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l'sicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p.

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o Pesquisador Psicanalítico e a
Situação Psicanalítica da Pesquisa

José Lui: Caon'


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

"Le style c'est l'homme ... (... ) ... l'homme à qui l'on s'adresse?" (Lacan, 1966, p. 9

Resumo
O autor propõe a transferência como característica identificatória da situação
psicanalítica da pesquisa a partir do modelo da situação psicanalítica do
tratamento. O que distingue estas duas situações é o destino dado à transferência
em cada uma delas. Na situação psicanalítica de tratamento, ela é dissolvida; na
situação psicanalítica de pesquisa, ela é instrumentalizada para a produção de um
texto metapsicológico. O autor oferece um dispositivo prático para a escritura da
pesquisa psicanalítica e, assim como fez para apresentar o nascimento do
pesquisador psicanalítico, por meio de analogia, propõe uma analogia para
identificar o limite ou morte do pesquisador psicanalítico, o qual para conhecer
o processo da loucura, se entrega como o louco até os limites desta experiência.
Entretanto, diferentemente do louco, o pesquisador psicanalítico não ultrapassa
os limites, pois se confia a uma alteridade. Assim, diferentemente do louco que
faz a experiência sem nunca poder comunicá-Ia, mesmo que somente ele dela
saiba sem nunca poder transmitir qualquer conhecimento, o pesquisador
psicanalítico, em alteridade, lança-se ao conhecimento desta experiência, sem
dela nunca ter um saber, que somente o louco, seu irmão gêmeo fracassado tem.
Entretanto, até o presente, ninguém senão o pesquisador psicanalítico, enquanto
profissional da escuta psicanalítica, teve jamais acesso ao conhecimento desta
experiência.

The Psychoanalytic Researcherand the Psychoanalytic Research Situation

Abstract
Based on the model of the psychoanalytic treatment situation, the transference is
proposed by the author as the identifying feature of the psychoanalytic research
situation. What distinguishes these two situations is the destination given to
transference in each of them. ln the psychoanalytic treatment situation, it is

1Endereço para correspondência: CPG em Psicologia da UFRGS - Rua Ramiro Barcelos, 2WO Sala
I I() 90035-003 - Porto Alegre - RS
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dissolved; in the psychoanalytic research situation, it is instrumentalized for the a determinação do psicopatológico. O estudo das estratégias do pesquisador
production ofa metapsychological text. The author offers a practical device for psicanalítico para a determinação do psicopatológico é objeto de outros estudos.
the writing of the psychoanalytic research and proposes an analogy, in the A pesquisa que se dedica à identificação do pesquisador psicanalítico não avança
same= way he proposed an analogy for presenting the birth of the sem o estudo da identificação da situação psicanalítica de pesquisa. Ora, como
psychoanalytic researcher, in order to identify the limits or the death of the determinar a situação psicanalítica de pesquisa? Existiria outro modelo que a situação
psychoanalytic researcher, who renders him/herself as the mad up to the limits psicanalítica de tratamento, onde, por excelência, se dá o ato psicanalítico? Então,
of this experience, as a means of knowing the process of madness. However, in quando. examinamos a situação psicanalítica de pesquisa à luz da situação psicanalítica
contrast with the mad, the psychoanalytic researcher does not go beyond the de tratamento, verificamos que ambas oferecem duas posições e um fundamento
Iimits, for he/she relies on an alterity. Consequently, in contrast with the mad
comum que sustenta essas duas posições. O que sustenta estas posições é o processo
who has the experience without being able to communicate it, even if only he/she
da transferência. Observemos que o ato psicanalítico deve ocorrer também na situação
knows it but is never able to transmit any knowledge, the psychoanalytic
researcher, in alterity, strives to know this experience, which is only known by psicanalítica de pesquisa e também nessa outra situação conhecida como situação
his/her unsuccessful twin brother, the mad. Nevertheless, so far nobody except psicanalítica de supervisão ou de controle.
the psychoanalytic researcher, as a professional of the psychoanalytic listener has Identificamos, assim, duas diferentes situações psicanalíticas que se fundam no
ever had access to the knowledge of this experience. modelo da situação psicanalítica de tratamento, a saber, "a situação psicanalítica de
supervisão ou controle" e "a situação psicanalítica de pesquisa". Diversas esforços
teóricos tentaram explicar a situação psicanalítica do tratamento. Raras são as tentativas
de teorização da situação psicanalítica de supervisão ou controle. E fora meus estudos
O pesquisador psicanalítico nasce no divã é uma afirmação que oferece doutorais e uma. parte substancial de minha tese, "La psychopathologie dans Ia
problema. Este problema não fica menos agudo quando se inclui o psicanalista como recherche psychanalytique: Contribution à I' étude de Ia place de Ia psychopathologie
pesquisador psicanalítico. Por outro lado, em psicanálise, como em outras disciplinas à partir de l'approche freudienne" (Iaboratoire de Psychopathologie Fondamentale,
forrnativas, aparece, na atividade de supervisão ou de controle, a posição do Paris VII, 29 de setembro de 1993), parece não existirem trabalhos de fôlego dedicados
supervisionado ou do controlado e a posição do supervisar ou do controlador. Existe à identificaçã<ã da "situação psicanalítica da pesquisa" e à identificação do "pesquisador
também a atividade de pesquisa, onde o "profissional da escuta psicanalítica" trabalha psicanalítico" . Pode-se ainda indicar a situação psicanalítica de apresentação de
em alteridade com um público. Ao longo da história da psicanálise, este público pacientes, da qual falaremos adiante, e a situação psicanalítica de auto-análise que não
apareceu primeiramente formado por uma só pessoa. É o caso de Fliess em relação a é tratada neste estudo.
Freud. Apareceu subseqüentemente composto de um número maior de participantes. O leitor poderá ficar surpreso e mesmo embaraçado quando observar que o
É o caso da comunidade psicanalítica das quartas-feiras, reunida na casa de Sigmund processo de transferência é invocado tanto para a identificação da estruturação da
Freud, ou reunida em auditório dum hospital ou duma universidade, como foi o caso situação psicanalítica de tratamento como para a estruturação das situações
das assistências de Jacques Lacan. O estudo que passo a expor dirige-se à comunidade psicanalíticas de supervisão e de pesquisa. Onde se encontra, então, a diferença das
dos pesquisadores em geral e, especialmente, à comunidade dos pesquisadores duas em relação à situação psicanalítica de tratamento? E onde se encontra a diferença
psicanalíticos, pertencentes ou não a uma das diferentes instituições p~icanalíticas. que as singulariza uma da outra?
Desta forma, com este estudo e como cofundador da APPOA e professor de
universidadeê, fundo e inauguro publicamente uma atividade psicanalítica específica
cujo objeto de pesquisa é a identificação da identidade do pesquisador psicanalítico e
da situação psicanalítica da pesquisa bem como a identificação de suas estratégias para
40 livro Investigação e psicanálise, Campinas, Papirus, 1993, sob a coordenação de Maria Emília Lino da
Silva, oferece pequenos estudos sobre a pesquisa psicanalítica na universidade. Renato Mezan se pergunta sobre
"Que significa 'pesquisa' em psicanálise'''. Seu estudo, bastante instigante, toma, como exemplo de pesquisa
psicanalítica, um texto de Freud. Dedica-lhe alguns comentários, e é muito mais generoso com o texto de outros
dois autores menores. Como pesquisador psicanalítico, interesso-me também por exemplos de sintoma (social) na
2 Associação Psicanalítica de Porto Alegre pesquisa psicanalítica. Paris Vil não deixa de ser um caso interessante a merecer estudo, quanto a este aspecto.
Vivendo quatro anos lá dentro, constatei que uma coisa é o que de lá se diz e outra coisa é o que lá se faz. Como
Mezan, também nada sei o que se faz na Paris vm. Assimcorno a psicanálise, desde suas origens, não separa ato
:> Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. de investigação de ato clínico, a pesquisa psicanalítica não pode não considerar seu aspecto de sintoma social no
campo da pesquisa em geral. É desta forma que a formação de sonho e de sintoma é muito mais orientadora para
o pesquisador psicanalítico do que a formação de conceito tão cara ao psicopatólogo ordinário e ao filósofo.
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Ninguém duvida que, na situação psicanalítica de tratamento, o processo dr situação psicanalítica de pesquisa, o pesquisador psicanalítico, sempre se enfrentava.
transferência é identificado para ser explicado e liquidado até onde a técnica o permit i I desde o início, com dois tipos de público: um público malevolente e malfuzcjo , COIIIO
Entretanto, na situação psicanalítica de supervisão e na situação psicanalítica dI' Breuer e Kraft-Ebing, em relação a Freud; e um público benevolente e hellla/.l'jo.
pesquisa, o processo de transferência é identificado unicamente para ser instru como Fliess e Jung, durante alguns anos; Karl Abrahm, Lou Andrea Salomé, Sandor
mentalizado. Mesmo assim, a identificação do processo de transferência, em vista dl' Ferenczi durante quase toda senão toda a vida do fundador da psicanálise.
sua instrumentalização, toma um caminho e um destino específico, na situaçao Uma vertente de nossa pesquisa, da qual este texto é base desta cxposicao,
psicanalítica de supervisão, e outros, na situação psicanalítica de pesquisa. Insistimos convida o leitor ao esforço de ocupar o lugar de público benevolente e benIazcjo,
que somente é possível instrumentalizar a transferência através de dispositivos técnicos entretanto não indulgente ou acrítico. Sem um público assim; Freud não teria emergido
capazes de redimensionã-la em processo de produção de um texto metapsicológico, das profundezas da clínica com um instrumento metodológico revolucionário e Lacan
como ocorre na situação psicanalítica de pesquisa, ou capazes de redimensioná-la em não teria podido inserir a pesquisa psicanalítica dentro das exigências das pesquisas de
processo de transmissão de um "savoir-faire", como se passa na situação psicanalítica ponta da modemidade.
de supervisão, ou de controle. Assim, a instrumentalizaçãoda transferência não equivale Por outro lado, acredito que públicos lusofones, podem permitir o advento de
aos artifícios de manipulação como acontece na dinâmica de grupo e nas técnicas pesquisadores psicanalíticos lusofones de ponta. Daí, a importância de o pesquisador
psicoterápicas. psicanalítico estudar também este público que o sustenta. Se tivesse que fazer outros
Na situação psicanalítica de supervisão ou controle, esse processo de estudos e tese de doutoramento em Paris, escolheria essas incomparáveis audiências
transferência é instrumento primeiro para as primeiras respostas aos problemas francesas. Acredito que Lacan não teria aparecido sem estas poderosas, respeitosas e
propostos à técnica e á teoria pela clínica, que como Lacan precisa é "le réel en tant atentas audiências.
qu'il est l'impossible à supporter" (1977, p. 11). Pareceria que é nesta instrumen Reparto meu texto em cinco momentos:
talização do processo de transferência que emerge o lugar onde se dá o nascimento de 1. Uma figuração do nascimento do pesquisador psicanalítico.
uma comunidade psicanalítica, no sentido de instituição e de transmissão dum "savoir- 2. O nascimento do pesquisador psicanalítico no ocaso do século passado.
faire". As pesquisas, neste aspecto, parecem não ter evoluído muito. 3. Solipsismo e alteridade como dispositivos metodológicos do pesquisador
Na situação psicanalítica da pesquisa, este processo de transferência é psicanalítico: o sonhoe o chiste, modelos da situação psicanalítica de pesquisa.
identificado e instrumentalizado no sentido de gerar um texto metapsicológico, que 4. A metapsicologia e a produção do texto metapsicológico.
pode ser oral, como o são os seminários de Lacan; ou escrito, como o são as 5. Uma figuração da morte do pesquisador psicanalítico.
conferências introdutórias à psicanálise, no início prenunciadas oralmente por Freud
durante algum tempo, e, finalmente, definitivamente escritas por ele mesmo.
Sabemos que há textos metapsicológicos de Freud e de Lacan em que a 1. UMA FIGURAÇÃO DO NASCIMENTO DO PESQUISADOR PSICANALÍTICO
mediação do texto oral inexiste, Por exemplo, "O inconscientizado" (Das Unbewusste,
Freud, 1915e) e "Para além do princípio do prazer" (Jenseits des Lusprinzips, Freud, Contando sete anos, aconteceu-me uma reviravolta na vida. Meu pai fez sua
1920g); "Le stade du miroir commeformateur de la fonction du Je telle qu'elle naus última mudança e estabeleceu a residência de sua família perto da casa de seu pai.
est révélée dans I'expérience analytique", (Lacan, 1949); "La science et Ia vérité", Entre outras coisas, meu avô criava o bicho-da-seda. Ele "importou de Barbacena o
(Lacan, 1965). Ora, o exame do contexto da descoberta, referente aos dois primeiros bicho-da-seda, que difundiu por toda a região." (Barbosa, 1980, p. 63. Eu mesmo tinha
textos, revela uma enorme correspondência trocada entre Freud e outros pesquisadores minha pequena criação e gostava de entregar os casulos nas suas mais diferentes cores,
psicanalíticos pioneiros. O dispositivo epistolar daquela época corresponde aos ainda não perfurados, a minhas tias e à minha avó. Elas os dissolviam em água
dispositivos mais empregados em nossa época, como o telefone e o acessamento direto fervendo ao mesmo tempo que com suas rocas e fusos enrolavam grossos novelos de
inter-computadores. Por sua vez o contexto da descoberta que se refere aos dois textos fios de seda e os vendiam. O mistério dos restos que ficavam dentro da panela me fazia
de Lacan é permeado duma intensa atividade interpessoal, cuja história nos é bem pensar que minhas tias e minha avó eram muito malvadas. Esses restos, eram as
conhecida. crisálidas mortas do bicho-da-seda. Entretanto, não se pareciam em nada com as larvas,
Sem dúvida, o público que, com sua escuta, sustenta imediatamente o discurso espetaculares devoradoras de folhas de amoreira que antes tinham sido. As vezes,
do pesquisador psicanalítico, ou mediatamente, pela carta, pelo telefone ou pelo ecrã apareciam umas borboletas estranhas em cima dos casulos. Era mau sinal para minhas
do computador, ou por qualquer outro meio de participação, não deixa de ser aquele tias e minha avó, pois a cada uma destas borboletas, correspondia um casulo furado,
mesmo público benevolente e benfazejo que Sigmund Freud encontrou num dos seus e, segundo elas, inutilizado.
maiores amigos em sua vida, Wilhelm Fliess. Porém, é conhecido de todos que, na
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Diz-se que o bicho-da-seda compõe seu casulo, extraindo do seu corpo o fio da processo da pesquisa psicanalítica. O ensaio literário permite, segundo
tecitura. Diz-se que ele, neste trabalho, consume seu corpo, menos o seu cérebro, que Adorno, reencontrar a vida graças à integração harmoniosa entre o
depois gera a borboleta e governa os seus movimentos. Entretanto, para deixar de ser método e a negação do método. Além disso, quando o autor nos fala da
crisálida e se apresentar como borboleta, ele precisa furar o casulo e praticamente metapsicologia como gênero literário [de ensaios científicos], ele nos
inutilizá-lo. Note-se que borboleta, em grego, é psichê. Porém, como é sabido, esta lembra assim que ele está à procura de um estilo. Penso que neste
mesma palavra também significa alma. brilhante ensaio que nos é oferecido, a agressividade da tese que
Chamo a atenção, neste momento, para a tecitura feita pelo bicho-da-seda. promete mostrar a verdade como o todo foi sabiamente dissipada. A
Enquanto fechada, é como um texto conclusivo, como um bom texto de filosofia, incompreensão e o desreconhecimento da verdade como o não todo, não
ciências humanas, biológicas ou exatas. Mas, somente depois que essa tecitura fôr são eles aquilo que se apresenta como o mais estranho à psicanálise e
perfurada é que a crisálida aparece como psichê. O texto metapsicológico, à pesquisa psicanalítica? (Professor Ernildo Jacob Stein, Conclusão do
diferentemente de qualquer outro texto, é como o casulo perfurado que conservava a discurso de julgamento da tese, Paris VII, 29 de setembro de 1993).
crisálida e que agora se liberta como psichê. É um texto essencialmente inconcluso c
marcado por um buraco, a partir do qual o pesquisador psicanalítico paradoxalmente 2. O NASCIMENTO DO PESQUISADOR PSICANALÍTICO NO OCASO
se sustenta. O crítico literário sustentando que a metapsicologia é um gênero literário DO SÉCULO PASSADO
de ensaios científicos, encontrará nesta figuração um elemento fundamental para seus É interessante observar que Sigmund Freud demorou quase 8 anos para concluir
argumentos. seus estudos universitários, durante os quais não cuidou de sua formação médico-
Por outro lado, o casulo perfurado do bicho-da-seda, agora borboleta, entendido clínica. A pesquisa da anatomia e da histologia do sistema nervoso o subjugava. Assim,
como figura e modelo do texto metapsicológico, apóia nossa proposta segundo a qual já em 1877, aos 21 anos de idade, estando no seu terceiro ano de estudos
a pesquisa psicanalítica muito mais que produzir um texto e,m forma de ensaio universitários, estréia como pesquisador. Tendo recebido o título de médico em 1881,
universitário, está vocacionada e destinada a produzir um autor. E nesta diferença que dá-se conta que não está preparado para o exercício da medicina. Abraça, então,
situamos Freud como autor e não como outorgador de um sistema metapsicológico, sucessivas residências. Junto a Meynert, faz um breve curso de psiquiatria que logo
constante de cinco ou mais textos. Fechar a metapsicologia em tomo de alguns textos abandona. Continua suas pesquisas em neuropatologia, em psicofarmacologia (com
do fundador da psicanálise, não significa apenas desreconhecer o desejo de Freud, mas diversos estudos sobre a cocaína e seu uso) e em psicoterapia hipnótica. É na escola
também de lhe aplicar inapelavelmente uma "segunda morte". E verdade que, nesta de Charcot (Paris) e de Bernheim (Nancy) que ele encontra uma primeira resposta a
virulência, Freud cometeu, ele mesmo, uma tentativa de assassinato em relação a ele suas indagações que as pesquisas neurológica e psicofarmacológica não lhe davam.
mesmo. Ele mesmo, em 1915, se propusera escrever doze textos para dar conta de Junto a Charcot, neuropatólogo, aprende a respeitar a psicologia e se apaixona pelos
toda a metapsicologia. Sofreu de saída da impossibilidade dessa empresa. Publicou, desafios do psicopatológico. Liébault e Bernheim não representam senão uma
então, somente cinco desses textos e abandonou definitivamente o projeto. continuação deste apaixonamento já bastante antigo. É preciso lembrar que havia
Para que o texto da pesquisa psicanalítica, em forma de ensaio metapsicológico, Breuer antes de Charcot e Bernheim. Realmente, foi Breuer quem transmitiu os
realize seu destino, ele deve sofrer uma perfuração, através da qual o autor libertado primeiros rudimentos de psicopatologia (histeria) e a primeira técnica de intervenção
do seu texto consiga desfrutar do ato psicanalítico que o deslocou e levou a uma psicoterapêutica (hipnose catártica). Vale a pena recordar, neste momento, o
transformação. Diferentemente do poeta, que se fecha dentro de seu poema e brinca testemunho de Wittgenstein que consegue situar com justeza a dívida de Freud para
de esconde-esconde, o pesquisador psicanalítico, abre seu texto, e oferece o furo de sua com Breuer. Wittgenstein se identifica ao fundador da psicanálise e nos aponta un
libertação como enigma. E neste sentido, que um dos membros do júri de nossa tese aspecto surpreendente do caráter de Freud:
de doutorado, justificando a possibilidade de um trabalho psicanalítico universitário,
identificou o furo de nossa libertação, com estas palavras: "Minha originalidade, caso seja essa a palavra certa, é, acredito, uma
originalidade do solo e não da semente. Pode ser que eu não tenha
"Nossa sugestão de ordenar desse modo a leitura do trabalho que semente alguma que me seja própria. Lance uma semente no meu solo
acabamos de examinar, não tira nada de sua qualidade indubitável de e ela crescerá diferentemente do que sobre qualquer outro solo. A
pesquisa. Temos simplesmente tentado apreender os resultados des originalidade de Freud, também era, me parece, deste gênero. Sempre
pesquisa, obtidos, a partir de um certo ponto de vista, por um método pensei - sem saber o porquê - que o verdadeiro germe da psicanálise
que se parece a um ensaio literário. Pode ser que o ensaio literário seja provinha de Breuer e não de Freud. Seguramente, o grão de Breuer pode
o melhor meio de enfocar a totalidade incompleta que sustenta o ter sido extremamente minúsculo. (Citado por Mcguiness, p. 136).
152 1m'é L Caon Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 153

