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Com efeito, o discurso implica num quantum de atividade e introduz uma concepção
de perda, o primeiro momento é baseado numa perda de si onde o sujeito se depara com
discursos promissores, seja de êxtase ou sentido ontológico, geralmente são suficientes para
garantir uma aderência a eles. A construção de identidades, estando totalmente atrelada ao
nosso laço social, abre espaço para a constituição da representação de sujeitos performáticos.
Então não nos deparamos mais apenas com pessoas, observamos o depressivo ou o ansioso
como reconhecimentos inquestionáveis. Essas categorias acabam, muitas vezes, reduzindo o
sujeito e, de maneira tão perspicaz quanto a própria ideologia, convencendo-os de uma
conformidade. O entrave reside, portanto, quando essa conformidade finda mascarando um
tormento profundo que não pode ser notado com facilidade em decorrência da
superidentificação com determinadas categorias.
Método e despersonalização
Ao tomarmos o seminário I (1953-1954), o caminho a ser realizado por Lacan pode ser
entendido a partir de dois pontos:
(2) A partir dos dados, fatos e evidências que a experiência analítica produz, entender
a complexa relação entre técnica e teoria antevendo um método de tratamento
eficaz, com fins e objetivos delineados.
Para que estas questões mais gerais, pois transcorrem a sua obra 6 como um todo,
possam adquirir um desenvolvimento plausível para psicanálise, Lacan começa a discussão
priorizando alguns temas centrais da experiência analítica neste momento: a historicidade do
sujeito e a importância de fundamentos metodológicos razoáveis para a psicanálise. Com isso
queremos enfatizar que no decorrer do Seminário I (1953-1954), pelo menos em nossa
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Esta afirmação de modo algum quer significar que em textos, artigos e obras mais tardias a preocupação em
torno do método seja secundária ou incipiente. Apenas queremos ressaltar que a preocupação em torno da
técnica tem um tom de urgência.
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Questão debatida por Foucault em O que é um Autor (1992). Aqui o Foucault faz referência ao retorno a Freud
como um tipo de leitura criativa, produzindo novos discursos.
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No seminário 11 Lacan (1964/2003) reafirma este ponto ao afirmar que todo o seu ensino
tem seu mote no “concreto” da experiência analítica.
interpretação, são estes os principais motes que alimentam suas aulas. Naturalmente, não há
como investigarmos estes tópicos separadamente, pois Lacan as entrelaça sistematicamente,
fazendo com que uma, no tocante ao seu entendimento, dependa da articulação da outra.
A abertura do seminário I (1953-1954) enfatiza que a originalidade da experiência
analítica deve-se à inclusão de ações/intervenções/interpretações relacionadas à produção de
sentido. Ou seja, a prática psicanalítica ao valorizar a historicidade narrada pelo paciente,
acabaria por descobrir que as querelas e questões que estão presentes no decorrer de sua vida
estão entrelaçadas com uma história social que não se resume ao seu passado, mas está
atrelada a fatores que lhes são atuais. O método analítico ao tomar esta diretriz, deve ser
capaz de dar condições de intervenção que, neste momento, favoreceria o reconhecimento
deste emaranhado ou nós histórico que escapa ao sujeito.
Se Lacan realiza uma analogia entre o mestre zen e o analista já bastante conhecida, há
uma outra que promove os conceitos como facas, ou seja, para o analista se trata de dissecar o
material discursivo expresso pelo sujeito operando transformações. Aqui, temos que esperar
para apreender como Lacan apresentará a finalidade e eficácia que estas operações propõem.
Lacan é bem contundente sobre a importância do método, pois é em torno dele que
uma série de variáveis da experiência tomam forma e objetividade. Diferente de outras
modalidades de tratamento terapêutico, é a história do sujeito que pode vir a condicionar a
trajetória do tratamento, historicidade que se apresenta como desconhecida e mantém laços
com a construção sintomática do sujeito. O método analítico ao propor o resgate da palavra ou
história que escapa ao sujeito, resgate este sempre radicalmente particular na esfera da vida
concreta deste último, deve ser capaz de inaugurar uma modalidade de pesquisa sobre a
verdade do sujeito.
