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Aos meus pais e minha querida irmã Kenia pelo apoio, amor e incentivo durante todo o
processo. A toda a minha família pelo carinho e em especial para a minha avó Cida, por sempre
acreditar em mim.
Ao Roberto Calazans pela sua constante orientação, sempre dedicando atenção ao meu
trabalho. Agradeço todas as pontuações e discussões, tão norteadoras durante o processo, assim
como pelo seu apoio e aposta em mim.
Aos professores Júlio Eduardo de Castro e Oswaldo França Neto, pela disponibilidade,
leitura minuciosa e apontamentos que foram tão importantes para a conclusão deste trabalho.
Aos meus amigos feitos em São João del-Rei, que foram fundamentais para que os anos
aqui fossem tão leves e divertidos e ao mesmo tempo, por me acompanharem de forma tão
especial nessa jornada. Em especial: Amanda, Pedro Guilherme, Kétila, Gisele, Silvia, Lucas
Nonato, Larissa, Lorran, Thaís, Rodrigo, Tiago Freitas, Pedro Paolucci, Kerlei, Kamila, Samya
e Cíntia. Minha mais sincera gratidão.
A Comissão de Bolsas do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal
de São João del-Rei pela concessão da bolsa que possibilitou este estudo.
RESUMO
The present research is situated in the current post psychiatric reform context in Brazil
as well as the consequent creation of CAPS and presents psychoanalysis as a theoretical basis
for discussion. The aim of this research is to think about the central pillar of treatment of
psychotic cases via CAPS, which is about the social inclusion of the psychotic subject,
referencing this discussion on Lacanian psychoanalytic theory. Confronting the social inclusion
of the psychotic subject with the psychoanalytic conceptualization of psychosis involves
thinking directly the very psychic operative mechanism typical to psychosis, that is, the
foreclosure. Foreclosure is characterized by the non-inclusion of the Name-of-the-Father’s
signifier in the Other. This foreclosure of the signifier results in a subject excluded from the
symbolic order, outside of any social law that governs neurotic functioning. In psychosis, the
Other’s jouissance is not precluded, so the psychotic subject feels constantly invaded by an
invasive Other who attains his jouissance from that invasion. In response to that, psychoanalysis
seeks to operate with the clinic of the subject, an individual treatment that values the different
kinds of each subject’s jouissance, considering that the psychotic’s sense of invasion of the
Other may be relieved. In that regard, there is a contradiction that is pertinent to the treatment
objectives via CAPS and via Psychoanalysis. It is in face of this conflict that this research is
inserted, aiming to propose a conversation between both perspectives, so as to think the
possibilities and the limits of socially including the psychotic subject, given the inherent
character of his foreclosure.
SUMÁRIO
1. Introdução .......................................................................................................................... 6
4 As psicoses…………………………………………………………………….…..............35
4.1 Foraclusão: O conceito…………………………………...……………………….............35
4.2 Os três tempos lógicos do Édipo………………………...………………………..............36
4.3 A metáfora paterna………………………………………………………………...............39
4.4 Psicose, fenômenos da linguagem e do corpo………………………………….........……41
4.5 Psicose e Contemporaneidade: As Psicoses Ordinárias……………………………..........45
4.5.1 Os índices da psicose ordinária: externalidade social, corporal e subjetiva….......47
4.5.2 Os neodesencadeamentos, as neoconversões e a neotrasferência……..........……50
4.5.2.1 Os neodesencadeamentos………………………………………...…...........…50
4.5.2.2 As neoconversões……………………………………………………..........…52
4.5.2.3 A neotransferência………………………………………………......…...........53
6 Conclusão ………………………………………………………………….............………65
5. Referências ………………………………………………………………...........………...69
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1- Introdução
Esta dissertação visa discutir, com base na perspectiva psicanalítica, a inclusão social
do louco, mais especificamente do psicótico, a partir dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS). O caminho teórico que iremos percorrer se estende desde os primórdios da psiquiatria,
considerando-se os paradigmas da saúde mental, até adentrarmos a Reforma Psiquiátrica no
Brasil e a decorrente criação dos CAPS, contexto em que se faz pertinente a presente pesquisa.
Para isso, delimitaremos o conceito psicanalítico de psicose, a fim de chegarmos ao seu
mecanismo específico de defesa que chamamos “foraclusão”. Por fim, analisaremos as
possibilidades e os limites da inclusão social do psicótico, pois, afinal, como incluir um sujeito
que se encontra foracluído?
O conceito que atualmente conhecemos como saúde mental pode ser analisado como
um processo que se constitui pela transmutação entre três paradigmas da psiquiatria, discutidos
pelo autor Lantéri-Laura (2000), que serão melhor analisados ao longo do texto, e que são
denominados como: alienação mental, doença mental e estruturas psicopatológicas.
Passando brevemente por cada paradigma, poderíamos associar o primeiro, da alienação
mental, ao fim do século XVIII, em que o renomado médico Philippe Pinel atuava nos asilos
manicomiais. Os asilos eram constituídos por diversos tipos de indivíduos, os quais eram
considerados o “resto” da sociedade. Pinel, por meio da criação do seu denominado tratamento
moral, buscou reconhecer o alienado enquanto enfermo que necessitava de tratamento e não de
acorrentamento, como seria o caso dos criminosos.
O segundo paradigma, o da doença mental, vem incitar um novo olhar sobre o
sofrimento mental, direcionando a atenção para a busca pelas causas orgânicas e não psíquicas
do fenômeno. Já o terceiro, das estruturas psicopatológicas, apresenta uma busca pela unicidade
psicopatológica, evitando, assim, a via do divisionismo da área. Além disso, há uma
preocupação maior com o modo individual pelo qual o sofrimento mental se manifesta na vida
do sujeito, tirando de foco a preocupação para com a origem do fenômeno.
Apesar de Lantéri-Laura considerar apenas três paradigmas, seria cabível pensar em um
quarto, o da saúde mental, que vem contrapor-se à ideia de doença mental. De acordo com
Pontes e Calazans (2014), o paradigma da saúde mental inicia-se após o fim da Segunda Guerra
Mundial, quando há um aumento significativo dos casos de doenças mentais e as denúncias e
críticas referentes ao modelo asilar começam a ganhar destaque, principalmente em nome das
práticas que seriam, antes de mais nada, promotoras de saúde e não mais cuidadoras de doenças.
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responsabilizar-se pela promoção da saúde mental da população. O olhar da Psiquiatria, que era
apenas sobre o doente mental, começa a se direcionar também para a promoção da saúde mental,
colocando-a como objeto da psiquiatria. E é nesse contexto que se inicia o processo da Reforma
Psiquiátrica Brasileira, no fim da década de 70 e início da década de 80.
A noção de saúde mental, devido ao seu caráter antimanicomial, atrelou-se diretamente
aos ideais da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que surge com o objetivo de criar serviços
substitutivos ao modelo manicomial e promover a inclusão social dos portadores de transtornos
mentais. Desse modo, Tenório (2002) explica que
1Impasses não são defeitos. Não se trata de apontar uma posição contrária à Reforma, mas como fazê-la avançar
num cenário em que o Ministério da Saúde pretende acabar com a Reforma e retornar a modelos hospitalocêntricos.
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O que é conhecido hoje como saúde mental não se trata de um conceito que foi
formalizado atualmente, mas sim de um campo de problemas que foi construído ao longo do
tempo. Podemos situar tal processo de construção considerando como a loucura passa a ser
representada por nomeações diferentes como alienação mental, doença mental até chegar à
problemática da saúde mental, que é trabalhada atualmente pela medicina moderna (Pontes &
Calazans, 2014). George Lantéri-Laura (2000), propõe em seu livro “Ensaio sobre os
paradigmas da psiquiatria moderna” que esses três diferentes tipos de nomeação – alienação
mental, doença mental e estruturas psicopatológicas (que poderiam ser pensadas a partir da
saúde mental) – concernentes a diferentes épocas, configurar-se-iam como os paradigmas da
psiquiatria moderna.
Para que a medicina moderna e seu conjunto de problemas fossem como são atualmente,
e até mesmo para que a psicanálise pudesse existir, foi necessário que se desse o advento da
atividade científica, havendo, assim, uma ruptura entre o mundo antigo e o mundo moderno
(Pontes & Calazans, 2014). O mundo antigo tratava-se de um mundo finito, estruturalmente
bem definido, qualitativo e passível de um conhecimento comum, em que predominava o
pensamento aristotélico e a matematização era pensada apenas em função dos astros. Já no
mundo moderno, vem se instalar o pensamento científico, o qual faz uso da experimentação e
matematização, a física passa a ser matematizada, ocasionando um desmoronamento da ideia
de um mundo pronto e hierarquicamente dado (Calazans & Neves, 2010). Temos como
exemplo dessa nova lógica científica as produções de Nicolau Copérnico e Galileu Galilei.
Esse corte epistemológico também trouxe influências ao campo da loucura, que era vista
até então como o outro lado da razão. Desse modo, loucura e razão não se contrapunham, mas
eram complementares (Pontes & Calazans, 2014). Entretanto, quando o filósofo e matemático
René Descartes apresenta sua proposição filosófica “penso, logo existo”, acaba colocando a
desrazão enquanto loucura. E, dessa forma, termina por excluir o louco do campo do sujeito
(Birman, 2010). Percebe-se aí então a ocorrência da ruptura e nova concepção de oposição entre
loucura e razão. É a partir disso que, futuramente, a psiquiatria e o alienismo construirão suas
ideias.
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Mesmo que esta não seja uma regra geral, vemos que atualmente os próprios CAPS são distribuídos em bairros
periféricos. Em São João del-Rei –MG, por exemplo, não há nenhum CAPS no centro da cidade, mas em bairros
afastados como Tejuco, Caieras e Colônia do Marçal.
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tornar-se-á referência para aqueles que virão trabalhar com o que, futuramente, será
denominado como psiquiatria (Lantéri-Laura, 2000).
