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PSICANÁLISE CLÍNICA AVANÇADA

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Sumário
INTRODUÇÃO................................................................................................. 3

BALIZAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA ......................................................... 5

A INTENSIDADE ............................................................................................. 7

PULSÃO SEXUAL E AUTOPRESERVAÇÃO................................................ 10

O EU E O OBJETO ....................................................................................... 11

EROS E PULSÃO DE MORTE ...................................................................... 17

ATUALIDADE ................................................................................................ 27

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 30

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 32

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários,


em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-
Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo
serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação
no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua.
Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de
publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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INTRODUÇÃO

O que apresentamos a seguir será uma tomada em perspectiva dos aspectos


históricos e contemporâneos da psicanálise, seguida de uma visada no sentido de
sugerir algum cenário para o seu futuro. As duas primeiras considerações estarão sob
a dependência de nossa interpretação, pois sabe-se que a psicanálise caracteriza-se
por uma multiplicidade de abordagens que não se sintetiza facilmente (talvez jamais),
o que impõe necessários recortes para uma abordagem geral e em perspectiva.

Portanto, interpretação e recortes determinam o desenvolvimento deste texto.


Ainda sobre as duas primeiras tomadas do texto, não se fará um apanhado histórico
objetivo, melhor dizendo, não se fará e não se pretende fazer aqui uma história da
psicanálise. Não somos historiadores nem das ciências, sequer da psicanálise. Mas
temos, os psicanalistas, o hábito de recorrermos às origens de nossa disciplina e
prática, porque nos são inspiradoras. A psicanálise passou por grandes mudanças,
cujos motivos são diversos e apoiam-se nos seus próprios avanços internos,
determinados pelos limites de sua técnica, de seu método, e pelas exigências
advindas do mundo onde se desenvolveu e desenvolve, com vistas à sua adaptação
e atendimento às demandas que lhe chegam.

Apesar das profundas mudanças, as origens da psicanálise marcam a índole


de sua teoria e clínica, uma vez que suas descobertas fundamentais lá se encontram,
quais sejam, adiantando, a descoberta e conhecimento do inconsciente e da
sexualidade como os fatores em torno dos quais se organizam as subjetividades.
Teoria do inconsciente e teoria pulsional, clínica do inconsciente, segundo o processo
da interpretação, e clínica da pulsão, segundo a atenção dada à economia psíquica,
são os marcos fundamentais da psicanálise e apoio de todo seu desenvolvimento (e,
por que não dizer, de seu progresso). Mesmo alterações que explicitamente não se
afinaram ao desenvolvimento freudiano – afastando-se das concepções do
inconsciente sistemático e da pulsão como o propulsor das estruturações psíquicas
nos humanos – partiram de Freud e em face crítica com ele se desenvolveram.

Até as concepções psicanalíticas que mais se distanciam das freudianas, como


a das relações de objetos, mantêm com elas referências críticas. Assim, iniciaremos
nossas discussões estabelecendo o sentido freudiano da psicanálise, estender-nos-

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emos em concepções após Freud, sejam freudianas ou não, buscando rapidamente
caracterizá-las, esclarecer suas motivações e delimitar seus pontos de inflexão.

Por fim, vamos sugerir alguns cenários para o futuro da psicanálise. Nesse
aspecto, não há feito para se olhar, mas sugestões a partir de avaliações do que
correntemente se dá. Com isso, não estaremos sujeitos ao erro de interpretações ou
à sua demasiada parcialidade. A questão será a de uma esperança que seja vã e que
somente o futuro avaliará. Estamos assim munidos de nossas desculpas e de alguma
introdução temática já realizada, da qual se pode averiguar sua índole.

. A psicanálise é o nome do trabalho de tratamento das neuroses. “Psicanálise”


é o nome de batismo desse trabalho, é o nome próprio de uma prática de tratamento
que teria alcançado desenvolvimentos inicialmente inimagináveis, já constatava seu
fundador. A partir de uma prática de tratamento, desenvolveu-se até alcançar uma
compreensão total dos homens e de seus destinos, tornando-se de importância para
a ciência e para a vida.

Maior alcance se pode verificar na psicanálise hoje, comparada com o que


Freud propôs, embora certo otimismo revolucionário da psicanálise se tenha
arrefecido um tanto em seus vários anos de história. Mas as artérias onde circulam o
sangue renovado e renovador da psicanálise foram e permanecem sendo clínicos.
Em sua prática, a psicanálise esbarrou-se com as críticas que motivaram o seu
desenvolvimento, suas mudanças, transformações e reviravoltas.

Desse modo, a teoria psicanalítica encontra seu sentido na clínica, seu lugar
de experiência e seu crivo, sem que possamos afirmar, ilesos, tratar-se a clínica da
aplicação da teoria. Embora esta se torne parcialmente autônoma, a ponto de se
poder fazer da psicanálise uma filosofia (ou nela se inspirar para isso), o vetor de
construção da teoria psicanalítica é no geral inverso: do trabalho de psicanálise à
teoria. Assim, não fazemos distinção rígida entre a teoria e a prática. Assumimos a
formulação de que a teoria em psicanálise é teoria da clínica psicanalítica, é teoria de
sua prática, embora nem sempre seja teoria de sua técnica. Mas a teoria é a
formulação da compreensão clínica, mesmo em seus momentos mais abstratos, mais
metapsicológicos.

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BALIZAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

O título francamente provocativo deste subitem necessita ser matizado e


carrega toda a índole revolucionária da psicanálise de que falamos acima. De fato, a
psicanálise surge como negatividade, se confrontada com a longa tradição do
pensamento ocidental que, desde o seu nascimento na Grécia antiga, se apoia no
logos e em sua força (Vaz, 1974). Não há avaliação que não reconheça no logos
filosófico e depois científico toda a potência do desenvolvimento ocidental (para o
bem ou para o mal, pode-se acrescentar). A hegemonia do Ocidente nele se apoia; e
o Oriente que ensaia sua hegemonia, submeteu-se ao logos científico e tecnológico
e dele faz uso pleno. É verdade que assim não aconteceu simplesmente pela força
do pensamento científico.

A ele precisa-se acrescentar o modo de produção capitalista do qual se


conhecem os benefícios e as perdas para nossas vidas. Enfim, não é esse o nosso
tema, mas o é a psicanálise e seu aspecto negativo com respeito, grosso modo, ao
que se vinha desenvolvendo no pensamento ocidental hegemônico. A negatividade
que a psicanálise representa para o pensamento Ocidental, que a funda e se constitui
vetor de seu desenvolvimento e de sua riqueza e originalidade se expressa na teoria
do inconsciente e na teoria da sexualidade. Pois, então, tomado o inconsciente como
a base da neurose e esta, no sentido amplo e geral, como o que se caracteriza pelo
inconsciente, a obra angular que é a Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1987a)
justamente permite ampliar a presença do inconsciente em toda ação humana.

O inconsciente passa a ser o psíquico como tal, em oposição ao psíquico como


consciência e razão, que caracteriza a compreensão e a base do pensamento
Ocidental. Se todos somos inconscientes, no sentido sistemático, se a maior parte de
nossa vida mental se passa inconscientemente e no inconsciente, todos somos
“neuróticos”. Se nossas ações são derivadas do recalcado, todos somos, de modo
geral, neuróticos, e elas, as ações, são, em alguma medida, sintomáticas, o que
justifica a consideração da psicopatologia presente na vida cotidiana (Freud,
1901/1989h). A natureza inconsciente do psiquismo é um dos fatores que trouxeram
para a psicanálise o seu sentido revolucionário, no que diz respeito ao tratamento da
neurose, à compreensão do humano e da base do pensamento.

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Inconsciente e interpretação

À descoberta e afirmação do psiquismo inconsciente se associa a clínica


psicanalítica da interpretação. A interpretação se constitui no método de acesso ao
inconsciente recalcado, meio pelo qual o neurótico se desembaraça do sintoma.
Tendo Freud muito cedo se desvencilhado do objetivo de superação dos sintomas
dos neuróticos, rapidamente, já em 1905, estabelece que a cura dos sintomas se
constitui um ganho secundário do tratamento psicanalítico (Freud, 1905/1989c).