Assim, podemos aceitar que a psicanálise é um pequeno rebento da partida. O romantismo goehteano é um romantismo trágico. Ninguém melhor do que
psicopatologia alemã, o qual crescia à margem dos grandes sistemas de psicopatologia. Goehte conseguiu caractérizá-lo com este seu dito paradoxal: "Chamo clássico aquilo
De fato, os estudos sobre histeria de Breuer e de Freud (1893a e 1895d) sao que é saudável e romântico aquilo que é malsão." Ancelet-Hustache nos socorre e nos
considerados, na época, como uma minúscula contribuição aos estudos e pesquisas possibilita compreender um sentido deste paradoxo:
sobre o psicopatológico.
O que se acaba de dizer brevissimamente é o percurso preparatório e imediato "Os Nibelungen são clássicos como o são as epopéias de Homero,
que traz em seu seio o nascimento do pesquisador psicanalítico. Como se dá sua pois tanto os primeiros como as segundas são sãos e excelentes. A maior
entrada no campo da pesquisa em geral? Existe uma data precisa deste acontecimento'! parte das obras novas não são românticas porque são novas, mas porque
Que dispositivos metodológicos e técnicos de pesquisa o revelam diferente dos outros são fracas, malsãs, doentias. E as obras antigas não são clássicas
pesquisadores da comunidade científica? porque são antigas, mas porque elas são vigorosas, vívidas, alegres e
Quanto à pergunta referente a como se dá a entrada do pesquisador psicanalítico sãs. Se nos distinguirmos o clássico do romântico segundo estes
no campo da pesquisa em geral, é curioso observar que, para poder pesquisar atributos, logo podemos ver as coisas bem claras." (1955, pp. 60-61).
psicanaliticamente, Freud precisou se retirar de um campo onde ele era já muito bem
conhecido como pesquisador. Desta forma, a pesquisa psicanalítica nasce paradoxal- O idealismo de Bõrne que Freud invoca para contestar o falso elogio de
mente do fracasso referente a um grande sucesso de um pesquisador bem situado numa Havelock-Ellis, o qual queria ver na psicanálise uma arte, representa apenas a alvorada
área específica. O que teria levado Freud a abandonar o sucesso obtido a duras penas que precede o sol do meio-dia do romantismo trágico goetheano do qual Freud nunca
para se entregar a uma pesquisa dum objeto para cujo acesso não tinha nem o método se afastou nem sequer nos tempos do laboratório de Brücke. Entretanto, esta conversão
nem os meios técnicos nem teoria precedente? Talvez possamos encaminhar uma ao romantismo trágico não é gratuita. Encontramos suas raízes na tenra infância de
resposta a esta pergunta crucial, lembrando que o SNC não respondia às demandas que Freud. Ele mesmo nos conta um episódio extremamente significativo:
Freud lhe fazia. Mas que é que Freud perguntava a este SNC? Freud não lhe fazia ele
aquelas eternas perguntas que os neurólogos e psiconeurólogos, ainda hoje, preferem "Quando contava seis anos de idade e recebi as primeiras lições de
evitar ou, endereçar a um outro campo, como à religião e à filosofia? São questões minha mãe, esperava-se que eu acreditasse que todos nós éramos feitos
referente à experiência do desejo, do gozo e da constituição dessa experiência que se de terra e que, portanto, devia a ela retomar. Isso não me convinha e
situa para além dela mesma e que se refere às origens e destinos que nos precedem e expressei dúvidas sobre a doutrina. Minha mãe logo esfregou as palmas
dos quais nunca poderemos nos livrar. das mãos - da mesma forma que fazia ao preparar bolinhos de massa,
Quanto à data da descoberta da psicanálise, há tantas opiniões quantas cabeças. só que não havia massa entre elas - e me mostrava as escamas de pele
Dir-se-ia que quando Freud se deu conta, o método psicanalítico já estava operando. enegrecidas produzidas pelo atrito como prova de que éramos feitos de
É um desses felizes achados que Freud não deixou escapar. terra. Meu assombro a essa demonstração ad oculos não conhecia limites
A pergunta referente aos dispositivos metodológicos e técnicos de pesquisa, e aceitei a crença que posteriormente iria ouvir expressa nas palavras:
mediante cujo uso Freud se identifica como pesquisador diferente do pesquisador que Du bist der Natur einen Tod schuldig (És devedor de uma morte à
fora, apresenta-se como uma das mais fecundas questões para o pesquisador natureza). (1900a, p. 219).
psicanalítico atual. Esta questão elucida a natureza do ato psicanalítico que, além de
deslocar seu agente, também o transforma. O padecer um deslocamento e o sofrer uma Na linha desse pensamento, nossa pesquisa mostra que se existe algum
transformação são experiências conhecidas tanto pelo analisante como pelo pesquisador romantismo em Freud, este é um romantismo trágico, onde não somente somos
psicanalítico. devedores duma morte à natureza, mas também devedores à cultura e à linguagem, de
Tomando como critério o deslocamento e subseqüente transformação do sujeito um profundo corte.
do ato psicanalítico, podemos situar o nascimento do pesquisador psicanalítico em b) No campo da concepção científica, Freud se alinha entre os pesquisadores
quatro campos precisos: a) no campo da concepção cultural; b) no campo da concepção que se pautam pelo princípio: "a oposição cria a determinação." Basta examinar o
científica; c) no campo das práticas psicoterapêuticas; d) no campo do éros quotidiano capítulo 6 de A Interpretação dos Sonhos (1900a), onde aparecem duas oposições.
de Freud incluídas suas crises. A primeira fundada na Verdichtung (condensação) e na Verschiebung (deslocamento).
a) No campo da concepção cultural, Freud desce dos empíreos do romantismo A segunda fundada na Rücksicht auf DarsteIlbarkeit (a tomada em consideração à
simplista e abraça o romantismo trágico goetheano, onde a vida forjada quotidia figurabilidade) e a Rücksicht auf Verstãndlichkeít (a tomada em consideração à
n.uucntc e faustianamente revela, sempre depois de cada lance, o seu destino de inteligibilidade). Ora, a tomada em consideração à figurabilidade é a monstração do

