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O CANTO DA ESFINGE:

O FEMININO NAS ORIGENS DO SABER

Marcia Simões Corrêa Neder Bacha*

RESUMO

Este trabalho explora as origens femininas da produção de conhecimento em


psicanálise tomando como fio condutor o encontro entre Édipo e a Esfinge. Partindo da
nova elaboração da figura materna proposta por Conrad Stein como “sedutora perversa”
e da teoria da sedução generalizada que a situa nas origens do nosso psiquismo, a
autora argumenta que a dessexualização da mãe e da maternidade provoca importantes
equívocos na concepção psicanalítica do feminino.

Palavras-chave: Feminino. Epistemologia. Educação. Fantasias e conceitos. Mater-


nidade e feminino.

Música e matemática — de onde vêm as duas palavras? Do mesmo lugar de onde


vêm todas as palavras que dão a pensar. Da boca dos gregos — de onde mais, se
não de lá?... Não apenas da boca de gregos: a primeira correlação entre cantar e
saber veio da boca das sereias, no 12º Canto da Odisséia.
Simone de Mello

Cantar e Saber

*
Psicanalista, Doutora em Psicologia Em 1992 a Pós-Graduação em Psicologia
Clínica, autora de Psicanálise e educa- Clínica da PUC-SP discutiu o tema da investiga-
ção: Laços refeitos e A arte de formar. O ção e produção de conhecimento em psicanálise
feminino, o infantil e o epistemológico,
Pesquisadora Colaboradora do Mestra-
publicando o debate nos dois primeiros volumes
do e Doutorado em Educação da Univer- de Psicanálise e Universidade. Dentre outras
sidade Federal de Mato Grosso do Sul, questões, discute-se ali o lugar que a prática
Consultora de “A arte de formar: Encon- clínica teria na produção de conhecimentos psica-
tros virtuais com a Autora” (http://
nalíticos e se ela seria ou não determinante na
www.ead.ufms.br/consultoria/
index.html) e membro das Linhas de teorização psicanalítica. Em outros termos, seria
Pesquisa Educação e Trabalho da UFMS possível produzir conhecimento analítico fora da
e do NUPPE/USP da USP. referência clínica?

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Mais de dez anos depois, relendo Indo à “Contracorrente” (2003, p.


esses cadernos, é possível precisar ainda 358) Laplanche sugere que o que define
mais a questão, buscando especificar a o caráter singular da descoberta freudia-
prática clínica em jogo. Que experiência na, o que define primordialmente a psica-
seria esta, a psicanalítica? Seria ela a do nálise, é o método de investigação, o
divã e só a do divã1? Se fosse assim, onde instrumento criado por Freud, “um proce-
situar o largo campo da psicanálise dimento de investigação absolutamente
extramuros desbravado com audácia por novo, revelando um campo do ser (‘pro-
Freud e que está longe de ser a mera cessos anímicos’, processos aos quais,
aplicação de uma teoria que lhe seria es- antes, praticamente nada poderia dar
trangeira? Isso sem falar nas diversas ex- acesso)”. A terapêutica e a teoria nada
periências psicanalíticas institucionais, para mais são que conseqüências dessa explo-
além do consultório privado, cuja expansão ração, da conquista dessa terra incógni-
o século XXI não cessa de aprofundar. ta que é o inconsciente. Laplanche diz
Por outro lado, se afirmássemos que não é nenhum “fato excepcional que
que a experiência clínica é o único funda- um instrumento novo possa conduzir, não
mento da teorização psicanalítica não te- a novas explicações, mas a outras reali-
ríamos ainda que esclarecer se estamos dades inteiramente despercebidas. Te-
nos referindo ao objeto de uma pesquisa lescópio, microscópio etc. Contudo, com
ou ao sujeito investigador? A prática do relação ao ser humano, é um tormento
divã seria o único objeto possível de uma imenso a descoberta, nele próprio, do
pesquisa em psicanálise ou a condição radicalmente outro” (Laplanche, 2003, p.
indispensável da formação do sujeito 358, nota de rodapé 2).
analista/pesquisador? Finalmente, e se o É nesse sentido que este psicana-
que caracterizasse o campo analítico não lista entende a definição da psicanálise
fosse propriamente a prática clínica, mas formulada por Freud em 1923. Reivindi-
um certo modo de se relacionar com o cando o caráter singular de sua desco-
inconsciente? berta esse “conquistador” escreveu que
Em Teoria da sedução generali- “Psicanálise é o nome: 1) de um procedi-
zada e outros ensaios (1988) Laplanche mento para a investigação de processos
diz que prefere falar em experiência ao anímicos dificilmente acessíveis de outra
invés de clínica porque a clínica é só um maneira; 2)... de um método de tratamen-
fragmento artificialmente separado da ex- to; 3)... de visões teóricas” (Freud, citado
periência psicanalítica, que inclui também por Laplanche, 2003, p. 358). Laplanche
a experiência teórica. vê nessas palavras uma advertência a

1
Tomo aqui o divã como um símbolo da terapêutica psicanalítica no consultório privado, sem entrar na
polêmica sobre seu caráter imprescindível, que nos desviaria do tema deste trabalho.

