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Categorias de pessoas: objetivação massiva do sujeito

Em Ontologia Histórica (2009), observamos uma análise do filósofo canadense Ian


Hacking que pode condizer com um dos problemas levantados pelas considerações lacanianas
no Seminário I. Uma das questões a serem pensadas é em como novas maneiras de classificar
criam ou, ao mesmo tempo, eliminam possibilidades para ação. A ontologia tem sido
caracterizada como o estudo dos tipos mais gerais que existem no universo. Geralmente a
ênfase tem sido na demarcação: quais candidatos à existência realmente existem. (HACKING,
2009). É importante salientar os limites desse estudo ontológico, especialmente considerando
seus limites em decorrência de uma impossibilidade de universalização do ser. Devemos
refletir, dessa maneira, sobre quais possíveis impactos ontológicos do conhecimento atingem
o sujeito e em como os mesmos possuem influência na cristalização de identidades, as quais
podem somar etiologicamente na produção de sofrimento psíquico.

Um dos exemplos citados no capítulo Inventando Pessoas, é a análise frente à


perversão. Antes do século XXI a perversão não era uma doença que estava de alcateia a
natureza. Foi uma doença criada por um novo entendimento (funcional) da doença
(DAVIDSON, 2001, 24). Não precisamos nos deter apenas nessa questão, especialmente
considerando todo um acervo de modelos citados no decorrer do livro como a análise
numérica do suicídio em meados do século XIX, da prostituição, da vadiagem, da loucura e
do crime. Mudanças sociais possuem a tendência de criar novas categorias de pessoas,
Foucault já citava a dimensão de dar nomes, chamando-a de ‘’a constituição dos sujeitos’’.
Dessa forma, é possível ponderar quanto a invenção de pessoas pode estar ligada a ideia de
controle? A quem essas categorizações servem e como podem produzir sofrimento psíquico
para o sujeito?

O problema básico com algumas classificações de pessoas é que a identificação


objetiva de exemplos dos tipos de pessoas em questão perde de vista o que é importante a
respeito do tipo, e nos leva a pensar que uma estrada direta e simples está ao nosso alcance
(HACKING, 2013), o exemplo mais comum dessa objetivação excessiva é a patologização da
vida cotidiana fomentada pelos diagnósticos psiquiátricos. Considerando o que autores como
Fernando Freitas e Paulo Amarante colocam em pauta, como lidar com os impactos
científicos da confiabilidade e validade em um sistema de classificação de doenças mentais
que constrói socialmente suas próprias categorias de normal e patológico?
Ademais, o texto Acordei doente mental de Eliane Brum escancara uma realidade
complexa, um óbice que surge muito antes do imaginado. Michel Foucault nos tece essa
noção de forma historicizada desde a década de 70, quando o filósofo estrutura uma crítica ao
poder médico, "O nascimento da Medicina social" — os doentes tendem a perder "o direito
sobre o seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como
quiserem", e por conseguinte sua autonomia (Foucault, 1979, p.96). Podemos observar o
poder médico aliando-se ao poder político, gerando a arte do governo de pessoas e uma
docilização dos corpos através de discursos. O texto de Brum apresenta uma dissecação
precisa a respeito da chamada ‘’Bíblia da Psiquiatria’’, ou o DSM-5, o manual de
diagnósticos usados em quase todos os países ocidentais, o mesmo que possui um impacto
político imensurável. A edição é tão questionável que foi rechaçada até mesmo por aqueles os
quais costumavam participar de sua elaboração e defendiam o manual. Com a vida tornando-
se uma patologia e tudo o que é da vida tornando-se sintoma de uma doença mental, existem
maneiras de lidar com tais adversidades clínicas?

Em virtude do sentido de discurso e de como ele está ligado à construção das


identidades, podemos estender nossa análise até o campo da voz. Muito se usa o jargão de
cura pela fala no campo psicanalítico, mas pouco se observa estudos consistentes em direção à
noção da voz como ferramenta primordial para compreensão da dimensão de corpo e
linguagem. O discurso, na obra lacaniana, encontra-se indissociável da vigência do
inconsciente e ele não existe sem agente do discurso, ou, de maneira mais clara, sem o outro.
Somos atravessados pela fala e constituídos por ela, somos seres de linguagem. Devido a essa
condição de estruturação, o ser humano só sobrevive se conseguir contar com um Outro, o
qual, decodificando o sentido de seus apelos, vai permitir que se estabeleça um percurso na
direção da conquista da fala, e do pertencimento as relações familiares e sociais (MENDES,
2021). Mas é importante salientar que o discurso jamais pode ser reduzido à fala, ele carrega a
ideia de afetação. Assim, o problema o qual é expressado em decorrência das nossas reflexões
é o das identificações produtoras de sofrimento psíquico no sujeito e de como a psicanálise
pode atuar em relação a essa contrariedade.

Com efeito, o discurso implica num quantum de atividade e introduz uma concepção
de perda, o primeiro momento é baseado numa perda de si onde o sujeito se depara com
discursos promissores, seja de êxtase ou sentido ontológico, geralmente são suficientes para
garantir uma aderência a eles. A construção de identidades, estando totalmente atrelada ao
nosso laço social, abre espaço para a constituição da representação de sujeitos performáticos.
Então não nos deparamos mais apenas com pessoas, observamos o depressivo ou o ansioso
como reconhecimentos inquestionáveis. Essas categorias acabam, muitas vezes, reduzindo o
sujeito e, de maneira tão perspicaz quanto a própria ideologia, convencendo-os de uma
conformidade. O entrave reside, portanto, quando essa conformidade finda mascarando um
tormento profundo que não pode ser notado com facilidade em decorrência da
superidentificação com determinadas categorias.

Na obra Fundamentos da Técnica Psicanalítica do analista Bruce Fink, nos


defrontamos com pontuações interessantes acerca da práxis da psicanálise, de acordo com ele,
nossa maneira habitual de escuta é altamente narcisista e egocêntrica, pois relacionamos tudo
que a outra pessoa nos conta, com nós mesmos. Nos comparamos a eles, avaliamos se
tivemos experiências melhores ou piores, e avaliamos como suas histórias e seus
relacionamentos refletem em nós, se são bons, maus, amorosos, odiosos (FINK, 2015). Lacan
deixa para os psicanalistas um desafio, vocês serão capazes de viver a psicanálise com
experiência da língua? Por fim, o problema elencado é claro, como a psicanálise contribui
para lidarmos com as identidades produzidas pelas descrições psicopatológicas que geram
modos de sofrimento?

