Você está na página 1de 14

A rtigos

- E studos Teóricos ou Históricos ........


Silvério L. K.

Por um Entendimento do que se chama


Psicopatologia Fenomenológica

By an Understanding of what is called Psychopathology Phenomenological

Por una Comprensión de lo que se llama Psicopatología Fenomenológica

Silverio Lucio K arwowski

Resumo: A fenomenologia em sua interseção com a psicopatologia é examinada por distintos autores em Psicologia e Psiquia-
tria. Estudiosos de psicopatologia buscam a fenomenologia na tentativa de evitar a nosologia psiquiátrica clássica em suas re-
duções e rotulações indevidas, bem como para adotar uma teoria humanista, na esperança que essa apresente sistematicamente
etiologia, descrição, categorização, prognóstico e terapêutica das doenças mentais. Faz-se necessário o entendimento do que se
compreende e se denomina psicopatologia fenomenológica, a fim de se precisar seu alcance, limite, constituição e propósitos.
Este trabalho objetiva fazer uma introdução ao estudo do tema, considerando seu contexto de inserção e sua herança. Para tal,
fez-se um estudo exploratório mediante exame bibliográfico, reavendo as atuais perspectivas de psicopatologia, mencionando-
-se as vigentes e hegemônicas e propondo-se uma classificação. Demonstrou-se a vinculação da atual noção de psicopatologia à
ideia de doença, constatando-se a não naturalidade da concepção dessa última. Posteriormente, discutiram-se as possibilidades
de se intitular a área de estudo em tela como psicopatologia fenomenológica, considerando-se a pertinência e as consequências
de sua adoção, fazendo-se, também, uma reflexão sobre possíveis objetivos para o campo de estudo examinado. Concluiu-se que
o entendimento da psicopatologia fenomenológica é um campo em evolução, necessitando de delimitações aprofundadas, tanto
a partir da prática dos profissionais de saúde como da pertinente reflexão sobre a fenomenologia e a possibilidade de sua ade-
quação à psicopatologia.
Palavras-chave: Psicopatologia; Fenomenologia; Psicopatologia fenomenológica.

Abstract: Phenomenology at its intersection with psychopathology is studied by different authors in psychology and psychia-
try. Psychopathology Scholars have sought phenomenology in an attempt to avoid classic psychiatric nosology and its unfitting
reductionism, as well to adopt a humanist theory, hoping that it systematically presents etiology, description, categorization,
prognosis and treatment of mental illness. Therefore, it’s necessary the understanding of what is called and known as phenom-
enological psychopathology, in order to better define its scope, boundary, constitution and purposes. This paper aims to intro-
duce the study of the subject, considering its context insertion and heritage. To that end, it’s an exploratory and literature study
that rescue the current perspectives of psychopathology, especially the prevailing and hegemonic ones and proposes a classifi-
cation of them. It is also demonstrated the association between the current notion of psychopathology and the notion of disease,
excluding the naturalistic conception of the latter. Thereupon, the possibilities of naming this area of study as phenomenologi-
cal psychopathology are discussed, considering the relevance and consequences of the naming adoption, making it also a re-
flection on possible objectives for the field of study examined. It was concluded that the understanding of phenomenological
psychopathology is field in construction, relinquishing both depth contours from the practice of health professionals and rel-
evant pensiveness on the phenomenology, as well as the possibility of its adaptation to the psychopathology scope.
Keywords: Psychopathology; Phenomenology; Phenomenological psychopathology.
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos

Resumen: La fenomenología en su intersección con la psicopatología fue estudiada por distintos autores en la psicología y la
psiquiatría. Los estudiosos de psicopatología buscaron la fenomenología en un intento de evitar la nosología psiquiátrica clásica
en sus reducciones y entendimientos indebidos, así como para adoptar una teoría humanista, con la esperanza de que presen-
te sistemáticamente etiología, descripción, categorización, pronóstico y tratamiento de las enfermedades mentales. Dicho esto,
esta comprensión es necesaria para el entendimiento de lo que se dice psicopatología fenomenológica, con la intención de de-
finir su alcance, cobertura, constitución y propósitos. Este trabajo tiene como objetivo exhibir una introducción al estudio de
la materia, teniendo en cuenta su contexto de inserción y herencia. Para esto se construyó una investigación exploratoria dese
una revisión de la literatura, rescatando las perspectivas actuales de la psicopatología, señalando las corrientes predominantes
y hegemónicas y proponiendo una clasificación. El enlace acerca de la noción actual de la psicopatología y el concepto de en-
fermedad expresó que no hay una naturaleza en el entendimiento sobre la noción de enfermedad. Posteriormente se discutió la
posibilidad para nombrar a esta área do conocimiento como psicopatología fenomenológica, teniendo en cuenta la relevancia y
las consecuencias de su adopción, al lado de esto se trae la intención de la realización de una reflexión sobre posibles objetivos
para el campo de estudio analizado. Se concluyó que la comprensión de la psicopatología fenomenológica es un campo en evo-
lución, requiriendo profundidad en sus delimitaciones desde la práctica de los profesionales de la salud como la reflexión per-
tinente sobre la fenomenología y la posibilidad de adaptación a la psicopatología.
Palabras clave: Psicopatología; Fenomenología; Psicopatología fenomenológica.

Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015 62


Por um Entendimento do que se chama Psicopatologia Fenomenológica

1. A busca da fenomenologia como forma de negar a existem descrições específicas de cada um dos transtor-
precariedade. A restauração da precariedade nos mentais, de maneira que seja possível categorizá-los
em suas etiologias, prognosticá-los e oferecer terapêuticas.
Raramente não se verifica certo tipo de decepção no Se há quem assim o faça, opera opostamente a que o uso
estudioso iniciante em psicopatologia fenomenológica rigoroso do método fenomenológico observa. Oferece a
que, descontente com a nosologia fria e rotulante da fenomenologia, antes e, no entanto, um caminho para re-
Psiquiatria clássica, sequioso por apreensão e domínio pensar as estruturas fundamentais do ser homem, que no
de um conhecimento dito fenomenológico, reconhece seu exame e constituição revelem e impliquem aspectos
na fenomenologia o pronunciamento contra a redução psicopatológicos, ao mesmo tempo em que, ante a leitu-
do humano em perspectivas objetivantes, acenando ra fenomenológica das ocorrências ditas normais, sejam
para a possibilidade de um patamar mais humano, e ao evocadas condições referentes às manifestações psico-
mesmo tempo mais seguro do estudo psicopatológico. patológicas. A característica essencial da fenomenologia
Aproxima-se esse iniciante da fenomenologia, ele mes- não é apontar para nenhuma das verdades constituídas,
mo negando a nosografia, mas desconhecendo estar, na seja pela ciência, filosofia, religião ou senso comum, e
verdade, em busca de princípios e regras que, à seme- desbancá-las, relegando-as à falsidade (Karwowski, 2005),
lhança de outras perspectivas teórico-científicas, apre- mas assegurá-las em sua condição de verdade, e também
sentem sistematicamente etiologia, descrição, categori- de provisoriedade, garantindo-lhes seu status para, ime-
zação, prognóstico e terapêutica; bastando então para diatamente, as despojar da suposta condição de serem a
única verdade. Neste sentido, a fenomenologia aponta na
o iniciante que em sua prática clínica realize a corre-
psicopatologia estabelecida sua condição de verdade pro-
lação dos acontecimentos humanos prévios e relativa-
visória, ao mesmo tempo em que acena para, com suporte
mente padronizados com as descrições estruturadas e
no exame de aspectos essenciais à própria psicopatologia
explícitas na teoria da psicopatologia fenomenológica,
ou normalidade, o estabelecimento de perspectivas igual-
a fim de obter condução a procedimentos seguros que,
mente verdadeiras sobre o ser homem e seu adoecimento.
por sua vez, desencadeiem a de cura. Estaria então em
Percebe-se, então, que o estudo da psicopatologia
patamar privilegiado: sob a garantia de um suposto hu-
numa perspectiva fenomenológica, antes de oferecer uma
manismo – subjacente ou explícito – e com a segurança
posição segura para intervenções nas psicopatologias,
de metodologia eficaz e rigorosa, ao mesmo tempo em
propõe reflexões fundamentais sobre aspectos ontológi-
que permaneceria afim às suas perspectivas antropoló- cos do humano que, integrados na Antropologia Filosófica
gico-filosóficas e metodológicas. específica da fenomenologia, permitam elaborações de
Falo na decepção, pois, a fenomenologia rigorosa se instrumentos interventivos precisos e afinados com a
pronuncia, ela mesma, contra sua interposição como co- cotidianidade do ser homem. Talvez, no rigor reflexivo
nhecimento privilegiado no estudo de qualquer fenôme- levado a fundo e a termo pelo método fenomenológico,
no, o que se aplica também ao psicopatológico (Tatossian, se produzam mais dúvidas do que certezas, mais cami-
2006). Recusa-se a si mesma como o conhecimento vá- nhos possíveis do que vias oficiais, revelando, ele mes-
lido e prévio para revelação de perspectivas, sejam elas mo, sua semelhança com a insegurança e provisoriedade
psicopatológicas ou de qualquer outra natureza. Ora, da própria existência humana. Requer, assim, emergên-
utilizar-se da fenomenologia como conhecimento privi- cia e admissão, nele mesmo, no estudioso de psicopato-
legiado é operar o contrário de uma de suas mais impor- logia, daquilo que, como forma de driblar a crueza dos
tantes recomendações, qual seja, a suspensão do a priori aspectos mais reais da existência, buscava desocultar e Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
(Karwowski, 2005; Tatossian, 2006), ou antes, não prio- mitigar no outro, e que muitas vezes apenas se tornam
rizar qualquer tipo de conhecimento quando em contato claras pelo prévio reconhecimento em si das próprias
com o objeto, a fim de que possa, o próprio objeto, reve- psicopatologias.
lar-se em sua inteireza. É a própria fenomenologia que Isso posto, posso concluir que a psicopatologia feno-
se proíbe de figurar como conhecimento privilegiado, menológica revela, em última instância, as condições
pois há o humano que se revelar antes de toda e qual- precárias do próprio estudioso; não mais pela ausência
quer perspectiva filosófica ou científica, sendo ele mes- de garantias que a detenção do conhecimento psicopa-
mo quem deve reclamar perspectivas filosóficas e cien- tológico poderia oferecer contra a ocorrência das psi-
tíficas, tornando-se assim o critério de validade desses copatologias no próprio estudioso, pois essas garantias
resgates ou construções. o mero estudo da psicopatologia clássica já havia feito
Logo, verifica o iniciante que a relação entre fenome- ruir; mas pelo fato de revelar naquela normalidade se-
nologia e psicopatologia não diz respeito a uma teoria fe- gura que se supunha habitar (livre de angústias, temores
nomenológica aplicada às psicopatologias. Seu vínculo e sofrimentos) a própria angústia, o temor e o sofrimen-
com estas é de implicação e não de aplicação, no sentido to, não como estruturas supostamente psicopatológicas,
de que não se aplicam os conhecimentos e perspectivas mas como elementos ontológicos, logo, inarredáveis da
fenomenológicos às ocorrências psicopatológicas. Não existência humana.