Este programa de pesquisa fundado pelo método surge como uma esperança de uma
ciência do particular no qual o assento será depositado não na verdade como referencial, mas
no processo e caminho decorrentes da experiência analítica. Este método analítico que se
sustenta na rememoração ou na experiência histórica não nos parece com as acepções
metodológicas que “recortam seu objeto”, ao contrário, a história permanece como uma massa
amorfa ainda não explicitada no qual o sujeito no transcorrer da análise pode associar
presente, passado e futuro. O discurso do sujeito possui uma gama de ramificações que não
são tolhidas pelo analista, pois os conceitos da psicanálise servem para suscitar nossa atenção
aos percursos tortuosos e confusos que as falas vão tomando.
Logo, fica patente a recusa lacaniana em separar clínica e pesquisa, experiência e
conceito, visto que todos devem ser costurados pelo método analítico que, pelo menos nas
aulas iniciais do seminário, se apresenta como um procedimento na qual o paciente é
“convidado” a elaborar a sua história concreta, cabendo ao analista valorizar os momentos de
lapsos, esquecimentos e desconhecimentos que faltam a esta história.
O avanço desta tese caminha se contrapondo a maneira como a psicanálise de seu
tempo preconizava a técnica. Sem entrarmos nos detalhe desta crítica já bastante elucidado
pelos comentadores de sua obra, trata-se de situar a última como aquela que promove para um
primeiro plano o tratamento moral que objetiva forçar o paciente a se adequar as
representações sociais de normalidade, dando-lhe um equilíbrio ou estabilidade a sua
identidade. Lacan (1953-1954) antagoniza com esta postura colocando a experiência analítica
como promotora da relação do sujeito consigo mesmo, introduzindo as significações
expressas pelos sintomas.
Todavia, a linha argumentativa de Lacan (1953-1954) procede nestes passos: (1) um
diagnóstico nada animador dos princípios da técnica que chega a ser chamada de “estilo
analítico de inquisitorial” (p.45), (2) na medida em que, ao negar uma das principais
contribuições promovidas pela psicanálise freudiana, ou seja, os sentidos e os contextos dos
sintomas envoltos de suas temporalidades próprias, as concepções e técnicas acabam por
serem concebidas como independente da história do sujeito. Em suma, há o método analítico
que impõe prerrogativas e procedimentos à revelia da história do sujeito e um outro que Lacan
(1953-1954) parece querer resgatar, qual seja, os vínculos e os acasos que fazem parte de uma
vida podem produzir novos sentidos a partir de perdas de antigas significações. É nesse liame
muito tênue que o método opera.
Daí a complexidade que envolve o método lacaniano tem que responder, pois ele deve
especificar a psicanálise como uma ciência e técnica de tratamento, com o adicional de que o
paciente não deve ocupar o lugar de objeto, mas de sujeito, implicando que suas questões e
demandas sejam tomadas concretamente o que produzirá uma variedade de experiências
singulares que os métodos científicos clássicos tendem a desconsiderar.
O passo dado por Lacan (1953-1954) é apresentar a finalidade do método analítico de
forma mais específica no que tange ao campo psicanalítico em geral. O manejo das técnicas
como associação livre de ideias e a interpretação devem ser consideradas dentro do objetivo
de reconstrução da história do sujeito. Este processo visa restabelecer a verdade elidida no
discurso que surge através dos equívocos e incertezas, especialmente, nos momentos em que
as dúvidas sobre os acontecimentos vividos pelo paciente, por exemplo, se constituem como
materiais empíricos importantes e que, digamos assim, prenunciam a importância da palavra
plena em contraposição a palavra vazia.
De forma sucinta, pois este tema já foi bastante explorado, no contexto do seminário a
palavra plena deve ser compreendida como uma experiência ligada ao reconhecimento de
fragmentos importantes da história do sujeito capaz de realização da verdade, opondo-se à
palavra vazia em que pontos fundamentais para progresso da análise acabam por estagnar ou
entrar em inércia.