Significa com isso uma mudança profunda no método que Freud desenvolvia
no fim do séc. XIX, qual seja, o método catártico, associado à análise da memória
recalcada, método este que havia sido estabelecido por Breuer (cf. Freud & Breuer,
1895/1987) e fartamente utilizado por Freud. Não mais se trata a neurose, mas o
próprio sujeito que não se deslindará do inconsciente. Sobre o inconsciente se busca
um conhecimento profundo, para que o indivíduo possa apoderar-se de si, ainda que
não de modo absoluto, de suas decisões, e assumir para si a responsabilidade de
seus desejos (por seu inconsciente, embora dele, ele escape).

Inicia-se um movimento de “etificação” (e.g., França, 1996; Katz, 1984; Kehl,


2002; Szasz, 1983), por assim dizer, da psicanálise e sua aproximação à
antropologia, sendo a ética de que se trata a do desejo. Mais que isso, estabeleceu-
se, com a interpretação como método da psicanálise, uma confiança com respeito à
linguagem na qual Lacan teria se apoiado (Kristeva, 1996) para recuperar a
psicanálise segundo seus eixos originários, que teria se perdido após Freud. Embora
esteja no próprio fundamento do psiquismo inconsciente a ideia da impossibilidade
de dissolução do inconsciente, o tratamento tem como horizonte teórico tal alcance,
mas um horizonte, ao qual, como acontece com o horizonte efetivo, não se chega.

A mudança técnica ocorrida foi profundamente coerente com o entendimento


que se alcançou na Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1987a), que estabeleceu
a não exclusividade neurótica do inconsciente. Somos todos inconscientes em nossos
desejos mais profundos e significativos, somente uma parte de nossos pensamentos
é consciente e deles pouco temos conhecimento; portanto, somos todos neuróticos
no sentido mais geral do termo. O modelo do sonho, que não se especializa somente
na proposta lacaniana, adquire, como o sugere Green (2003a), todo seu vigor para o
tratamento psicanalítico e, embora secundado por determinado período, retoma

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contemporaneamente seu lugar privilegiado na clínica psicanalítica e na
compreensão da constituição e estruturação do psiquismo, certamente com a
influência determinante da releitura de Freud proposta por Lacan.

A INTENSIDADE

Entretanto, nem somente de significado (de linguagem) vivem os homens,


embora seja essa uma das descobertas fundamentais da psicanálise freudiana. A
vivacidade do discurso ou da narrativa que propicia interpretação e realiza
interpretação nunca esteve fora da atenção de Freud, e nem se instalou na
preocupação psicanalítica de modo secundário. A intensidade da experiência e a
intensidade da ideia recalcada ou reprimida sempre estiveram na mira das
considerações freudianas, como elemento de recalque e como fator de tratamento.

Desde a primeira formulação do método do tratamento psicanalítico (Freud &


Breuer, 1895/1987), a expressão do afeto que acompanha a lembrança recalcada
torna-se a exigência e a condição para a dissolução do sintoma neurótico, é o método
de cura, como então se o entendia. Como elemento de recalque, será a ideia
insuportavelmente intensa o alvo do recalque, e sua intensidade deslocada
determinará o sintoma histérico, como se observa na mesma obra de Freud e Breuer.
Rapidamente se apresenta, na clínica freudiana, a descoberta da origem da
insuportável intensidade afetiva, qual seja, a experiência sexual prematura,
impossível de ser elaborada ou significada. Prematuridade que resistiu à
compreensão circunstancial e mostrou-se ser a regra da experiência sexual, como
veremos a seguir.

Elabora-se, no período de 1895 a 1905, o que se constitui o segundo pilar do


edifício psicanalítico, qual seja, a teoria da sexualidade. Essa teoria, apresentada em
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1989j), constitui-se,
inicialmente, como ensaios, como uma abordagem hesitante de Freud sobre a força
determinante mais radical do desenvolvimento psíquico. A partir desse livro, a
sexualidade é elevada ao conceito, e assim permanece, de sexualidade infantil.

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Esta não designa simplesmente a sexualidade presente na infância, nem a
sexualidade presente na experiência sexual infantil. “Sexualidade infantil” deve ser
tratada como o conceito de sexualidade na psicanálise. Ela designa um modo de
sexualidade que está presente na infância, mas se prolonga, jamais sendo superada,
por toda a vida do sujeito. A sexualidade infantil é aquela que de maneira mais
evidente se manifesta no adulto perverso, e que no neurótico ou no normal-neurótico
permanece ativa em suas fantasias: mostra-se distorcida nos sintomas neuróticos e
mantém-se sob forte recalque no normal-neurótico.

A sexualidade infantil, mais precisamente, os representantes das experiências


sexuais infantis são os alvos do processo de recalcamento. A sexualidade é
compreendida, desde então, como prematura por natureza (ver Celes, 1994). A
sexualidade infantil, perversa-polimorfa, constitui-se a sexualidade por excelência,
sendo considerada a sexualidade originária. A sexualidade dita adulta e genital é
resultado de uma transformação da sexualidade originária, e dela conserva seus
traços.

De tal maneira que jamais o sujeito se liberta completamente da influência das


primeiras experiências sexuais, mesmo que essas vigorem de modo modificado, sob
a determinação dos diversos deslocamentos e condensações característicos das
representações recalcadas.

Somos todos “perversos” no sentido geral, pois a sexualidade humana é


polimorfa em sua origem e vigência, sendo seus delineamentos adquiridos ao longo
do desenvolvimento afetivo sexual. No entanto, não há no entendimento psicanalítico
inaugural uma concepção desenvolvimentista da sexualidade. O desenvolvimento de
que se trata é, segundo uma metáfora utilizada por Freud, como as larvas de um
vulcão: cada camada permanecendo intacta sob as camadas que se constituem de
erupções posteriores. Uma prospecção geotécnica as identificaria todas, como
acontece com a prospecção psíquica proporcionada pelo trabalho de psicanálise. As
representações das experiências sexuais infantis presentificam-se no trabalho de
análise.

Nessa perspectiva se fia o tratamento psicanalítico que, se não consegue


liquidar o inconsciente, tampouco desfará de maneira completa as marcas e as
repetições das experiências sexuais infantis, permanecendo estas mais ou menos

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integradas ao comportamento dos sujeitos. Certa disponibilidade do próprio desejo
(que sempre será infantil ou terá suas raízes na sexualidade infantil) talvez seja o
máximo que se pode esperar do tratamento psicanalítico.

Pontalis (1997) sugere que o que há de mais caracteristicamente originário na


psicanálise é precisamente a ideia de que o tempo não passa. Lá, por assim dizer, no
fundo do nosso inconsciente, permanecemos infantis como o fomos (Tanis, 1995;
Zavaroni, Viana & Celes, 2007), permanecemos impulsionados pelas marcas
indeléveis das experiências de satisfação que então gozamos. Na psicanálise
freudiana do modelo neurótico não há entendimento de que o “desenvolvimento”
psíquico se compromete por carência, mas por excesso. A experiência de prazer
muitas vezes repetidas, viciada, como o dirá Freud no caso Dora (Freud, 1905/1989c),
fixa-se, atraindo para si impulsos posteriores de satisfação.

No entanto, nem todo sintoma, nem todo sonho, nem todo ato falho pode ser
interpretado, dele não se pode achar o seu núcleo recalcado. Freud já havia indicado
em 1895 (Freud & Breuer, 1895/1987) que nem todo sintoma histérico se deixa
interpretar completamente. Na Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1987a), o
umbigo do sonho ocupa o lugar do impossível de ser deslindado; as cenas mais
primitivas somente poderão ser construídas pelo analista (Freud, 1937/1986a),
indicando-se, assim, o limite da interpretação como simples doação de sentido,
mesmo que dela ativamente participe o analisando no trabalho que lhe cabe de
associação livre.

O limite da análise e o limite do compreensível no humano anunciam-se em


Freud como fantasias originárias, que seriam algumas limitadas matrizes
filogeneticamente adquiridas que guiariam a constituição e a estruturação do
psiquismo. As inelutáveis fantasias originárias da cena primitiva, da sedução e da
castração seriam organizadores herdados — herdados pela linguagem, sugere
Forrester (1980) — da vida pulsional primitiva nos seres humanos: núcleos do
inconsciente.