O MÉTODO EM JACQUES LACAN: Perspectivas do seminário 1

Como o próprio título já expressa, objetivo investigar conceitos, definições e/ou


elementos concernentes ao método psicanalítico tomando como o centro de discussões um
período específico da obra de Jacques Lacan, mais especificamente Os Escritos técnicos de
Freud.
A motivação deste artigo teórico1 está estritamente relacionada às problemáticas
experiências de psicólogos e psicanalistas em instituições de saúde e de assistência social. Há
uma consistente literatura analítica (Tourinho, 2002; Debieux, 2016; Junior & Dunker &
Pavon-Cuellar, 2019) que aponta para as dificuldades de método que o analista, por ventura,
possa vir a encontrar ao tentar circunscrever a sua ação e intervenção. É lugar como, por
exemplo, perguntar sobre o que faço quando faço psicanálise em contextos territoriais
diferentes daqueles classicamente estabelecidos? Quais são as modalidades, formas, atos e
1
Althusser, L. Sobre o trabalho teórico. 2. ed. Lisboa/São Paulo: Editorial Presença, s/d.
intervenções produzidas pela esfera psicanalítica quando tensionada pelo desamparo em
comunidades e populações que experimentam constantemente o descaso estatal, a violência
policial, a fome e a pobreza?
Foi a partir dessas questões que sentimos a necessidade de investigar e revisitar as
questões de método em Jacques Lacan, apostando que o mesmo poderia oferecer uma gama
de possibilidades teórico-metodológicas para a resolução de problemas em diversos settings
desde instituições, serviços e coletivos. A ideia é a de que esta pesquisa nos auxilie a cooperar
com o debate já em curso sobre as modalidades de intervenção do analista, a hipótese inicial é
a de que nortes metodológicos possam facilitar não só uma maior apropriação da psicanálise
lacaniana às “situações sociais limites”, mas delinear suas possíveis finalidades, objetivos e
quais tipos de problemas o analista é capaz de responder e resolver2. Trata-se de construir
respostas razoáveis e pontuais a partir de Lacan sobre o que fazer e não um escrutínio
epistemológico sobre o valor dos conceitos si.
O exame das questões metodológicas que permeiam o seminário 1 terá como
inspiração a análise historiográfica3 presente nos estudos de Foucault (1969/2013), Safatle
(2005) e Dunker (2011). Desta forma, a minha perspectiva é analisar a coreografia que as
“questões de método” adquirem no desenvolvimento dos Escritos técnicos de Freud.
Metaforicamente, posso dizer que nossa análise possui uma verticalidade visto que toma o
seminários de Lacan como fio condutor, mas também incorpora uma horizontalidade ao
introduzir autores da epistemologia e do campo lacaniano que promovessem um constante
diálogo entre psicanálise e a complexidade das atuações, intervenções e interpolações frente
as esferas sociais e políticas, pois tais teóricos nos ajudam a não recair na tentação de fazer da
pesquisa sobre o método em psicanálise uma espécie de manual dogmático no qual se
definiria as regras da “boa” psicanálise.

A partir do momento em que acompanhamos os primeiros seminários de Lacan uma


das questões fulcrais de sua pesquisa parece à primeira vista tecer de forma mais intensa
2
Pois, tanto nos cartéis (grupos organizados para o estudo e aprofundamento da teoria analítica) quanto nas
supervisões o que eu fazia no CREAS não era uma verdadeira clínica, mas a psicanálise aplicada. Me parecia um
completo contrassenso esta terminologia, pois além de ml estabelecida, nas entrelinhas acabava por valorizar um
tipo de tratamento, como se existisse um tratamento-padrão, normativo e disciplinar, da qual os outros seriam
pequenos variantes, suplementos, mas não a verdadeira análise.
3
Ao realizar uma análise histórica do método em Lacan três pontos devem ficar bem claros: a) queremos resistir
a ideia de uma evolução dos conceitos como se existisse um primeiro, segundo ou terceiro Lacan e que quanto
mais tardia, mais verdadeiro ou sábio é o autor; b) fazer uma leitura propriamente psicanalítica da psicanálise
seria imprudente e tautológico, visto que estamos questionando o método; c) a escolha mais diacrônica se deve
pela procura da simplicidade e de uma forma explícita para que os argumentos possam ser apresentados e
criticados.
algumas reflexões sobre método analítico, isto fica bem evidente se atentarmos para os títulos
do Seminário 1 e Seminário 24. Ao mesmo tempo que o movimento de retorno aos
argumentos cruciais de Freud são de inovação, isto acaba por trazer enriquecimentos
importantes no tocante ao cerne da teoria psicanalítica5.
O objetivo deste artigo é elaborar algumas respostas parciais sobre o que é o método
analítico em Lacan tomando como referência os Escritos técnicos de Freud (1953-
1954/1986), O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955/1985), As
psicoses (1955-1956/1988) As relações de objeto (1957-1958/1995). Queremos responder
mais precisamente quais são as linhas de força do método assim como quais conjuntos de
procedimentos, categorias e conceitos lhes são formadoras.

Método e despersonalização

Ao tomarmos o seminário I (1953-1954), o caminho a ser realizado por Lacan pode ser
entendido a partir de dois pontos:

(1) Apresentar as nuances da experiência analítica ao desenvolver uma reflexão em


torno do método, contrapondo a tendência em voga da época que podemos
circunscrever com o rótulo de pós-freudiano à sua interpretação da obra de Freud.

(2) A partir dos dados, fatos e evidências que a experiência analítica produz, entender
a complexa relação entre técnica e teoria antevendo um método de tratamento
eficaz, com fins e objetivos delineados.

