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Abstract:
Freudian vision of culture and Philosophy.
DEPARTAMENTO Philosophical and epistemological
DE F ILOSOFIA presuppositions of psychoanalysis. Implications
of the civilizing process on the psychic health
of individuals and of society. The confrontation
ENTRE
psychoanalytical approach. The
psychoanalytical approach via Critical Theory.
FILOSOFIA E
Psychoanalysis examined by Habermas, seen
as “hermeneutics of the deep-seated” whose
PSICANÁLISE:
objective is to retrieve the entire text of the
patient’s life through the reincorporation of
repressed contents to the flow of
CONTRIBUIÇÕES consciousness. Habermas considers that total
and consistent development of the theoretical
A
Resumo: pesar das resistências por parte de al
A visão freudiana da cultura e da Filosofia. Os guns filósofos e cientistas, a existência
pressupostos filosóficos e epistemológicos da e validade da psicanálise é um fato que
psicanálise. As implicações do processo não se pode negar. Expurgado o modismo,
civilizatório na saúde psíquica dos indivíduos e que se caracteriza pelo chavão “Freud expli-
da sociedade. O confronto dos paradigmas an- ca”, a psicanálise constitui uma dimensão da
tropológicos, filosóficos, sociológicos e psico- reflexão sobre o homem a qual a cultura
lógicos na abordagem psicanalista. A aborda- hodierna não pode ignorar nem dela prescindir.
gem da psicanálise pela Teoria Crítica. A Psi- As teorias psicanalíticas promovem uma revo-
canálise analisada por Habermas, vista como lução nos conceitos antropológicos, assim como
“hermenêutica do profundo”, sendo seu objetivo
a metapsicologia significa uma revolução den-
restaurar o texto integral da vida do paciente
tro da revolução, forçando, em nome do mes-
mediante a reincorporação ao fluxo da consci-
mo positivismo, uma revisão metodológica e
ência de conteúdos recalcados. Habermas en-
tende que desenvolvimento pleno e consisten- epistemológica das ciências do homem. Mes-
te da base teórica da psicanálise exigiria uma mo que a radiografia da “alma” feita pela psi-
teoria geral da competência comunicativa. Os canálise esbarre nas críticas de filósofos que
desdobramentos éticos da auto-reflexão. não aceitem o inconsciente, inevitavelmente se
Palavras-chave: Freud, Habermas, Filosofia, deve reconhecer os limites da consciência.
Psicanálise, auto-reflexão Mesmo que a psicanálise seja vista como “uma
teoria que pretende e pode explicar tudo expli-
“Freud era um pensador sobre o qual pesava o car e não explica nada” (Popper, apud Japiassu
absurdo da existência humana.” (Kupfer 1989:12). 1989:30), que não resista aos critérios da
testabilidade, para quem suas hipóteses se-
_______________________ jam tidas como Ad hoc, não se pode negar o
* Mestre em Filosofia, professor do Departamento de Fi-
losofia da UNICAP.
seu projeto hermenêutico, como salienta de tal teoria. Na elaboração psicanalítica, à me-
Habermas. Este observa ainda que a preocu- dida que estabelece o objeto de estudo e o trata
pação cientificista (“ O auto-equívoco mediante um saber, que se pretende científico,
cientificista da metapsicologia. A lógica da “não consegue evitar que ela seja confrontada
interpretação genérico-universal ”) conduz os com a questão dos princípios de seu funciona-
caminhos da metapsicologia. Para ele “Freud mento. Tanto é assim que sentiu a necessidade
por certo pressentia que a realização do pro- de elaborar todo um corpo teórico — por ele
grama de uma psicologia ‘Científico naturalista’ chamado de “metapsicologia” — susceptível de
ou, no mínimo, sua exata execução em termos supervisionar a prática e de retirar do ‘material’
behavioristas teria que ter sacrificado a inten- uma conceitualização: ele se defronta com a
ção à qual a psicanálise deve, exclusivamente, questão da ‘especulação’ ao relacioná-la com o
sua existência: a intenção do esclarecimento — ‘dado’“ (Japiassu, 1989:37).
de acordo com o qual o id deve vir a ser Eu.
Verdade é que Freud nunca abandonou tal pro- Ao constituir a psicanálise, Freud se defronta com
grama, ele não entendeu a metapsicologia como a questão fundamental, que é do método. No-
aquilo que ela tão-somente no sistema vamente se vê envolto em questões metafísicas,
referencial pode ser: como uma interpretação por exemplo, como representar, no conhecimen-
genérico-universal de processos que afetam a to, a distinção “Natureza/Espírito”. Para tanto,
formação da espécie.” (Habermas, 1987 a:269). adotou dois princípios epistemológicos que su-
põem a cientificidade: a) um princípio monista (a
Uma das acusações que pesam sobre a psicanálise como uma ciência da natureza inspi-
filosofia é que essa seja essencialmente ra-se nos modelos das ciências físico-químicas);
principialista, fundamentada em princípios pos- b) um princípio agnosticista (a fundação de uma
tulados aprioristicamente ou não. Pelo visto psicologia sem alma, centrada na “coisa em si”).