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pensamento em estado de tempo sempre presente, como num mosaico de sonho. No Na experiência do magnetismo, aparecem quatro posições: 1) a do
sonho, o acontecimento e sua representação são simultâneos. E a tomada em magnetizador; 2) a da magnetizada ou sonâmbula; 3) a do paciente e 4) a do público.
consideração à inteligibilidade é a demonstração do pensamento em estado de tempo Esta quarta posição não é essencial para o ato psicoterapêutico. O magnetizado r é o
sempre passado, como num discurso. No discurso, o acontecimento precede o discurso. guia da sonâmbula. Ele não fala. O paciente se dirige à sonâmbula que o escuta. Ao
Nossa hipótese, segundo a qual a metapsicologia como gênero literário de mesmo tempo ela lhe diz o mal que o aflige e lhe indica o remédio. Este modelo
ensaios científicos se caracteriza pela tomada em consideração à figurabilidade e pela sobrevive fundamentalmente no dispositivo de certos tratamentos umbandistas e
tomada em consideração à inteligibilidade, encontra seu fundamento uma vez na espiritistas onde há um guia, um médium, um paciente e, freqüentemente, um público.
posição romântica que tanto dinamizou o pensamento de Freud, e outra vez na posição Na experiência da hipnose, as posições se reduzem a três: 1) o hipnotizador, 2)
científica que tanto corrigiu os excessos deste romantismo. Assim, o romantismo e a a hipnotizada e 3) o público. Aqui também esta última posição não é essencial para o
razão especulativa, opostos ao realismo científico e a razão crítica, caracterizam a ato psicoterapêutico.
metapsicologia respectivamente enquanto fonte e feiticeira (source et sorciêre) e Cabe observar que na situação psicanalítica de tratamento, as posições não são
enquanto recurso e crítica científica (ressource et critique scientifique). Freud nunca mais do que duas: 1) a posição do anaIisante e 2) a posição do psicanalista. Aqui a
se afasta destas duas posições que se caracterizam, de um lado, como a especulação posição de um público é totalmente impossível.
metapsicológica, pela qual o pesquisador psicanalítico pesquisa seguindo o modelo da Há uma prática psicanalítica especial, inaugurada por Lacan, que podemos
alucinação, do sonho, do delírio e do devaneio, onde a alteridade quase inexiste; e do chamar de apresentação do paciente, por parte do psicoterapeuta, a um psicanalista,
outro lado, se caracteriza como crítica metapsicológica, pela qual o pesquisador perante um público específico. Aparentemente, esta prática se origina das apresentações
psicanalítico pesquisa segundo o modelo da percepção, da alteridade, do diálogo e da médico-clínicas de pacientes, com as quais, o professor ilustra a teoria a ser
discursi vidade. demonstrada a seus alunos. Seria aquela antiga prática quotidiana das aulas de
c) No campo das práticas psicoterapêuticas, Freud, como pesquisador medicina, onde o paciente contribui para o conhecimento e aprendizagem dos alunos.
psicanalítico nascente, é tributário tanto das experiências do magnetismo como das As apresentações teatrais das histéricas de Charcot, na Salpêtriêre, fundam-se neste
experiências do hipnotismo. Estes dois tipos de experiência recebem direito de dispositivo. Entretanto, não era ele quem as hipnotizava. Ele substituia o hipnotizado r
cidadania, ~ universidade, sob o nome de sommeil lucige (José Custódio de Faria após a indução hipnótica. Nesta circunstância, o hipnotizador, como o auxiliar do
(1756-1819 ), e sob o ~ome de hipnose (Braid (1795-1960) , Heidenhain (1834-1897), professor de medicina, prepara a peça, para as demonstrações daquele. Cabe observar
Benedikt (1835-1920) , Charcot (1825-1893), Bernheim (1840-1919). O que é que que o interesse de Charcot, nessas apresentações, não era curativo, mas somente
Freud extrai destas duas práticas psicoterapêuticas? Para responder a esta pergunta, científico. Charcot queria demonstrar que o sintoma hipnótico-histérico não era de
precisamos mostrar o dispositivo constitutivo da situação terapêutica destas duas natureza neurológica. Esta hipótese será aplicada ao sintoma histérico num dos mais
experiências. brilhantes e acabados trabalhos de Freud, publicado em francês, com título de Quelques
considérations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et
hystériques (1893c).
. Entretanto, cabe observar que há uma outra forma de entender a apresentação
5I! s'oppose à Ia notion mesmérienne de fluide magnétique et utilise le mot "concentration" au lieu de celui
de "magnétisme animal". I! admet que le sommeil artificiel dépend plutôt du sujet concentré que de l'agent qui de um paciente, fundada no pedido do médico ou psicoterapeuta do paciente,
suggere. Alexandre Dumas, l'a immortalisé dans les romans Le comte de Monte Cristo. Au tournant du siêcle, endereçado a um outro profissional. Encontramos esta situação na prática de Sigmund
les savants comme Bernheim, Gilles de Ia Tourette et Pierre Janet réhabilitent Ia doctrine de Faria. I! est donc Freud que, com sua paciente, sai de Viena e pede a Charcot e a Bernheim que a
définitivement reconnu comme le véritable précurseur de l'Ecole de Nancy et de Ia méthode de l'hypnose par
suggestion,
examinem. Parece que a apresentação de um paciente, por parte de seu psicoterapeuta,
a um psicanalista, nas práticas psicanalíticas de apresentação de pacientes, encontra
6 On lui attribue Ia création du mot "hypnotisme" en 1843: I! combat le mesmérisme et crée le sommcil
melhores explicações de sua origem, nesta maneira de proceder de Freud. A situação
artificiel à laide d'un objet brillant. La "phrénohypnotique" est Ia méthode d'influencer telle ou telle faculte: psicanalítica de apresentação dum paciente a um psicanalista envolve então as seguintes
pressionnant Ia bosse du crâne correspondante. posições: 1) a posição do profissional responsável do paciente, 2) a posição do
paciente, 3) a posição do psicanalista e 4) a posição do público. Esta prática assim
7 "Dês 1868, dans son manuel d'électrothérapie, Benedikt utilisant le terme de libido au sens étymologiquc entendida mostra que ela pode ser de utilidade para o paciente, de aprendizagem para
de désir sexuel, rapporte I'hystérie à des troubles précoces de Ia vie sexuelle ou à de mauvais traitements subis ali o profissional responsável e para o público assistente, e um meio de transmissão da
cours de ·l'enfance entrainant une vulnérabilité particuliêre du systêrne nerveux. I! estime que Ia confession
consciente du 'secret' pathogêne est Ia condition nécessaire de Ia guérison, et il nie le rôle du traitement paI psicanálise por parte do psicanalista. Os estudos sobre esta prática encontram-se em
J 'hypnosc auquel il s'était d'abord intéressé et contre lequelJoseph Breuer l'avait mis en garde!" (Postei et Quétel, fase adiantada e demonstram que a experiência psicanalítica de Jacques Lacan fundava-
1')1(1, p. SHI).