Para que estas questões mais gerais, pois transcorrem a sua obra 6 como um todo,
possam adquirir um desenvolvimento plausível para psicanálise, Lacan começa a discussão
priorizando alguns temas centrais da experiência analítica neste momento: a historicidade do
sujeito e a importância de fundamentos metodológicos razoáveis para a psicanálise. Com isso
queremos enfatizar que no decorrer do Seminário I (1953-1954), pelo menos em nossa
4
Esta afirmação de modo algum quer significar que em textos, artigos e obras mais tardias a preocupação em
torno do método seja secundária ou incipiente. Apenas queremos ressaltar que a preocupação em torno da
técnica tem um tom de urgência.
5
Questão debatida por Foucault em O que é um Autor (1992). Aqui o Foucault faz referência ao retorno a Freud
como um tipo de leitura criativa, produzindo novos discursos.
6
No seminário 11 Lacan (1964/2003) reafirma este ponto ao afirmar que todo o seu ensino
tem seu mote no “concreto” da experiência analítica.
interpretação, são estes os principais motes que alimentam suas aulas. Naturalmente, não há
como investigarmos estes tópicos separadamente, pois Lacan as entrelaça sistematicamente,
fazendo com que uma, no tocante ao seu entendimento, dependa da articulação da outra.
A abertura do seminário I (1953-1954) enfatiza que a originalidade da experiência
analítica deve-se à inclusão de ações/intervenções/interpretações relacionadas à produção de
sentido. Ou seja, a prática psicanalítica ao valorizar a historicidade narrada pelo paciente,
acabaria por descobrir que as querelas e questões que estão presentes no decorrer de sua vida
estão entrelaçadas com uma história social que não se resume ao seu passado, mas está
atrelada a fatores que lhes são atuais. O método analítico ao tomar esta diretriz, deve ser
capaz de dar condições de intervenção que, neste momento, favoreceria o reconhecimento
deste emaranhado ou nós histórico que escapa ao sujeito.
Se Lacan realiza uma analogia entre o mestre zen e o analista já bastante conhecida, há
uma outra que promove os conceitos como facas, ou seja, para o analista se trata de dissecar o
material discursivo expresso pelo sujeito operando transformações. Aqui, temos que esperar
para apreender como Lacan apresentará a finalidade e eficácia que estas operações propõem.
Lacan é bem contundente sobre a importância do método, pois é em torno dele que
uma série de variáveis da experiência tomam forma e objetividade. Diferente de outras
modalidades de tratamento terapêutico, é a história do sujeito que pode vir a condicionar a
trajetória do tratamento, historicidade que se apresenta como desconhecida e mantém laços
com a construção sintomática do sujeito. O método analítico ao propor o resgate da palavra ou
história que escapa ao sujeito, resgate este sempre radicalmente particular na esfera da vida
concreta deste último, deve ser capaz de inaugurar uma modalidade de pesquisa sobre a
verdade do sujeito.
Este programa de pesquisa fundado pelo método surge como uma esperança de uma
ciência do particular no qual o assento será depositado não na verdade como referencial, mas
no processo e caminho decorrentes da experiência analítica. Este método analítico que se
sustenta na rememoração ou na experiência histórica não nos parece com as acepções
metodológicas que “recortam seu objeto”, ao contrário, a história permanece como uma massa
amorfa ainda não explicitada no qual o sujeito no transcorrer da análise pode associar
presente, passado e futuro. O discurso do sujeito possui uma gama de ramificações que não
são tolhidas pelo analista, pois os conceitos da psicanálise servem para suscitar nossa atenção
aos percursos tortuosos e confusos que as falas vão tomando.
Logo, fica patente a recusa lacaniana em separar clínica e pesquisa, experiência e
conceito, visto que todos devem ser costurados pelo método analítico que, pelo menos nas
aulas iniciais do seminário, se apresenta como um procedimento na qual o paciente é
“convidado” a elaborar a sua história concreta, cabendo ao analista valorizar os momentos de
lapsos, esquecimentos e desconhecimentos que faltam a esta história.
O avanço desta tese caminha se contrapondo a maneira como a psicanálise de seu
tempo preconizava a técnica. Sem entrarmos nos detalhe desta crítica já bastante elucidado
pelos comentadores de sua obra, trata-se de situar a última como aquela que promove para um
primeiro plano o tratamento moral que objetiva forçar o paciente a se adequar as
representações sociais de normalidade, dando-lhe um equilíbrio ou estabilidade a sua
identidade. Lacan (1953-1954) antagoniza com esta postura colocando a experiência analítica
como promotora da relação do sujeito consigo mesmo, introduzindo as significações
expressas pelos sintomas.
Todavia, a linha argumentativa de Lacan (1953-1954) procede nestes passos: (1) um
diagnóstico nada animador dos princípios da técnica que chega a ser chamada de “estilo
analítico de inquisitorial” (p.45), (2) na medida em que, ao negar uma das principais
contribuições promovidas pela psicanálise freudiana, ou seja, os sentidos e os contextos dos
sintomas envoltos de suas temporalidades próprias, as concepções e técnicas acabam por
serem concebidas como independente da história do sujeito. Em suma, há o método analítico
que impõe prerrogativas e procedimentos à revelia da história do sujeito e um outro que Lacan
(1953-1954) parece querer resgatar, qual seja, os vínculos e os acasos que fazem parte de uma
vida podem produzir novos sentidos a partir de perdas de antigas significações. É nesse liame
muito tênue que o método opera.
Daí a complexidade que envolve o método lacaniano tem que responder, pois ele deve
especificar a psicanálise como uma ciência e técnica de tratamento, com o adicional de que o
paciente não deve ocupar o lugar de objeto, mas de sujeito, implicando que suas questões e
demandas sejam tomadas concretamente o que produzirá uma variedade de experiências
singulares que os métodos científicos clássicos tendem a desconsiderar.
O passo dado por Lacan (1953-1954) é apresentar a finalidade do método analítico de
forma mais específica no que tange ao campo psicanalítico em geral. O manejo das técnicas
como associação livre de ideias e a interpretação devem ser consideradas dentro do objetivo
de reconstrução da história do sujeito. Este processo visa restabelecer a verdade elidida no
discurso que surge através dos equívocos e incertezas, especialmente, nos momentos em que
as dúvidas sobre os acontecimentos vividos pelo paciente, por exemplo, se constituem como
materiais empíricos importantes e que, digamos assim, prenunciam a importância da palavra
plena em contraposição a palavra vazia.
De forma sucinta, pois este tema já foi bastante explorado, no contexto do seminário a
palavra plena deve ser compreendida como uma experiência ligada ao reconhecimento de
fragmentos importantes da história do sujeito capaz de realização da verdade, opondo-se à
palavra vazia em que pontos fundamentais para progresso da análise acabam por estagnar ou
entrar em inércia.
O que Lacan deu a entender nos pontos iniciais de seu seminário é que o método
histórico superaria o que os analistas apregoavam, mas incluindo-as. É como se as técnicas
desenvolvidas desde Freud pudessem ser agrupadas, com a precondição de ter a seguinte
finalidade metodológica: a psicanálise é um processo experimental que recompõe a história
do sujeito através de interpretações direcionadas para os momentos mais ambíguos do seu
discurso. A pergunta que devemos fazer é: quais são os efeitos deste método? Como a
experiência histórica do sujeito que o método parece explorar se encaixa no panorama
lacaniano?
Tudo indica que a experiência clínica que Lacan vem procurando circunscrever, com
todos os problemas que uma ciência do particular pode acarretar, deve ser entendida no bojo
de processos ligados ao tema do desconhecimento. Aqui, esta questão comparece ainda de
forma tímida, mas Lacan confere o seguinte tom: “a todo instante essa experiência consiste
em mostrar ao sujeito que ele diz mais do que pensa dizer.(p.77)”. Logo, esta experiência que
escapa às intenções conscientes são frutos de negações de momentos cruciais da vida do
sujeito, logo, permanecem ainda no plano do desconhecimento. É esta experiência que é
produzida pela discursividade do diálogo analítico que o método explora visando demarcar a
importância decisiva que as negações tiveram na vida do sujeito através do reconhecimento de
histórias e dramas esquecidos.
Até o momento, questões concernentes às categorias Simbólico, Imaginário e Real não
tinham feito a sua estreia, mas a partir da aula intitulada “Análise do eu e análise do discurso”,
a tríade começa a ser utilizada de maneira mais contundente e, sobretudo, como elementos
