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Brasília
2007
B816s Branco Filho, José Carlos Castelo.
O sentido do sintoma na psicose: uma leitura psicanalítica / José Carlos
Castelo Branco Filho. - 2007.
17Tr. ;
CDU 616.895
Aos meus pais, que não mediram esforços para a concretização deste mestrado e pela força
que me deram a cada dificuldade que aparecia durante o percurso trilhado.
Aos meus irmãos Ana Fabíola, Karla Cristina e Carlos Henrique, por acreditarem na
realização deste sonho e por me ampararem sempre.
A professora Deise Matos do Amparo, por abraçar a proposta desta dissertação e pelas
orientações realizadas nesses dois anos.
Aos professores Sandra Francesca C. de Almeida e Ileno Izídio da Costa, pela participação
no exame de qualificação e pelos importantes direcionamentos sugeridos.
Aos psiquiatras do Hospital de Base do Distrito Federal, que ajudaram no recrutamento dos
sujeitos da pesquisa.
A Amanda, Carla, João e Luciana, que abriram as portas de suas vidas – sem reservas – e
com grande disponibilidade me contaram suas histórias nas entrevistas clínicas.
Ao amigo Roni Ivan, pela companhia e pela ajuda em vários momentos, principalmente
nas viagens a São Paulo e Rio de Janeiro para realização de pesquisa bibliográfica.
Aos amigos Fabrício Santos e Marco Antônio pelas leituras e revisões de texto e a amiga
Andréia Trigueiro pelo auxílio e presteza na tradução do resumo.
Aos colegas do Núcleo de Psicologia do Hospital de Base pelo apoio e incentivo durante
esses dois anos.
Aos amigos que estiveram perto e me apoiaram e os que souberam entender a distância
durante este tempo.
A todos que contribuíram de alguma forma com a realização deste grande sonho. Vocês
estão no meu coração. Obrigado!
“A formação delirante, que presumimos ser o
produto patológico, é, na realidade, uma
tentativa de restabelecimento, um processo de
reconstrução” (Freud, 1911, p. 78).
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo investigar, a partir de uma leitura psicanalítica, a
relação da produção de sintomas, com a tentativa de organização psíquica de sujeitos com
diagnóstico de psicose. Contrariando a idéia psiquiátrica de que o delírio é um juízo
patologicamente falseado e a alucinação uma alteração da percepção, toma-se como base a
proposição freudiana de que o delírio é uma tentativa de reconstrução e restabelecimento e
a alucinação pode ser compreendida como retorno do que foi abolido no real, implicando
uma satisfação alucinatória de desejo. Além disso, nos casos em que a alucinação e o
delírio são apresentados concomitantemente, a alucinação tem a função de prover a
construção de uma nova realidade de percepções, a fim de fundamentar e sustentar o
processo delirante. Para analisar essas produções sintomáticas, em particular o delírio e a
alucinação, colocou-se em questão a dimensão corporal, a problemática do narcisismo e a
relação com a realidade. Este estudo configurou-se como uma pesquisa clínico-qualitativa
de quatro sujeitos com diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia e transtorno delirante.
Utilizou-se como instrumento entrevistas clínicas. Com a finalidade de qualificar e
sistematizar as falas colhidas nas entrevistas, realizou-se a análise de conteúdo e
hermenêutica das falas dos indivíduos, buscando uma interpretação psicanalítica.
Observou-se que na psicose o sintoma também tem o objetivo de amenizar ou eliminar o
que causa desequilíbrio e, dessa forma, o delírio e a alucinação são fenômenos importantes
no processo de reconstrução da realidade, restabelecimento do vínculo com os objetos –
pessoas e coisas – anteriormente investidos e remodelamento de sua imagem corporal e do
eu. Além disso, percebe-se que o delírio traz a tona questões relacionadas com a história de
vida do sujeito e trata-se de uma tentativa de encontrar um lugar para si no mundo onde
possa voltar a existir. Assim, fica evidente a importância de devolver a fala ao sujeito
psicótico e ouvi-lo no que lhe é mais pessoal. Em síntese, este trabalho pretendeu refletir
sobre a redução desses fenômenos a produtos apenas patológicos e buscou lhes atribuir a
devida importância para o entendimento do sujeito psicótico e do processo que se
desenrola na psicose. Nesse sentido, qualificar a fala desses sujeitos é fundamental na
atuação do profissional que se relaciona com eles como interlocutor deste processo.
The present work has as objective to investigate, starting from a reading psychoanalytic the
relationship of the production of symptoms, with the attempt of psychic organization of
subject with psychosis diagnosis. Thwarting the psychiatric idea that the delirium is a
judgment distorted pathological and the hallucination an alteration of the perception, it is
taken as base the Freudian’s proposition that the delirium is a reconstruction attempt and
re-establishment and the hallucination can be understood as return than it was abolished in
the Real, implying a hallucinatory satisfaction of desire. Besides, in the cases in that the
hallucination and the delirium are presented concomitant, the hallucination has the function
of providing the construction of a new reality of perceptions, in order to base and to sustain
the delirious process. To analyze those symptomatic productions, in particular the delirium
and the hallucination were placed in subject the corporal dimension, the problem of the
narcissism and the relationship with the reality. This study was configured as a clinical-
qualitative research of four subjects with psychiatric diagnosis of schizophrenia and
delirious upset. It was used as instrument clinical interviews. With the purpose of to
qualify and to systematize the speeches picked in the interviews, he/she took place the
content analysis and hermeneutic of the individuals' speeches, looking for an interpretation
psychoanalytic. It was observed that in the psychosis the symptom also has the objective of
to liven up or to eliminate what it causes unbalance and, of that form, the delirium and the
hallucination they are important phenomena in the process of reconstruction of the reality,
re-establishment of the entail with the objects - people and things - previously invested and
remaking of its corporal image and of the me. Besides, it is noticed that the delirium brings
the subjects related with the history of life of the subject and it is an attempt of finding a
place for itself in the world where exists again. Thus, it is evident the importance of to
return the speech to the psychotic subject and to hear it in what it is it more personal. In
synthesis, this work just intended to contemplate about the reduction of those phenomena
to products pathological and it looked for them to attribute the due importance for the
psychotic subject's understanding and of the process that is uncoiled in the psychosis. In
that sense, to qualify the speech of those subjects is fundamental in the professional's
performance that links with them as speaker of this process.
AGRADECIMENTOS ............................................................................................. 04
RESUMO .................................................................................................................. 06
ABSTRACT .............................................................................................................. 07
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 09
CAPÍTULO 1
PSICOSE E SINTOMA NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA ...................... 24
CAPÍTULO 2
NATUREZA DO PROBLEMA E MÉTODO ....................................................... 76
CAPÍTULO 3
O SENTIDO DO SINTOMA NA PSICOSE: A RELAÇÃO COM O CORPO,
O NARCISISMO E A REALIDADE ..................................................................... 84
fácil. Para trabalhar com este tema, é necessário que se desprenda de uma “força de
(Bodei, 2003). Tal procedimento se torna indispensável, uma vez que, ao se deparar
com a fala do psicótico, que, embora pareça absurda e distorcida, pode-se fazer
Para que seja possível entrar nesse universo delirante e alucinatório, deve-se
deixar de ver tais experiências como algo homogêneo espacial ou temporalmente. Além
disso, é necessário realizar um salto de um mundo vital a um outro mundo, onde todos
possuem uma nebulosa possibilidade de habitar. Por exemplo, delírio e razão não são
pólos opostos; dessa forma, não se deve pensar que o delírio represente a completa
É esse salto, tratado por Bodei (2003), de um mundo ao “outro mundo”, que este
trabalho pretende fazer. Visitar este universo do sujeito psicótico para tentar
aspectos.
9
A palavra delírio é derivada da metáfora camponesa de exceder a lira (leira), ou
seja, de de-lirar; de estar no canteiro entre dois sulcos (Bodei, 2003). No entanto, a
conteúdo, mas, sim, a posição que ele toma na vivência do indivíduo, a sua referência
ao eu. Dessa forma, o que constitui a doença não são os objetos da imaginação e da
referência sem motivo, crença errônea doentia referida ao eu, consciência anormal da
não sendo possível se colocar em dúvida a veracidade do seu delírio; ii) o delírio é
irremovível, não cabendo qualquer forma de modificação pela experiência objetiva e iii)
a idéia de que o delírio também é uma produção associal; ou seja, ele precisa ser a
convicção de uma só pessoa, não podendo ser “repartido” com outros indivíduos. Para
estes autores, ao delirar, o indivíduo deixa o seu universo social e passa a produzir e
Nesta mesma lógica, o delírio também é entendido como uma idéia ou crença
10
sujeito, e é mantida com extraordinária convicção e certeza subjetiva. Apesar disso, do
(Sims, 2001).
para ele, assim como para outros autores, no delírio, o patológico não é o conteúdo,
mas, sim, a relação alienada com os outros e com o mundo. Para este autor, a realidade
falso e produção associal, Freud (1911/1996) já defendia, e será a idéia defendida neste
Dessa forma, tem-se que o delírio é a maneira encontrada para reparar o dano
causado e restaurar as relações do sujeito com a realidade. Neste ponto, Freud contrapõe
associal e que o indivíduo delirante contraria o seu grupo social ao passar a produzir
sentido de restabelecer os laços com a realidade, mesmo que com uma realidade
11
Por outro lado, a alucinação é definida na psiquiatria como uma percepção de
um objeto sem que este esteja presente, ou seja, sem o estímulo sensorial concernente
(Dalgalarrondo, 2000).
Assim como acontece com o delírio, a psiquiatria trata a alucinação como signo
de doença por designá-la como uma alteração da representação, ou melhor, uma falsa
que foi abolido. Além disso, ela é o retorno do que foi rejeitado e trata-se também da
realização do desejo almejado pelo isso1: germe do conflito que deu origem à psicose
que o ser humano faz uso na tentativa de eliminar o desprazer causado por uma
necessidade interna. Explica este fato retomando a vida de uma criança na mais tenra
idade, que ao sentir fome chora ou emite outros comportamentos sugestivos dessa
12
percepção específica relacionada com esta satisfação, no caso do bebê a nutrição,
satisfação original.
do desejo. Segundo ele, “o caminho mais curto para essa realização é a via que conduz
encontrada para a realização do desejo, mesmo que o objeto causador da satisfação não
do desejo. Ao ser abandonado por permanecer ineficaz durante a vigília, passa a ser
suplantada” (Freud, 1900/1996, p. 596). De forma semelhante, este método volta a ser
caráter aflitivo, por ter relação com o que foi rejeitado. No caso da psicose essa
13
Juntamente com essas possibilidades para este fenômeno, nos casos em que o
qual se iniciará toda a construção delirante, já que o delírio necessita de percepções que
estejam de acordo com a nova realidade que será construída para “justificar”, ou
melhor, para sustentar e fundamentar a construção dessa nova realidade. Para que o
realidade, o ponto de partida é justamente a alucinação, por trazer consigo algo que tem
1924/1996).
conteúdo da idéia incompatível são mantidos, porém são projetados para o exterior.
Neste caso, as alucinações, quando presentes, são percebidas de forma hostil ao eu, por
meio da perseguição que é alvo, mesmo assim exercem o papel de apoiar a defesa
inerente à psicose, como na esquizofrenia. Mas nem sempre elas são hostis ao eu, no
um doente dos nervos, que embasou a publicação do Caso Schreber. Neste texto fica
14
Schreber, pela via delirante, no sentido de lidar com a idéia intolerada que um dia lhe
ocorreu em semi-vigília: de que deveria ser realmente muito bom ser mulher e
Como demonstramos, em sua obra Freud defende que a psicose é uma “doença”
psíquica do sujeito.
(Dahlke & Dethlefsen, 2002). Dessa forma, o que importa não é tanto o comportamento
15
Esta posição de Scharfetter também corrobora a crítica acerca da idéia defendida
por Dalgalarrondo, que o delírio seria uma produção associal, fazendo com que o
encontrada para se relacionar com outra pessoa, mesmo que este seja percebido como
seu perseguidor. Da mesma forma, o delírio de redenção e de cura faz com que o sujeito
“contato” com algumas pessoas ou situações da maneira que a maioria das pessoas o
fazem. Nestes casos, a forma que encontra para estabelecer esse “contato” é por meio de
seu delírio, como defende Freud, onde o sujeito empreende uma tentativa de
comunicativa em uma dialética, onde, por um lado, fica a vontade de comunicar e por
outro, a vontade, ou até a necessidade, de esconder. Essa dialética pode ser justificada
por meio do duplo movimento exercido pelo processo de defesa, onde por um lado
procura diminuir a consciência a respeito dos conteúdos que causam desprazer e, por
outro, pressiona para que esses conteúdos se manifestem (Bodei, 2003). Sobre este
aspecto, pode-se afirmar que “o delírio é uma fala necessária que faz sofrer” (Coriat &
obrigatória, uma vez que o sujeito delirante viu um mundo, do qual foi expulso, se
16
seja, “quando a vida se torna invivível, deve-se inventar uma vida nova” (Bodei, 2003,
p. 11).
Como por exemplo, um deles disse a Storch (1965), citado por Scharfetter (1997, p.
245): “Eu construo o meu próprio mundo, a fim de superar tudo o que é lamentável”.
Outro dizia a Kretschmer (1963) também citado por Scharfetter (1997, p. 245): “Você
pode dizer o que quiser da realidade, eu acho-a horrível”. Nesses fragmentos percebe-se
que, em muitos casos, a realidade que se impõe ao sujeito é tomada como intolerável,
exigindo a construção de uma nova realidade, pela via delirante, onde encontre um
Assim, não é difícil perceber que a psicose desdobra e desenvolve uma razão
lógica em que o delírio aparece sob a forma de uma lógica sim, mas de uma outra lógica
particular (Fillizola, 1994, p. 19). O que pode ser traduzido na afirmativa de que as
lógicas que o delírio traz não são dotadas de uma lógica racional cartesiana,
necessitando ser avaliadas a partir de casos individuais. Essa lógica própria e individual
exige uma grande sabedoria por parte do protagonista e do terapeuta (Bodei, 2003).
uma vez que, nos momentos que não está delirando, o sujeito demonstra ter uma relação
sadia com o mundo; e, inversamente, o sujeito normal pode ter um episódio delirante e
17
Em consonância com estas idéias, o delírio e a alucinação podem ser entendidos
investidos, isso de forma fantasiosa. “Assim, longe de o delírio ser a marca da doença,
ele já é o caminho para a cura e seu esboço. [...] Entrementes, o homem enfermo
reconquista uma relação com as pessoas e as coisas deste mundo [...]” (De Waelhens,
1990, p. 74). Além de ser uma tentativa de restauração da realidade negada, o delírio é
memória, antigas representações e julgamentos que retornam sem que sejam assimiladas
como percepções do sujeito (Freud, 1924/1996). Elas aparecem como algo que veio de
fora e buscam substituir o fragmento de realidade abolido, ao mesmo tempo em que são
essa compreensão. “É no próprio delírio do sujeito psicótico que se encontra algo sobre
18
A produção delirante e a linguagem desse indivíduo trazem informações e conteúdos
importantes sobre ele. Neste sentido, é necessário que o psicótico vivencie a sua
organização psíquica que se formou frente a essa situação (Filizzola, 1994; Katz, 1991).
forma, percebe-se uma diferença essencial entre estas duas perspectivas. A psiquiatria
disfunções psíquicas. Por outro lado, a psicanálise qualifica o sujeito e o sentido da sua
apresentados pelos sujeitos. A forma com que o sujeito lida com o seu próprio corpo, e
assim o seu eu, bem como o investimento narcísico de que este é alvo são frutos da
relação do sujeito com a realidade, ao mesmo tempo em que determinam como essa
relação será desempenhada. Deparamo-nos com uma via de mão tripla, ao mesmo
tempo em que um influencia e é influenciado pelo outro também será influenciado pelo
terceiro.
19
Diante de todas essas possibilidades de entendimento e interpretação para o
pretendeu-se investigar a posição que o sujeito toma diante das alucinações a qual
apresenta e do delírio que procura organizar o cenário psíquico desse sujeito. Com isso
buscamos identificar o que esses sintomas dizem do sujeito em questão articulando com
seguindo a idéia de que é a saída encontrada pelo sujeito, no sentido de lidar com a
mental.
20
tem o delírio como sintoma predominante. Outra patologia em que a alucinação é um
esquizofrenia ser considerada a psicose típica. É importante ressaltar que nem todo
trabalho, por ser a forma com que a psicanálise, posição teórica adotada, ainda a
denomina. No entanto, é importante salientar que os sujeitos que farão parte da pesquisa
delirante.
que foi abolido e satisfação alucinatória do desejo, percebe-se que algumas questões
21
que propomos uma investigação acerca da construção delirante e o processo
fenômeno psicótico. Para isso, o presente trabalho trará uma revisão de literatura sobre a
das falas, de onde foram retirados extratos clínicos para embasarem o capítulo referente
22
Já o terceiro capítulo, refere-se aos resultados e discussões dos extratos clínicos
selecionados e divididos nos eixos temáticos que nortearam o estudo. São eles: a
na psicose.
conclusões que puderam ser extraídas do presente trabalho, que busca articular a teoria
psicótico.
