Você está na página 1de 10

FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE

CICLO I – QUINTAS-FEIRAS 18H – 21H.

EDUARDO MARQUES ZAN

PSICANÁLISE E PSICOLOGIA: OS LASTROS DA INCONCEBÍVEL UNICIDADE

NA DIFERENÇA

2º sem / 2019
INTRODUÇÃO

Não somente durante o percurso das aulas da Formação em Psicanálise, mas

desde as entrevistas de admissão, como também no discurso de diversos

psicanalistas, faz presente a afirmação de que a Psicanálise não é Psicologia. Ao

mesmo tempo, grande parte do conteúdo formativo dos psicólogos e muito da

produção científica nos Departamentos de Psicologia são desenvolvidas por

psicanalistas. Tal divergência entre conceitos e realidades gera um discurso

anfibológico no que tange as relações entre estas áreas do saber psíquico.

Antes de mais nada, devemos ter claro que a Psicologia foi constituída

anteriormente a Psicanálise, isto porque o saber psicológico sempre esteve presente

no interesse do homem no que diz respeito ao desejo em saber mais de si, mais da

“alma”, mais do algo interno e buscando (das crenças à filosofia e culminando a um

método científico) explicar alguns conceitos tão inerentes à própria existência

humana.

Atualmente, a Psicologia desdobra-se conforme a concepção que os

psicólogos possuem do que é o seu objeto científico: A psicologia experimental, que

possuem forte atuação dos psicólogos behavioristas; a psicologia clínica, em que

muitos trabalham com o método psicanalítico; e a psicologia social, que por meio de

representações coletivas, conecta-se com a Sociologia e a História. De acordo com

Mezan (2007), o que há de comum entre esses saberes tão díspares são que todos

tratam daquilo que o homem é e/ou criou, e pelo fato dessas criações serem variadas,

eles, os psicólogos, também necessitam ser.

Segundo Laplanche & Pontalis (2001) a Psicanálise é uma disciplina fundada

por Freud e que se distingue três níveis: Um método de investigação que evidencia o
significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos,

fantasias, delírios) do um sujeito. Um método psicoterápico baseado nesta

investigação e especificado pela interpretação controlada da resistência, da

transferência e do desejo. Um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em

que são sistematizados os dados introduzidos pelo método psicanalítico de

investigação e de tratamento.

Partindo dos elementos citados, este trabalho propõe a seguinte questão: a

Psicanálise é ou não Psicologia? Reflexão essa necessária pois é uma discussão

recorrente no meio acadêmico e profissional, bem como gerador de dúvidas e

inseguranças a estudantes de Psicologia, psicólogos e psicanalistas em formação.

DESENVOLVIMENTO

Os primeiros estudos a respeito do psiquismo datam desde a Antiguidade com

Aristóteles em sua obra Περὶ ψυχῆς (Perí Psychés - Da Alma), percorrendo todo

período da história da civilização humana até inaugurar-se formalmente como Ciência

em dezembro de 1879, quando o fisiólogo Wilhelm Wundt implantou o primeiro

laboratório de Psicologia Experimental, em Leipzig na Alemanha, unindo a fisiologia

(o biológico) e a filosofia (a metafísica) com o rigor positivista, fazendo com que a

mesma se diferenciasse em uma Ciência independente e não mais como um ramo da

Filosofia.

Por Ciência, compreendemos um conjunto de conhecimentos sobre fatos ou

aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de uma linguagem

precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos por um método

programado, sistemático e controlado, para que se permita a validação e


possibilitando, com isso, determinar não somente o objeto dos diversos ramos da

Ciência, mas saber precisamente como determinado conteúdo foi construído,

possibilitando a reprodução da experiência. Destarte, o conhecimento pode ser

transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido.