capazes de organizar dados da experiência. Isto fica ainda mais patente, visto que, quando
Lacan (1953-1954) se detém em modalidades de psicanálise que historicamente foram tidas
como rivais como no caso de Anna freud e Melaine Klein, o Simbólico, Imaginário, Real são
as entidades utilizadas para diferenciar ambos processos . Ou seja, ao seguir as trilhas de
Lacan, distintas formas de intervir e seus efeitos clínicos podem ser inferidos a partir de
diferentes formas de se trabalhar com as categorias Simbólico, Imaginário e Real. Anna
Freud se detém na análise das resistências, projetando e confundindo suas próprias intenções
com as do paciente. Logo, temos uma proposta caracterizada dentro do âmbito imaginário que
Lacan (1966/1999) desde meados de 1940 vinha alertando sobre os problemáticos efeitos das
abordagens clínicas que enfatizassem exclusivamente o reforço das identificações do paciente
com o comportamento idealizado do analista. Tais problemas que foram bem descritos em
Agressividade em psicanálise (1966/1999), no contexto do seminário I, é a incapacidade
mesma de apreender o discurso do sujeito e, em especial, na constituição de seu mundo com
seus discursos e leis.
Destarte, ao apresentar os problemas que experiências calcadas na relação
dual/imaginária podem acarretar no percurso da análise, Lacan (1953-1954) abre as portas
para delinear outra categoria: a função simbólica. A explanação que a mesma recebe se dá
através dos relatos de experiência de Melaine Klein. Diferente de Anna Freud que enfatizava
os aspectos e sentimentos que o analista sentia pelo paciente e que se tornou uma linha de
reflexão contundente e importante chamada de contra-transferência. Melaine klein se situa
numa espécie de antítese de Anna Freud, visto que, para Lacan, a mesma faz uso mesmo sem
saber da função simbólica no que tange os processos terapêuticos. A ressalva é feita no
decorrer de uma discussão em torno do clássico caso Dick se refere a intervenção no que
poderíamos chamar de eixo simbólico. De fato, Melaine Klein não se atém a centrar a análise
na sua relação com Dick, mas se orienta através da posição que o sujeito ocupa diante dos
objetos que, pelo menos no início, são qualitativamente pobres, ou seja, os vínculos com
outras pessoas são difíceis de se formar.
Lacan (1953-1954) argumenta que o progresso clínico de Dick se dá através da vivaz
intervenção simbólica que produz um alargamento das relações de objeto. É como se, pela
incapacidade de articular um espaço simbólico que estruturasse suas relações com os conflitos
Edípicos, que não apenas vinculam temas sobre a sexualidade, mas também leis e histórias
familiares que envolvem uma política da significação, Dick possuiria uma série de
dificuldades para a formação de laços sociais. Tais dificuldades foram amenizadas a partir do
momento que Melaine Klein interpretou os brinquedos de Dick como representantes do Pai e
da Mãe, inserindo-os num mundo de troca simbólica. Temos aqui o ponto de Arquimedes que
Lacan quer introduzir: uma experiência que privilegie o imaginário só acarretaria mais
problemas, alienando o paciente a um tratamento moralizante, contudo uma clínica que
entende o funcionamento simbólico só tem a ganhar, pois resgataria momentos históricos
fundamentais que podem estar estagnando ou limitando as possibilidades de modificação dos
sintomas.
Entretanto, para Lacan (1953-1954) não se trata apenas de valorizar uma categoria da
experiência em detrimento de outra, ao contrário, é de uma correlação ou interdependência
entre os registros Simbólico, Imaginário e Real que o método analítico pode provar sua
relevância. Assim, é na metade do seminário I que as definições e o funcionamento sincrônico
das três categorias serão expostos. Acompanhemos a essência dos argumentos lacanianos para
entendermos sobre as modalidades de ação analítica subsidiada pelo método composto pelo
simbólico, imaginário e real.
Lacan (1953-1954) apresenta o famoso modelo óptico que objetiva ilustrar como o
método analítico, que ilustra as interações entre os planos simbólico, imaginário e real, é
capaz de produzir novos fenômenos e, principalmente, processos de transformação que estão
sempre em jogo na experiência. O modelo óptico funciona da seguinte forma: o sujeito se
coloca numa posição especular com um parceiro ou semelhante que, como consequência,
constitui a imagem corporal do primeiro. Logo, o eu-corpo do sujeito se dá através desta
relação com o outro fundamentalmente narcísica.
Partindo desta premissa de que a imagem corporal do sujeito é co-dependente da
imagem idealizada do corpo do outro, Lacan (1953-1954) acaba por definir o simbólico como
o espelho, a lente ou vidro que de certa forma regula o acesso do sujeito aos objetos. O
conceito de real ainda nos parece incerto na forma como é definido, mas é possível algumas
divagações: (a) a primeira o real se confunde com a realidade; (b) a segunda o real pode ser
colocado como uma experiência de difícil acesso ou elaboração; (c) ou, pode ainda, utilizando
de maneira analógica algumas reflexões de Latour (2017), o real seria um referente no sentido
etimológico que a palavra possui em latim referre possui: “trazer de volta”. O real é aquilo
que designo com o dedo, fora do discurso, ou é aquilo que trago de volta para o interior do
discurso? (LATOUR, p. 48). Se o real pode adquirir esta ambiguidade é necessário seguirmos
as premissas que constroem a experiência analítica.
Assim, se no início Lacan colocava como central a técnica proposta por Freud, o
seminário I não se desenvolve exclusivamente em torno de categorias freudianas, no qual
Lacan (1953-1954) chega a criticar, como, por exemplo, a associação livre de ideias pois “esta
define muito mal o de que se trata - são as amarras da conversa com o outro que procuramos
cortar (...) fazendo com que o sujeito encontre-se numa certa mobilidade em relação a esse
universo de linguagem (p.230)”. Desta maneira ao propor o Simbólico, Imaginário e Real é
como se Lacan (1953-1954) estivesse redirecionando o debate em torno da técnica, mas,
sobretudo, os efeitos que o método analítico é capaz de produzir. Nos parece que o Simbólico,
Imaginário e Real ganham uma relevância a tal ponto que o método analítico que subsidia a
experiência é inconcebível sem ele. Nas próximas aulas do seminário I Lacan (1953-1954) se
preocupará em demonstrar a importância destes planos, articulando-os ao conceito de
transferência, a ideia é acompanhar e comentar a proposta lacaniana, visto que, é um projeto
de ciência do particular que o método tem de resolver.
Se entendemos que não há eu sem relação com o outro, isto é, as identificações
formadoras do fundamento da identidade são dependentes do vínculo que mantemos com a
alteridade, Lacan (1953-1954) começará a pontuar que a técnica não visa fortalecer tal
vínculo imaginário. É neste laço que Lacan (1953-1954) situará inicialmente a transferência,
daí surge a ponderação sobre a posição do analista, na medida em que, o fortalecimento da
intersubjetividade imaginária ao mesmo tempo que promove a possibilidade do engajamento
do sujeito na análise e, desta forma, com o analista, também produz fenômenos como a
agressividade, amor e ódio. Pode-se deduzir os problemas terapêuticos que uma análise ligada
ao objetivo de fortalecer os vínculos imaginários acarretam: alienação do sujeito numa
imagem idealizada do outro.
Um incurso sobre o sentido de uma análise é no mínimo necessário para apreendermos
a lógica da metodologia que Lacan (1953-1954) emprega para transformar a “compreensão do
lugar existencial da experiência analítica e dos seus fins” (p.246). Logo, o avanço lacaniano
sobre o tema da experiência analítica começa a ganhar considerações claras e objetivas acerca
dos critérios do tratamento. Como se pode observar, o método analítico deve estar nas
antípodas do fortalecimento do eu, isto é, a psicanálise é uma prática importante para fazer
bascular e oscilar as identificações. Este processo é efetivado através da historicização
realizada pelo sujeito e propiciado pelo método.
É fundamental entender em que termos a história do sujeito comparece como um dos
pilares do método. É através do relato ou testemunho verbalizado que as alienações
determinadas por vínculos imaginários podem ser nomeados. A terminologia utilizada por
Lacan se refere ao (1) desconhecimento das imagens narcísicas do outro; (2) a capacidade de
que a palavra amordaçada possa surgir e operar (3) o reconhecimento capaz de, pelo menos,
apresentar o sentido mesmo do sintoma que é gerado pelos rígidos desconhecimentos
imaginários.
É bem importante salientar que as relações intersubjetivas são a grosso modo
modalidades de vínculos imaginários em que o desconhecimento das redes de determinações