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PULSÃO SEXUAL E AUTOPRESERVAÇÃO

À organização do inconsciente, além do recalcado propriamente dito —


constituído pelo recalque originário, pelas fantasias originárias —, associam-se as
elaborações sobre a força que impulsiona o sujeito em oposição ao otimismo inicial
da psicanálise. Inicialmente restrita à sexualidade como experiência vivida, que,
portanto, poderia adequadamente oferecer-se à interpretação, a compreensão da
psicanálise estendeu-se ao limite entre o psíquico e o orgânico com a noção de
pulsão. A sexualidade infantil rapidamente se caracterizou em Freud como pulsional,
como força incessante de origem somática que se apresenta como exigência de
trabalho psíquico.

O entendimento radical do psiquismo em conflito se constituiu inicialmente na


oposição entre a pulsão sexual e a pulsão de autopreservação. Forças pulsionais
sexuais, regidas pelo princípio do prazer, contra forças egoicas, também pulsionais,
regidas pelo princípio de realidade, constituem a primeira formulação do conflito
psíquico na psicanálise. As pulsões de autopreservação têm sentido além das de
forças internas que visam a manutenção e conservação da vida do organismo. Elas
são marcadas pelas exigências culturais, formatadas e modeladas pela educação,
pela consciência moral e pela vida civilizada. As pulsões de autopreservação
condensam tais aspectos ou pouco os discriminam. O eu é suposto, nas formulações
sob o império do modelo neurótico, um dado inquestionável, natural quase.

O modelo neurótico da compreensão do psiquismo e da clínica baseada na


interpretação, segundo o enquadre guiado pela regra fundamental da associação
livre, caracteriza o que se convencionou chamar “psicanálise padrão”. Convém
lembrar que designamos tal compreensão freudiana de “modelo neurótico” baseados
numa extensão, que talvez não seja totalmente apropriada, do conceito freudiano de
neurose. Green (2003a, 2003/2005) sugere dizer “modelo do sonho”, em referência
explícita à Interpretação dos sonhos, em contraposição ao modelo mãe-bebê, que a
frente retomaremos.

O enquadre clínico em questão, lembremos, é o que parcialmente se expressa


no senso comum com respeito à psicanálise: o divã, onde o analisando se reclina,
adotando a atitude a mais livre possível diante dos seus próprios pensamentos, que

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se requer que os diga em voz alta. Fora de sua vista, posiciona-se o analista em
atitude de atenção livremente flutuante, que é a atitude correspondente à associação
livre do analisando. A atenção do analista se completa com a neutralidade
benevolente que lhe permita permanecer na posição simultaneamente engajada e
distante (em reserva) com respeito ao analisando e seu discurso. A regra da
associação livre designa a atitude fundamental do analisando em análise.

Ela não corresponde diretamente à exigência de um discurso em associação


livre. Como bem o lembra Green (1983/1988), o discurso do analisando é sempre de
início um discurso narrativo; somente a escuta do analista, sua devida atenção
flutuante, trará a esse discurso o seu caráter associativo (Celes, 2005a). Jamais fez
parte do pensamento psicanalítico considerar o analisando como uma espécie de
máquina associativa, independente do analista, o qual, por seu turno, estaria na
posição de neutralidade e frieza absolutas.

Essa ideia corresponde a outro senso comum com respeito à psicanálise que
não se cumpre; é lícito se afirmar que tal ideia muito se faz presente no afã curativo
e otimista de psicanalistas iniciantes, que não teriam se submetido, eles mesmos, a
uma profunda análise pessoal. Percebe-se, desde então, para completarmos esse
pensamento sobre a clínica psicanalítica, por quais rigorosos caminhos, composto de
análise pessoal, estudos e supervisão, deve passar a formação do psicanalista.

O EU E O OBJETO

O modelo do conflito neurótico de que viemos falando encontra sua crítica na


reflexão sobre as psicoses, iniciada com o caso Schreber (Freud, 1911/1987b). Tal
crítica se estenderá na consideração sobre o narcisismo, estado inicial responsável
pela constituição e pelo desenvolvimento do eu. Sendo, então, o eu resultado do
investimento libidinal do corpo próprio, não haveria mais sentido pensar-se na pulsão
egoica de autopreservação que fosse independente da sexualidade. A pulsão de eu
se entende, então, como a libido retida no eu, sendo o conflito pulsional estabelecido
entre a pulsão de eu e a pulsão de objeto, ou seja, a libido que a partir do eu é dirigida
ao objeto.

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Trata-se agora de conflito da distribuição de libido, e regido pela forte oposição
entre o amor-próprio e o amor de objeto. O narcisismo se constitui fase intermediária
entre o autoerotismo (estado inicial da sexualidade presente desde o modelo
neurótico do psiquismo) e o investimento de objeto. O narcisismo, assim, constitui-se
como uma interposição, na perspectiva do desenvolvimento do psiquismo, que se
consolida com a formação do eu como instância psíquica. O eu, então, se torna
estruturalmente mediador entre o isso (fonte e origem das pulsões) e o mundo
externo.

No entanto, o mundo externo não será jamais líquido e certo, o que se encontra
fora do psiquismo, pois muito do mundo com que o eu se vê confrontado, se não todo,
se constitui de objetos internalizados. Sejam estes os objetos da identificação, com
os quais o eu se compõe de modo mais ou menos integrado, sejam os objetos da
identificação que se destacam do eu, constituindo os ideais, segundo Freud
(1923/1989b), e, mais precisamente, o superego, sejam, ainda, numa perspectiva
após Freud, objetos incorporados (Abraham & Törok, 1987) que assim têm vigência
no interior do psiquismo, mas como corpos estranhos ao eu. Os “objeto excitante” e
“objeto rejeitante”, em relação estreita com partes do ego como “ego libidinal” e
“sabotador interno”, respectivamente, como os distinguirá Fairbairn (1952/1999, p.
105), e os objetos concretos no interior do psiquismo (Bion, 1967/1994) bem ilustram
a independência dos objetos incorporados e sua ação de cisão sobre o ego.

Se usamos a neurose como base do modelo freudiano da sexualidade, a


economia da distribuição libidinal entre o eu e o objeto encontra seu apoio na
melancolia, porque nela se condensam os destinos da economia pulsional aliados
aos investimentos de objetos com os quais o eu se identifica, no mesmo passo em
que neles se aliena, num conflito de integração e cisão do eu, por meio dos processos
de identificação e incorporação. Por homogeneidade e paralelismo à elaboração que
viemos desenvolvendo, sugerimos nomear aqui “modelo melancólico” o entendimento
freudiano do conflito que agora se põe em evidência.

Em um dos muitos aspectos do pensamento de Green, o modelo melancólico


é explorado e conduzido adiante. A partir de uma retomada crítica do pensamento
freudiano, Green (1983/1988) busca discriminar modos do narcisismo que possam
dar sustentação à compreensão de formas psicopatológicas contemporâneas. O
tema da “mãe morta” (Green, 1983/1988) e da constituição dos limites psíquicos

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ganha relevo e é retomado por diversos psicanalistas contemporâneos (Kohon, 1999).
Entretanto, as psicopatologias contemporâneas muito são utilizadas, por diversos
autores e correntes em psicanálise, para fundamentar compreensões psicanalíticas
distintas das freudianas, como o abandono da preponderância do pulsional na
constituição subjetiva, e para colocar em segundo plano o Édipo como núcleo da
organização subjetiva.

Alguns autores utilizam-se da reflexão greeniana voltada para a consideração


da psicanálise em suas diversas facetas, para justificar seus afastamentos ou suas
aproximações de Freud. Green parece-nos mais rigoroso e cuidadoso, pois inspirado
em Freud, Winnicott e outras teorias do psiquismo, como a de Bion, busca uma
reflexão do conjunto da psicanálise, sem a preocupação de fazer uma grande síntese,
ademais inexecutável, objetivando aproximações críticas entre suas partes, a fim de
pensar, sem abandonar a teoria pulsional nem a das relações de objeto, uma
metapsicologia que sustente ou faça jus às novas demanda de psicanálise,
notadamente as advindas dos nomeados estados narcisistas, borderlines, casos
limites, enfim, estados psíquicos nos quais estariam em questão a constituição do
psiquismo, ele mesmo, e sua delimitação.