Com esta definição de Ciência podemos questionar a variabilidade do objeto

sobre a qual a Psicologia tem por especificidade científica, pois um psicólogo

epistemologicamente monista, dirá: "o objeto de estudo da Psicologia é o

comportamento humano". Entretanto, um psicólogo epistemologicamente dualista

afirmará: "o objeto de estudo da Psicologia é a mente humana". Isto ocorre pois a

matéria-prima da Psicologia se desdobra em todas as expressões humanas, seus

comportamentos, afetos, cultura, atos volitivos, fazendo com que o objeto de estudo

da Psicologia possa ser sintetizado como a Subjetividade Humana. (BOCK et al,

2002). O estudo do comportamento é apenas um dos ramos teóricos da Psicologia,

sendo a Etologia o estudo psicobiológico do comportamento humano enquanto

espécie e o Behaviorismo como a vertente teórica monista do psiquismo.

Enquanto a Psicologia dava seus primeiros passos no campo científico, ainda

com uma alta influência experimental positivista, a partir de 1882 o médico

neurologista Sigmund Freud começava sua observação a respeito de quadros

psicológicos histéricos, desenvolvendo os primeiros alicerces da Psicanálise, isto

porque eram justamente os critérios positivistas da ciência médica da época que

impediam o entendimento pleno dos processos mentais envolvidos nos fenômenos

psicopatológicos bem como restringindo a terapêutica.

Em 1895, Freud escreve um artigo denominado “Projeto para uma Psicologia

Científica”, em que afirma:

Es ist die Absicht dieses Entwurfs, eine naturwissenschaftliche Psychologie


zu liefern, d. h. psychische Vorgänge darzustellen als quantitativ bestimmte
Zustände aufzeigbarer materieller Teile, und sie damit anschaulich und
widerspruchsfrei zu machen. (FREUD, 1895).

A intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é,


representar os processos psíquicos como estados quantitativamente
determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses
processos claros e livres de contradição. (FREUD, 1990 [1895]).

Todavia o positivismo da ciência psicológica da época jamais poderia conviver

com o que chamava de desvio especulativo da Psicanálise. O frequente uso de

metáforas impedia uma delimitação de seus usos e o próprio fato de que qualquer

fenômeno podia ser referido a um construto psicanalítico inferia que a Psicanálise não

tinha um conteúdo empírico próprio. A a-falseabilidade da teoria freudiana em que

qualquer resultado contraditório podia ser interpretado segundo a própria teoria e a

incomensurabilidade do modelo energético pulsional engendrado por Freud era

alguns dos tantos exemplos que colocavam as barreiras à intenção científica da

Psicanálise, distanciando-a da Psicologia.

Porém isto não fez com que Freud deixasse de apontar a Psicanálise como um

método psicológico e científico, muito pelo contrário, parece que quanto mais ataque

sofria da comunidade científica, mais Freud apontava para a complexidade do

fenômeno humano e da necessidade de aprofundar-se no abismo inconsciente da

psique que somente pela análise se atingia e, acima disso, que a titulação acadêmica

não era requisito para tanto. Em 1926, ele afirma:

Sie vermissen also in unseren bisherigen Besprechungen die


Berücksichtigung des Niedrigsten wie des Höchsten. Das kommt aber daher,
daß wir von den Inhalten des Seelenlebens überhaupt noch nicht gehandelt
haben. Lassen Sie mich aber jetzt einmal selbst die Rolle des Unterbrechers
spielen, der den Fortschritt der Unterredung aufhält. Ich habe Ihnen soviel
Psychologie erzählt, weil ich wünschte, daß Sie den Eindruck empfangen, die
analytische Arbeit sei ein Stück angewandter Psychologie, und zwar einer
Psychologie, die außerhalb der Analyse nicht bekannt ist. Der Analytiker muß
also vor allem diese Psychologie, die Tiefenpsychologie oder Psychologie des
Unbewußten, gelernt haben, wenigstens soviel als heute davon bekannt ist.
Wir werden das für unsere späteren Folgerungen brauchen. (FREUD, 1926).

Ou seja, parece-lhe que até agora faltou, em nossas discussões,


considerarmos tanto o que é mais elevado como o que é mais baixo. Mas
isso é porque ainda não abordamos os conteúdos da vida psíquica. Permita-
me agora fazer eu mesmo o papel de quem interrompe, de quem detém o
avanço da conversa. Se lhe expus tanta psicologia, foi por desejar que você
tenha a impressão de que o trabalho analítico é um exercício de psicologia
aplicada, de uma psicologia, além-do-mais, que não se conhece fora da
análise. O analista deve, antes de tudo, ter aprendido essa psicologia, a
psicologia das profundezas ou do inconsciente, pelo menos aquilo que hoje
se sabe dela. (FREUD, 2014 [1926]).