do sofrimento e sintomas que acometem o sujeito devem ser manejadas com parcimônia pelos
motivos já elencados. Um método que valorize a intersubjetividade opera uma petrificação do
sujeito num objeto. Assim, é notório como o método analítico tenta amarrar a discussão
clínica (ao falar de agressividade das alienações imaginárias) com o debate mais voltado para
a epistemologia. “Todo conhecimento, para avançar, tem de objetivar partes que são
objetiváveis. Como progride uma análise? Senão pelas intervenções que impendem o sujeito a
se objetivar (…)” (p.268). De tal modo, o sujeito é aquilo que na análise não é objetivável, daí
todo percurso que Lacan desenha nas idas e vindas que as identificações sofrem. Das
basculações das identificações surge o sujeito como instância reativa e transformativa sem
qual a eficácia do tratamento que consista numa tomada de posição frente a determinações
pode não se efetivar.
Não obstante, se no início do seminário, Lacan (1953-1954) parece querer enfatizar o
método analítico em detrimento a noções técnicas é sobretudo na medida em que, estas
últimas, aparecem de maneira desconexas do contexto ou mesmo com a finalidade da
experiência analítica. É importante lembrar também que no decorrer do mesmo há uma crítica
bem pontual de Lacan a certas concepções de psicanálise que “flertam” com a psicologia
clássica, especialmente, aquelas mais associacionistas que dividem o psiquismo em partes
isoladas, como, por exemplo, separar a percepção, memória e linguagem.
A ênfase no método permite superar as dificuldades que a psicologia enfrenta, sem
recair em reducionismos e, como deveras enfatizado por Lacan (1953-1954), é a história do
sujeito que o método analítico deve colocar em primeiro plano. Esta premissa metodológica
não muda nas últimas aulas, mas será acrescida de questões ontológicas e epistemológicas.
Prosseguindo para o fechamento dessa primeira etapa, Lacan (1953-1954) se detém a
circunscrever a psicanálise a partir desses três campos sem muita parcimônia, o que em si é
uma tarefa de enorme dificuldade assim como resolver o problema da transferência na
técnica.
Se a função epistemológica dá o tom da difícil missão que a psicanálise possui quando
não se propõe a objetivar o sujeito (lembrar que este é um dos problemas cruciais das ciências
humanas que ou pendem para um subjetivismo mistificante ou um determinismo
mecanicista). O método deve estar atento ao problema epistemológico, porém operando a
partir do resgate das histórias que constituíram o sujeito e que o fixaram em certas posições,
de tal forma que a recuperação desses discursos desvela o sentido dos sintomas, desfazendo-
os. Já a ontologia, na qual Lacan debaterá o fundamento da realidade e do ser do sujeito que o
método freudiano inaugura, parece coincidir com as “dimensões do Simbólico, Imaginário e o
Real sem as quais não podemos distinguir nada na nossa experiência” (p.354).
Portanto, é através da transferência e sua complexidade – na medida em que uma
multiplicidade de afetos que perpassam o amor, ódio e ignorância são posto em frente ao
analista, por exemplo, não podem ser reduzidas a uma esfera como uma identificação
analisante e analista – que Lacan põe em marcha essas diversas reflexões que vão da
ontologia, epistemologia à metodologia. Para resumir: a transferência é a um só tempo um
fenômeno que engloba de forma geral categorias ontológicas, epistemológicas e
metodológicas e de maneira particular o simbólico, imaginário e real.
Desta forma, podemos observar que o problema a ser resolvido é grande: a ação
analítica bem como a transferência que estabelece as condições de possibilidade da análise
transcorre em vários eixos que Lacan (1953-1954), no momento, traça apenas algumas linhas
de força. Assim, a descrição lacaniana desses variedade de categorias pode ser interpretada da
seguinte forma: a psicanálise opera através da história concreta do sujeito, a partir do
momento que essa história é reconstruída, certos fatos e dilemas que num primeiro momento
eram desconhecidos passam ao âmbito do reconhecimento e, desta forma, as angústias e
sintomas se desfazem ou atenuam, visto que, os sentidos dos mesmos ao serem apreendidos
os desfazem.
O analista engaja o sujeito numa espécie de pesquisa da verdade com clara conotação
ontológica. A verdade em jogo está nos momentos de dúvida, incerteza, báscula que o sujeito
experiencia quando a imagem especular não responde do lugar que se imagina. Da questão
mais ontológica e até mesmo metafísica da verdade como equivocação de fenômenos
desconhecidos de sua vida, mas determinantes na organização das formas de sofrimento,
podem ser superadas desde que o analista consiga manejar as lentes através do qual o sujeito
se vê. Como na óptica, a maneira de posicionar o espelho determina o modo como me
reconheço ou sou enganado por um truque de especular, o analista estará não como um
parceiro especular, mas propiciará que o sujeito experimente as contradições em voga em suas
identificações.
Se no plano de fundo comparece a reflexão ontológica sobre a verdade e a realização
do ser que ela proporciona, no plano metodológico se refere ao modo e nas finalidades que a
análise se propõe, ou seja, é por não afiançar a relação intersubjetiva na qual o analista pode
ser convocado a identificar-se empaticamente, que analise pode cumprir uma finalidade mais
dialética. O que nos leva ao ponto epistemológico: o objetivo de uma psicanálise pode chegar
a uma despersonalização, categoria frequente quando se trata de transcrever fenômenos
primários da esquizofrenia, mas no contexto do seminário, conota a destituição das
identificações, a ideia lacaniana é aparentemente simples: não transformar o sujeito em
objeto, que é um problema não apenas da psiquiatria que desconsidera as significações dos
fenômenos patológicos, mas da psicologia que sem um projeto concreto acaba por
reintroduzir todo o tipo de misticismos.
Se tomarmos a perspectiva dos registros que estão mais firmados com a experiência,
as coisas se passam da seguinte maneira: os momentos de equivocação da verdade presente na
fala do sujeito acabam por ser valorizados pelo analista, sua atuação é simbólica no sentido de
que permite que as palavras amordaçadas (um outro nome para o recalcado freudiano)
desenlace o nó de significação que petrificou o sujeito em imagens idealizadas que estão
sempre em descompasso com o real. O tratamento visa uma experiência dialética, a atuação
simbólica do analista permite passar do desconhecimento de questões fundantes, para o
reconhecimento dos problemas e enigmas que o drama da vida humana se funda.
Destarte, tudo parece indicar que o diagnóstico lacaniano sobre a situação da
psicanálise em 1953-19547 necessita passar por uma profunda reconfiguração do campo. Cabe
notar que o processo metodológico em curso neste momento possui um curioso
desdobramento: o que guia o analista é o intricado percurso que circula entre
desconhecimentos, reconhecimentos e despersonalizações no qual o sujeito experimenta
através de sua história. Assim, a experiência analítica não é apenas uma tomada de posição
em relação às estruturas simbólicas que nos precedem e determinam, mas um dispositivo que
pode produzir momentos inesperados.
Caro leitor, como podemos notar O seminário I possui um investimento teórico de
grande magnitude no qual Lacan apenas desenhou algumas linhas possíveis de abordagens.
As discussões que perpassam os temas epistemológicos, ontológicos e metodológicos sem
contar demais conceitos como o Simbólico, Imaginário e Real não foi esgotada, pois uma
característica que podemos levantar como hipótese de leitura é a de que o método em Lacan
“trabalha pelo contrário”, isto é, não se trata de delimitarmos um objeto de intervenção,
abstraindo-o da realidade, mas produzir ambiguidades, incertezas e estranhamentos.
Esta questão de método é também não normativa no sentido de que a escuta analítica
privilegia as redes discursivas que se montam às vezes de formas imprevistas, fazendo com
que o psicanalista possa fazer uma espécie de mapeamento das queixas e das demandas que a
ele se endereçam (TOURINHO, 2019), implicando um outro modus operandi no que diz
respeito à relação entre causa e efeito, por exemplo, as narrativas do sofrimento do sujeito
realizadas através da “historicização” que o dispositivo clínico promove devem ser colocadas
em que polo? Esta questão é realmente complexa e de forma alguma é esgotada neste Os
escritos técnicos de Freud (1953-1954) É hora de passarmos para o próximo livro e
analisarmos quais serão os passos dados por Lacan.
7
Não obstante há vários artigos publicados nos Escritos (1999) que objetivam aprofundar o
diagnóstico em torno da psicanálise de sua época.
PODER E MÉTODO: um delineamento