O que Lacan deu a entender nos pontos iniciais de seu seminário é que o método
histórico superaria o que os analistas apregoavam, mas incluindo-as. É como se as técnicas
desenvolvidas desde Freud pudessem ser agrupadas, com a precondição de ter a seguinte
finalidade metodológica: a psicanálise é um processo experimental que recompõe a história
do sujeito através de interpretações direcionadas para os momentos mais ambíguos do seu
discurso. A pergunta que devemos fazer é: quais são os efeitos deste método? Como a
experiência histórica do sujeito que o método parece explorar se encaixa no panorama
lacaniano?
Tudo indica que a experiência clínica que Lacan vem procurando circunscrever, com
todos os problemas que uma ciência do particular pode acarretar, deve ser entendida no bojo
de processos ligados ao tema do desconhecimento. Aqui, esta questão comparece ainda de
forma tímida, mas Lacan confere o seguinte tom: “a todo instante essa experiência consiste
em mostrar ao sujeito que ele diz mais do que pensa dizer.(p.77)”. Logo, esta experiência que
escapa às intenções conscientes são frutos de negações de momentos cruciais da vida do
sujeito, logo, permanecem ainda no plano do desconhecimento. É esta experiência que é
produzida pela discursividade do diálogo analítico que o método explora visando demarcar a
importância decisiva que as negações tiveram na vida do sujeito através do reconhecimento de
histórias e dramas esquecidos.
Até o momento, questões concernentes às categorias Simbólico, Imaginário e Real não
tinham feito a sua estreia, mas a partir da aula intitulada “Análise do eu e análise do discurso”,
a tríade começa a ser utilizada de maneira mais contundente e, sobretudo, como elementos
capazes de organizar dados da experiência. Isto fica ainda mais patente, visto que, quando
Lacan (1953-1954) se detém em modalidades de psicanálise que historicamente foram tidas
como rivais como no caso de Anna freud e Melaine Klein, o Simbólico, Imaginário, Real são
as entidades utilizadas para diferenciar ambos processos . Ou seja, ao seguir as trilhas de
Lacan, distintas formas de intervir e seus efeitos clínicos podem ser inferidos a partir de
diferentes formas de se trabalhar com as categorias Simbólico, Imaginário e Real. Anna
Freud se detém na análise das resistências, projetando e confundindo suas próprias intenções
com as do paciente. Logo, temos uma proposta caracterizada dentro do âmbito imaginário que
Lacan (1966/1999) desde meados de 1940 vinha alertando sobre os problemáticos efeitos das
abordagens clínicas que enfatizassem exclusivamente o reforço das identificações do paciente
com o comportamento idealizado do analista. Tais problemas que foram bem descritos em
Agressividade em psicanálise (1966/1999), no contexto do seminário I, é a incapacidade
mesma de apreender o discurso do sujeito e, em especial, na constituição de seu mundo com
seus discursos e leis.
Destarte, ao apresentar os problemas que experiências calcadas na relação
dual/imaginária podem acarretar no percurso da análise, Lacan (1953-1954) abre as portas
para delinear outra categoria: a função simbólica. A explanação que a mesma recebe se dá
através dos relatos de experiência de Melaine Klein. Diferente de Anna Freud que enfatizava
os aspectos e sentimentos que o analista sentia pelo paciente e que se tornou uma linha de
reflexão contundente e importante chamada de contra-transferência. Melaine klein se situa
numa espécie de antítese de Anna Freud, visto que, para Lacan, a mesma faz uso mesmo sem
saber da função simbólica no que tange os processos terapêuticos. A ressalva é feita no
decorrer de uma discussão em torno do clássico caso Dick se refere a intervenção no que
poderíamos chamar de eixo simbólico. De fato, Melaine Klein não se atém a centrar a análise
na sua relação com Dick, mas se orienta através da posição que o sujeito ocupa diante dos
objetos que, pelo menos no início, são qualitativamente pobres, ou seja, os vínculos com
outras pessoas são difíceis de se formar.