23
CAPÍTULO I
“doenças mentais” por meio de estudos realizados principalmente com suas pacientes
histéricas. Como por exemplo, a descoberta de que o principal fenômeno psíquico que
consciência. No entanto, mesmo no inconsciente, esse material recalcado, isto é, que foi
levado para o inconsciente, poderia provocar sintomas por meio de uma formação de
recalcado trava uma batalha contra essa saída do eu que acaba por criar uma
24
Percebe-se que Freud dá início a uma nova forma de ver a doença mental e
começa a se interessar por novos dados que até então não eram considerados no campo
da psicopatologia.
sintomas da histeria e das obsessões e acaba por chegar ao campo das psicoses. Teoriza
que, nas duas primeiras, a defesa contra a representação incompatível ocorreria por
meio de sua separação do afeto, o que faz com que ela fique enfraquecida. Entretanto,
nunca tivesse acontecido. No momento em que esta defesa ocorre, o indivíduo fica
submetido por uma “confusão alucinatória”. Em outras palavras, Freud (1894/1996) diz
psicose.
neurose.
25
foi repudiada, pela via delirante e/ou alucinatória. Soma-se a estas, a problemática do
realidade. Percebe-se que na psicose trata-se de uma rebelião por parte do isso contra o
De forma genérica, para haver o conflito é necessário que exista uma pressão
que procura uma descarga e outra que empreenda uma força contrária no sentido de
evitá-la. Assim, a “guerra” acontece entre essas duas instâncias que exercem as pressões
contrárias (Kusnetzoff, 1982). Na verdade, podemos dizer que este conflito acontece
explicados pelo fato de que o mundo externo governa o eu basicamente de duas formas:
por meio de percepções atuais e presentes, que são sempre renováveis, e por outro lado,
um “mundo interno” exercendo certa posse sobre o eu, ao mesmo tempo em que se
tornam uma parte dele. Dessa forma, o aparecimento da psicose se daria na ocasião em
que uma dessas representações é encarada pelo eu como insuportável. Neste momento,
afeto e agindo como se esta jamais lhe tivesse ocorrido (Freud, 1924[1923]/1996).
utilizado por Freud para demarcar uma diferença significativa entre a neurose e a
26
psicose. Na neurose este processo ocorre por meio do recalcamento e na psicose essa
defesa se dá de forma mais radical, uma vez que rejeita não só o afeto, como acontece
evita que o eu volte a entrar em contato com essa representação insuportável por
intermédio de sua extinção, mas tal feito trará conseqüências marcantes que podem ser
parcela da realidade que estava ligada a ela também é rejeitada. Assim, o eu desliga-se
não só do que antes era incompatível, mas também total ou parcialmente da realidade.
ou maior grau, mas ela ocorrerá. O primeiro passo da psicose é justamente este, afastar
delegarmos a devida atenção para a participação do supereu como uma outra instância
psíquica que participa deste processo, uma vez que este reúne influências originárias do
isso e do mundo externo e “constitui, até certo ponto, um modelo ideal daquilo a que se
visa o esforço total do eu: uma reconciliação entre os seus diversos relacionamentos
eu origina-se a partir do próprio isso por meio de uma série de diferenciações ligadas a
identificações sucessivas.
27
Neste momento em que o eu nega a realidade, ele passa a obedecer aos impulsos
do isso, para quem só existe as leis do princípio do prazer (Quiles, 1995) e que contêm
os representantes psíquicos das pulsões. Estes representantes, por um lado, têm sua
acontecimento (Sterian, 2001). Este fato que não pode ser simbolizado está no campo da
castração. Segundo Freud (1918 [1914]/1996), na rejeição encontra-se algo onde não é
possível identificar o registro da castração, onde o traumático não pode ser registrado.
psíquicos de suas figuras parentais e o modo como cada um o recebe deve comprovar
sua maior ou menor aptidão para dar sentido ao que se apresentará a ele como atual. Em
outras palavras, pode-se dizer que as figuras parentais e o discurso, entendido como a
interferem na forma em que o sujeito dará sentido às coisas em sua vida (Penot, 1992).
28
Retornando à idéia de que a negação da realidade estaria relacionada com a não
1956/2002), ao falar em psicose, o termo mais adequado para este mecanismo de recusa
trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível” (p. 174). Ou seja, é
castração, onde, segundo o autor, o sujeito nada sabe a respeito, por isso ocorreria essa
representação e seu afeto do psiquismo do sujeito, que se comporta como se ela nunca
significantes foracluídos não retornam “do interior”, mas no seio do real (Laplanche &
Pontalis, 2001). Este retorno no real, ou pelo real, acontece na forma de alucinação,
como já apontamos.
função paterna exerce um papel de sustentáculo. Para ele, função paterna não é o
mesmo que o pai propriamente dito. A função paterna será exercida por alguém que seja
reconhecido pela mãe com autoridade, como aquele que promove a lei, ou seja, é uma
29
Esta idéia de significante do Nome-do-pai relaciona-se com a idéia do complexo
de Édipo, com principal objetivo de desvelar a proibição do incesto, onde o pai precisa
interditar a mãe. Na teoria lacaniana, esta função será exercida pelo pai enquanto
significante, ou seja, enquanto aquele que representa essa proibição (Coelho, 2003).
acontecer que este seja rejeitado e não possa inscrever-se, reaparecendo no real. Quando
acontece esta rejeição em relação a esse significante que inscreve a lei relacionada com
estabelecimento da psicose. Como vimos, o mais correto na teoria lacaniana é dizer que
este significante foi foracluído, não realizando a sua marca no campo simbólico do
psiquismo do sujeito.
palavras, supõe-se que o sujeito precise “dizer sim” à castração para que aconteça a sua
entrada no campo simbólico e possa ser identificado como sujeito (Coelho, 2003). Por
outro lado, para que qualquer coisa possa ser percebida e passe a existir para o sujeito, é
simbolização primário. No entanto, esta Bejahung pode não se realizar, ocorrendo o que
30
Dessa forma, a ausência da função paterna ou, caso prefira, ausência do
lacaniana (Mendonça, 1996, p. 61). Mas este significante além de ser o mecanismo que
distingue a psicose, também será a sua origem. O que caracteriza a psicose para Lacan é
Nesse ponto é necessário lembrar que não se trata do pai enquanto pessoa,
enquanto um ser material, e sim um significante, como o operador de uma metáfora que
necessita ser sustentado por uma fala, neste caso a fala da mãe. Para Lacan (1957-
1958/1999), é a mãe quem irá indicar, por meio de sua fala, o significante Nome-do-pai.
Este, por sua vez, pode estar presente ou ausente, porquanto é a fala da mãe que o
de uma função simbólica, visto que, para ele, o próprio inconsciente é organizado na
forma de uma linguagem. Assim, a função simbólica será o princípio pelo qual o
inconsciente será organizado (Mendonça, 1996). Para ele, qualquer coisa que se
relacione com o humano deve ser submetida às leis da fala. “A simbolização, a lei,
Freud que entende a psicose por meio de uma economia da libido, Lacan o fará por uma
economia do discurso.
delirante existe uma organização particular, onde certas palavras recebem um destaque
31
especial, uma densidade que se manifesta algumas vezes na própria forma do
Ainda, esta falha na inscrição significante pode ser observada por meio das
e símbolos, além dos neologismos, como apontado. “Na psicose, palavra e coisa se
Adotar a palavra no lugar da coisa nos aponta o caminho de que o sujeito perdeu
a função de símbolo, o sentido. Perdeu também o limite onde deveria ter ocorrido a
marca da significação fálica, que separa corpo e linguagem; ruído e voz; palavra e coisa.
“Na psicose, essa fronteira não se estabelece, vozes e palavras invadem o corpo” (Lacet,
2004, p. 249).
mais adiante, quando passarmos a tratar mais especificamente de cada uma das
simbolização sustenta também a idéia que na psicose “o inconsciente está a céu aberto”.
como se estivesse sem um contorno, sem uma delimitação, sem uma lei que possa
orientá-lo e organizá-lo.
real” (Lacan, 1955-1956/2002, p. 22), pode-se dizer que algo que não pôde ser
simbolizado ou foi recusado pelo indivíduo, ao ressurgir no real, pode vir em forma de
32
“realidade” fenomênica, que não é possível de ser representada, também se relaciona
com as representações que foram excluídas do registro simbólico, ou seja, que foram
simbolizado.
mecanismo que faz voltar de fora o que está preso na Verwerfung, ou seja, o que foi
58).
idéia de que o humano se realiza apenas no simbólico, uma vez que a libido seria
apreendida apenas na esfera das representações, o que acaba por determinar uma
33
Esses fatores estariam relacionados ao fato de que na psicose não ocorreria
lacaniana da psicose. Quando necessário, retomaremos as idéias desta teoria, bem como
lançaremos mão de outros conceitos ainda não abordados aqui, se necessário, no sentido
dedicado a reparar a perda da realidade que foi repudiada, não por meio de sua
restituição, mas pela elaboração de uma nova, que não traz mais as mesmas questões
que ocasionaram a rejeição da antiga. Na psicose, esta fase é entendida por Freud como
uma nova realidade que não seja insuportável para o sujeito e que passará a substituir a
realidade que foi negada. Esta nova realidade, ou melhor, o novo mundo que se
formará, será construído de acordo com os impulsos do isso (Freud, 1924/1996). “[...] O
169). Nesse sentido, percebe-se que o delírio é a forma encontrada pelo psiquismo do
sujeito para reparar o dano causado e restaurar as relações desse sujeito com a realidade.
34
meio dos quais a realidade foi representada na mente. Deste ponto, pode-se presumir
que o delírio, ao constituir a nova realidade que o sujeito habitará, traz à tona questões
de sua vida que estavam esquecidas ou guardadas em seu psiquismo. Nesse sentido, a
psicose também tem a tarefa de conseguir para si, por meio da alucinação, percepções
de um tipo que corresponda a essa nova realidade (Freud, 1924/1996). Quando presente,
essa é uma das funções desempenhadas pela alucinação, além de ser o retorno no real
do que foi abolido e a satisfação do desejo por meio da conciliação entre o eu e o isso.
Nos casos em que está presente apenas a alucinação, é esta quem realiza a
“construção” da nova realidade por meio das percepções que traz para o sujeito, mas na
forma de uma colcha de retalhos sem as costuras, função exercida pelo delírio.
bastante aflitiva e provocam uma grande ansiedade por serem sinal de que o
Nesta mesma direção, Freud (1924/1996) termina o seu artigo sobre a perda da
interpretação que o delírio pode realizar das percepções que a alucinação impõe ao
sujeito, nos quadros em que comportam os dois fenômenos. É importante lembrar que
nos casos em que o delírio está presente, o prognóstico é mais favorável, justamente por
este fato. Situação que empreende o reinvestimento objetal e na realidade de forma mais
efetiva.
35
Mas fica uma indagação, que Freud (1914a/1996) também se fez: o que acontece
propósito de responder a essa questão, Freud lança mão de um conceito que passará a
apresentada por estes sujeitos. Para ele, a megalomania tem sua origem a custo da libido
se daria então por um desligamento da libido dos objetos, e coisas deixando o mundo
externo para trás e dirigindo-se para o próprio eu. Neste momento, origina-se uma
atitude que Freud (1914a/1996) chamou de narcisismo. Como resultado deste processo
desinvestir esse real, restituindo ao eu as cargas libidinais ligadas a ele. Esse primeiro
reinvestir o real, mas de modo delirante ou alucinatório” (De Waelhens, 1990, p. 82).
Assim, o sintoma psicótico seria o retorno do resultado desse conflito sem que antes
inclusive pelo fato de que este desinvestimento objetal conduz a uma catexia do eu e por
36
O narcisismo consiste no processo em que um indivíduo toma o seu próprio
corpo da mesma forma que o trataria de um objeto sexual. Em outras palavras, o que
narcisismo secundário, uma vez que esse fenômeno estaria presente no curso regular do
posteriormente, parte desta energia, seria conduzida a outros objetos, mas que
libidinais não se encontram dispersos, mas sim reunidos em um único objeto, o próprio
eu do sujeito.
eu imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal” (Freud,
1914a/1996, p. 106).
37
Nesta direção, o eu pode ser concebido como um grande reservatório da libido,
de onde ela parte para ser enviada para os objetos, mas está sempre pronta e disponível
Mas este desligamento da libido dos objetos e coisas não caracteriza por si o
em que essas coisas externas não fazem parte do seu sofrimento. Assim, “o homem
enfermo retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio ego [eu], e as põe para
fora novamente quando se recupera” (p. 89, observação nossa). Ele também ressalta
mais uma vez, indistinguíveis entre si. Além disso, refere essa alteração na distribuição
retirada da libido dos objetos e que não permite que esta retorne a eles. Ou seja, o efeito
Por outro lado, na psicose, este processo de tentativa de reinvestir a libido nos
objetos será realizado por meio do delírio; de forma especial na paranóia que apresenta
realidade antiga, mas sim em uma nova e irrefutável realidade que foi criada a expensas
do isso. Por este motivo, Freud aponta o delírio como o remendo que tampará a falha,
38
atribuindo-lhe um estatuto de cura e de recuperação. “O delírio é, assim, a luta da libido
De Waelhens (1990) também chama a atenção para essa idéia de que, na psicose,
o narcisismo deve ser entendido secundariamente, uma vez que tem origem no
narcisismo primário que foi ofuscado por várias influências. Em outras palavras:
[...] a psicose, ao menos de certo modo, pode ser descrita não tanto
como um acidente, mas como o restabelecimento intensivo ou mesmo
exclusivo de um regime que deixou por completo de vigorar. Existem,
pois, pulsões do eu voltadas para ele mesmo, que dele se desviam em
algum momento, mas não inteiramente, e que podem retornar (p. 77).
Essa idéia acerca do narcisismo é amparada e sustentada por uma antítese entre a
por outro aos objetos. Assim, quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia.
Dessa forma, a megalomania que pode ser encontrada nas psicoses é acarretada
O retorno dessa libido para o eu estará relacionado com a regressão que esta
ponto importante para o entendimento do quadro psicótico que diz respeito a um ponto
outro momento da vida. No momento em que a libido se desliga dos objetos e retorna
para o eu, é canalizada para estes pontos de fixação por meio do mecanismo conhecido
39
Por fixação entende-se o processo em que determinada parcela da pulsão passa a
manifestadas pelo sujeito, predizendo, dessa forma, o resultado que se pode esperar da
psicótico de manter relações afetivas com as pessoas soma-se à fraqueza do eu, e está
relacionada com a incapacidade de lidar com a realidade externa, uma vez que os
“outros” representam sempre uma “ponte” com esta realidade. No entanto, na psicose
essa ponte está rompida. Em outros momentos, as relações com as pessoas, quando
bebê” (p. 8). De maneira geral, as fixações psicóticas se estabelecem nas etapas orais,
onde a relação com a realidade externa e as relações de objeto, com as pessoas, ainda
40
não havia se estabelecido. “Não havia diferenciação eu/não-eu e a linguagem não
coisas que eram amadas e o conseqüente retorno desta para o ponto de fixação é igual
que desfaz o trabalho da regressão e permite que a libido seja investida novamente para
os objetos que havia deixado, é diferente em cada uma das psicoses. No caso da
alucinação e, na paranóia, é a projeção, pela via delirante, que assume essa função
(Sterian, 2001). Tais processos serão melhores explorados à frente, quando o alvo
passará a ser algumas especificidades de cada uma das duas patologias que
Os estudos de Freud com relação à psicose não foram tão fecundos quanto os
41
entanto, possuíam um ponto disposicional diferente e faziam uso de mecanismos
retiram a libido das pessoas e coisas do mundo externo sem que passem a investir em
outras na fantasia. Por outro lado, quando realmente conseguem substituí-las, este
processo faz parte de uma tentativa de recuperação que busca conduzir a libido
A megalomania indica o caminho que a libido faz quando esta não consegue ser
substituída ou reconduzida aos objetos. Ela surge como resultado desse investimento da
libido, que antes estava dirigida aos objetos, de volta para o eu. Este movimento de
desinteresse pelo mundo externo gera, também, um interesse pelo corpo próprio.
relacionam-se e possuem como questão central a libido do eu. Seguindo esta observação
patologia.
libido que voltou ao eu. Quando este papel não é exercido da forma esperada o
sentido de reinvestimento dessa energia pela via alucinatória, em alguns casos com a
42
Para Freud todas as formas patológicas seriam o resultado do processo psíquico
como intolerável pelo inconsciente e que se apresenta com árdua oposição ao eu. Na
Ainda com relação a este assunto, um dos pontos que fica evidente na obra de
Freud (1911/1996) diz respeito ao afastamento que a libido sofre do mundo externo, o
que faz pensar que a rejeição da idéia intolerada exercida neste quadro aconteça por
meio deste desligamento da libido dos objetos externos. Como conseqüência, tem-se um
impulsos do isso e a proibição por parte do princípio de realidade que está arraigado no
eu. Como resultado destes conflitos o eu acaba sendo alvo de uma fenda, uma vez que
as duas reações contrárias do conflito persistem como ponto central de uma divisão do
eu. Esta divisão está no cerne de todo processo de defesa, já que o eu deixa-se vencer
43
uma só – uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra
que, sob a influência dos instintos, desliga o ego da realidade. As duas
coexistem lado a lado. O resultado depende da sua força relativa. Se a
segunda é ou se torna a mais forte, a pré-condição necessária para uma
psicose acha-se presente. Se a relação é invertida, há então uma cura
aparente do distúrbio delirante (p. 215).
