje uma dose de melancolia
Bruxa

Tenho dúvidas
Previu meu futuro…
Não errou em nada.

Ainda penso
se ela é bruxa
Será a pessoa
mais informada?

As coisas mudam
As coisas acabam
As coisas vem
As coisas somem

Portas quebram
Janelas queimam
Pessoas machucam
Pessoas amam

Impossível acordar
Quem não quer enxergar
Deixe se frustrar
A perda é para ensinar
Mentiras em folhetos

Lembro ao que pertenço


Estás comigo quando venço
Nunca quando eu perco

Percebo! Nunca foi verdadeiro


O folheto vermelho juntou-se
Aos cigarros no cinzeiro

A sensação do amor é a melhor


A sensação de te perder a pior

Após tudo isso preciso ser melhor


O ciclo não para… Não permito
Monotonia de quem é o pior
Monotonia de quem é melhor

Os olhos veem as mesmas coisas


Porém as mentes veem outras

Não me deve nada


Não lhe devo contas
Não digas que amas
Assim me desapontas
Rua 333

Retorno sempre para essa rua


Sob a luz do sol ou da lua
Todos os dias acabo nessa rua

As calçadas se pintam com letras


Algumas páginas contém rosas
Livros podem conter rosetas

Escrevo com estilhaços da alma


Odeio com os pedaços do coração
Amo com o que me resta de solidão
Afasto-me por causa da estima

Me chamo Rafael Santos, mais conhecido como Rafael Rankzz escritor da


POETRY(Perfil de Instagram). Amante de literatura e também proliferador da mesma.
É uma honra voltar para Sucuru divulgando vários textos novos. Uma evolução
explícita de minhas habilidades.
"Vozes

Ouço vozes durante o dia


Ouço vozes durante a noite
Ouço o barulho da vizinha
Ouço vozes junto ao apoite

O barulho não vem de nada


Não vem de dentro, não vem de fora
O som simplesmente paira

E enquanto caminho, cato suas migalhas


Parado... Nem suas ondas me ganham..."
"Mesa

Merencória mesa do jantar


olha a vida pelos pés das cadeiras
Olha a botina, olha as sobreiras
Carcomida nos pezinhos pede uma reforma
Mas a vida é assim mesa solene,
A idade chega, o tempo voa,
No lar do pobre nem a mesa destoa.
Não a troco por falta de verba,
Não a reformo, coloco na área externa.
E num dia fugidio,
Não a jogue fora, doe a mesa ao Maurício...
Compartilhar a desgraça é a melhor esperança."
"Elucido

Elucido o Aparecido a luz da lua


Olho retorcido o Aparecido que parece que flutua
Percebe a vida pelos lábios meus
Ouve cada palavra com o ouvido ateu
Descrente da vida, distante do mundo
Aparecido fica imerso no seu ego profundo
Não entende que o mundo é uma bola
Não entende que estou lhe dando conhecimento e não esmola
Cada qual com seu cada um
Elucido o Aparecido, em ser o tal rapaz comum,
Aparecido não entende, que o diferente é o normal
Porque de todas as pessoas nenhuma é igual
De fala fácil, limpa, fora do causal
Elucido o Aparecido a ser o tal.
Elucido o Aparecido, mas quem sou eu? Seu pai ou a vida?"

Natural de Uberaba, Eduardo Wilker é um escritor mineiro que apresenta o dom desde
muito novo com oito anos de idade. Compõe seus textos e crônicas desde a infância e,
apesar de algumas propostas para publicação, não tem a obra publicada ainda. Trabalha
no serviço público, além de ministrar aulas e desenvolver softwares
dois goles de memória, cinco tragos de aflição e um corpo em
conta gotas – uma resenha do livro Para os que ficam, de Alex
Andrade
por Gabriele Rosa

o escritor Alex Andrade costura dramas familiares, envelhecimento e violências de


gênero no romance recém-lançado Para os que ficam. trançado no tripé: recordar,
repetir e elaborar - não necessariamente nessa ordem - o livro conta a história de Ana,
uma mulher enredada por uma ética do descuido, que se percebe envelhecida, solitária e
saturada da vida em suas miudezas. Ana, moldada em berço patriarcal, reproduz
opressões enraizadas em suas sociabilidades; herda os cuidados de um pai doente.