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O canto da Esfinge: o feminino nas origens do saber

todos os que buscam atribuir “uma priori- ditava o mesmo positivismo, porque é
dade à terapêutica, subordinando suas também poder de captar e utilizar esta
verdades aos imprevistos dos ‘resulta- infiltração.
dos’ técnicos e às variâncias da psicopa- A teorização psicanalítica se cons-
tologia” (Laplanche, 2003, p. 358). titui não só com a razão e a experiência,
Inúmeras respostas têm sido da- mas também com o imaginário de quem a
das a essas questões e não é minha elabora. Desde o seu Freud: a trama dos
intenção retomá-las aqui. Gostaria de conceitos (1982) Mezan vem explorando o
aproveitar a ocasião em que comemora- argumento anunciado na sua Introdução:
mos os cento e cinqüenta anos de Freud “A psicanálise obriga a epistemologia a
para voltar a uma particularidade já bas- repensar a objetividade dos conhecimen-
tante sedimentada na produção psicana- tos”. Em Freud, pensador da cultura
lítica contemporânea, não sem ter sido escreve: “Da fantasia à teoria o caminho é
antes notada e experimentada por Freud complexo e cheio de desvios; mas ambas
com uma certa inquietação já nos seus têm uma secreta familiaridade, uma cúm-
Estudos sobre a histeria (1895/1980). plice da outra, na gênese do pensamento.
Desculpando-se, de certa maneira, por se Freud chamava a metapsicologia de ‘feiti-
distanciar da linguagem científica, Freud ceira’, e por vezes recorria a ela sob a forma
ali observava o quanto seus escritos se do ‘quase diria fantasiar metapsicologica-
aproximavam do estilo literário, poético, mente’” (Mezan, 1985, pp. 259-260).
atribuindo tal proximidade à natureza do A esse tema este psicanalista dedi-
seu objeto. De lá para cá muitos analistas cará Figuras da teoria psicanalítica
têm confirmado e explorado essa intimi- (1995), examinando a presença do pro-
dade com as imagens, metáforas e fanta- cesso primário no pensamento teórico do
sias exigidas por essa terra incógnita analista — uma presença vista como
conquistada por ele com a invenção do enriquecimento e não pobreza. “A hipóte-
seu método de investigação. Não são se que proponho é que, mesmo sob a
poucos a afirmar que a experiência psica- dimensão mais abstrata dos conceitos
nalítica — sua prática e sua teorização — teóricos, sujeitos às regras do pensamen-
constitui-se por uma dança de conceitos e to racional que a psicanálise designa com
imagens. Dança sabática da feiticeira o nome de ‘processo secundário’, conti-
metapsicologia que mais vale reconhecer nua a pulsar o lado plástico, sensorial,
do que lutar para expurgar. cênico, que ancora as produções do se-
Como escreveu Mezan (1998, p. cundário no terreno movediço do proces-
297) a Razão tem menos poder do que so primário” (1995, pp. 9-10).
acreditava o positivismo, porque ele é Interrogado por Ferenczi “como
limitado e infiltrado pelo irracional; mas fazia para ter idéias tão geniais” Freud
também ela tem mais poder do que acre- respondeu: “‘O senhor também deve ter

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observado em si mesmo o mecanismo Conrad Stein chamou a atenção


da produção: a sucessão da fantasia para esses problemas e sua exploração
audazmente desvairada e da crítica im- sistemática levou-o a uma nova elabora-
piedosamente realista’. Fantasia para ção da figura materna e do complexo de
inventar conceitos e hipóteses, crítica Édipo, explicitando nossa relação com o
para discernir quais delas encontram feminino nas origens da teorização psica-
correspondência nos fenômenos e quais nalítica.
devem ser descartadas porque, em úl-
tima instância, contradizem a realida- Édipo matricida, herói do saber?
de” (2002 a, p. 482).
Laplanche define o homem como “O psicanalista terá mais trabalho
autoteorizante e conclui que, por isso, do que pensa se quiser estender suas
“toda verdadeira teorização é uma expe- pesquisas para o lado da vida intelectual”
riência que, necessariamente, engaja o e dirigir sua “atenção para o conhecimen-
pesquisador” (1992, p. 13). Os conheci- to objetivo” (Bachelard, 1996, p. 225).
mentos psicanalíticos se produzem Com essas palavras enunciadas em 1937
engajando a subjetividade inconsciente no seu A formação do espírito científi-
do pesquisador e Renato Mezan destacou co: Contribuição para uma psicanáli-
a implicação pessoal de Freud, e do in- se do conhecimento objetivo, Bache-
consciente de Freud, na elaboração da lard apontava um novo campo a ser ex-
psicanálise como um fator constituinte plorado ao psicanalista. O conhecimento
dessa disciplina desde o início. Os estudos científico, dizia ele, finca suas raízes num
de Freud trazem a marca do inconsciente solo imaginário que constitui um obstácu-
de quem os escreve, diz ele em Freud, lo epistemológico contra o qual está em
pensador da cultura, e até certo ponto o luta. A ruptura epistemológica buscará
tematizam explicitamente, fundando um expulsar as imagens e metáforas das
modo de pensar e de teorizar que é único ciências, que nela permanecerão sob a
(1985, pp. 593-594; 606-607). forma de erros retificados.
Pois bem, é neste contexto da teo- Bachelard prescreve “um trabalho
rização psicanalítica que gostaria de situ- de psicanálise da imaginação” para as
ar a identificação freudiana com Édipo, ciências, que devem lutar contra as ima-
“com o Édipo que resolve os enigmas da gens e metáforas pois elas “contêm o
Esfinge, e ao fazê-lo a obriga a se atirar do sinal do inconsciente; são sonhos cuja
rochedo — e com um conquistador intré- causa fortuita é um objeto” (1937/1996,
pido e audaz, armado com o gládio da pp. 48; 239). Por isso, “toda cultura cien-
Razão”. Essa identificação permeia toda tífica deve começar, como será longa-
sua obra, suscitando enormes problemas mente explicado, por uma catarse intelec-
(Mezan, 1985, pp. 606-607). tual e afetiva” (1937/1996, p. 24). “Antes

