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EXPERIÊNCIA EMOCIONAL: MATRIZ DA PRÁTICA E DAS TEORIAS


PSICANALÍTICAS1

Julio frochtengarten2

Como nós já sabemos, o conhecimento nas Ciências – e talvez, da mesma forma,


as Artes –, nascem com a finalidade de preencher necessidades humanas. Assim,
os antigos egípcios, às voltas com questões de navegação e transporte pelo Nilo,
criaram e, depois, desenvolveram o que veio a se tornar conhecido como
Geometria; necessidades posteriores dos cálculos poderem ser realizados de forma
independente da sensorialidade levaram ao desenvolvimento da Álgebra; ainda
dentro da Matemática, desenvolvimentos sucessivos foram se dando – expansão da
noção de infinito e das formas de espaço não euclidiano –, por rupturas ou em linha
com os anteriores, levando à criação de novas matemáticas. De forma similar, a
Psicanálise também nasceu das necessidades de se tratar sofrimentos humanos
que a Medicina não dava conta; nasceu, então, como prática experimental e como
ramo daquela. Observações e reflexões sobre as experiências que transcorriam
foram levando, gradualmente, à formação de conceitos que, à medida que se
desenvolviam, passaram a consolidar o corpo da Teoria Psicanalítica. Como criação
humana, esse corpo gerado não é inanimado; ao contrário, é um corpo vivo, que
respirando ares de mais experiências, as digere em abstrações progressivamente
mais elaboradas, adensando, deste modo, o amplo universo que, de modo bastante
simplificado – já que a denominação não carrega as nuances de suas cores – veio a
se chamar Psicanálise. Freud, no início de seu texto Os instintos e suas vicissitudes
(1915), assim apresenta o que pode ser compreendido como o seu projeto
epistemológico para as ciências de modo geral e, em particular, para a Psicanálise:
“O verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição dos
fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua
correlação”.

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Texto para Aula Inaugural do curso “A Experiência Emocional no Campo Psicanalítico: Teoria e Clínica” (2022-
2023) a ser realizada em 05/08/2023 na SBPSP.
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Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
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Dentro deste modelo se construiu a História da Psicanálise; e ela continua a ser


construída uma vez que Psicanálise continua a se expandir e transformar. Sabemos
que novas observações não se iniciam do nada: elas partem de um observador
comprometido com um arsenal de conceitos e conhecimentos valiosos, adquiridos e
assimilados. Continuo a citação anterior de Freud: “Mesmo na fase de descrição
não é possível evitar [grifo meu] que se apliquem certas ideias abstratas ao
material manipulado, ideias provenientes daqui e dali, mas por certo não apenas
das novas observações... [Aquelas] Devem, de início, possuir necessariamente
certo grau de indefinição...”. O conhecimento se inicia com a experiência, porém
nem todo ele brota da própria experiência.

Não são possíveis observações ingênuas: cada um de nós incorpora – ao longo de


sua formação, estudos e experiências em análise –, conceitos e teorias que vão lhe
fazendo sentido. Destaco a menção de Freud ao “grau de indefinição” que as ideias
abstratas (teorias) têm na observação das novas experiências que irão se
passando. É justamente este grau de indefinição que me leva a uma distinção entre
um trabalho psicanalítico apoiado na observação de experiências emocionais
presentes na relação analista – analisando e um trabalho psicanalítico apoiado nas
teorias adotadas pelo psicanalista. As duas formas de atividade psicanalítica se
opõem, na medida que uma delas prioriza o sujeito e o momento clínico único,
singular, ao passo que a outra prioriza o que é universal, aquilo que se aplica ao
humano em geral. Usando como referência as ideias de Bion, a distinção que faço é
quanto à possibilidade do analista estar aberto para um contato emocional com o
analisando no cotidiano analítico ou procurar compreender o analisando através das
teorias de seu acervo pessoal. A esta altura, já deixei claro que considero que o
contato com a experiência emocional não se faz de forma ingênua; ao contrário,
está sempre atravessado pelos conceitos e as teorias conhecidas. “Estar
atravessado” difere de concepções tamponarem, e desse modo neutralizarem, o
frescor das experiências atuais. No meu modo de ver, o risco em procurar
compreender a clínica pelas teorias consagradas na Psicanálise pode levar o
analista a “descobrir” o que ele já sabe, conferindo às experiências o que, de fato, já
está incorporado em suas próprias ideias: pode acabar havendo uma progressiva
calcificação da experiência psicanalítica, em vez da clínica conduzir à investigação.
O desafio para o analista é como tornar o seu cotidiano clínico uma oportunidade
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para, usando suas teorias como pré-concepções, redescobri-las nas experiências,


tornando-as vitalizadas; ou, em momentos raros, formular alguma nova teorização;
ou, até mesmo, abandonar algumas teorias.