O texto/conferência A direção do tratamento e os princípios de seu poder


(1999) de 1958 é um bom começo para avaliarmos como os desenvolvimentos
lacanianos em torno da função do significante, assim como dos registros Simbólico,
Imaginário e Real são postos em funcionamento a partir da necessidade de uma
teoria da experiência e da objetividade específica da análise. Todavia, se colocamos
assento na palavra começo, queremos dizer com isto que este artigo de Lacan
elabora algumas respostas e ilumina pontos conflitantes da prática analítica, mas
que serão apenas nos seminários onde o jogo será jogado. Por exemplo, Lacan se
dedica aqui a explorar três nuances da prática: a interpretação, transferência e ética
que concomitantemente respondem por temas que dão nome a objetos de
investigação em seus seminários: O desejo e sua interpretação, A ética da
psicanálise e a Transferência. De forma um pouco diferente ao que fizemos no
capítulo anterior no qual seguimos a cronologia da obra, aqui seguiremos A direção
do tratamento e, a partir do momento em que o tema específico de determinado
seminário é ressaltado iremos trazer o respectivo seminário. O intuito é apresentar
os avanços aos problemas colocados.

O início de A direção do tratamento não se reduz apenas a explicitar a crítica


lacaniana às concepções da psicanálise do ego já bem estabelecidas anteriormente,
mas se caracteriza em pôr em movimento a estrutura capaz de organizar a ação
analítica. Pois, a pergunta sobre quem é o analista é uma pergunta que só pode ser
delineada do ponto de vista teórico pela prática, ao mesmo tempo que inclui a
necessidade de pensarmos uma concepção de fato e evidência em psicanálise
subjacente a uma a teoria da objetividade, soma-se a isto a reflexão sobre a política
e o poder no contexto da direção do tratamento. Este último ponto é determinante
para Lacan, visto que entram no cálculo clínico do analista, ou seja, sempre que a
apreensão crítica de seu método fraqueja seja por dogmatismo, seja por uma recusa
aos conceitos fundamentais o exercício do poder, entendido como sugestão, acaba
por subsumir os objetivos da análise.
Entretanto, o poder de alienação que as práticas baseadas na cura pela
identificação de modelos sociais pode ser combatido através da política. Esta tensão
entre poder e política, uma dialeticamente oposta a outra é o fio de Ariadne que
Lacan quer nos conduzir. Logo, esta teoria da prática 8 estará subsidiada por três
campos.

O primeiro no qual vamos nos dedicar a examinar é a interpretação como


tática. Gostaríamos de frisar, desde logo, salta aos olhos o termo cunhado por Lacan
para destacar a especificidade desta categoria girará em torno da operação de
transmutação que possui uma dupla conotação no contexto de A direção do
tratamento: a) transmutação que modifica a simples palavras oferecidas pelo
analista em uma interpretação analítica propriamente dita; b) a capacidade de
efetuar a transmutação no sujeito ao mesmo tempo que evidencia o momento de
transformação.