Na psicose estariam presentes essas duas atitudes e não apenas uma. Essa
geralmente de forma parcial, tendo como alvo, algumas vezes, um só objeto. Como
travam uma luta contra esta rejeição, que é seguida pela conseqüente regressão às
delirante como na paranóia, que faz uso da projeção para este fim.
definindo inclusive a forma que eles assumem e o curso que seguirão, como afirmamos
com o próprio corpo, uma vez que nesta fase do desenvolvimento, ao qual o sujeito
retorna, ele ainda está sob uma prematuridade biológica, onde não possui integridade
44
física. Nesta fase, “sua percepção do próprio corpo é construída por sensações
desintegradas, geradas por estímulos dos diferentes órgãos ou partes do organismo, que
ele não percebe como um todo” (Sterian, 2001, p. 79). O eu ainda não está formado,
forma de perceber e lidar com o próprio corpo como algo fragmentado, não estruturado.
corporal.
Esta é a imagem que a psicose refletirá do corpo próprio: algo que perdeu a
Segundo este autor, em muitos casos esse despedaçamento se manifesta com bastante
clareza por meio do discurso do sujeito e dos delírios interpretativos relativos ao corpo.
em todos os casos, são uma fonte importante para a realização da identificação mais
supereu do indivíduo que exerce essa atividade de vigiá-lo e controlá-lo com base nas
45
normas internalizadas do próprio sujeito, dos seus pais, da sociedade ou da cultura em
pensamentos são conhecidos por outras pessoas e suas ações, da mesma forma, são
vigiadas e supervisionadas. Essas queixas são legítimas uma vez que essa instância – o
paranóide. As informações acerca dessa vigilância chegam por meio de vozes que
que a fala do esquizofrênico sofre merece uma atenção especial. A construção de frases
A este respeito, Martins (1996) afirma que a linguagem psicótica torna possível
46
caso do sujeito esquizofrênico, podemos encontrar a produção de um idioma para seu
características são expressões de uma tese mais geral, aquela que diz que o sintoma
autor). E complementa:
sujeito só consegue pensar ou falar de alguma coisa, quando esta pode ser simbolizada
por ele, ou seja, quando esta coisa pode ser representada por uma palavra na consciência
pensamento se contenta em ser um jogo dele dirigido a ele mesmo. Essa é uma das
imediata e direta ao corpo e as sensações que se originam dele (Caropreso & Simanke,
2006).
47
Na esquizofrenia, quando as palavras passam a se referir diretamente ao
corporal, elas estão, na verdade, resgatando o sentido originário das
palavras. E isso ocorre justamente devido à retirada do investimento das
representações de coisa. Na ausência do elo intermediário entre as
palavras e as sensações corporais – isto é, das representações de coisa –
o vínculo entre as palavras e o corporal torna-se direto. As palavras
passam a denotar diretamente as sensações corporais e, desta forma, o
sentido originário das palavras volta a transparecer (Caropreso &
Simanke, 2006, p. 117).
Para Benze (citado por De Waelhens, 1990), esse distúrbio da linguagem diz
respeito a uma desordem do estágio atual do pensamento. Nesta mesma direção, pode-
se afirmar que, ao se falar de um esquizofrênico, nada que acontece hoje pode ser
(Sterian, 2001).
objeto e investe a libido no próprio eu – identificação narcísica – que passa a ser alvo do
ódio antes dirigido ao objeto que foi desinvestido. O eu da pessoa passa a ser tratado da
mesma forma que acontecia com o objeto que foi desinvestido e passa a ser alvo de
todos os atos de agressão e expressões de ódio, que antes eram dirigidos àquele. De
forma especial, Freud também diz que um ponto particular na vida emocional do
48
psicótico é a capacidade que ele tem de dirigir sentimentos contrários à mesma pessoa,
posterior investimento no próprio eu, e para evitar uma ruptura deste mesmo eu devido
ao conflito com o mundo externo a que o psicótico está submetido, o sujeito se desliga
realidade é realizada por meio dos restos de realidade existentes, ou seja, de lembranças,
idéias e julgamentos que vinham da realidade, e por intermédio dos quais a realidade era
representada na mente do sujeito. Vale lembrar que o psicótico também precisa obter
percepções que correspondam à realidade que está sendo criada. Essas percepções são
a rejeição da realidade nunca acontece de forma total, uma vez que a realidade tem
um sujeito lança mão, com o intuito de acabar com o desprazer que uma necessidade
não suprida possa gerar. Ocorre que, “os contornos dessa peça de ‘quebra-cabeça’, que é
a alucinação, nos mostra onde ela se ‘encaixa’, mesmo que o pedaço de imagem nela
49
impresso não corresponda à continuidade da imagem que as outras peças formam”
a perda ou rejeição da realidade por meio da elaboração de uma nova realidade diferente
da que foi repudiada e que não seja insuportável para o sujeito. Na esquizofrenia, o
delírio tem a função de reparar o dano que a rejeição da realidade causou e restabelecer
o delírio. Nesse sentido, para esses, o prognóstico é mais complicado uma vez que a
retração narcísica não é combatida, não existe nem um ensaio de reinvestimento objetal,
Waelhens, 1990).
como uma psicose de defesa, que tem sua origem no momento em que rejeita uma
lembrança aflitiva e seu sintoma seria causado por meio deste mesmo conteúdo. Nesse
momento ele ainda não tinha clareza sobre o mecanismo específico da paranóia e dizia
50
Neste artigo, Freud também começa a levantar algumas diferenças entre a
paranóia e a esquizofrenia. Por exemplo, afirmou que nesses sujeitos não ocorria a
disso, afirmou que a diferença em relação às neuroses diz respeito aos pensamentos que
são ouvidos interiormente pelo sujeito ou alucinados por ele. Por fim, conclui que as
vozes que o sujeito ouve são os seus próprios pensamentos “ditos em voz alta”.
A sua grande descoberta neste texto foi o mecanismo conhecido como projeção.
Para ele, a auto-acusação seria “recalcada” por meio da projeção, ou seja, pela
o sujeito deixa de reconhecer a auto-acusação e, como que para compensar isso, fica
Fica evidente que esta defesa não é totalmente bem sucedida, uma vez que as
acusações retornam do exterior por meio de outras pessoas. Neste momento acontece
uma segunda defesa quando o sujeito escuta essa recriminação e passa a rejeitá-la como
Alguns anos depois, Freud (1911/1996) apresentou o seu estudo sobre um relato
51
fato de que na esquizofrenia a idéia intolerada e o seu afeto são rejeitados e excluídos
condensação – a percepção que foi rejeitada e projetada para fora ingressa novamente à
consciência do sujeito, mas agora esta é percebida como vinda do exterior. Por
afeto. O que internamente era notado como amor, ao vir do exterior é percebido como
ódio. Na verdade, com relação ao mecanismo da paranóia, o mais correto é dizer que
“aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (p. 78).
Este termo que Freud utiliza para falar da rejeição de uma idéia intolerável –
No caso da paranóia, fica evidente que o que acontece é uma defesa. “Mas
da psicose, na paranóia.
efeito que aquele lhe causa estimula-o a inventar teorias explanatórias [...]” (Freud,
1911/1996, p. 82). Dessa forma, a alteração na relação do sujeito com o mundo explica-
52
Por meio do delírio é possível que se compreenda a idéia que está sendo
rejeitada e projetada pelo indivíduo, bem como acessar a organização psíquica que está
por traz desse mecanismo, uma vez que, segundo as idéias defendidas por Freud, a idéia
intolerada é projetada, mesmo que de forma deformada, para o mundo exterior por meio
desmoronar completamente é projetada para fora, onde não é mais o seu mundo ou o
seu eu que poderá desmoronar, e sim o mundo externo que vai acabar (Freud,
1911/1996).
subjetivo chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele” (p. 77). O delírio de
fim de mundo coincide com o ponto alto da megalomania, momento este que o
externo deixa de existir. Mas esta situação será combatida pelo reinvestimento libidinal
que o sujeito possa pelo menos voltar a viver nele. Esta construção é realizada por meio
de seus delírios. Cabe aqui lembrar a idéia de Freud (1911/1996) defendida desde o
início deste trabalho: “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico,
78).
53
Em confluência com esta idéia, enfatiza-se uma característica interessante do
pensamento do sujeito paranóico, onde todos à sua volta têm uma relação direta com
ele: o que faz com que o sujeito nunca esteja só no mundo. Essa característica deve ser
patologia ser uma reação de defesa, que se utiliza da projeção, e assim, do delírio,
narcísica e da batalha contra essa fixação. Esta posição pode ser explicada por meio da
idéia de que todo ser humano, nos primeiros anos de vida, faz uma escolha homossexual
de natureza narcísica, ou seja, auto-erótica, onde o sujeito toma a si mesmo como objeto
de desejo e, que, posteriormente a essa escolha, seria seguida por outra, onde o objeto
deixa de ser o próprio sujeito e passa a ser um outro de sexo oposto: escolha
investimento social. O sujeito que sofre de paranóia não passaria do primeiro para o
um homem, em que o delírio seria a forma encontrada para se defender dessa idéia de
que “Eu (um homem) o amo (a um homem)”. Dessa forma, todo o trabalho do delírio,
em suas diversas formas, é contrariar a idéia que a frase traz, uma vez que os
(Freud, 1911/1996).
54
A gênese do delírio persecutório estaria relacionada com a transformação do
verbo da sentença, que ficaria: “não o amo, eu o odeio”. A projeção faz com que ela se
apresente na forma de “ele me persegue” e por isso “eu o odeio”. Dessa forma, fica
Ao ser trocado o objeto da sentença onde “não é a ele que amo, é a ela”, dá-se
origem ao delírio eretomaníaco, quando, por projeção, transforma-se em “eu noto que
ela me ama”.
Quando o sujeito da frase é mudado “não sou eu que o amo, é ela que o ama”
têm-se a origem do delírio de ciúmes. Neste caso, não é necessário que a projeção
exerça o seu papel: ao se mudar o sujeito que ama, a ação de amar já aparece como algo
completamente análogo ao apresentado acima, onde “não sou eu quem ama as mulheres
– ele as ama”.
preposição inteira é rejeitada: “Não amo ninguém, só amo a mim mesmo”. Nessa forma
Após toda essa explicação, Freud (1911/1996) aponta a projeção como uma
sujeito constrói o mundo de forma tolerável a fim de que possa habitá-lo (Cromberg,
55
2000). Esta construção acontece por meio da formação delirante que se instala no
sujeito.
Com o delírio o sujeito reconstrói o seu mundo de forma que possa voltar a viver
nele. Além disso, a relação com as pessoas e as coisas do mundo é retomada, muitas
é vítima. Por isso, “em todos os casos a idéia delirante é sustentada com a mesma
energia com que outra idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do eu. Assim, essas
pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas. É esse o segredo” (Freud,
1950[1895]/1996, p. 257).
formado, ao mesmo tempo em que faz parte do processo de construção de uma saída
para o sujeito em relação à idéia intolerada, onde também realiza o trabalho de levar a
dos objetos, como dissemos, a libido retorna para o próprio eu do sujeito, que funciona
tomado como objeto de satisfação. Entretanto, a projeção faz com que o indivíduo deixe
de ser o próprio e único objeto e passe a reinvestir a libido novamente a outros objetos,
como dissemos, Freud (1896/1996) aponta que as alucinações visuais que alguns
56
paranóicos apresentam são fruto de fragmentos de conteúdos da época infantil que
foram reprimidos, que acabam por ocasionar sintomas com o retorno desse material. Por
outro lado, defende que as vozes que estes sujeitos ouvem possuem sua gênese na
repressão de pensamentos que são reprovados por apresentarem certa semelhança com
outros que ocasionaram um trauma na infância. Neste caso, as vozes, como sintoma,
também seriam fruto do retorno do reprimido, ao passo que também são uma
Em seguimento com essas idéias, diz que as alucinações auditivas podem ser
condensação e deslocamento. Além disso, ressalta que a paranóia não conta com
alucinações de vozes, ao passo que o conteúdo parece retornar por meio de alucinações
sintomas paranóides referem com freqüência que estão sendo vigiados e que seus
pensamentos são conhecidos por outras pessoas. Na paranóia isso não é diferente. Cabe
idéias culturais e éticas e passa a reconhecer como um padrão para si, inclusive
sujeitando-se às exigências que elas lhe fazem. Pode-se dizer que o sujeito cria um ideal
57
em si mesmo – eu ideal – pelo qual passa a medir o seu eu real. Este eu ideal será o alvo
do sujeito por toda a sua vida, que vai procurar mantê-lo às expensas da censura de
relacionam-se com a idéia de que seria em nome da satisfação deste eu ideal que a
Sobre isso, Freud (1914a/1996) afirma o seguinte: “As queixas feitas pelos
auto-observação na qual ela se baseia” (p. 103). Mais tarde este mecanismo de auto-
vigilância foi delegado ao supereu, que tem a função de zelar pela satisfação narcisista
no eu ideal comparando o eu atual com o ideal. Mas o sujeito não pode perceber que
acusação como vinda de dentro, a máxima deste processo é a projeção onde a auto-
outro lado, também é uma possibilidade de investimento em outro objeto mesmo que
Como já dissemos, grande parte da construção que Freud (1911/1996) fez acerca
da paranóia foi realizada em seu estudo que ficou conhecido como Caso Schreber.
Neste texto Freud (1911/1996) também realiza uma análise da estrutura do delírio ao
tentar estabelecer pontos que reflitam a lógica de sua produção. Por esta razão,
caso.
58
1.3 – A estrutura do delírio de Schreber
Freud (1911/1996) diz ter feito, como sugere o título de seu texto, algumas notas
1903. Os dois nunca tiveram nenhum contato pessoal, nem nunca se viram, mas para
publicada pelo próprio “paciente que sofria de paranóia”, uma vez que:
Em seu livro, Schreber relata ter sofrido duas vezes de distúrbios dos nervos que,
segundo ele, foram resultado de excessiva tensão mental. No entanto, não relata o
suficiente sobre sua história de vida anterior. Sua primeira doença começou em 1884,
no outono, por ocasião de sua apresentação como candidato à eleição para juiz de um
Era casado e levava uma vida de grande felicidade e honrarias exteriores, mas
Entre as datas de junho de 1893, quando foi informado de sua indicação para
teve alguns sonhos que, apenas mais tarde, atribuiu a devida importância. Em seu texto,
Freud (1911/1996) acrescenta uma nota de rodapé dizendo que os sonhos de Schreber
aconteceram antes que ele “pudesse ter sido afetado pelo excesso de trabalho acarretado
59
um sonho fê-lo feliz ao despertar. Além disso, certa vez, nas primeiras
horas da manhã, enquanto se achava entre o sono e a vigília, ocorreu-
lhe a idéia de que, ‘afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser
mulher e submeter-se ao ato da cópula’ (Freud, 1911/1996, p. 24).
Nesse momento, Schreber não “suporta” essa idéia, rejeitando-a com grande
indignação e atribui a ela uma influência externa. Para ele, aquela idéia só poderia ter
para livrar-se da idéia incompatível. Dessa forma, dá-se início à sua segunda “doença”,
no fim de outubro de 1893, quando foi tomado por um acesso de insônia torturante,
fazendo com que retornasse à clínica de Flechsig. Após a sua internação, sua condição
teve uma grande piora com certa rapidez, como se pode constatar no relatório redigido
60
Freud acrescenta que Schreber pensava estar sendo perseguido e prejudicado por
algumas pessoas, de forma especial pelo seu médico anterior, Flechsig, a quem chamava
1903, p. 383, citado por Freud, 1911/1996, p.25) dando notória ênfase à primeira
palavra. Como Freud diz, neste caso quem antes era alvo de grandes sentimentos
Foi levado para Leipzig, passou um tempo no asilo particular do Dr. Pierson, em
Lindenhof e depois, em junho de 1894, foi encaminhado para o Asilo Sonnenstein, onde
permaneceu até que o distúrbio assumiu o aspecto final. Com o passar dos anos, o
quadro clínico se alterou, como se constata nas palavras do diretor do asilo Dr. Weber:
Nestas palavras do Dr. Weber, percebe-se que a “doença” de Schreber teve uma
61
Assim como Freud, também interessa-nos a estrutura delirante que se formou
para que fosse resolvido o conflito que o sonho lhe trouxe. Neste sentido, a partir de
A construção delirante relatada por Schreber tem como objetivo sustentar que a
idéia que lhe veio enquanto acordava, de que seria muito bom ser uma mulher
não cabendo contestação; dessa forma, algo deveria justificar a sua transformação de
homem em mulher. Nesse sentido, como resume a decisão judicial que lhe restituiu os
direitos civis, ele “acreditava que tinha a missão de redimir o mundo e restituir-lhe o
1911/1996, p. 27).
cópula, era algo que fugia de sua vontade: era uma ordem vinda de Deus que lhe
incumbiu de restituir o mundo o seu estado de beatitude. Dessa forma, o fato mais
essencial da missão redentora de Schreber é ela ter que vir precedida por sua
Schreber, uma defesa contra o desejo homossexual, uma vez que ele mesmo relata que:
[...] poucas pessoas [...] podem ter sido criadas segundo os estritos
princípios morais em que fui, e poucas pessoas, durante toda a sua
vida, podem ter exercido (especialmente em assuntos sexuais) uma
autocoibição que se conformasse tão estritamente a esses princípios,
como posso dizer de mim mesmo que exerci (Schreber, 1903, p. 285
citado por Freud, 1911/1996, p. 41).