É muito difícil para o psicanalista praticante avaliar seu próprio trabalho. Assim, essa
tentativa de distinguir, ainda que grosseiramente, o modo de abordagem clínica
pode ajudar para pensarmos, refletirmos e avaliarmos nosso trabalho.

O contato com a experiência emocional na sessão não nos brinda com ideias claras
e compreensão direta e globalizante; ao contrário, ele é fonte de angústia para o
analista, uma vez que se perde a camada protetora que a tudo confere sentido e faz
compreender.

Nenhum de nós escapa do hábito de substituir o que não entendemos pelo que
podemos entender, o que traz, na prática, um borramento na divisão que fiz entre
nos servirmos de teorias estabelecidas para decodificar o que se passa na clínica,
ou nos expormos a experiências emocionais, de dimensões infinitas e
incognoscíveis, e ousar formar ideias transitivas – passíveis, portanto de serem
abandonadas – que permitem construir pensamentos, matrizes de novas
teorizações.

Em 2006, propus a um grupo que frequentava meus Seminários no Instituto de


Psicanálise, rastrearmos a presença e a lida com as emoções em vários textos
clássicos. Estava interessado em rastrear os prenúncios de um trabalho
psicanalítico apoiado nas emoções, como vemos hoje. Durante aquele ano tivemos
oportunidade de reler diversos artigos de Freud – desde “Sobre o mecanismo dos
fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, 1893; “Fragmento da análise de um
caso de histeria”, 1912; até trabalhos posteriores como “Análise terminável e
interminável” e “Construções em análise”, 1937. Também o artigo fundamental de
Melanie Klein, “Origens da transferência”, 1952. Pudemos ver como ambos os
autores tiveram que se haver com as emoções que surgiam nos analisandos: para
Freud, estas concorriam com o intuito da psicanálise, ou seja, a recordação de
eventos reprimidos e sua compreensão pela inserção nas cadeias mnêmicas; em
Klein, as emoções foram inicialmente compreendidas como equivalentes às
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relações do paciente com os objetos internos primários e, dessa forma, para ela
experiência emocional equivalia às transferências surgidas nas análises. Pareceu-
nos ir ficando claro, com a leitura nos Seminários, como a questão das emoções
transbordava as referências daqueles autores, rompendo limites previamente
pensados por eles e obrigando-os, e aos seus seguidores, ampliar o exame do que
se passava e o campo no qual pretendiam conduzir o trabalho. Foi por essa razão
que os seguidores de Klein passaram a conceituar e lidar com a noção de
Contratransferência enquanto instrumento para a continuação do trabalho, o que
levou à publicação dos clássicos textos de Paula Heinmann, “Sobre a
contratransferência” (1950); Hanna Segall, ”Contratransferência” (1977); Irma Pick,
“A reelaboração na contratransferência” (1985); Betty Joseph, “Transferência, a
situação total” (1983).

A leitura desses textos foi mostrando como as emoções vividas pelos analisandos
foram se impondo na clínica e tinham que ser levadas em conta, ainda que muitas
vezes o foram como obstáculo ao bom andamento do trabalho clínico, visto como
fundado em resistências e recordações. As emoções do analisando também
atingiam o analista que, naquele momento evolutivo e usando a noção de
contratransferência como ferramenta do trabalho, serviriam para compreender o
analisando, o legítimo foco do trabalho analítico. Ao analista ideal, caberia ficar livre
das emoções, mas o fato é que o campo de trabalho se ampliava. Expressão desta
ampliação, com novas indagações, pudemos encontrar nos textos de Meltzer,
“Desenvolvimento clínico” referentes às obras de Freud, Klein e Bion e em “Além da
consciência”, 1992; em Laertes Ferrão, “Avaliação da interpretação”, 1972.