Lacan (1953-1954) argumenta que o progresso clínico de Dick se dá através da vivaz
intervenção simbólica que produz um alargamento das relações de objeto. É como se, pela
incapacidade de articular um espaço simbólico que estruturasse suas relações com os conflitos
Edípicos, que não apenas vinculam temas sobre a sexualidade, mas também leis e histórias
familiares que envolvem uma política da significação, Dick possuiria uma série de
dificuldades para a formação de laços sociais. Tais dificuldades foram amenizadas a partir do
momento que Melaine Klein interpretou os brinquedos de Dick como representantes do Pai e
da Mãe, inserindo-os num mundo de troca simbólica. Temos aqui o ponto de Arquimedes que
Lacan quer introduzir: uma experiência que privilegie o imaginário só acarretaria mais
problemas, alienando o paciente a um tratamento moralizante, contudo uma clínica que
entende o funcionamento simbólico só tem a ganhar, pois resgataria momentos históricos
fundamentais que podem estar estagnando ou limitando as possibilidades de modificação dos
sintomas.
Entretanto, para Lacan (1953-1954) não se trata apenas de valorizar uma categoria da
experiência em detrimento de outra, ao contrário, é de uma correlação ou interdependência
entre os registros Simbólico, Imaginário e Real que o método analítico pode provar sua
relevância. Assim, é na metade do seminário I que as definições e o funcionamento sincrônico
das três categorias serão expostos. Acompanhemos a essência dos argumentos lacanianos para
entendermos sobre as modalidades de ação analítica subsidiada pelo método composto pelo
simbólico, imaginário e real.
Lacan (1953-1954) apresenta o famoso modelo óptico que objetiva ilustrar como o
método analítico, que ilustra as interações entre os planos simbólico, imaginário e real, é
capaz de produzir novos fenômenos e, principalmente, processos de transformação que estão
sempre em jogo na experiência. O modelo óptico funciona da seguinte forma: o sujeito se
coloca numa posição especular com um parceiro ou semelhante que, como consequência,
constitui a imagem corporal do primeiro. Logo, o eu-corpo do sujeito se dá através desta
relação com o outro fundamentalmente narcísica.
Partindo desta premissa de que a imagem corporal do sujeito é co-dependente da
imagem idealizada do corpo do outro, Lacan (1953-1954) acaba por definir o simbólico como
o espelho, a lente ou vidro que de certa forma regula o acesso do sujeito aos objetos. O
conceito de real ainda nos parece incerto na forma como é definido, mas é possível algumas
divagações: (a) a primeira o real se confunde com a realidade; (b) a segunda o real pode ser
colocado como uma experiência de difícil acesso ou elaboração; (c) ou, pode ainda, utilizando
de maneira analógica algumas reflexões de Latour (2017), o real seria um referente no sentido
etimológico que a palavra possui em latim referre possui: “trazer de volta”. O real é aquilo
que designo com o dedo, fora do discurso, ou é aquilo que trago de volta para o interior do
discurso? (LATOUR, p. 48). Se o real pode adquirir esta ambiguidade é necessário seguirmos
as premissas que constroem a experiência analítica.
Assim, se no início Lacan colocava como central a técnica proposta por Freud, o
seminário I não se desenvolve exclusivamente em torno de categorias freudianas, no qual
Lacan (1953-1954) chega a criticar, como, por exemplo, a associação livre de ideias pois “esta
define muito mal o de que se trata - são as amarras da conversa com o outro que procuramos
cortar (...) fazendo com que o sujeito encontre-se numa certa mobilidade em relação a esse
universo de linguagem (p.230)”. Desta maneira ao propor o Simbólico, Imaginário e Real é
como se Lacan (1953-1954) estivesse redirecionando o debate em torno da técnica, mas,
sobretudo, os efeitos que o método analítico é capaz de produzir. Nos parece que o Simbólico,
Imaginário e Real ganham uma relevância a tal ponto que o método analítico que subsidia a
experiência é inconcebível sem ele. Nas próximas aulas do seminário I Lacan (1953-1954) se
preocupará em demonstrar a importância destes planos, articulando-os ao conceito de
transferência, a ideia é acompanhar e comentar a proposta lacaniana, visto que, é um projeto
de ciência do particular que o método tem de resolver.