62
Freud (1911/1996) complementa dizendo que ao ler as palavras de Schreber,
época e ainda hoje, falando de “distúrbio nervoso” e “lapsos eróticos”, como se as duas
Para não pairar dúvidas sobre a sua missão e que era mesmo o responsável pela
“salvação” do mundo, ele próprio estava convencido ser a única pessoa na Terra cujos
confirmados por vozes com que ele conversava. No início de sua moléstia, o
pessoa à morte; no entanto, ele “viveu por longo tempo sem estômago, sem intestinos,
quase sem pulmões, com o esôfago rasgado, sem bexiga e com as costelas despedaçadas
(...)” (Freud, 1911/1996, p. 27). Mas o que havia sido destruído sempre era restaurado
fazendo com que ele tivesse a sensação de que seu corpo recebera uma grande
quantidade de “nervos femininos” e que, a partir deles, por meio de uma fecundação
direta de Deus, seria dada origem a uma nova raça de homens e estes reconquistariam
um estado de beatitude. O relatório médico faz presumir que a mola mestra desse
redentor e que sua transformação em mulher merece ser vista apenas como um meio
para alcançar tal fim. Em contrapartida, a idéia de emasculação, que Schreber encarava
acreditava que a sua transformação deveria ser efetuada para fins de abusos sexuais e
63
não para a salvação da raça humana. Dessa forma, o delírio sexual de perseguição foi
atribuído ao Dr. Flechsig foi canalizado para o próprio Deus (Freud, 1911/1996).
homem em mulher nos faz pensar que a primeira construção, de que o destino seria
abuso sexual, ainda se mostrava como intolerada, o que exigiu o seu remodelamento
Em uma passagem que Freud (1911/1996) traz em seu texto, Schreber parece ter
conflito que se travava: “Demonstrei mais tarde que a emasculação para propósito
As “vozes” que ele ouvia tratavam de sua emasculação sempre como algo da
ordem de “orgias” sexuais, e davam respaldo a elas para escarnecerem dele chamando-o
de “senhorita Schreber”, ou diziam que o Senatspräsident teria sido essa pessoa que se
deixa ser submetido à cópula. Literalmente seria: “Então isso declara ter sido um
Senatspräsident, essa pessoa que se deixa ser f...a!” (Freud, 1911/1996, p. 30). Ou,
30).
ser ele o Redentor, é no sentido de preparar o caminho para que ele se reconciliasse com
64
Agora, contudo, dei-me claramente conta de que a Ordem das Coisas
exigia imperativamente a minha emasculação, gostasse ou não disso
pessoalmente, e que nenhum caminho razoável se abre para mim
exceto reconciliar-me com o pensamento de ser transformado em
mulher. A outra conseqüência de minha emasculação, naturalmente,
só poderia ser a minha fecundação por raios divinos, a fim de que uma
nova raça de homens pudesse ser criada (Schreber, 1903, p. 177 citado
por Freud, 1911/1996, p. 31).
Nesse sentido, fica difícil não concordar que a idéia de sua transformação em
mulher foi a causa mais primitiva de todo o processo delirante empreendido pelo
psiquismo de Schreber; bem como que a sua “loucura” exigiu mais que um pouco de fé,
exigiu um método. Dessa forma, o psiquismo de Schreber constrói toda uma teoria que
delirante, pode-se pensar que suas teorias também trazem a possibilidade de satisfazer o
seu desejo de ser pai, agora não apenas de pessoas comuns, mas de uma nova raça de
homens.
Outro ponto importante é que Schreber, dias antes do início de sua “doença”,
teve dúvidas sobre assuntos religiosos, questionando até a existência de Deus, como ele
mesmo diz:
possível identificar características daquele que ontem duvidava; por exemplo, ele relata
que Deus estaria acostumado a se comunicar apenas com os mortos e que, nesse
65
sentido, não compreendia os homens vivos. “Descobriremos, na verdade, que este
uma reconciliação final com Deus e de seus sofrimentos recebam um fim” (p. 39–40);
demonstram que, excetuando as suas idéias delirantes, Schreber não tinha outro
comprometimento em sua vida, ponto que ressaltamos como uma das diferenças entre a
pleiteando a sua alta do asilo. O Dr. Weber redigiu relatórios contrários a tal
Visto que, durante os últimos nove meses, Herr Präsident Schreber fez
suas refeições diariamente em minha mesa familiar, tive as mais
amplas oportunidades de conversar com ele sobre todos os tópicos
imagináveis. Qualquer que fosse o assunto em debate (exceto,
naturalmente, suas idéias delirantes), concernente a acontecimentos no
campo da administração e do direito, da política, da arte, da literatura
e da vida social – em resumo, qualquer que fosse o tópico, o Dr.
Schreber mostrava interesse vivaz, mente bem informada, boa
memória e julgamento sólido; ademais, era impossível não endossar
sua concepção ética. [...] Nem uma só vez, durante essas conversas
inocentes à mesa de jantar, introduziu ele assuntos que mais
apropriadamente seriam levantados numa consulta médica (Schreber,
1903, p. 397–398 citado por Freud, 1911/1996, p. 26).
Com a devida atenção a esta última descrição do Dr. Weber, percebe-se que, na
verdade, Schreber não negou a realidade por completo, foi necessário sim, que se
construísse todo o aparato delirante com relação ao sonho que o mesmo teve; em
66
contrapartida, como relata o doutor no relatório, ele continuava tendo interesse pelo
Ao final do seu texto, Freud (1911/1996), convida o leitor a retomar o sonho que
Schreber teve antes de mudar-se para Dresden, a fim de que perceba, agora, que a sua
construção delirante, onde ocorre a sua transformação em mulher, nada mais seria que a
realização do conteúdo desse sonho. No início relutou contra a idéia do sonho e contra a
catástrofe porque era ameaçado com intenções hostis” (p. 43). Mas chegou um
consonância com os propósitos do próprio Deus: “Desde então, e com plena consciência
delírio deve ser entendido como uma construção, como uma tentativa e
concepção de Filizzola (1994) ao afirmar que o delírio possui sim uma lógica, mesmo
que particular ao sujeito delirante. Nesse sentido, essa produção pode se apresentar aos
67
Ao retornar ao relatório do Dr. Weber de 1899, que demonstra o não
construção delirante foi a forma que o psiquismo dele encontrou para “suportar” as
idéias que o seu sonho trazia. Negar a realidade comum a todos os seres humanos e criar
Pode-se afirmar que a sua construção delirante foi uma forma de se estruturar no
mundo, negando apenas o que lhe era insuportável, que lhe causava sofrimento; o que
está em direta relação com a idéia de restabelecimento e construção que o delírio teria
para Freud.
Neste mesmo sentido, Coriat e Pisani (2001) propõem lembrar o fio condutor
que Schreber também tentou seguir, com o intuito de atingir os seguintes objetivos: 1)
extratemporalidade o deixou como que morto. Assim, “para restituir um sentido a essas
68
experiências desconhecidas e restabelecer uma temporalidade, instaurou-se então um
Esse procedimento proposto por Coriat e Pisani (2001) nos remete à idéia
freudiana de restabelecer a função da doença, uma vez que, assim como o inconsciente
delírio de Schreber.
Com relação à questão de Freud ter se baseado nos escritos do próprio Schreber
para realizar o estudo de seu caso, alegando que na paranóia o conhecimento pessoal do
sujeito pode ser substituído por um relato escrito ou por história clínica, Lacan
(1957/1988) diz que apenas o próprio sujeito é capaz de testemunhar a sua relação
vez que, salvo alguns momentos em que o texto de Schreber sofreu censura, é possível
identificar a grande quantidade de detalhes com que relata cada um dos acontecimentos,
levanta a questão de que neste caso não existe transferência de Schreber para Freud,
ponto fundamental para uma escuta adequada, no campo psicanalítico. No entanto, para
abrandar a sua posição, um pouco mais adiante concluiu que esses fatos apresentados
69
defende que o analista pode aprender sobre a dinâmica e a organização psíquica sem ter
que, sob quaisquer circunstâncias, há sempre algo que não pode ser apreendido nos
desse fenômeno, uma vez que as tentativas de produção textual retratam um tempo de
palavra designa a coisa. “As psicoses, têm essa particularidade de ‘coisificar’ os signos:
de deslizar da ordem do ‘dizer’ para a ordem do ‘fazer’” (Kristeva, 1994, p. 195, citado
proposições de Lima Filho (2005) e Katz (1991), foi capaz de realizar uma boa
produção textual com relação à sua vida e patologia. Nessa mesma direção, Coriat e
Pisani (2001) indicam que “as memórias de um doente dos nervos são um texto
70
absolutamente extraordinário, pois a loucura é descrita nele não pela vertente do
de sua produção escrita e da fala, estão de acordo com o propósito deste trabalho:
O aparelho psíquico faz uso de diferentes formas para se defender do que deve
ser negado, escondido ou rechaçado. A esse respeito, Neto (2006) defende que Freud
utiliza em toda a sua obra a idéia binária de negação/afirmação para dar conta dessas
Diferentes conceitos foram utilizados por Freud para falar a respeito de negações
ou defesas com relação ao que se impõe de “dentro” (Neto, 2006): “podemos citar
De todos esses conceitos apresentados, alguns são considerados como básicos para a
71
A neurose é entendida por Freud (1924[1923]) como o resultado de um conflito
mecanismo da repressão, que acaba por ocasionar o recalque. No entanto, este material
reprimido tenta mudar o seu destino e cria para si uma representação substitutiva, que
momento em que o eu percebe a sua unidade ameaçada e prejudicada pelo sintoma, que
substitutiva da mesma forma que fez com o impulso instintual originário. E todo esse
Por outro lado, no caso da psicose, essa defesa é mais bem sucedida, como
apresentamos no início deste capítulo. Podemos dizer que na psicose realmente existe
sujeito terá uma forma de lidar com as questões da civilização, bem como a saída
encontrada por cada um de “quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo
externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta
força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos” (p.
uso desse processo como mecanismo de defesa devem ser apreendidos em seu sentido
72
global, buscando entender o que dessa realidade está sendo negada e não apenas
tentando eliminar essa negação, pois, dessa forma, estaríamos apenas arrancando desse
pelo delírio e alucinação. Por meio desses sintomas, é possível perceber como se
realidade.
Por outro lado, é no encontro fortuito do sujeito com um elemento simbólico que
correlato no campo imaginário, que a psicose entra em cena como uma possibilidade do
sujeito responder essa solicitação tanto do ponto de vista imaginário quanto simbólico,
73
Essa significação que tem como objetivo o ordenamento da vida do sujeito
empreendida por meio da fantasia, com a construção delirante que passa a exercer um
não são entendidos como mais uma ameaça ao sujeito e, sim, entram em cena para dar
conta da desorganização que a doença de fundo traz. Mais uma vez ressaltamos que,
processos de regressão.
sintoma, que o próprio sintoma por si só. É precisamente a posição subjetiva do sujeito
perante o sintoma que deve ser investigada. Dessa maneira, interessa-nos a posição do
sujeito diante do seu delírio e das alucinações que apresenta. Ou seja, o que esses
sintomas vêm nos falar com a fala do psicótico? Como eles podem ser compreendidos à
será realizado no capítulo referente aos resultados e discussões com a análise de três
que os sujeitos psicóticos apresentam. Para tanto, neste capítulo faremos uso de algumas
74
vinhetas retiradas do contexto de entrevistas clínicas com sujeitos portadores de quadros
75
CAPÍTULO 2
sujeito psicótico. Entendemos aqui a palavra sentido enquanto o lugar e a função que tal
vivência assume na vida psíquica do sujeito. Com este intuito, escolhemos três eixos
quadro psicótico.
metodologia se justifica, uma vez que o sentido e as significações dos fenômenos estão
no cerne dessa forma de pesquisa e permite compreender os significados que estes têm
62) citado por Neves (1996, p. 1) são: “i) o ambiente natural como fonte direta de dados
significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do investigador
processo e não com o produto de sua intervenção. Ele se preocupa em saber como os
76
fenômenos ocorrem naturalmente e com as relações estabelecidas entre tais fenômenos
(Turato, 2003).
manifeste por meio do seu discurso e da sua ação, característica que se coloca em
conhecer o modo de vida do sujeito, ou seja, o modo como ele constrói e desenvolve
sua experiência de vida. Dessa forma, o pesquisador vai à procura dos significados que
Neste estudo qualitativo vale ressaltar que não será realizado estudo de casos
sistematizados, mas, sim, utilizados extratos clínicos retirados das entrevistas realizadas
com indivíduos psicóticos, buscando, com isso, dar voz a este indivíduo e estruturar
2.1. Participantes
psiquiátrica com base na CID-10 (Organização Mundial de Saúde [OMS], 1997), dois
nomenclatura psiquiátrica.
ambigüidade que o termo “paranóide” causava. Além disso, a psiquiatria defende que
essa mudança na nomenclatura também serviu para ressaltar que essa patologia inclui
77
Dessa forma, no campo médico-psiquiátrico, o transtorno delirante passou a ser
nomenclatura paranóia, uma vez que a posição teórica adotada é a psicanálise que ainda
a denomina assim. Delimitamos essa diferença na nomenclatura apenas pelo motivo que
pela psicanálise.
terciário da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, que é uma das duas opções para
nesta região. Esses provêm das mais variadas Regiões Administrativas do DF.
Dentre os sujeitos que foram acompanhados por nós durante a pesquisa, dois tem
do sexo feminino, Carla com 22 anos. Com diagnóstico de transtorno delirante foram
É importante salientar que estes nomes são fictícios e sem nenhuma relação com
os indivíduos da pesquisa.
78
2.2. Instrumento
qualitativa. Este instrumento torna capaz a obtenção de dados tanto objetivos quanto
subjetivos.
O uso das entrevistas clínicas justifica-se, uma vez que na pesquisa qualitativa a
realidade do sujeito deve ser apreendida por meio dos significados que o próprio sujeito
básicos como o estabelecimento do setting, a preferência pela associação livre das idéias
Outro ponto plausível é que essa modalidade também propicia uma maior
observar o sujeito e a situação total a que ele responde (Jahoda, Selltiz, Deutsch, &
Cook, 1972).
história de vida e da doença dos sujeitos; e as três outras destinadas ao levantamento das
79
questões relevantes ao estudo da sintomatologia na perspectiva pretendida de se estudar
transcrição, foi realizada uma revisão de todas as entrevistas para que qualquer
trechos que dizem respeito a cada um dos eixos selecionados, a fim de serem utilizados
seu meio, que posteriormente poderão passar pela etapa de interpretação. Dessa forma,
80
Para efeito dessa pesquisa utilizou-se apenas a primeira etapa da analise de conteúdo, ou
entanto, este sentido não pode ser considerado como um ato isolado, tendo em vista que
“os diferentes modos pelo qual o sujeito se inscreve no texto correspondem a diferentes
representações que tem de si mesmo como sujeito e do controle que tem dos processos
discursivos textuais com que está lidando quando fala ou escreve” (Varlotta, 2002,
significação, uma outra mensagem que está por trás ou ao lado da que se mostra. De
O fim é a descoberta de outras realidades por meio das mensagens que o indivíduo
Franco (2005) chama a atenção para o fato de que essas descobertas precisam ter
outro.
falas com o objetivo de contribuir com a interpretação do sentido que estas possuem
para o sujeito em questão, uma vez que as expressões humanas são dotadas de um
81
A interpretação hermenêutica nos possibilitou chegar mais próximo ao sentido
que o próprio sujeito atribui para a sua vivência a respeito do fenômeno psicótico.
Alguns autores (De Waelhens, 1990; Sterian, 2001) defendem a idéia de que
que sejam feitos estudos com base nos discursos e nos comportamentos do sujeito e no
sentido e estrutura das modificações que ocorreram na relação consigo mesmo, com
SES/DF e foi aprovada por estar dentro dos preceitos éticos e de acordo com a
Além das questões legais que permeiam a pesquisa com seres humanos, nós
adotamos uma postura de respeito e entendimento com relação aos sujeitos que
82
participaram das entrevistas clínicas inclusive com relação a assuntos que por ventura
não quiseram que fosse utilizado, bem como as datas e horários das entrevistas foram
psicológico após a conclusão das entrevistas propostas para o estudo, agora com caráter
psicoterapêutico.