“(...) Freud considera a filosofia um obstáculo Quanto às relações entre a psicanálise e a expe-
ao conhecimento científico. Porque ela é por- rimentação, os limites da experimentação psica-
tadora de uma pretensão globalizante, visando nalítica, “à objeção de que a psicanálise não to-
elaborar uma Weltanschauung desembocando lera nenhuma demonstração experimental Freud
numa presunção de saber absoluto. Por isso, contrapõe o argumento da astronomia: essa ci-
nunca se descuidou em estabelecer rígidas ência também não experimenta mas está limitada
fronteiras entre o saber analítico (científico) e àquilo que observa. Mas a diferença específica
o saber filosófico. Em uma das declarações, entre a observação dos astros e o diálogo analíti-
ele é bastante categórico: ‘Os problemas filo- co está no fato de, no primeiro caso, a seleção
sóficos e suas formulações me são tão estra- quase experimental das condições iniciais per-
nhos que não sei o que dizer deles’; por isso, mitir uma observação controlada dos eventos pos-
‘evitei cuidadosamente aproximam-se da filoso- síveis de serem prognosticados, enquanto no se-
fia propriamente dita” (Japiassu, 1989:37). gundo caso, o plano do controle dos sucessos,
próprios à ação instrumental, estar totalmente
Embora Freud evite o contato explícito com ausente e ser representado através do plano da
a filosofia, dela não pode abster-se totalmente. intersubjetividade, inerente a compreensão mú-
Sem contar que Freud cita várias vezes alguns tua acerca do sentido de símbolos ininteligíveis.
filósofos, o conceito básico da psicanálise está (...) A metapsicologia desdobra a lógica da inter-
estreitamente vinculada à tradição filosófica do pretação na situação analítica do diálogo. Nes-
instinto, tratados principalmente por se sentido ela se localiza ao mesmo nível da
Schopenhauer e Nietzsche. O primeiro problema metodologia das ciências da natureza e do espí-
que se impõe é a questão da teoria do conheci- rito” (Habermas, 1978:269). É nesse contexto
mento: de uma forma ou de outra tem que tratá-la que Freud elabora os princípios que norteiam a
ou subentendê-la, não pode deixar de fazer uso psicanálise. Dentre os princípios, podemos sali-
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ais, para a hermenêutica profunda, de Freud, fato se baseou Freud ao constituí-la e comprová-
as mutilações têm sentido como tal.” (Rouanet, la: o diálogo analítico entre o médico e pacien-
1986:319). A psicanálise seria uma forma es- te. O modelo ego, id, e superego é, antes de
pecial de interpretação. O próprio Freud pro- tudo, uma interpretação da experiência do mé-
jetou conscientemente a interpretação dos so- dico das resistências que oferece o paciente.
nhos segundo o modelo hermenêutico da inves- As noções de consciente e pré-consciente se
tigação filosófica, comparando-a, às vezes, com referem ao que é “público” ou comunicável.
traduções de um autor estrangeiro. Porém os Pelo contrário, o inconsciente se refere ao que
esforços interpretativos do analista requerem foi silenciado ou apartado da comunicação pú-
uma hermenêutica ampliada, capaz de dar ra- blica. Freud insistia que a teoria da psicanalíti-
zões de uma dimensão especial: do conteúdo ca se baseava na percepção da resistência ofe-
latente das expressões simbólicas, um conteú- recida pelo paciente quando o médico trata de
do que é inacessível ao próprio autor. Freud fazê-lo consciente seu inconsciente. Essa re-
afirma a existência de um território estrangeiro sistência é constituída como manifestação de
dentro do próprio sujeito, para captar o duplo uma instância defensiva e do material contra o
caráter deste novo âmbito. Esse caráter se qual essa instância se defende, o material re-
refere à alienação de algo que é do próprio su- primido. Essa constelação de consciência,
jeito. Em contraste com as hermenêuticas nor- material reprimido (que, sem dúvida, faz força
mais, a interpretação psicanalítica versa, pois, para elevar-se à consciência), é algo com que
sobre “textos” que expressam e, por outro lado, o médico topa insistentemente em sua comuni-
ocultam os auto-enganos do seu “autor”. A cação com o paciente. É a essa constelação
hermenêutica profunda que Freud desenvolve que Freud trata de recorrer em seu modelo es-
para abordar tais “textos” se baseia em pers- trutural.
pectivas teóricas e em regras técnicas que vão
mais além das competências normais de um fa- O “Eu” é a instância encarregada de en-
lante de uma linguagem natural. frentar a realidade e de censurar as pulsões.
