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Freud e seus dois maiores dissidentes: Jung e Reich

Luiz Bosco Sardinha Machado Júnior

O conceito de Inconsciente foi uma revolução dentro das Ciências Psicológicas (como eram intitulados
os estudos em Psicologia até o início do século XX) que marcou profundamente todas as Ciências
Humanas e até mesmo algumas disciplinas das Ciências Naturais. Trazia à tona uma possibilidade de
resposta para perguntas incômodas aos olhos dos estudiosos que tentavam pautar suas teorias sob o
paradigma Positivista, como Wundt, Watson e outros.
O primeiro teórico do Inconsciente a concatenar um conjunto de idéias e hipóteses dispersas em
obras filosóficas, como a de Schopenhauer e Nietzsche, foi o fundador da Psicanálise, Sigmund Freud.
Seus estudos sobre a histeria na última década do século XIX o levaram a formular a hipótese de um
mecanismo mental inacessível à memória, porém tão ou mais influente que esta na subjetividade
humana.
Dada a amplitude dessa formulação e sua importância, inumeráveis filosófos e pesquisadores com ela
estabeleceram diálogo, nem sempre aceitando-a. Traremos em destaque Reich e Jung, dois dos
maiores nomes dentre aqueles que tiveram estreita colaboração com o “Pai” da Psicanálise e
posteriormente romperam. Suas obras têm como fundamento aquilo que Freud estabeleceu mas vão
além, consolidando-se como teorias próprias, não desdobramentos do pensamento freudiano.

Freud

Utilizando inicialmente o método da hipnose (ainda como colaborador de Breuer, médico vienense
renomado), Sigmund Freud percebeu que as manifestações histéricas estavam ligadas a recordações
que em condições normais seriam impossíveis às pacientes de trazê-las à tona. Observou também
que estas lembranças provocavam não somente o sintoma histérico, mas influenciavam o
comportamento cotidiano das pacientes. A hipótese estabelecida foi de que a mente dessas pessoas
poderia estar bipartida, de maneira que o conteúdo traumático tivesse sido oculto a fim de evitar
sofrimento, mas viria à tona por meio dos sintomas sem que fosse reconhecido.
Abandonando a hipnose, foi estabelecido o princípio da livre associação: o paciente poderia seguir
seus pensamentos e falar espontaneamente o que lhe viesse à cabeça, sem se preocupar com uma
suposta lógica, ou com a censura moral. Assim, foi possível observar que parte de nossa mente não
segue uma organização racional, estabelecendo ligações entre temas e representações que podem
parecer absurdas sob o ponto de vista das normas sociais.

Com seus estudos sobre os sonhos, Freud aprimorou essas concepções: o “ocultar” de lembranças
não se limitava às histéricas, mas se estendia a todos os seres humanos. No conteúdo onírico, surgem
elementos mnemônicos que permaneciam inacessíveis em estado de vigília, retornando durante o
repouso através de simbolizações, algumas vezes mais, algumas vezes menos diretas.

A energia psíquica e a libido

É necessário analisarmos inicialmente o conceito de pulsão (Trieb), que, para Freud, é um aumento de
tensão, um acúmulo de energia mental voltado para um objeto. Essa energia mental Freud a intitulou
de libido; teria caráter dinâmico, sempre alternando acúmulo e descarga – a descarga gerando alívio
ou prazer. O impedimento de descarregar-se essa energia acumulada gera grande desprazer, o que
leva a mente a recalcar essa pulsão, “aprisionando-a” no Inconsciente. Ela tem a tendência de sempre
retornar, isto é, a mente continuará tentando descarregar essa energia acumulada afim de alcançar
equilíbrio.

O conceito de libido em Freud é essencialmente erógeno, isto é, ligado ao prazer, ainda que não
diretamente erótico/reprodutivo. O autor ainda divide a libido em narcísica, predominante no início
do desenvolvimento humano, onde o prazer se encontra no próprio corpo; e objetal, onde o prazer
está ligado aos objetos externos do desejo.
Inconsciente, estrutura e dinâmica da Psique

A Primeira Tópica da mente

Freud formulou a primeira tópica da mente (intitulada Modelo Pulsional ou Dinâmico), dividindo-a em
Consciente, Pré-Consciente e Inconsciente. O Consciente seria, conforme expressão comumente
usada, a ponta do iceberg da mente humana. É onde se encontra o domínio lingüístico e semiótico,
bem como o raciocínio. O Pré-Consciente é a seção onde encontram-se os traços mnemônicos
acessíveis ao Consciente, não-recalcados e num estágio pré-representativo. No Inconsciente, a área
mais vasta e insondável da mente, encontram-se as lembranças recalcadas: tudo aquilo que, sem o
auxílio da análise, está fora do alcance do Consciente.