63 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015


Silvério L. K.

Assim, tal estudo, mais do que meramente exprimir e qual fundamentação filosófica, visto ser, antes de mais
qualquer estrutura psicopatológica, impele o estudioso nada, ela mesma, a Psicologia, livre para buscar qualquer
à descoberta de formas para o convívio com essa pre- fundamentação que possa entender como válida para o
cariedade sempre presente, para, daí mesmo e com ela, aprofundamento em seu objeto, mas sim de apontamen-
criar instrumentos que ele terá de utilizar e abandonar tos em torno de uma estrutura dita científica, bem como
ao longo do caminho, sob pena de “encantar-se mais com da necessidade de proximidade rigorosa entre um pen-
rede que com o mar”1, ficando então preso àquilo que samento filosófico e a Ciência Psicológica.
pretendia libertar. O primeiro apontamento, tal como mencionado, diz
Psicologia fenomenológica: Permito-me afirmar que respeito à relação estabelecida entre o estudioso de feno-
o campo de estudo chamado “psicologia fenomenológi- menologia e a Psicologia. Da mesma maneira que a mera
ca” é ainda impreciso, e carece de elaborações rigoro- transposição de um país não possa necessariamente im-
sas. Tivemos nos últimos anos importantes elaborações plicar a afirmação sobre seu conhecimento, a mera uti-
acerca de uma psicologia husserliana (Goto, 2008), ou de lização de conceitos fenomenológicos aplicados, seja à
uma dita psicologia kierkegaardiana (Feijoo, 2011, 2013), psicologia, seja à psicoterapia ou a psicopatologia, não
além de procedimentos que aproximam a utilização dos implica necessariamente na sistematização de um cam-
princípios e do método fenomenológico à área psicológica po chamado de Psicologia fenomenológica, mesmo que
(Forghieri, 1993; Holanda, 2002; Karwowski, 2005; Giorgi, os benefícios desse uso conceitual ou ainda dessa apro-
2009, Amatuzzi, 2009, 2011, apenas para citar alguns). No ximação metodológica sejam inegáveis (Tatossian, 2006).
que concerne à utilização dos princípios heideggerianos É verdade, porém, ser possível estabelecer diferença en-
para um reexame da psicopatologia, autores como Ludwig tre um estudioso que conheça a história da fenomenolo-
Binswanger e Medard Boss fizeram importantes exames gia e outro que seja senhor da teoria da fenomenologia,
e contribuições, conforme o citado por Holanda (2011) em e ainda aquele versado em metodologia fenomenológica.
seu resgate da história da psicopatologia fenomenológica, Também há que se distinguir, no entanto, a excelência
muito embora a utilização da filosofia heideggeriana por daquele que reúna esses conhecimentos e, sobretudo,
autores contemporâneos seja controversa (Stein, 2006) e saiba fazer leituras fenomenológicas sobre seu objeto de
não sem motivos. Na maioria das vezes, tal pensamento estudo, revelando as verdadeiras relações originárias
é pouco compreendido e, com recorrência, assemelha-se homem-mundo no que tange à especificidade daquilo a
mais a um receituário (na tentativa de utilizar-se do mé- que se refere; ou seja, consiga examinar objetos simples
todo fenomenológico ou pensamento heideggeriano) ou do cotidiano (tais como copos, canetas ou mesas), objetos
a reflexões existencialistas romantizadas, do que a uma abstratos (cubos e círculos geométricos, p.ex.) fazendo-
rigorosa reflexão sobre as estruturas do ser homem e so- -lhes também leituras fenomenológicas, mas, também e
bre a possibilidade do aporte conceitual da ontologia hei- principalmente, possa olhar objetos referentes à sua área
deggeriana como fundamentação científica. de estudo (como, no caso da Psicologia, a solidão, o psi-
A exemplo do que acontece com a arte, sendo ela, e quismo, a saúde mental, a própria psicopatologia) e tam-
nela a poesia, um importante caminho de acesso à ver- bém aí realizar leituras fenomenológicas, que revelem a
dade, sua figuração, quando convocada a se imiscuir no estrutura originária homem-mundo.
descobrimento humano (que a ciência reclama) e, prin- Outro apontamento diz respeito à necessidade do
cipalmente, quando não é suficientemente levada a ter- desenvolvimento de arcabouço conceitual, afim com a
mo, ou seja, não produz o exame aprofundado em suas Filosofia de base, não porque sua teoria foi aplicada ao
relações com o ser homem, conduz à banalização da pró- objeto psicológico, mas porque se faz necessária uma fe-
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos

pria arte, reduzindo-a à mesmidade, quando não à igual- nomenologia do psiquismo, uma do desenvolvimento hu-
dade, pois não se recobrou suficientemente a mesmida- mano, outra da personalidade, da psicopatologia, e tam-
de necessária como condutora à novidade (Heidegger, bém dos tratamentos possíveis correlatos a esses exames
1930/2006). Da mesma maneira, a referência à ontologia psicopatológicos; ou de outras dimensões que se façam
heideggeriana no campo psicológico implica necessário necessárias para o estabelecimento de uma chamada
exame do ser homem e suas possibilidades de revelação, Psicologia. Tais procedimentos revelariam mesmo a pos-
especificamente naquilo que o campo psicológico deman- sibilidade ou impossibilidade da conjugação da Psicologia
da, inclusive na distinção suficiente entre o psicológico com a Fenomenologia, implicando, portanto, uma ação
e filosófico (Stein, 2006). transposta a uma Psicologia, como, por exemplo, aquela
Em que instância, pois é possível, falar em uma psico- explícita por Sartre em “O Ser e o Nada” (1943/2007), ou
logia fenomenológica? Não se trata aqui de um profundo ainda do necessário, mas ainda insuficiente reconheci-
exame epistemológico da Psicologia, a fim de se determi- mento de uma psicologia em Husserl. Tais atos implicam
nar em que condições poderia a este saber se servir de tal uma elaboração conceitual para se considerar as catego-
rias fundamentais da fenomenologia em sua articulação
com as tarefas da Psicologia, ainda que para isso se tenha
Parte da música “Lua e Flor” de Oswaldo Montenegro, Long Play:
1

“Brincando em Cima Daquilo” (1984), Gravação: Phase Studio (RJ). que construir uma nova Psicologia.

Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015 64


Por um Entendimento do que se chama Psicopatologia Fenomenológica

2. O conhecimento com origem em Heidegger a pertinência de suas ideias à Psicologia, com amparo no
que eles mesmos consideraram como pertinente, e, para
Último e importante apontamento diz respeito ao pro- além disso, com apoio no que se pode fazer baseado em
cesso de elaboração do conhecimento, exaustivamente suas elaborações e restrições em face das necessidades
examinado pela Filosofia da Ciência, onde a elaboração da Psicologia mas, sem lhes negar a fidelidade epistemo-
heideggeriana teve um papel de desconstrução do enten- lógica que faz jus ao que apresentam eles mesmos suas
dimento do saber até então realizado. objeções ou dificuldades a uma transposição; c) realizar
A importância do entendimento dessa formulação do exames rigorosamente fenomenológicos (no que concerne
conhecimento diz respeito ao fato de que as concepções à metodologia destes) sobre as temáticas fundamentais
pertinentes ao âmbito do conhecimento não se mantêm da Psicologia em sua constituição como campo de expli-
restritas às discussões acadêmicas e ao locus filosófico, cação, compreensão e intervenção no real.
pois se tornam orientadoras da cultura e constituintes do Possivelmente em relação a esses dois últimos itens,
entendimento antropológico e cosmológico, assim como outra formulação da psicologia se fará necessária, mal-
orientadoras das concepções científicas, hoje críveis grado, por exemplo, as considerações feitas por Stein
como privilegiadas na definição das ditas verdades cos- (2006), quando pensa a Filosofia e o conhecimento em-
mológicas e antropológicas. É, então, com hipótese nes- pírico, demonstrando a impossibilidade de se estabele-
sa imbricação que se constituíram também as ciências cer esse empírico desde perspectivas heideggerianas,
humanas, as quais embora se propusessem examinar em por não haver fundamento conceitual suficiente para o
profundidade a especificidade de seus objetos, todos eles objetivo de se estabelecer o conhecimento empírico em
humanos, são caracterizadas pela ausência de aberta in- um outro pensar.
terlocução que comprove a consideração do ser humano
como integrado e íntegro. Por conseguinte, toda a elabo-
ração do conhecimento dito científico herda a caracterís- 3. O pensar em Heidegger
tica cisão sujeito-objeto e seu ideal empirista-positivista
de realização de modelos científicos. Sendo assim, em que condições é possível situar a
Com o surgimento da fenomenologia e do conceito elaboração heideggeriana? Como se conjuga com o co-
de intencionalidade, o binômio sujeito-objeto é re-uni- nhecimento empírico? No exame da obra heideggeria-
do em sua fundamental constituição, ficando a cargo na, distinguem-se efetivamente três fases de seu pensa-
de Heidegger (1927/1993) a inauguração de uma meta- mento, chamadas de Heidegger I, II e III2, embora se sai-
física correspondente a seu terceiro período histórico, ba que “não existe três Heidegger. Foi a procura de uma
melhor dita como ontologia. Nessa fase da metafísica, compreensão das etapas de sua obra monumental e de
o critério de verdade não mais repousa no sujeito ou no seu projeto imanente que levou à criação do Heidegger
objeto em sua independência ou cisão epistemológica, I, II e III”. (Stein, 2006, p. 28). Melhor então se falar em
mas na relação originária homem-mundo, identificada fases do pensamento heideggeriano de acordo com sua
como Dasein, condição em que a verdade será ao mes- coerência interna.
mo tempo constituidora do conhecimento e da realida- A primeira fase, chamada do Heidegger I, é a referente
de a que se refere. a suas elaborações anteriores a Ser e Tempo (1927:1993)3 e
O deslocamento da cisão para a relação originária ho- que aparecem nessa obra de maneira sintetizada, além da
mem-mundo como fonte da formulação do conhecimento produção posterior, resultante como consequência ime-
levou a desdobramentos importantes para a concepção diata de ST. É nesse período que acontecerão os vários Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
de todo e qualquer conhecimento, de sorte que se possa passos para situar a analítica existencial como ontologia
então, perguntar: haverá mesmo a possibilidade de for- fundamental. O Heidegger II constitui o momento da vi-
mação de uma psicologia fundamentada nessa concep- ravolta, Kehre, onde se nota a necessidade de abandonar
ção heideggeriana? o elemento transcendental em favor da dimensão histo-
A despeito da resposta positiva ou negativa a esta in- rial. Inwood (2002) se referirá à virada não como uma
dagação – pois até aqui minha reflexão é ainda incipiente mudança de opinião ou ponto de vista, mas como a ope-
– formar, pois, uma concepção de Psicologia fenomenoló- ração de uma mudança interna de direção para se con-
gica efetivamente implicará a escolha de pelo menos um firmar o pensamento do próprio autor ou para melhor se
dos caminhos: a) examinar como se têm utilizado os psi- caracterizar a compreensão do problema. Trata-se de um
cólogos da conjunção entre fenomenologia e psicologia, a processo guiado pela destruição e superação da metafí-
exemplo do que fez Tatossian (2006) quando expressou a
2
Outros autores falarão em um “Heidegger Tardio”, ou em um último
Fenomenologia em conjunção com a psiquiatria, segun- Heidegger em contraposição ao jovem Heidegger. A esse respeito,
do suas palavras “como a tem feito os psiquiatras e não ver especialmente Pattison (2001). Optei por manter neste texto a
como deveria ser realizada” (p. 23, 1º §, grifos nossos); distinção feita por Stein (2006), por entender que se apresenta como
b) reaver os princípios norteadores de um tal pensamen- mais pertinente para o tema focalizado.
3
Utilizarei a notação “ST” para me referir à obra “Ser e tempo” de
to fenomenológico, malgrado filósofos fenomenólogos e Heidegger (1927/1993).

65 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015


Silvério L. K.

sica onde se faz um exame que vai de Hegel aos gregos, Contrastando com o pensamento científico da forma
elaborando também outro movimento dos pré-socráticos como atualmente estabelecido, os caracteres ontológicos
até a Filosofia do século XX. Efetivamente, temas ligados do humano o lançam em outra dimensão que nem a lin-
à cultura, ao poder, ao ser humano e aos múltiplos des- guagem, tampouco os procedimentos técnicos da ciência
dobramentos das ciências no fenômeno da técnica apa- alcançam, em decorrência da sua imersão na dualidade
recem em ST como maneira de organizar teoricamente a e separação homem-mundo. Ora, é exatamente pelo re-
questão do esquecimento do ser. Nas obras dos anos 30, conhecimento de aspectos concernentes à ontologia que
as temáticas referentes a arte, técnica, poesia, imagem as possibilidades de resgate do ser em geral e, por con-
de mundo, função das ciências e outros temas, consti- seguinte do ser humano se darão, em que a finitude terá
tuem a busca da superação da metafísica, tendo seu en- caráter primordial:
cerramento nas preleções sobre Parmênides e Heráclito.
O Heidegger III pode ser chamado de um filósofo da con- Por fim, tudo o que se possa discutir sob a rubrica de
temporaneidade, em que a condição humana em geral, as uma ‘metafísica da morte’ extrapola o âmbito de uma
questões específicas da ciência e da cultura são exami- análise existencial da morte. As questões de como e
nadas em uma dimensão que a Filosofia sempre tentou quando a morte ‘entrou no mundo’, que ‘sentido’ de
ocultar. Essas temáticas são consideradas como retoma- mal e sofrimento a morte pode e deve ter na totalidade
da de seu pensamento, mas também como maneira de dos entes não apenas pressupõem, necessariamente,
respostas aos problemas da humanidade do século XX. uma compreensão do caráter ontológico da morte,
Aparece, pois, como espécie de guia que leva à filosofia como também a totalidade dos entes em seu todo e,
da analítica existencial (Heidegger I) e à filosofia do es- em particular, o esclarecimento ontológico do mal
quecimento do ser (Heidegger II), pois sua consideração e da negatividade (Heidegger, 1927/1993, p. 30, 1º §)
efetiva revela a obra do Filósofo como um todo.
Embora o Heidegger II se ocupe com a temática do Ao reconhecer o homem como um ser-para-a-morte,
pensar, é no Heidegger III que existe a diferenciação de Heidegger recupera a finitude não apenas em seu caráter
três formas de pensar, sendo ao mesmo tempo a aplicação essencialmente humano, mas também a insere em outra
de sua filosofia ao próprio pensamento. É na obra Que ordem de pensamento, ou melhor, concede à filosofia a
significa pensar? (Heidegger, 1954/2005) que Heidegger possibilidade de pensar com origem noutra ordem refle-
apresentará a distinção entre essas formas de pensamento xiva, pois, na conjugação entre ser e não-ser, a finitude
e que afirmará que a “ciência não pensa”. Resumidamente adquire sentido radicalmente diferente daquele expresso
é lícito acentuar que, da forma como apresentado por pela tradição filosófica (Stein, 1976).
Martin Heidegger, o “pensar” I se refere àquela forma
de pensamento que constitui o pensamento empírico; o Enquanto o homem permanecer enredado na meta-
“pensar” II consiste no estabelecimento de regras e condi- física, ou seja, enquanto ele se ativer ao primado do
ções formais que vêm da Lógica; e o “pensar” III se cons- ente como o efetivamente real no sentido do efeti-
titui no pensar da diferença ontológica. É este “pensar” vante e “poderoso” (o que é capaz do efeito), o nada
que Heidegger afirmará se constituir a Filosofia, fazendo permanecerá o que não é digno de nada. E o terror,
sua distinção entre o pensar da metafísica e o pensar da como a tonalidade efetiva fundamental descerradora
ciência. Essa diferença ontológica não se refere apenas do nada, permanecerá aquilo que não merece senão
à separação entre ente e ser, mas à relação estabelecida resistência e o desprezo como um dano para toda
entre ente e ser por intermédio do único ente capaz de se afirmação da “vida”. E, inversamente, enquanto esse
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos

perguntar pelo ser, ou seja, o Dasein. Constitui-se, logo e desprezo do nada se mostrar como elucidativo e
assim, no acontecimento do ser, mas também no contexto encontrar a mais imediata concordância, o homem
do ser. É dessa maneira que se estabelecem na filosofia permanecerá no esquecimento do ser, quer dizer,
da finitude de ST os dois teoremas fundamentais, o cír- naquela não relação com o ser que o impede de
culo hermenêutico e a diferença ontológica (Stein, 2006). dignificar o presente da “negatividade” e mensurar
A fenomenologia hermenêutica evidencia o fato de a determinação da humanidade, adentrando, assim,
que o acesso ao conhecimento científico e seus objetos no espaço-de-jogo-temporal das decisões simples.
terá como condição de possibilidade o processo de pré- (Heidegger, 1930/2010, p. 237).
-compreensão, que desde sempre acompanha o ser-aí.
A consequência fundamental será a emergência de um Nessa tradição, desde os gregos até os filósofos cris-
vínculo entre o pensamento e o modo de pensar cientí- tãos, o infinito (Deus) foi considerado como perfeito, bom
fico, sustentado pela diferença ontológica. Neste passo, e positivo ou fonte de toda a positividade. Por sua vez, o
o principal perigo refere-se a cair nas armadilhas da ob- finito havido como imperfeito, mau e negativo ou dota-
jetificação, possíveis tanto no que se refere à Filosofia do de toda negatividade. O ser depende do não-ser, mas,
quanto no conhecimento científico na referência de na tradição cristã, a interpretação do não-ser o subjuga
seus objetos. ao Ser Supremo, fazendo com que o finito tenha todo o

Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015 66


Por um Entendimento do que se chama Psicopatologia Fenomenológica

caráter de negatividade perante o infinito almejado, que disponíveis à época de sua fundação. Um estudo como
deve então ser referência para se ultrapassar os limites proposto há pouco poderá contribuir para a possibilidade
e então se aproximar do perfeito. A consequência desse do estabelecimento seguro de uma filosofia da finitude
pensamento é a redução do não-ser como constituindo como fundante de um novo conhecimento, passível de,
fonte de toda negatividade e toda negatividade como au- assim, se contribuir para o reestabelecimento das ditas
sente do ser ou de positividade. Heidegger recobra a no- ciências humanas.
ção de finitude como ontológica: A consideração de uma psicologia fenomenológi-
ca, como sucedânea ao pensamento heideggeriano tal
O pleno conceito ontológico-existencial da morte como exposto em instantes, implica sim a identificação
pode agora se delimitar da seguinte maneira: En- do que fazem e como fazem os psicólogos na conjunção
quanto fim da pre-sença, a morte é a possibilidade da Psicologia com sua fenomenologia, mas para muito
mais própria, irremissível, certa e, como tal indeter- além, na verificação da correlação dessas elaborações
minada e insuperável da pre-sença. Enquanto fim com o tipo de pensamento de Heidegger, bem como com
da pre-sença, a morte é e está em seu ser-para o fim a consideração, principalmente, da não contradição com
(1927/1993, p. 41, parte II). a necessidade de superar a dualidade homem-mundo e
o esquecimento do ser. Parece-me que tais ações ainda
Assim, da finitude como ontológica, extrai a possibi- estão em curso, lançando ainda toda elaboração empí-
lidade de doação de sentido ao Dasein, requerendo tam- rico-conceitual com procedência em Heidegger, num
bém a possibilidade de todo finito como não necessaria- patamar ainda inseguro, carente de reflexões e de ela-
mente negativo, mas do negativo como possibilidade de borações que se oponham e contraponham a essa empi-
doação de positividade. ria vigente, confirmando então o caminho indicado por
Sabidamente, a tradição do conhecimento não entra Martin Heidegger.
por essa via denunciada por Martin Heidegger. É do co- Posso então asseverar que a busca da fenomenolo-
nhecimento fundado na positividade como exclusiva- gia para se estudar a psicopatologia deve se estabelecer
mente positiva e na negatividade como exclusivamente não como uma forma de se negar a precariedade do co-
negativa que surgiram as concepções de conhecimento. nhecimento clássico de psicopatologia, muito menos em
É nesse sentido que aqui pergunto: haveria possibilidade substituição a ele, mas para se afirmar sua precariedade
de se estabelecer o conhecimento empírico na noção de e também para se reconhecer e asserir a precariedade
finitude heideggeriana? Essa ideação de finitude poderia de todo e qualquer conhecimento vigente para respos-
ter inaugurado procedimentos filosófico-científicos nos tas definitivas aos fenômenos psicopatológicos. A feno-
quais fossem considerados nas ontologias regionais as- menologia revela, ela mesma, a precariedade do próprio
pectos da negatividade como fonte de positividade? Em estudioso, sendo talvez essa a mais possível via de com-
que condições a finitude como ontológica pode recupe- preensão dos fenômenos psicopatológicos: a constatação
rar, por uma via não ontoteológica, a articulação entre da vigência da doença não apenas no dito doente, ou da
ser e não ser? saúde no dito médico, mas sua concomitância, em mo-
Tendo esses aspectos levados em conta e da maneira dos distintos, em ambos os parceiros.
como se poderão estabelecer as respostas a tais questões,
entendo que houve uma passagem da filosofia da infinitu-
de a uma filosofia da finitude tal como posta por Martin 4. A herança psicopatológica
Heidegger. A filosofia do infinito tornou-se um impedi- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
tivo para apropriação do conhecimento do ser humano O olhar aprofundado para a psicopatologia como
em sua ontologia. O exame da possibilidade de estabele- campo de estudo revela que a noção de psicopatologia
cimento de uma nova forma de pensamento fundamen- vigente não predomina desde tempos mais remotos da
tada na ontologia da infinitude se justifica pela possibi- humanidade; ou seja, o entendimento atual dos fenôme-
lidade de contribuir para importantes desdobramentos nos ditos psiquiátricos como doença mental não é um
na elaboração do conhecimento, com importantes con- entendimento que permaneceu igual ao longo do desen-
sequências para as ditas ciências humanas, no que se re- volvimento da humanidade. Os manuais de Psicologia e
fere a seu estabelecimento em “um outro pensar”, logo, de Psiquiatria exprimem as várias fases por que passou o
com mudanças no objeto e nas metodologias de acesso e entendimento do que hoje se chama doença mental, des-
interferência nesse objeto. Irremediavelmente ligadas a de sua concepção religiosa, mediante a qual se entendia
uma antropologia filosófica, as ciências humanas se es- o fenômeno psiquiátrico como endemoninhamento, até
tabeleceram fundamentadas em uma tradição filosófica sua concepção científica como doença mental. E é exa-
da cisão e da busca do infinito como possibilidade de su- tamente essa circunscrição como doença que a mim in-
perar a condição humana. Seus procedimentos técnico- teressa aqui, não ainda exatamente na sua forma vigen-
-científicos são submetidos à concepção do ser em geral e te, mas na pertinência às várias noções que o fenômeno
à ideia do ser humano oriundo das concepções filosóficas doença adquiriu ao longo da história da humanidade.