Ao final de sua construção teórica e na maturidade anciã, Freud reafirmou em

“Algumas Lições Elementares de Psicanálise”, obra escrita em 1938, mas publicada

postumamente em 1940:

Die Psychoanalyse ist ein Stück der Seelenkunde der Psychologie. Man nennt
sie auch “Tiefenpsychologie", wir werden später erfahren, warum. Wenn
jemand fragen sollte, was das eigentlich ist, das Psychische, so ist es leicht,
ihm mit dem Hinweis auf dessen Inhalte zu antworten. Unsere
Wahrnehmungen, Vorstellungen, Erinnerungen, Gefühle und Wiilensakte, all
dies gehört zum Psychischen. (FREUD, 1940).

A psicanálise constitui uma parte da ciência mental da psicologia. Também é


descrita como ‘psicologia profunda’; mais tarde, descobriremos por quê. Se
alguém perguntar o que realmente significa ‘o psíquico’, será fácil responder
pela enumeração de seus constituintes: nossas percepções, ideias,
lembranças, sentimentos e atos volitivos - todos fazem parte do que é
psíquico. (FREUD, 2018 [1940]).

Para compreender a cientificidade psicológica pretendida por Freud e exposta

nas citações acima, recorro a Mezan (2007) que vai nos dizer que quando Freud diz

que a Psicanálise é a “psicologia das profundezas” e uma parte da Psicologia é

porque, para Freud, só existe um tipo de ciência e não dividida entre as humanas e

as naturais. Determinados ramos da Ciência podem se ocupar das “atividades

espirituais dos homens”, enquanto outros tratam da matéria inanimada ou dos

organismos vivos. Portanto, a Psicanálise é a parte da Psicologia que investiga as

“profundezas” (o inconsciente, suas leis, seus efeitos sobre o comportamento dos

homens, etc.).

Com isso em mente, observamos que a entrada formal da teoria psicanalítica

na profissionalização da Psicologia se deu a partir da criação das graduações em

Psicologia (no Brasil a partir da década de 1960), com um grande arcabouço teórico
psicanalítico. Pois, diferente da Psicologia experimental e positivista do séc. XIX, a

Psicologia a partir da segunda metade do séc. XX não tinha mais as prerrogativas

comtianas. O avanço tecnológico e científico fez com que a estratificação cartesiana

racionalista desse lugar a uma nova necessidade na Ciência Geral, a da

interdisciplinaridade do saber.

O ensino da Psicanálise na graduação de Psicologia gera controversas na

opinião entre os psicanalistas. Alguns, como Grosso (1992), defendem que não se

pode transmitir a Psicanálise como qualquer outro saber e que, portanto, os

estudantes não podem chegar a ser psicanalistas valendo-se do ensino que recebem

na Universidade. Há outros, como Roudinesco (2000), que afirmam que é na

Universidade, principalmente nos departamentos de Psicologia, e não nas instituições

psicanalíticas, que se há de preservar a vanguarda psicanalítica. Me parece que

ambas facções estão corretas mesmo que divergentes.

Esta divergência é apresentada pelo próprio Freud, quando em “Deve-se

ensinar a Psicanálise nas Universidades?” de 1919, ele defende que a teoria

psicanalítica seja introduzida na universidade. Não obstante defesa, em suas

palavras:

[...] podemos dizer que uma universidade só teria a ganhar com a inclusão do
ensino da psicanálise em seu currículo. É verdade que este ensino somente
poderia ser ministrado de forma dogmática, em aulas teóricas, pois quase
não haveria oportunidade para experimentos ou demonstrações práticas.
(FREUD, 2010 [1919]).