No entanto, os movimentos da psicanálise em direção ao que se convencionou


chamar de teoria das relações de objeto é anterior às reflexões de Green e mantêm-
se independentemente desse autor, embora por vezes se busque nele alguns apoios.
A teoria das relações de objeto, plural que seja, segundo um de seus mais
expressivos adeptos na atualidade (Ogden, 2002/2003), sustenta de modo geral a
compreensão de que estados muito primitivos da constituição do psiquismo são os
responsáveis por diferentes estruturas psíquicas não neuróticas: casos limites,
narcisistas, borderlines e psicóticos, mas também estados depressivos como os
caracteristicamente contemporâneos. É verdade que não se pode fazer tábula rasa
dessas diversas configurações psíquicas, pois tais configurações mantêm
características específicas e não encontram na psicanálise abordagens propriamente
uniformes. No entanto, não aprofundaremos tais desenvolvimentos, pois o foco de
nosso interesse neste momento não se refere aos quadros assim descritos ou
classificados.

Mais nos interessa é caracterizar de modo geral a teoria das relações de


objeto, o multifacetado movimento psicanalítico assim conhecido. Podemos

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completar que sustentam a ideia de que questões dos limites do psiquismo e da sua
constituição se evidenciam nas condições primitivas do desenvolvimento. E que
esses limites, sua formação ou má formação, estão na dependência direta das
relações primitivas com objetos primitivos (portanto, objetos não inteiros), relações
estas responsáveis pela constituição do si-mesmo (self).

Os limites entre o self e o não-self, entre o eu e o nãoeu, entre o psíquico e o


não-psíquico, entre o dentro e o fora, a experiência de discriminação com o objeto —
contrária à experiência da presença concreta dos objetos no interior do psiquismo de
que falamos — seriam os responsáveis pela boa diferenciação e constituição do self.
Tais limites estariam na dependência direta da qualidade das relações com os objetos
primitivos. Essas considerações são diferentes da concepção freudiana que credita à
pulsionalidade natural e característica dos humanos os destinos do psiquismo, de sua
estruturação, como defesas contra a pulsionalidade “selvagem”, originária e
incontrolável.

Para os teóricos das relações de objeto, o atendimento às necessidades


básicas do bebê para o seu desenvolvimento é que determina o destino da
subjetivação (desde a constituição de uma subjetividade diferenciada, uma
personalidade harmoniosa, não cindida, até o limite da inexistência do subjetivo como
tal). W. Ronald D. Fairbairn (1889-1964), certamente pioneiro da teoria das relações
de objeto (Fairbairn, 1952/1999)3 , sugerirá entender a constituição psíquica básica
como esquizoide, sendo a esquizoidia seu parâmetro de pensamento, numa
referência explícita à impossibilidade de integração efetiva do ego (no caso, entendido
como a personalidade total), pelo simples motivo de que nenhum objeto, por mais
dedicado que seja, poderá atender sem falhas e sem hesitações as necessidades
fundamentais do início da vida humana. Em Fairbairn se inspiram as reflexões sobre
as relações primitivas de objetos (Grotstein, 2000).

Encontram-se ecos do pensamento de Fairbairn em Winnicott, embora não


citados. Tendo em vista a forte influência de Donald W. Winnicott (1896-1971) nas
cogitações sobre as relações de objeto, e considerando sua atualidade
inquestionável, inclusive no Brasil, a observação da especificidade de seu
pensamento torna-se importante para marcar o desenvolvimento da clínica
psicanalítica. A obra winnicottiana tem sido bastante explorada e não tem sentido
tentar sua exposição neste espaço com qualquer ambição de abrangência ou mínimo

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de completude. Interessa-nos observar que distante da consideração singular dos
objetos primitivos, Winnicott (e. g. 1975/1978, 1979/1983) apreende o seu caráter
como de ambiente: nos momentos primitivos da existência, os objetos não são
objetos, mas ambiente em relação ao qual o bebê se encontra indiferenciado.

O desenvolvimento se dá, para o autor, como processo de diferenciação de


ambos, do bebê como self e do ambiente como objeto (ou como constituído de
objetos). O duplo movimento, de diferenciação do si mesmo em relação ao ambiente
e de diferenciação do ambiente como objetos, enseja praticamente todo o
pensamento de Winnicott, que o concebe complexo e paradoxal, no qual se constitui
o espaço potencial e transicional entre o bebê e o ambiente. No espaço potencial, o
objeto é criado e dado: o objeto que o bebê cria, ele o encontra dado pela mãe-
ambiente.

A adequação da mãe-ambiente (“mãe suficientemente boa”) na apresentação


dos objetos da necessidade do bebê, justo no momento da emergência da
necessidade, será para Winnicott (1975/1978) a condição para a constituição do
verdadeiro self, que se distingue do falso self, este que será uma organização
defensiva das invasões indevidas do meio: sua antecipação, sua inadequação para
atender à necessidade etc. Nessa medida, o pensamento de Winnicott também se
afasta da teoria pulsional e da responsabilização do Édipo como constitutivo e
estruturante da subjetividade, respectivamente.

A clínica winnicottiana e a que é nela inspirada têm por perspectiva a


reconstituição do self, para o que o ambiente da análise se faz de importância
evidente. O ambiente da análise, no qual se inclui o analista, é assim considerado
pela diferença com a importância capital que ganha o analista como objeto, seja do
investimento libidinal (para os freudianos), seja como anteparo das identificações
projetivas (para os psicanalistas de inspiração nas relações de objeto, numa vasta
gama de concepções, dos kleinianos aos bionianos).

O ambiente de análise dos winnicottianos tem o propósito de “reproduzir” o


ambiente primitivo materno. Nesse sentido, a técnica da análise se transforma para
uma psicanálise modificada, em que a regressão efetiva do analisando (não somente
a regressão tópica, temporal e formal aos processos mais primitivos do
funcionamento psíquico inconsciente), a sua regressão ao estado de dependência

15
absoluta (ou quase isso), se alia aos procedimentos de holding propiciados pelo
analista e o ambiente, para definir o enquadre de análise.

O holding de que se fala raramente é físico, como o observa Winnicott


(1979/1983), e nesse contexto a interpretação é entendida como forma de
acolhimento e compreensão (e não propriamente uma intervenção para dar sentido).
Tal situação de análise é chamada de modificada em relação à considerada
psicanálise padrão, de inspiração freudiana, que se baseia na livre associação e na
atenção livremente flutuante, entre analisando e analista, respectivamente, como
acima expusemos.

Afastamo-nos deliberadamente de Freud e chegamos a posições


psicanalíticas que não estão conforme sua obra e seus princípios. No entanto,
ensejados pela questão do narcisismo e das relações com os objetos, pudemos
introduzir o que se elaborou após Freud com respeito ao tema. É certo que o
narcisismo foi abandonado como estrutura fundamental e fundante dos processos de
subjetivação.

O tema do self ou da personalidade desenvolvido pelos psicanalistas das


teorias das relações de objeto permanece alheio ao conceito de narcisismo. O
narcisismo supõe, de fato, tal como Freud o pensou, um investimento inicial da libido
no corpo próprio que os teóricos das relações de objeto, grosso modo, somente
conseguem entender como partindo do objeto.

Essa discussão é muito longa e prenhe de filigranas que não podem aqui ser
desenvolvidos. No entanto, Green (1983/1988) teria, desde o início de sua obra, não
obstante sua aproximação de Winnicott e Bion, sugerido a retomada do narcisismo
como conceito fundamental, reaproximando-se do que acima chamamos de modelo
melancólico. Para a articulação do narcisismo com a melancolia, o autor busca
integrar a pulsão de morte.

16
EROS E PULSÃO DE MORTE

Embora a concepção do narcisismo tenha um lastro clínico – a partir das


experiências de análise, sejam elas fragmentadas nos neuróticos, sejam com base
na literatura, como no caso Schreber (Freud, 1911/1987b), sejam nas observações e
compreensões de Freud sobre a situação dos homens em seus ambientes culturais
(e. g. Freud, 1921/1989g) –, a postulação do monismo pulsional que decorre do
narcisismo e o entendimento do conflito transportado para as relações entre o eu e o
objeto parecem não se adequar completamente à experiência freudiana em sua
extensão.