Emoções do analista, presentes na prática analítica, se impuseram


progressivamente e foram sendo incorporadas ao corpo teórico e clínico da
Psicanálise, trazendo uma mudança radical: a substituição do analista neutro, do
analista como espelho, por um analista participante da relação analítica. Considero
a importância que a experiência emocional vem ganhando, há algumas décadas,
como ponto nodal de uma expansão da Psicanálise, e que talvez se constitua numa
mudança de paradigmas.
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Diversos autores contemporâneos como Winnicott, Green, Meltzer, Ogden, Bollas,


Ferro, Civitarese e Bion acabaram por conferir um papel essencial à experiência
emocional que se dá na análise. Dentre esses, foi Bion quem lhe deu maior ênfase
e a converteu em conceito organizador da relação analista – analisando, ao sugerir
que é a partir da experiência emocional que se abrem as possibilidades do
aprendizado e crescimento mentais. Como ele escreveu, “É necessário que o
analista considere, principalmente, o material sobre o qual tenha experiência direta,
ou seja, a experiência emocional das próprias sessões” 3 As experiências
emocionais estão sempre em curso, desde o nascimento ou até mesmo antes dele.
Em análise elas passam a acontecer na dupla analista – analisando, podendo vir a
ser organizadoras do desenvolvimento mental, uma vez que podem ser matrizes
para o pensamento. Assim, enquanto conceito, experiência emocional ultrapassa a
ideia de “apenas” sentir emoções. Cito Heiddeger, para quem “fazer uma
experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera
de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer. “Fazer”
significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à
medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto,
deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-
nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para
o outro ou no transcurso do tempo.”

A experiência emocional em psicanálise não se dá num terreno virgem de ideias: é


vivência que pareia e conjuga uma pré-concepção e seu preenchimento – adequado
ou inadequado – através de uma realização. A experiência em si mesma é inefável;
e o analista tolerante e continente, em contato com ela e suscetível de capacidade
negativa, procura se aproximar dela através de trabalho psíquico, até que algo lhe
faça sentido e possa trazer aprendizado por ação da capacidade de pensar. Esta
capacidade negativa corresponde à qualidade que o poeta Keats atribuiu a
Shakespeare: condição para aceitar a incerteza como algo belo e humano,
permanecendo entre incertezas, mistérios e dúvidas, sem buscar a qualquer preço
os fatos e a razão. Penso que a angústia que o trabalho com a experiência

3
Atenção e interpretação, p. 7.
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emocional suscita e a necessidade de desenvolvimento da capacidade negativa


demandam análise do próprio analista.

Com o valor que Bion lhe conferiu, a experiência emocional, como conceito e
prática, passou a envolver funções clássicas da psicanálise: desvendamento do
inconsciente, interpretação de sonhos, interpretação da psicosexualidade, análise
das angústias e defesas.

Para muitos de nós, que ocupamos o cenário psicanalítico, a experiência emocional


ganhou, progressivamente, uma posição central, em nossas práticas e elaborações
teóricas. Menciono alguns desdobramentos dessa posição.

1. Relação com o conhecimento organizado nas teorias

Conhecimento psicanalítico diz respeito àquilo que se sabe sobre o funcionamento


mental; o que não se sabe não está contemplado pelas teorias psicanalíticas e é um
vasto campo que se coloca diante de nós. O analista que se apega
demasiadamente às teorias que conhece – não me refiro à quantidade delas, mas o
grau de apego a elas – não pode aprender, não pode absorver nada a mais no que
se apresenta. Colocando em outras palavras, sua memória das teorias evocadas lhe
dá firmeza, força, saber e poder, mas, por outro, impede o surgimento de novos
pensamentos com qualidade de sonhos - aqueles que surgem na evolução da
observação paciente e participante. Voltados para aprender com a experiência
emocional na sessão, quanto mais se caminha, mais se tem para investigar e
conhecer.