A maior parte do comportamento humano seria ditado pelos conteúdos inconscientes, que estão em
constante necessidade de descarregar-se; para tanto, ele se utiliza de diversos recursos, como o
Deslocamento, a Condensação, a Projeção e a Sublimação, citando apenas os mais importantes
dentre diversos outros estudados por Freud.

A Segunda Tópica

Estudando esses fenômenos e, particularmente, após seus estudos sobre o Narcisismo e sobre o
complexo de Castração e Édipo, Freud aperfeiçoou o conceito de Inconsciente, formulando a
chamada Segunda Tópica (intitulado Modelo Estrutural), dividindo a mente em Id, Ego e Superego.

O Id é a maior estrutura da mente. Nele encontram-se as pulsões e todo material recalcado (mas não
se deve confundi-lo com o Inconsciente da Primeira Tópica). Assim, seu caráter é sempre afirmativo,
isto é, para o Id não há recusa, ele sempre busca a satisfação plena, irrestrita e imediata (essa
característica é intitulada de princípio de prazer). É a estrutura mais primária da mente,
predominando nos primeiros anos de vida do ser humano.

Gradativamente, essa predominância é superada por uma estrutura que é uma diferenciação do Id, o
Ego. Formado a partir do contato do indivíduo com o meio externo, o Ego é o controle sobre o Id,
condizendo seus desejos com o que o meio pode ou permite oferecer-lhe (característica intitulada de
princípio de realidade).

A parte mais diferenciada da mente, surgida a partir do complexo de Castração e Édipo, é o Superego.
Nesta estrutura, encontram-se os valores morais do indivíduo, introjetados particularmente a partir
do contato deste com as figuras parentais. Atua inibindo os anseios inconvenientes do Id através do
mecanismo de culpa.

O complexo de Castração e Édipo – nascimento do Inconsciente

O complexo de Castração e Édipo é apontado como o momento do surgimento definitivo do


Inconsciente e é um elemento central na teoria psicanalítica “ortodoxa”.

Ligeiramente, podemos explicar esse complexo da seguinte maneira: para os meninos, o desejo que
sente pela mãe, vindo do vínculo existente entre ambos desde o nascimento, sofre um revés quando
este percebe que ela não possui o falo. Após uma fase de recusa desse fato, o menino percebe que
quem provê a mãe do falo é o pai, e este a teria castrado. Dentro do que Freud e os psicanalistas que
o seguem intitulam de “equação simbólica”, o menino chega à conclusão de que o pai o castrará,
assim como castrou a mãe, por desejá-la. Ele então recalca esse desejo e introjeta a figura do pai
como um ideal a ser seguido, a fim de um dia substituí-lo.
Para a menina, Freud e seus seguidores admitem não existir uma explicação satisfatória. Esta seguiria
um percurso diferente: imaginando-se possuidora de um falo, quando depara-se com o fato de não
tê-lo e de sua mãe também não possuí-lo, tenta recusar esse fato, admitindo para si possuir um falo
diminuto (o clitóris). Desloca então seu objeto de desejo (que inicialmente era a mãe, devido ao fato
do vínculo gerativo) para o pai, por este possuir o falo, desejando assim dar-lhe um filho. Não há uma
explicação clara sobre como esse processo se encerra; aparentemente, o desejo pelo pai
simplesmente se dissiparia, explicação evidentemente insuficiente.

Pulsão de Vida e Pulsão de Morte (Eros e Thanatos)

Em sua obra “O Mal-estar na Civilização”, Freud tenta dissertar a respeito do problema clássico da
“metafísica última”, isto é, o bem e o mal. Apresenta uma distinção entre as pulsões, onde a Pulsão
de Vida guiaria a busca pelo desenvolvimento pleno na integração, sendo assim a base do convívio e
da civilização. É o que leva os seres humanos a conviverem e colaborarem entre si para sua
sobrevivência e satisfação. A Pulsão de Morte seria o instinto de desintegração, responsável pela
destruição e aniquilação. Guia o indivíduo para a fixação (isto é, o não-desenvolvimento) e a
fragmentação.