No entanto, não será pelo caminho das relações de objeto, tal como
posteriormente se desenvolveram, que Freud seguiu. Quer dizer, toda a obra
posterior de Freud testemunha que sua concepção não se desenvolveu tendo por
suposto a importância quase exclusiva ou principal das relações de objeto sobre a
estruturação do psiquismo. Com isso, não devemos entender uma oposição de Freud
às considerações quanto ao eu e ao objeto, ele as mantém, mas segundo uma base
de entendimento pulsional.

De fato, o eu tomado como questão a ser desenvolvida pela psicanálise rendeu


muitos avanços às considerações freudianas, além das já indicadas para o
entendimento da melancolia e das psicoses de modo geral. A partir daí, Freud
(1923/1989b) alcançou formular o que se conhece por segunda tópica, uma
concepção estrutural do psiquismo, denominação dada pela psicanálise anglo-
saxônia à proposta da constituição psíquica em três instâncias: isso, eu e supereu (id,
ego e superego, caso se siga a tradição da tradução inglesa).

A segunda tópica: (a) introduz a relação do psiquismo com o mundo externo,


estando além da proposta da primeira tópica, cujo contato do psiquismo com o mundo
se daria, por hipótese, somente pela percepção, percepção esta que não é
distinguível da percepção das excitações advindas do interior do próprio corpo, pois
não haveria critério que as diferenciasse; (b) considera dois modos distintos e
qualificados de participação e presença do mundo externo no psiquismo, como o “eu”
e o “supereu”, diferentemente da consideração de que o mundo se presentifica no
psiquismo somente como cargas de excitações advindas da percepção; (c) possibilita

17
a efetiva compreensão das relações entre o sujeito e a cultura (ou civilização), como
relações internas ao processo de subjetivação, entranhadas na própria constituição e
definição do psiquismo, e não, consideradas somente com base em relações
externas; (d) possibilita pensar os aspectos da cisão do próprio eu no psiquismo, e
não somente a separação do psiquismo entre o consciente, pré-consciente e o
inconsciente; e (e) compreende os processos defensivos que resultam na cisão
egoica, portanto, além do recalque que separa o inconsciente do consciente, pré-
consciente. Enfim, os avanços são sobremaneira significativos para a apreensão dos
sujeitos não isolados, não considerados somente na perspectiva intrapsíquica, como
se diz, mas do sujeito havendo-se com o mundo nos seus mais variados aspectos.

No entanto, tais avanços não parecem atender completamente à experiência


freudiana, como já o dissemos, nem mesmo aos princípios nos quais a psicanálise se
funda. A mais aparente desatenção acontece com o inconsciente sistemático que
perde seu lugar como instância. Embora Freud (1923/1989b) tenha sugerido entender
o inconsciente como parte do isso (Id), o recalcado e as representações inconscientes
perdem, por assim dizer, seu lugar. Pode-se sugerir que o abandono desses aspectos
não traria prejuízo para a clínica psicanalítica – uma vez que se a pensa a partir do
modelo da melancolia; no entanto, o sentido das descobertas que sustentam a análise
padrão permanecerá esmaecido.

As experiências freudianas, por seu turno, continuam apontando para a


importância da consideração do inconsciente sistemático no entendimento do que
tange ao modelo neurótico: as neuroses propriamente ditas e as psicopatologias
cotidianas, os desejos inconscientes, a sexualidade infantil e os “normais”. Uma vez
que, nos quadros neuróticos, também se identificam questões com respeito ao
narcisismo e às relações com os objetos, isso sugere que não se deve abandonar
nem o modelo neurótico nem o melancólico para a compreensão dos processos de
subjetivação e para a clínica da psicanálise – um modelo de entendimento do
psiquismo não exclui o outro. Parece-nos epistemologicamente sem sentido separar
a psicanálise em duas. Entretanto, a importância das duas perspectivas não garante
a viabilidade de uma integração ou síntese entre elas.

A psicanálise, nesse aspecto, mimetiza o que trata, parece reafirmar em sua


teoria o princípio do inconsciente, aquele de que o tempo não passa. Os novos
desenvolvimentos, na constituição psíquica e na psicanálise, mantêm um paralelismo

18
de processos: o que uma vez aconteceu, não se perde, vigora, embora o faça de
modo distinto que em sua origem.

No desenvolvimento psíquico, o que uma vez se deu permanece fixado,


associado a recalques posteriormente realizados, e se manifesta na forma de retornos
do recalcado (sintomas, sonhos, atos falhos e o que mais for importante). No avanço
da psicanálise, em sua evolução, antigas formulações e achados não perdem seu
valor nem se integram de todo às novas formulações; vigoram parcialmente no que
se avança e permanecem podendo ser considerados em sua independência. Os
avanços da psicanálise não constituem sínteses teóricas e metodológicas que sejam
completas e suficientes.

A experiência freudiana também aponta para questões que não se resolvem


nem com o modelo neurótico nem com o melancólico. As experiências da compulsão
à repetição, atualizada na análise da transferência e de experiências como a da
reação terapêutica negativa, sugerem que Freud avance em outras considerações
mais radicais que as da estruturação do psiquismo e de sua composição. Freud aí
identifica um fator de princípio, justamente do princípio pulsional, além do psiquismo,
de algum modo fora de seu alcance pleno e alheio, parcialmente, pelo menos, ao seu
trabalho.

Trata-se da pulsão de morte, considerada como o princípio pulsional por


excelência, o mais pulsional da pulsão (Freud, 1920/1989e). À pulsão de morte foram
agregados variados entendimentos: princípio segundo o qual todo organismo busca
sua própria aniquilação; “desejo” de morte ou repouso absoluto do qual participa todo
ser vivo; tendência própria à qualquer satisfação pulsional que busca o aniquilamento
da excitação; tendência a zero; modo característico da libido desligada dos processos
inconscientes; oposição ou tendência à destruição de todo vínculo, contrário à pulsão
de vida (Eros) que busca a união cada vez mais abrangente do sujeito com os objetos
e o mundo; agressividade e destrutividade como tal.

Desde sua concepção como princípio o mais radical até a sua compreensão
fenomênica como agressividade, a pulsão de morte é tomada em conflito originário
com a pulsão de vida ou Eros. Eros une, a pulsão de morte visa desunir; Eros tende
à vinculação cada vez mais abrangente entre os homens e seus mundos, a pulsão de

19
morte visa destruir toda vinculação, toda formação comunitária, e tem por objetivo a
simples destrutividade e o aniquilamento.

Afirma-se que Freud era pessimista e que sua concepção do homem e do


humano assim o é. Se a consciência e a razão sempre ocuparam o lugar da
esperança e da salvação no mundo Ocidental, se é esta a sua tradição, a psicanálise
trouxe, inicialmente, uma desesperança quanto à possibilidade de domínio do que
não é racional, com as noções do inconsciente e da sexualidade guiada pelo princípio
do prazer. A pulsão de morte radicaliza o princípio pulsional. Ela também encontra
certo apoio na vivência freudiana da destrutividade sem regra e da experiência da
irracionalidade das guerras.

O horror da Primeira Guerra Mundial, na qual Freud perdeu um filho, e os maus


agouros com a Segunda Guerra Mundial, que obrigou ao exílio Freud e parte de sua
família, teriam contribuído – particularmente a primeira – para a afirmação do
pessimismo freudiano e trouxe elementos para a postulação da pulsão de morte. Mas
não se trata aí simplesmente de desilusão pessoal. As guerras mundiais fizeram
pensar na derrocada do sonho Ocidental da regulação e bem-estar, principalmente
se se considera a esperança depositada na ciência moderna que mostra, já em 1918,
sua enorme capacidade de controle da natureza e, talvez residisse aí a esperança,
das relações entre os homens.

A pulsão de morte contribui, então, para a compreensão justa das relações dos
sujeitos humanos entre si e com a cultura ou civilização, apontando o necessário
preço que se paga para a “confortável” existência em sociedade, para a participação
dos homens com valores comuns e para o somatório de suas ações em prol de todos.
Paga-se com a renúncia à satisfação pulsional, seja com a renúncia e o adiamento
da satisfação da pulsão sexual, seja com a internalização, mais uma vez, da pulsão
agressiva e da destrutividade para si mesmo — “o voltar-se contra a própria pessoa”,
destino pulsional que já fora anunciado por Freud (1915/1989i). O controle pulsional
é a regra da civilização.