A Pinel também é concedida a glória por ter afirmado que os alienados, enquanto
enfermos, não deveriam ser condenados e acorrentados como criminosos, mas sim deveriam
obter cuidados e assistência como quaisquer outros enfermos, o que os tirariam do radar da
polícia e da justiça, de modo a encontrarem-se sob os cuidados, ou até mesmo sob o poder dos
médicos (Lantéri-Laura, 2000).
A alienação mental, para Pinel, era tida como uma enfermidade única, que teria quatro
níveis de gravidade, cada qual apresentando diferentes aspectos concernentes à alienação. Os
níveis de gravidade da alienação eram: melancolia ou delírio parcial, mania ou delírio
generalizado, demência e idiotismo. Dessa forma, o médico propunha que haveria um
tratamento único para uma enfermidade única (Lantéri-Laura, 2000).
Esse tratamento único dos alienados foi chamado de tratamento moral. Pinel o propôs
baseado em seus estudos e experiências práticas, e
sempre um resquício de razão no alienado (Lantéri-Laura, 2000). Desse modo, este resquício
de razão coloca o alienado na esfera de sujeito. Pinel, quanto à neuroanatomia, apesar de haver
realizado diversas autópsias, nunca pôde associar qualquer lesão cerebral à alienação mental, o
que é uma diferenciação relevante entre alienação mental e doença mental, como veremos no
paradigma seguinte.
Esse segundo paradigma conta com uma visão mais biologicista no que diz respeito ao
sofrimento mental, focada mais na busca pelas causas orgânicas em vez das causas psíquicas
como acontecia anteriormente. Em relação a essa mudança de paradigmas, Lantéri-Laura
(2000) ao propô-la, expõe que um paradigma não se altera para outro de forma súbita e sim ao
longo do tempo. Assim, a mudança do primeiro paradigma para o segundo ocorreu, mas o termo
alienação mental continuou ainda sendo usado por muito tempo, até que foi perdendo o
significado que lhe era concebido anteriormente. Enquanto alienação mental caía em desuso,
doença mental ganhava destaque nas produções da segunda metade do século XIX.
De acordo com Lantéri-Laura (2000), o psiquiatra francês Jean-Pierre Falret foi um dos
principais responsáveis pela quebra do primeiro paradigma, que pensava a enfermidade mental
enquanto única, pois Falret defendia a existência de mais de uma doença mental, de forma que
seria função primária do médico, ao atender um paciente, descobrir qual seria. Desse modo,
apresentava-se necessária a realização inicial de uma observação duradoura, pois somente por
meio desta que haveria a possibilidade de identificar por qual tipo de doença mental o enfermo
estaria acometido. Logo, o método terapêutico escolhido estaria numa relação de dependência
do resultado das observações.
Ainda para J. P. Falret, a doença mental seria um aglomerado de sintomas que, baseado
em sua evolução constante ou durável por um determinado de tempo, tratar-se-ia de uma
legítima enfermidade, ocorrendo de maneira singular em cada paciente. Dessa maneira, a
doença mental seria caracterizada como irredutível entre si e não como derivantes de uma única
enfermidade, como era o caso da alienação mental (Lantéri-Laura, 2000).
Antoine-Laurent Bayle, ao isolar a paralisia geral dos alienados ou encefalite crônica
aguda em 182,2 foi outro médico que contribuiu para que o paradigma da doença mental
prevalecesse. Segundo Murat (2010), tal doença se caracterizaria por uma inflamação das
meninges e seria ocasionada por distúrbios neurológicos e psíquicos e, à medida que avançasse,
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resultaria na demência e morte do paciente. A doença fazia com que, a princípio, o doente
tivesse problemas na pronúncia e o enfraquecimento muscular, havendo um segundo momento
que seria marcado pelo delírio do orgulho. Já no último momento, o paciente “termina num
embrutecimento moral e numa degradação física completa (p.264)”. Portanto, tendo-se em vista
tal proposta apresentada por Bayle, que trabalha com disfunções motoras e cerebrais, fica
evidente a sua visão organicista da doença mental, o que contribui grandemente para o
crescimento de uma nova perspectiva psicopatológica da psiquiatria da época – a da doença
mental.
Ainda neste contexto histórico da psiquiatria e do paradigma da doença mental, cabe
destacar o psiquiatra alemão Wilhelm Griesinger. Segundo Pereira (2007), Griesinger escreveu
e publicou em 1845 seu Tratado sobre patologia e terapêutica das doenças mentais, que foi
considerado uma grande referência na área da psiquiatria. Até mesmo Sigmund Freud utilizou-
se do Tratado de Griesinger.
De acordo com Pereira (2007), Griesinger defende em seu Tratado a posição geral de
que
Por meio de tal afirmação, pode-se constatar que Griesinger deu início a uma nosologia
que se baseava no princípio de evolução dos quadros clínicos. Para o médico alemão, as formas
clínicas da loucura - neste momento já vista como uma doença - seriam fases que se sucederiam
de uma mesma doença (Pontes & Calazans, 2014).
De acordo com França (2015), Emil Kraepelin trata-se de outro médico psiquiatra que
contribuiu para que o conhecimento das doenças mentais se configurasse atualmente no quadro
do que é conhecido por ciências médicas. Ele é considerado o criador da psiquiatria clínica
moderna, pois foi o primeiro que
fundamental para tal ciência, as loucuras propriamente ditas. Tratava-se da oposição entre as
estruturas neuróticas e as estruturas psicóticas, sendo aquilo pelo qual a psicanálise se ocupou
de maneira primordial.
A noção de estrutura dentro da psiquiatria envolve a aposta em uma perspectiva de
globalidade/unicidade psicopatológica e em uma crítica ao divisionismo de tal área, que eram
tão característicos do paradigma anterior. Entretanto, apesar de buscar uma totalidade
psicopatológica, tal paradigma não visava, de maneira impensada, o retorno a uma unidade,
implicando assim o uso do conceito de “estrutura” (Vasconcelos, 2015).
A alteração para o conceito de estrutura torna necessária uma mudança drástica na
relação até então estabelecida entre a psicopatologia e a psiquiatria clínica, que passa a ser
deixada para segundo plano. A psiquiatria clínica, embora de disciplina médica inevitável, tem
sua limitação reconhecida, que seria sua amplitude reduzida, já que se restringe à execução de
tarefas úteis, as quais se resumem a delimitar um diagnóstico e, logo, um tratamento, sem
preocupar-se com seus desdobramentos antropológicos (Lantéri- Laura, 2000). Enquanto isso,
a psicopatologia
fenomenologia, buscava manter-se mais próximo do humano e, ao mesmo tempo, mais distante
de reducionismos que envolvessem os fenômenos psíquicos.
Minkowski, diferentemente de Kraepelin – representante maior do paradigma anterior
–, que se pautava em uma metodologia de base essencialmente descritiva e classificatória,
apresentava uma visão mais humanista a respeito da compreensão e do tratamento dos
transtornos psiquiátricos (Faizibaioff & Antúnez, 2015). Segundo Lantéri-Laura (2000),
Minkowski põe em discussão a necessidade de se conceder grande importância ao que é
experimentado pelo clínico na relação estabelecida junto a seu paciente, uma vez que o
diagnóstico estrutural seria dado, primordialmente, não de especialista para paciente, mas de
homem para homem.
Perceber o fenômeno com base na ótica fenômeno-estrutural, desenvolvida por
Minkowski, acarreta na busca pela sua compreensão e não pela sua explicação. Essa
compreensão do fenômeno pela via fenomenológica só seria possível por meio da dedicação de
uma maior atenção perante os fenômenos, de forma a tentar apreendê-los, priorizando conhecê-
los como o são de sua forma mais singular, considerando assim suas características individuais.
Sendo assim, o entendimento de sua origem ficaria para segundo plano (Faizibaioff & Antúnez,
2015).
Lantéri-Laura (2000) aponta também o organodinamismo de Henry Ey como uma
disciplina modelo e um dos trabalhos mais elaborados e completos no que se refere ao uso da
perspectiva estrutural. Henry Ey apostava que, embora o indivíduo estivesse imerso a um meio
que é comum a todos e no qual as relações se estabelecem, os fenômenos psíquicos ocorreriam
de maneira individual a cada um e de acordo com a sua vivência.
De acordo com Souza (2000), partindo-se da ótica do organodinamismo de Henri Ey,
Dessa forma, para o autor, qualificar a normatividade de alguém, seria o mesmo que
fazer uma estimativa quanto à sua liberdade. O organodinamismo de Ey parte, então, da ideia
de que o psiqué do indivíduo seria estruturado por uma organização e/ou desorganização
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estrutural interna. Em meio a isto, apesar de toda a relevância da teoria de Henry Ey para a
psicopatologia, o psicanalista Jacques Lacan a critica, causando um acentuado debate no campo
da psíquico.
Consoante Lacan, a causação psíquica da loucura dar-se-ia em consequência de diversos
aspectos que determinam o modo como o sujeito se constitui, de forma a não se restringir a
apenas uma desorganização da consciência, que geraria a limitação da liberdade do sujeito.
Além disso, para ele a loucura se originaria de fatores psíquicos que seriam estabelecidos na
história individual do sujeito. O sujeito de Lacan, sujeito este dado como efeito da linguagem e
influenciado pela cultura, contrapunha-se ao sujeito defendido por Ey, que seria colocado como
completamente livre e autodeterminado (Vasconcelos, 2015).
Nesta dissertação, trabalharemos com base na visão lacaniana de sujeito, trazendo uma
discussão em torno de aspectos referentes ao quarto paradigma, que será apresentado no
próximo tópico, o da Saúde Mental.
uma reestruturação no que diz respeito à psiquiatria. Foram incorporados outros conhecimentos,
outros profissionais e serviços. O foco já não é unívoco sob a psiquiatria, mas esta passou a se
constituir enquanto complemento no campo da saúde mental. “Talvez sua importância maior
seja esta: fornecer a descrição e a classificação dos transtornos mentais e comportamentais.
Definir o que deve ser tratado e a que objetivo o tratamento deve visar” (p.8).
A partir de 1940, passam a tomar forma alguns movimentos de transformação dos
hospitais psiquiátricos, que podem ser divididos em três grandes grupos:
Entretanto, como estava associada fortemente à noção de crítica asilar, a ideia de saúde
mental tornou-se um significante de destaque na Reforma Psiquiátrica Brasileira.
