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[publicado na Revista Literal 12 "Uma Escola" - Escola de Psicanálise de Campinas - 2009 - pp.199-210]
Márcio Mariguela
Psicanalista e professor de filosofia na UNIMEP
I - Territórios
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Na lição de 26/02/69 do Seminário De um Outro ao outro, Lacan definiu a função do
significante como diferença absoluta: “Essa estrutura lógica mínima, tal como é definida pelos
mecanismos do inconsciente, a resumi há muito tempo, sob os termos de diferença e
por Foucault como tendo inaugurado uma nova hermenêutica que interroga
sem cessar a constituição da psiquiatria e demais ciências humanas no
conjunto das ciências positivas.
As referências de Foucault a Freud foram objeto de atenção e interesse
de Jaques Lacan. Na Aula de 11/05/1966 do Seminário O objeto da psicanálise
Lacan afirmou: "Foucault é um pesquisador cujo tipo de busca não está
certamente distante [afastado] daquela na qual, em nome da experiência
analítica, é minha ocupação aqui" (apud VILTARD, 1999, p.120). Este
reconhecimento de Lacan ao trabalho de pesquisa realizado por Foucault é um
indicativo para resgatar a genealogia da psicanálise elaborada por Foucault no
curso O Poder Psiquiátrico, ministrado no Collège de France entre 1973-1974.
Neste curso, Foucault fez um deslocamento significativo em relação aos seus
trabalhos anteriores: embora ainda vigore as tentativas de desenhar uma
analítica do poder, há uma abertura para o problema ético que direcionou suas
referências ao ensino de Lacan e desse modo instaurou outra perspectiva para
uma genealogia da psicanálise pela ética do cuidado de si. Na aula de
12/12/1973 encontramos a seguinte afirmação:
Podemos dizer que a psicanálise pode ser interpretada como
primeiro grande recuo da psiquiatria, o momento em que a
questão da verdade do que se dizia nos sintomas ou, em todo
caso, o jogo da verdade e da mentira no sintoma foi imposto à
força ao poder psiquiátrico (FOUCAULT, 2006, p.170).
repetição; não há nada que funde a função significante além do fato dele ser diferença
absoluta” (LACAN, 2004, p. 185).
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Jean ALLOUCH (2007) afirmou que Foucault cartografou a genealogia da psicanálise em
torno do que se passou na Salpêtriere na época de Charcot. Na emergência da simulação, o
poder psiquiátrico sofreu seu primeiro golpe. Na batalha das histéricas, Freud tomou o partido
delas.
Admitindo que Freud instaurou uma discursividade3, toda uma rede de
proliferação de sentido pode ser deduzida. Como autor, produziu a
possibilidade e a regra de formação de outros discursos que ao se remeterem
à psicanálise não poderão mais sustentar sua validade por um recuo ao sentido
originário. Por isso, Foucault disse que Freud não tornou apenas possível certo
número de analogias, ele tornou possível, certo número de diferenças ao abrir
o espaço para outra coisa diferente dele e que, no entanto, pertence ao que ele
fundou.
Retomando o texto da chamada para esta V Jornada de Psicanálise com
Crianças, realizada aqui em Americana: destacou-se o plural no qual se
escreve a criança para nos convocar, mais ainda, a circular nos diferentes
territórios discursivos e considerar a extensão da experiência da psicanalítica.
Qual a relação entre aqueles que se ocupam da prática psicanalítica com os
demais campos de saberes, científicos ou não? Qual relação possível com
todos os profissionais que se ocupam dos cuidados com as crianças e não
transitam no território da psicanálise? A organização dessa Jornada privilegiou
dois lugares: a Família e a Escola. O que o saber da psicanálise permite
interrogar os discursos que atravessam a constituição da Família e da Escola
nos tempos em que estamos vivendo?
Considerar a extensão da experiência psicanalítica com os demais
campos de saberes implica por um lado, entrar nos campos de investigação da
psicanálise com demais discursivos contemporâneos, e por outro, a
experiência dos que se ocupam com os cuidados das crianças, pais,
educadores, psicólogos, assistentes sociais, médicos, etc.
(...) a psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa que
se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou
em meus contemporâneos desabou sobre minha cabeça em forma de
críticas (...), ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise,
em que ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que
seria melhor chamar de outro nome qualquer (FREUD, 1974a, p.16)
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No livro Psicanálise e Surrealismo: Jacques Lacan, o passador de Politzer narrei as relações entre o
movimento surrealista e a conquista do território francês que permitiu a implantação da psicanálise na
França (MARIGUELA, 2007).
histeria e neurose obsessiva; e as duas “neuroses atuais”, neurastenia e
neurose de angústia. Assim, nomeou a psicanálise estabelecendo uma
cartografia da neuropatologia do final do século XIX e apresentando seus
resultados da pesquisa clínica sobre estes quatro tipos de neurose
O referido artigo é um marco na história da psicanálise por dois motivos:
nele, Freud estabeleceu uma ruptura no campo da psiquiatria clássica e
demarcou sua empreitada na construção da teoria do inconsciente; por outro
lado, ao publicá-lo em francês, o autor acertou suas dívidas para com o célebre
Dr. Charcot, com quem aprendera a reconhecer o discurso histérico como
enunciador da verdade psíquica.
Os argumentos do artigo revelam-nos sua extemporaneidade. As idéias
principais de Freud, embora refutadas após a introdução da hipótese da
sexualidade infantil, mantêm ainda sua relevância na formulação da psicanálise
como prática clínica, sustentada na escuta dos sintomas da neurose histérica e
neurose obsessiva – as duas neuroses que compõem o grupo de estudos de
Freud. A etiologia das neuroses foi demarcada em três classes (FREUD, 1994,
p.146): Precondições: que são indispensáveis para produzir os distúrbios
neuróticos - nessa classe é compreendido o fator hereditário; Causas
Concorrentes: que compartilham com as precondições a característica de
funcionarem tanto na causação de outros distúrbios quanto na dos distúrbios
neuróticos, dentre elas, destacou a perturbação emocional, esgotamento físico,
intoxicações, acidentes traumáticos, sobrecarga intelectual etc; Causas
Específicas: que são indispensáveis como as precondições, mas têm natureza
limitada e só aparecem na etiologia do distúrbio de que são específicas.
Foi no plano das causas específicas que Freud estabeleceu a ruptura
com o discurso da neuropatologia de seu tempo. Para ele, a classe das causas
específicas possui uma fonte comum de onde derivam suas manifestações
fenomênicas: a vida sexual do sujeito. Traçar o histórico dessa vida sexual,
retroativamente dos distúrbios atuais até uma experiência sexual passiva antes
da puberdade, era a proposta do método clínico da psicanálise naqueles
tempos.
Os distúrbios sexuais sempre foram admitidos entre as causas da
doença nervosa, mas têm sido subordinados à hereditariedade e
coordenados com os demais agents provocateures; sua influência
etiológica tem-se restringido a um número limitado de casos
observados. (...) O que confere um caráter distintivo a minha linha de
abordagem é que elevo essas influências sexuais à categoria de
causas específicas, reconheço sua atuação em todos os casos de
neurose e, finalmente, traço um paralelismo regular, prova de uma
relação etiológica especial, entre a natureza da influência sexual e a
espécie patológica da neurose. Estou certo de que essa teoria
invocará uma tempestade de contestações por parte dos médicos
contemporâneos. (FREUD, 1994, p.149)
Referências Bibliográficas