83
CAPÍTULO III
seu quadro psicopatológico. Com este intuito, organizamos alguns eixos de análise que
participantes.
realidade na psicose são totalmente relacionadas entre si e que a divisão adotada por nós
trabalho deverão ser atravessadas até o ponto que possibilite o entendimento do eixo
84
3.1. Apresentação dos casos clínicos
Como dissemos, daremos nomes fictícios a cada um dos indivíduos: João, Carla,
dos quatro participantes faremos um breve relato, resgatando alguns fragmentos da sua
João nasceu no Nordeste e veio para Brasília com 16 anos. Apenas três anos
depois, sua mãe e seus nove irmãos vieram morar com ele. O entrevistado define sua
infância e juventude como muito sofrida. Seus pais se separaram quando estava com 12
anos e após essa separação, relata só ter visto o pai duas vezes. A segunda vez coincide
com o período da primeira crise, quando estava com 26 anos. João afirma ter sentido
Estudou até a 8ª série e atualmente mora com a mãe, três irmãos e um sobrinho,
em uma casa que diz ter construído sozinho. Relata que parou de estudar porque
trabalhava das quatro da manhã às nove da noite e culpa o excesso de trabalho como o
Afirma que “[...] entrava no carguinho mais baixo, questão de pouco tempo já
85
emprego fichado foi o de gerente. Entrei de caixa. Completou um ano eu fui
promovido”. Diz que logo após essa promoção que começou a sua batalha: “trabalhava
que nem um maluco”. Não tirava hora de almoço, folga ou férias. Nesse período estava
com 26 anos e teve a primeira crise necessitando ser internado. João fala sobre o início
das crises de uma forma muito concreta, segundo seu relato, “o mal espera uma brecha
para poder entrar” e o acúmulo de trabalho fez com que “meus nervos estourassem,
permitindo que o mal entrasse e eu começasse a ver coisas que não existiam”.
sente perseguido, ouve vozes, vê vultos e apresenta dificuldade para dormir. Quando
está em crise, tudo a sua volta parece ter vida e querer falar com ele.
Outra informação importante diz respeito à sua percepção de que cada crise tem
sido pior do que a anterior: “Cada vez que tive uma recaída tem sido pior do que a
outra”. Refere-se, ainda, a uma perda de memória, que contribui com a idéia de
João: [...] Antes eu tinha uma memória 100%. Agora parece que
estou meio retardado assim, meio retardatário. Não consigo... Se eu
pegar o número do telefone do senhor agora, daqui a dez minutos eu
esqueci o número. Não sei mais qual é.
psiquiátrico:
86
comecei a tomar quatro. Tô tomando quatro agora. Não está
resolvendo.
Esta sua fala também deixa claro a percepção de que o seu quadro tem piorado
com o tempo e que a medicação já não faz o mesmo efeito, necessitando o aumento da
outro fator, segundo ele, tem relação com o desencadeamento da esquizofrenia. No seu
discurso ele deixa claro que um aborto realizado por uma namorada sua, pode ter
Entr.: Nas outras entrevistas você comentou sobre que tinha ajudado
uma ex-namorada a fazer um aborto, não foi? Como isso aconteceu?
João: É... Foi a minha primeira namorada. Tinha vinte anos. Tava
namorando. Estava até bem, né? A gente gostava muito um do outro.
Só que ela colocou na cabeça que tinha que casar. E na época não
tinha moradia, não tinha casa. Porque eu pagava aluguel. E não
estava seguro com relação a emprego. Aí eu falei assim: “não, só vou
casar quando tiver a minha casa e um bom emprego para poder
sustentar a gente”. Ela foi e falou... Ficou chateada com esse
contratempo. Aí ela engravidou. Quando estava com um mês e quinze
dias ela veio falar que estava grávida, eu falei “não, não quero filho
agora não. Pode abortar. Quero não. Pode abortar”. Depois até me
arrependi de ter falado para abortar, queria que nascesse. Aí fui falar
pra ela deixar... Já tinha feito o aborto. Aí foi tarde. Abortou inclusive
na minha casa. Esse dia eu tava com um cízio inflamado, né? Queixo
inchado... Não sabia se chorava de dor física ou se dor... Pela dor
dela estar sofrendo pela... Por aquele aborto. Ela chegava a gritar de
dor quando estava fazendo o aborto. Aí depois que fez o aborto a
minha mãe descobriu e minha mãe ficou muito chateada com a gente.
Brigou com a gente. Isso aí eu é... me sinto culpado, por parte. [...]
Além dessa relação direta que ele estabelece do início das crises com o trabalho
e o aborto, também nos chama a atenção a dificuldade que ele apresenta em diferenciar
dificuldade parece estar em conseguir “sair de si” para estar com o outro, com a dor do
outro, que também deveria fazer parte da sua dor, por se tratar da interrupção da
87
gestação de seu filho. Esse fato sugere um alto investimento narcísico, que se relaciona
com a auto-referência que João apresenta: “[...] tudo a minha volta tinha vida e falava
comigo [...]”.
O seu relato nos permite pensar que existe algum tipo de interferência entre o
espírito da criança que foi abortada com a sua saúde: “É espiritual. É um mal espiritual.
Vem lá do mundo dos espíritos, sei lá”. A criança que iria nascer estaria se vingando de
demônio que são percebidas como vozes que o controlam dizendo tudo que ele deve
fazer:
88
Entr.: E você pode me dizer o que essas vozes lhe falavam?
João: Falavam para mim sair correndo, “age como louco, você é
louco, você é doido, você não é uma pessoa normal, vai fazendo tudo
o que eu te mandar”. Aí eu ia fazendo tudo, fazia assim, era coisa
desconexa, ela dizia “pode ir fazendo, pode ir fazendo”. [...] “Agora
você não é nada, nós que mandamos. Deixa quieto. Vai fazendo. Nós
vamos mandando e você vai fazendo”.
Essas vozes de comando percebidas por meio da alucinação auditiva fazem parte
de seu delírio de influência. Segundo o entrevistado, ele faz o que as vozes mandam,
uma vez que elas ordenavam que ele fizesse o que elas estavam mandando. Para João,
as forças negativas que o influenciam estão na atmosfera, mas não sabe explicar como
isso acontece e diz: “Só sei que eu ouço e que vou fazendo”.
justificativa apresentada referiu-se ao fato de que não queria sair de casa, mas depois
afirma que foram as vozes que disseram que ele não iria para a entrevista:
João: As pessoas dizem “Não João você é forte. Você tem que se
controlar, tem que se acalmar. Senão, você ficando do jeito que está
você atrapalha você e quem está à sua volta”. Realmente quem está a
minha volta fica mais nervoso que eu, quando vê o caos.
89
Essa definição do momento da crise como “caos” relaciona-se com a experiência
Caos é um momento em que está tudo fora do lugar, em desordem. Essa temática será
interno.
um período de muita perturbação e loucura, onde fala sem saber o que falou e vai
fazendo o que as vozes mandam, sem saber que está fazendo. E percebe que vai “entrar”
em crise com a agitação que começa a apresentar no início: “No começo fico inquieto,
correndo de um lado pro outro. Começo a fazer uma coisa e paro. Deixo tudo ali. Tudo
se embaralha”.
Após duas semanas da conclusão das entrevistas, João teve uma crise e ficou
internado no Hospital São Vicente de Paulo – HSVP por três semanas. Quando obteve
tivemos logo após a sua alta, João nos relatou que na ocasião da internação estava
pessoas estavam falando com ele. Relatou ainda a sua tentativa de se “segurar” para não
entrar em crise: “Eu percebo que vou ter a crise, mas não consigo chegar para ninguém
Carla é a filha mais velha de uma prole de três, mas é a única mulher. Possui
dois irmãos que não apresentam problemas psiquiátricos. Sua mãe teve depressão
durante a sua gestação e o pai foi alcoolista por um período. As primeiras crises
90
iniciaram-se por volta dos 16 anos, culminando com um diagnóstico de esquizofrenia e
De forma geral, teve uma infância definida como normal. No entanto, com 12
seguinte, começou a demonstrar medo com relação à morte e alucinação visual, dizia
ver caveiras em seus livros. Com 16 anos, este medo da morte se intensificou, ao
apresentar episódios de choro, e com freqüência gritava dizendo que iria morrer. Sobre
Carla também afirma que nesta época se achava estranha nas fotografias que via:
Entr.: Quando você era mais nova Carla, com doze e treze anos, o
que você fazia?
Carla: Eu costumo do mesmo jeito, aqui. Aqui aconteceu umas
coisinhas. Meu irmão começou a estudar, ai começaram a bater
fotografia minha, né? Aí eu fiquei olhando o meu rosto, eu fiquei
achando estranho.
Entr.: Como é que você percebia o seu rosto?
Carla: É assim tipo, não digo barata não sabe? Não é animal barata.
Tipo essas coisas. É um rosto assim... [silêncio] muito preto. Tem os
cílios muito preto. Eu acho que sou assim. Eu tenho os cílios muito
preto.
91
Trataremos dessas experiências de estranhamento corporal e despersonalização,
reinvesti-lo.
Com 19 anos apresentou uma nova crise quando passou a falar “coisas
estranhas”, sentia que era controlada por forças externas e ouvia vozes. Neste momento,
teve sua primeira internação e começou a fazer uso de medicação neuroléptica. Mas foi
com 20 anos que apresentou uma crise mais intensa com discurso desconexo,
inquietação, choro imotivado e agressividade. Dizia querer matar o pai e ter relação
sexual com a mãe. Falava também que iria morrer para salvar a mãe.
que promoveu a redução da produção psicótica, mas continuou apresentando uma perda
cognitiva e relacional. Não retornou à escola, não teve namorado e seus vínculos sociais
92
freqüente percepção de fim de mundo, onde tudo acaba e todo mundo vai embora. Neste
momento em que tudo acaba e as pessoas vão embora não restam objetos nos quais
possa investir, percepção que logo é interpretada da seguinte forma: “[...] parece que só
Além disso, no início de sua crise também dizia: “achava que a minha mãe tinha
virado um diabo”. Hoje diz que sua família é a mais moderna que existe:
Carla demonstra em vários momentos que a sua questão gira em torno da beleza
Carla: [...] Só que eu estou querendo criar problema onde não tem.
Que não tem nada a ver, né? Japonês, o lugar que nasceu. Não tem
nada a ver.
Entr.: Que tipo de problema você acha que está querendo criar?
Carla: Quero criar problema quanto à beleza, não sei o quê, não sei o
quê. Pra quê criar...?
Entr.: Quanto à beleza?
Carla: É.
Entr.: Mas de quem isso? Sua?
Carla: É. Minha beleza. Pra quê criar alguma coisa contra a minha
beleza? Isso é judiação.
93
Carla: O jeito deu pensar, algo tipo de vida, sabe? Geralmente as
pessoas são tão diferentes da gente lá de casa que elas andam com
tatuagem no corpo, sei lá. Os genes da pessoa nasceu diferente. É de
outra família sabe. Aí poxa, meu pai não ia colocar uma tatuagem no
corpo dele, não ia ficar legal. Fico imaginando, ele vai pra praia e tal
lá no Piauí na praia, mas é totalmente diferente [risos]. É totalmente
diferente.
É possível notar que Carla enxerga a sua família diferente de qualquer outra,
diferente das outras. É importante salientar que a diferença de sua família parte da
perfeito:
que tem de sua vida: “[...] Aí a minha vida se torna um cinema na vida real”.
Demonstra aqui a mistura entre sua vida e a fantasia que a construção delirante traz para
dar conta de suas questões corporais e narcísicas, temas que ficam evidentes em suas
momento que coincide com o início de suas crises. Afirma ter saído de casa cedo com a
94
irmã para “batalhar” e se sustentar. Relata brevemente como é sua percepção da falta
Amanda: [...] Porque eu sai muito cedo de casa. É... Pro mundo, eu e
minha irmã. Sempre junto, batalhando junto. [...] Porque é difícil
demais a gente não ter uma família, não ter uma casa, não ter um lar.
É difícil, sabe? Ficar nas casas dos outros trabalhando. A gente é o
primeiro que acorda, o último que deita, né? [...] É difícil não ter um
pai, uma mãe, né? Ainda mais na hora que a gente precisa. Na hora
da doença, na hora da tristeza, na hora da alegria. A gente
compartilhar com eles, né? Eu... A minha vida foi muito difícil, né?
Casou-se pela primeira vez com vinte e um anos, mas em outro momento define
esse casamento apenas como um relacionamento. Teve a sua primeira filha durante este
relacionamento. Casou-se novamente e com este marido teve mais duas filhas. Segundo
seu relato, este segundo marido estuprou a sua filha mais velha e ela só teve
conhecimento quando veio morar em Brasília. Amanda refere que a sua primeira crise
foi aos 35 anos, após ter descoberto que seu ex-marido havia estuprado sua filha,
inclusive diz que esse fato pode ter contribuído para o desencadeamento dessa crise:
desencadeamento de sua crise, pode ser ratificada pelo seu comportamento de raiva e
95
internação, e em seu relato sobre a diferença entre homem e mulher, em uma das
entrevistas:
ter tido em outra entrevista, a primeira coisa que lembra e relata é sobre o estupro de sua
filha:
Entr.: Quando você fala que teve um distúrbio, o que foi que
aconteceu?
Amanda: Porque eu descobri que meu marido aproveitou sexualmente
da minha filha, né? Aí eu não acreditava. [...] Aí eu fui trabalhar
numa casa, eu comecei a falar coisa com coisa, que a moça tinha
filho com o cara e foi assim, sabe? O distúrbio foi totalmente
perturbador mesmo sabe. [...] Aí a minha irmã... [...] Aí eu tava
falando que ela tava... Que ela era garota de programa, sabe? [...]
Falava coisa com coisa que não tinha nada a ver comigo.
Com relação às suas crises, Amanda afirma que já teve três crises e que a
primeira foi a mais forte, momento em que diz que não entendia nada. Desde então,
possui o diagnóstico de transtorno delirante. Até hoje não consegue entender o que
96
Amanda: Da primeira vez foi... A primeira vez foi mais forte, né? Não
sabia entender nada, né? E até hoje não sei entender nada, né? Fico
sem entender as coisas que aconteceram comigo. Não posso nem ter
explicação. Deixo pra lá. Não quero mais me lembrar. O que passou,
passou.
conseguia saber qual era a data do dia. Perguntava para as pessoas que estavam na
psiquiatria do HBDF, mas não acreditava na resposta. Define a primeira crise como um
“distúrbio mental, um distúrbio que a cabeça fala coisa com coisa”. Na verdade, o
sentido dado por ela é de que a “cabeça não falava coisa com coisa”. Outro
acontecimento interessante refere-se ao dizer que sua irmã havia roubado sua
identidade. Seja o roubo de sua identidade por parte de sua irmã, não reconhecendo
irmã, achando que ela era garota de programa. Dizia que pessoas tinham filho com
Relata que certa vez estava em casa e uma tia sua chegou com algumas crianças,
97
Amanda: Nós chama ela de tia. Tia emprestada. Agora ela me
explicou tudo. Contou tudo como que é a vida dela, como é a família
dela. [...]
Em outros momentos, ela afirma que na época da crise achava que as crianças
eram filhos de sua tia e que queria trabalhar para ajudá-la a cuidar deles. Em conversa
com sua irmã, a mesma afirma que este episódio não aconteceu na realidade. Afirmativa
que é confirmada com uma fala sua sustentando que as crianças chegaram “de repente
na minha cabeça”.
casa com as crianças, afirma também, que via pessoas estranhas na casa dessa mesma
tia:
Durante a crise, ouvia vozes que lhe “falavam coisas perturbadoras” e lhe
mandavam brigar com sua irmã, cunhadas e sogro. Sentia ciúmes de um rapaz que
gostava de uma moça que morava na casa de fundo da casa de sua irmã, e dizia que os
dois tinham um filho. Afirma também que se sentia perseguida: “Eu achava que as
pessoas estavam querendo me pegar”. Além disso, menciona também a forma como
98
Entr.: Amanda, o que mais acontecia durante suas crises?
Amanda: Acontecia assim... Que tudo pra mim era meu inimigo. Tudo
pra mim era meu inimigo.
Entr.: Todas as pessoas eram seus inimigos.
Amanda: Eram meus inimigos. A minha irmã principalmente. Eu não
se dava bem com a minha irmã de jeito nenhum. Cheguei a odiar.
Entr.: E o que essas pessoas tinham que você pensava que eram suas
inimigas?
Amanda: Às vezes tinha raiva de mim. A maior parte parecia que
tinham inveja, sabe? Eu sentia assim.
Esse é mais um ponto que deve ser ressaltado nas entrevistas com Amanda: a
relação que ela possui com sua irmã. Na crise tem um relacionamento hostil e até diz
que percebia as pessoas, principalmente sua irmã, como suas inimigas. Chega inclusive
a dizer que toda a sua perturbação mental, como define as crises, tem sempre relação
com a casa de sua irmã: “É tudo levado à casa da minha irmã, sabe?”. Em
separação. Mas por outro lado, fica evidente a sua tentativa em estabelecer uma
separação da imagem da irmã, demarcando as doenças que ela possui: “a minha irmã
tem lúpus e ela é muito doente, sabe? Ela tem... De vez em quando ela dava crises
99
Hoje parece ter uma vida socialmente viável, com um trabalho e a convivência
pacífica com a irmã: “tô me entendendo com a minha irmã, também”. Esse bom
relacionamento acontece igualmente com outras pessoas, inclusive com as que teve
construção delirante.
vigia de carro com o esposo, no estacionamento do Conic. Casou-se com 18 anos e teve
cinco filhos, quatro homens e uma mulher. Um de seus filhos, quando estava com nove
esposo afirma que a primeira crise aconteceu aproximadamente há um ano e meio, após
ter levado um choque na máquina de lavar roupas. Relatou que após esse episódio
começou a ficar perturbada, não se alimentava direito e começou a dizer que queriam
mental.
delirante caracteriza-se pela ocorrência de uma idéia delirante única ou pelo conjunto de
100
idéias delirantes afins, que persistem na vida do sujeito. O conteúdo dos delírios é
somático. Pode apresentar também mais de um tipo ou ser inespecífico, quando não se
auditivas, desde que de forma aleatória e breve, principalmente em pessoas com a idade
transtorno delirante, pois sua alucinação auditiva – voz de Deus – está claramente
relacionada com a sua construção delirante, pois Deus apenas diz que ela precisa fazer a
bastante insipiente neste caso – e somático estão entre os possíveis para este quadro. Por
fim, mesmo com baixa instrução escolar não se percebe, em Luciana, um rebaixamento
odores ou a percepção de que determinada parte do corpo não funciona. Essas são as
características corporais evidentes em seu relato. Além disso, o transtorno delirante tem
101
Luciana: Antes do meu filho morrer eu era normal, depois que ele
morreu que eu fiquei assim.