Assim, podemos entender inicialmente a interpretação como um


procedimento situado a partir da fala do analista, responsável pelas prováveis
modificações que o método provê, mas, adquiri uma complexidade especial: é dela
que se deriva as provas, evidências e fatos das transmutações promovidas pela
experiência. Dito de outro modo, se há uma teoria da objetividade em psicanálise é
pela interpretação que podemos circunscrevê-la. Quanto a isto devemos fazer uma
ressalva: a objetividade aqui está articulada a capacidade de evidências das
transmutações do sujeito, não dizendo respeito ao objetivo ou finalidade analítica
que serão expostas mas a frente quando tomarmos especialmente a dimensão
política. É justamente em torno desta diferenciação que Lacan colocará a
interpretação como uma tática em que o analista possui uma maior liberdade
relativa, diga-se de passagem, quando comparada a transferência e ao ser do
analista, pois estas últimas serão compreendidas como as condições de
possibilidade para a interpretação.

Dito isto, examinemos mais detidamente como a função da interpretação


pleiteada por Lacan.

8
Uma das grandes influências lacanianas é o teórico da estratégia e da guerra Clausewitz, entretanto, não é
nosso objetivo se deter nesta relação, para tal recomendamos o livro O Objeto em psicanálise: da análise
profana à construção do objeto a (2018) .
É de suma importância as considerações realizadas por Lacan (1999) visto
que seu diagnóstico essencial é a de que a interpretação não só do ponto de vista
conceitual, mas da experiência mesma que ela promove, pois a mesma vinha sendo
considerada um elemento senão secundário, mas tecnicamente em desuso,
acabando por ser substituída por práticas como conversações, confrontos e
conversas. Estas práticas por se prestarem a ambiguidades concernentes ao sentido
mesmo de seu uso cotidiano não parecem as mais indicadas a superarem ou
substituírem a interpretação, passando ao largo de um dos objetivos fundamentais
da psicanálise: a transmutação do sujeito.

Aqui Lacan (1999) é contundente ao enlaçar a interpretação ao conceito de


significante, mas por qual motivo? A interpretação pautada pela categoria de
significante responde por uma dupla gama de problemas, a primeira de ordem
prática, a segunda concernente a estrutura da objetividade analítica.

Como Lacan (1999) vem argumentando que o lugar da interpretação analítica


se dá em promover transformações no sujeito. Daí dizer que a

interpretação, para decifrar a diacronia das repetições


inconsciente, deve introduzir na sincronia dos significantes que
nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução –
precisamente aquilo que a função do Outro permite ao
receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o
elemento faltante (p. 599).

Esta fórmula específica a racionalidade que dirige a lógica da interpretação: a


historicidade dos dramas, mitos e romances que são as condições de possibilidade
para a emergência do sujeito acabam por se repetir no discurso concreto. A
decifração desta narrativa se dá a partir do momento o analista nas questões atuais
do analisante elementos capazes de redimensionar o peso do Outro histórico em
sua vida, ao mesmo tempo que esta função é relativamente esvaziada no tocante a
sua determinação em sua subjetividade.

É fácil vislumbrar o quanto esta concepção parece atender a fins muito


discriminados e que nem todo processo ligado a diálogos e conversações tem como
resultado a interpretação analítica. Nota-se o quanto a interpretação atua como um
processo de tradução que objetiva recolocar as relações entre o sujeito e o Outro
com a finalidade de transmutação do sujeito que implica necessariamente uma
mudança em vínculos com a alteridade.

Contudo, o conceito de significante possui ainda uma outra conotação: ele é


responsável por ser o índice desta transformação. Ou seja, o analista, ao se servir
deste conceito, possuiria capacidade de captar o local onde o sujeito está
determinado e fixado em sua posição com o Outro que lhe é desconhecida, mas que
se repete a partir das formações do inconsciente. O conceito de significante,
portanto, mostra “onde age a interpretação” (p.599), seja propiciando atos
transformativos, seja evidenciando os momentos de assujeitamento. Se existe uma
problemática que o conceito de significante ataca é em torno da finalidade da
prática, mas também numa estilística da objetividade ao mostrar e evidenciar tanto a
dimensão temporal e espacial em que o sujeito possa estar petrificado.

Incide aqui a importância do conceito de significante como fundamento da


interpretação e, deste modo, a importância capital que a primeira redefine a
segunda, pois sem uma sólida delimitação incorreríamos na tendência em
apresentar toda e qualquer ação como interpretação perdendo assim sua eficácia e
seu sentido técnico-metodológico. É através do conceito de significante que as
operações em torno da modificação da posição do sujeito com o real. Ao fazer
referência a Dora e ao Homem dos Ratos, Lacan (1999) quer apontar para a
inversão das posições (p.602) do sujeito quanto ao mundo que o circunda são
essenciais para a eficácia analítica.

O conceito de significante ainda se mostra eficaz no sentido da reflexão em


torno do exercício do poder para a experiência analítica. Como Lacan (1999) oetiva
retirar a psicanálise do contexto das práticas de reeducação ou direção da
consciência que em seu fim acabam por veicular um discurso moral e sugestivo, a
interpretação não visa adaptar o sujeito a uma realidade complacente ou mesmo
conformá-lo a uma estrutura social, mas retificar ou mudar a posição do sujeito
aparece como índice que é o mesmo que sustenta a realidade de que se queixa,
queixa esta que a psicanálise descore como uma espécie de avatar do desejo. Daí
então que o princípio do poder analítico é não se servir do mesmo para atuar na
antítese da coerção ou violência simbólica que teria como consequência apagar o
lugar do desejo na experiência.

Deste modo, se Lacan (1958/1999) começa a reflexão sobre o lugar da


interpretação acabando por constatar a necessidade de fundamentar a mesma na
função do conceito de significante é para delimitar a necessidade de uma “outra
topologia (...) para não haver engano quanto ao lugar do desejo.

Voltando para A direção do tratamento (1958/1999), a transferência como


conceito estratégico que circunscreve e determina o lugar de ação do analista
também é pensada através do signo do poder. O poder que é exercido pelo analista
quando há o desconhecimento dos principais conceitos freudianos que organizam o
campo. A desconceitualização do método levaria a uma ação no qual o poder seria
substituído pelo ser, “fazendo com que seus meios, nomeadamente os da fala,
decaíam de sua eminência verídica” (p.618). Temos aqui uma fórmula que
estabelece relações entre questões ontológicas em torno do ser e da verdade,
questões metodológicas sobre a ação analítica e a economia política subjacente às
finalidades da prática. Será necessário entender e discutir a interlocução destes
temas heterodoxos numa primeira vista e viabilizar problemas que Lacan quer
resolver ou pelo menos encaminhar.