O campo ampliou-se, abrindo espaço para outros serviços e saberes. A noção de saúde
mental que hoje se associa à Reforma Psiquiátrica Brasileira estrutura-se sob duas principais
ideias. A primeira trata-se de um afastamento do foco da figura médica da doença, que não
considera os aspectos subjetivos do indivíduo; a segunda, de uma ampliação de saberes usados
para se pensar o campo da saúde mental (Tenório, 2002).
O foco que antes era unívoco sobre a psiquiatria agora divide-se frente a uma
multidisciplinaridade profissional. Isso ocorre de forma que a maior relevância da psiquiatria
acaba sendo apresentar a descrição e a classificação dos transtornos mentais e comportamentais,
disponibilizando o que deve ser tratado e qual objetivo terá o tratamento (Barreto, 2010). Esse
sistema de classificação de doenças promove uma universalização dos diagnósticos dos
transtornos mentais e comportamentais, que são catalogados no DSM (Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais) e no CID (Classificação Internacional de Doenças).
Uma vez que se a atual Psiquiatria e a noção de saúde mental encontra-se associada à
classificação dos transtornos, cabe-nos pensar o que seria um transtorno. De acordo com
Calazans e Martins (2007), a noção de transtorno pode ser pensada baseada em três principais
aspectos, sendo eles:
Os paradigmas da saúde mental, que foram discutidos no capítulo anterior, não são
passíveis de serem pensados como algo que se fixou em determinado período e lá permanece
imóvel. Isso porque, podemos, atualmente, considerar o retorno/permanência de algumas
questões que estariam ligadas aos paradigmas anteriores.
Uma reportagem publicada pelo site de notícias G1 (2017) é um exemplo disso, visto
que afirma que, naquele mesmo ano, um estudo financiado pelo Ministério de Saúde da França
delimitou com precisão a área do cérebro responsável pela audição de vozes relatadas pelos
esquizofrênicos. Após a identificação da área cerebral, os pesquisadores indicaram e testaram
o tratamento via Estimulação Magnética Transcriana (EMT) – estímulos elétricos e magnéticos
de alta frequência visando à melhora na audição das vozes.
Podemos pensar em tal estudo como um representante atual do paradigma da doença
mental já que há uma investigação em torno da busca pelas causas orgânicas que envolvem o
transtorno mental. Ou seja, os paradigmas da saúde mental não ficaram estabilizados no
passado, mas são passíveis de reaparição. Isso poderia ser até mesmo associado ao conceito
psicanalítico denominado como retorno do recalcado, em que aquilo que fora recalcado torna a
aparecer em algum momento, apesar de algumas transformações
Frente à discussão apresentada sobre os paradigmas que originaram o que atualmente
conceituamos como saúde mental, cabe agora adentrarmos o tema da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, sito que esta se constitui enquanto um questionamento téorico-conceitual, técnico-
assistencial, político-jurídico e sociocultural. Esses parâmetros, definidos por Amarante (1995),
geraram inúmeras mudanças no panorama geral condizente à loucura, pois alterações advindas
da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental,
deram subsídios à existência dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e da RAPS (Rede de
Atenção Psicossocial), outro tema que deverá ser mais bem discutido a fim de dar suporte
teórico-metodológico a esta pesquisa.
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Ainda que muitas práticas oriundas do período manicomial fossem extintas e condenadas com o passar dos anos,
algumas ainda ocorrem ao longo do mundo, como é o caso da contenção mecânica. A contenção mecânica é um
método antigo que visa conter o paciente que se mostre agitado e/ou agressivo e tem o objetivo exercer o controle
sobre os movimentos do indivíduo de forma a impedir que este ofereça danos a ele mesmo ou a outras pessoas.
Atualmente, a contenção mecânica é realizada utilizando-se de faixas de couro ou tecido que são colocadas juntas
à cama a qual o sujeito será deitado forçadamente por enfermeiros. Ela é considerada um procedimento terapêutico
que tem como finalidade reduzir a agitação e a agressividade do indivíduo gerando nele uma maior percepção dos
seus limites corporais (Schwiderski, Tchaikovski, & Manzarra, 2013). Deverá ser realizada apenas em casos de
agitação extrema, como última alternativa, visando ser o quanto menos lesiva e só é possível sob a prescrição de
um médico psiquiatra. A contenção mecânica ainda é legalizada em países como o Brasil e a Espanha. Porém, no
Reino Unido, por exemplo, foi proibida e em alguns outros países tem crescido, mesmo que lentamente, um
movimento de usuários e profissionais que visam à redução ou mesmo proibição de seu uso (Cervilla, 2017).
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Inglesas e a Psiquiatria de Setor na França, pode-se dizer que a reforma brasileira apresenta
uma trajetória particular e por isso é importante, ao referir-se a ela, ter em vista também a
conjuntura histórico-política do país naquele momento (Dunker e Kyrillos, 2015).
Em relação ao contexto histórico-político brasileiro, na década de 70, surge um forte
movimento que ansiava por mudanças em oposição ao Estado autoritário e em busca da
redemocratização. É neste contexto que surgem as primeiras críticas ao modelo vigente no país
no que tange ao tratamento em saúde mental. De acordo com Kyrillos (2003),
Mental, e que reuniu profissionais, estudantes, técnicos, pessoas com transtornos mentais e seus
familiares em prol da luta por condições melhores de trabalho e pelo direito de atenção à saúde
mental, utilizando-se, para isso, do lema “Por uma Sociedade sem Manicômios” (Dalla Vecchia
& Martins, 2009).
Os eventos supracitados corroboraram para que a Reforma Psiquiátrica ganhasse mais
atenção publicamente, de forma que as denúncias em relação à ineficácia da estrutura
manicomial, no que tange aos cuidados com o sujeito em sofrimento psíquico, não ficassem
apenas restritas ao campo técnico-assistencial (Dalla Vecchia & Martins, 2009). E, em meio a
isso, como uma resposta às aspirações da Reforma Psiquiátrica Brasileira, surgem os serviços
substitutivos em saúde mental, dentre eles, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e o NAPS
(Núcleo de Atenção Psicossocial). Esses serviços seguem a mesma linha de crítica ao modelo
asilar que predominava e se dava até então por meio de hospitais e clínicas privatizadas
(Kyrillos, 2009).
Cabe, nesse contexto, apresentar brevemente o NAPS, como um serviço substitutivo
aberto 24 horas, todos os dias da semana, cujo objetivo é prestar acolhimento a sujeitos em
crise. Já o CAPS, serviço substitutivo que é foco desta pesquisa, traz em sua base a proposta
central de proporcionar autonomia e a reinserção social dos usuários.
Em 1989, outro acontecimento teve grande repercussão, consolidando a implantação
dos CAPS. Trata-se da intervenção, pela prefeitura de Santos, na Casa de Saúde Anchieta, uma
instituição privada que fora denunciada por não oferecer um tratamento digno aos seus mais de
500 internos. Com isso, houve o fechamento da mencionada instituição e sua substituição pelo
CAPS (Amarante, 1995).
Ainda no ano de 1989, o projeto de lei Paulo Delgado deu entrada no Congresso
Nacional. Tal projeto de lei visava garantir os direitos das pessoas com transtornos mentais,
assim como a extinção dos manicômios no país. Cabe ressaltar que, mesmo que tal projeto,
denominado Lei 10.216, só tenha sido aprovado em 2001, na época em que foi apresentado teve
grande efeito sobre as discussões concernentes à saúde mental, logo, à reforma psiquiátrica, que
já começava a se expandir. A discussão que girou em torno desse projeto ocasionou na
formulação e consequente aprovação de leis estaduais em oito estados que, em seus limites de
competência, instituíam regularmente a assistência por meio de serviços substitutivos. Os
efeitos oriundos da apresentação do projeto fizeram com que o movimento da reforma
avançasse e se fortalecesse (Tenório, 2002).
Em 1991 e 1992, foram aprovadas as portarias 189/91 e 224/92, ambas do Ministério da
Saúde. A portaria 189 regulamenta e institui nacionalmente os CAPS/NAPS no âmbito de
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No que tange aos avanços relativos aos serviços substitutivos, no ano 2000, com a
portaria nº 106/2000, foram criadas as Residências Terapêuticas, que são entendidas como
“moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos
portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência,
que não possuam suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social”
(Portaria nº 106, 2000, para. #8 ).
Desse modo, as residências terapêuticas constituem-se enquanto equipamentos da saúde,
de forma a serem necessariamente aptas a assegurarem que os sujeitos egressos de hospitais
psiquiátricos tenham direito à moradia e recebam ajuda em seu processo de reintegração na
sociedade. Cada residência terapêutica deve conter no máximo oito moradores e estar
referenciada a um Centro de Atenção Psicossocial, operando rente à rede de atenção à saúde
mental, frente à lógica do território (Brasil, 2005).
Esse progresso na implantação dos serviços substitutivos e a até então não aprovação
do projeto de lei da reforma psiquiátrica (Projeto de Lei Paulo Delgado) tiveram como efeito
uma intensificação no que diz respeito ao movimento dos profissionais de saúde e às
manifestações sociais (Barroso & Silva, 2011). Com isso, no dia 6 de abril de 2001, após 12
anos de tramitação no Congresso Nacional, a lei 10.216 (conhecida como Lei Paulo Delgado)
foi aprovada.
A lei 10.216 oficializa o atendimento psiquiátrico comunitário no país e garante os
direitos e a proteção de todas as pessoas acometidas por transtornos mentais. Dentre suas
funcionalidades, cabe destacar que tal lei veda a internação de pacientes portadores de
transtornos mentais em instituições com características asilares, assim como estabelece que o
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tratamento tenha, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.
Além disso, estabelece a preferência pelos serviços comunitários em detrimento da internação,
assegura o estabelecimento de serviços substitutivos ao longo de todo o Brasil e regulamenta
as internações compulsórias (Brasil, 2001; Barroso & Silva, 2011). E é logo após a aprovação
da Lei Paulo Delgado que ocorre a III Conferência Nacional de Saúde Mental, que consolida a
Reforma Psiquiátrica como política de governo.