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15() José L Caon
Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 157

se em três momentos: 1) a clínica psicanalítica 2) o seminário 3) a apresentaçao hipnotizada, Charcot se cala, a deixa falar, mas ele não a escuta. Ele se dirige ao
psicanalítica de pacientes. público de alunos e lhes fala da hipnotizada como se ela não estivesse presente:
Tentemos agora examinar as situações onde aparecem o magnetizador, o
hipnotizador e o psicanalista. Parece-nos que Freud isolou a psicanálise a partir dos "A paciente: As vezes, os músculos do pescoço ficam muito esticados.
dispositivos da tecnica do magnetizador, do hipnotizador e do sugestionador. As Parece-me, que me colocaram na cabeça uma calota pesada e fechada.
técnicas de laboratório que tanto determinaram o tratamento criado por Janet, chamado Charcot: [Dirigindo-se ao público]: Ela nos descreve, à sua maneira,
"análise psicológica", modelo dos atuais tratamentos psicoterapêuticos com ou sem aquilo que nós chamamos de capacete neurastênico." (Citado por
cheiro de psicanálise, parecem não terem servido em nada para a criação do dispositivo Carroy, 1991, p. 191).
da situação psicanalítica do tratamento.
Cabe também observar que os termos "sujeito" e "objeto" estão sempre Perante a analisante, Freud se cala, a deixa falar, ele a escuta e, às vezes, ele
presentes nos enunciados de pesquisa onde uma ação se transfere de um ao outro. Na lhe fala. Carroy nos indica, com precisão, estas reviravoltas que determinaram a
pesquisa em geral, o pesquisador, (sujeito) se posiciona diante do objeto. Ora, na invenção dos dispositivos da situação psicanalítica de tratamento:
pesquisa psicológica, o objeto é um sujeito. E este objeto-gente não recebe o nome de
objeto, mas o de sujeito. Desta maneira, o laboratório do psicólogo experimental se "Não é certamente por acaso se é justamente esta grande dama
implode. Mais: "il faut être au moins deux pour faire de Ia psychologie", nos prova [Emmy von N.] que dá uma lição ao doutor adepto à sugestão à maneira
Jacqueline Carroy, no seu profundo estudo sobre a invenção dos sujeitos que é tema de Bernheim e de Liébeault. Ela lhe significa que não é bom interromper
de sua tese (Carroy, 1991). Ela conclui ainda que é necessário ao menos três condições uma sonâmbula e que é talvez melhor deixá-Ia divagar. Assim, após este
- o encontro, o objeto e a linguagem - a fim de que a relação entre dois seja episódio, Freud foi levado a reencontrar, sem o saber, um certo "deixa-
psicologicamente pensada e cientificamente válida. O encontro cria uma posição de dizer" praticado pelos magnetizadores do qual Liébault se tinha
crença na relação a dois. Por outro lado, a alteridade, ou sujeito-objeto, ou eu-alter, afastado. " (1991, p. 194).
espatifa os procedimentos da velha psicologia da auto-observação. E a linguagem
demarca o lugar de um terceiro, ao qual se subordinam o pesquisador e o sujeito da É interessante observar que Freud como pesquisador-psicoterapeuta nomeia a
pesquisa. transferência, o recalcamento e a resistência no contexto da pesquisa hipnótica, mas
Assim sendo, vejamos, por exemplo, como se conduzem Liébault, Charcot, não consegue lhes captar a verdade. O termo transferência (Übertragung) aparece no
Bernheim e Freud perante os pacientes. Sabemos que o magnetizador se cala. artigo Histeria (1888b). O termo recalcamento (Verdrãngung) aparece na seu texto
Geralmente sentado atrás, ao lado, ou tendo a sonâmbula entre seus joelhos, ele é o O hipnotismo (1889a). O termo resistência (Widerstand) aparece em seu trabalho
adormecedor que cuida que ela persista em seu sono lúcido (sommeillucide). Liébeault Tratamento psíquico (Tratamento de alma) (1890a). Entretanto, Freud não consegue
extingue a posição da magnetizada e redistribui os dois papéis ou duas tarefas desta. lhe conferir o conteúdo que lhe atribuirá mais tarde. Este é um dos mais belos
Ele incorpora o papel ou a tarefa de falar, que agora se torna uma fala de comandos. exemplos do emprego de termos sem nenhuma ressonância e eficácia teórica, que
Ao paciente cabe incorporar o papel ou a tarefa do sono lúcido, que agora se torna um somente uma experiência psicanalítica pode lhes dar. Chamo a atenção do leitor para
estado de sugestão sem sono. este aspecto principalmente quando se lança a ler "pesquisas psicanalíticas" de
Como é que este sujeito passa de instrumento maravilhoso na pesquisa dos pesquisadores carentes da mais mínima experiência psicanalítica. A experiência
magnetizadores à cobaia na pesquisa dos hipnotizadores? É preciso salientar que há psicanalítica aparece como as presas da cascavel. Sem ela, o pesquisador pode morder
uma grande diferença entre uma pesquisa e outra. Na primeira, a sonâmbula diz não e picar com outros dentes. Mas o agente dissolvente e desconstrutor não se dá lá onde
importa o quê a não importa a quem. O pesquisador cala-se e dirige a sessão. Na as presas da experiência não aparecem como condições essenciais de sua possibilidade.
pesquisa pela hipnose, a hipnotizada se cala, ela acredita, ela obedece, e ela escuta. d) No campo do éros quotidiano de Freud, o nascimento do pesquisador
Mas é ainda o hipnotizado r que fala e dirige a sessão. Na presença de um público, o psicanalítico se oferece como um grande e fecundo enigma que promete alimentar
magnetizador se remete à magnetizada para se dirigir ao público. Entretanto, nesta muitas pesquisas atuais. A constelação na qual Freud se insere no período em que ele
mesma situação, o hipnotizador se remete ao público para se dirigir à hipnotizada. mesmo nasce como pesquisador psicanalítico é composta de algumas pessoas
Podemos, agora, confrontar as posições de Bernheim, de Charcot e de Freud. importantes, tais como Eduard Silberstein, Martha Bernays et Wilhelm Fliess com os
Perante a hipnotizada, Bernheim não se cala, não a deixa falar, não a escuta, é ele quais Freud comparte grandes paixões. Breuer et Meynert representam fortes paixões,
quem lhe fala diretamente ou indiretamente utilizando o público presente. Perante a porém cheias de azedume e de ressentimento. Brücke, Charcot e Bernheim, embora
importantes, não estão sempre presentes na psicopatologia quotidiana de Freud, e se

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1)1{ José L. Caon Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 159

algumas vezes estão presentes, eles ficam distantes e jamais íntimos como Silberstein, em que Freud se encontrava, este trabalho, para ser lucrativo, somente podia ser
Martha et Wilhelm. científico e clínico ao mesmo tempo. Sustentando seu próprio amor faminto e a fome
Em sua adolescência, Sigismund Freud (Cipion) et Eduard Silberstein amável de Martha, Freud se decide encontrar uma forma de pesquisa que lhe
(Berganza) fundaram a academia espanhola secreta, da qual eles eram os dois únicos permitisse continuar produzir cientificamenrte e, ao mesmo tempo, lhe possibilitasse
membros. Em 1871 iniciam uma longa correspondência. Cipion é o membro da uma condição sexual de acordo com seus valores. Esta forma de pesquisa ele a
academia que se mostra um "espírito crítico, pedagógico e mais inteligente". Berganza, encontra na hipnose, capaz de reunir num ato só, a pesquisa e o tratamento, a ciência
gosta de "contar histórias e se envolve em aventuras." (Boelich, 1989, p. 20). Trocam e a clínica. A situação psicanalítica de tratamento até hoje não abandonou esta forma
de nome e Freud se chama Bragança - sobrenome da família monárquica de Portugual de pesquisa e tratamento, embora tenha invertido a posição do hipnotizador e do
e do Brasil. Eduard é o confidente de Sigismund quando este se apaixona perdidamente paciente, isto é, a posição de quem fala e de quem escuta. Freud se exime de falar
por Gisela Fluss. Entretanto, esta emergência do feminino na vida de Freud não produz sobre o assunto de sua saída do. laboratório. Entretanto, Jones nos esclarece que:
senão sofrimentos. Uma outra emergência do feminino, se dá com o encontro de
Paulina, prima e colega de infância, destinada pelos pais de ambos a ser sua futura Freud nunca declarou que seu apaixonamento por Martha foi uma
esposa. Entretanto, nada se passa e Freud não sofre de nenhuma paixão. Assim, o que das razões de sua decisão, mas está implícito que ela jogou um papel
resta ao jovem Freud é o consolo do trabalho de pesquisa no laboratório de Brücke, determinante. Estava no seu caráter de nada confessar. Bernfeld nos
do qual, segundo a pesquisa que realizamos, foi afastado, por uma jovem que, sem ser observa: nas confissões que se encontram cá e lá, Freud se retrata, às
nenhuma Andréa Salomé, o' sustentava ao mesmo tempo na sua paixão pelo amor e vezes, como um celerado, um parricida, um ambicioso mesquinho e
pelo trabalho. Entendemos que a paixão de Freud por Wilhelm Fliess, este primeiro vindicativo, porém jamais como um amorosamente apaixonado (exceto
sujeito-suposto-saber na pesquisa psicanalítica, somente foi possível, graças à Martha em algumas alusões sumamente discretas em relação à sua mulher). "
Bernays. Foi essa mulher que permitiu a Freud, como homem, o gozo que um homem (fones, 1953, pp. 68-69).
pode oferecer a um outro homem, sem ter que se defender pelo laço hostil paranóico
ou pelo laço amoroso narcísico. Em 7 de agosto de 1901, ele confessa a Fliess: Teria Freud realmente abandonado o laboratório de Brücke com amargura e
ressentimento? É curioso observar que logo no primeiro ano após ter abandonado o
"Quanto a Breuer, você com certeza está inteiramente certo sobre o laboratório, Freud encontra-se alimentado por duas paixões: a paixão pela pesquisa
irmão, mas não compartilho de seu desdém pela amizade entre os neuropatológica e a paixão por Martha. Paradoxalmente, ele nos diz que a pesquisa é
homens, provavelmente porque sou adepto dela em grau elevado. Em uma paixão que lhe aparece como um sonho e Martha uma paixão que lhe aparece
minha vida, como você sabe, a mulher nunca substituiu o companheiro, como realidade. (Jones, 1953, p. 233. Carta a Martha de 9 de outubro de 1883).
o amigo. Se a inclinação masculina de Breuer não fosse tão bizarra, tão Entretanto, é ainda o sonho que predomina durante um longo período que dura até seu
tímida e tão contraditória, - como tudo o mais em sua constituição estágio na Salpêtriêre em 1885-1886.
mental e emocional - elaproporcionaria um belo exemplo das realizações Na Salpêtriêre de Charcot, Freud encontra um laboratório de neuropatologia de
em que é possível sublimar a corrente androfilica dos homens. " (Freud, seus sonhos, além das famosas apresentações clínicas de Charcot. Porém, dum
1985c, Carta 270). momento para outro, propõe-se a abandonar tudo e a voltar a Viena. Promete explicar
tudo detalhadamente à sua noiva, mas não consegue. Por outro lado, por que
Sem minimizar a importância do papel de Martha, Jones é um dos primeiros a abandonaria Charcot que lhe estava abrindo as portas para uma nova psicopatologia?
entender o conselho paternal de Brücke, sugerindo a Freud o afastamento do Acontece que, .em Paris, na Salpêtriêre, Freud percebe a importância do
laboratório. Babemos que Freud encontra Martha numa tarde de abril de 1882, declara- primitivo, do infantil, do recalcado, do psicopatológico, disso que mexe, que preside
se apaixonado no dia 10 de junho de 1882 e recebe 'o conselho de. Brücke em 11 de aos atos da inteligência e da ação num homem. Freud mais uma vez percebe a força
junho deste mesmo ano. Portanto, antes que Brücke o encaminhasse, Marthajá o tinha da prontidão do masculino redimensionada pelo feminino. Sem dúvida, são as
arrancado. Que importância tem isto para o estudo do nascimento do pesquisador apresentações das pacientes histéricas, por Charcot, que deram o tiro de misericórdia,
psicanalítico? Talvez a mesma que Freud invoca para a psicanálise, que não caiu do às resistências de Freud, na entrega à vida sentimental e erótica, já arranhada pelo
céu, mas que foi forjada por um esforço sobre-humano. Assim também o pesquisador entusiasmo por Martha. Sabemos que com as apresentações das pacientes, Charcot
psicanalítico não surgiu duma geração espontânea, mas de diversas determinações,
entre as quais, o padecimento de uma intensa paixão por uma mulher que além de amor
lhe demandava um trabalho científico, sim, mas também lucrativo. E nas circunstâncias