Assim, é deveras importante pontuar que existe a necessidade por parte de


Lacan (1999) em delinear alguns pontos concernente à ontologia e demanda
analítica antes de entrarmos propriamente no debate em torno da transferência, mas
por que isto acontece? A resposta pode ser buscada quando um outro conceito
entra em jogo: a identificação.

Invertemos um pouco o raciocínio lacaniano que parte do ser para a demanda


para ir da demanda para o ser objetivando com isto deixar mais evidente as
articulações teóricas por ele engendrado aqui. Deve-se entender a demanda como
uma espécie de pedido endereçado a um Outro, no caso o analista. Este pedido
pode conter inúmeras conotações que vão da busca pela felicidade a vontade de ser
analista, contudo, se tal pedido não for minorado, ouvido em sua especificidade e,
mais ainda, na relação que este pedido possui com outras demandas desconhecidas
pelo analisante até então, corre-se o risco da demanda acabar por condicionar o
sujeito a uma identificação com significantes oferecidos por parte do analista. E,
assim, aquilo que era demanda acaba por se transformar em identificação o que
estaria na contramão da proposta lacaniana da prática analítica. O analista através
de uma ação mal calculada responderia a esta demanda se identificando com ela e,
por fim, os objetivos analíticos estariam condicionados a uma prática de
psicoeducação.

É neste ponto que Lacan (1958/1999) começa a articular ou a enfatizar com


maior densidade a introdução do termo desejo e sua função na análise com o
sentido de demarcar as propriedades que determinam a prática e experiência
analítica. Assim, é necessário diante mão entendermos que a palavra desejo não
designa uma vontade ou expressa uma emoção individual, pelo contrário, se trata de
uma experiência ligada às gramáticas que circundam em determinado momento e
espaço as relações do sujeito com o Outro. Dito de outro modo, o que Lacan
(1958/1999) quer mostrar é que a experiência calcada na fala permite desdobrar o
quanto o sujeito é efeito do discurso, não podendo o mesmo ser o diretor consciente
do mesmo. Logo, se o desejo está articulado ao que o Outro diz, fazer com que o
sujeito assuma ou se reencontre com este desejo transformaria o tratamento
analítico num conjunto de aporias, pois seria retirar o sujeito de uma prisão
imaginária e alçá-lo numa petrificação simbólica. Pois “fazê-lo reencontrar-se nele
como desejante é o inverso de fazê-lo reconhecer-se ali como sujeito (...) O desejo
só faz sujeitar o que a análise subjetiva ”(p.629). Há, portanto, um descompasso ou
antinomia entre estes dois objetivos que Lacan (1958/1999) faz questão de ressaltar.

A subjetivação que a análise efetua acontece a partir do momento em que


compreendemos que o sujeito surge não como resposta ou significado ao desejo do
Outro, mas como questão e pergunta. A estrutura do desejo é um sistema complexo
que só pode ser apreendido dentro dos vínculos entre sujeito e Outro. O desejo
exprime este vínculo a partir do momento que o analisante demanda ao analista a
felicidade, cura ou ser analista por exemplo, contudo, são nos momentos mais
contraditórios, obscuros e “hiantes” de sua fala que a interpretação incide
produzindo momentos de desestabilização. Daí a proposta de subjetivar defendida
por Lacan (1958/1999) não deve ser compreendida no sentido de construir um
significado sobre a essência de cada desejo, mas como uma localização que nos
remete a uma instância espacial que é o sujeito no tempo evanescente e evasivo na
qual a questão sobre o desejo como desejo do Outro é posta. A interpretação é um
cálculo entre o vértice do sujeito e do Outro que incide e produz momentos de
transformação das diversas posições subjetivas. Ou seja, “é nessa questão que se
transforma o sujeito aqui mesmo” (p.632)

A posição do analisante é apreendida em função de sua relação com a


demanda, a do analista implica em sustentar este lugar de Outro, mas sob a
condição de ser o “lugar dessa falta” (p.633). Daí a diferença entre a falta-a-ser
entendida como lugar necessário para as perguntas e questionamentos essenciais
sobre as condições de sua vida são colocadas e as paixões do ser que são o lugar
do amor, ódio e ignorância. Enquanto o primeiro se baseia em sustentar um campo
em que indeterminações possam ser toleradas, na qual a demanda não é
respondida pura e simplesmente pelo desejo do próprio analista em ser amado, as
paixões do ser produzem o efeito contrário: o significado, o sentido e a alienação do
sujeito ao um Outro que tido como modelo de comportamento.

Para que este objetivo aconteça é necessário que o analista preserve o lugar
do desejo, dito de outro modo, a falta que conota a suspensão de seu eu empírico e,
logo, a capacidade de não responder às demandas que lhes são interessadas.
Notemos que sustentar este lugar deve corroborar com o alerta lacaniano de que os
passos que são dados no transcorrer do tratamento estão vinculados a transferência
de onde o analista responde. Ao situar a possível continuidade entre demanda-
identificação-transferência, Lacan (1958/1999) que circunscrever um problema
clínico: a partir do momento em que o analista atende ou se identifica com a
demanda do analisante o processo transferencial pode desembocar nas paixões do
ser.

Mostra-se a complexidade que o analista deve manejar a fim de evitar


resultados que desembocam na idealização e na agressividade. O desejo é este
termo essencial que deve evitar estes desdobramentos. A dialética entre desejo e
demanda é um horizonte necessário para a prática e, neste momento do ensino
lacaniano, mostra-se um condição sine qua non para tal. A direção do tratamento
visa uma manobra em torno do qual, para-além das identificações, o sujeito
apreenda os movimentos de ruptura, equivoca e surpresa que o processo analíco
produz, isto é, que ele se reconheça ali onde ele se sente ultrapassado no que ele
testemunha. Esta hiância ou surpresa se manifesta através da pergunta sobre o
desejo do Outro. A interpretação analítica de incidir neste momento e se
transformando em marca significante de mudança. Daí Lacan (1958/1999) afirmar
que a letra do desejo são determinadas por redes, ou seja, o desejo é uma
sequência que envolve muitas trajetórias que são delineadas pelos desfiladeiros
metonímicos do significante, não possuindo uma positividade, mas uma historicidade
que pode via interpretação ser localizada de forma evanescente.

Assim, o significante, ou melhor, a estrutura significante ocupa um plano


fundamental não como metáfora da clínica (SIMANKE, 2002), mas como um
sistema teórico capaz de englobar uma lógica da ação analítica e também como um
índice capaz de demonstrar o momento de transformação do sujeito.

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