67 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015


Silvério L. K.

Quer sob a perspectiva histórica, quer sob visão etimoló- ao mesmo tempo em que se expressa, ele mesmo, como o
gica, na “psico-pato-logia” que se apresenta como estudo lócus onde a luta se desenvolverá eternamente e indepen-
das doenças mentais, é a força do pathos que a circuns- dentemente de sua vontade, pois esse conflito é inerente
creve e doa seu sentido. O “Pathos” que integra o termo à natureza, que se caracteriza como animista, tanto em
psicopatologia não possui um sentido único de doença, relação a seres humanos quanto a espíritos ou forças má-
tal qual disseminado na Ciência biomédica (Martins, gicas de origens diversas. O segundo eixo faz referência à
1999), embora seu sentido atual seja prioritariamente o figuração da doença como algo pertinente ao mundo do
estudo da doença. “ter” – em oposição à primeira, pertinente ao mundo do
Sendo previamente remetida ao desenvolvimento da “ser” – vinculando-se a condições mecânicas e causais,
noção de doença que, por sua vez, não é natural, mas co- numa clara referência ao Zeitgeist prevalente no surgi-
extensiva à história da humanidade (Ramos, 1994), duas mento da ciência. Esforça-se nesse eixo para considerar
observações importantes estão implicadas nessa afir- a doença como resultante de causas objetivas e verificá-
mação. A primeira diz respeito ao cuidado de se evitar veis que, com o avanço tecnológico, se tornam cada vez
reificações. O termo reificar adquire aqui o significado mais isoláveis e factíveis de objetivação.
preciso de se transformar processos complexos em obje- Tais formulações advêm das elaborações filosóficas
tos do conhecimento que, quando nomeados, adquirem em torno da noção de ser e não-ser, segundo as quais se
status de independência e são objetificados, quase exis- constituiu para o ser toda condição de positividade e
tentes por si e independentes do humano, estando assim para o não-ser toda condição de negatividade. Como já
coisificados, quase tangíveis e existindo por si mesmos. mencionei linhas atrás, a deriva dessas elaborações, ori-
Assim é que a concepção de doença corresponde à no- ginárias em Platão e Aristóteles e reinterpretadas pela
meação de um processo amplo e complexo, constituído Filosofia cristã (Stein, 1976), permitiram não apenas um
historicamente e submetido à noção de conhecimento pensamento ocidental dicotômico, mas também a im-
em voga, responsável ele mesmo por dizer o que é a rea- possibilidade de se refletir o negativo do positivo ou o
lidade e como se pode conhecê-la e nela interferir. A se- positivo do negativo. Evidentemente, essas noções estão
gunda observação aponta novamente para a necessidade também relacionadas a outras elaborações polares, figu-
de se romper com a atitude natural ou com a tendência rantes como igualmente dicotômicas, como, por exem-
a tornar natural aquilo que possui significados e repre- plo, a noção de dentro e fora, a ideia de eu e não eu, que
sentações não apenas históricas, mas afim às diversas se imiscuem na formulação do conhecimento científico
noções que a sociedade faz de si mesma e do mundo, nes- e contribuem para toda sorte de confusão entre mundo
se caso, especificamente, da origem e da causa do mal humano e mundo material, dicotomias estas que, se por
relacionadas às doenças. Como rigorosa deriva, a psico- um lado se apresentam como a única possibilidade de
patologia herda sua concepção das noções de patologias, se estabelecerem diferenciações, de outra parte se ex-
constituindo-se também, e principalmente ela, não como pressam como impeditivas da recuperação não apenas
natural, mas como histórica. Para então se examinar no- da necessária interdependência entre ser e não-ser, mas
ções de psicopatologia, faz-se necessário compreender o também da necessária e mútua constituição do ser pelo
dinamismo ou pelo menos a mudança histórica da noção não-ser e vice-versa. O exame em profundidade dessa re-
de patologia a que a própria psicopatologia está ainda flexão não pode ser realizado aqui.
circunscrita, estando por isso mesmo influenciada por Como uma das consequências, é divisada na história
compreensões etiológicas, prognósticas e terapêuticas da Medicina uma oscilação entre os eixos ontológico e
de seu paradigma originário. mecanicista, não tendo o segundo jamais conseguido pre-
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos

Antropologicamente, a representação mental de doen- valecer ou suplantar totalmente o primeiro (Canguilhem,


ça mostra-se segundo dois eixos distintos (Bucher, 1989) 1966/2002). São encontradiços no âmbito das pesquisas
sob os quais oferece o entendimento ou a compreensão tecnológicas mais puras, ou no cerne das práticas médi-
humana acerca da doença. O primeiro deles, denominado cas mais avançadas modelos ontológicos que supostamen-
como ontológico, por sua construção filosófica, e segun- te seriam contrários às teorias mais esclarecidas. Como
do a qual procura abordar o ser das coisas, “ao longo de consequência, as chamadas crenças etiológicas univer-
percursos especulativos, místicos ou religiosos” (p. 10, sais (Bucher, 1989) estão enraizadas na complexidade das
2º §). A concepção ontológica representa a doença como representações ontológicas da doença. A primeira dessas
referente a um mal de origem misteriosa e cósmica, uni- crenças, identificada como exógena, aditiva ou centrípe-
versal ou local, impondo-se como um impedimento da ta, concebe a doença como a ocorrência de algo a mais
busca humana para a felicidade e autodeterminação, ou no paciente, por exemplo, um agente patológico, que lhe
seja, a capacidade para decidir e projetar-se em direção deve ser retirado. A segunda concepção, denominada
ao próprio futuro. Subjaz a esse entendimento uma axio- endógena, deficitária e centrífuga demonstra o paciente
logia que dividirá o mundo entre perspectivas polares e como quem sofre da falta de alguma coisa que lhe foi re-
conflitantes provenientes da ideia de bem e de mal. Essas tirada, tendo, portanto, e em oposição à primeira, “algo
estão em eterno conflito, sendo inevitáveis para o homem, a menos” e que lhe deve ser reposto.

Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015 68


Por um Entendimento do que se chama Psicopatologia Fenomenológica

Faço aqui uma observação sobre a ideia de ontolo- ao mundo espiritual e de sua responsabilidade, tanto na
gia esposada pelos autores citados, chamando a atenção manutenção quanto na cura, dependendo da interferên-
para a mera utilidade do termo para se referirem ao ser cia que os vivos poderiam fazer em relação à espiritua-
da doença, não implicando, pois, rigorosa apreensão de lidade. Fácil é depreender que a compreensão de doença
sua concepção ontológica tal como, por exemplo, e pri- não dizia respeito ao que propriamente chamamos do-
vilegiadamente elaborado por Martin Heidegger. Nessa ença, mas a ocorrência de um mal que deveria ser enca-
concepção, tanto a perspectiva mecanicista como a dita rado com recursos de ordem espiritual. Aquilo a que se
ontológica diriam respeito à ontologia heideggeriana, pois chama modelo grego diz respeito à forma como os gregos
fazem referência ao ser categorial, ou seja, à essência ou lidavam com o que hoje entendemos como doença. Nessa
natureza do existente. época, foram introduzidas a separação corpo-espírito e a
Não obstante as representações mentais possíveis de formulação do método de observação, análise, dedução e
se fazer da doença, fala-se então em modelos ou paradig- síntese. Junto com os primórdios metodológicos, bastante
mas de saúde-doença, apontados como representativos distintos da forma em que hoje é entendido o método, há
da relação cosmológica e até mesmo da noção que se faz também o estabelecimento da separação homem-mundo
do cosmo. Dessa forma, uma maneira de se considerar que culminará bem posteriormente com o cogito da filo-
essa elaboração diz respeito à ideia de união ou à unida- sofia moderna, sugerido por Descartes. Cumpre ressal-
de cosmogônica, no qual o ser humano se concebia como tar que, embora na concepção grega seja iniciada a cisão
intimamente ligado ao mundo, se indiferenciando em re- homem-mundo, a doença era constituída em ampla inter-
lação à natureza, e, como consequência, estabelecendo -relação homem-mundo, cujo elemento diagnóstico dizia
relações mais integradas e integradoras, tanto com seus respeito muito mais à escuta, e seu tratamento implicava
semelhantes quanto com a própria cosmologia onde es- mudanças alimentares, de comportamento e até mesmo
ses semelhantes se inseriam. Ramos (1994) oferece então troca de local de moradia. Com o modelo cartesiano, o
cinco noções a que chama de “modelos” e que aqui prefi- racionalismo atinge o apogeu, sendo a razão aquela que
ro chamar de paradigmas por se se assemelharem mais impõe a condição de só aceitar o conhecimento verifi-
ao modelo amplamente aceito que a ciência explicita em cado pelo intelecto. Não obstante, haver vários modelos
suas considerações, quais sejam, o paradigma primiti- de ciência (Chauí, 2000), a ênfase racionalista permeia
vo, o grego, o cartesiano, o romântico e o biomédico. toda sua epistemologia, tendo como corolário racional a
Evidentemente, o exame aprofundado desses modelos re- divisão do corpo e do intelecto, aspecto suficiente não só
velará a inexistência de sistemas puros, mas elementos para o surgimento da Psicologia como ciência (Schultz &
que se conservam, se justapõem e se refutam, permane- Schultz, 1994), mas também para sedimentar a separação
cendo sempre resquícios de uns nos outros, mas distin- homem-mundo. É nesse sentido que a doença é concebida
tos o suficiente para se identificar uma predominância e objetivamente, sendo elaborada como de origem externa
até mesmo hegemonia de uns sobre outros. Descreverei (agente patogênico ou trauma) e de procedência interna
brevemente essas noções, sendo que o leitor interessado (disfunção ou desequilíbrio mutacional). Dessa maneira,
poderá se remeter ao texto original e suas indicações, a é lícito, então, falar em causa e explicada em função de
fim de aprofundar e ampliar suas pesquisas. Aqui me seus determinantes. O modelo romântico é uma forma de
interessa, basicamente, a verificação da mudança na reação ao status empírico-racional da noção de ciência.
constituição do que se considera “doença” e a consolida- Nessa concepção o estado de saúde era atribuído à intera-
ção de uma noção científica que hoje se faz hegemônica, ção de diferentes fatores e o racionalismo era contestado
mas suficiente para apontar a não naturalidade do con- com a descoberta da irracionalidade da psique. O trata- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
ceito de doença. mento implicava atuações em diversos âmbitos, como o
No paradigma ou modelo primitivo, as doenças per- espiritual, o biológico, o psicológico e o social. Essa con-
tenciam ao domínio dos deuses e do sobrenatural, ao cepção é intitulada de romântica, tanto por pretender
qual somente os xamãs tinham acesso; havia uma inte- uma atuação global ou na totalidade, como também por
gração homem-mundo radical, de forma que não se ve- implicar procedimentos considerados fora da realidade.
rificava essa distância ou afastamento entre o homem e O modelo biomédico (científico) sob cuja égide se está no
o seu mundo. Tratava-se antes de se reconhecer a dife- momento tem como marcas principais o determinismo, a
rença, não a descontinuidade. Dessa maneira, a doença mensuração e o universalismo. Essas características são
era entendida como perturbação do mundo dos espíritos facilmente verificáveis mediante um exemplo hipotéti-
que teria ocorrido por alguma ação ou atitude, por par- co, mas nem por isso distante da realidade de qualquer
te daquele que manifestava o fenômeno hoje entendido ser humano. Supondo-se haver um grupo qualquer onde
como doença. O “tratamento” implicava desde a ingestão alguém “passe mal” o médico ou paramédico, não tendo
de ervas até a mudança de comportamentos ou de pensa- qualquer outro sinal evidente, inicia seu trabalho pela
mentos, sempre acompanhados de rituais cuja determi- verificação dos sinais vitais. Tal procedimento está fun-
nação e condução ficavam a cargo do xamã. Importante damentado no entendimento de que existe um padrão
é salientar a compreensão da doença como pertinente de funcionamento biológico (universalismo) humano,

69 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015


Silvério L. K.

no qual todos devem estar inclusos. Essa noção assenta- & Sloan (2002), com propósito distinto, apontarão para
-se na mensuração pré estabelecida e suficiente para se cinco noções de psicopatologia, a saber: psicopatologia
considerar verdadeira tal ocorrência para todo e qualquer geral, psicopatologia fundamental, etnopsicopatologia,
ser humano. Isso indica o caráter mensuralista, mas está psicopatologia social e psicopatologia crítica.
também presente na contagem de batimentos cardíacos, Podem então ser considerados, com base no exame
verificação de pressão e taxa respiratória. A não ocorrên- da categorização proposta por esses autores assim como
cia da padronização implica algum tipo de complicação com arrimo na exposição dos paradigmas de patologia
cuja causa deve ser elucidada. Nessa perspectiva, toda ora expostos, os seguintes pontos: a) a atual noção de psi-
intercorrência (patológica ou não) possui uma causa. Se copatologia é, senão pertinente, relacionada a um status
a causa não é evidente, não é porque inexiste, mas pelo de patologia eivado de dicotomias ou mesmo antinomias,
fato de ainda não ter sido descoberta. dentre elas e, por exemplo, a cisão corpo-mente; b) a úl-
tima autora citada conserva três noções anteriores cita-
das por Ionescu e acrescenta outras duas, somando-se
5. A diversidade de perspectivas em psicopatologia então e, como dito, 16 perspectivas acerca da psicopa-
tologia, o que demonstra a possibilidade de surgimento
Considerando-se o modelo biomédico, a temática de ainda outras; c) não há uma noção de psicopatologia
da doença mental já foi significativamente examina- suficiente para agrupar, suplantar ou integrar as ante-
da por autores de nomeada, como Foucault (1961/1978, riores; d) as atuais elaborações realizadas pela ciência
1962/1984a, 1963/1984b) e Canguilhem (1966/2002), só não conseguiram integrar as noções psicopatológicas,
para citar dois dos mais expressivos, e não é objeto ou provavelmente em decorrência da noção multifacetada
propósito deste trabalho sua retomada ou discussão. do que é o homem, pois, conforme sublinha Vaz (1992),
Cumpre ressaltar, no entanto, que as noções de determi- cada ciência tenta adotar a noção de homem que lhe dê
nismo, mensuração e universalismo estão presentes tanto o lugar mais privilegiado para assim construir seu co-
na criação da Psiquiatria, como na da Ciência psicológica, nhecimento; e) a psicopatologia fenomenológica, obje-
encarregadas historicamente de levar a termo o entendi- to deste trabalho, está inserida dentro do rol de noções
mento e a mitigação das doenças mentais. citadas e também não parece representar a suficiência
Ao longo da relativamente curta história das ciências mencionada no ponto c.
psicológicas e psiquiátricas, foram estabelecidas noções Expresso a seguir uma proposta de agrupamento das
de psicopatologia que, ao mesmo tempo, revelam a im- diversas perspectivas indicadas pelos autores citados,
possibilidade de redução da doença mental a uma pers- considerando suas proximidades epistemológicas ou ên-
pectiva unívoca e denunciam a diversidade da compre- fases, seja na formulação teórica (objetivos, metodologia
ensão do entendimento do que é o homem, noção essa ou técnicas), seja na elaboração de sua filosofia antropo-
que estará na base epistemológica de cada uma delas e lógica. A noção de perspectivas aqui adotada não impli-
direcionará seus esforços para elaborações sobre a doen- ca rigidez categorial, nem reclama a constituição dessas
ça mental. A hegemonia do modelo biomédico de ciência, perspectivas em “matrizes” de pensamento, por não se
a supremacia da psicopatologia não teórica explícita nos perceber necessariamente a geração de outras distintas
DSMs – Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos noções psicopatológicas desde as das perspectivas expos-
Mentais (American Psychiatric Association, 1994) – so- tas. Por outro lado, a ideia de perspectiva implica sempre
madas à sua adoção sistemática, fazem parecer existir, numa construção do conhecimento em aberto e dinâmi-
até mesmo para os psicólogos e psiquiatras mais compro- co, que pode ser revisto continuamente, representando
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos

metidos com o rigor técnico, uma só noção de psicopato- assim meramente um ponto de partida, ou um campo
logia, o que não se faz verdade. do saber de onde se parte para se abordar algum tema.
Existem, atualmente, pelo menos 16 noções psicopa- Perspectiva ateórica - o critério para agrupamento
tológicas que, por serem, em sua maioria, originárias do dessas perspectivas diz respeito ao fato de se pretende-
modelo biomédico, permitem a confusão entre elas e fa- rem mais livres de influências teóricas, sendo elas a psi-
cilitam sua fusão numa concepção pouco precisa deno- copatologia ateórica e a psicopatologia geral.
minada muitas vezes de clássica, contribuindo para que Perspectiva objetivista - essas perspectivas tendentes
escapem suas nuances e diversificações. Assim é que à reprodução rigorosa de princípios científicos e objeti-
Ionescu (1995) cataloga 14 perspectivas de psicopatolo- vantes do humano; assemelham-se entre si tanto na cons-
gia ou 14 maneiras distintas de se compreender e tentar tituição metodológica, quanto no critério de resultados,
abordar a doença mental: a psicopatologia ateórica, a psi- sendo elas a psicopatologia behaviorista, a psicopatologia
copatologia behaviorista, a psicopatologia biológica, a cog- experimental e a psicopatologia cognitivista.
nitivista, a desenvolvimental, a ecossistêmica, a etnopsi- Perspectiva etológica - o critério para agrupamento
copatologia, a etológica, a existencialista, a experimental, diz respeito à similitude entre caracteres biológicos ou a
a fenomenológica, a psicanalítica, a psicopatologia social redução aos aspectos biológicos – a psicopatologia bioló-
e psicopatologia estruturalista. Posteriormente, Moreira gica e a psicopatologia etológica.

Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015 70


Por um Entendimento do que se chama Psicopatologia Fenomenológica

Perspectiva desenvolvimentista - traz como central impossível visto não se configurar a fenomenologia
uma noção de desenvolvimento ou crescimento “desen- como um sistema aplicável a qualquer que seja a ciên-
volvimental”, sendo elas a psicopatologia “desenvolvimen- cia. Ainda se pode dizer, no entanto, de uma psiquia-
tal” e a psicopatologia ecossistêmica. tria que se fundamente na fenomenologia, ou esteja nela
Perspectiva estruturalista - prima pela busca de es- implicada, justificando assim o uso do termo. Por sua
truturas indicadoras da constituição psicopatológica. vez, a denominação de uma fenomenologia psiquiátri-
Perspectiva social - remete a existência da psicopato- ca lançaria todo e qualquer estudioso de psicopatologia
logia às constituições sociais e culturais, sendo, portanto, na restrita possibilidade de estudar a forma como psi-
a etnopsicopatologia e a psicopatologia social. quiatras ou praticantes da ação psiquiátrica (médicos,
Perspectiva compreensiva – possuem a compreensão enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e demais
como eixo fundamental. São a psicopatologia existencia- profissionais de saúde mental) realizam – concebem e
lista, a psicopatologia fenomenológica, a psicopatologia intervêm – a prática na doença mental. Opera-se nova
psicanalítica, a psicopatologia fundamental e a psicopa- restrição, ainda que mais aberta em relação à primeira,
tologia crítica. mas possível para aqueles interessados na leitura feno-
menológica da Psiquiatria.
Se a Psiquiatria diz respeito ao tratamento das doen-
6. As denominações (identidades?) da psicopatologia ças mentais, está subordinada ao amplo espectro em que
fenomenológica a psicopatologia se imiscui, colhendo daí subsídios para
o estabelecimento da terapêutica. Também, no entanto,
Com o exame de publicações distintas (Van den Berg, realizam os psiquiatras estudos psicopatológicos. Parece-
1966; Cardinalli, 2004; Tatossian, 2006) verificam-se de- me, portanto, que a melhor adequação é a dicção psico-
nominações referentes à área que une a psicopatologia à patologia fenomenológica, por envolver toda e qualquer
fenomenologia e que podem causar algum tipo de confu- possibilidade de estudo ou referência à doença mental,
são no estudioso de psicopatologia fenomenológica. Essas inclusive ela mesma, a doença mental, na forma em que
denominações se referem à fenomenologia psiquiátrica pode e participa o próprio doente mental. Estes últimos,
e à Psiquiatria fenomenológica, o que me possibilitaria então, objetos e objetivos da rigorosa e própria fenome-
também perguntar por fenomenologia psicopatológica nologia. Dessa maneira, o termo psicopatologia fenome-
ou por psicopatologia fenomenológica. Haveria alguma nológica cobrirá amplo espectro de profissionais, cujo
diferença entre essas denominações? Apontariam campos objeto último é a doença mental e que por assim o ser e
distintos de atuação? Em que situação ou em referência rigorosamente, se valem do método fenomenológico para
a que usar qual deles, visto que sua elaboração pode se maior proximidade ao referido objeto.
referir a objetos distintos? Quanto à expressão fenomenologia psicopatológica,
No caso de Tatossian (2006), entendendo ser a publi- a entendo como o conjunto de conhecimentos estabe-
cação destinada a apresentar “o quadro da fenomeno- lecidos pela fenomenologia ou com origem no seu mé-
logia psiquiátrica tal como ela tem sido abordada pelos todo, que, não obstante a indissociação que deriva na
psiquiatras e não como poderia ou deveria sê-lo a par- imbricada relação entre Psiquiatria e fenomenologia,
tir” (p. 23) da fenomenologia, o autor parece querer se figuram como um já dado e por isso mesmo tornam-se
restringir à Psiquiatria, não por ser a detentora do do- um impeditivo primeiro para o exame de tal ou qual
mínio sobre os entendimentos psicopatológicos, que se- psicopatologia, assim como qualquer outro tipo de co-
guramente não é, mas em razão, inicialmente, das con- nhecimento em curso. Demonstram-se, por conseguin- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
dições pessoais e contextuais da obra: própria formação te, meramente como referência de diálogo a posteriori,
e prática clínica em psiquiatria, e por ter sido solicitado embora exatamente por isso não se possa minimizar
a escrever a obra citada pelo Congresso de Psiquiatria, sua importância.
justificando assim seu endereço. Ao mesmo tempo, ao
longo da obra citada, parece usar indistintamente os ter-
mos fenomenologia psiquiátrica e psiquiatria fenomeno- 7. O que é a psicopatologia fenomenológica
lógica, alternando-os apenas para se referir ao psiquia-
tra identificado como fenomenólogo ou de orientação Tendo, até então, demonstrado a constituição histó-
fenomenológica. Será, porém, que o uso desses termos rica e não natural da psicopatologia, indicado a noção
pode ser indiscriminado? biomédica como vigente, mencionado a diversidade de
A mim me parece que as expressões psiquiatria fe- perspectivas psicopatológicas e ainda afirmado a impos-
nomenológica e psiquiatra fenomenólogo referem-se a sibilidade de adoção da fenomenologia como o conheci-
uma ciência e a um profissional que fariam uso de uma mento privilegiado para o estudo da patologia mental,
prática fundamentada na fenomenologia ou em seu mé- resta-me apontar como se configura uma dita psicopato-
todo. A Psiquiatria seria a tarefa anterior e principal, a logia fenomenológica, quais seu escopo e a maneira como
que a fenomenologia serviria como instrumento – ação se estabelece, ela mesma, para atingir seus propósitos.

71 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015


Silvério L. K.