Se entendemos que não há eu sem relação com o outro, isto é, as identificações
formadoras do fundamento da identidade são dependentes do vínculo que mantemos com a
alteridade, Lacan (1953-1954) começará a pontuar que a técnica não visa fortalecer tal
vínculo imaginário. É neste laço que Lacan (1953-1954) situará inicialmente a transferência,
daí surge a ponderação sobre a posição do analista, na medida em que, o fortalecimento da
intersubjetividade imaginária ao mesmo tempo que promove a possibilidade do engajamento
do sujeito na análise e, desta forma, com o analista, também produz fenômenos como a
agressividade, amor e ódio. Pode-se deduzir os problemas terapêuticos que uma análise ligada
ao objetivo de fortalecer os vínculos imaginários acarretam: alienação do sujeito numa
imagem idealizada do outro.
Um incurso sobre o sentido de uma análise é no mínimo necessário para apreendermos
a lógica da metodologia que Lacan (1953-1954) emprega para transformar a “compreensão do
lugar existencial da experiência analítica e dos seus fins” (p.246). Logo, o avanço lacaniano
sobre o tema da experiência analítica começa a ganhar considerações claras e objetivas acerca
dos critérios do tratamento. Como se pode observar, o método analítico deve estar nas
antípodas do fortalecimento do eu, isto é, a psicanálise é uma prática importante para fazer
bascular e oscilar as identificações. Este processo é efetivado através da historicização
realizada pelo sujeito e propiciado pelo método.
É fundamental entender em que termos a história do sujeito comparece como um dos
pilares do método. É através do relato ou testemunho verbalizado que as alienações
determinadas por vínculos imaginários podem ser nomeados. A terminologia utilizada por
Lacan se refere ao (1) desconhecimento das imagens narcísicas do outro; (2) a capacidade de
que a palavra amordaçada possa surgir e operar (3) o reconhecimento capaz de, pelo menos,
apresentar o sentido mesmo do sintoma que é gerado pelos rígidos desconhecimentos
imaginários.
É bem importante salientar que as relações intersubjetivas são a grosso modo
modalidades de vínculos imaginários em que o desconhecimento das redes de determinações
do sofrimento e sintomas que acometem o sujeito devem ser manejadas com parcimônia pelos
motivos já elencados. Um método que valorize a intersubjetividade opera uma petrificação do
sujeito num objeto. Assim, é notório como o método analítico tenta amarrar a discussão
clínica (ao falar de agressividade das alienações imaginárias) com o debate mais voltado para
a epistemologia. “Todo conhecimento, para avançar, tem de objetivar partes que são
objetiváveis. Como progride uma análise? Senão pelas intervenções que impendem o sujeito a
se objetivar (…)” (p.268). De tal modo, o sujeito é aquilo que na análise não é objetivável, daí
todo percurso que Lacan desenha nas idas e vindas que as identificações sofrem. Das
basculações das identificações surge o sujeito como instância reativa e transformativa sem
qual a eficácia do tratamento que consista numa tomada de posição frente a determinações
pode não se efetivar.
Não obstante, se no início do seminário, Lacan (1953-1954) parece querer enfatizar o
método analítico em detrimento a noções técnicas é sobretudo na medida em que, estas
últimas, aparecem de maneira desconexas do contexto ou mesmo com a finalidade da
experiência analítica. É importante lembrar também que no decorrer do mesmo há uma crítica
bem pontual de Lacan a certas concepções de psicanálise que “flertam” com a psicologia
clássica, especialmente, aquelas mais associacionistas que dividem o psiquismo em partes
isoladas, como, por exemplo, separar a percepção, memória e linguagem.
A ênfase no método permite superar as dificuldades que a psicologia enfrenta, sem
recair em reducionismos e, como deveras enfatizado por Lacan (1953-1954), é a história do
sujeito que o método analítico deve colocar em primeiro plano. Esta premissa metodológica
não muda nas últimas aulas, mas será acrescida de questões ontológicas e epistemológicas.