“O velho está sentado no sofá esperando religiosamente a hora do almoço. Volta e


meia vou até a sala, atravesso o corredor, espio a janela de relance e esbarro no braço
do sofá para que ele reaja.”

ela performa uma maternagem compulsória, dança em espelhamento com a decrepitude


do masculino que não mais tutela, é tutelado. com a narrativa em primeira pessoa,
Andrade coreografa fluxos de consciência em encruzilhadas. quanto mais próximos
estamos dos pensamentos de Ana, mais esquinas se abrem na narrativa. curvas, cantos e
cacos.

“E pensar que meu pai está sentado esperando por mim e pelo almoço, ou esperando
pelo almoço, ou esperando. Não sei o que dizer, não sei. Escuto o som da sua voz, ele
diz algo, ele espera que eu faça algo. Ana, Ana, Ana. Meu pai me vigia, me persegue e
me desorienta.”

entre margens, beiras e bordas, nos percebemos dependurados nas lascas pontiagudas
que restam do corpo de uma mulher em conta gotas. ao longo da narrativa temos um
feminino de comportamento maquínico e autodestrutivo, inundada por traumas, vícios,
violências e um humor debochado, intimamente perfurante.

a naturalização de horrores encrustados na sociedade patriarcal, machista e misógina,


atinge o leitor à queima roupa, e move algumas engrenagens narrativas do romance. ao
propor conversas transtemporais, Andrade, cria um tempo poroso, permeado por
fantasmas: mãe, pai, irmãos, ex-marido, a tv, os pensamentos dela e de outros, a janela,
o banheiro, as águas e o próprio corpo. imagens-pulsões nascem em rizomas, como
máquinas desejantes. Ana não é capaz de estranhar normatividades tamanha fundura de
suas lacunas. sua loucura é conforto; fruto traumático capaz de criar um escape, um
imaginário de proteção que em segundos pode desabar com uma simples menção; me
lembrou Estamira ao flutuar entre a violência escancarada e o conforto ilusório: a
transição só necessita de um gatilho. o autor nos oferece em estilhaços, as possíveis
causas para o estágio de subversão psíquica de Ana, assim esta é fruto de traumas, mas é
também ele próprio. temos uma carne que sangra em meio a podridão de masculinos
viciosos e um feminino ausente. assim como em Estamira, há vazios, não-ditos e
exclusões.

são os enquadramentos discursivos propostos no romance de Andrade, que expandem a


memória recalcada e a memória narrativa de Ana até o limiar da reformulação da sua
identidade. na relação entre sanidade e loucura, seu discurso parece carregado pelo
deslocamento figurativo da sua própria memória individual-coletiva; sua vida é sintoma.
as imagens entre os capítulos, reconfiguram e expandem o olhar do leitor. dói ser Ana.
dói ser vida.

Para os que ficam é uma inquietante vivência literária. recomendo a leitura. mergulhe
com os olhos abertos e o peito inflado com fôlego duplo. ―A água lava e leva tudo.” o
afogamento é quase certo. e ainda assim, não é um destino.

convido-xs à leitura.

Gabriele Rosa (Rio de Janeiro – RJ, 1988) é autora de Lavínia é mais Rosa que
Espinho (Libertinagem, 2022) e de Fendas extraordinárias (Patuá, 2019). Artesã da
palavra e da cena, atua como dramaturga de processo e dramaturgista. Atualmente
pesquisa os espaços heterotópicos entre a construção literária e a criação dramatúrgica
na peça Memórias de uma Manicure, em produção pela Bonecas Quebradas Teatro.
Tem contos e prosas curtas publicados em revistas literárias virtuais e antologias, entre
as quais se destaca a coletânea Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto (Selo Off
Flip, 2021).
POR TRÁS DOS OLHOS
Bia Chaves

Existe uma infinidade de coisas que um par de olhos fechados pode conter.
Pensamentos que se fragmentam em milhares de linhas emaranhadas e novelos de lã e
sonhos. De olhos fechados, gênios e poetas imaginaram e deram vida às mais
maravilhosas invenções, às mais magníficas obras de artes. Arrisco dizer que, ao fechar
os olhos, podem-se fazer coisas muito mais maravilhosas e até inimagináveis do que
quando se está com eles abertos.

Quando a encarei naquela madrugada, adormecida num sono tranquilo, me perguntei


que tipo de pensamentos estaria fermentando por trás daquele semblante quieto.
Observei o movimento das pálpebras, o farfalhar de borboleta dos cílios, e, ruminando,
tentei adivinhar o rumo de seus devaneios.