Entr.: Então foi depois que o seu filho morreu que a senhora ficou
assim?
Luciana: Foi.
Entr.: A senhora acha que tem alguma relação com a morte do seu
filho?
Luciana: Eu acho que foi depressão.
Entr.: Depressão?
Luciana: É. A depressão muito grande.
Entr.: Então a senhora acha que isso contribuiu?
Luciana: Foi. Contribuiu pra poder eu ficar assim.
melhorava de vida”. Segundo ela, precisava realizar a cirurgia para ser enterrada logo
Neste trecho, ela explica ainda que não tem direito ao enterro por não ter corpo
humano e relata a sua percepção de estar seca. Diz estar assim pelo fato de ter levado
um choque e por ter sido submetida à uma cesariana, em uma de suas gravidez, onde diz
102
que... Fui puxada a ferro. Colocaram aquele ferro e puxaram meu
útero pra fora. Ficou só os ossinhos fraco.
participação ao choque e à cesariana para estar com o corpo seco. Ajudando a percepção
de estar seca e não ter mais corpo humano, assegura a perda de todo o seu sangue como
outra conseqüência da cirurgia que retirou seu útero: “não tenho nem sangue mais”.
No entanto, em outra entrevista, diz não saber como foi que seu corpo começou
a apodrecer e ficar com os ossos fracos, narrando um início súbito para essa vivência
Luciana: Não lembro bem não. Porque foi bem assim... Eu tava
dormindo, quando eu acordei tava assim.
Afirma ainda que após ter ficado assim, ouve a voz de Deus ordenando-a para
ela pedir ajuda aos médicos para tirarem o seu pescoço, pois Ele quer que ela tenha
direito ao enterro. Dessa forma, Deus parece ser o único que entende a sua situação e
A sua diferença das outras pessoas não fica apenas na aparência corporal, mas
passa pelo direito em ser enterrada: “Porque todo mundo tem direito e eu não tenho [...]
porque eu sequei demais. Eu sequei que meus ossos ficaram secos demais”.
Após realizarem o seu desejo, e o de Deus, de retirar o seu pescoço, o que lhe
ajudará a não ver mais o claro e ficar penando na Terra, Luciana faz alusão não mais
realizar comportamentos que os seres humanos realizam, e diz qual deve ser o destino
de seu corpo:
103
Entr.: Por que a senhora fala que pode jogar no saco de lixo e
queimar?
Luciana: Porque eu perdi o meu direito de ter um caixão.
prisioneira desse corpo que segundo ela está seco e apodrecendo. Da mesma forma,
desesperada, tenta se ver livre dele, e em último caso, se não for possível enterrá-lo,
pode ser colocado em um saco de lixo e queimá-lo. Valida essa busca desesperada por
um destino para seu corpo da seguinte forma: “Pra poder descansar o meu corpo como
um corpo que está com os ossos fracos e a carne podre, demonstra a sua terrível
vivência:
acaba apodrecendo dentro dela, ocasionando o seu apodrecimento: “Tá toda podre,
estragada a minha carne”. Este fato é explicado pela falta do ânus, parte do corpo que
não possui mais, uma vez que é feito de carne e ela não possui mais carne, só esqueleto
104
Ela chega a dizer que já morreu: “É, já morri. Só o cérebro que funciona”.
Quando questionada por que o cérebro ainda funciona, responde: “Porque eu ainda falo
A forma que Luciana encontrou para lidar com este corpo, que é vivenciado
apenas como esqueleto humano, que apodrece cada dia mais e acaba por ser percebido
como morto, sem vida, foi por meio da explicação de que é fruto do provérbio da carne
105
Luciana: Foi eu... Foi o que aconteceu comigo. Foi eu. Eu era forte e
depois foi só murchando e fiquei desse jeito.
Essa tentativa de construção delirante tem o objetivo de dar conta dessa horrível
vivência do corpo que murcha, apodrece e precisa ser aniquilado e enterrado, ou jogado
Por outro lado, diz que quando era crente, Deus disse a ela que isso aconteceria:
“Quando eu era crente ele (Deus) falou que eu ia sofrer muito, que eu ia ficar desse
jeito” e justifica: “Porque ele disse que ia ser difícil achar uma pessoa para coisar o
pescoço meu”.
Durante a internação, a sua grande busca é por alguém que consiga levá-la para
falar com um cirurgião no intuito dele retirar o seu pescoço: “Quero tirar esse pescoço
aqui, pra ver se eu descanso”. E pede desesperadamente para que alguém lhe ajude:
discurso dos sujeitos, passaremos a discutir alguns eixos apresentados pela teoria
Trataremos cada um dos eixos como uma tentativa de buscar outro entendimento do
Amanda e Luciana.
106
Tentando desenvolver uma seqüência lógica para facilitar o entendimento e a
corpo para só depois refletirmos como essas idéias se articulam na clínica específica da
1993, citado por Lazzarini & Viana, 2006). Dessa forma, na obra freudiana, o conceito
de corpo traz consigo três dimensões essenciais: Körper, Leib e Soma (Assoun, 1995,
citado por Lazzarini & Viana, 2006). Como Körper tem-se o “corpo real, objeto
material e visível que ocupa um espaço e pode ser designado por uma certa coesão
anatômica” (p. 242), como Leib tem-se o “corpo capturado na sua própria substância
viva, [...] princípio de vida e de individuação” (p. 242) e por fim, como Soma tem-se o
corpo enquanto “corpo somático” (p. 242). Essas três dimensões estarão presentes em
salientar que o verdadeiro corpo para a psicanálise é o corpo enquanto objeto da pulsão.
107
enquanto um todo em funcionamento ligado com a história do sujeito (Lazzarini &
Viana, 2006).
representação (Birman, 1991). Equivale dizer que o corpo que a psicanálise se propõe a
Dessa forma, o corpo de uma pessoa constitui-se por uma superfície que é capaz
de dar origem a sensações tanto internas quanto externas. Estabelecendo a relação entre
acima de tudo, um eu corporal e não uma entidade de superfície. O eu tem sua origem
nas sensações corporais, de forma especial das quais se originam da superfície do corpo.
Assim, ele pode ser compreendido como uma projeção mental da superfície do corpo, o
que nos faz pensar que as noções de corpo e eu estão intimamente relacionadas, e nos
como análogo ao corpo, e, sim, que a subjetividade emerge segundo uma lógica
complementa, a primeira das suas formulações, dizendo que a criança, no início, toma o
seu próprio corpo de forma auto-erótica, onde a satisfação não pode ser adquirida por
meio de outras pessoas, mas, sim, no próprio corpo do indivíduo; o que acaba por
momento, a satisfação estaria distribuída por várias partes do corpo da criança, o que
108
pela existência de uma série de “pulsões parciais”, calcadas em partes do corpo
libidinizadas.
de satisfação e passa a escolher outro objeto externo para a realização desta satisfação.
O auto-erotismo é abandonado e a função de objeto, que era ocupada pelo próprio corpo
unificação dos diversos componentes do corpo, que eram marcados como pontos de
como fonte de satisfação para outro objeto externo é um processo que “[...] só pode ser
não pode ser efetuado, a menos que algumas pulsões auto-eróticas sejam abandonadas
disperso para uma imagem totalizada de si próprio fará com que a relação do sujeito
com os seus objetos seja outra, uma vez que o corpo deixa de ser encarado como o
despedaçada do corpo auto-erótico das fases pré-genitais, mas, sim, a imagem do corpo
109
seu objetivo é a obtenção da imagem totalizada do eu como objeto da pulsão, como o
próprio eu do sujeito.
narcisismo freudiano diz respeito a uma fase em que o corpo próprio emerge de forma
corpo recebe o significado de si, por meio de sua erotização. Para Birman (1999),
forma como o sujeito com diagnóstico de esquizofrenia vai lidar com o próprio corpo,
que eu vou fazendo é como se fosse um boneco, um inflado, fico aí, fico a mercê deles”.
momento da crise como algo inflado, sem conteúdo, que não tem vida e pode ser
110
delírio de influência, percebido pelo final de sua frase “fico a mercê deles” será
retomado mais à frente, quando passaremos a tratar mais especificamente deste ponto.
alguma coisa...”. O seu corpo é percebido como se desmontando, mas o sujeito não
consegue identificar que se trata dele, apenas diz que alguma coisa está se desmontando.
forma especial, essa vivência do corpo próprio como despedaçado. No momento em que
diz ouvir vozes que falam com ele, relata seu comportamento:
unificante, onde uma parte do corpo representada pela urina passa a ser tomada como
todo o corpo que vai embora pelo vaso sanitário: “[...] olho pro vaso e vejo aquele xixi
descendo, parece que sou eu que estou descendo lá dentro”. Seu invólucro corpóreo
parece não delimitar e sustentar o seu eu, que se percebe escorrendo pelo vaso sanitário.
Além disso, uma parte é tomada no lugar do todo. A urina e os fluidos corporais
são percebidos como o eu do sujeito que desce pelo vaso. Esse fato é explicado por
em que uma parte do corpo é tomada como o corpo inteiro (Menezes, 1996).
menção a uma imagem do corpo próprio como algo despedaçado, sem unidade. Isso
111
acontece tanto de forma inconsciente, como conscientemente em certos momentos
(Menezes, 1996).
A continuação dessa parte da entrevista nos esclarece bem sobre essa percepção
do sujeito, ser ele mesmo que está descendo pelo vaso sanitário, que ocorre no momento
das crises:
Entr.: Você disse que quando vai ao banheiro urinar, às vezes você
olha para aquela urina que está no vaso e se percebe indo ali. Como
que é isso? Como isso acontece?
João: É só na minha mente. Eu faço xixi, e quando estou lá fazendo o
xixi, parece que tem alguma coisa ali que tá querendo me sugar lá pra
dentro [...].
Entr.: E essa situação de se ver indo no xixi acontece com
freqüência?
João: Só quando eu tô assim perturbado, quando eu tô... Não é
freqüente não. É só quando eu tô perturbado, eu tô agoniado... Com
as vozes falando, falando, falando, aí eu vou, aí na hora que eu vou
fazer xixi, isso acontece...
Entr.: Então é nos momentos de crise que isso acontece?
João: É, isso acontece. Quando eu to tranqüilo não tem nada. Vou lá
no banheiro faço xixi normal dou descarga, não vejo nada, não ouço
nada. Só na hora que estou agoniado, perturbado, que sinto parecer
que vou descer na descarga ou alguém está descendo lá, não sei.
A esse respeito, Metzger (2006) diz que na psicose a questão crucial está na
respeito da organização psicótica. São as falhas ocorridas nesses dois processos que
darão início aos mecanismos patogênicos porque serão uma barreira para a constituição
(Menezes, 1996).
112
psíquico. Ou seja, trata-se da própria representação que a criança teria de si mesma no
sua experiência da superfície corporal. De forma bem semelhante ao que propõe Freud
(1923/1996), para Anzieu (1989) o envelope psíquico teria sua origem ancorada no
masoquismo secundário” (p. 46). Como dissemos logo acima, na psicose, de forma
anterior ao narcisismo. O que nos faz pensar que neste caso o Eu-pele não se formou a
contento, deixando o sujeito sem esse “envelope” corporal e psíquico bem definido.
Este fato de não possuir as demarcações corporais e psíquicas bem definidas acabará
por contribuir para que este sujeito também seja alvo de influências externas que lhe
que é possível de observação por meio da insuficiente barreira entre o dentro e o fora
influência externa que lhe invade: “É espiritual, é um mal espiritual, vem lá do mundo
dos espíritos, sei lá. Não sei como é isso. Sei que é o demônio que está aí solto, está só
esperando a gente abrir uma brecha que ele vai entrar e ‘pum’, vai pegar a gente de
cheio”. Essa fala nos remete à possibilidade de uma abertura, uma brecha no corpo, e
dessa forma no eu do sujeito, que deixa algo de fora poder entrar e dominar o interior,
como ele bem relata em duas passagens: “Fico ao léu” e “É tipo uma coisa que toca em
113
Em certo momento João parece ter consciência dessa influência pela qual sofre
devido às forças negativas que ele diz que estão na atmosfera e o controlam, ao relatar,
percebe sofrer uma “influência do mal que está aí solto, que eu acho que existe e fica o
demônio aí solto esperando só uma brecha para entrar”. Mais uma vez observa-se o
aparecimento da temática da brecha que permite a entrada de algo que irá controlá-lo.
Em outra passagem, diz que as vozes deixam claro que são elas que comandam: “Agora
você não é nada. Nós que mandamos. Deixa quieto. Vai fazendo. Nós vamos mandando
e você vai fazendo”. Neste trecho, as vozes citadas por que João e que remetem às
forças negativas, deixam claro o controle que exercem em sua vida, dizendo que são
elas que o comandam, e que a ele só resta realizar o que elas ordenam. João, no entanto,
se deixa guiar pelo comando das vozes, atendendo-as e demonstrando que elas
esquizofrênico, formado por caixas, manivelas, alavancas, rodas, botões, fios e baterias.
1990).
114
Segundo os autores, a maioria dos sujeitos psicóticos “acusam esses fatores sem
atribuí-los à ação de um aparelho” (p. 41-42). Nestes casos, as alterações são atribuídas
à influências psíquicas estranhas, sugestão ou força telepática com origem nos inimigos.
várias etapas que vão apenas da sensação de estranheza até a completa percepção do
como uma perseguição: “Aí começava aquelas perseguições de vozes me dizendo, ‘não,
volta, volta’”. O que pode ser entendido como uma forma de perceber a influência das
vozes. As vozes deixam de ser aquilo que apenas o controla, e passam a ser percebidas
tem origem os limites entre eu/outro, dentro/fora (Metzger, 2006). Cabe aqui retomar a
noção de Eu-pele para tratarmos das três funções básicas que lhe competem: delimitar o
dentro e o separar do fora, ao mesmo tempo em que também deve ser o local de
comunicação com os outros e, por fim, ser o continente que armazena as boas
psíquico, denominado por Anzieu de Eu-pele, de forma não satisfatória, o que prejudica
eu/outro na fala de João, ao relatar o que as vozes lhe falam: “Eu não sei o que mais o
115
que elas falam. Só sei que elas ficam buzinando no meu ouvido ‘vamos’, ‘vamos sair’,
‘vamos andar’, ‘vamos caminhar’, ‘vamos correr’”. As vozes não lhe mandam
simplesmente fazer algo, elas dizem para que ele o faça juntamente com elas. Parece
existir certo grau de fusão entre as vozes e o entrevistado. Essa não separação eu/outro,
também, contribuirá para que o sujeito seja alvo de influências vindas desse “outro”.
outro momento quando questionado sobre o que mais as vozes lhe mandam fazer:
Ele não consegue diferenciar as suas vontades às das vozes. Parece estar tudo em
então como o retorno do rejeitado, foracluído, e toca o real do corpo (Lacan, 1955-
1956/2002).
sujeito defende-se da inscrição desse registro por meio da fuga para a psicose. A
entendido como a mãe. Ou seja, o pai não cumpre o seu papel de exercer o corte entre a
1918[1914]/1996).
116
Para Lacan (1955-1956/2002), a psicose seria decorrente do que ele chama de
incesto interditando a mãe, processo que também teria como conseqüência a aparição do
confundindo entre si. Não ocorre a interdição corporal, ato necessário para a formação
seu corpo próprio. Vejamos como isso acontece por meio de uma fala do entrevistado,
O que nos chama atenção é o fato de dizer que precisa resolver o problema da
pessoa por meio dele, por meio de seu corpo. Ele não está se referindo de forma
Podemos demarcar, ainda, outra implicação para essa não inscrição simbólica do
significante Nome-do-pai, que consiste em um furo no campo simbólico. Uma vez que é
117
justamente a marca que o significante Nome-do-pai exerce no psiquismo do sujeito que
João: Não consigo falar. Não encontro palavras para encaixar no que
você está querendo que eu responda.
Entr.: Mas quando eu lhe falo isso, o que vem a sua cabeça?
João: Dá um branco. Dá um branco.
Entr.: Você consegue me dizer como acontece esse branco?
João: Branco, como acontece? Não sei te falar.
Entr.: A única coisa que consegue dizer é que parece que as palavras
somem da sua cabeça?
