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"O pássaro da cabeça": versos para

crianças de Manuel António Pina


Coisas que não há que há

A Ana quer
Uma coisa que me põe triste

é que não exista o que não existe.


A Ana quer
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
nunca ter saído
Há tantas coisas bonitas que não há:
da barriga da mãe.
coisas que não há, gente que não há.
Cá fora está-se bem,
bichos que já houve e já não há,
mas na barriga também
livros por ler, coisas por ver,
era divertido.
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,

pessoas tão boas ainda por nascer


O coração ali à mão,
e outras que morreram há tanto tempo!
os pulmões ali ao pé,
Tantas lembranças de que não me lembro,
ver como a mãe é
sítios que não sei, invenções que não
do lado que não se vê. invento,

gente de vidro e de vento, países por


O que a Ana mais quer ser achar,

quando for grande e crescer paisagens, plantas, jardins de ar,

é ser outra vez pequena: tudo o que eu nem posso imaginar

não ter nada que fazer porque se o imaginasse já existia

senão ser pequena e crescer embora num lugar onde só eu ia...

e de vez em quando nascer

e voltar a desnascer. Imagem


HISTÓRIA ANTIGA - MIGUEL
O pássaro da cabeça TORGA

Sou o pássaro que canta Era uma vez, lá na Judeia, um rei.


Feio bicho, de resto:
dentro da tua cabeça,
Uma cara de burro sem cabresto
que canta na tua garganta,
E duas grandes tranças.
que canta onde lhe apeteça.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Sou o pássaro que voa
Olhos de quem gosta de crianças.
dentro do teu coração

e do de qualquer pessoa E, na verdade, assim acontecia.


(mesmo as que julgas que não). Porque um dia,
O malvado
Sou o pássaro da imaginação Só por ter o poder de quem é rei

que voa até na prisão Por não ter coração,

e canta por tudo e por nada


Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
mesmo com a boca fechada.
Nas cidades e aldeias da Nação.

E esta é a canção sem razão


Mas,
que não serve para mais nada
Por acaso ou milagre, aconteceu
senão para ser cantada
Que, num burrinho pela areia fora,
quando os amigos se vão Fugiu
Daquelas mãos de sangue um
e ficas de novo sozinho pequenino
na solidão que começa Que o vivo sol da vida acarinhou;
apenas com o passarinho E bastou

dentro da tua cabeça. Esse palmo de sonho


Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças, E o mais pequeno perdeu uma asa!
Só porque ele não gostava de crianças.
PROCISSÃO - FESTA NA ALDEIA Tocam os sinos na torre da igreja,
- ANTÓNIO LOPES RIBEIRO Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Tocam os sinos na torre da igreja, Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Há rosmaninho e alecrim pelo chão. Vai passar a procissão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passar a procissão. Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
Mesmo na frente, marchando a E os lindos rostos, por trás das
compasso, mantilhas,
De fardas novas, vem o solidó. Parecem anjos que vieram do Céu!
Quando o regente lhe acena com o
braço, Com o calor, o Prior vai aflito.
Logo o trombone faz popó, popó. E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Olha os bombeiros, tão bem alinhados! Que estes passeios de Nosso Senhor!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados, Tocam os sinos na torre da igreja,
E os capacetes rebrilham ao sol. Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Tocam os sinos na torre da igreja, Já passou a procissão.
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passar a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!


Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!


Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos,
da pobre gente que avança,
BALADA DA NEVE - AUGUSTO e noto, por entre os mais,
GIL os traços miniaturais
Batem leve, levemente, duns pezitos de criança...
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente? E descalcinhos, doridos...
Gente não é, certamente a neve deixa inda vê-los,
e a chuva não bate assim. primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
É talvez a ventania: porque não podia erguê-los!...
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia Que quem já é pecador
na quieta melancolia sofra tormentos, enfim!
dos pinheiros do caminho... Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Quem bate, assim, levemente, Porque padecem assim?!...
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente? E uma infinita tristeza,
Não é chuva, nem é gente, uma funda turbação
nem é vento com certeza. entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
Fui ver. A neve caía – e cai no meu coração.
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.


Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais


BALADA DAS VINTE MENINAS Eram ovos redondinhos
FRIORENTAS - MATILDE ROSA que apetecia beijar:
ARAÚJO ovos que continham vidas
e asinhas para voar.
Vinte meninas, não mais,
eu via ali no beiral: Já não são vinte meninas
tinham cabecinha preta que a luz do Sol acalenta.
e branquinho o avental. São muitas mais! muitas mais!
Não são vinte, são oitenta!
Vinte meninas, não mais,
eu via naquele muro: Depois oitenta meninas
tinham cabecinha preta, eu via ali no beiral:
vestidinho azul-escuro. tinham cabecinha preta
e branquinho o avental.
As minhas vinte meninas,
capinhas dizendo adeus, Mas as oitenta meninas,
chegaram na Primavera capinhas dizendo adeus,
e acenaram lá dos céus. em certo dia de outono
perderam-se pelos céus.
As minhas vinte meninas,
dormiam quentes num ninho
feito de amor e de terra,
feito de lama e carinho.

As minhas vinte meninas


para o almoço e o jantar
tinham coisas pequeninas,
que apanhavam pelo ar.

Já passou a Primavera
suas horas pequeninas:
e houve um milagre nos ninhos.
Pois foram mães, as meninas!
Para que me queixo em vão?
O PASSARINHO PRESO – Que espero, se contra a força
BOCAGE de nada serve a razão?
Na gaiola empoleirado,
um mimoso passarinho
trinava brandos queixumes Aqui parou de cansado
com saudades do seu ninho. o volátil carpidor;
eis que vê chegar da caça
«Nasci para ser escravo o seu bárbaro senhor.
(carpia o cantor plumoso),
não há ninguém neste mundo, Trazia encostado ao ombro
que seja tão desditoso. o arcabuz fatal, e horrendo,
e alguns pássaros no cinto,
Que é do tempo, que eu passava, uns mortos, outros morrendo.
ora descantando amores,
ora brincando nos ares, O preso vendo a tragédia,
ora pousando entre flores? coitadinho, estremeceu,
e de susto, e de piedade
Mal haja a minha imprudência, quase os sentidos perdeu.
mal haja o visco traidor;
um raio, um raio te abrase, Mas apenas do soçobro
fraudulento caçador! repentino a si tornou,
c’os olhos nos seus finados
Em que pequei? Porventura estas palavras soltou:
fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos, «Entendi que dos viventes
como o daninho pardal? eu era o mais infeliz:
que outros têm pior destino
Ah! Se a vossa liberdade aquele exemplo me diz.
zelosamente guardais,
como sois usurpadores Da minha sorte j´agora
da liberdade dos mais? queixas não torno a fazer:
antes gaiola que um tiro,
Mas ah triste! Ah malfadado! antes penar que morrer».
No comboio descendente - Fernando SER POETA – Florbela Espanca
Pessoa
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
No comboio descendente Do que os homens! Morder como quem
Vinha tudo à gargalhada, beija!
Uns por verem rir os outros É ser mendigo e dar como quem seja
E os outros sem ser por nada — Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada. É ter de mil desejos o esplendor
No comboio descendente E não saber sequer que se deseja!
Vinham todos à janela, É ter cá dentro um astro que flameja,
Uns calados para os outros É ter garras e asas de condor!
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente É ter fome, é ter sede de Infinito!
Da Cruz Quebrada a Palmela. Por elmo, as manhãs de oiro e de
No comboio descendente cetim...
Mas que grande reinação! É condensar o mundo num só grito!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não — E é amar-te, assim, perdidamente...
No comboio descendente É seres alma, e sangue, e vida em mim
De Palmela a Portimão. E dizê-lo cantando a toda a gente!
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
AS FORMIGAS - Olavo Bilac
E das pedras se desviam.
Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Entre os calhaus vão abrindo
Vão andando, vão andando…
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras subindo,
Marcham em filas cerradas;
Acolá, galgando um muro.
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
Esta carrega a migalha;
E das pedras se desviam.
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Entre os calhaus vão abrindo
Outra, uma pata de inseto.
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras subindo,
Carrega cada formiga
Acolá, galgando um muro.
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Esta carrega a migalha;
Nenhuma para cansada.
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Vede! enquanto negligentes
Outra, uma pata de inseto.
Estão as cigarras cantando,
Vão as formigas prudentes
Carrega cada formiga
Trabalhando e armazenando.
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Nenhuma para cansada.
Também quando chega o frio,
Vede! enquanto negligentes
E todo o fruto consome,
Estão as cigarras cantando,
A formiga, que no estio
Vão as formigas prudentes
Trabalha, não sofre fome…
Trabalhando e armazenando.
Recorde-vos todo o dia
Também quando chega o frio,
Das lições da Natureza:
E todo o fruto consome,
O trabalho e a economia
A formiga, que no estio
São as bases da riqueza.
Trabalha, não sofre fome…

Recorde-vos todo o dia


Das lições da Natureza:
O trabalho e a economia
São as bases da riqueza

Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Vão andando, vão andando…

Marcham em filas cerradas;

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