Quando se tem contato com as experiências emocionais que surgem, evidencia-se


o mistério da vida mental: o pensamento explicativo dos fatos absolutos das
sessões deixa de ser satisfatório. Em vez disso, uma nova parte da história se
apresenta na sala de análise e se instala na vida. Se esta não se apresenta com a
clareza das teorias estabelecidas, por outro lado pode trazer alguma riqueza de
detalhes e nuances alcançados se estamos afastados da luz iluminadora, a qual por
vezes pode ofuscar. Só o mistério pode estimular a criação, ainda que sejam
pequenos os lampejos de pensamento criativo. “O problema é como permitir ao
germe de uma ideia, ou ao germe de uma interpretação, uma chance de se
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desenvolver”, mencionou Bion num de seus Seminários Italianos. Nesse sentido, a


observação participante em psicanálise – cito novamente Bion, em sua feliz
metáfora em que compara o instrumento da psicanálise à bengala do cego –: é o
que lhe permite saber algo do objeto que toca.4 Gradualmente, o próprio ato de
conhecer, a construção do conhecimento, vai ganhando maior importância frente
objeto do conhecimento.

O analista que trabalha com a experiência emocional não só ocupa o lugar de


observador, como também o de produtor da experiência emocional, nos termos
postos por Heidegger. Lugar difícil, ambíguo, ao qual só se pode aceder por
sondagem, apostando no impensado e guiado por poucas teorias que encarna e
que operam como pré-concepções – caracterização, na prática, sutil e fugaz. Afinal,
como poderia ser diferente? Como seria possível um conhecimento preciso, quando
estamos lidando com uma realidade psíquica impalpável e que se revela na
experiência enquanto se constrói? Como poderia ser diferente se dispomos de
conceitos finitos e estamos frente a um inconsciente infinito?

A análise do analista mostra-se aí, mais outra vez, necessária e indispensável para
ousar pensar e sentir em terreno tão movediço.

2. A importância do tempo presente

Experiência emocional funda uma ordem epistemológica (como conheço), uma


ordem ética (como me conduzo) e uma ordem estética (meu estilo) que se
expressam na possibilidade de, através de intuição analiticamente treinada,
aprender com ela. Ocorre aprendizado – para cada um e para a dupla analítica –
quando é possível perceber as sensações e emoções, ser tocado por elas e
transformar essa experiência emocional pelo emprego da função α; o que pertencia
à dimensão sensível ganha, daí, qualidade psíquica. Nesta nova condição, pode
haver integração à rede de associações e armazenamento de forma inconsciente,
afetando o modo como respondemos ao que nos acontece, dando ou não sentido

4
Bion, Seminários na Clínica Tavistok, 1990, p. 62, 2017
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ao que experimentamos – não a verdade das coisas, mas um saber subjetivo,


particular, inseparável de nós. Esse aprendizado é singular, adquirido no interior de
uma relação emocional presente e não leva à produção de conhecimentos sobre a
realidade última que permitiriam separar, com precisão, o que é real e o que são
suas representações – a não ser através do outro da relação. Temos experiências
presentes que nos constituem e nos transformam; e, ampliando algum
conhecimento, nos aproxima de uma realidade última. (Essas são noções que
podem ser, teoricamente, contempladas através das noções de transformações em
K (knowledge) e transformações em O (tornar-se uno com o outro, at-one-ment)).

Aprender com a experiência emocional se configura num permanente vir-a-ser. Em


seu texto “O aprender com a experiência”, Bion destaca esse aspecto quando
afirma que o vínculo de conhecimento (K, knowledge) não se refere a possuir e
deter conhecimentos acerca de alguém; insiste ele que este vínculo equivale à
relação psicanalítica, não sendo então um resultado, mas sim um empenho.

3. A relação desconhecido – conhecido

As teorias psicanalíticas podem ser vistas como continente dos conhecimentos


consistentes alcançados e mantidos até o momento, parte da verdade revelada e
formulada por muitos psicanalistas capazes que nos antecederam. Mais além delas,
o que a Psicanálise deve preservar são as possibilidades criativas de nós, pessoas
comuns, produzindo, a partir das experiências singulares, algumas faíscas de
“verdades” que, se tiverem permanência e durabilidade, podem se transformar em
teorias. Só assim pode haver – em cada sessão e na história da psicanálise – um
desenvolvimento progressivo “do infinito vazio e sem forma” para formulações
finitas, “saturadas”, que poderão vir a servir como novas pré-concepções.