Entretanto, a civilização, melhor para o caso será dizer, a cultura, também é o


que apresenta ao sujeito os objetos da sua satisfação: objetos sexuais e objetos para
a destrutividade. Assim, abre-se a perspectiva para a convivência fraterna, embora
necessariamente ela não se imponha, nem seja absoluta e completa (Freud,

20
1912/1988h); como também se abre a possibilidade do desvio da destrutividade para
o mundo externo (sob várias e diversas formas que não tenham por resultado a
destruição da vida), livrando o sujeito, ao menos parcialmente, de atitudes de
automortificações.

Seja a agressividade necessária à sexualidade, seja a agressividade na


conquista da natureza ou mesmo no progresso da ciência, ambas seriam formas da
canalização da pulsão de morte para fora do próprio sujeito, dentre muitas outras
formas. O benefício ou o malefício de tais saídas permanecerá com seus limites
flutuantes, a depender da intensidade de tais visadas. É que para Freud, e para a
psicanálise de modo geral, não há possibilidade de garantia ou de organização que
seja seguramente boa em todos os sentidos para o sujeito, para seus próximos e para
o mundo. A tensão é permanente e os diversos modos dessa relação são
compromissos estabelecidos entre as forças que aí atuam.

Na perspectiva da clínica psicanalítica, a pulsão de morte e Eros trouxeram,


cada uma a seu modo, possibilidades de apreensão e avanços significativos. Tais
avanços não significam um ganho imediato e objetivamente apreensível para a cura
psicanalítica. De fato, em certo sentido, a pulsão de morte expressa o pessimismo
com o tratamento psicanalítico e sua crise, mais uma delas. Clinicamente, a reação
terapêutica negativa e a impossibilidade da solução da transferência impuseram-se
como dificuldades severas ao tratamento.

A compulsão à repetição, que muito antes de ser uma conquista teórica


mostrou-se como fenômeno na clínica, trouxe a compreensão da força efetiva da
pulsão de morte no interior do psiquismo. Ela anuncia o princípio que escapa e está
além do princípio do prazer, o de morte ou de autoaniquilamento. Nesse ponto, todo
o instrumental psicanalítico parece falhar e a psicanálise viu-se obrigada a
redimensionar suas pretensões terapêuticas, de modo ainda mais radical em
comparação com o acontecido a partir da universalização do inconsciente, como
acima discutimos.

O inconsciente, cujo modelo é a neurose e o sonho, estaria ainda regido pelo


princípio do prazer, desviado de seu propósito imediato pelo princípio de realidade,
pela necessária adaptação do sujeito ao seu mundo físico e cultural. Podemos
sugerir, sem muito transtorno para a compreensão psicanalítica e sem trair seus

21
fundamentos básicos, que o psiquismo como tal permanece tendo como princípio o
do prazer, mas a pulsão, esta “habitante”, por assim dizer, do psiquismo e enraizada
no corpo, rege-se pelo princípio da morte, de seu autoaniquilamento, da repetição
sem fim e, aparentemente, sem o propósito do prazer.

Outro aspecto significativo para a clínica psicanalítica na perspectiva da pulsão


de morte foram os desenvolvimentos sobre o masoquismo, o qual passa a ser
compreendido, a partir daí, como originário, dele derivando-se formas específicas do
masoquismo – o erógeno (“como condição a que se submete a excitação sexual”), o
feminino (“como expressão da natureza feminina”) e o moral (“como norma de
conduta na vida”) –, permitindo reconsiderar as formas dos obstáculos ao tratamento
psicanalítico: seja o gozo com a dor (com o sofrimento), seja o impossível da
passividade (angústia de castração), seja o modo desta radical neurose chamada
neurose de destino, respectivamente. Formas de obstáculos determinadas pelo
princípio pulsional por excelência, o que quer dizer, obstáculos incontornáveis.

Green (1983/1988) avança na perspectiva freudiana, buscando articular o


narcisismo com a pulsão de morte, apreensão que não estaria presente em Freud por
ter, em alguma medida, negligenciado o narcisismo a partir da introdução da pulsão
de morte. Com tal articulação, em outro trabalho, Green (2003/2005) sugere pensar
a destrutividade dirigida ao objeto e a orientada para o interior do próprio sujeito. Para
a primeira, dá evidências à agressividade que permitiria compreender o gozo do
sádico por sua identificação com o masoquista; para a segunda, sugere a associação
da pulsão de morte com o narcisismo, caracterizando a destrutividade como ação
para o aniquilamento do narcisismo do objeto.

Na agressividade, segundo podemos entender de Green, estaria presente o


princípio do prazer em sua radicalização como gozo (conceito que toma de Lacan).
Também aqui se identifica a máxima freudiana de que as pulsões de morte e Eros
jamais aparecem completamente separadas uma da outra, mas que familiarmente se
juntam na expressão dos comportamentos e das atitudes. Pode-se considerar que
em todo fenômeno uma ou outra das pulsões sobressai.

A identificação de que fala Green carrega o aspecto da assimilação do objeto,


portanto, não sua destruição pura e simplesmente. Diversamente, na destrutividade
do narcisismo está implicada a atitude de aniquilamento do objeto, sem consideração

22
com seu gozo (como ao contrário se verificaria no sadismo). A destrutividade, assim,
faz-se de uma radicalização suprema, a impossibilidade própria ao narcisismo de
morte da consideração com o objeto — tratase da verdadeira e inescapável posição
“ou ele ou eu”.

Se, no inconsciente, tal como Freud (1900/1987a) o propôs na Interpretação


dos sonhos, não haveria oposição efetiva, mas, sim, processos de compromisso entre
o impulso de desejo e a força que o recalca, no caso da destrutividade, o “ou” de “ou
ele ou eu” torna-se um índice de exclusão, de impossível compromisso. Os
desenvolvimentos quanto ao narcisismo ganham, em Green (1983/1988), aspectos
relevantes, com forte repercussão em diversas considerações da psicanálise
contemporânea.

A recuperação que Green (1983/1988) propõe fazer do narcisismo, além do


propósito de retomar considerações que não estariam presentes em Freud, segundo
julga, também tem o objetivo de superar certos desenvolvimentos psicanalíticos após
Freud que, dedicados às relações de objeto, excluíram o narcisismo (exemplos
originários são oferecidos por Balint, 1968/1993; Fairbairn, 1952/1999) e as pulsões
para a consideração dos processos de subjetivação.

Os conceitos de narcisismo de vida e narcisismo de morte trazem perspectivas


de avaliação de desenvolvimentos subjetivos contemporâneos. Sem desprezar seja
o narcisismo, sejam as pulsões, Green, em sua longa obra, tem o objetivo de dar
compreensão freudiana (mas um Freud relido criticamente) às chamadas
psicopatologias contemporâneas: os depressivos, os borderlines, os casos limites, os
narcisistas e os não-neuróticos, de modo geral. Trata-se, conforme explicitamente
admitido por Green (2003/2005), de desenvolvimentos fortemente influenciados pela
psicanálise francesa, diferente do que teria ocorrido com a americana e a inglesa,
principalmente preocupadas com a psicologia do ego, as considerações com respeito
ao self como personalidade total, a destrutividade herdada dos kleinianos, que exclui
a sexualidade, as fortes considerações com respeito às relações de objeto
promovidas a partir de um ego central e total, as considerações quanto aos
mecanismos defensivos do ego (Ana Freud) etc.

A articulação entre as pulsões e o narcisismo permite não somente a


compreensão radical da destrutividade que visa o narcisismo do objeto, como acima

23
o apontamos, mas também os destinos de mortificação do próprio sujeito, em estados
fortemente depressivos, como os significados pela noção da “mãe morta”. Podemos
adicionar à articulação entre pulsão de morte e narcisismo, as considerações
freudianas sobre o masoquismo moral, articulando uma forma de culpabilidade (culpa
inconsciente) que inviabiliza, ou quase, os progressos de uma psicanálise, antes
tendo tornado repetitivos os fracassos dos sujeitos nas diversas tentativas de
assenhoramento, embora parcial, de suas existências.