Ainda nesta perspectiva de estabelecimento de leis e portarias que se mostraram
relevantes para o avanço da Reforma Psiquiátrica no Brasil e para o desenvolvimento dos
serviços substitutivos, torna-se ainda necessário apontar a criação da portaria de nº 336 no ano
de 2002. Esta reestrutura as portarias 189/91 e 224/92, apresentando definições e diretrizes
referentes ao funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial.
De acordo com Brasil (2011), a fim de promover uma redução gradual e planejada dos
leitos psiquiátricos, visando assim, também fortalecer a implantação dos serviços substitutivos,
o governo utilizou-se de dois mecanismos:
Assim, o programa aposta na expansão da rede social dos usuários, em busca do bem-
estar do indivíduo, gerando uma contribuição para com o exercício dos seus direitos civis,
políticos e de cidadania. Isso porque conta com o pagamento mensal do auxílio-reabilitação,
recebido pelo próprio usuário devido ao convênio estabelecido entre o Ministério da Saúde e a
Caixa Econômica Federal. Desse modo, cada indivíduo beneficiário tem acesso a um cartão
magnético que permite saques e o movimento de tais recursos (Brasil, 2005).
Posteriormente, um acontecimento que merece ser destacado, considerando-se o
histórico da Reforma Psiquiátrica, foi a “Marcha pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial”
que aconteceu em 2009 cuja finalidade era reajustar as Políticas de Saúde Mental do Ministério
da Saúde. Outra finalidade da marcha foi solicitar melhorias e/ou provocar expansão referentes
ao Programa Volta Para Casa, dar subsídios para maior protagonismo tanto dos sujeitos em
sofrimento quanto dos trabalhadores da Saúde Mental, além de expandir os benefícios, tal como
a LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), de modo a haver também um maior
desenvolvimento da Economia Solidária na Saúde Mental, bem como dar força e visibilidade
para a IV Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) (Pereira e Costa-Rosa, 2012).
Em resumo, conforme o parágrafo acima, pode-se dizer que a Marcha pela Reforma
Psiquiátrica Antimanicomial tinha como intuito “resgatar os princípios já obsoletos da Reforma
Psiquiátrica ou repactuar até onde se “reformou” de fato a instituição da loucura” (Pereira e
Costa-Rosa, 2012, p.1041). A mencionada marcha e os atores do campo da saúde mental, em
2010, obtiveram êxito ao terem solicitado a realização da IV Conferência Nacional da Saúde
Mental. A Conferência ocorreu de maneira memorável, já que se constituiu intersetorialmente,
avaliando um estágio de quase 9 anos de “construção e consolidação da Política Nacional de
Saúde Mental no SUS, tendo como fundamento seus avanços e desafios para a próxima década”
(Brasil, 2011, p.12).
O relatório originário da IV Conferência Nacional da Saúde Mental ganhou grande
destaque no que diz respeito à conjuntura de mudanças e ganhos referentes às políticas de saúde
mental no Brasil, pois reafirmou
Nos anos que se sucederam podem ser observados avanços no que compete à Legislação
Básica de Saúde Mental. Como exemplo, podemos destacar duas importantes portarias
relacionadas à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS):
A Portaria nº 3.088, que
De acordo com Shimoguiri (2016), a RAPS tem como objetivo viabilizar o acesso da
população à atenção psicossocial, de modo a propor a criação de espaços que permitam a
convivência e sustentação das diferenças presentes na comunidade. Tais características
propiciaram um movimento para além da clinica tradicional, de sorte que a RAPS constitui-se
por diversos estabelecimentos como as Unidades Básicas de Saúde (UBS); equipes de atenção
básica para populações específicas; Centros de Convivência; CAPS nas suas variadas
modalidades; enfermaria especializada em Hospital Geral; Residências Terapêuticas, entre
outros. Esses estabelecimentos, nas suas mais variadas especialidades, desenvolveram-se a fim
de constituírem-se como uma nova clínica – ainda apresentando o CAPS como sua peça central
– que possibilitaria que o sujeito usuário do serviço pudesse protagonizar o seu tratamento de
forma autônoma e responsável.
30
4
] O Saúde Mental em Dados é uma publicação da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas
do Ministério da Saúde, que, desde 2006, apresenta um quadro geral sobre os principais dados da Política Nacional
de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do SUS.
31
5
O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP - SP, 2016), em um dossiê referente aos anos de 2013
até 2015, fez uma atuação sobre as comunidades terapêuticas denunciando os maus tratos e as técnicas nada
terapêuticas utilizadas por entidades religiosas.
32
3.1.1 - Os CAPS
4 – As Psicoses
4. 1 – Foraclusão: o conceito
Assim, a foraclusão implica a não inclusão, para sempre, da história de vida do sujeito,
do significante primordial Nome-do-Pai, e seria este mecanismo de não inclusão que guiaria a
36
Entretanto, para que essa simbolização seja possível é necessário que algo venha a
intervir na relação entre mãe e criança, barrando a reintegração da criança pela mãe. Esta, que
num primeiro momento aparece para aquela como Outro absoluto, agora vem ser barrada pelo
significante Nome-do-Pai, que exerce a função simbólica da lei, e que se trata de um significante
que age como ordenador do conjunto de significantes. Desse modo, conforme Lacan
(1958/1999):
É, então, no terceiro tempo que haverá a queda do Complexo de Édipo. Neste tempo,
segundo Lacan (1958/1999), o pai intervém não como aquele que é o falo, e sim como aquele
que o tem, fazendo assim com que o falo apareça como o objeto desejado da mãe, e não mais
somente como o objeto o qual o pai pode privá-la. O pai aqui se insere enquanto real e potente,
intervindo como aquele que tem o falo, e é por meio disso que surgirá a possibilidade de
identificação. O menino poderá utilizar o pai como sua base identificatória do Ideal do Eu,
significando a sua virilidade. Já a menina se identificará à mãe, que não tem o falo, porém sabe
onde buscá-lo, e é junto ao pai. A partir disso é que ocorre o declínio do Complexo de Édipo.
Lacan irá tratar da questão do Édipo de maneira mais formalizada ao traçar o conceito de
Metáfora Paterna, importante para articularmos com o conceito de foraclusão como mecanismo
central na estruturação psicótica.
Lacan faz uma sintetização do Édipo no que ele apresenta como a fórmula da metáfora
paterna, ou da substituição significante:
Freud, em 1915, já afirmava que na psicose não há valor de símbolo, isto é, não há
diferenciação entre palavra e coisa como acontece na neurose. A palavra vem do Outro como
algo absoluto, não passível de metaforização. Diante desta ausência de metaforização, em que
o Nome-do-Pai não se inscreve no significante, surge um furo no significado, furo este que
substituirá a significação fálica. E é como uma tentativa de lidar com este furo, com esta
ausência de simbolização e com a relação direta com o real (que ganha voz com as alucinações)
que virão os delírios. O sujeito psicótico irá metaforizar seu delírio de maneira singular, criando
43
formas particulares de lidar com esta invasão do gozo do Outro que lhe aparece como absoluto
e ameaçador, como um real que lhe atravessa.
A falta de enodamento na cadeia significante acarreta em particularidades no uso da
linguagem, como em relação à temporalidade, que decorre em falhas na sucessividade do
discurso, em um uso próprio de pontuação na escrita, além de uma ordem sintática diferenciada,
resultando também em frases interrompidas (que demonstram as quebras na cadeia
significante). Trata-se de um discurso passível de falhas na coerência interna, apresentando
problemas nas conexões de sentido, além de maneirismos no decorrer da escrita. Na psicose,
não há uma separação entre palavra e coisa, no sentido de que a palavra perde a função de
símbolo, de forma que a linguagem (palavras, vozes) vem invadir o corpo (Lacet, 2004).
Essa invasão que o psicótico sofre do Outro é na medida em que o que o emudeceria
tratar-se-ia da inclusão do significante da castração. Entretanto, como na psicose este
significante encontra-se foracluído não ocorre a clivagem do Outro, que então aparece ao sujeito
como aquele que fala e que o invade. Não estar barrado significa que o Outro carece do
significante da Lei e, por isso, apresenta-se ao sujeito como absoluto, submetendo-o a ser seu
objeto de gozo. Sendo assim, o que diferencia a neurose e a psicose seria a relação que se
estabelece junto ao significante, ou seja, a sua relação com o Outro. Na neurose, a inscrição do
Nome-do-Pai permite ao sujeito fantasiar, o que funcionaria como um escudo, de forma a
impedir o impacto junto ao real. Já na psicose, a ausência de tal significante incide em uma
realidade psíquica que se estrutura a partir de um real que o domina e que resulta nos delírios e
alucinações. Isso implicaria um discurso desorganizado ao ver neurótico com uma
temporalidade particular e condizente à uma realidade própria (Calado, 2016). É um discurso
que está fora (cluído) e que não deve ser alvo de tentativas de compreensão e/ou organização
tradicional, assim como de adequação a uma realidade castrada.
Consoante Lacan (1955-56), o inconsciente do psicótico encontra-se a céu aberto. Nesta
lógica, o teto seria construído somente por meio do mecanismo do recalque, no caso da neurose.
As vozes, as palavras e o comando de um Outro gozador chegam o tempo todo a partir deste
céu que está escancarado, invadindo diretamente o sujeito. O psicótico ouve, ao pé da letra, a
voz imperativa de um Outro ao qual é submisso.
Além da relação particular com a linguagem, como afirmado anteriormente, na psicose
há uma relação diferenciada também em relação ao próprio corpo, devido à ausência de
significação fálica que incide diretamente sob os fenômenos do Imaginário. O psicótico diz de
um estranhamento e uma maior fragilização em relação ao próprio corpo, como se este não o
pertencesse.
44
A ausência de tal significante não permite ao psicótico dar unidade ao próprio corpo,
como se este estivesse fragmentado e alheio a si. Lacan, em O Seminário III (1955-56/1985)
afirma que
Ou seja, o sujeito constitui-se por meio da relação com o outro, com o seu desejo.