João: É.
[...]
João: Tudo que eu aprendi, hoje eu esqueci. Tá apagado. Parece que
eu vou ter que começar tudo de novo, do zero.
Entr.: Você pode me explicar como é isso de ter desaprendido o que
havia aprendido?
João: Eu não sei, só sei que, por exemplo, quando eu estou com uma
pessoa, discutindo um problema, discutindo uma idéia, eu fico sem
palavra, não sei o que falar, não sei o que dizer.
Entr.: Mas o que acontece? Você não consegue encontrar as
palavras?
João: É, fica perdido. Fico perdido. Fico sem saber colocar pra falar.
significantes, o que impede que um significante se remeta a outro e assim por diante.
pai.
118
É a falta do Nome-do-pai nesse lugar que, pelo furo que abre no
significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de
onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja
alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na
metáfora delirante (Lacan, 1966/1998, p. 584).
Também nos chama a atenção a sua explicação para estes episódios de que
Entr.: Você já me disse como é quando você fala que deu branco, mas
você poderia tentar me explicar mais uma vez como isso acontece?
João: Fico sem idéia. Perdido no tempo. Dá um branco. Aí eu não sei
mais não. Fico perdido. Não consigo ver mais nada. Percebo como se
eu tivesse nem vida. Fico apagado.
vida, fica apagado. Como referimos no capítulo teórico, Katz (1991) defende que o
despersonalização, relatada por João. Além disso, esses brancos podem ser entendidos,
em alguns momentos, como uma forma de defesa contra qualquer significante que possa
de um determinado assunto que poderia ser intolerável. Dessa idéia, podemos resgatar
simbólica ressurge no real”. O que não pode ser simbolizado ao ressurgir no real, o faz
em forma de alucinação.
questão corporal? A resposta mais aceitável é não. No início deste tópico, apresentamos
a idéia de Lazzarini & Viana (2006) de que o corpo na abordagem psicanalítica está
119
(2003) defende que a vertente lacaniana também considera a história particular de cada
constituem seu corpo e se relacionam com ele, pode ser um exemplo das grandes
variações que se pode encontrar dentro de um mesmo quadro estrutural amplo” (p. 66).
como também entre sujeitos do mesmo quadro e até no próprio sujeito quando está em
próprio dentro do mesmo quadro. Mesmo sendo diagnosticada como esquizofrênica, sua
fala nos deixa a impressão de que sua vivência corporal não se assemelha com a de
João. Vejamos:
corpo, e que sua preocupação primeira é com a beleza corporal. Relata que idealizou o
seu corpo como o de outra menina: “Ela é tão bonita eu acho que no futuro eu vou
120
querer ser que nem ela”. Parece tentar realizar um superinvestimento do corpo próprio,
o que faz com que não apresente o despedaçamento corporal característico da psicose.
Carla: Minha beleza é uma beleza selvagem, por que eu acho que
meu pai tem uma beleza selvagem, um rosto selvagem de ser lá do
Piauí.
[...]
Entr.: Você sempre achou diferente o seu corpo com relação ao de
outras pessoas?
Carla: É. Eu sempre acho que é diferente
Entr.: Quando você era mais nova C. com doze e treze anos o que
você fazia?
Carla: Eu costumo do mesmo jeito, aqui. Aqui aconteceu umas
coisinhas. Meu irmão começou a estudar, ai começaram a bater
fotografia minha, né? Aí eu fiquei olhando o meu rosto, eu fiquei
achando estranho.
com que lancemos mão de uma importante idéia de Lacan (1966/1998), que diz respeito
em que o bebê reconhece a imagem refletida no espelho como sua. O autor explica
ainda que:
121
sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura
enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua
estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (Lacan,
1966/1998, p.100).
ocorre por meio da afinidade com a imagem corporal pela qual o indivíduo antecipa, de
forma fantástica, a sua maturação motora (Lima, 2005). Para ele, o eu constitui-se a
partir da imagem do outro. Nessa perspectiva, o corpo é entendido sob o ponto de vista
outro como indispensável para a gênese subjetiva e a imagem que o sujeito assume
(Cukiert & Priszkulnik, 2002). Percebe-se em Lacan, assim como em Freud, uma
uma identificação em seu sentido pleno, ou seja, a transformação que o sujeito está
submetido ao assumir que a imagem refletida no espelho é sua. A sua função seria
O estranhamento relatado por Carla com relação a uma parte do seu corpo, mais
precisamente o seu rosto, parece ter alguma ligação com a dificuldade de organização
da imagem de si. O estranhamento com sua imagem na foto presentifica essa não
identificação primária, idéia essa que pode ser confirmada pelo alto grau de idealização
que ela apresenta com relação ao seu corpo. O que também pode ser confirmado pela
122
Esta definição de Lacan se torna muito interessante, na medida em que é essa
imagem especular permite que a criança estabeleça a relação de seu corpo com o seu eu,
e a realidade que a contorna (Cukiert & Priszkulnik, 2002). Mas para tanto, são
reportar essa imagem a si mesmo” (Ferrari & Alcântara, 2004, p. 9). Para se chegar a
essa segunda etapa, é necessário que ocorra uma descentração de si para que seja
possível reconhecer aquela imagem como sua: imagem esta que é exterior a si. Como
se percebe, no caso de Carla, parece que a “falha” está na segunda etapa, que retorna no
momento em que se estranha com a imagem reportada pela fotografia. Ela não é capaz
de sair um pouco do centro para reconhecer a fotografia como uma imagem sua. Freud
psicótico.
da seguinte maneira:
Paralelamente a este episódio em que o seu corpo lhe parece estranho, relata
outro que nos remete à questão da falha na simbolização presente na psicose, como
apresentado acima. Momento este em que parece estar “fora de si”, despersonalizada,
123
Carla: [...] Aí a cabeça fica toda aérea.
Entr.: Aérea, você fica assim?
Carla: É fico toda aérea. Aérea sem saber o que fazer mais da minha
vida. Sempre naquela vidinha.
assumem o estatuto de coisa (Lacet, 2004), ao tentar definir como seria a dor de cabeça
que sente:
Em sua explicação do que seria a sua dor de cabeça, relaciona com a agonia de
Jesus no horto das oliveiras e precisa utilizar-se de algo concreto como o azedo do
limão, para explicar o que vem a ser essa agonia. Este fato também se relaciona com a
possui imediata e direta referência ao corpo e às sensações provindas dele (Caropreso &
Simanke).
Por fim, no caso da Luciana, mesmo que seu diagnóstico seja de transtorno
delirante, seu corpo é percebido de forma terrível como seco, sem ossos e apodrecendo:
124
Luciana: Eu tô... Eu sequei demais, minhas carnes secaram, meus
ossos está tudo estralando. E eu precisava coisar esse pescoço meu.
Entr.: E o que tem ai no pescoço?
Luciana: Que tá quebrado. Esse pescoço tá quebrado.
Entr.: Está quebrado?
Luciana: Tá.
Entr.: O que tem nele que a senhora disse que está quebrado?
Luciana: O osso que eu não tenho mais. Não tenho osso. Só tenho
vertebrado aqui nas minhas costas, olha. [Levanta a blusa e mostra
algumas vértebras em sua coluna lombar que estão salientes] Olha.
Não tenho osso mais, duro.
Entr.: A senhora está falando pra mim que a senhora não tem mais a
coluna?
Luciana: É. Não tenho mais coluna e nem quadril, sabe? Eu tinha
muito quadril, né? E agora eu não tenho mais, tá só sumindo.
Entr.: E o que aconteceu com a coluna e o quadril da senhora?
Luciana: Primeiro eu levei choque. Depois eu... Através dessa vez
estou com os ossos tudo apodrecendo.
Entr.: A senhora sente que está apodrecendo?
Luciana: É.
Entr.: E como é que vai apodrecendo?
Luciana: Se eu comer, porque eu não tenho ânus mais pra fazer cocô.
Hoje eu consegui fazer uma vez... duas, né? E agora eu não consigo
mais fazer.
como apodrecendo, secando, sem ossos e com o pescoço quebrado. Neste caso,
ordem inata. O acesso ao corpo acontece mediante uma série de ações que são mediadas
pelo simbólico (Lazzarini & Viana, 2006). Assim, “a apreensão do corpo pelo sujeito
exige, contudo, que uma nova operação tenha lugar. Esta operação, pela qual o corpo é
Como vimos em seu relato clínico, Luciana diz, de forma delirante, ser fruto do
provérbio da carne seca e dos ossos fracos e hoje está como uma galha seca. Além
125
disso, relata que ouve a voz de Deus que lhe diz para retirar o pescoço a fim de poder
Relata também a agonia que sente ao ver as pessoas deitarem, porque eles têm
relacionada com a imagem do corpo próprio que acontece de forma falha e se remete a
um corpo apodrecido, seco e sem ossos. O corpo é percebido como algo estranho,
Relata que já nasceu como está hoje, o que percebemos como uma forma de
corpo próprio por meio do investimento na imagem corporal não aconteceu em Luciana
de forma favorável a ponto de não tornar possível que ela tenha uma imagem corporal
satisfatória, mas, sim, uma imagem que vacila entre um corpo existente e não existente.
126
Ainda sobre este assunto, é importante ressaltar que em alguns casos, o sujeito
psicótico parece ignorar seu corpo de forma radical, atuando como se este não lhe
dissesse respeito ou o tomam como uma carcaça da qual podem prescindir (Goidanich,
2003). A fala de Luciana sobre o seu corpo nos sugere que no seu caso acontece
justamente essa atitude de ignorar o corpo, como fica claro ao afirmar que não possui
corpo humano.
Mesmo com a presença de toda essa vivência corporal terrificante, não podemos
seu reinvestimento tem como objetivo a organização corporal, onde pela via delirante
sistematização de uma saída para este corpo que apodrece e se encontra com partes
indo para o vaso sanitário com o xixi não procura explicar ou sistematizar uma saída
possível para tal fato. Tudo se resume à agonia da experiência de se ver indo em uma
Luciana apresenta um corpo seco, sem ossos e apodrecido, mas a sua vivência,
por mais próxima que seja, não se iguala ao despedaçamento corporal e a fragmentação
do eu presente na esquizofrenia.
acontecendo a organização corporal. Esta diferença faz com que o sujeito acometido por
esse transtorno tenha uma vivência do corpo próprio mais satisfatória que no caso da
esquizofrenia.
127
No caso de Amanda, a questão corporal se relaciona com a construção delirante,
Para ela, sua irmã roubava sua identidade e demonstra que também realizava certa
confusão com relação à identidade das pessoas. Vejamos alguns extratos de suas
entrevistas:
128
Uma análise dessas falas de Amanda nos faz levantar a hipótese de que a sua
outras pessoas, como das crianças que diz ter visto chegar com a tia em sua casa. Não é
atenção o fato de que sua construção delirante se relacione com a questão da identidade,
aqui interpretada por nós como algo que representa e personifica a pessoa nomeada no
mesmo, principalmente no que diz respeito ao seu roubo por parte da irmã que tem
sincronicidade da relação entre dentro e fora, entre eu e outro, que pode ser percebido e
simbolizado nas estruturações neuróticas, que, nas psicoses, sofre uma cisão. Parece ser,
2003).
Percebe-se então que o sintoma psicótico demonstra a forma com que os sujeitos
lidam com o corpo próprio e com o seu eu e por meio do reinvestimento auto-erótico ou
129
de possibilitar outra forma de lidar com o corpo próprio e a constituição de sua
uma fase normal no desenvolvimento sexual humano que estaria relacionado com o
instinto de autopreservação, quando a libido está direcionada para o próprio corpo. Este
narcisismo tem como função a unificação corporal, o que torna possível o surgimento
sujeito começa a diferenciar o que é o eu e o não-eu, ou seja, o objeto que pode ser
investido libidinalmente e que não faz parte do seu próprio corpo. Isso é possível,
No entanto, esta catexia persiste e está intimamente ligada com as catexias objetais
(Freud, 1914a/1996).
narcisismo secundário que tem seu lugar marcado na psicose; momento em que o
sujeito retira a libido dos objetos, pessoas e coisas do mundo externo, e a dirige de volta
para o próprio eu. Essa atitude por parte do sujeito pode ser observada por meio de duas
130
conseqüente desinteresse das pessoas e coisas do mundo externo (1914a/1996) com
tudo a sua volta é percebido com uma significação particular e está intimamente
relacionado com ele: “[...] tudo a minha volta tinha vida e tava falando comigo”. Há um
engrandecimento do seu eu na medida em que tudo a sua volta se remete à sua pessoa.
A esse respeito podemos citar a idéia defendida por Martins (2003), para quem a
exterior para depois reinvestir no eu, mas, sim, o investimento direto no próprio eu.
Momento em que as coisas do mundo são percebidas como tendo íntima relação
investimento vindo por parte das coisas do mundo. No entanto, no caso de João ele se
refere a objetos da realidade que possuem relação consigo, como a televisão, por
exemplo. Neste caso, realiza uma tentativa de investimento objetal, mesmo que esta seja
pela via narcísica, já que a televisão é percebida com vida e tentando falar com ele. Ou
Vicente de Paulo (HSVP), hospital psiquiátrico que antigamente era conhecido como
131
observar aquilo lá. Fiquei ali observando, observando, todo
movimento que passava ali eu ia observando na minha mente. Aí
tudo... Parece que tava tudo parecendo que queria me pegar.
Nessa fala, é possível verificarmos que esses sujeitos possuem certa tendência
como referentes à sua pessoa. Todo o movimento externo ao hospital era percebido
como se fosse em relação a ele, relação esta recheada de angústia, pois na verdade tudo
este é compartilhado por outros sujeitos. Com esse mecanismo, o sujeito psicótico, de
Essa tendência também pode ser pautada na fragilidade com que o eu do sujeito
psicótico está constituído, onde tudo a sua volta parece lhe invadir. A diferenciação
eu/não-eu que se estabelece de forma falha não consegue barrar essa invasão exterior,
onde o não-eu passa a fazer parte do eu, sendo invadido por ele e não se torna possível
132
aconteceu (Quiles, 1995). Como apontado anteriormente, esta regressão presentifica a
objetal, mesmo que de forma delirante, este investimento logo retorna para si, em uma
João: Deixa eu ver aqui o que eu posso dizer pra você entender... Não
sei. É uma coisa ruim. Tô deitado, aí parece que alguém chama, eu
levanto, eu abro os olhos, não vejo nada, só ouço, não vejo nada. Aí
parece que... Aí a TV está ligada na sala, parece que a TV está
querendo conversar comigo, eu fico sem saber o que fazer, fico muito
angustiado, nervoso.
origem no retorno dos investimentos dos objetos para o próprio eu, adotado como
investimento do próprio sujeito em si, mas, também, os objetos são percebidos como
conversar com ele ─ investindo em uma relação objeto-sujeito. Além disso, é uma
na relação entre o objeto e o sujeito: o sujeito passa a ser assimilado pelo objeto, uma
relato de sua trajetória nos seus empregos: “Entrava no carguinho mais baixo, questão
133
engrandecimento do seu eu, que em pouco tempo conseguia sair do cargo mais baixo
para o mais alto, como no caso que diz ter entrado para trabalhar de caixa e um ano
Dessa forma, o seu papel seria o de proceder a uma elaboração interna para a libido que
retornou para o eu. Quando esta função não é exercida de forma efetiva, deflagra-se o
1914a/1996).
Voltando nosso olhar para Carla, percebemos alguns aspectos bem próximos dos
observados com João, mas que são experimentados de forma diversa. Seu investimento
Processo que está à serviço da idealização corporal, questão bastante presente em seus
Carla: [...] Só que eu fico às vezes com medo... medo de ser elogiada.
Entr.: Por quê?
Carla: Porque eu fico com medo. Uma coisa assim dentro de mim,
porque eu não tô na pele da pessoa pra sentir o que ela sente.
Entr.: O que poderia vir além do elogio?
134
Carla: Ah, só coisa boa. Só tinha que me elogiar. A pessoa jamais
poderia me chamar de outra coisa. Isso não poderia acontecer,
senão... senão... não é verdade? Isso não poderia acontecer. Esses
tempos todos que estou vivendo, todos esses tempos que estou
vivendo, não seria normal eu captar isso. Ouvir isso ou acontecer
isso, não ia ser uma coisa normal.
Entr.: Você já ouviu outras coisas?
Carla: Eu acho que não merecia, sabe?
Entr.: Você já ouviu outras coisas?
Carla: Não. Nunca ninguém fez nada comigo. Nunca... Nunca
ninguém me xingou de feia, de chata, disso, daquilo. Nunca fizeram
nada comigo. Minha mãe nunca fez isso comigo. Meus irmãos nunca
vão... Nunca fizeram, sabe? Nunca. [...]
