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RESUMO
Cantar e Saber
*
Psicanalista, Doutora em Psicologia Em 1992 a Pós-Graduação em Psicologia
Clínica, autora de Psicanálise e educa- Clínica da PUC-SP discutiu o tema da investiga-
ção: Laços refeitos e A arte de formar. O ção e produção de conhecimento em psicanálise
feminino, o infantil e o epistemológico,
Pesquisadora Colaboradora do Mestra-
publicando o debate nos dois primeiros volumes
do e Doutorado em Educação da Univer- de Psicanálise e Universidade. Dentre outras
sidade Federal de Mato Grosso do Sul, questões, discute-se ali o lugar que a prática
Consultora de “A arte de formar: Encon- clínica teria na produção de conhecimentos psica-
tros virtuais com a Autora” (http://
nalíticos e se ela seria ou não determinante na
www.ead.ufms.br/consultoria/
index.html) e membro das Linhas de teorização psicanalítica. Em outros termos, seria
Pesquisa Educação e Trabalho da UFMS possível produzir conhecimento analítico fora da
e do NUPPE/USP da USP. referência clínica?
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Tomo aqui o divã como um símbolo da terapêutica psicanalítica no consultório privado, sem entrar na
polêmica sobre seu caráter imprescindível, que nos desviaria do tema deste trabalho.
todos os que buscam atribuir “uma priori- ditava o mesmo positivismo, porque é
dade à terapêutica, subordinando suas também poder de captar e utilizar esta
verdades aos imprevistos dos ‘resulta- infiltração.
dos’ técnicos e às variâncias da psicopa- A teorização psicanalítica se cons-
tologia” (Laplanche, 2003, p. 358). titui não só com a razão e a experiência,
Inúmeras respostas têm sido da- mas também com o imaginário de quem a
das a essas questões e não é minha elabora. Desde o seu Freud: a trama dos
intenção retomá-las aqui. Gostaria de conceitos (1982) Mezan vem explorando o
aproveitar a ocasião em que comemora- argumento anunciado na sua Introdução:
mos os cento e cinqüenta anos de Freud “A psicanálise obriga a epistemologia a
para voltar a uma particularidade já bas- repensar a objetividade dos conhecimen-
tante sedimentada na produção psicana- tos”. Em Freud, pensador da cultura
lítica contemporânea, não sem ter sido escreve: “Da fantasia à teoria o caminho é
antes notada e experimentada por Freud complexo e cheio de desvios; mas ambas
com uma certa inquietação já nos seus têm uma secreta familiaridade, uma cúm-
Estudos sobre a histeria (1895/1980). plice da outra, na gênese do pensamento.
Desculpando-se, de certa maneira, por se Freud chamava a metapsicologia de ‘feiti-
distanciar da linguagem científica, Freud ceira’, e por vezes recorria a ela sob a forma
ali observava o quanto seus escritos se do ‘quase diria fantasiar metapsicologica-
aproximavam do estilo literário, poético, mente’” (Mezan, 1985, pp. 259-260).
atribuindo tal proximidade à natureza do A esse tema este psicanalista dedi-
seu objeto. De lá para cá muitos analistas cará Figuras da teoria psicanalítica
têm confirmado e explorado essa intimi- (1995), examinando a presença do pro-
dade com as imagens, metáforas e fanta- cesso primário no pensamento teórico do
sias exigidas por essa terra incógnita analista — uma presença vista como
conquistada por ele com a invenção do enriquecimento e não pobreza. “A hipóte-
seu método de investigação. Não são se que proponho é que, mesmo sob a
poucos a afirmar que a experiência psica- dimensão mais abstrata dos conceitos
nalítica — sua prática e sua teorização — teóricos, sujeitos às regras do pensamen-
constitui-se por uma dança de conceitos e to racional que a psicanálise designa com
imagens. Dança sabática da feiticeira o nome de ‘processo secundário’, conti-
metapsicologia que mais vale reconhecer nua a pulsar o lado plástico, sensorial,
do que lutar para expurgar. cênico, que ancora as produções do se-
Como escreveu Mezan (1998, p. cundário no terreno movediço do proces-
297) a Razão tem menos poder do que so primário” (1995, pp. 9-10).