Entretanto, na neurose há algo que barra essa relação, possibilitando uma simbolização. Já na
psicose, essa relação alienante ao outro não é barrada. A partir desta alienação em relação ao
outro, então é que resultaria a fragmentação da representação do próprio corpo na psicose, uma
vez que não há diferenciação entre o eu e outro. Pensando-se sobre esta indiferenciação na
psicose entre o que é do sujeito e o que é do outro e a ausência de simbolização, quando chega
ao psicótico um discurso que diz sobre a necessidade da inclusão, mostra-se importante e
totalmente ético perceber e atentar-se em até que ponto esse discurso não pode ser simplesmente
sugado pelo indivíduo sem ter realmente algo do sujeito envolvido no próprio sujeito.
A alienação em relação ao outro mostra-se evidente em um caso trazido por Maleval
(2014), em que Norbert, no estágio juntamente a um aluno de sua classe, sente-se como uma
“esponja”, porque acaba por perceber que repete os gestos e as palavras do seu amigo. O sujeito
se vê sem personalidade e percebe que, ao pensar, também imita a entonação do colega. Diz ser
algo que o incomoda e que se repete.
Em se tratando, mais especificamente de uma relação de desprendimento do próprio
corpo, podemos trazer o exemplo do escritor Joyce (1882-1941), estudado por Lacan, em O
Sinthoma (1975-76/2007). Neste, Lacan apresenta um episódio retratado por Joyce em que ele
toma uma surra.
(Miller, 2010). Já a psicose ordinária apresenta-se de uma maneira mais sutil, podendo ser
percebida por meio de pequenos e específicos indícios, que são possíveis de se passarem por
despercebidos e exigem uma maior atenção do analista ao realizar o diagnóstico diferencial. Ou
seja, vemos aí a necessidade de se pensar um tratamento para a psicose que não necessariamente
se desencadeia.
Considerando-se a crítica de Miller a uma clínica binária, mostra-se importante também
reconhecer a relevância de se estabelecer o diagnóstico estrutural do sujeito em análise, visto
que, é somente com base neste que se poderá delimitar o rumo do tratamento. As formas de
atuação do analista deverão diferenciar-se frente ao gozo desenfreado na psicose ou frente à
análise do recalcado na neurose (Maleval, 2014).
Nesse trabalho de análise, que envolve uma busca pela identificação da estrutura do
sujeito, surge a dificuldade do analista quando este se depara com sujeitos que não possuem
histórico de psiquiatrização, e nem mesmo de delírios, alucinações e melancolia, mas que,
entretanto, ainda assim apresentam indícios de psicose. Isso poderia ser pensado então com base
no significante de psicose ordinária. E cabe destacar que esta não seria uma nova estrutura de
psicose, mas se encaixaria na já existente, diferenciando-se da psicose clínica pelo modo pelo
qual se manifesta e originalmente se estabiliza (Maleval, 2014).
Chegar à formalização conceitual acerca da psicose ordinária implicou ir além dos
primeiros ensinamentos de Lacan sobre a psicose, tal qual De Uma Questão Preliminar a Todo
Tratamento Possível da Psicose (1957-1958) e O Seminário III (1955-1956), em que o autor
trabalha com o conceito de desencadeamento e define os sintomas clássicos psicóticos –
delírios, alucinações e transtornos de linguagem. O que vem amparar, então, uma ideia
atualizada da clínica psicose e o que será futuramente desenvolvido por Miller por meio da
denominação de psicose ordinária trata-se do que é chamado como o segundo ensino de Lacan,
e conhecido como “clínica borromeana”. Esta é contemporânea aos Seminários RSI (1974-75)
e O Sinthoma (1975-76), e vem projetar a clínica psicanalítica para além de um divisionismo
simplista entre psicose e neurose, que se daria em função basicamente da presença ou ausência
da função Nome-do-Pai (Miller et. al, 1999).
Como já mencionado anteriormente, o termo psicose ordinária foi introduzido por
Miller em 1998 e, assim, o foi como um resultado de encontros anuais orientados por ele, que
ocorreram entre 1996 e 1998. Tratavam-se de Seções Clínicas francófonas que pertenciam ao
Campo Freudiano, sendo elas: O Conciliábulo de Angers, a Conversação de Arcachon e a
Convenção de Antibes.
47
O primeiro encontro deu-se em 1996, foi nomeado como Efeitos de Surpresa nas
Psicoses e ocorreu no Conciliábulo de Angers (Miller et al 1996-97). Tal encontro destinou-se
a discutir sobre os elementos surpresas que os analistas, de forma recorrente, encontravam no
cotidiano da clínica das psicoses. Examinaram e discorreram, então, sobre casos clínicos que
se mostravam fora do que até então seria considerado padrão e que eram cada vez mais
recorrentes, de forma que os modos de interpretação clássicos da psicose já não sustentavam a
sua clínica atual (Guedes & Luchina, 2016).
O segundo encontro, em 1997, teve como temática “Casos raros e inclassificáveis da
clínica psicanalítica” e se deu na Convenção de Arcachon (Miller et al, 1997-98). Neste,
discutiu-se acerca da ideia de continuidade e descontinuidade das estruturas clínicas lacanianas,
problematizando-se a respeito dos casos que fugiam às clássicas classificações estruturais, de
maneira que se apresentavam como “inclassificáveis”. Os casos clínicos em questão
manifestavam uma sintomatologia oscilante, de modo que o diagnóstico permutava
frequentemente entre neurose e psicose. Além disso, problematizou-se a respeito dos novos
modos de suplência psicótica. Dessa forma, foi colocada a necessidade de uma maior discussão
sobre as formulações teóricas acerca da clínica das psicoses, que se mostravam insuficientes
naquele momento.
E o terceiro momento, que foi considerado como o “momento de concluir” realizou-se
com a denominação de “A Psicose Ordinária – A Convenção de Antibes”. Esse encontro visou
dar um fechamento e formalização conceitual ao que fora apreendido das discussões colocadas
até então. Miller (2010) aponta que aquilo que no início aparece sob a perspectiva de surpresa,
em um segundo momento já passa a ser analisado enquanto casos raros para então, nesse
terceiro tempo, adquirir o estatuto de casos frequentes. E é a partir desse momento que se
começa a falar especificamente sob a terminologia de psicose ordinária.
A psicose ordinária mostra-nos que é possível pensar um tratamento da psicose sem que
esta necessariamente apresente um desencadeamento clássico com delírios e alucinações, logo,
pensar em uma nova concepção de clínica. Ou seja, a clínica mostra-nos que se levarmos em
consideração esse saber do sujeito com base em sua estrutura podemos encontrar modos de
estarmos na reforma psiquiátrica a partir de um saber também elaborado na clínica que pode se
conjugar com o saber vindo da militância social.
Miller (2010) apresenta que na psicose ordinária os sujeitos apresentam uma desordem
no seu sentimento de vida e essa desordem mostra-se no modo como “experimentam o mundo
que os cerca, na maneira como experimentam seu corpo e no modo de se relacionarem com
suas próprias ideias” (p.14). E é então que o autor situa essa desordem, baseando-se em uma
tripla externalidade, sendo elas: externalidade social, externalidade corporal e externalidade
subjetiva.
A externalidade social pode se mostrar como uma identificação social negativa às
funções sociais, como quando o sujeito não se ajusta. Dessa forma, haveria sucessivos
desligamentos sociais, seja em relação ao trabalho, à família, constando como uma barreira, um
distanciamento do Outro. Uma identificação social negativa poderia ser exemplificada por meio
do caso clínico de uma mulher chamada Apollinaire, que
Quanto à externalidade corporal, esta diz respeito à relação do corpo enquanto Outro
para o sujeito, já que na psicose ordinária há um desfalecimento do corpo, de forma que “o
sujeito é levado a inventar para si laços artificiais para apropriar-se de seu corpo, para “prender”
(serrer) seu corpo a ele mesmo” (Miller, 2010, p. 17). É como se ele utilizasse de uma presilha
que tivesse o poder de manter seu corpo junto a si. Para isso, o sujeito poderia se tornar
49
musculoso, passar por diversos tipos de cirurgias de modificação corporal, tatuar-se, colocar
piercings e etc., tudo isso de forma a produzir uma demarcação corporal, ou seja, uma
demarcação de gozo. Sendo assim, essas demarcações poderiam ocupar o lugar de Nome-do-
Pai na relação que o sujeito estabelece com seu corpo (Guedes & Luchina, 2016).
Poderíamos citar como exemplo o caso clínico de Sylvie, uma mulher de 28 anos com
histórico de tentativas de suicídio, que desde os quinze anos escarifica o próprio rosto e os
antebraços com lâminas de barbear. Ela não tem explicações sobre o motivo pelo qual o faz,
entretanto, sabe dizer sobre a primeira vez que se deu a passagem ao ato. Esta ocorreu após ter
sido reprovada em um exame de admissão, tendo sido zombada por um menino de sua sala que
lhe dizia que ela era uma fracassada. Relata que tal experiência teria sido da ordem do
insuportável. Dessa forma, quando se corta Sylvie admite haver um alívio da angústia, que se
dá através do sangue que escorre. Ou seja, a partir disso, ela tem um corpo, o seu corpo (Miller
et. al. 1998). Seria então, por meio do corpo que Sylvie poderia dar vazão a este gozo que lhe
invade e que se mantém na ordem do insuportável.
Passando à externalidade subjetiva, de acordo com Miller (2010), esta poderia ser
identificada na psicose em relação ao sentimento de vazio, de vacuidade, daquilo que há de oco
na psicose ordinária. Mesmo na neurose, podemos falar dessa experiência oca, na psicose nota-
se que vai além, ao extremo. Haveria uma identificação com o objeto a, com a posição de dejeto.
E isso vai ao extremo, pois “a identificação não é simbólica, mas real, porque ultrapassa a
metáfora. O sujeito pode se transformar num rebotalho, negligenciando a si mesmo ao ponto
mais extremo” (p. 18).