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O canto da Esfinge: o feminino nas origens do saber

de qualquer empenho de constituição de O desejo de saber e de resolver proble-


um domínio da racionalidade é necessário mas foi funesto para Édipo “pois, ao
uma psicanálise” (1977, p. 205). desvendar o segredo de sua origem, ele
A psicanálise a que Bachelard se provocou o suicídio de Jocasta e sua
refere é assimilada à catarse e, mais espe- própria perda” (1985, p. 641).
cificamente, a uma concepção purgativa e Conrad Stein abre suas “Notas
higiênica da terapêutica catártica, tal como sobre a Morte de Édipo” (1977) com as
entendida por Breuer e Freud na “Comuni- palavras pronunciadas pelo Corifeu ao
cação preliminar”. Mas, e nós o veremos final da tragédia Édipo-Rei: “‘Atenção,
adiante com Monique Schneider, essa é habitantes de Tebas, minha pátria! Eis ali
apenas uma das maneiras — a mais limita- Édipo, o especialista em enigmas famo-
da — de conceber a catarse. sos, que se tornara o primeiro dos huma-
A “ruptura epistemológica” pro- nos’” (1997, p. 1).
posta por essa psicanálise do conheci- Freud-Édipo ganhou de presente
mento objetivo de Bachelard não pode de aniversário de seus primeiros discípu-
ser identificada ao “corte epistemológi- los uma medalha com a mesma inscrição:
co” de Althusser — este, uma sutura “Este especialista em enigmas famosos
radical que não incorpora nada daquilo se tornou o primeiro dos humanos”. Stein
que expele. No entanto, ambos, como chama a atenção para a agitação de
Édipo, estão em luta com uma Esfinge Freud ao ler as palavras de Sófocles
que seria puro logos, teoria pura. dirigidas agora a ele por seus alunos: ficou
Eis-nos, pois, palmilhando aquele pálido e agitado, “com voz embargada”.
terreno movediço apontado por Bache- Nesse texto de Stein Freud, como Édipo,
lard às explorações do psicanalista, numa teve a coragem de ver claro em si mesmo,
época em que a psicanálise suscitava de reconhecer Édipo em si, apesar do
mais críticas e desprezo do que o desejo medo que tal semelhança provoca.
de expandir seu campo para paragens Édipo diante da Esfinge, Édipo de-
aparentemente tão distantes como a epis- safiado pela Esfinge, Édipo triunfando
temologia. sobre a Esfinge, Édipo perscrutando a
Somos todos Édipo confrontados Esfinge em seus segredos e levando-a
com a Esfinge/enigma. Tanto pelo fato de por isso ao desespero: esse é, no texto de
o complexo (de Édipo) fazer parte da Stein, um afrontamento tão fundamental
nossa constituição psíquica quanto, ainda, para a tragédia quanto o de Édipo consigo
pela dimensão edipiana inconsciente que mesmo e com suas origens. É apenas
impregna nosso trabalho intelectual e que com palavras que Édipo fecha a boca da
é, nas palavras de Renato Mezan, a de Esfinge voraz, levando-a a precipitar-se
“penetrar na obra para desvendar seus garganta adentro enquanto ele próprio se
segredos e engendrar com ela” uma obra. regozija de sua inteligência.