Estado de culpabilidade profunda e basal, impedindo a apropriação da própria


liberdade de escolha ou liberdade com o seu desejo. Estado este que sofre o sujeito,
impossibilitado sequer de perceber a possibilidade de outra conduta ou atitude na
vida, parafraseando aqui Freud (1924/1989a). Não se tratam necessariamente de
casos depressivos, mas de uma crença não completamente consciente do destino
duro e do esforço que a vida demanda, “dobrado em comparação com os outros”,
comenta um analisando, como também a certeza profundamente enraizada da
impossível felicidade, mesmo quando a experiência efetiva possa ser considerada,
para olhos externos, como de felicidade ou de realização de desejos.

O mundo se torna um mar de obstáculos, quotidianamente apresentados; “um


leão por dia”, já anuncia o ditado. Não são necessariamente depressivos ou
borderlines tais quadros, mas gravíssimas neuroses obsessivas compulsivas, por
exemplo. A última teoria pulsional de Freud (1920/1989e), revisitada por muitos outros
além de Green (1983/1988) e na esteira deste, se não traz instrumentos para essas
formas de tratamento, mostra sua inflexibilidade aos chamados procedimentos
padrão e pode justificar a necessidade que alguns psicanalistas sustentam de um
enquadre modificado (Figueiredo, 2008; Winnicott, 1969/1994), embora o façam a
partir de outra base que não a pulsional, exceto, certamente, se considerarmos a
posição de Green e seus seguidores.

Para completar a teoria pulsional freudiana, precisamos ainda de algumas


palavras sobre Eros. Eros engloba a pulsão sexual e a de autopreservação,
conduzindo-nos a pensar, como Green (1997/2000) o sugere, tratar-se de uma pulsão
de amor, a significar uma pulsão que se entende e estende como uma cadeia inteira:
desde sua fonte somática, seu impulso, passando pelos diversos desvios e destinos,
até alcançar o objeto da satisfação e, novamente, sua experimentação no corpo
próprio como prazer.

24
Eros, então, rigorosamente supõe o objeto; e na proposta de Green, perde
sentido, dessa maneira, a exclusão da pulsão sexual para se pensar as relações de
objeto, como se estabeleceu tradicionalmente considerar desde Fairbairn
(1952/1999), que substitui a busca do prazer pela busca do objeto, desprezando as
pulsões e seus destinos. Eros modifica o postulado freudiano inicial da indiferença do
objeto para a satisfação pulsional. No entanto, não devemos esquecer que Freud já
considerara a especificidade do objeto quando discutiu a psicologia do amor. Se a
pulsão de morte conduz à raiz o impossível da cura analítica, Eros abre a perspectiva
de sua consideração numa forma de vínculo que nem garante toda a satisfação
desejada nem abandona toda perspectiva de vínculos satisfatórios, embora a pulsão
de morte permaneça como parâmetro último do limite da análise.

Seguindo o propósito de nos estender além de Freud, entre as diversas


interpretações ou compreensões da pulsão de morte, destacamos a de Melanie Klein
(1882-1960), autora que também trouxe contribuição decisiva para a compreensão
das relações de objeto com a noção de mundo interno (sua ascendência faz-se direta
sobre Winnicott e Bion, por exemplo, e sobre uma longa tradição kleiniana que se
desenvolveu na psicanálise inglesa). No que diz respeito à pulsão de morte, a
contribuição de Klein (1975/1996), em traços largos, foi para entendê-la como
agressividade, inicialmente voltada para o próprio sujeito e, depois, para o objeto,
segundo a posição no desenvolvimento.

Na posição mais arcaica do desenvolvimento, esquizo-paranóide, a


agressividade estaria voltada essencialmente para o próprio sujeito, sendo ela
responsável pela situação esquizoide e persecutória que caracteriza tal posição. Na
posição depressiva, a agressividade se dirige contra o objeto de qual amor depende
o sujeito, sendo-lhe característica a culpa pela fantasia de destruição do objeto. A
culpa pode ser entendida como uma ação da pulsão de morte, somente que mediada
pelo objeto, supondo uma maior integração do sujeito em comparação com a
desintegração da posição anterior.

A clínica influenciada por Melanie Klein está especialmente voltada para a


psicose e para a psicanálise de criança. Tem o objetivo geral de conduzir os sujeitos
da análise para uma maior integração, o que significa levá-lo à posição depressiva.
Faz uso da identificação projetiva e da contratransferência como instrumento de
interpretação. Segundo Grosskurth, Paula Heimann teria, mais ou menos a despeito

25
de Klein, colaborado decisivamente para a conformação do kleinismo que se fez
presente e se expandiu na International Psychoanalytical Association (IPA). Para o
entendimento do kleinismo hoje, parece-nos adequado dizer que sua concepção
encontra-se matizada por aqueles que se convencionou chamar de neo-kleinianos,
que, em resumo, buscam estabelecer relações entre Klein e outras tradições da
psicanálise. Por exemplo, Bion, que estabelece relações entre Klein e Freud sem
passar por Anna Freud. Nessa perspectiva, sugerimos incluir Luís Claudio Figueiredo
entre os neo-kleinianos, embora ele mesmo rejeite incluir-se em alguma escola,
antiga ou nova.

Figueiredo (2007; ver também Cintra & Figueiredo, 2004), nas abordagens da
clínica e obra de Melanie Klein, numa atitude que caracteriza muito o pensamento
psicanalítico contemporâneo mais avançado, vai além de Klein e propõe atravessar
os paradigmas das diversas escolas, dos diversos pensamentos e das experiências
psicanalíticas de psicanálise, para costurar o que os caracteriza fundamentalmente.
Tomando Freud como aquele que está sempre presente, pela herança que dele
recebemos, mas também pela retroação de nossas experiências e reflexões
contemporâneas sobre a sua obra, Figueiredo propõe ricas e atualizadas leituras de
Melanie Klein, atravessadas pelas conquistas freudianas, winnicottianas e bionianas,
dentre outras mais recentes.

Aos nossos olhos se configura que a base de incursão de Figueiredo, a base


de onde parte seu esforço de atravessamento dos paradigmas, em busca de uma
teoria geral do cuidar de base psicanalítica, é Melanie Klein, sem desprezar a
importância capital que dá a cada autor que toma com a finalidade de penetrar e expor
os paradigmas que alimentam seus pensamentos e suas clínicas. É, por exemplo, o
que ele faz ao articular em psicanálise a partir da noção kleiniana fundamental de
phantasias inconscientes (Figueiredo, 2009, p. 23-52).

Com essa noção kleiniana, sugere estabelecer a mediação entre o soma, o


mental e o mundo, tanto no suposto sentido progressivo que a sequência de tais
instâncias ensejam, como também no sentido regressivo. Assim, as phantasias
inconsciente estão profundamente ligadas à pulsão, são sua representação psíquica,
estão vinculadas ao ego, em sua função integradora com o mundo.

26
Também nelas encontram-se os objetos internos, que foram introjetados e
podem ser projetados. Enfim, o autor busca articular os ganhos do pensamento e da
clínica kleiniana com a freudiana e também a winnicottiana, na medida em que
salienta o caráter paradoxal das phantasias. Observe-se que a grafia de phantasia
com “ph” vem da tradição inglesa para diferenciar tais elementos do psiquismo da
fantasia de desejo introduzida por Freud e, como se sabe, retomada e desenvolvida
por Lacan.

ATUALIDADE

Marco significativo para a psicanálise no Brasil nos anos 80 do século passado,


foi certamente a introdução de modo mais enfático da psicanálise lacaniana. As
primeiras leituras sistemáticas de Lacan e primeiros comentaristas e divulgadores de
sua obra começam a surgir. De imediato, Lacan encontrou forte eco em círculos de
psicanalistas vinculados de algum modo à reflexão acadêmica, o que não seria
certamente difícil de entender, embora não caiba aqui explorar tal aspecto. Mas, uma
psicanálise, como a presente na obra desse autor, que destacadamente favoreça sua
leitura como pensamento, que facilmente conduz para longe da clínica psicanalítica
quando sob a verve de um olhar filosófico, por assim dizer, pode sugerir o
entendimento da difusão especializada que o lacanismo encontrou entre nós.