Prosseguindo para o fechamento dessa primeira etapa, Lacan (1953-1954) se detém a
circunscrever a psicanálise a partir desses três campos sem muita parcimônia, o que em si é
uma tarefa de enorme dificuldade assim como resolver o problema da transferência na
técnica.
Se a função epistemológica dá o tom da difícil missão que a psicanálise possui quando
não se propõe a objetivar o sujeito (lembrar que este é um dos problemas cruciais das ciências
humanas que ou pendem para um subjetivismo mistificante ou um determinismo
mecanicista). O método deve estar atento ao problema epistemológico, porém operando a
partir do resgate das histórias que constituíram o sujeito e que o fixaram em certas posições,
de tal forma que a recuperação desses discursos desvela o sentido dos sintomas, desfazendo-
os. Já a ontologia, na qual Lacan debaterá o fundamento da realidade e do ser do sujeito que o
método freudiano inaugura, parece coincidir com as “dimensões do Simbólico, Imaginário e o
Real sem as quais não podemos distinguir nada na nossa experiência” (p.354).
Portanto, é através da transferência e sua complexidade – na medida em que uma
multiplicidade de afetos que perpassam o amor, ódio e ignorância são posto em frente ao
analista, por exemplo, não podem ser reduzidas a uma esfera como uma identificação
analisante e analista – que Lacan põe em marcha essas diversas reflexões que vão da
ontologia, epistemologia à metodologia. Para resumir: a transferência é a um só tempo um
fenômeno que engloba de forma geral categorias ontológicas, epistemológicas e
metodológicas e de maneira particular o simbólico, imaginário e real.
Desta forma, podemos observar que o problema a ser resolvido é grande: a ação
analítica bem como a transferência que estabelece as condições de possibilidade da análise
transcorre em vários eixos que Lacan (1953-1954), no momento, traça apenas algumas linhas
de força. Assim, a descrição lacaniana desses variedade de categorias pode ser interpretada da
seguinte forma: a psicanálise opera através da história concreta do sujeito, a partir do
momento que essa história é reconstruída, certos fatos e dilemas que num primeiro momento
eram desconhecidos passam ao âmbito do reconhecimento e, desta forma, as angústias e
sintomas se desfazem ou atenuam, visto que, os sentidos dos mesmos ao serem apreendidos
os desfazem.
O analista engaja o sujeito numa espécie de pesquisa da verdade com clara conotação
ontológica. A verdade em jogo está nos momentos de dúvida, incerteza, báscula que o sujeito
experiencia quando a imagem especular não responde do lugar que se imagina. Da questão
mais ontológica e até mesmo metafísica da verdade como equivocação de fenômenos
desconhecidos de sua vida, mas determinantes na organização das formas de sofrimento,
podem ser superadas desde que o analista consiga manejar as lentes através do qual o sujeito
se vê. Como na óptica, a maneira de posicionar o espelho determina o modo como me
reconheço ou sou enganado por um truque de especular, o analista estará não como um
parceiro especular, mas propiciará que o sujeito experimente as contradições em voga em suas
identificações.
Se no plano de fundo comparece a reflexão ontológica sobre a verdade e a realização
do ser que ela proporciona, no plano metodológico se refere ao modo e nas finalidades que a
análise se propõe, ou seja, é por não afiançar a relação intersubjetiva na qual o analista pode
ser convocado a identificar-se empaticamente, que analise pode cumprir uma finalidade mais
dialética. O que nos leva ao ponto epistemológico: o objetivo de uma psicanálise pode chegar
a uma despersonalização, categoria frequente quando se trata de transcrever fenômenos
primários da esquizofrenia, mas no contexto do seminário, conota a destituição das
identificações, a ideia lacaniana é aparentemente simples: não transformar o sujeito em
objeto, que é um problema não apenas da psiquiatria que desconsidera as significações dos
fenômenos patológicos, mas da psicologia que sem um projeto concreto acaba por
reintroduzir todo o tipo de misticismos.