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Édipo é “o mais perverso dos per- morte que aconteceu “no movimento in-
versos” que conduziu sua investigação duzido pela situação analítica”. E acres-
até o fim. Édipo, que se mostrou o mais centa que, se os psicanalistas envolvidos
corajoso diante da Esfinge e, por isso nesse “caso de supervisão” ficaram pa-
mereceu partilhar o leito de sua mãe. ralisados quando esta mulher mergulhou
Édipo destemido, parte em busca do es- na melancolia, é porque todos os três
clarecimento do seu destino terrível e não ficaram paralisados no que tange à eluci-
se detém, mesmo quando começa a en- dação das próprias transferências — trans-
trever o mais horrível nas respostas que ferências do psicanalista sobre seu paci-
vai colhendo em seu percurso, nem quan- ente. Elucidação dessa transferência (do
do Jocasta suplica que interrompa sua psicanalista sobre seu paciente) que é o
pesquisa. Corajoso e valente, Édipo não único fundamento possível da condução
cede jamais. Édipo “será cego e banido de do tratamento.
sua terra natal por haver conhecido sua Em La parole et l’inceste (1980)
origem” (1997, p. 10). Monique Schneider escreve que essa
Édipo em Colona é mais que uma confissão de Stein é impudica e contrasta
tragédia, continua Stein; é o poema da com a assepsia inerente à teorização. O
morte e da glória de Édipo que se apre- domínio teórico é o domínio de Édipo,
senta em Colona como o benfeitor e não aquele das entidades gerais, abstratas: o
teve dificuldade em convencer o povo de dia, a noite, a infância, o homem. Conrad
sua inocência. “Ele foi vítima de seus Stein não quis recorrer à maquiagem
crimes, ele não os cometeu: ‘Eu estava daquele suicídio, atribuindo-o à ignorân-
inconsciente quando matei, massacrei’”. cia de um aprendiz. Ao contrário, ele
Para Stein nessas “Notas sobre a Morte expõe a falha e confere a este incidente
de Édipo”, “... o verdadeiro crime de uma virtude iniciática. Essa representa-
Édipo, e que faz sua grandeza, é o de não ção do assassinato de uma figura femini-
haver desejado permanecer inconscien- na, diz ela, adquire um alcance fundador.
te” (Stein, 1997, p. 15). Édipo é a vítima Essa operação matricida está ligada à
inocente de uma Jocasta abjeta e seduto- constituição do saber.
ra, mas cuja imagem deve permanecer A partir daí, toda a história edipiana
irreconhecida em nós. Irreconhecimento tal como interpretada por Freud exige ser
que é um ativo “não querer saber” de reinterrogada. Para Conrad Stein em As
algo, e não uma simples ignorância ou Erínias de uma mãe (1988b), a leitura
falta de conhecimento. freudiana do Édipo como parricida denega
Stein dedica o Prefácio para A o ódio nas relações entre uma mãe e seu
morte de Édipo (1997) ao suicídio da Sra. filho, de modo a encobrir a destruição do
G., sua paciente quando ele estava em feminino que se pode ler na tragédia.
formação. Refere-se ao fato como uma Denunciando isso que considera uma ide-

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O canto da Esfinge: o feminino nas origens do saber

alização ingênua de Édipo, Stein observa materno voraz, ao invés de derrotar e


que Freud, em conformidade com uma destruir esse monstro originário que ame-
sólida tradição, mas em oposição com a aça fazê-lo dormir ou paralisá-lo como a
sua curiosidade habitual e escandalosa, Medusa.
jamais se colocou a menor questão sobre
um tema que é muito problemático no Édipo e a Esfinge:
texto de Édipo-Rei: ele não observou que feminilidade irreconhecida
a causa da morte de Jocasta é o desvela-
mento do segredo de sua maternidade, e Conrad Stein estuda as origens
nesse desvelamento Édipo tem uma res- conflitivas da teorização em As Erínias
ponsabilidade ativa. Freud jamais menci- de uma mãe: Ensaio sobre o ódio
onou a morte de Jocasta. (1988b) partindo de uma “fantasia inter-
Édipo, a vítima inocente de uma pretativa” que identifica Freud à Esfinge
Jocasta sedutora, dá lugar ao matricida e que será seu fio condutor. No manifesto
cuja investigação conduzirá a mãe ao Freud se identifica com Édipo, mas no
suicídio, como Stein descobriu no a pos- latente ele é também a Esfinge e Jocasta.
teriori do suicídio da Sra. G. O prefácio “Fantasia impertinente” que ridi-
de A morte de Édipo é um “texto autobi- culariza Freud, escreve Stein, por causa
ográfico e de autocrítica, que introduz de sua identificação com Édipo. E ridicu-
também uma nova elaboração da figura lariza o próprio Stein por causa de seu
materna”, escreveu Renato Mezan no culto a Freud identificado com Édipo. Sua
Prefácio de O psicanalista e seu ofício idealização ingênua de Édipo levou-o a
(1988a, p. 11). um “verdadeiro culto”, diz Stein em “Édi-
A leitura freudiana do mito edipia- po, o sobre-humano ou O repúdio do
no insiste sobre o assassinato do pai com feminino”: culto a Édipo e culto a Édipo-
um barulho destinado a encobrir o matri- Freud, idealizado, cultuado não só por ele,
cídio que permanece na sombra do recal- mas por todos aqueles que se mantêm
que, diz Monique Schneider. Jocasta é fiéis ao mestre. Um dia viu-se ridiculari-
apresentada como a Tentadora, a Sedu- zando seu culto e seu herói e essa revira-
tora, a encarnação da sedução do prazer volta sobre si mesmo foi apresentada em
e inimiga do pesquisador. A leitura freu- seu seminário sob o título “Santo Édipo”,
diana de Jocasta acentua a carga heróica no qual reconhece “a figura do Édipo
de Édipo e do teórico ou pesquisador. matricida” (1988b, pp. 15-16). O mesmo
Diferentemente de Conrad Stein, para Édipo que sempre lhe aparecera como
quem o pesquisador seria um herói valo- uma vítima, “Édipo seduzido sem o saber,
roso e um conquistador vitorioso se tives- Édipo enganado por sua mãe. Assim uma
se a coragem de se embrenhar pelo inte- certa figura de Jocasta chegou a delinear-
rior das cavidades sombrias do monstro se com contornos precisos” (1988, p.

