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Orfandade
Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressoar das pessoas no quartinho.
Me dá a neguinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.
Adélia Prado
O Dia da Ira
Antes do nome
As coisas tristíssimas,
Não me importa a palavra, esta corriqueira. o rolomag, o teste de Cooper,
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, a mole carne tremente entre as coxas,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás", vão desaparecer quando soar a trombeta.
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível Levantaremos como deuses,
muleta que me apóia. com a beleza das coisas que nunca pecaram,
Quem entender a linguagem entende Deus como árvores, como pedras,
cujo filho é Verbo. Morre quem entender. exatos e dignos de amor.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda- Quando o anjo passar,
muda,] o furacão ardente do seu vôo
foi inventada para ser calada. vai secar as feridas,
Em momentos de graça, infrequentíssimos, as secreções desviadas dos seus vasos
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. e as lágrimas.
Puro susto e terror. As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
Adélia Prado reunidos na praça, à espera de seus nomes.
Adélia Prado
Exausto
Adélia Prado
Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Adélia Prado
Verossímil
Adélia Prado
JANELA
Adélia Prado
Metamorfose
Adélia Prado
A Serenata
Adélia Prado
O Vestido A Flor do Campo
No armário do meu quarto escondo de tempo e traça Mais que a amargosa pétala mastigada,
meu vestido estampado em fundo preto. seu aspro odor e seiva azeda,
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas a lembrança antiga das camadas do sono:
à ponta de longas hastes delicadas. há muito tempo, foi depois da missa,
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, eu e mais duas tias num caminho, as pernas delas
meu vestido de amante. na frente, com meia grossa e saias.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. No ar os cheiros do mato, as palavras cordiais,
É só tocá-lo, e volatiliza-se a memória guardada: o céu pra onde íamos, azul,
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão. conforme as palavras de Nosso Senhor,
De tempo e traça meu vestido me guarda. os lírios do campo, olhai-os,
a flor do mato, a infância.
Adélia Prado
Adélia Prado
Ensinamento
Adélia Prado