Se tomarmos a perspectiva dos registros que estão mais firmados com a experiência,
as coisas se passam da seguinte maneira: os momentos de equivocação da verdade presente na
fala do sujeito acabam por ser valorizados pelo analista, sua atuação é simbólica no sentido de
que permite que as palavras amordaçadas (um outro nome para o recalcado freudiano)
desenlace o nó de significação que petrificou o sujeito em imagens idealizadas que estão
sempre em descompasso com o real. O tratamento visa uma experiência dialética, a atuação
simbólica do analista permite passar do desconhecimento de questões fundantes, para o
reconhecimento dos problemas e enigmas que o drama da vida humana se funda.
Destarte, tudo parece indicar que o diagnóstico lacaniano sobre a situação da
psicanálise em 1953-19547 necessita passar por uma profunda reconfiguração do campo. Cabe
notar que o processo metodológico em curso neste momento possui um curioso
desdobramento: o que guia o analista é o intricado percurso que circula entre
desconhecimentos, reconhecimentos e despersonalizações no qual o sujeito experimenta
através de sua história. Assim, a experiência analítica não é apenas uma tomada de posição
em relação às estruturas simbólicas que nos precedem e determinam, mas um dispositivo que
pode produzir momentos inesperados.
Caro leitor, como podemos notar O seminário I possui um investimento teórico de
grande magnitude no qual Lacan apenas desenhou algumas linhas possíveis de abordagens.
As discussões que perpassam os temas epistemológicos, ontológicos e metodológicos sem
contar demais conceitos como o Simbólico, Imaginário e Real não foi esgotada, pois uma
característica que podemos levantar como hipótese de leitura é a de que o método em Lacan
“trabalha pelo contrário”, isto é, não se trata de delimitarmos um objeto de intervenção,
abstraindo-o da realidade, mas produzir ambiguidades, incertezas e estranhamentos.
Esta questão de método é também não normativa no sentido de que a escuta analítica
privilegia as redes discursivas que se montam às vezes de formas imprevistas, fazendo com
que o psicanalista possa fazer uma espécie de mapeamento das queixas e das demandas que a
ele se endereçam (TOURINHO, 2019), implicando um outro modus operandi no que diz
respeito à relação entre causa e efeito, por exemplo, as narrativas do sofrimento do sujeito
realizadas através da “historicização” que o dispositivo clínico promove devem ser colocadas
em que polo? Esta questão é realmente complexa e de forma alguma é esgotada neste Os
escritos técnicos de Freud (1953-1954) É hora de passarmos para o próximo livro e
analisarmos quais serão os passos dados por Lacan.
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Não obstante há vários artigos publicados nos Escritos (1999) que objetivam aprofundar o
diagnóstico em torno da psicanálise de sua época.
PODER E MÉTODO: um delineamento
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Uma das grandes influências lacanianas é o teórico da estratégia e da guerra Clausewitz, entretanto, não é
nosso objetivo se deter nesta relação, para tal recomendamos o livro O Objeto em psicanálise: da análise
profana à construção do objeto a (2018) .
É de suma importância as considerações realizadas por Lacan (1999) visto
que seu diagnóstico essencial é a de que a interpretação não só do ponto de vista
conceitual, mas da experiência mesma que ela promove, pois a mesma vinha sendo
considerada um elemento senão secundário, mas tecnicamente em desuso,
acabando por ser substituída por práticas como conversações, confrontos e
conversas. Estas práticas por se prestarem a ambiguidades concernentes ao sentido
mesmo de seu uso cotidiano não parecem as mais indicadas a superarem ou
substituírem a interpretação, passando ao largo de um dos objetivos fundamentais
da psicanálise: a transmutação do sujeito.
Para que este objetivo aconteça é necessário que o analista preserve o lugar
do desejo, dito de outro modo, a falta que conota a suspensão de seu eu empírico e,
logo, a capacidade de não responder às demandas que lhes são interessadas.
Notemos que sustentar este lugar deve corroborar com o alerta lacaniano de que os
passos que são dados no transcorrer do tratamento estão vinculados a transferência
de onde o analista responde. Ao situar a possível continuidade entre demanda-
identificação-transferência, Lacan (1958/1999) que circunscrever um problema
clínico: a partir do momento em que o analista atende ou se identifica com a
demanda do analisante o processo transferencial pode desembocar nas paixões do
ser.