Naquele sorriso de canto de boca, que você exibiu em dado momento, vi o sonho doce
de nosso primeiro encontro, naquela padaria de esquina meio escondida do resto da
cidade, em que saboreamos pão de queijo e sonho — estes físicos, não metafóricos — e
falamos sobre tudo e nada, futuro e passado, e, talvez não coincidentemente, nunca
sobre o presente.

Naquela tremida de ombro, em que você soprou um leve suspiro e se ajeitou mais no
travesseiro, vi nossa primeira noite juntos. Uma confusão de peles e suor e dentes e
lábios e risos e gemidos e suspiros por debaixo de respirações ofegantes. Meu coração
bateu um pouquinho mais acelerado; temi que você o escutasse e despertasse.

No tremular suave de seus cílios, subindo e descendo, vi o meio da nossa história —


muito se fala sobre o começo e fim das histórias, mas pouquíssimo se valoriza o meio;
erroneamente, pois é o mais importante. Vi nossos passeios de bicicleta na orla e nosso
primeiro cinema — ah, aquele filme horroroso. Me vi conhecendo seus amigos e você
conhecendo os meus — os dois que a vida me preservou. E, quanto mais seus cílios
tremiam, vi as brigas, as noites mal dormidas, as mensagens grosseiras, as crises de
ciúmes. Você se revirou na cama uma, duas vezes. Eu permaneci paralisado, tal estátua
barroca esquecida numa igreja.

Por fim, no seu profundo exalar de inspiração, vi esta noite. Esta última noite. E,
decidindo que já bastava, me levantei, vesti as roupas e saí em silêncio, encostando a
porta. De leve, preservando seu sono. E os sonhos e pensamentos que seus olhos
fechados guardaram, ao me sentir partir, eu nunca soube.
Beatriz Chaves Messias, ou simplesmente Bia Chaves, nasceu em 1999 em Campinas-
SP, mas foi criada em Belém-PA, e ai de quem insinue que ela não é paraense!
Apaixonada desde cedo por palavras, decidiu seguir o caminho destas no curso de
Letras da Universidade Federal do Pará. Entre publicações de livros, contos e crônicas,
segue percorrendo esse caminho, e pretende continuá-lo pela vida toda.
o sonho da térmita

Eram cinco da manhã quando Ivana escancarou as cortinas, com os cabelos


desgrenhados e um robe gasto cobrindo o corpo. Não era um hábito seu acordar tão
cedo, mas naquele dia a insônia havia interrompido seu descanso novamente. Já não
conseguia mais relaxar; havia um mês desde que aquela inquietação invadira sua rotina.
Quando começou a tomar as pílulas, irritou-se pela maneira como ficava inerte durante
o dia e as jogou fora. Era melhor ter olheiras do que toda aquela letargia, pensava.

O céu ainda encoberto pelas nuvens causava uma atmosfera de melancolia e


aconchego. E aquele ar fresco da manhã lhe fazia tão bem; aquela calmaria incomum
para quem vive nas grandes cidades. E depois que a tranquilidade passava, ainda sentia
um certo prazer em acompanhar o despertar da metrópole, de escutar as conversas que
começavam na rua e as engrenagens movimentando as máquinas. Mas naquele dia a
cidade estava adormecida. Sem sinal de movimento.

Sentou-se na cama e lhe passou pela cabeça telefonar para Saulo. Cogitou
convidá-lo para uma viagem breve que duraria apenas um final de semana, antes do
marido chegar de São Paulo. Ah!, como seria bom passar um tempo vivendo realmente.
Não queria desperdiçar a vida encarando paredes e contemplando a banalidade das vidas
alheias. Queria sentir o sangue nas veias; rindo com as amigas, se despindo para o
amante, aproveitando os luxos que o dinheiro proporciona, sentindo aquela sensação
substancial de estar fazendo algo valer a pena. Mas não. Estava conformada em negar a
inconformidade.

Com o corpo exausto, escorou-se na sacada. Diante daquelas ruas tão cheias,
preenchidas por altas moradias de concreto, sentiu-se vazia. Tão indiferente quanto uma
térmita perante um elefante. Sua vida seria essa? Iria despertar aborrecida e acomodar-
se na sacada pelos próximos sessenta anos? Morreria assim?

Ora, mas não havia razão para se queixar. Afinal, era vista como uma mulher
feliz, considerada uma dama. E preferia acreditar que os olhares alheios faziam dela o
que ela era: uma boa esposa.

Quando os pensamentos lhe fugiram da cabeça, estava em um auditório.