Para exemplificar tal experiência de vacuidade na psicose, poderíamos citar o caso
clínico trazido por Maleval (2014), sobre o artista francês e psicótico Artaud, que se afirmava
vazio, de forma a precisar de outro alguém para pensar. Isso fica claro quando Artaud afirma
que
Ao não dispor do significante fálico, Artaud utiliza da presença física dos outros para
apoiar os seus significantes. Dessa maneira, essa presença física lhe propicia fazer uma ligação
50
entre gozo e fala. Vê-se, assim, que Artaud usa a imagem do outro para ser capaz de enquadrar
o objeto a (Maleval, 2014).
A discussão em torno da Psicose Ordinária e seus índices de externalidade traz-nos a
reflexão sobre como o sujeito pode usar amplamente o seu social, o seu corpo e o seu subjetivo
para desenvolver as mais variadas maneiras para dar conta do gozo que o invade. Considerar
isso implicaria em também visualizar novas formas de pensar um tratamento que não se
limitasse apenas à sua questão de exclusão social, uma vez que, não necessariamente, haverá
desencadeamento, e, logo, exclusão. Por isso, destacamos a importância de se ter em vista as
especificidades da estrutura psicótica ao lidar com o Outro, de forma que isto poderia até mesmo
evitar um futuro desencadeamento. Nesse sentido, continuaremos a discussão acerca dos três
principais indícios de um diagnóstico em psicose ordinária.
Conforme exposto anteriormente, através do último dos três encontros organizados por
Miller acerca da psicose ordinária, denominado como a Convenção de Antibes, chegou-se a
uma formalização acerca de três principais indícios que devem ser considerados ao se pensar
um diagnóstico estrutural de psicose ordinária. Desenvolveremos então, sobre cada um deles,
buscando trazer exemplos de casos clínicos, a fim de caracterizar melhor a teoria.
4.5.2.1 – O neodesencadeamento
Destarte, vemos que ao mesmo tempo em que a jovem desliga-se do laço social, ela se liga à
pulsão.
Dessa forma, vemos que na psicose ordinária não há necessariamente desencadeamento,
podendo haver sucessivos desligamentos e religamentos ao Outro, de acordo com os mais
variados tipos de laço que o sujeito pode usar para se estabilizar. Percebemos também que,
muitas vezes, essas maneiras de fazer laço com o Outro não se relacionam com o social. Isso
não implica dizer que a ideia de tratamento via inclusão social seja descartável, mas sim que
ela pode ser complementada com a clínica, tendo-se em vista a abrangência desta sobre uma
discussão acerca da caracterização em torno da estrutura psicótica em sua mais essencial
particularidade.
4.5.2.2 – As neoconversões
4.5.2.3 – A Neotransferência
representar. Desse modo, segundo Lacan (1985), a linguagem é aquilo que o discurso científico
elabora, visando dar conta da lalíngua.
De acordo com Miller et. al (1999), “o que motiva a neo-transferência não é o sujeito
suposto saber, mas a lalíngua de transferência, enquanto o que permite que um significante
possa fazer sinais de algo que está fora do sentido: onomatopéia, cifra, marca" (p. 150).
Destarte, um tratamento via lalíngua aposta no significante como a via que permite fazer signo,
e não como via de busca por sentido.
Como afirma Lacan (1985), há diferença entre um saber sobre a lalíngua, que seria da
ordem da linguagem e um saber fazer com a lalíngua, que é da ordem do inconsciente. Assim,
o saber fazer com a lalíngua vai para muito além dos limites da linguagem, já que esta “nos
afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem, e no qual os efeitos de lalíngua, que já estão
lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala e suscetível de enunciar” (Lacan, 1985,
p.190). Ou seja, um dos primeiros efeitos da lalíngua diz do afeto.
Segundo Guedes e Luchina (2016), enquanto a linguagem se constitui como
comunicação direcionada ao Outro, a lalíngua encontra-se separada da estrutura da linguagem,
de modo a operar como gozo. Isto é, lalíngua e gozo andam juntos e são anteriores à estrutura
de linguagem. A lalíngua vem antes da articulação entre S1 e S2, que resulta na significação, o
que implica que a lalíngua forma uma cadeia significante sem efeito de sentido. E será com
base nisso que o analista deverá operar, de maneira a saber fazer com a lalíngua.
Como exemplo de um analista que opera a partir da lalíngua, poderíamos citar um caso
clínico que é apresentado na Seção Clínica de Angers (1996-1997) e depois apresentado
novamente, em prol desta discussão acerca da neotransferência, na Convenção de Antibes
(1999):
O caso supracitado tratava-se de psicose disfarçada por uma deficiência intelectual leve.
Por meio da ação do analista de compreender a lalíngua da paciente e operar através dela, no
caso criando a língua Donald, vemos como funcionaria um caso de neotransferência. O analista
usa a lalíngua da transferência para inventar um laço social. Desse modo, a neotransferência
dá-se em função de que o analista opere a partir da lalíngua, de forma a buscar compreendê-la
na sua singularidade, facilitando a invenção de um laço social que se daria em função da
elaboração de um saber.
Assim, mais uma vez, percebe-se a relevância da dimensão clínica no cuidado do
psicótico, de forma que a lalíngua de transferência possibilita a produção de um saber que pode
resultar no estabelecimento de um laço. Isso nos permite pensar no desenvolvimento de uma
clínica que possa, em si, conjugar as questões sociais que decorrem de um período muito grande
de exclusão social à uma clínica focada no sujeito, pois é só por meio dele que o psicótico
poderá criar maneiras singulares de fazer laço com o Outro e estabilizar-se.
A relação do psicótico com o social dá-se de uma maneira muito delicada e singular.
Uma vez que o Outro já lhe invade o tempo todo, é muito fácil que um discurso inclusivo, que
vem de fora, chegue a ele como também uma invasão e/ou exigência de adequação, o que
poderia resultar em uma cronificação do caso, ou até mesmo no próprio motivo de
desencadeamento, já que o seu enodamento é forjado e frágil. Daí entra a necessidade da clínica,
uma vez que esta está focada no sujeito e nas suas formas mais singulares de lidar com o Outro.
É sempre relevante, ao se pensar na psicose e sua relação com a inclusão social, lembrar que o
psicótico se faz sujeito por meio da sua foraclusão, contendo assim, algo de muito delicado
nesse processo, mas que não o impossibilita de ser desenvolvido. Por isso, caberia, no capítulo
seguinte uma discussão mais a fundo sobre a relação que se estabelece entre ambas perspectivas,
de cunho social e cunho clínica, mais especificamente psicanalítica, de forma a pensar sobre
um enlace coerente e possível entre elas.
56
Tendo em vista o capítulo anterior, fica evidente toda a transformação em torno das
psicoses, o que resultou no conceito contemporâneo de psicoses ordinárias. É indispensável ao
se trazer um diálogo atual sobre a psicose, reconhecer que a cultura e o Outro contemporâneo
incidem diretamente no modo como as estruturas podem se apresentar, seja na neurose por meio
dos novos sintomas, seja na psicose por meio das psicoses ordinárias. Como coloca Garcia
(2002), o interesse da Psicanálise, que antes era debruçado sobre a psicose extraordinária
(modelo Schreberiano), agora se volta para as psicoses mais discretas: “a psicose compensada,
a psicose suplementada, a psicose não-desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia,
a psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sistemática” (p.81). Ou seja, diante das
diversas formas como a psicose ordinária pode se apresentar, é clara a dificuldade que se
apresenta de distinção entre neurose e psicose.
Poderíamos situar aqui mais um argumento a ser usado pela psicanálise quanto a esta
não compactuar com o regime manicomial (além das razões que dizem respeito ao tratamento
desumano que era destinado aos loucos). Tal argumento diz respeito ao fato de que frente às
tamanhas possibilidades que uma psicose ordinária poderia apresentar-se e frente a tamanho
emaranhamento entre as estruturas, como propor então um aprisionamento para os indivíduos?
Ou ainda, mesmo em psicoses desencadeadas, não poderíamos pensar outros modos de
acompanhamento em que as produções dos loucos seriam maneiras de responder a um
insuportável e meios de cura, tal como Freud (1914) fala sobre os delírios dos psicóticos?
Dessa maneira, não há dúvidas quanto ao posicionamento contrário da psicanálise em
relação à estrutura manicomial. A psicanálise caminha junto à Reforma Psiquiátrica, no
contexto atual da Saúde Mental, e reconhece totalmente a sua importância, tendo em vista o
movimento em torno da desospitalização do louco. É visível que há um estranhamento em
relação aos seus objetivos, porém, a intenção mesma deste trabalho seria a de apresentar
discussões acerca de um diálogo entre ambas as perspectivas. Afinal, a própria Reforma
Psiquiátrica, com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), vem inaugurar e
ressaltar a possibilidade de diálogo entre diferentes disciplinas.
De acordo com França Neto (2013), a Reforma Psiquiátrica aliada à perspectiva
psicanalítica vê-se diante de um impasse referente aos seus objetivos. Isso porque, mediante ao
primeiro passo dado, relativo à desospitalização e quebra do regime manicomial, seus esforços
deveriam estar direcionados fortemente ao desenvolvimento de medidas inclusivas no que tange
57
escuta objetivaria suscitar o compromisso do sujeito quanto ao seu sofrimento, de maneira que,
a partir da sua própria palavra, surjam questões a serem decifradas e as quais sustentariam uma
demanda para se manter a análise. Em suma, investe-se na abertura de um espaço em que o
sujeito possa criar uma maneira singular de lidar com o insuportável, contornando aquele real
devastador com o qual se deparou (Calazans & Bastos, 2008).
Desse modo, pelo uso dos psicotrópicos busca-se silenciar os delírios e alucinações do
louco em uma época em que não se lida com a falta, de forma a conter o que é excesso (que
antes era contido através dos manicômios). Freud (1911/1996), entretanto, apresenta-nos que
“a formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa
de restabelecimento, um processo de reconstrução” (p.44). Sendo assim, a psicanálise parte da
ideia de se “resgatar a possibilidade do delírio, sua dimensão de verdade do sujeito, ajudando-
o a construir respostas para os enigmas que o perseguem” (Kyrillos, 2010, p. 64).