Ou seja, mesmo Freud apresente a Psicanálise como ganho às graduações,

ele enfatiza em limitar este ensino a seu conteúdo teórico pois, no mesmo artigo, ele

vai apresentar o que deve haver de essencial na formação do Psicanalista, e que

extrapola as prerrogativas acadêmicas, vindo a ser chamado de “tripé psicanalítico”:

No tocante à psicanálise, sua inclusão no currículo acadêmico seria motivo


de satisfação para um psicanalista, mas, ao mesmo tempo, é evidente que
ele pode prescindir da universidade, sem prejuízo para sua formação. Pois o
que ele necessita teoricamente pode ser obtido na literatura especializada e
aprofundado nas reuniões científicas das sociedades psicanalíticas, assim
como na troca de ideias com os membros mais experientes. Quanto à
experiência prática, além do que aprende na análise pessoal ele a adquire ao
tratar pacientes, sob aconselhamento e supervisão de colegas já
reconhecidos. (FREUD, 2010 [1919]).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos concluir então que, enquanto teoria, me parece que os psicólogos

podem se desenvolverem a partir da metapsicologia psicanalítica, porém isso não os

faz psicanalistas pois a Psicanálise é constituída, enquanto prática clínica, por uma

formação necessária que se dá por meio de um processo singular, não passível de

ser padronizado, em que além do estudo teórico, especialmente imprescindível é sua

prática supervisionada e análise pessoal (tripé psicanalítico).

Diante do exposto, será que Freud considerava realmente a Psicanálise como

uma parte da Psicologia? É aqui que creio estar o cerne da questão, uma vez que, ao

mesmo tempo que defende a Psicanálise como a Psicologia do Inconsciente, Freud

afirma também a singularidade do processo formativo do psicanalista. Há a

necessidade de especificar claramente o que essa “Psicologia” quer dizer para não

configurar o discurso freudiano como ambíguo.

Ou seja, temos que delimitar se estamos nos referindo à Psicologia enquanto

profissão legalmente regulamentada a partir da formação acadêmica, ou à Psicologia

enquanto ciência do saber psíquico, pois coadunando todo o exposto e tendo por

lastros as citações do próprio Freud acima referenciadas, podemos concluir que

enquanto profissão regulamentada, não, formar-se como psicólogo não faz um

psicanalista, facultado somente ao psicólogo que, tendo por fundamentos teóricos a

Psicanálise, cumpra com outras necessidades da formação tripartida psicanalítica.


Mas muito mais importante que isto é que, enquanto campo científico do saber da

psique, sim, a Psicanálise é Psicologia.

Para finalizar e me utilizando de um conceito filosófico hindu, a relação entre a

Psicanálise e a Psicologia pode ser poeticamente definida como अचिन्त्यभेदाभेद

(acintya bheda-ābheda) (GUPTA, 2007), que pode ser traduzida do sânscrito como: a

inconcebível unicidade na diferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bock, A. M. B.; Furtado, O. & Teixeira, M. L. T. (2002). Psicologia - Uma Introdução

ao Estudo de Psicologia.13. ed. Reform. e ampl. São Paulo: Saraiva.

Freud, S. (1990). Projeto para uma Psicologia Científica. In: Obras psicológicas

completas de Sigmund Freud, Vol.1. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (2010). Deve-se ensinar a Psicanálise nas Universidades? in: Obras

Completas Vol. 14 [1917-1920], trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia

das Letras.

Freud, S. (2014). A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial.

in: Obras Completas Vol. 17 [1926-1929], trad. Paulo César de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras.

Freud, S. (2018). Algumas lições elementares de psicanálise. in: Obras Completas

Vol. 19 [1937-1939], trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
Grosso, M. (1992). Pensar la universidad. In Psicoanalisis y cultura (n.1). Argentina:

Biblioteca Causa Freudiana.

Gupta, R. M. (2007). Caitanya Vaisnava Vedanta da Catursutri tika de Jiva Gosvami.

Londres: Routledge.

Laplanche, J.; Pontalis, J. B (2001). Vocabulário de psicanálise. 4.ed. São Paulo:

Martins Fontes.

Mezan, R. (2007). Que tipo de ciência é, afinal, a Psicanálise? Natureza humana, 9(2),

319-359.

Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Você também pode gostar