Ninguém, além dela. O palco, em sua frente, parecia distante e iluminado. Nada
acontecia.
Levantou-se, estranhando o ambiente; procurava pela saída e logo encontrou uma
porta vermelha atrás do último corredor de cadeiras. Girou a maçaneta. E quando abriu,
escutou a melodia que vinha de trás. Do palco. Fechou a porta e, hipnotizada pelo que
enxergava, recostou-se na mesma cadeira da qual levantara.

Uma jovem, no centro do tablado, performava com movimentos tão delicados que
a música parecia emergir de seu corpo. Os cabelos acerejados, os olhos mortos, os
membros flutuantes, tudo fazia daquele momento uma cena que merecia ser vista. Era
um anjo movimentando-se conforme a harpa de alguma divindade. E tinha uma beleza
pecaminosa. A compleição física de um fruto proibido e o eflúvio de uma figura
angelical.

Quando a apresentação terminou e os aplausos não foram ouvidos, Ivana


levantou-se. Sem fôlego. As luzes do proscênio também já haviam se apagado. A moça
já não estava mais lá. Em um impulso, Ivana subiu no palco e correra em direção à
coxia. Desceu por degraus intermináveis e finalmente se vira diante de um beco escuro,
que dava para a rua principal. Lá estava ela, aquele anjo de cabelos vermelhos, indo
embora como se o trabalho já tivesse sido feito.

- Espere – foi a única palavra que Ivana conseguiu exprimir, em um tom de


emergência, de súplica.

Ela esperou. E se aproximando de seus lábios, tão rubros quanto seus cabelos,
Ivana mordeu a maçã. Sentiu o frescor de um fruto coibido, bebeu o sumo da natureza
límpida, sentiu a vida retornar ao corpo. O vigor que emergia daqueles olhos mortos.

Quando a última gota de seiva foi ingerida, ela se viu diante da mesma sacada. Da
mesma rua. Da mesma selva de pedra. Porque, para quem não existe, bastam os sonhos.
conforto

Ele foi embora antes da festa acabar, com um copo de Bombay Sapphire pela
metade e seu lindo cabelo claro, no melhor estilo James Dean, sendo despenteado pelo
vento.

Naquele momento, não estava claro para mim que não nos encontraríamos mais.
O álcool inebriara todo o hemisfério racional do cérebro. E no fundo, eu preferia
acreditar que não existiria adeus. É assim que se foge dos embargos da vida: fingindo
que eles não existem.

Bebi ainda mais, joguei conversa fora com estranhos e fui embora, vazio.

No dia seguinte, não haviam rastros. Eu deixei ele ir. E perdi toda a vida que
poderia ter tido ao seu lado. Só tenho as vagas lembranças, mas não tenho as memórias
do que poderia ter sido o futuro. Me conforta saber que ele está confortável onde está.

David Marques de Ramos é natural de Rosário do Sul e tem 18 anos. Foi através da
leitura e do contato com o teatro que se apaixonou pela Literatura. Atualmente vive
em Caxias do Sul, onde foi um dos ganhadores do 1° Concurso Municipal Literário
promovido pela Academia Caxiense de Letras.
*

* *
Agradecemos:

A Eva Wilma Rodas Ramalho e Fernando Antônio Ramalho de Amorim – pelo apoio de
sempre;

A todos/as/es os/as/es membro/as/es da Rede AFETIVA de Culturas, da qual fazemos


parte – pelo apoio e a divulgação;

A todos/as/es os/as/es nossos/as/es colaboradores/as, leitor/es/as e amigos/as/es – sem


os/as/es quais a Sucuru não existiria.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Contatos

Nosso site: medium.com/revista-sucuru

Nosso Facebook: facebook.com/revistasucuru

Nosso Instagram: @revistasucuru

Nosso e-mail: revistasucuru@gmail.com

---------------------------------------------------------------------------------------------------

Envie seu texto para a Sucuru

Estamos abertos, em fluxo contínuo, para o recebimento de originais. Aceitamos


poemas, contos, crônicas, fotografias, colagens, artes plásticas, desenhos, quadrinhos,
resenhas, textos híbridos, etc. Publicamos artistas de todo o país – e também do exterior,
desde que os textos estejam em língua portuguesa, espanhola ou bilíngue.

Envie seu texto em formato word (letra Times 12) para o nosso e-mail:
revistasucuru@gmail.com. Responderemos o mais breve possível.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

VIVA A SUCURU!
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU

Você também pode gostar