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1(,0 José L. Caon
Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 161

suscitava no espírito do público presente certas representações muito pouco comuns8 pudicos e reservados, para quem as manifestações do psicopatológico não podem ser
Vejamos o que nos referem Chertok e De Saussure: escamoteadas' nem por seduções parisienses nem por "minisatumales" ou outras
estratégias de adaptação:
"A que tinha precisamente assistido Freud, quando destas famosas
sessões onde se apresentavam histéricas? Falamos (... ) em particular do "Mas, por tão bem comportada que fosse sua vida quotidiana em
espetáculo das grandes crises e do proveito que [Charcot] tirava delas Paris, Freud não podia certamente suportar sem emoções as estimulações
para formular sua teoria etiológica da histeria. Ora, se as sessões da eróticas devidas aos espetáculos das pacientes da Salpêtriêre (e ao
Salpêtriêre eram, para Freud, intelectualmente tão enriquecedoras, espetáculo da rua). O conflito interior assim sustentado deve ter
impõe, -se então uma questão: por que queria ele fugir delas? Na alcançado, num certo momento, suficiente intensidade para o incitar a
ausência de toda indicação dada por ele mesmo ou por seus biógrafos, abandonar Paris (isto é, fugir diante da histeria como o tinha feito
nós formulamos uma hipótese: se Freud retira dessas sessões o maior Breuer). (Chertok e De Saussure, 1973, pp. 124-125).
proveito intelectual, elas também suscitavam nele, sobre o plano
afetivo, uma mistura de atração e de repulsa, pois que as crises às o laboratório de Charcot para a apresentação de pacientes não era um desses
quais ele assistia, apresentavam um caráter manifestamente erótico. E laboratórios para-excitações. Pelo contrário, era habitado por mulheres histéricas, isto
nós temos relatado acima certas experiências da Salpêtriêre, onde é, pelo feminino. A Freud só cabia a fuga, ou buscar compensações, ou imitar seu
mulheres, após a excitação das 'zonas histerôgenas', tinha reações mestre Charcot e escolher a via da despersonalização de sua relação com as pacientes
sexuais podendo ir até ao orgasmo. " (Chertok e De Saussure, 1973, pp. histéricas. Realmente, como Charcot, ele passa a admitir pacificamente que a histeria
116-117). (Sublinhado por mim). não tem mesmo nada a ver com o útero ou com a sexualidade, mas com a
hereditariedade e talvez com o sistema nervosos central. A teoria da histeria, proposta
Ninguém assistia impunemente a estas apresentações. Na Salpêtriêre, Freud por Charcot e por Freud, não via então, na histérica, senão uma respeitável doente do
entrava em contato com casos semelhantes aos de Anna O. não por relato, ou por ouvir sistema nervoso central.
dizer, mas "in loco". Poder-se-ia contestar a insinuação de que a Salpêtriêre era um Se fizermos justiça em relação aos fatos, podemos dizer que o encontro Freud
Moulin Rouge. Entretanto, vejamos o testemunho da historiadora: . e Martha, por ele só, teria transformado Freud. Seguem-se outros acontecimentos,
convergindo todos para sua autonomia e harmonia de seu destino. Agora, ele pesquisa
"... em todos os casos, como o mostra a literatura que floresce em por sua própria conta a cocaína. Luta pelo título de professor universitário Privat-
torno do serviço [de Charcot], a Salpêtriêre foi uma espécie de lugar de Dozent, Obtém uma bolsa para Paris. Contrariando seu próprio discurso, Freud parece-
paquera, onde as histéricas encontravam protetores de todos os gêneros: se ao homem que tendo conquistado a mulher de seus sonhos, incamando o fantasma
experimeniadores científicos, amantes, magnetizadores. (Carroy, 1991, de seu desejo, encontraria muito mais confiança na criança da predileção de sua mãe
p. 75). (Freud, 1917b). Ele sofrerá as provações da transferência como Breuer, mas encontrará
a confiança e o gênio para não recusar a demanda histérica pela despersonalização da
Freud não era como a maioria dos da Salpêtriêre'", um destes "indivíduos [que]
relação. E assim que Freud provado pelo éros psicopatológico e quotidiano da vida está
se seduzidos pela mulheres, se escapa à neurastenia." (Freud, 1985c, Manuscrito "B", pronto para possibilitar o ato psicanalítico.
de 8 fevereiro de 1892). Chertok e De Saussure situam Freud como um desses homens

3. SOLIPSISMO E ALTERIDADE COMO DISPOSITIVOS METODO LÓGICOS


8 Tivemos ocasião de observar a contrariedade, o descontentamento e mesmo o desprezo que tomam conta dos DO PESQUISADOR PSICANALÍTICO: O MODELO DE PRODUÇÃO
estudantes e participantes que foram assistir, pela primeira vez, a uma apresentação psicanalítica de pacientes. DO CHISTE, QUE PRESSUPÕE O MODELO DE PRODUÇÃO DO
Talvez, aquilo que Ihes é mostrado não seja mais do que aquilo que eles já sabem e que eles não Iquerem nem ver
nem saber. Assim, a primeira reação é, em geral, a da fuga e a do desprezo.
SONHO E DO SINTOMA, É O MODELO DA SITUAÇÃO PSICANALÍTICA
DE PESQUISA
9" Os assistentes da Salpêtriêre tinham um modo de vida mais livre, eles ' assediavam as moças" eles tinham
amantes. Acontecia a Freud almoçar na sala dos internos, mas não se sabe que ele tenha assistido a uma das O, que significamos com o vocábulo "experiência" serve para introduzir a
'minisaturnales' corporativas e generosamente regadas, conhecidas, pelos internos daquela época, com o nome de temática do solipsismo e da alteridade. A língua alemã, como Laplanche nos ensina
'tonus'." (Chertok e De Saussure, 1973, p. 124). [As 'minisaturnales' eram as festas que os residentes se davam (1987, p. 19), nos oferece três termos muito instrutivos: Experiment, Erlebnis,
n;L Salpêtriere, onde o vinho corria solto e seus efeitos também].

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1(,2 José L. Caon
Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 I(d

Erfahrung, O Experiment indica a experiência do cientista no laboratório. Aqui, o "Le style c'est l'homme, en rallierons-nous laformule, à seulement
vivido pelo experimentador e o próprio experimentador devem desaparecer perante o la rallonger: l'homme à qui l'on s'adresse?" (Lacan, 1966, p. 9)
objeto. O Erlebnis indica a vivência do sujeito. Aqui, é o objeto ou o outro que não
conta mais perante o vivido pelo sujeito. A Erfahrung; indica uma experiência que se Esta noção de solipsismo metodológico é importante, porque implica a
transformou num aprendizado e num saber. Freud e Lacan falam freqüentemente de necessidade do outro que serve ao sujeito que fala ou escreve de audiência benevolente
"nossa experiência psicanalítica", entendida neste sentido. e benfazeja como a que Freud esperava e encontrava em Fliess. Depois de passar por
A experiência, no sentido de experimento, em pesquisa psicanalítica, não tem esse outro, Freud podia se assegurar sobre o que ele, Freud, queria. Para Schlick
outro valor que ilustrativo. Sabemos que pelos experimentos "A" e "B" de Bernheim, (1936) "O 'solipsismo metodológico não é uma espécie de solipsismo, mas um método
geralmente provam o inconscientizado só para quem já passou pela experiência da de construção de conceitos." (Citado por Bouveresse, 1987, p. 112). Ora, a derivação
análise pessoal. Com este tipo de experiências a psicanálise não prova muita coisa. de conceitos em metapsicologia e em pesquisa psicanalítica em quê seria diferente?
Considero a experiência no sentido de Erlebnis, que se pode traduzir por A adoção do solipsismo metodológico implica a aceitação do outro, da
"vivência", como um aspecto que sobrevive no solipsismo. O solipsismo indica a alteridade. Na situação psicanalítica do tratamento, o analisante necessita de uma
doutrina que afirma tanto a não existência do outro distinto daquele que fala, bem como alteridade objetiva, representada no psicanalista. Como entender esta alteridade objetiva
a não existência duma realidade externa a este que fala. Este é o solipsismo dogmático na situação psicanalítica da pesquisa?
ou metafísico. O solipsismo gnoseológico ou epistemológico poderia até aceitar a Detenhamo-nos em certas cartas de Freud a Fliess e identifiquemos o que é o
existência do outro e da realidade externa, mas de que adiantaria se desse outro ou outro. Em relação para com ele mesmo, Freud fala de um outro dele mesmo,
dessa realidade externa nada podemos conhecer?lO Chamo atenção para o estudo do costumeiro e conhecido, e de um outro ainda dele mesmo, estranho e desconhecido.
solipsismo, pois que, através deste estudo, podemos entender aquilo que Freud propõe Em relação para com os outros, ele fala de um outro estrangeiro e independente, um
como "especulação" e primeiro momento da pesquisa metapsicológica, isto é, à sua altero E indica um outro que se parece a uma terceira pessoa, um terceiro. Freud o
face acrítica e feiticeira. A Erfahrung ou a experiência incorporada como aprendizado chama ora de Publikum, audiência, ora de Offentlichkeit, público anônimo.
e conhecimento corresponde ao segundo momento da pesquisa metapsicológica, isto é, Com esse outro dele mesmo, costumeiro e conhecido, Freud faz sua auto-
a sua face crítica e científica. análise. Entretanto, ele se depara com um outro dele mesmo que o surpreende e o
Entretanto, é curioso observar que Carnap (Der logische Aufbau der Welt deixa perplexo. O primeiro sabe e é capaz de julgamento mas é improdutivo, enquanto
[1929]) chama de "solipsismo metodológico" ao solipsismo que conserva somente a que o segundo aparentemente de nada sabe e nada julga, mas é produtivo. (Freud,
forma e não o conteúdo da concepção tradicional de solipsismo. Segundo Bouveresse: 1985c, Carta 213 de 11 de setembro de 1899). Fliess é logo posto por Freud na
situação de Alter privilegiado, um salvador, e, ao mesmo tempo, na situação de
"O caráter bem particular deste tipo de solipsismo consiste nisso Publikum. Freud descobre em Breuer um público malevolente e malfazejo do qual se
que, se o ponto de partida utilizado e a base considerada como suficiente afasta para se entregar a Fliess que lhe aparece como público benevolente e benfazejo.
são efetivamente constituídos par uma experiência subjetiva elementar, Aquele desconfia da integridade moral e intelectual de Freud nem aceita ler os textos
essa não pode ser caracterizada como 'minha' senão numa etapa a não ser definitivamente prontos:
posterior à constituição dos conceitos, a saber, no momento em que
entram em cena simultaneamente e solidariamente as duas noções de ggQ "Não consigo fazer nada certo aos olhos dele e desisti de tentar.
e de alter ego. " (Bouveresse, 1987, p. 111-112). Segundo ele, eu deveria perguntar-me todos os dias se estou sofrendo de
moral insanity ou de paranoia scietuifica. (... ) ... você não é nenhum
Acredito que é nesta perspectiva que poderemos entender o que Lacan nos diz Breuer a quem não se possa mostrar nada que não esteja concluído. "
num lugar clássico de seus escritos: (Freud, 1985c, Cartas 89 de 1 de março de 1896 e 113 de 17 dezembro
de 1896). .