acreditava o positivismo, porque ele é Interrogado por Ferenczi “como
limitado e infiltrado pelo irracional; mas fazia para ter idéias tão geniais” Freud
também ela tem mais poder do que acre- respondeu: “‘O senhor também deve ter
Édipo é “o mais perverso dos per- morte que aconteceu “no movimento in-
versos” que conduziu sua investigação duzido pela situação analítica”. E acres-
até o fim. Édipo, que se mostrou o mais centa que, se os psicanalistas envolvidos
corajoso diante da Esfinge e, por isso nesse “caso de supervisão” ficaram pa-
mereceu partilhar o leito de sua mãe. ralisados quando esta mulher mergulhou
Édipo destemido, parte em busca do es- na melancolia, é porque todos os três
clarecimento do seu destino terrível e não ficaram paralisados no que tange à eluci-
se detém, mesmo quando começa a en- dação das próprias transferências — trans-
trever o mais horrível nas respostas que ferências do psicanalista sobre seu paci-
vai colhendo em seu percurso, nem quan- ente. Elucidação dessa transferência (do
do Jocasta suplica que interrompa sua psicanalista sobre seu paciente) que é o
pesquisa. Corajoso e valente, Édipo não único fundamento possível da condução
cede jamais. Édipo “será cego e banido de do tratamento.
sua terra natal por haver conhecido sua Em La parole et l’inceste (1980)
origem” (1997, p. 10). Monique Schneider escreve que essa
Édipo em Colona é mais que uma confissão de Stein é impudica e contrasta
tragédia, continua Stein; é o poema da com a assepsia inerente à teorização. O
morte e da glória de Édipo que se apre- domínio teórico é o domínio de Édipo,
senta em Colona como o benfeitor e não aquele das entidades gerais, abstratas: o
teve dificuldade em convencer o povo de dia, a noite, a infância, o homem. Conrad
sua inocência. “Ele foi vítima de seus Stein não quis recorrer à maquiagem
crimes, ele não os cometeu: ‘Eu estava daquele suicídio, atribuindo-o à ignorân-
inconsciente quando matei, massacrei’”. cia de um aprendiz. Ao contrário, ele
Para Stein nessas “Notas sobre a Morte expõe a falha e confere a este incidente
de Édipo”, “... o verdadeiro crime de uma virtude iniciática. Essa representa-
Édipo, e que faz sua grandeza, é o de não ção do assassinato de uma figura femini-
haver desejado permanecer inconscien- na, diz ela, adquire um alcance fundador.
te” (Stein, 1997, p. 15). Édipo é a vítima Essa operação matricida está ligada à
inocente de uma Jocasta abjeta e seduto- constituição do saber.
ra, mas cuja imagem deve permanecer A partir daí, toda a história edipiana
irreconhecida em nós. Irreconhecimento tal como interpretada por Freud exige ser
que é um ativo “não querer saber” de reinterrogada. Para Conrad Stein em As
algo, e não uma simples ignorância ou Erínias de uma mãe (1988b), a leitura
falta de conhecimento. freudiana do Édipo como parricida denega
Stein dedica o Prefácio para A o ódio nas relações entre uma mãe e seu
morte de Édipo (1997) ao suicídio da Sra. filho, de modo a encobrir a destruição do
G., sua paciente quando ele estava em feminino que se pode ler na tragédia.
formação. Refere-se ao fato como uma Denunciando isso que considera uma ide-
194). “Santo Édipo” que realizou um de- um grama de feminilidade, esboço dra-
sejo que é de todos nós: o matricídio mático de um aspecto isolado do ser
impossível. E “Santo Édipo” porque nós humano, (...)” (1988b, p. 24). A “identifi-
acreditamos que ele só teria bons senti- cação heróica de super-homem” de Freud,
mentos pela mãe (amor e desejo). Mas é isto é, “de homem isento de qualquer
ódio que Stein descobre e é dele que vai feminilidade”, estava destinada a ocultar
falar. a sua identificação feminina inconsciente.
Desnudando a insistência com a Édipo é cego, incapaz de prever
qual Freud denega a possibilidade de que seu próprio destino parricida e incestuo-
o menor movimento agressivo venha so. E Freud, teórico tanto do destino
macular as relações entre um menino e parricida e incestuoso quanto da bissexu-
sua mãe, Stein apontava o recalcamento alidade dos humanos, tinha que “perma-
do matricídio. No uso que os psicanalistas necer cego à própria feminilidade, à sua
fazem da tragédia, Édipo é cultuado como feminilidade monstruosa encarnada pela
santo e celebrado como herói, enquanto figura da Esfinge. Esta é sem dúvida a
Jocasta é hostilizada e a figura materna chave de suas limitações bem conheci-
feita objeto de desconfiança. O herói não das: (...)” (1988b, p. 26).
fez a Esfinge se lançar no despenhadei- Freud quis ser um decifrador de
ro? E não provocou a morte de Jocasta enigmas; mas na fantasia de Stein ele é
com sua insistência em prosseguir na apresentado como um criador de enigmas
investigação de suas origens? “Santo e é também como um criador de enigmas
Édipo”, que realizou um crime que a que os pacientes vêem seu analista. O
humanidade não cessa de repetir com a psicanalista não exerce apenas um poder
misoginia, definidora da cultura. É a ela, esclarecedor, mas também um poder se-
“sedutora perversa”, que levam as man- dutor, demoníaco. O psicanalista, como a
chas de sangue que o matricida deixa pelo cabeça de Janos que reinava sobre a
caminho. mesa de Freud, dirá Stein, tem dois rostos,
Stein denuncia a identificação de uma face de luz e uma face de sombra.