Lacan, na condição de dissidente da IPA, abriu a possibilidade pública da


formação psicanalítica, com promessa de uma releitura rigorosa de Freud, embora
crítica. A psicanálise, assim tomada, possui todos os ingredientes para despertar o
interesse de reflexões acadêmicas e para alavancar vocações até mesmo
inicialmente tímidas para a psicanálise. Evitava-se, desse modo, as rigorosas
exigências para a formação do psicanalista, muitas delas de caráter
predominantemente formal, das sociedades vinculadas à IPA. Acontecia, por
exemplo, com a permissão de ingresso, restrita que era aos médicos, o que fazia
prevalecer a ideia de uma formação oficial profissionalizante, além de excluir anseios
de psicólogos e outros formados em ciências humanas.

27
Tais exigências eram estranhas ao lacanismo. Por esse motivo, muitos dos
hoje psicanalistas se aventuraram por uma formação no meio acadêmico, não
sistematizada em todo, se não no aspecto teórico da psicanálise. As perspectivas
clínicas e técnica tiveram, por muito tempo, para esses formandos, um caráter menos
sistemático, como análises pessoais variantes quanto à frequência e ao tempo de
análise, supervisões esporádicas e a autorização como psicanalista deixada por conta
do próprio sujeito, como proposto por Lacan, assumida muitas vezes de modo leviano,
ou, pelo menos, ao “gosto do freguês”, como se diz. É claro que tal situação não
impediu formações vigorosas e rigorosas, nem a interpretação e divulgação
responsável do texto lacaniano. Uma porta (ou muitas) se abriram para a divulgação
da psicanálise, mais ou menos coincidente com o momento que a psicanálise oficial
(representada pelas sociedades vinculadas à IPA) pareceu perder fôlego e ver
minguar seus candidatos.

Na década seguinte, a configuração geral da psicanálise no Brasil parece


mudar. Diversos egressos do movimento lacaniano permaneceram ou vieram a
engajar-se nas sociedades ligadas à IPA. As regras dessas sociedades começaram
a ser criticadas no seu próprio interior, de tal modo que hoje se pode encontrar
diversidade e flexibilidade em aspectos que eram muito formais e mesmo essenciais
à formação anteriormente considerada muito rígida. Em sequência, as associações
lacanianas e as vinculadas à IPA multiplicaram-se, por desentendimentos internos
teóricos, políticos e mesmo éticos.

No que tange à psicanálise em seu desenvolvimento teórico e clínico, a era


das escolas, como se gosta de afirmar, tem encontrado seu fim nos últimos anos.
Lacanianos leem outros psicanalistas, deixando um tanto de lado seus sectarismos
(consideraram que Lacan lia outros, inclusive psicanalistas, que não somente Hegel,
de segunda mão). De tal maneira, aconteceu que muito recentemente encontramos
psicanalistas de formação lacaniana interessados nas relações primitivas de objeto,
dedicando-se a observações (coisa a causar espanto se nos anos 80 e parte dos 90)
de relações mãe-bebê, por exemplo. Tendo, com isso, em muitos casos, a dignidade
de ler Klein, Winnicott e outros.

Não menos importante para a formação do panorama atual da psicanálise no


Brasil foi a influência de lacanianos desgarrados (permitam-nos dizer assim, por
economia), em nossas reflexões clínico-teóricas, como, por exemplo, Green,

28
Laplanche, Pontalis, Aulagnier, Fedida, o casal Mannoni etc. A psicanálise de origem
francesa que veio afinal compor o panorama da psicanálise no Brasil teve a vantagem
de se mostrar muito mais flexível à diversidade do pensamento psicanalítico como um
todo.

Green e os que seguem a trilha por ele aberta ou que simplesmente nele se
inspiram constituem exemplos importantes na perspectiva de abertura e diversidade.
Convivem, por vezes se aproximam em aspectos específicos, mas, principalmente,
deixam-se tomar uns aos outros de modo crítico e, muitas vezes, produtivo,
contribuindo para a apreensão e compreensão da clínica psicanalítica.

Tais autores tiveram o mérito de deixar a psicanálise inglesa e americana


aproximar-se da psicanálise francesa muito inspirada que era em Freud, até mesmo
por força do projeto lacaniano. Essa psicanálise francesa parece finalmente menos
sectária que a anglo-saxônia. Como afirma Etchegoyen (2005), o próprio Green teria
sido muito tardiamente reconhecido pelos psicanalistas de língua inglesa, por
exemplo.

Outro caso curioso é o de Winnicott, autor tão influente e atualmente assimilado


que se custa a acreditar que sua presença séria e desenvolta tenha pouco tempo
entre nós. Também entre os ingleses, ele não esteve em primeira linha logo tenha
surgido. Enfrentou adversidade com os movimentos ou as escolas kleiniana e ana-
freudiana, até conseguir se consolidar como grupo independente. Nas sociedades
ligadas à IPA no Brasil, o nome de Winnicott foi, por muito tempo, quase
desconhecido.

Predominava uma psicanálise kleiniana do tipo “puro-sangue” (Figueiredo,


2009, p. 23), inflexível em suas certezas, ou mesmo uma psicanálise bioniana,
curiosamente muitas vezes pensada e praticada simultaneamente, independente de
Freud e Klein, seus inspiradores mais diretos. Enfim, algumas tentativas mais ou
menos bem-sucedidas têm tirado a psicanálise dos sectarismos escolares, por vezes
como desejo ou propósito ainda não consolidado.

De qualquer maneira, não será mais alienado das sociedades ligadas à IPA o
pensamento que se interessa pelos freudianos, kleinianos, lacanianos, pelos que se
voltam para as teorias das relações de objeto, para as teorias da pulsão e seus
destinos, pelos que se dedicam à análise padrão e os que buscam modificações do

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enquadre para atender novas demandas, ou novos sintomas, ou novas configurações
psíquicas. No entanto, o risco do ecletismo e do reducionismo e a presença de
resquícios das escolas e da fidelidade cega a mestres não deixam o quadro ser tão
benevolente como o que erroneamente se pode induzir do que viemos de expor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O empreendimento de psicoterapias, tendo por base a psicanálise e praticadas


por psicanalistas, é um indício da amplitude que ganhou nos últimos tempos a
presença da psicanálise em outros campos, áreas e situações que não os
tradicionalmente conhecidos do consultório particular. Winnicott (1984/2005)
novamente teve papel inovador, não somente modificando a situação de análise, mas
também introduzindo a psicanálise no cuidado mãe-bebê, no atendimento de órfãos
de guerra fora dos consultórios, em hospitais e em ambientes da assistência social.

No Brasil, a psicanálise entra nos hospitais, nas varas judiciárias da infância e


da família, no atendimento a jovens que cumprem medidas socioeducativas, no
acompanhamento terapêutico (a que chamo carinhosamente de psicanálise de meio
fio), nas universidades (tanto nos atendimentos psicoterápicos em seus ambulatórios
nos cursos de psicologia, por exemplo, como no ensino e na pesquisa universitárias).
A maior parte dessas situações engloba participações multidisciplinares do
psicanalista.

Em todas essas condições e outras que nos escapam de citar, o enquadre está
profundamente modificado em relação ao que se chama padrão. A psicanálise aí se
apresenta não somente como teoria para o entendimento do que se trata. Ela também
participa, como lembrado acima, como enquadre internalizado pelo analista, devido à
sua experiência com a análise pessoal.

Também está presente como procedimento de escuta do outro e da


intervenção que não seja simplesmente pedagógica ou corretora, mas uma
intervenção que tenha o propósito de auxiliar reorganizações subjetivas duráveis,
menos preocupada com mudanças de comportamentos parciais ou específicos. A

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compreensão do inconsciente, do pulsional e da constituição de holding são bases
para a disposição dos psicanalistas que atuam em tais circunstâncias.

Podemos aderir ao proposto por Figueiredo, que diz da constituição de uma


teoria geral do cuidar de base psicanalítica, e acrescentar a constituição de uma
situação geral do cuidar de base psicanalítica. Muito a propósito dessas questões,
renovam-se as reflexões sobre a situação analisante, que significa a preocupação
com a situação analítica, o enquadre que tem força analisante, que trata.
Problematização feita ao enquadre tradicional e aos outros que a psicanálise vem
conquistando e ajudando a construir, como os acima nomeados.

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REFERÊNCIAS

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