Como os sujeitos, então, poderiam construir suas significações se elas são impedidas de
serem desenvolvidas pelos psicotrópicos? Não seria esta uma forma de apagamento do sujeito,
já que suas produções subjetivas são inibidas, impedindo a própria organização particular do
seu gozo desenfreado? Então, o uso de uma medicalização que o normatiza o sujeito, tirando-
lhe o que lhe é mais subjetivo, juntamente à inclusão social enquanto um ideal pro seu
tratamento, não poderiam ser pensadas enquanto formas de padronização?
Essa adesão ao uso de medicação psicotrópica e a própria inclusão poderiam ser
analisadas por meio da ideia lacaniana de discurso do mestre. O significante mestre (S1) é o
ponto do discurso que sustenta a sua significação. Quando um discurso tem o S1 como seu
agente de discurso, ou seja, como aquilo a partir do qual se tem toda a base e origem, e que tem
o poder de justificação sobre tudo, encontramos aí o discurso do mestre (Dunker & Kyrillos,
2004).
A relação clássica entre médico e paciente é marcada pelo discurso do mestre, em que
o médico é que tem o domínio sobre o saber sobre o paciente. No contexto da saúde mental
atual, entretanto, podemos ver a transição entre esse discurso, que era predominante do médico
psiquiatra sobre o paciente, deslocar-se para um discurso que vem do trabalhador em saúde
mental (que engloba toda a multidisciplinaridade do CAPS) sobre o usuário de saúde mental.
Diante disso, caberia questionar se houve também um deslocamento do discurso do mestre entre
médico-paciente para o de trabalhador de saúde mental- usuário (Dunker & Kyrillos, 2004).
A inclusão social, quando colocada enquanto uma base central de tratamento do louco
pelo CAPS, aparece mais como uma necessidade do que como uma possibilidade. Isso torna-
se evidente ao observarmos os próprios fundamentos políticos da instituição, uma vez que a
59
inclusão social aparece como um dos fatores cruciais no seu funcionamento. E essa colocação
do CAPS como um eixo central resultaria no que Dunker e Kyrillos (2004) chamam imperativo
da inclusão.
De acordo com os mesmos autores, o movimento de exclusão do louco, reforçado pelo
regime manicomial, gerou, em contrapartida, os fundamentos reformistas da inclusão, ou seja,
o imperativo de recusa à exclusão resultou no imperativo da inclusão, o que acaba por manter
um discurso do mestre, pois o que antes aparecia como recomendações de cunho médico, agora
aparece como recomendações pautadas em ações sociais e políticas: o paciente torna-se usuário
de saúde mental. Verifica-se, dessa maneira, que ainda se mantém um discurso que sabe sobre
o louco, porém, o que vem do sujeito do louco nesse discurso? Até que ponto essa inclusão é
uma demanda advinda dele mesmo, e não algo que ele apenas reproduz e toma para si?
Certos pacientes mantêm-se à margem desse ideal da inclusão, mantendo-se centrados
à sua própria produção delirante. Outros, em contrapartida, aderem facilmente ao discurso
inclusivo, ajustando a sua demanda ao significante mestre em questão. O discurso, de acordo
com a teoria lacaniana, se forma por meio do laço social, laço este que é inexistente na psicose.
Assim, conforme vimos anteriormente, não há produção de cadeia significante regulada
pelo falo na psicose. Entretanto, há possibilidade de criação de laço social por meio de uma
amarração forjada entre significante mestre (metáfora delirante e suplência) e saber, uma vez
que o psicótico usa da linguagem, porém sem a intenção primeira de se comunicar. Visualiza-
se, desse modo, a possibilidade de estabilização dos pacientes que se engajam no ideal da
inclusão, de forma que criam esse laço artificial entre o significante mestre oferecido pelo
modelo de saúde mental e o seu saber (sua produção delirante). E uma vez incorporado este
significante mestre que parte do modelo atual de saúde mental, vê-se que, muitas vezes, também
se incorpora a demanda dos psicotrópicos, uma vez considerada a sua inter-relação (Dunker &
Kyrillos, 2004).
A medicalização vem agir como uma maneira de correção do sujeito, já que visa a
eliminação dos seus sintomas, aquilo que os diferem. Uma das grandes contribuições da
Psicanálise, no contexto da Reforma Psiquiátrica, diz respeito à maneira como encara o
sofrimento mental, percebendo-o não como uma doença ou déficit, ou seja, algo a ser corrigido,
e sim como condizente a um registro da diferença. A loucura incomoda e isso se dá pelo fato
de ela não se deixar ser instrumentalizada pelo “conhecimento sábio” que padroniza os nossos
laços sociais. Em outras palavras, a loucura se mantém marginalizada a qualquer tentativa de
institucionalização (França Neto, 2013). É um excesso impossível de ser apropriado, por isso a
psicanálise aponta para a insuficiência da lógica manicomial.
60
Ou seja, a cidade seria um espaço que deveria apenas ter em comum as relações
exteriores dos cidadãos, sendo apenas onde estes se esbarram. O sujeito político seria aquele
que se apropria da exterioridade constitutiva da cidade. Uma vez que a soberania do sujeito
surge, não há contentamento em permanecer resumido no âmbito jurídico-formal, no âmbito
dos direitos. O cidadão se constitui sujeito a partir do momento em que este representa/apresenta
um acontecimento. Enquanto isso, um sujeito se faz cidadão a partir do momento em que este
espaço cívico, em comum, se desenvolve, adentrando as suas particularidades subjetivas
(Garcia, 2000).
Em meio a isso, tendo-se em vista a existência de uma tensão entre cidadão e sujeito,
seria então possível pensar em uma clínica que articule o que é da ordem do desenvolvimento
do sujeito e aquilo que é da ordem do desempenho da cidadania? Poderíamos pensar tal questão
com base na constatação da existência de um novo laço social que seria gerado por meio da
tensão existente entre sujeito e cidadão. Esse laço social mostra-se de natureza política, uma
vez que é marcado pela soberania do sujeito (Garcia, 2000).
Uma forma de abordar tal tensão seria pensar sobre qual seria a fronteira entre o humano
e o desumano. Sabe-se que, ao considerar o estatuto teórico e o valor na prática atribuído ao
conceito de angústia, pode-se considerar também que ela é uma função humana, no sentido de
que ela é o que movimenta o humano a experienciar o real, atravessá-lo. Em contraponto,
enquanto há essa dificuldade em se nomear o que é propriamente humano, dado que a
humanidade se renova a cada travessia do real, há também um conhecimento imediato sobre o
desumano (Garcia, 2002).
Sendo assim,
Da mesma forma, se o humano classifica-se como a negativa do desumano, isso seria suficiente
para se pensar em um tratamento da loucura, uma vez que o louco se restringe a um campo
onde o humano não pode ser reconhecido?
Nesse sentido, segundo Garcia (2000), caberia situar em qual relação seria possível de
se articular entre as fronteiras do humano e do desumano, pensando-se em qual seria o limiar
ideal de tratamento elaborado diante dessa não-humanidade. Diante de tal questão, poderíamos
nos basear em uma outra perspectiva que lidasse com uma definição positiva do homem e suas
implicações éticas, incluindo, assim, o não-humano. Para isso, mostra-se necessária uma quebra
em relação a atual e comum visão do homem enquanto vítima, uma vez que “os direitos desse
homem-vítima serão, consequentemente, os direitos de uma vítima e o tratamento a ele
reservado será aquele reservado a uma vítima” (p.25). Reduzir um homem à vítima, é reduzi-
lo também à sua condição animal. Contudo, mesmo diante do fato de que o homem é uma
espécie animal, cruel e mortal, a singularidade humana é impossível de ser apreendida enquanto
mortalidade e crueldade.
Um homem-vítima é um homem reduzido às suas condições biológicas, isento de
singularidade. A Ética, entretanto, visa atentar-se ao que é do sujeito, ao que ele pode e o que
ele pode querer a partir desse poder. Dessa forma, uma Clínica do Social teria como inimigo a
ideia de um homem-vítima que se mantém escondido sob a proteção do sistema, não deixando
emergir o que é da ordem do sujeito. Sendo assim, a Clínica do Social debruça-se sobre o intuito
de fazer surgir o sujeito que se posiciona, de modo a denunciar qualquer tentativa de relação
unívoca com um Outro absoluto e ameaçador (Garcia, 2000).
Nesse sentido, quando situamos o psicótico como uma vítima de exclusão pela
sociedade, propondo-lhe apenas a inclusão, como estaríamos facilitando aí a imersão do sujeito?
Apenas incluí-lo no social fará com que este se depare de frente com o Outro gozador, sem,
todavia, criar maneiras singulares de lidar com este. Por isso, vemos a importância de uma
Clínica do Social que venha trabalhar não só com alternativas de lidar com a exclusão, mas
também com um auxílio junto às criações subjetivas que o sujeito poderá desenvolver para
também lidar com o sofrimento que uma inclusão e, logo, um embate com o Outro, pode lhe
causar.
Mas como poderíamos, então, definir uma Clínica do Social? “Uma Clínica do Social
deve avaliar a atividade, o interesse e atenção da clínica à subjetividade de cada um, articulando
esses procedimentos com um programa de ação política como prática no dia-a-dia do cidadão”
(Garcia, 2000, p.7).
63
Na Clínica do Social, Garcia (2000) trabalha com a ideia de um pro-jeto. Tal palavra
tem as sílabas separadas com o intuito de dar destaque ao termo “jeto” (lançar-se), como
também ao prefixo “pro” (pra frente). Um pro-jeto tratar-se-ia de “um impulso que lança e
relança uma pessoa, a cada dia, em sua labuta diária” (p.55).
Nesse sentido, de acordo com Garcia (2000) um pro-jeto de vida não seria constituído
de representações habituais, de forma que não corresponderia a um projeto pronto e
anteriormente estruturado, mas totalmente singular, construído com base na história de vida de
cada um. Sendo assim, a noção de pro-jeto defenderia a apreensão de cada caso, atentando-se
ao que há de mais singular, ou seja, não há manual ou direção de tratamento já estabelecido.