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194). “Santo Édipo” que realizou um de- um grama de feminilidade, esboço dra-
sejo que é de todos nós: o matricídio mático de um aspecto isolado do ser
impossível. E “Santo Édipo” porque nós humano, (...)” (1988b, p. 24). A “identifi-
acreditamos que ele só teria bons senti- cação heróica de super-homem” de Freud,
mentos pela mãe (amor e desejo). Mas é isto é, “de homem isento de qualquer
ódio que Stein descobre e é dele que vai feminilidade”, estava destinada a ocultar
falar. a sua identificação feminina inconsciente.
Desnudando a insistência com a Édipo é cego, incapaz de prever
qual Freud denega a possibilidade de que seu próprio destino parricida e incestuo-
o menor movimento agressivo venha so. E Freud, teórico tanto do destino
macular as relações entre um menino e parricida e incestuoso quanto da bissexu-
sua mãe, Stein apontava o recalcamento alidade dos humanos, tinha que “perma-
do matricídio. No uso que os psicanalistas necer cego à própria feminilidade, à sua
fazem da tragédia, Édipo é cultuado como feminilidade monstruosa encarnada pela
santo e celebrado como herói, enquanto figura da Esfinge. Esta é sem dúvida a
Jocasta é hostilizada e a figura materna chave de suas limitações bem conheci-
feita objeto de desconfiança. O herói não das: (...)” (1988b, p. 26).
fez a Esfinge se lançar no despenhadei- Freud quis ser um decifrador de
ro? E não provocou a morte de Jocasta enigmas; mas na fantasia de Stein ele é
com sua insistência em prosseguir na apresentado como um criador de enigmas
investigação de suas origens? “Santo e é também como um criador de enigmas
Édipo”, que realizou um crime que a que os pacientes vêem seu analista. O
humanidade não cessa de repetir com a psicanalista não exerce apenas um poder
misoginia, definidora da cultura. É a ela, esclarecedor, mas também um poder se-
“sedutora perversa”, que levam as man- dutor, demoníaco. O psicanalista, como a
chas de sangue que o matricida deixa pelo cabeça de Janos que reinava sobre a
caminho. mesa de Freud, dirá Stein, tem dois rostos,
Stein denuncia a identificação de uma face de luz e uma face de sombra.
Freud à Esfinge, monstro bissexuado que “Tentar ressaltar apenas nosso poder
é tido como feminino e que se precipitou esclarecedor não será talvez, sempre e
do alto de seu rochedo quando Édipo ainda, irreconhecer aos nossos próprios
adivinhou seus segredos. Como a Esfin- olhos e ocultar aos olhares de outrem —
ge, Freud sentia-se “ameaçado de ser a fim de nos servir dele de modo mais
penetrado em seus enigmas”, em sua seguro — nosso poder de sedução?”
identificação feminina inconsciente. “O (1988b, p. 52).
rei Édipo é um personagem bastante Poder de sedução que era também
monolítico: ele se apresenta como uma o da Esfinge e que foi denegado pela
máscara onde não se poderia encontrar posteridade, conforme escreveu Moni-

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O canto da Esfinge: o feminino nas origens do saber

que Schneider (1980). A Esfinge fasci- exige uma resposta. É muito diferente a
nante e erótica que canta e seduz, a situação daquele a quem se dirige um
Esfinge “ávida de sangue e de amor” foi canto ou um enigma: pode-se resolver um
sepultada pela Esfinge questionadora, uma enigma, mas não se pode resolver um
ogra perguntadora que examina. A Esfin- canto. Pode-se ceder a seu feitiço ou
ge intelectual neutralizou o fascínio do tomar distância dele, ou recorrer ao pro-
monstro-fêmea que deixou de ser uma cedimento mágico que consiste, como
tentação, perdeu seu poder de sedução e Ulisses, em ouvir o canto numa posição
seu caráter erótico para se tornar um imobilizada.
flagelo caracterizado pela ameaça de É também nesta posição de uma
devoração pelos enigmas que coloca. Esfinge examinadora e intelectual que o
Foi então que surgiu Édipo e a pesquisador, o teórico e o professor pre-
“cruel cantora” (a Esfinge cantava os ferem ser vistos — por eles próprios e
seus enigmas) e, segundo a tradição anti- pelos outros, e Bachelard o diz com todas
ga, propôs a Édipo dois enigmas. O pri- as letras:
meiro deles e menos conhecido diz: “São
duas irmãs, a primeira gera a segunda, e É preciso também inquietar a razão e
esta por sua vez, gera a primeira”. Édipo desfazer os hábitos do conhecimento ob-
responde corretamente: “O dia e a noite”. jetivo. Deve ser, aliás, a prática pedagógi-
O segundo, mais conhecido, fala de um ca constante. Não deixa de ter uma ponta
animal que, possuindo voz, de manhã anda de sadismo, que mostra com clareza a
com quatro pés, ao meio-dia com dois e no interferência do desejo de poder no educa-
entardecer com três. Mais uma vez acer- dor científico. Essa brincadeira da razão é
tando, Édipo responde “o homem”. recíproca. Na vida cotidiana também gos-
Édipo resolve os enigmas triunfan- tamos de amolar o próximo. O caso de
quem faz charadas é revelador. Quase sem-
do sobre seu encanto, sobre o feitiço do
pre o enigma à queima-roupa é a desforra
canto sedutor como o das sereias que sai
do fraco sobre o forte, do aluno sobre o
da boca da “cruel cantora”. Da boca professor. Propor um enigma ao pai, não é,
deste “monstro-fêmea ávido de sangue e na inocência ambígua da atividade espiri-
de amor”, fantasia do reino materno ori- tual, satisfazer o complexo de Édipo? Re-
ginário, brota o enigma, simultaneamente ciprocamente, a atitude do professor de
canção e teoria. matemática, que se mostra sério e terrível
Monique Schneider diz que a trans- como uma esfinge, não é difícil de psicana-
formação da Esfinge erótica em uma lisar (Bachelar, 1996, p. 304).
Esfinge puramente intelectual foi acom-
panhada também da transformação da- A teorização psicanalítica subver-
quilo que sai da sua boca: seu canto foi te o domínio oficial da teorização com sua
substituído por um enunciado teórico que concepção higiênica e busca ancorar-se