Teorias consistentes, que nos ajudam a compreender os fenômenos psíquicos,


representam parte da força da Psicanálise, e que a mantém viva até aqui. É
justamente esta força que pode constituir-se na sua fraqueza, pois impregnadas no
analista, podem cercear sua liberdade e disposição mental para o que ele não
conhece, tamponando suas experiências emocionais próprias, genuínas e possíveis
matrizes de novos desenvolvimentos. Como afirmou o historiador Maurice Blanchot,
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“a resposta é a desgraça da questão”, podendo servir como sistema bem arrumado


de falsa compreensão deixando de lado fatos e intuições não compreendidas.

É de notar que, além do foco da análise ter se deslocado, gradualmente, da pessoa


do analisando para a relação analista – analisando, também passou a contemplar,
além das possibilidades de aprendizagem, conhecimento e tornar-se si-mesmo, as
possibilidades de distorção do pensamento através de criações alucinatórias não
compartilhadas entre analista e analisando.

Para finalizar esta apresentação, recorro à narrativa de Bion 5 sobre o sepultamento


do rei no Cemitério Real de Ur, cidade de Abraão, em 3.500 a. C. e a ação de
saqueadores, 500 anos depois. Expedições dos Museus Britânico e da Universidade
da Pensilvânia concluíram ter sido parte da cerimônia do sepultamento, uma
procissão de notáveis da corte, vestidos com suas joias e adereços, no interior da
cova especialmente preparada. Ali tomavam uma dose de narcótico, provavelmente
haxixe; aterrava-se, então, a cova, com o soberano e seus notáveis em posição. O
lugar escolhido para este cemitério era o depósito de lixo da cidade e a cerimônia
mágica santificaria o campo escolhido. Ficaria assim santificado o local escolhido e
encobertos os restos humanos ali depositados. Isso atraiu para o local o depósito de
outros detritos mortais, perdendo a sua virtude com o passar do tempo: o local ficou
vulgarizado e seu antigo uso, como depósito de lixo, foi retomado.

Não é possível sabermos o que estava no coração e na mente daqueles cortesãos


de Ur, quando caminhavam no interior da cova da morte, tomavam sua poção e
morriam. No entanto, sabe-se que quinhentos anos mais tarde, ladrões de
sepultura, ativos na Terceira Dinastia – ainda que temerosos de encontrar os
espíritos da Morte –, invadiram a tumba numa aventura em busca das joias
enterradas.

Os acompanhantes do enterro real, demonstrando o poder da Religião, do Ritual, da


Magia e das Drogas; e os saqueadores, demonstrando o poder do ganho material,
mas talvez merecendo alta posição no Panteão da Fama Científica, como
precursores da Ciência, por profanarem as tumbas e demonstrar, assim, coragem e

5
A Grade, Rev. Bras. Psicanál. v.7, n.1, p. 103-29, 1973.
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ousadia em romper o estabelecido. Bion sugere que os dois grupos, separados pelo
espaço de tempo de 500 anos, tomados em conjunto, representam a totalidade do
campo psicanalítico: um grupo de pessoas, com poderosa força emocional, cultural
e religiosa dirigindo-se, aparentemente sem temor, à morte certa; outro grupo, os
ladrões de tumbas, numa demonstração de coragem e esperança de riqueza,
disposto a suplantar os temores que perduravam, mesmo após o espaço de 500
anos. Podemos encarar nossa hierarquia religiosa como descendente espiritual dos
sacerdotes de Ur? Erigiríamos monumentos aos saqueadores das Tumbas Reais
como pioneiros da Ciência, de mentalidade tão científica como nossos cientistas?

Suponho que a verdadeira natureza da psicanálise está apoiada na curiosidade e no


interesse face ao mistério da mente, fonte da exploração, investigação, aprendizado
e conhecimento dos psicanalistas – não o decifrar a mente, não o universo do
discurso, mas a experiência emocional de transformação vivida na relação analítica.
Sejam as teorias que adotemos freudianas, kleinianas, winicotianas, bionianas, não
terão valor se não estivermos imersos e permeados por uma capacidade de nos
espantar frente ao que surge a cada momento das experiências emocionais e nossa
capacidade de fazer perguntas.

“Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareia a sala”

(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

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