Jung

Carl Gustav Jung foi inicialmente o principal colaborador de Freud. A teoria dos complexos, de onde
Freud extraiu a base para formular os princípios dos complexos de Castração e Édipo, é de sua autoria,
para dar um exemplo dentre tantas contribuições que deu à obra de Freud.

O distanciamento de Freud por Jung deve-se basicamente por três pontos:

a) Jung não dava tanto peso ao papel de uma pulsão sexual na mente humana, como Freud fazia –
veja-se o princípio da Psicanálise, pautada na análise de desejos sexuais não realizados nas histéricas.

b) O complexo de Castração e Édipo não teria um papel tão central na formação da mente nem da
personalidade do indivíduo.

c) Seus estudos sobre misticismo e religiões incomodaram a Freud, conhecido por sua defesa
ferrenha do ateísmo e que via a religião como uma espécie de patologia.

Não se está aqui deixando de lado possíveis fatores menos elevados para o distanciamento entre
Freud e Jung, como disputas dentro da Sociedade Psicanalítica. Importa mais o percurso do
desenvolvimento teórico da Psicanálise.

Energia Psíquica e Libido

Para Jung, existiria uma energia psíquica que seria a base para todos os processos psíquicos, em nível
elementar, isto é, ainda sem ligações a objetos quaisquer. Ele amplia o conceito freudiano de libido,
recusando-se a aceitar a visão desta como essencialmente ligada ao prazer erógeno: ela estaria ligada
a todos os processos vitais do ser humano, como fome, sede, necessidade de repouso etc.

Inconsciente, estrutura e dinâmica da Psique

A conceituação de Jung sobre o Inconsciente segue caminho bem distinto do de Freud, porém, deve-
se sempre ter em mente que seus conceitos supõem a conceituação freudiana, ao menos em sua
primeira tópica.
Para ele, a psique era constituída por três níveis: a Consciência, o Inconsciente Pessoal e o
Inconsciente coletivo.

A Consciência é o nível das lembranças e das percepções, proporcionando o contato com a realidade
e a adaptação a esta. Julgava-a secundária diante do Inconsciente, no que concordava com Freud.

O Inconsciente Pessoal é o nível do inconsciente pertencente ao indivíduo. Estão aí suas experiências,


impulsos, desejos, percepções fugidias etc., numa ampliação do Inconsciente freudiano. Além disso,
para Jung, o acesso ao Inconsciente Pessoal não seria tão difícil, por não ser tão profundo. Esse nível
estaria organizado em complexos, isto é, agrupamentos de idéias, lembranças etc., em torno de um
assunto específico. O Ego seria um complexo presente no Inconsciente Pessoal, aglutinando material
concernente à consciência do indivíduo sobre si mesmo.

O corpo do iceberg estaria no chamado Inconsciente Coletivo.

O Inconsciente Coletivo

Seus estudos sobre religiões, antropologia e misticismo levaram Jung a concluir que diversos traços
são comuns às mais diferentes culturas. Diante desse fato, Jung chega a conclusão que fariam parte
de um repertório de recordações comum a toda humanidade, o Inconsciente Coletivo.

É o “pano de fundo” da personalidade, desconhecido pelo indivíduo, e que contém as experiências


acumuladas ao longo da evolução da espécie humana (Jung não deixa claro se este conteúdo seria
transmitido geneticamente ou não). É considerada a força mais potente da personalidade.

Constitui-se por arquétipos, estruturas básicas formadas ao longo da evolução em torno de temas
que repetiram-se ao longo de seu processo. Atualizam-se na interação com o meio, “preenchendo-se”
e atuando sobre a personalidade.