Freud à Esfinge, monstro bissexuado que “Tentar ressaltar apenas nosso poder
é tido como feminino e que se precipitou esclarecedor não será talvez, sempre e
do alto de seu rochedo quando Édipo ainda, irreconhecer aos nossos próprios
adivinhou seus segredos. Como a Esfin- olhos e ocultar aos olhares de outrem —
ge, Freud sentia-se “ameaçado de ser a fim de nos servir dele de modo mais
penetrado em seus enigmas”, em sua seguro — nosso poder de sedução?”
identificação feminina inconsciente. “O (1988b, p. 52).
rei Édipo é um personagem bastante Poder de sedução que era também
monolítico: ele se apresenta como uma o da Esfinge e que foi denegado pela
máscara onde não se poderia encontrar posteridade, conforme escreveu Moni-
que Schneider (1980). A Esfinge fasci- exige uma resposta. É muito diferente a
nante e erótica que canta e seduz, a situação daquele a quem se dirige um
Esfinge “ávida de sangue e de amor” foi canto ou um enigma: pode-se resolver um
sepultada pela Esfinge questionadora, uma enigma, mas não se pode resolver um
ogra perguntadora que examina. A Esfin- canto. Pode-se ceder a seu feitiço ou
ge intelectual neutralizou o fascínio do tomar distância dele, ou recorrer ao pro-
monstro-fêmea que deixou de ser uma cedimento mágico que consiste, como
tentação, perdeu seu poder de sedução e Ulisses, em ouvir o canto numa posição
seu caráter erótico para se tornar um imobilizada.
flagelo caracterizado pela ameaça de É também nesta posição de uma
devoração pelos enigmas que coloca. Esfinge examinadora e intelectual que o
Foi então que surgiu Édipo e a pesquisador, o teórico e o professor pre-
“cruel cantora” (a Esfinge cantava os ferem ser vistos — por eles próprios e
seus enigmas) e, segundo a tradição anti- pelos outros, e Bachelard o diz com todas
ga, propôs a Édipo dois enigmas. O pri- as letras:
meiro deles e menos conhecido diz: “São
duas irmãs, a primeira gera a segunda, e É preciso também inquietar a razão e
esta por sua vez, gera a primeira”. Édipo desfazer os hábitos do conhecimento ob-
responde corretamente: “O dia e a noite”. jetivo. Deve ser, aliás, a prática pedagógi-
O segundo, mais conhecido, fala de um ca constante. Não deixa de ter uma ponta
animal que, possuindo voz, de manhã anda de sadismo, que mostra com clareza a
com quatro pés, ao meio-dia com dois e no interferência do desejo de poder no educa-
entardecer com três. Mais uma vez acer- dor científico. Essa brincadeira da razão é
tando, Édipo responde “o homem”. recíproca. Na vida cotidiana também gos-
Édipo resolve os enigmas triunfan- tamos de amolar o próximo. O caso de
quem faz charadas é revelador. Quase sem-
do sobre seu encanto, sobre o feitiço do
pre o enigma à queima-roupa é a desforra
canto sedutor como o das sereias que sai
do fraco sobre o forte, do aluno sobre o
da boca da “cruel cantora”. Da boca professor. Propor um enigma ao pai, não é,
deste “monstro-fêmea ávido de sangue e na inocência ambígua da atividade espiri-
de amor”, fantasia do reino materno ori- tual, satisfazer o complexo de Édipo? Re-
ginário, brota o enigma, simultaneamente ciprocamente, a atitude do professor de
canção e teoria. matemática, que se mostra sério e terrível
Monique Schneider diz que a trans- como uma esfinge, não é difícil de psicana-
formação da Esfinge erótica em uma lisar (Bachelar, 1996, p. 304).
Esfinge puramente intelectual foi acom-
panhada também da transformação da- A teorização psicanalítica subver-
quilo que sai da sua boca: seu canto foi te o domínio oficial da teorização com sua
substituído por um enunciado teórico que concepção higiênica e busca ancorar-se
SUMMARY
RESUMEN