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no reino do singular e do onírico. Os cos. Cantando seus enigmas, a Esfinge


conhecimentos psicanalíticos são criados examinadora que supostamente convida-
a partir desse enraizamento singular e ria Édipo a realizar uma operação pura-
passional e não se pretende apagar seus mente intelectual encobre uma Esfinge
vestígios. A teorização caminha no pas sedutora, suplicante, “ávida de sangue e
de deux do Enigma que é, ele próprio de amor”. A ameaça que emana da “cru-
canção (música e letra). Ao invés de um el cantora” com suas cantigas de ninar é
afrontamento mortífero entre Édipo e a a ameaça de devoração e opressão e, por
Esfinge professoral/intelectual, a meta- isso, a Esfinge era chamada de “a Angus-
psicologia feiticeira surge de um tiante”. A Esfinge canta sua canção, que
acasalamento entre Édipo e “a cantora” é canto e teoria.
que era chamada de “a Angustiante”. A comparação proposta por Me-
O teórico da cultura Friedrich zan (1995) entre a teoria do Édipo Origi-
Kittler volta a Odisseu e às sereias para nário de Le Guen e a teoria da sedução
investigar as relações entre o canto e o originária de Laplanche que privilegia a
saber (o som e o número) em Musik und oralidade na constituição do psiquismo
Mathematik I. Hellas 1: Aphrodite conclui que ambas tratam da constituição
(2006). Ele recorre aos originais gregos e do psiquismo a partir do outro. Apesar
resgata dos textos o teor imagético e disso, haveria entre as duas uma incom-
conceitual diluído nos milênios da acultu- patibilidade radical, já que o originário na
ração sofrida pelos antigos (Mello, 2006). primeira é sedução, “sempre um jogo de
dois”, e na segunda é o Édipo cuja natu-
Jocasta, mulher é mãe ou: a mãe reza é triangular.
sexualizada Ora, dizer que a sedução originá-
ria implanta na criança significantes
“No princípio eram as sereias” enigmáticos não é o mesmo que dizer
que ela deixa algo do Enigma como resto?
O canto envolvente e sedutor da E, portanto, que ela também já começa a
Esfinge retorna sempre em qualquer for- instituir a criança como um Édipo con-
mação posto que, no inconsciente, a for- frontado com a Esfinge/sedutora perver-
mação confronta uma criatura seduzida e sa? (Bacha, 2003)
a perversa sedutora. Esse fantasma origi- Se minha hipótese procede, a exi-
nário figurado pela Esfinge ou Circe, gência de separar os conceitos de Édipo
Jocasta ou Epicasta (a Jocasta em Home- (triangular) e Narciso (sedução dual) po-
ro), vem assombrar discípulo e mestre en- deria ser uma exigência fundada na fan-
volvidos na formação (Bacha, 1998; 2002a). tasia inconsciente do feminino canibal, da
A sedução originária implanta mãe ogra devoradora. Se na origem se
na criança os significantes enigmáti- posta o enigma entre o bebê e a mãe,

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O canto da Esfinge: o feminino nas origens do saber