Dentre os arquétipos mais importantes, Jung destaca:

– A Persona e a Sombra

A Persona é a estrutura na qual se encontram os traços de personalidade visíveis por serem


socialmente aceitos; é como uma máscara, necessária para o convívio. Pode não corresponder a
verdadeira personalidade do indivíduo. Já a Sombra é seu oposto, depósito dos traços de
personalidade que não são aceitos socialmente. Mais ainda, contém traços de desejos e atividades
ligadas às formas mais primitivas de vida, completamente amorais. Contudo, é a fonte da criatividade,
da espontaneidade e das emoções mais profundas. Não há um antagonismo necessário entre Persona
e Sombra (como entre Id e Superego).

– Anima e Animus

A mente possuiria também ideais introjetados do que seja o masculino e o feminino.

Assim, um indivíduo masculino possuiria características femininas inconscientes (o anima); o indivíduo


feminino, características masculinas inconscientes (o animus).
– Self

Mais importante arquétipo, é o equilíbrio de todos os aspectos do inconsciente, proporcionando


estabilidade e unidade ao indivíduo. Tenta sempre promover a auto-atualização, isto é, o
desenvolvimento integral e harmônico de toda a personalidade.

Diante dessa breve explicação, fica evidente o quanto os estudos de Jung afastaram-se dos de Freud.
Sua conceituação sobre a psique dá margem a uma práxis analítica completamente diversa da
freudiana, sendo a preferida por estudiosos da mente mais ligados às artes e ao misticismo, por
considerarem esta teoria como a que melhor contempla esses aspectos do ser humano.

Passemos agora a mais um dissidente da escola freudiana, Wilhelm Reich.

Reich

Wilhelm Reich participou por um curto período de tempo dos círculos psicanalíticos. Suas teorias
também pressupõem as de Freud, porém estendem-se para muito além das idéias do primeiro
teórico da Psicanálise, partindo para a Biologia, Sociologia, Fisiologia e até mesmo Meteorologia,
Cosmologia etc. Será apresentada aqui uma conceituação muito breve de suas idéias, concentrando-
nos nos temas em debate.

Energia Psíquica e Libido

Reich principia seus estudos em Psicanálise problematizando o conceito de libido. Em “A energia das
pulsões”, artigo publicado em 1921, ele define a pulsão como sendo a expressão motora do prazer
experimentado. Assim, o que se encontra na psique não é a própria energia mas apenas uma
representação.

Esses estudos o levaram a afastar-se em pouco tempo das concepções de Freud. Enquanto este
caminhava para uma concepção estruturalista da mente, Reich nunca abandonaria a posição de
considerar a energia psíquica como elemento central para a compreensão da mente.

A energia psíquica percorre todo o corpo, segundo Reich. A psique e o corpo possuem a mesma
energia, responsável por todos os processos vitais. Com esta concepção, o autor abriu as portas para
a terapia corporal e para a medicina psicossomática.

Dentro dessa concepção, a libido seria a parcela dessa energia diretamente ligada à excitação sexual,
porém não de forma exclusiva. Em “A função do Orgasmo”, Reich defende que a saúde do ser
humano, física e psíquica, depende diretamente do pleno desenvolvimento da “potência orgástica”,
isto é, da plena capacidade do indivíduo descarregar a potência libidinal sem as travas de qualquer
repressão.

Inconsciente, estrutura e dinâmica da psique

É importante salientar que Reich admite a primeira tópica freudiana da psique, dividindo esta em
Consciente, Pré-consciente e Inconsciente. Porém, estava mais preocupado com a dinâmica da psique,
a economia da energia psíquica, e não com conceitos estruturais.

Seus estudos sobre a transferência o levaram à obra “Análise do Caráter”. Segundo ele, o caráter é
uma configuração da psique, formada a partir das vivências do indivíduo, que visa evitar o
desagradável e manter o equilíbrio psíquico, consumindo energia recalcada ou que escapa à
repressão. Essa configuração reflete-se na denominada “couraça muscular”: tensionamento da
musculatura conforme o material reprimido no Inconsciente, levando a determinados modelos de
comportamento e constituição corporal.

Na última fase de seu trabalho, cujo cume é a obra “The discovery of the Orgone” (2 vols.), Reich
amplia sua concepção de energia psíquica ao realizar a polêmica descoberta da Orgone. Esta seria
uma forma de energia presente em todo o Cosmos, responsável pela vida. Ela é auto-organizadora e
auto-suficiente, compondo todos os processos químicos e biológicos do Universo, possibilitando que
estes se organizem, constituindo o Cosmos como o conhecemos.

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