O excesso de exigências instintivas, libidinosas
Segundo Habermas, “as hipóteses teoréticas, que e agressivas é disfuncional para o indivíduo
fundamentam tacitamente a análise da linguagem como para a espécie, pois choca com a reali-
de hermenêutica profunda, deixam-se desenvol- dade. A capacidade que possui o eu de ter pre-
ver sob três pontos de vista. O psicanalista tem sente a realidade faz com que esses choques
um conceito prévio (Vorbegriff) da estrutura da sejam possíveis. Os impulsos instintivos que
comunicação não-distorcida em linguagem corren- se prevêem que possam dar lugar a situações
te (1); ele reenvia a distorção sistemática da co- perigosas, se se permitem que motivem as
municação à confusão de dois degraus da orga- ações, convertem-se, então, em fontes de an-
nização simbólica pré-lingüística e lingüística, se- gústia. O eu reage defensivamente e, quando
parados em termos de história do desenvolvimen- não é possível nem a intervenção na realidade,
to (2); ele explica o surgimento da deformação nem a fuga da mesma, o eu se dirige contra as
com auxílio de uma teoria de procedimentos de mesmas instâncias instintivas. Nesse sentido,
socialização desviantes, que chega até à cone- o processo intrapsíquico de defesa é análogo
xão de modelos de interação da primeira infância ao da fuga ante o perigo: o eu “foge”, “ocultan-
com a formação de estruturas de personalidade do-se de si mesmo”. O texto em que o eu se
(3).” (Habermas, 1987b:47). entende a si mesmo em sua situação está, por-
tanto, dependendo de representações e de exi-
Habermas baseia a legitimidade da gências instintivas indesejáveis, em outras pa-
reinterpretação que ele faz da metapsicologia lavras, está censurado. Fica negada a identi-
freudiana em termos de teoria da comunicação, dade do eu. Com essa parte do psiquismo que
em um exame do tipo de evidência em que de foi censurada, essa parte fica assim reificada e
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SymposiuM de Filosofia
dem ser refutadas de modo demonstrável, pois ___________. A história do movimento psi-
a conduta normal que prevêem, uma vez com- canalítico. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
pletado o tratamento, depende inteiramente do
__________.O mal-estar na civilização. São
êxito do processo de reflexão provocado no
Paulo : Abril Cultural, 1978.
paciente pela análise.
__________.A questão de uma Weltanschauung.
Freud, em seu realismo honesto, força o Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Obras Completas).
homem a tomar um posição diante da vida, no FROMM, E. Psicanálise da sociedade con-
tocante a sua consciência e sexualidade, pois, temporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
mais que uma adaptação do sujeito à realida-
de, favorecendo ideologias, a manutenção do GOLDENBERG, R. Ensaio sobre a moral de
status quo , a atitude psicanalítica requer do Freud . Salvador: Agalma, 1994.
sujeito uma postura ética. Como afirma HABERMAS, J. Conhecimento e interesse.
Habermas, “pelo fato da análise exigir do paci- Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987.
ente a experiência da auto-reflexão, ela postu-
__________. Dialética e hermenêutica. Por-
la uma ‘responsabilidade ética para com o con-
to Alegre: Livros Técnicos e Científicos, 1987.
teúdo’ da doença. Pois, a intelecção efetiva, à
qual a análise deve conduzir, consiste, depois JAPIASSU, H. Psicanálise: ciência ou
de tudo, apenas no seguinte: que o Eu do paci- contraciência? Rio de Janeiro: Imago, 1989.
ente se reconheça em seu outro, representado KUPFER, M. C. Freud e a educação: o mes-
pela doença, como em seu Eu-próprio aliena- tre do impossível. São Paulo: Scipione, 1989.
do, e se identifique com ele. Como na dialética
da moralidade de Hegel, o criminoso reconhe- MARCUSE, H. Eros e civilização: uma inter-
ce em sua vítima sua própria essência arruina- pretação filosófica do pensamento de Freud. 8.
da, uma auto-reflexão, pela qual as partes ed., Rio de Janeiro: Guanabara, 1980.
abstratamente em conflito reconhecem a totali- PRADO JR., B. Auto-reflexão, ou interpre-
dade moral esfacelada como sua base comum tação sem sujeito? Habermas intérprete de
e, por intermédio de tal processo auto-reflexi- Freud . In: Discurso 14 (Rev. do Dep. de Filo-
vo, retornam a tal fundamento. O conhecimen- sofia da USP). São Paulo: Polis, 1983.
to analítico é, simultaneamente, intelecção éti-
REALE, G. e ANTISERI, D. História da Filoso-
co-efetiva, eis que na dinâmica da auto-refle-
fia: do Romantismo até nossos dias. São Pau-
xão a unidade da razão teórica e da razão prá-
lo: Paulinas, 1991, v. 3.
tica ainda não está supressa” (1987a:253).
REIS, A. O. A., MAGALHÃES, L.M., GONÇAL-
BIBLIOGRAFIA VES, W. L. Teorias da personalidade em
Freud, Reich e Jung. São Paulo: Ed. Peda-
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ção. (Mestrado em Filosofia Social), UFPE,
_____________.O mal-estar na modernidade.
1995.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Paulo: Abril Cultural, 1978.
ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro:
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Paulo: Abril Cultural, 1978.
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__________. O futuro de uma ilusão . São Eições 70, 1991.
Paulo: Abril Cultural, 1978.