então o triângulo (edípico) já estaria colo- A catarse digestiva da criatura que


cado desde esse momento da sedução persegue o professor e o educador (os
originária. Se esta fosse a situação origi- pais e seus substitutos no curso de uma
nária: um confronto do bebê-Édipo com vida) propicia a incorporação desse es-
significantes enigmáticos criados por um tranho corpo feminino figurado como ogra
outro-Esfinge (monstro bissexual das ver- devoradora e sedutora perversa. Longe
sões antigas), talvez o originário fosse um de esvaziá-lo de seus afetos ou expulsar
Édipo narcisista... o corpo estranho que o persegue no ofício
Buscando ouvir o canto da Esfinge de formar alguém, tenho buscado propor-
nas teorias e práticas que os adultos criam cionar a metabolização ou admissão em si
para a infância, tenho reservado em meu (não em sua consciência) do mestre-e-
trabalho de formação dos professores na cuca que habita seu inconsciente. Esse
universidade (em todos os níveis) um trabalho que o psicanalista oferece na
lugar especial à “catarse intelectual e formação do professor — e do adulto
afetiva” prescrita por Bachelard como educador, formador de um outro ser em
ponto de partida da formação do espíri- qualquer nível de idade e de escolaridade
to científico. Mas não uma catarse expul- (dentro ou fora da escola) —, talvez o
siva como a talking cure de Anna O. que ajude a suportar a angústia de se reconhe-
visaria eliminar o “corpo estranho”, como cer nessa figura do mestre-e-cuca assi-
Freud e Breuer queriam na “Comunicação milando sua face sombria, demoníaca,
preliminar”, onde a palavra iluminaria o angustiante e sedutora. Levando ao pé da
reino onírico reduzindo a pó seus fantas- letra essa catarse digestiva do outro, esse
mas. Catarse digestiva para metabolizar trabalho de bruxaria busca acender, fazer
as fantasias e digerir o afeto estrangulado, arder e inflamar suas paixões, inclusive a
libertando os fantasmas dos seus grilhões paixão de formar e de se formar e a
para que encenem seu drama até o fim. paixão de aprender, ao invés de fazê-las
Segundo Monique Schneider, as dormir sob teorias científicas e objetivantes
hipóteses da “Comunicação preliminar” e rituais escolares purificadores (Bacha,
são inúteis para compreender o que acon- 2005).
tece com Miss Lucy ou Elizabeth, e seu “Assim, a educação tem de esco-
estudo marca uma nítida reviravolta, obri- lher seu caminho entre o Sila da não-
gando Freud a abandonar as metáforas interferência e o Caríbdis da frustração”
anais e substituí-las pelas metáforas orais. (Freud, 1932/1980, p. 182). Estas foram
No lugar da expulsão do “corpo estranho” as últimas palavras pronunciadas por
surge a sua assimilação, a digestão do Freud sobre a educação, em 1932, confi-
alimento indigesto ou não-metabolizado nando, inteira, essa atividade ao interior
graças ao triunfo sobre a resistência que de um campo delimitado por esses dois
obstruía sua livre circulação. monstros femininos enfrentados por Ulis-

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Marcia Simões Corrêa Neder Bacha

ses em sua Odisséia. Apesar do seu No outro extremo do estreito habi-


arranjo manifesto essas palavras de Freud ta Caríbdis. Navegando entre as duas
sobre a educação evocam, no latente, a horrendas criaturas, os marinheiros ten-
angústia do herói homérico em sua passa- tavam fugir de Caríbdis e acabavam cap-
gem pelo estreito habitado por essas pa- turados e engolidos pela ninfa transfor-
vorosas criaturas. mada em monstro pelos feitiços do ciúme.
Cila e Caríbdis são dois monstros Tentando fugir de Cila, acabavam traga-
da mitologia grega descritos por Homero dos pelo redemoinho de Caríbdis. Como
na Odisséia de Ulisses. Três vezes por podemos ver, a expressão usada por
dia Caríbdis sorvia o mar e tudo o que Freud, “entre Cila e Caríbdis”, remete a
estivesse perto, e três vezes por dia torna- uma escolha entre duas opções igualmen-
va a cuspir tudo. Cila fora uma bela ninfa te perigosas. E foi aí, nesse estreito, que
por cujo amor Glauco suplicara desespe- Freud situou a educação, nas últimas
rado. Impassível às súplicas do deus ma- palavras que pronunciou sobre o tema.
rinho de aspecto horrendo, Cila foge para Nosso inconsciente situa a educa-
se esconder, o que obriga Glauco a ir à ilha ção nessas águas turvas guardadas por
de Ea pedir ajuda aos poderes de Circe, a monstros fêmeas assustadoramente vo-
feiticeira. Circe promete ajudá-lo a con- razes e angustiantes. Se alguém conse-
quistar a amada ninfa mas acaba por guir sobreviver a uma, terá que se debater
apaixonar-se pelo feio deus com sua fas- com a outra. Vitorioso, ainda terá que se
cinante riqueza de sentimentos. Já que haver com as encantadoras Sereias, habi-
não o consegue conquistar como mulher, tantes dos mesmos mares. E com Circe,
recorre a seu poder de feiticeira e trans- feiticeira encantadora e famosa por sua
forma Cila numa criatura horrenda e re- especialidade de metamorfosear em ani-
pulsiva envenenando a água onde a ninfa mais todos os estrangeiros que se apre-
costumava banhar-se. Cila mergulha na sentam em sua morada.
água enfeitiçada e horrorizada vê mons- Ora, se desde nossas origens psí-
tros horrendos surgindo à sua volta, com quicas na sedução originária já esta-
um alarido ensurdecedor. A bela ninfa mos, como Édipo, confrontados com o
tenta fugir-lhes mas eles estão sempre a seu canto fascinante da Esfinge ou com a
lado até que Cila descobre que esses mons- sedutora perversa, de onde viriam a insis-
tros são parte de si mesma, nascem de seu tência e a virulência em denegar a dimen-
corpo. Procurado pela desesperada Cila, são erótica da mãe, da maternidade — e,
Glauco também lamenta sua beleza perdida pois, da formação de outro ser, da educa-
mas o amor por ela se foi. Cila retira-se para ção —, situando-a como uma função
o estreito de Messina aterrorizando os mor- reprodutiva meramente biológica?
tais que antes a cortejavam, deslumbrados Segundo Freud, a passagem bem-
com sua beleza extraordinária. sucedida da menina pelo complexo de