Fliess acolhe os textos de Freud in statu nascendi e os considera verdadeiras


10 "D'une part, on a donné le nom de 'solipsisme' à Ia fois à Ia doctrine selon laquelle il n'existe pas d'autres e corajosas pesquisas científicas. Mais tarde, Fliess, seu público (Puhlikum;
csprits que celui du philosophe qui parle et à Ia doctrine selon laquelle il n'existe pas de réalité extérieure; d'autre
part, lc solipsisme est considéré tantôt comme une négation explicite de I'existence d'autres êtres pensants ou d'un benevolente e benfazejo se toma público pouco amável. Então Freud se entrega ao
monde cxtérieur (solipsisme dogmatique ou métaphysique), tantôt simplement comme une forme de scepticisme público anônimo (Õffentlichkeit), de quem, como de costume, não recebe resposta
1111 d'a)',llosticisme concernant I'existence de réalités autres que le Moi personnel, celle-ci ne pouvant être en fait
11; dahlk ni exclue (solipsisme guoséologique ou épistémologique." (Bouveresse, 1987, p. 111).

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164 José L. Caon Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 111,

alguma. Assim, de público escolhido, Fliess se toma um leitor privilegiado e, Portanto, a relação do pesquisador psicanalítico com esse outro, alldll'llcí;1
finalmente, um leitor qualquer desse público anônimo. benevolente e benfazeja, permite a construção do trabalho metapsicológico da pesquisa.
Em 1902, Stekel sugere a Freud formar um público escolhido destinado a É O que habitualmente se chama de perlaborar (durcharbeiten) a partir do padccinu-ruo
receber do mestre a transmissão de seu ensino. Criam-se os Seroes psicológicos das duma paixão, dum amor ou dum padecimento de transferência. Desta nuuu-ira,
quartas-feiras. Este publico é constituído pelos pioneiros e primeiros pesquisadores queremos indicar que a alteridade se liga diretamente à questão de método na sitlla~'a()
psicanalíticos depois de Freud. Nunberg nos informa: psicanalítica de pesquisa.
Por outro lado, na situação psicanalítica de pesquisa, este outro é um outro
"Freud gostava de se cercar de pessoas com quem ele podia se fictício, causa e sustentação do pesquisador psicanalítico em ato. Se houve um I.acan ,
comunicar e trocar idéias. A solidão à qual ele estava confinado -como em Paris, houve também a presença fiel destas audiências tradicionais que parece nao
acontece com todos os que estão na frente de seu tempo - lhe era muito existirem a não ser em Paris. São elas que suportaram o seu falar e o seu escrever.
pesada. Ele repetia que o psicanalista não deve viver no isolamento, Audiências em situação de torcida, tipo claque envenenada, ou audiências em situação
mas, ao contrário, relacionar-se com outras pessoas com quem elepossa de empacamento, tipo rebanho de ovelhas silenciosas, ocupando os espaços
traçar idéias e experiências. (Nunberg, in Freud 1962-1975a, L, p. 11). universitários e das instituições psicanalíticas, não me parecem ser este público
benevolente e benfazejo que ocupa o lugar do coro na situação ética da tragédia. Assim
Freud encontra em Jung e, depois em Ferenczi, uma continuação dessa relação como o coro acompanha e elabora o destino do herói trágico, para além de sua morte,
importante calcada na relação com Silberstein e com Fliess. Em janeiro de 1919, essas audiências acompanham o destino do pesquisador psicanalítico, para além da sua
começa uma relação aparentemente pessoal com o Verlag, a casa de epfções, que se morte. Recordemos que uma característica essencial da metapsicologiaé se ocupar dum
toma mais importante do que a sociedade internacional dos psicanalistas . Entretanto, objeto que, situado para além da nossa experiência psicanalítica, a constitui e a
esta relação com o Verlag não substituijamais a relação com o outro, enquanto público determina. A quem se dirigia Lacan a não ser a estas audiências quando ele nos diz:
benevolente e benfazejo. Assim, depois de Fliess e depois de Jung, a posição deste "Eu vos falo como analisante"? Ocupar o lugar de sujeito suposto saber sem perturbar
outro benevolente e benfazejo é brilhantemente ocupada por Ferenczi. o saber dum sujeito assujeitado que se debate contra o saber que o constitui e o
Como é que podemos ainda caracterizar este outro do pesquisador psicanalítico determina, foi a grande sabedoria de Fliess. É a sabedoria desses Fliess anônimos, a
em situação psicanalítica de pesquisa? Este outro é aquele que faz eco se entregando quem o pesquisador psicanalítico é devedor de um lugar, que eu quero homenagear e
ao riso, quando é atingido pelo chiste; se entregando ao maravilhamento e à edificação reconhecer. Que sejam muitos, compondo as redes da instituição, ou poucos, habitando
quando se encontra com um enunciado sábio (bon mot); se entregando à fulguração do os espaços que o linguageiro permite, eles são um elemento vivo dessa comunidade de
discernimento quando topa com um achado metapsicológico, encontrado no texto oral linguagem que resiste ao grupo, à burocracia, à nomenclatura e à institucionalização.
ou escrito do pesquisador psicanalítico. O riso é a ressonância do chiste no espírito do Um, como Fliess, é suficiente para tanto. Tal um pequenino fósforo, ele pode iluminar
outro. O maravilhamento ea edificação é a ressonância do dito sábio na mente do e indicar o sentido na noite mais profunda e escura onde se debate o nascente
outro, A fulguração do discernimento (Einsicht) é a ressonância do achado pesquisador psicanalítico.
metapsicológico no espírito do outro. Desta forma, afirmamos que o modelo da
pesquisa psicanalítica, que parte da fulguração do discernimento perante um achado
metapsicológico, fica mais bem explicado quando apoiado sobre o modelo tópico, 4. A METAPSICOLOGIA E A PRODUÇÃO DO TEXTO METAPSICO LÓGICO.
dinâmico e econômico da produção do chiste que supõe o modelo da produção do
sonho e da produção do sintoma, sendo que estes dois não pressupõem aquele. A metapsicologia é, num dizer de Freud, "a sucessão dum jogo audacioso da
fantasia e duma crítica impiedosa em nome da realidade." (Freud à Ferenczi, Carta
de 8 de abril de 1915. Citado por Grubrich-Simitis, p. 113). O pesquisador
psicanalítico trabalha com um campo e com um objeto psíquicos situados além dos
dados imediatos de nossa experiência. Para tanto, ele precisa estabelecer cicntifi
11 "Soulignons ce point étonnant qui se rattache à cette fonction dont Freud chargeait les Publikationen: autant camente uma via de acesso a este campo e a este objeto explicando os processos
Freud montra un certain détachement, pour ne pas dire plus, vis-à-vis de ses propres institutions analytiques qui psíquicos operantes neste domínio. O que constitui o maior problema para ele pode St'l
causaient tant de soucis à ses élêves, - Ia fameuse bande, dixit Freud ... - autant il fut attaché, le mot est faible,
au Psychoanalytischer Verlag, Le Verlag, précisément, avait Ia charge d'éditer les Publikationen, et on peut !ire,
enunciado hipoteticamente nestas duas questões:
dans Ia biographie de Freud étab!ie par Jones, combien Freud a donné d 'argent, de temps, de textes, de soucis pour Come podemos justificar a existência de um campo e de um objeto psiquirv»:
soutenir comme il disait, le Verlag, 'ce cher Verlag', 'Ie pauvre Verlag', (notons Ia personnification três fréquente situados fora da observação, da auto-observação e da experiência imediata dos d;ldos
du Verlag par Freud." (Viltard, 1985, p. 9).

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I ()b José L. Caon Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 167

da consciência? Como podemos pesquisá-Ios para além dos dados da experiência compulsão à descoberta a qual empurra Freud até o termo de seu
imediata da consciência? destino. O tirano fornece pois a imagem desconcertante duma
Em primeiro lugar, o órgão do qual o pesquisador psicanalítico lança mão é a necessidade arbitrária, pois se não se pode não lhe obedecer, não se
consciência, ou o campo do conscientizado oposto ao campo do inconscientizado. Para pode mais fundar esta obediência, prenhe de ilegitimidade. Assim, é
Freud, e nisto estamos em total acordo, "a diferenciação da psique em conscientizado próprio da tirania forjar espíritos críticos, pelo ferro e pelo fogo. li

e inconscientizado" é uma das nossas pressuposições fundamentais. Esta oposição (1984, pp. 14-15).
radical pode não oferecer problemas ao pesquisador de outros campos de pesquisa.
Para o pesquisador psicanalítico, ela está na base de todas as suas pesquisas. As Hegel propusera, na Fenomenologia do espírito (1807) a determinação do
oposições entre espiritual e material, alma e corpo, não têm a dimensão da oposição espírito pelo espirito mesmo. Freud, à maneira dele, propõe a determinação do
entre conscientizado e inconscientizado. psiquismo pelo psiquismo mesmo e constrói, por meio de dispositivos psíquicos um
Como é que Freud chegou a formular uma teoria dos processos inconscien- aparato psíquico (1900a). Como um novo Galileu, oferece um novo instrumento aos
tizados? O leitor que acompanha a correspondência de Freud a Fliess, nota que Freud pesquisadores em geral. Assim, não somente refuta os saberes e os métodos médico-
se refere a um mestre ao qual ele não pode não obedecer e ao qual ele dá o nome de psiquiátricos e clínico-psicológicos da época, mas também e sobretudo, as suas
tirano. No início ele o chama de "psicologia" 12. Provavelmente, inspirado no livro condições de possibilidade. Uma refutação deste jaez, ao mesmo tempo o lança no
de H. Taine, De l'intelligence (1870), ele renomeia o tirano e o chama de castigo e no gozo de uma esplêndida solidão digna de um Nils Lyhne. Freud nos diz:
"metapsicologia" 13. Decide-se então fazer com a metapsicologia aquilo que ele não "O livro de Jacobsen (N. L) me comoveu mais profundamente do que qualquer outra
pudera realizar com sua paixão pela filosofia, na sua juventude14. Em 1926, Freud coisa que eu tenha lido nestes últimos nove anos. Considero clássicos os capítulos
ainda se explica nesta perspectiva, mas de maneira ainda muito mais vigorosa: "Eu finais." (1985c, Carta 77). Trata-se do romance Nils Lyhne (1880) de Jean Peter
tenho dois senhores, Lógos e Anankê'', dito de outra maneira, "A inflexível razão Jacobsen (1847-1885). Masson nos informa:
e o destino necessário." (Citado por Assoun, 1984, p. 16). Assoun explicita esta
subjugação a partir da qual podemos adivinhar o germe do pesquisador psicanalítico: "Claramente autobiográfico, o livro retrata a vida tristissima e
desolada desse homem patologicamente tímido e recluso. A segunda
n •••toda a pré-história da psicanálise é história dessas relações ao parte do romance versa primordialmente sobre as perdas da vida dele -
tirano meta psicologia que é capaz de dar conta desta prodigiosa mãe, pai, mulher e filhos. Ele aceita seu destino como uma resignação
que nada fica a dever à religião e, por fim, enfrenta sua própria morte
com o mesmo estoicismo. O capítulo 12, começa com as seguintes
palavras: 'Durante quase dois anos, NUs Lyhne perambulara pelo
12 J'ai été affreusement occupé et me suis senti incapable aprês dix ou onze heures de travail avec mes continente [europeu]. Era muito solitário, sem amigos ou parentes ou
névrosés, de prendre Ia plume pour t'écrire quelques mots bien que j'aie tant de choses à te dire. Mais [a raison qualquer amizade estreita que lhe fosse cara. ' Presume-se que Freud se
principale, Ia voiei: un homme comme moi ne peut vivre sans dada, sans une passion ardente, sans tyran, pour
parler comme Schiller. Ce tyran, je l'ai trouvé et lui suis asservi corps et âme. 11s'appelle psychologie ct j'en ai estivesse referindo a essa atitude, mas é também possível que ele se tenha
toujours fait mon but lointain Ie plus attirant, celui dontje me rapproche depuis que je me suis heurté aux névroses. comovido com o extremo isolamento em que vivia Lyhne, pois sabemos
Deux ambitions me dévorent: découvrir quelle forme assume Ia théorie du fonctionnement mental quand on y que Freud, nessa época de sua vida, também se sentia inteiramente só. "
introduit Ia notion de quantité, une sorte d'économie des forces nerveuses et, deuxiêrnernent, tirer de Ia
psychopathologie quelque gain pour Ia psychologie normale. (Freud, 1950a, 1985c, Lettre24/64 du 25 mai 1895).
(1985c, Carta 77, n. 1).