Deverá considerar-se não só a individualidade do sujeito, como também da comunidade na qual
está inserido. Além disso, observamos a importância também de se inserir o sujeito-alvo na
própria criação das estratégias que visam atingi-lo, de modo que haja nelas o que é ordem da
sua subjetividade. Dessa forma, o pro-jeto lida com as saídas e os impasses pelos quais o sujeito
se depara, buscando não somente incluir as questões sociais, como também possibilitar uma
relação que estabeleça uma defesa frente ao real do gozo invasivo na psicose.
Uma Clínica do Social, então, é aquela que prioriza o sujeito; sujeito este que poderá,
ou não, inserir-se no meio social, colocando algo de si na sua apreensão do meio, podendo
tornar-se, não apenas um cidadão, mas um sujeito-cidadão, uma vez que o sujeito-cidadão é
aquele que é capaz de habitar a cidade e representá-la com base em questões próprias, imprimir
algo da sua subjetividade na cidade para, diante disso, poder exercer sua cidadania. E aplicando
isso ao tratamento do psicótico via CAPS, envolveria um trabalho da psicanálise em conjunto
com os propósitos sociais que fundamentam a Instituição, de forma a construírem juntos com
o sujeito uma possibilidade de laço, apoiados na escuta pela qual se constitui uma clínica
individual.
Dessa maneira, havendo uma interseção entre os saberes da Psiquiatria, que junto a
outros saberes permeiam a instituição CAPS e a Psicanálise, percebemos que a Psiquiatria deixa
de servir somente ao seu propósito social, utilizando-se também das críticas referentes às
respostas que ela mesma oferece, interessando-se pelo sujeito que diz do saber que a sustenta
(Garcia, 2002). Observamos assim, a possibilidade de construção de um saber em conjunto e
uma visão crítica, que valoriza o que vem do próprio sujeito-alvo e onde a psicanálise se inserirá
ao “se tratar de assuntos que dizem respeito ao ser falante, à palavra e ao discurso desse mesmo
ser falante” (p.21).
Nesse sentido, vemos que a atuação da psicanálise visaria também operar de forma a
diminuir a relevância que se coloca diante do suposto saber, que predomina sob a instituição e
64
seus “mestres”, contribuindo para um novo olhar sobre o saber que vem do sujeito (Garcia,
2002).
Sobre esse movimento de desapego em relação ao sujeito e ao suposto saber, França
Neto (2013) propõe que o acompanhamento terapêutico dos ditos loucos consistiria em “uma
prática em que a ação envolvida exige o assentimento de uma destituição. É buscando libertar-
se dos técnicos que os pacientes poderão resistir enquanto sujeitos” (p. 10). Ou seja, o louco
garantiria a sua existência enquanto sujeito por meio de um fracasso das intervenções que
visariam a sua absorção ou, em outras palavras, inclusão, absorção, padronização. Intervenções
estas que lhe seriam estrangeiras, intrusivas, já que esse sujeito, ao contrário, está fora(cluído).
E a função dos técnicos, em meio a isso, seria a de constantemente ultrapassar e recriar diante
do fracasso que é pertinente ao processo
Sendo assim, é notável que, mesmo diante de objetivos diferentes, é possível pensar em
uma interseção entre o âmbito social e político de tratamento do louco via CAPS e o âmbito
clínico, por meio da psicanálise. E ao pensar sobre tal interseção, de acordo com Tenório (2002),
6 – Conclusão
Há uma discussão em torno da ideia de loucura e da forma com que atualmente lidamos
com ela e a tratamos, que parte do que chamamos de Saúde Mental. Com base em tal discussão,
vemos que a loucura, ou sofrimento mental, passou por diversas transformações ao longo do
tempo e isso poderia ser pensado por meio de três paradigmas propostos por Lantéri-Laura
(2000), e um quarto, que poderíamos propor através das questões analisadas a partir desses
paradigmas: da alienação mental, da doença mental, das estruturas psicopatológicas e da saúde
mental.
Essas transformações, de um paradigma para outro, implicaram um primeiro momento
de mudança da visão sobre o louco, até então caracterizado por uma desrazão, alterando-se para
um sujeito que diz de uma alienação mental. Quando Pinel coloca a loucura no âmbito da
alienação mental, sugere dizer que se trata de algo que é pertencente à esfera do sujeito, sujeito
este que pode ser resgatado. Em outras palavras, o louco passa a ser visto como um sujeito
passível de obter cuidados, tratamento.
Essa nova percepção do louco enquanto um sujeito acarretaria em um novo paradigma
que viria a buscar de forma mais biológica os motivos da loucura, pensando-se na alienação
mental enquanto uma doença mental. Nesse paradigma, a psiquiatria torna-se a área de
especialização médica responsável pela doença mental. Já no terceiro paradigma, há uma busca
mais fenomenológica, no sentido de uma preocupação com o modo pelo qual o sofrimento
mental se mostraria na vida individual do sujeito. Decorre daí a própria fundamentação do
pensamento lacaniano, que é a perspectiva teórica na qual baseamos esta dissertação.
E o último e atual paradigma seria concernente ao da Saúde Mental, que também
perpassa o tema desta dissertação. O atual paradigma associou-se, devido ao seu caráter
antimacomial, aos ideais de um movimento que se denominou Reforma Psiquiátrica e que
trouxe consigo uma nova visão sobre o tratamento do louco. A Reforma Psiquiátrica vem se
posicionar contra o regime asilar, partindo do princípio de que tal regime poderia até mesmo se
classificar como uma das causas e/ou prolongamento do sofrimento psíquico.
O processo de Reforma Psiquiátrica inicia-se no Brasil no fim da década de 70 e início
de 80, e contou com a implementação de serviços que vieram substituir os manicômios, como
uma nova alternativa de cuidado. Dentre tais serviços, é que surgem os Centros de Atenção
Psicossociais (CAPS), que contam em sua base de tratamento com a proposta de inclusão social
do louco, que é outra via de pensamento pela qual partiremos para pensar o nosso problema de
66
pesquisa, sendo ele: Quais as possibilidades e limites da inclusão social do psicótico no CAPS,
considerando-se que este é um sujeito foracluído?
Diante de tal problema de pesquisa, coube a necessidade de se definir o que seria então
a foraclusão e porque esta traria consequências para um tratamento inclusivo do psicótico.
Lacan vem traduzir o termo Verwerfung, anteriormente utilizado de maneira não sistemática
por Freud, por foraclusão. Foraclusão seria então delimitado na teoria lacaniana como o
conceito referente ao mecanismo operatório específico da psicose na primeira clínica e traria
implicações diretas no modo pelo qual o psicótico relaciona-se com o Outro.
A foraclusão envolve-se em uma falha na operação da metáfora paterna, falha esta que
se dá pela não inscrição do significante Nome-do-Pai. Essa foraclusão vem delimitar a entrada
do sujeito na psicose. A partir do momento em que não há inscrição do falo como significante
no Outro, não há também castração simbólica. Não havendo castração simbólica, não há
significação fálica, resultando em Outro que não será barrado, mantendo o sujeito como o seu
objeto de gozo.
Dessa forma, a relação que o psicótico estabelece com o Outro é de cunho muito
delicado, uma vez que permanece enquanto seu objeto de gozo. Tendo-se em vista que o que
condiciona a existência de um laço com o Outro é o sujeito reconhecer-se faltante, vemos aí a
condição-problema deste laço. E diante desse Outro absoluto e gozador, é que inserimos o
questionamento: Como trabalhar com um ideal de tratamento baseado na inclusão social do
psicótico mediante um laço problemático com um Outro que o invade constantemente? A
clínica psicanalítica vem, nesse sentido, facilitar que o sujeito crie, por meio das suas produções
subjetivas, maneiras particulares e o menos invasivas possíveis de laço com esse Outro invasor,
lidando com o real que o invade.
Buscando trazer mais conteúdo e atualizar a presente discussão que parte de uma
abordagem psicanalítica acerca das possibilidades concernentes ao tratamento do psicótico a
partir da sua inclusão social, coube delimitarmos a noção de Psicose Ordinária. Miller et. al
(1999/2005), na Convenção de Antibes, concluindo as elaborações obtidas ao longo da
realização de três convenções, vem delimitar o que chama de Psicose Ordinária. A Psicose
Ordinária aparece como uma forma atual de se pensar as manifestações clínicas psicóticas que,
com o decorrer do tempo, foram se modificando e mostrando-se de diferentes maneiras. Esta
aparece de uma forma muito sutil e discreta, dificultando muitas vezes o estabelecimento de
um diagnóstico entre neurose e psicose, o que trouxe a urgência de um estudo mais detalhado
sobre tais causas.
67
não basta afirmar que dentro dos novos dispositivos há uma escuta,
ou “alguém” que escuta, para que ali se favoreça a emergência de um
sujeito. A “escuta” psicanalítica parte de uma posição ética (ética do
desejo por diferença à ética do bem) e não se alinha a qualquer intento
do que é “bom” para o paciente. É uma clínica que opera sobre o real,
que considera as modalidades de gozo, que se coloca como aprendiz
em relação à psicose, que se dispõe a secretariá-la na difícil operação
de recobrir o real, que não compreende a psicose como déficit, mas
como posição subjetiva (Figueiredo & Frare, 2008, p.90).
Podemos concluir que uma interseção da psicanálise com as reivindicações sociais que
perpassam a noção de tratamento via inclusão social no CAPS viria a trabalhar com o real da
loucura no local onde ela se apresenta, no caso, a cidade (Figueiredo & Frare, 2008). Ou seja,
poderíamos pensar uma Clínica do Social, que fizesse emergir um sujeito-cidadão, ou seja,
fizesse emergir um sujeito que, a partir das suas produções subjetivas pudesse apreender o
social, tomando parte, assim, das suas reivindicações e direitos (Garcia, 2000). Deve-se
lembrar, sempre, que a priorização do sujeito é fundamental, pois o seu tratamento e possível
68
inclusão social virão em detrimento das particularidades que envolvem a sua relação com o
Outro, atentando-se sempre para que, este se torne o menos invasivo possível ao sujeito que
com ele se relaciona.
69
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