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O canto da Esfinge: o feminino nas origens do saber

Édipo resultaria na maternidade. Ele foi Não é a essa sexualidade insuportável


criticado por essa afirmação, já que asso- que nos remete a teoria da sedução
ciando a feminilidade com a maternidade generalizada de Laplanche ao afirmar
teria destinado a mulher à maternidade, que a oferta do seio precede a sua
condenando-a ao exercício puramente demanda? Não é essa mesma sexuali-
reprodutivo da sua sexualidade. Seria te- dade insuportável da mãe que Conrad
dioso alinhar aqui os inúmeros protestos Stein nos devolve sob o signo da “sedu-
levantados até hoje por psicanalistas e tora perversa”?
feministas ao longo das últimas décadas A separação entre a procriação e
contra essa tese freudiana. o erotismo é obra do recalque; ele oculta
Mas não é surpreendente que esse a face erótica da maternidade e da educa-
senso comum muito confortavelmente ção (escolarizada ou não) e nos protege
estabelecido entre os psicanalistas, se- do fantasma apavorante da mãe ogra,
gundo o qual uma coisa é a feminilidade devoradora de homens como a Esfinge,
e outra, muito diferente, é a maternida- cujo nome era “a Angustiante”. O fantas-
de, venha atacar a descoberta freudiana ma da sedutora perversa subjaz à ideali-
em um ponto capital? Desde quando a zação da mãe protetora e carinhosa que
sexualidade poderia ser algo puramente evocamos em nossos sonhos de um para-
biológico e estranho ao prazer (e à angús- íso perdido da infância.
tia)? Desde quando a psicanálise com- A associação do feminino com a
portaria algo como uma reprodução hu- criação — ou, com a procriação, confor-
mana “meramente” biológica? Por que a me preferem alguns feministas, que vi-
maternidade em questão nunca é enten- ram nessa associação intemporal o ger-
dida como a da mãe, mas apenas a da me da “dominação sexual” — faz o femi-
menina em crescimento? nino surgir como algo invejável, para
Aquela crítica, bem como todas as além do invejoso e da castração.
discussões sobre o feminino que ela gera É essa dimensão erótica da for-
ou suporta, partem, todas, de um pressu- mação de outro ser, dimensão recalca-
posto inabalável e consensualmente acei- da da Esfinge professoral que soterrou
to. Ou melhor, irreconhecido: a materni- a Esfinge cantora, que venho tentando
dade é assexuada. resgatar em minha abordagem psica-
A dessexualização da materni- nalítica da educação e das relações
dade implícita nessa crítica não exigiria, humanas cujo cortejo fantasmático no
ela própria, uma explicação psicanalítica? divã acompanho da poltrona. Dimen-
Ora, e se a dessexualização da materni- são apaixonante e angustiante da cria-
dade postulada como uma função biológi- ção que o nosso moderno cardápio de
ca de reprodução resultasse do recalque receitas fast-food tenta ocultar em sua
da (insuportável) sexualidade da mãe? formação.

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Marcia Simões Corrêa Neder Bacha

SUMMARY

The song of the Sphinx: The feminine in the origins of knowledge

This paper explores the feminine origins of the production of knowledge in


psychoanalysis proposing as a conductive thread the encounter between Oedipus and
the Sphinx. Based on the new concept of the maternal figure elaborated by Conrad Stein,
as a “perverse temptress” and on the theory of generalized seduction situated in the
origins of our psyche, the author discusses that dessexualization of the mother and of
maternity causes important misunderstandings in the psychoanalytic concept of
femininity.

Key words: Feminine. Epistemology. Education. Fantasies and concepts — maternity


and feminine.

RESUMEN

El canto de la Esfinge: Lo femenino en los orígenes del saber

En este trabajo se investigan los orígenes femeninos de la producción de


conocimiento en psicoanálisis tomando como hilo conductor el encuentro entre Edipo
y la Esfinge. Partiendo de la nueva elaboración de la figura materna propuesta por
Conrad Steiner como “seductora perversa” y de la teoría de la seducción generalizada
que la sitúa en los orígenes de nuestro psiquismo, la autora argumenta que la
desexualización de la madre y de la maternidad provocan importantes equívocos en la
concepción psicoanalítica de lo femenino.

Palabras-llave: Femenino. Epistemología. Educación. Fantasías y conceptos —


maternidad y femenino.

Marcia Simões Corrêa Neder Bacha


R. Cel. Camisão, 314 — Amambaí
79005-340, Campo Grande, MS
Fones: (67) 3382-7744 / 3321-3273 / 9902-4975
E-mail: mbacha@uol.com.br

Recebido em: 18/05/06


Aceito em: 15/06/06

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