Se considerarmos a paixão e o sofrimento padecidos e suportados por Freud na


13La psychologie - ou plutôt Ia métapsychologie - me préoccupe sans cesse. Le livre de Taine De I'intelligence
construção da metapsicologia, parece-nos que não é possível ao pesquisador
me plait énormément. J'espêre qu'il en sortira quelque chose. Je constate, un peu tardivement, que les idées les psicanalítico situar a metapsicologia freudiana sem se situar a si próprio. A explicitação
plus anciennes sontjustement les plus utilisables. J'espêre que I'amour des seiences m'absorbera jusqu'à Ia fin de do campo metapsicológico acompanha a explicitação da posição do pesquisador
ma vie. A part cela, je reste à peine un être humain." (Freud, 1950a, 1985c, Lettre 41/87 du 13 février 1896). psicanalítico. E é assim a cada novo passo no campo da metapsicologia. Mais do que
estar e ser iluminado pelo forjamento de um novo conceito psicanalítico, o pesquisador
psicanalítico é ressituado pelo embaraçamento e pela perplexidade de um novo at<]
14Jc constate que, par le détour de Ia médecine, tu atteins ton premier idéal qui est de comprendre Ia
physjologic humaine. Pour moi, je nourris dans le tréfonds de moi-même I'espoir d'atteindre par Ia même voie,
psicanalítico. Assim sendo, o conceito psicanalítico será efeito do ato psicanalítico. E
IIIIlII prcmicr hut: Ia philosophie. C'est à quoi j 'aspirais originellement avant d 'avoir bien compris pourquoi j 'étais neste sentido que a metapsicologia tem de ser sempre reinventada pelo pesquisador
.ru monde." (Frcud, 1950a, 1985c, Lettre 39/85 du ler janvier 1896).

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I()~ José L. Caon Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 169

psicanalítico, pois a metapsicologia não se presta a ser aparelho protético de pesquisa, Detenhamo-nos brevemente no capítulo XII, que se chama "Determinismo,
e o pesquisador psicanalítico nada tem a ver com um ventríloquo bem sucedido no crença no acaso e superstição." O determinismo psíquico ou o conhecimento do
marketing desvairado dos movimentos psicanalíticos. inconscientizado é demonstrado indiretamente por Freud através dos mecanismos da
O trabalho metapsicológico não é ametódico. Consideremos algumas passagens paranóia e da superstição. A argúcia do paranóico não lhe permite aceitar, no outro,
de Freud: "Ademais, você só está fazendo o que sempre fiz - escrevendo sobre aquilo certos atos inocentes, que o pesquisador psicanalítico entende como atos falhos ou atos
em que está absorto e deixando de lado aquilo a que não sabe reagir." (Carta 147). acidentais, isto é, da responsabilidade do inconscientizado. Assim, o paranóico atribui
Comentando como construia "o caso Dora", diz: à vida mental pré-conscientizada e conscientizada do outro aquilo que ele, paranóico,
"Primeiro, quero colocar minhas próprias idéias em ordem, depois estudar tem inconscientizado em si mesmo. O supersticioso desloca o conhecimento de seu
detalhadamente a literatura, e então fazer inserções ou revisões onde isso for inconscientizado no determinismo físico do cosmos. Isto é, lança fora de si, seu
recomendado por minhas leituras. Não posso fazer a leitura antes de haver concluído conhecimento inconscientizado ou determinismo psíquico e o atribui ao determinismo
o que eu mesmo tenho a dizer, e só sei compor os detalhes no processe de escrever. " cósmico. Ora, é sobre o modelo do paranóico e do supersticioso que Freud propõe sua
(Carta, 162). A Abraham, Freud revela ter mudado uma forma de trabalhar, mas não metapsicologia. Ele coloca estas duas formas de conhecimento como duas classes dum
abandona aquilo que ele considera obediência ao tirano: "Antes, minha maneira de gênero lógico superior, chamando a este gênero inicialmente de "o místico" e depois
trabalhar era diferente. Costumava esperar que uma idéia me surgisse. Agora, vou ao "o metafísico". Para minha exposição, costumo citar este locus classicus desta
encontro dela. Entretanto, não sei se agora eu a encontro mais depressa." (Freud a maneira:
Abraham, 11-12-1914). A Andreas-Salomé, Freud manifesta que a maneira de "(O paranóico] vê alguma coisa que escapa ao homem normal. Sua
trabalhar em que está envolvido não se submete às exigências das sínteses e das visão é mais penetrante que a do pensamento normal; porém aquilo que
conclusões: "... passo a passo, sem necessidade interna duma conclusão, sempre sob retira todo o valor de seu conhecimento, é o fato de extender ao outro
a pressão dum problema que surgiu e com o cuidado de respeitar a sucesso das ou aos outros um estado de coisas que não é real a não ser no fato de
instâncias." (Freud a Andreas-Salomé, 13-07-1917). E à pergunta que a amiga lhe faz ser coisa dele mesmo. (.. .) (O supersticioso] é forçado a atribuir ao
sobre o recente projeto de metapiscologia, Freud lhe responde: 'O que foi feito da acaso externo uma importância que se manifestará na realidade vindoura
minha metapsicologia e onde está ela? Em primeiro lugar, ela não está escrita. ( ... ) e a ver no acaso um meio pelo qual se exprimem certas coisas exteriores
A elaboração sistemática duma matéria me é impossível, a natureza fragmentária de que lhe permanecem ocultas (... ) A distância que separa o deslocamento
minhas experiências e o caráter intermitente de minha inspiração não mo permitem." operado pelo paranóico do deslocamento operado pelo supersticioso é
(Freud a Andreas-Salomé, Carta de 09-04-1919). menor e não aparece à primeira vista. (... ) Eu penso, com efeito, que,
Mas o que está na raiz do processo metapsicológico que não pode chegar a para uma boa parte, a concepção mitológica do mundo, aquela que
sínteses e a sistematizações se não o esburacamento e a implosão de toda cosmovisão? anima até as religiões as mais modernas, não é outra coisa que uma
Não é pela construção de cosmovisões que os pesquisadores se defende contra a psicologia projetada no mundo exterior. O conhecimento obscuro (que
barbárie, a estupidez e a loucura? "Não posso mais ser otimista. Eu me distingo dos não se deve confundir com o conhecimento verdadeiro) dos fatores e dos
pessimistas unicamente porque o mal [barbárie], a estupidez e a loucura não me põem fatos psíquicos do inconscientizado (dito com outras palavras: a
fora de mim. E isto é pela simples razão que eu os incluo antecipadamente na percepção endopsíquica destes fatores e destes fatos) se reflete {é difícil
estruturação de um mundo [cosmovisão]." (Freud a Andreas-Salomé, 30-07-1915). de dizer isso de outra forma, a analogia com a paranóia devendo aqui
Entretanto, se na pesquisa psicanalítica as sistematizações, as sínteses, as ser chamada em nosso socorro] na construção duma realidade supra-
cosmovisões são recusadas, as sinopses e a teoria não são deixadas de lado. Sabe-se sensível, que a ciência retransforma numa psicologia do inconscienti
que uma teoria não passa de um relatório provisório a partir do que nos mostram os zado. Podemos nos dar por tarefa a decomposição - concebendo, neste
dispositivos instrumentais de pesquisa. Aceitemos que os dispositivos da pesquisa são ponto de vista, os mitos relativos ao paraíso e ao pecado original, ao
condição necessária para a teoria e então poderemos fazer uma aproximação mal e ao bem, à imortalidade, etc., - e a tradução da metafísica em
interessante do sétimo capítulo, segunda secção, da Interpretação dos sonhos (1900a), metapsicologia". (Freud, 1901b, p. 296).
que tratada regressão, e do duodécimo capítulo, terceira secção, da Psicopatologia da
vida quotidiana (1901b) que trata da paranóia e da superstição. Ao tratar da regressão, É preciso observar que a concepção mitológica do mundo que impregna
Freud faz simplesmente metapsicologia sem nomeá-Ia. Mas, ao tratar da paranóia e da inclusive as religiões modernas não é toda a concepção da psicologia projetiva. Ela
superstição, ele faz metapsicologia e a chama pelo seu nome e lhe reivindica um lugar corresponde a "uma grande parcela" , ein grosses Stück. Fique isto bem entendido para
110 campo da pesquisa em geral.
não se partir para uma cruzada metapsicológica contra toda metafísica, não