Efetivamente, a psicopatologia fenomenológica será relação com qualquer objeto em particular), interessa é
apontada como “a releitura dos fenômenos psiquiátricos o que se revela de humano e não a objetividade de sua
privilegiando-se a sincronia entre o desvendamento das condição. É nisto que implica a possibilidade de clari-
estruturas da existência e o movimento engajado pela fe- ficar ao estudioso de psicopatologia isto que sabe desde
nomenologia” (Tatossian, 2006, p. 23). O estudo da psi- sempre, mas não sabe forçosamente que sabe. O sentido
copatologia fenomenológica implica a “visão” do caráter da relação estabelecida com as coisas já está sempre aí
imediato da experiência do doente mental, transpondo junto a elas. É nessa circunstância que se opera a relação,
as fronteiras do sensível e realizando uma operação fe- mas este sentido é irrefletido e trata-se de evocá-lo para
nomenológica fundamental, sem a interposição de um a compreensão da relação. Logo, da condição da psico-
saber teórico predeterminado de experiência. Significa patologia e das possibilidades de intervenção para mini-
isto exprimir que, seu objetivo principal implica o con- mização do sofrimento humano.
tato não mediado com os fenômenos e com o doente
mental, da forma como experiencia e vive sua condição,
para, então, se lançar num exercício reflexivo (transpor Referências
as fronteiras do sensível) de forma que a ação fenomeno-
lógica se realize sem a interposição de um conhecimen- Amatuzzi, M. M. (2009). Psicologia fenomenológica: uma
to privilegiado prévio à experiência, mesmo que ele seja aproximação teórica humanista. Estudos de Psicologia
(Campinas), 26(1), 93-100.
a própria fenomenologia.
Reler os fenômenos psiquiátricos implica, com base no Amatuzzi, M. M. (2011). Por uma psicologia humana. Campinas:
ora exposto, em reconsiderar as noções que constituem a Alínea.
psicopatologia tais como os de alucinação e delírio, mas
American Psychiatric Association (1994). Manual Diagnóstico
também as próprias ideias dos transtornos mentais já
e Estatístico dos Transtornos Mentais - DSM-IV. Porto
estabelecidos, como depressão e esquizofrenia naquilo Alegre: Artmed.
que implicam e revelam a estrutura do ser homem pos-
tulada pela fenomenologia, como, por exemplo, o ser-no- Bucher, R. E. (1989). A psicoterapia pela fala: fundamentos,
-mundo ou o ser-aí, mais do que na correlação conceitual, princípios, questionamentos. São Paulo: EPU.
mas naquilo que podem contribuir para a explicitação Canguilhem, G. (2002). O normal e o patológico (M. de T. R. de C.
do seu sentido na correlação originária homem-mundo. Barrocas & L. O. F. B. Leite, Trads.). Rio de Janeiro: Forense
Evidentemente, outras dimensões da psicopatologia, tais Universitária (Original publicado em 1966).
como seus aspectos históricos, teóricos mais amplos e
Cardinalli, I. E. (2004). Daseinsanalyse e esquizofrenia um es-
próprias concepções de saúde-doença também estão em
tudo na obra de Medard Boss. São Paulo: EDUC: Fapesp.
foco na psicopatologia fenomenológica, em decorrência
do contributo para a revelação desse sentido. Com efei- Chauí, M. (2000). Convite à filosofia (7. ed.). São Paulo: Ática.
to, a psicopatologia fenomenológica terá, na visão de
Feijoo, A. M. L. C. (2011). A existência para além do sujeito – A
Tatossian (2006) os seguintes objetivos: a) generalizar crise da subjetividade moderna e suas repercussões para a
a essência revelada sobre um caso único enquanto tal: possibilidade de uma clínica psicológica com fundamen-
mostrar que há em cada experiência mais do que o em- tos fenomenológico-existenciais. Rio de Janeiro: Edições
pirismo comum reconhece; b) clarificar (Klären) a expe- IFEN, Via Verita.
riência, psiquiátrica: torná-la transparente quanto à es-
Feijoo, A. M. L. C., (2013) O pensamento de Kierkegaard e a clí-
sência ou a isto que o psiquiatra sabe desde sempre, mas
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos

nica fenomenológica. Rio de Janeiro: IFEN.


não sabe forçosamente que sabe; c) revelar a estrutura
eidética que torna possível os estados psicopatológicos, Forghieri, Y. C. (1993). Psicologia fenomenológica: fundamen-
não como causa, mas como condições de suas possibi- tos, método e pesquisas. São Paulo: Pioneira.
lidades; e d) suscitar uma unidade entre a pesquisa dos Foucault, M. (1978). História da loucura na idade clássica. São
fatos e a busca das essências. Paulo: Ed. Perspectiva. (Original publicado em 1961).
O exposto remete à ontologia heideggeriana, pois,
nessa perspectiva, fenômeno é o que se mostra naquilo Foucault, M. (1984a). Doença mental e psicologia (L. R. Shalders,
Trad.). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. (Original publi-
que aparece. Tal consideração acentua que o já dado ou
cado em 1962).
o objeto que se mostra traz em si algo de essencial que
deve ser buscado, pois já se revela junto com o objeto. Foucault, M. (1984b). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe,
Ou seja, o que interessa enquanto estudioso de psicopa- minha irmã e meu irmão - Um caso de parricídio do século
tologia e psicoterapia, no exame de um caso como tal, é XIX, apresentado por Michel Foucault (D. L. de Almeida,
que o mesmo remete ao essencial do humano. Por assim Trad.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1973).
dizer, a singularidade conduz o estudioso à generalida- Giorgi, A. (2009). The descriptive phenomenological method in
de e a generalidade remete à singularidade. No exame psychology: A modified Husserlian approach. Pittsburg,
da relação do humano com seu mundo (e posso dizer na PA: Duquesne University.

Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015 72


Por um Entendimento do que se chama Psicopatologia Fenomenológica

Goto, T. A. (2008). Introdução à psicologia fenomenológica – Van den Berg, J. H. (1966). O paciente psiquiátrico – esbo-
a nova psicologia de Edmund Husserl. São Paulo: Paulus. ço de psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Editora
Mestre Jou.
Heidegger, M. (1993). Ser e tempo (2 Vols.) (M. de S. Cavalcante,
Trad.). Petrópolis: Vozes (Original publicado em 1927). Vaz, H. C. de L. (1992). Antropologia filosófica. São Paulo:
Loyola.
Heidegger, M. (2006). Qué significa pensar? (R. Gabás, Trad.).
Madrid: Editorial Trotta. (Original publicado em 1954).

Heidegger, M. (2006). Os conceitos fundamentais da metafí-


sica: Mundo, finitude, solidão (M. A. Casanova, Trad.). Silverio Lucio Karwowski - Psicólogo, Especialista em Gestalt-terapia
Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publica- pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, Mestre em Psicologia
do em 1930). Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Professor
do Curso de Formação em Gestalt-terapia do IGC - Instituto Gestalt do
Heidegger, M. (2008). Marcas do caminho (E. P. Giachini & E. Ceará, Editor Responsável do Boletim de Gestalt-terapia e Professor do
Stein, Trads.) (M. A. Casanova, Rev.). Petrópolis: Vozes Centro Universitário Estácio do Ceará (Fortaleza/CE) e da Universidade
(Original publicado em 1967). de Fortaleza - UNIFOR. Endereço Institucional: R. João Regino, 474 -
Parque Manibura, Fortaleza/CE. CEP: 60.821-780.
Heidegger, M. (2009). Sobre a questão do pensamento (E. Stein, E-mail: silukarw@gmail.com
Trad.). Petrópolis: Vozes (Original publicado em 1969).

Heidegger, M. (2010). Meditação (M. A. Casanova, Trad.). Recebido em 04.02.2014


Primeira Decisão Editorial em 29.04.2014
Petrópolis: Vozes (Original publicado em 1930).
Segunda Decisão Editorial em 09.07.2014
Aceito em 01.12.2014
Holanda, A. F. (2002). O resgate da fenomenologia de Husserl
e a pesquisa em psicologia. Tese de Doutorado em
Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
Campinas.

Holanda, A. F. (2011). Gênese e histórico da Psicopatologia.


Em V. A. Angerami (Org.), Psicoterapia e brasilidade
(p. 115-155). São Paulo: Cortez.

Inwood, M. (2002). Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editora.

Ionescu, S. (1995). Quatorze abordagens de psicopatologia.


Porto Alegre: Artes Médicas.

Karwowski, S. L. (2005). Gestalt-terapia e fenomenologia.


Campinas: Ed. Livro Pleno.

Martins, F. (1999). O que é phatos. Revista Latinoamericana de


Psicopatologia Fundamental, 2(4), 62-79.

Moreira, V., & Sloan, T. (2002). Personalidade ideologia e psico-


patologia crítica. São Paulo: Escuta.
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
Pattison, G. (2001). The Later Heidegger - Routledge Philosophy
GuideBook to. Londres: Taylor & Francis e-Library.

Ramos, D. G. (1994). A psique do corpo – uma compreensão sim-


bólica da doença. São Paulo: Summus.

Sartre, J. P. (2007). O ser e o nada – Ensaio de ontologia feno-


menológica (15. ed.). (P. Perdigão, Trad.). Petrópolis: Vozes.

Schultz, D., & Schultz, S. E. (1994). História da psicologia mo-


derna. São Paulo: Cultrix.

Stein, E. (1976). Melancolia: ensaios sobre a finitude no pensa-


mento ocidental. Porto Alegre: Editora Movimento.

Stein, E. (2006). Pensar é pensar a diferença: filosofia e conhe-


cimento empírico. Ijuí: Editora Unijuí.

Tatossian, A. (2006). Fenomenologia das psicoses. São Paulo:


Escuta.

73 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies – XXI(1): 62-73, jan-jun, 2015


Reproduced with permission of the copyright owner. Further reproduction prohibited without
permission.

Você também pode gostar