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I /0 José L. CllOn
Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 171

diferençando entre a má metafísica e a especulação filosófica. A metapsicologia pode


ticamente aos temas específicos da psicanálise, deixados pelo buraco na tecitura do
resgatar para a ciência aquilo que é objeto da metapsíquica e das paraciências e aquilo
texto.
que, na metafísica, se refere à teoria da alma. Quando a metapsicologia pretende
Sabemos que textos de escritura clara e simples podem levar o leitor pela mão
resgatar toda a metafísica, ela se substitui caricatamente à metafísica, não passando de
até à leitura da última palavra. Mas não podem impedir que o leitor os abandone por
uma solução paranóica ou supersticiosa. Acreditamos que o que diferencia
achá-los pouco desafiantes. Em todo o caso, não é comum que um texto simples e
fundamentalmente a metapsicologia da filosofia é sua maneira diferente de praticar a
claro convide para uma nova leitura.
especulação e os modos de derivação dos. seus respectivos conceitos. Assim, um Um texto de escritura complexa e enigmática pode prender o leitor e levá-lo à
conceito de psicanálise derivado metapsicologicamente é distinto de um conceito outras leituras. Observemos, de passagem, que um texto complexo e enigmático não
derivado filosoficamente. Neste momento, vale lembrar que um dicionário ou uma
significa que seja confuso. O que caracteriza a legibilidade de um texto, portanto, não
enciclopédia de psicanálise não passa de um dicionário ou de uma enciclopédia de'
é sua simplicidade ou clareza nem sua complexidade ou enigmaticidade. Sua
filosofia da psicanálise. Pouco importa que um pesquisador psicanalítico menos avisado
legibilidade depende de outras condições. O estilo do escritor, o conteúdo do assunto,
o tome como dicionário ou enciclopédia metapsicológicos de psicanálise que, como
os dispositivos empregados para a escritura do texto, o público a quem o escritor se
tais, não passam de uma realidade ilusória passível de ser suportada diferentemente
dirige são algumas condições responsáveis pela legibilidadede um texto, seja ele, como
deste real impossível a ser suportado.
já dissemos, simples e claro ou complexo e enigmático.
Chegamos então ao coração do real que engendra e alimenta a metapsicologia. Não examinarei, aqui, as condições referentes ao estilo, ao conteúdo e aos
Há um resto inanalisável deste real que insiste e que justifica não somente a análise dispositivos da produção da escritura do texto. Tratarei, brevemente, do público do
sem fim como a verdadeira pesquisa psicanalítica. Lá onde o real falsamente obturado escritor. Se aceitarmos que o ato de escrever é um ato profundamente solitário, então
se toma o abjeto da superstição, da paranóia, das paraciências, das psicologias o público do escritor, no ato de escrever, não é senão um público fictício. Entretanto,
projetivas, das mitologias, das utopias, das cosmovisões, das religiões e de todos os vale observar que este público fictício não é o público anônimo, aquele que lerá o texto
marketings desvairados da angústia, lá a metapsicologia encontra seu objeto. Tudo isso do escritor depois de lançado à publicidade.
que é abjeto 'dessas "disciplinas" enquanto produtos residuais do espírito, formam o Podemos criar um dispositivo que suporte um público intermediário entre o
objeto do pesquisador psicanalítico em situação psicanalítica de pesquisa. público fictício e o público anônimo do escritor? Respondendo afirmativamente,
No que se refere à produção do texto metapsicológico, temos proposto, a partir podemos dizer que é justamente este o público a que nos referimos acima ao falarmos
de nossa experiência psicanalítica, um dispositivo que pode fomentar a produção de do maestro e dos músicos escolhidos "ad hoc" pelo compositor, antes de lançar sua
textos. Partimos da hipótese que o escritor geralmente carece de um publico composição à publicidade. Observemos que o maestro e os músicos "ad hoc" dependem
intermediário que se interponha entre seu público fictício e seu público anônimo.
da escolha do compositor. Após o texto publicado, a escolha do maestro e dos músicos
Pensamos portanto propor primeiro uma analogia com o que se passa com o não lhe pertence mais. Do anonimato, surgirão os maestros e os músicos que
compositor após ter escrito uma partitura.
executarão o texto musical apoiados na sua legibilidade.
Concluída sua composição sinfônica, o compositor pode procurar um maestro Socorro-me desta analogia para ilustrar o fato de que o texto do pesquisador
e um grupo de músicos e pedir-lhes que a executem para ele ouvir. Assim ele terá, psicanalítico depois de publicado dificilmente encontrará outro leitor que o leitor
durante a execução, condições de consertar certos acordes desafinados, de introduzir anônimo. Mais ainda: o texto publicado entra no destino do texto verbal ou falado, pois
nuances e de fazer pontuações. Entretanto, durante a execução, espera-se que ele que não pode mais ser rasurado ou apagado. Esta diferença fundamental entre a
suporte aquilo que ele mesmo compôs. Não poderá, por exemplo, dizer: "Mas não é escritura e a fala, como muito bem foi pontuado por Ana Maria Netto Machado, nas
isso o que eu compus!" Qualquer músico responder-lhe-ia: "Mas é isso o que a suas pesquisas recentes sobre a escriptologia em Jacques Lacan, autoriza-nos a
partitura diz!" Dito de outra maneira: "É esta a legibilidade do escrito!" desenvolver uma atividade de escritura de textos de pesquisa psicanalítica antes de eles
Quanto à redação de um texto dum pesquisador psicanalítico pretende ser tomarem o destino da publicidade.
metapsicológico, esperar-se-ia que ele pudesse falar por ele mesmo. Caso contrário, Tivemos oportunidade de explicar parcialmente os textos do livro Psicanálise
o leitor precisará interpretar, isto é, supor o que o texto quer dizer. O leitor suprirá a e sintoma social (1993), num de nossos recentes trabalhos 15. Uma
falta de legibilidade do texto se servindo da interpretação que lhe exige uma certa
projeção. Isto acontece em qualquer leitura.
Entretanto, a natureza da participação do leitor pode ser de diferente qualidade.
O que se me apresenta como problema é a questão de saber se um texto pode provocar,
no leitor, uma participação de natureza metapsicológica, isto é, remetê-l o automa-
15Trata-se de Psicopatologia do conceito e psicopatologia do sintoma. O texto foi redigido para ser lido e
comentado no dia 5 de novembro de 1993, na Unisinos, dia do lançamento do referido livro.
172 José L. Caon Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 1994, v. 7, n. 2, p. 145-174 173

das nossas conclusões evidenciava que o livro pode ser lido pelo pesquisador escrito suas impressões. Ela se pôs a fazer a descrição da vela segundo
psicanalítico como um exemplo de sintoma em pesquisa psicanalítica. Diversos textos sua inteligência. Porém, a borboleta-sábio que dirigia a reunião
verbais escriturados, constantes no livro, e outros textos escritos nos permitiram chegar exprimiu a opinião segundo a qual a borboleta pesquisadora não sabia
a esta conclusão. Podemos nos perguntar se os autores dos textos do livro se puseram nada da vela acesa. Uma outra borboleta foi passar perto da luz e se
à prova perante um público intermediário que separa seu público fictício e seu público aproximou. Ela tocou a chama com suas asas e se queimou. A vela acesa
anônimo. E se isso ocorresse, em quê os textos teriam mudado qualitativamente? continuou vitoriosa e a borboleta foi vencida. A borboleta voltou e
Propor ao leitor que deseja se aventurar na escritura de suas pesquisas revelou alguma coisa do mistério em questão. Ela explicou um pouco em
psicanalíticas, um dispositivo semelhante ao conjunto formado pelo maestro e os que consistia a união com a vela acesa. A borboleta-sábio lhe disse:
músicos escolhidos "ad hoc" pelo compositor, significa desafiá-lo a se pôr à prova 'Tua explicação não é mais exata que aquela que foi dada pela tua
perante um público intermediário entre o seu público fictício e o seu público anônimo. companheira. ' Uma terceira borboleta se levantou cheia de amor: foi
O escrever como ato solitário segue o modelo do sonho. Afirmamos que é assim que lançar-se violentamente na chama da vela. Lançada por suas patas de
se inicia a pesquisa psicanalítica. Mas, o modelo do sonho não a redimensiona nem lhe trás, ela estendeu ao mesmo tempo as patas da frente na direção da
imprime inteligibilidade. A pesquisa psicanalítica precisa de ser posta à prova perante chama. Ela se perdeu e se identificou alegremente com a chama. Ela
um público benevolente e benfazejo, reflexivo e crítico, como aquele que sustenta o virou uma brasa e seus membros ficaram vermelhos como o fogo.
fazedor de chistes, o inventor de ditos de efeito edificante (bons mots) , ou o Quando a borboleta-sábio (o chefe da reunião) viu de longe que a vela
descobridor de achados metapsicológicos. Ora, o leitor anônimo jamais se presta a esta tinha identificado o inseto a ela e lhe tinha dado a mesma aparência,
atividade e mesmo que se prestasse de que serviria para o autor do texto, o qual já caiu disse: 'Essa borboleta aprendeu aquilo que ela queria saber; mas ela
no destino das publicações? sozinha o compreende. Eis tudo. '" (1863, pp. 222-223).
Umaaltemativapara a pesquisa psicanalítica e para a transmissão da psicanálise
é indubitavelmente a produção metapsicológica de textos. Defendemos que a A partir desta fábula mística, podemos imaginar o objeto de pesquisa, o
metapsicologia é um gênero literário de ensaios científicos, portanto cultivável. O psicopatológico inconscientizado, estando além do terceiro e derradeiro círculo a ser
público intermediário, que sustenta o pesquisador psicanalítico, é uma derivação transposto. Aquele que, fazendo a experiência, o ultrapassa, não pode mais falar sobre
imediata da primeira comunidade psicanalítica curiosamente formada por duas pessoas: isso. Não pode dizer a ninguém aquilo que ele conhece.
Freud e Fliess. Se no interior da pesquisa universitária, uma comunidade de apenas O auto-analisante não faz a experiência e não ultrapasse ele apenas o primeiro
duas pessoas pode suportar uma revolução no campo da pesquisa dos processos círculo? O analisante não faz a experiência e não ultrapassa ele o segundo? E o
psíquicos inconscientizados, porque não retomar a Freud, também em relação a este pesquisador psicanalJtico do psicopatológico, não toma ele o mesmo caminho do louco,
processo revolucionário? seu irmão gêmeo?1 O louco faz a experiência e ultrapassa o terceiro círculo, mas o
faz sozinho. O pesquisador psicanalítico do psicopatológico também ultrapassa o
5. UMA FIGURAÇÃO DA MORTE DO PESQUISADOR PSICANALÍTICO terceiro círculo, mas o faz como Dante, em alteridade com Virgílio. Sem fazer a
experiência dos réprobos, ele a conhece, e conhece aquilo que constitui a experiência
Uma figuração do nascimento do pesquisador psicanalítico nos mostrou que sua tormentosa deles. Mas da experiência deles ele nada sabe. Sem o outro, a experiência
pesquisa mais que criar um texto cria um autor. O trabalho do bicho-da-seda mais do pessoal do louco fica perdida para sempre. Não pode mais falar dela, ou porque ele
que criar um casulo cria uma borboleta, uma psichê. Qual pode ser o destino desta recusou o outro, ou porque não teve o dom de seu reconhecimento.
borboleta? Quando toma ela o destino do auto-analisante, do analisante, do louco ou Entretanto, porque conta perdidamente com o outro e porque já está
do pesquisador psicanalítico? Posso sugerir uma pista, por analogia, por mythos, a irreversivelmente perdido e jogado na alteridade e não na loucura, o pesquisador
partir da pequena história alegórica do poeta Farid uddin Attar (v .1150-v .1220): psicanalítico - como Dante que não pôde fazer a experiência dos réprobos e
condenados - ao ultrapassar o terceiro círculo, não faz a experiência do louco e, por
A anedota das borboletas isso, nunca saberá dela. Mas, ninguém a não ser o pesquisador psicanalítico pode falar
"Uma noite, as borboletas se reuniram, atormentadas pelo desejo dela, utilizando os dispositivos que além dela a constituem. E é dessa maneira que se
de se unir à uma vela acesa. Todas disseram: 'É preciso encontrar
alguém que possa dar-nos informações sobre o objeto de nossa amorosa
pesquisa. ' Uma borboleta foi a um castelo longínquo e viu no interior a
luz da vela. Voltou e relatou o que tinha visto, no seu livro onde tinha
16Cf. Lacan, Ecrits, p. 154, 176 onde se encontram aproximações entre a loucura e a liberdade.

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174 José L. Caon

vem inventando este novo gênero literário de ensaios científicos que nós chamamos de
metapsicologia.

Referências
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* As obras de Freud estão citadas de acordo com a codificação de Grubrich-Simitis.

Recebido em março de 94.


Aceito em novembro de 94.

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