Neste trecho, Carla fala do medo de ser elogiada, mas logo depois diz que as
pessoas só podem mesmo é elogiá-la. Jamais poderia ser diferente. Chega a dizer que
não seria normal se ela captasse algo diferente dos elogios. Coloca-se exclusivamente
como receptora de elogios, percepção corroborada por sua afirmativa de que nunca
fizeram algo diferente, além de elogiá-la. Nunca foi alvo de xingamentos ou qualquer
A megalomania apresentada por Carla nos remete à idéia de que neste fenômeno
é o outro que parece ter iniciativa, como neste caso. São os outros que querem e lhe
iniciativa parte sempre do outro. “É o outro que fez dele o centro de seu universo
Essa idéia pode ser percebida também em outras falas suas que deixam claro a
que todas as pessoas da face da Terra possam conhecê-la, percebe-se o alto grau de
Outra fala sua deixa mais evidente ainda como este fenômeno se processa em
135
Carla: Eu não tenho nada a reclamar dos artistas. Não tenho nada a
reclamar. Só que tem uma coisa, eu não consigo viver sozinha, você
sabe, né? Por isso é que existem os artistas, pra ficar mostrando na
televisão, pra ficar me agradando, fazendo comida pra mim. Minha
mãe faz comida, a minha mãe arruma minha cama. Meu pai me dá
tudo que eu quero. Meus irmãos me dão tudo. Só que eu... Só que a
vida não é pra sempre aqui.
de “dependência”, uma vez que não consegue viver sozinha e os artistas existem por
este motivo. Colocamos a palavra dependência entre aspas por saber que de forma
alguma ela se sente “dependente” dos artistas, mas, sim, uma dependência velada de sua
companhia. Na verdade, deixa claro que os artistas existem apenas para um fim:
agradar-lhe! Da mesma forma sua mãe, seu pai e seus irmãos. É o outro que existe com
este fim e procura executá-lo a todo custo, afinal de contas eles existem apenas com tal
objetivo.
Por outro lado, a megalomania também coincide com o delírio de fim de mundo,
onde o investimento no próprio eu do sujeito faz com que o mundo deixe de ser
investido e passe a não existir mais para ele. No entanto, a construção delirante terá o
papel de combater essa situação a partir da construção de um mundo próprio onde ele
possa habitá-lo.
Retornando ao caso de Carla, mais a frente ela fala sobre a sua idealização
corporal: “Eu queria ter o corpo perfeito”. Completa descrevendo como seria o corpo
perfeito:
136
fossem assim, entendeu? Por isso mesmo. Deus quis que as pessoas
fossem assim. Eu não posso fazer... Não posso querer mudar. Deus
quis que o meu pai nascesse com aquele corpo, com a minha mãe com
aquele corpo, eu com esse corpo.
O que nos chama atenção é a forma com que muda a descrição de como seria o
corpo perfeito para ela. Carla possa falar de forma pejorativa sobre o corpo de outras
pessoas, e diz que não pode fazer nada por essas pessoas, foi Deus quem quis que as
pessoas fossem como são, e encontra uma saída narcísica para lidar com essa questão da
perfeição corporal:
Ser a felicidade dos pais e dos irmãos torna menos penoso estar no mundo e ter
que habitar esse corpo, que não é o corpo perfeito que gostaria, mas também não é
como o de algumas pessoas, interpretado por ela como piores que o seu. A sua
existência toma sentido quando passa a ser a felicidade de seus familiares, inclusive, se
ela não existisse, eles não poderiam viver felizes, não ia ter nada, não aconteceria nada.
Carla afirma que deveria agradecer a Deus por ter todo esse sentimento por parte
de seus pais:
Carla: Ainda mais que a minha mãe gosta demais de mim. Meu pai,
sabe? Meus irmãos. Então fico pensando assim, que eu tenho que
137
agradecer a Deus tudo que eu tenho, sabe? Todas as pessoas que
gostam de mim. Todo mundo me agrada... adora... Gosta de me
ajudar. De me agradar. E às vezes eu não faço nada. Eu não reclamo
de nada.
E mais uma vez se coloca como receptora de boas atitudes por parte de todas as
O quadro apresentado por Carla faz com que nos remetemos à afirmação de
que se foi; c. O que se queria ser; d. Alguém que foi parte de seu próprio eu” (p. 47).
pelo que se é, pelo seu próprio eu, bem como o que pretendia ser. Por outro lado, parece
demonstrar esse amor também pela sua mãe, aquela que um dia foi parte de seu próprio
que realiza uma transformação na imagem da irmã: “Aí eu tava falando que ela tava...
Que ela era garota de programa, sabe?”. A desqualificação da irmã parece gerar um
engrandecimento do seu próprio eu perante a imagem da irmã; imagem que sempre foi
percebida de forma idealizada. Uma passagem em sua primeira entrevista nos ajuda a
Amanda: Cheguei até a ter inveja da minha irmã. Ter ciúmes dela.
Agora não. Agora que eu já tô... Já fiz tratamento, né? Eu estou mais
com perdão. Estou mais compreensiva. Eu não era compreensiva com
ninguém.
138
A inveja traz o sentimento de querer ter ou ser algo que a pessoa é ou tem e que
esta não seja ou tenha. Essa situação faz com que o sujeito esteja em uma posição
privilegiada em detrimento do outro, que, neste caso, pode ser interpretado como uma
eu de sua irmã.
Além disso, todas as vezes que fala de sua doença, faz questão de relatar
também os problemas de saúde da sua irmã e a troca de posição com ela, onde é ela que
Amanda: Eu tive uma crise lá. A última crise que eu tive eu tive tava
no meu serviço. [...] Minha irmã entrou em depressão também. Ela
tem problema de depressão. Toma remédio. Ela tem lúpus também.
Ela tem vários tipos de doença. Aí eu acompanho ela... a doença dela
todinha...
Amanda se qualifica como mais forte que a irmã, mesmo com todos os seus
problemas de saúde, o que para nós não deixa de ser um investimento narcísico, mesmo
que este aconteça por meio da desqualificação da irmã e, por comparação, acaba
gerando um engrandecimento de si. Parece ser a forma encontrada por ela para se
megalomania que se configura de forma especial no quadro paranóico, por meio de seu
139
Podemos pensar ainda no fechamento narcísico do paranóico e o seu delírio de
perseguição, que no caso de Amanda é delegado à sua irmã e vizinhos, como uma
equiparado a idéia de uma mãe má. Este pai não exerce a função paterna, que tem como
objetivo inscrever a lei, representada pela castração. Assim, a presença do outro humano
suavizante que possa se colocar entre o eu e o outro, a fim de romper a fusão do sujeito
com o objeto (Santi, 2004). No caso de Amanda, a vivência dessa intrusão por parte da
irmã é percebida pela perseguição dela e dos vizinhos e pelo roubo de sua identidade,
A delegação do roubo da identidade por parte de sua irmã nos chama a atenção,
uma vez que esta tem lúpus; doença de cunho psicossomático e que se relaciona com a
adoecimento (Lima, 2004). Sendo o lúpus uma doença psicossomática que está
como a psicose, nos faz pensar que Amanda luta em sua construção delirante contra a
possibilidade de sua irmã tentar lhe roubar a identidade, o seu eu, no sentido de
“resolver” a sua demanda com a doença que lhe acomete. Além de pensarmos na
roubo do seu próprio eu. Neste sentido, essa construção delirante é empreendida no
140
Essa nossa observação se faz pertinente uma vez que uma das características do
parece desenvolver uma “alergia” a ela mesma, já que seu corpo se torna o seu próprio e
sujeito passam a estranhar as suas outras células e atacá-las, como se essas fossem
identidade” (Pinheiro et al., 2006, p. 201). O corpo é tomado pelo sujeito como palco de
outro para si, que também pode ser entendida como uma atitude narcísica.
Mas no caso em que estamos analisando, nos interessa pensar que na verdade é
percebido como vindo de fora, por parte de sua irmã. O desejo de Amanda é
corporais (Pinheiro et al., 2006, p. 201). Esta afirmativa nos ajuda a sustentar a
aglutinação sugerida por nós a Amanda e sua irmã, onde uma parece necessitar da outra
para existir e habitar o mundo. Ao investir nessa relação, na verdade cada uma das duas
141
Por último, no caso de Luciana o investimento narcísico é feito por meio do
Luciana: Porque tem que fazer a operação do pescoço. Tem que tirar
esse pescoço logo. Pra poder eu descansar em paz. Minha... minha...
O resto mortal meu descansar em paz. [Levanta da cadeira em que
está sentada e começa a andar] Olha, quando eu ando, eu ando bem
leve, bem leve, bem leve. Penso que tudo se acabou.
Entr.: A senhora se acha leve?
Luciana: Muito leve. Igual a galha mesmo.
Entr.: Um galho?
Luciana: É. Fiquei leve como uma galha.
Entr.: Ficou leve como o quê?
Luciana: Leve como uma galhinha seca.
que toma o lugar do corpo como um todo, refere perceber também que tudo se acabou.
Fala de sua vivência de fim de mundo, onde nada mais existe, ponto em que a
megalomania tomou sua posição mais elevada. É interessante pensarmos que o fim de
tudo é uma projeção do fim de sua existência. Esta afirmação faz sentido se
leve como uma galha seca. Por definição, a idéia de galha, ou galho, é uma parte de uma
planta que foi arrancada e não recebe mais nutrientes e água, substâncias essenciais para
a continuação de sua vida. No caso de Luciana, a percepção é de ser uma galha seca,
como algo que já secou e, portanto, está sem vida. O que nos faz pensar que a sua
assim como acontece com uma galha ao ser retirada de uma árvore.
É importante demarcar que o delírio de fim de mundo na paranóia não deve ser
entendido por meio da projeção do fim de seu mundo subjetivo, de sua calamidade
142
desligamento do mundo externo, uma vez que ela necessita da ajuda dos médicos para
lhe tirarem o pescoço. Ponto este que mantém o seu contato, mesmo que frágil, com a
realidade objetiva.
abaixo:
Luciana afirma não querer ficar perto dos mortais e dos normais, atitude que
parece se excluir desse grupo de pessoas, de onde conclui que ela se percebe como
diferente deles. Mesmo que possa ser interpretado como uma possibilidade de
exercido por meio de seu corpo próprio, uma vez que este toma um lugar privilegiado
tem o objetivo de encontrar uma saída para essa vivência corporal como apodrecida.
por causa de sua vivência corporal, suas falas totalmente direcionadas à questão
corporal fazem com que percebamos que a libido está altamente direcionada para o seu
corpo e, como conseqüência, ao seu eu. Investimento este que procura aplacar essa
parte de Luciana, faz com que o seu pescoço tome o lugar de um órgão privilegiado em
143
toda a sua constituição psíquica. Inclusive é o pescoço que lhe faz ver e falar, questões
que denotam estar falando de viver. Sua vida gira em torno desse pescoço altamente
Dessa forma, por meio dos delírios de referência e das alucinações auditivas,
Essa saída narcísica é uma tentativa de se organizar e dar conta da percepção do corpo
tentar encobrir, ou até organizar, a sua vivência corporal e de seu eu. Observa-se, assim,
alucinação, o papel de defesa delegado por Freud a essa forma particular de estruturação
psíquica.
144
distúrbio, nas relações entre o eu e o mundo externo, percebe-se que a realidade está
atuais e presentes, percepções estas que são sempre renováveis. Já a segunda acontece
constituinte dele.
realidade, na verdade ele quer tratar da realidade externa que é renovável, mas, também,
sugere que este mecanismo deve relacionar-se com a retirada da catexia enviada pelo eu
No mesmo ano em que publicou este artigo, Freud (1924/1996) publica outro
psicose. Sua primeira contribuição é delimitar que na psicose o eu deixa-se vencer pelo
isso e se afasta de um fragmento de realidade. Por outro lado, observa ainda que na
145
imperativamente presente. Na neurose aconteceria um afrouxamento dessa relação e, na
Nas entrevistas realizadas com os quatro sujeitos que participaram deste estudo,
podemos elencar várias falas para demonstrar indícios da ocorrência dessa recusa da
realidade:
Carla: Eu acho que sou muito ambiciosa. Eu acho que eu devo estar
muito ambiciosa. Que parece que só existe eu na face da Terra, né?
Aí fica assim.
Entr.: Parece que só existe você na face da terra?
Carla: É. Só eu. Aí não dá certo não. Porque fica distante das outras
pessoas. Aí as outras pessoas morrem.
Entr.: Você sente dificuldade de conversar com outras pessoas?
Carla: Sinto. Aí as outras pessoas morrem, sabe? Aí acaba o mundo.
Aí todo mundo morre. Aí eu vou morrer também. Aí não vai dar certo,
sabe? Fica uma coisa assim tipo um cinema. Uma coisa assim, que só
tem que viver daquele jeito. Aí não dá certo. Aí eu penso ai não vai
dar certo não.
conseqüência deste fato: a não percepção de pessoas e coisas às quais possa investir.
Percebe que está sozinha na face da Terra. No inicio refere-se a um distanciamento das
pessoas e depois fala da morte das mesmas e, por fim, afirma que o mundo acaba e as
coisas passam a ser como em um cinema. Essa sua descrição deixa clara as duas fases
construção de uma nova, percebida por ela por comparação a um cinema. Ater-nos-
momento em que está tendo a alucinação auditiva, demonstrando uma certa crítica em
146
João: [...] Porque na hora que você está ali ouvindo parece que não
está acontecendo nada, mas depois que tudo passa você fala ”meu
Deus, será que fui eu mesmo que fiz isso? Como aconteceu isso?
Como pude me deixar levar?”, você tenta procurar ajuda de toda
maneira, mas parece que ninguém me ouve. Todo mundo está contra
mim.
[silêncio]
Entr.: Você disse que parece que ninguém te ouve, isso parece quando
você está...
João: Quando estou tendo alucinações... Quero pedir socorro e não
consigo botar pra fora, “socorro, me ajuda. Por favor, me ajuda”.
Fico paradão, diante do meu problema e fico sem ter condição de
pedir ajuda. Fico como se tivesse usado uma droga.
realidade. João não consegue pedir ajuda a ninguém. O investimento nas outras pessoas
tem o seu fluxo quebrado e é percebido como um movimento delirante em que todos
estão contra ele. Neste momento, também, não percebe a realidade externa e diz que
fica como se tivesse usado droga, experiência que as pessoas dizem parecer estar fora de
sozinho no mundo:
como um sentimento de estar sozinho no mundo. Ademais, o não investimento por sua
parte é interpretado como não investimento dos outros com relação a ele, uma vez que a
recusa da realidade e o desinvestimento objetal não podem deixar pistas para qualquer
A percepção com relação à crise por parte de Amanda é bem próxima dessa
relatada por João, como podemos verificar retomando uma fala sua:
147
Amanda: [...] Eu tive um distúrbio mental, um distúrbio que a cabeça
fala coisa com coisa. As pessoas estavam... Minha irmã estava
roubando minha identidade.
E quando indagada sobre o que mais acontecia durante as crises, relata como era
Amanda: Acontecia assim... Que tudo pra mim era meu inimigo. Tudo
pra mim era meu inimigo.
Entr.:Todas as pessoas eram seus inimigos.
Amanda: Eram meus inimigos. A minha irmã principalmente. Eu não
se dava bem com a minha irmã de jeito nenhum. Cheguei a odiar.
recusa da realidade, mas sim, de fragmentos dessa realidade que é rejeitado, e por
O amor que sente pelas pessoas será percebido como ódio vindo delas (Freud
amor para o ódio e o segundo é com relação à origem e ao alvo, que passa a ser dirigido
do objeto para o sujeito. Como resultado, o sujeito com paranóia apresenta a fantasia de
exterior, por meio da identificação com ele. O que demanda uma negação do afeto
dispensado à pessoa e, num segundo momento, a projeção desse resultado para o mundo
externo, faz com que este seja percebido como vindo de fora. O processo de
148
identificação com outro objeto que não o próprio eu, nos deixa o rastro de que o
realidade vivida passa a ser substituída pela fantasia expressa durante o delírio que se
estádio do narcisismo. Mas agora com certa elaboração, pois o investimento vem por
parte de um terceiro, um objeto que não deixa de ser percebido e, dessa forma, investido
Por outro lado, Luciana com toda a sua forma peculiar de organização fala de
Ela não se percebe habitando o mundo, diz estar apenas vagando nele. No
entanto, não apresenta uma total ruptura com a realidade, pois faz uso de suas
corporal, observemos:
149
Luciana: Já. Já. [silêncio] Toda mole.
[...]
Luciana: Oh, Oh... Está estralando os ossos, oh. [Mexe os braços e
escuta estalos vindos da omoplata e da clavícula]
justificar tudo o que diz respeito à sua vivência corporal. Assim, a realidade das partes
do corpo dobra-se nas articulações e o barulho emitido por outras partes contribuem
com a construção delirante de que os ossos estão podre e estralando. Outra percepção
corporal que utiliza é a sua aparência física. Por estar bastante magra, diz que está seca.
No entanto, além da aparência, precisamos demarcar que sua questão é subjetiva, mas a
objetal. Para ele, quando uma é mais aplicada a outra, em contrapartida, é mais
especial na paranóia, pois além de ser entendida pela via da projeção do seu
existência dessa antítese entre a libido objetal e a libido do eu. No momento em que a
libido retorna para o eu e deixa de ser investida no mundo, faz com que este se torne
Mas além da recusa da realidade, outra etapa pode ser distinguida como segundo
objetos e pessoas que antes eram investidas e a reparação da perda da realidade que foi
150
recusada. Agora não por meio da restituição da que foi rejeitada, mas com a criação de
Para que a nova realidade possa ser construída e não seja questionada, a
construção delirante utiliza as percepções trazidas pela alucinação para manter certa
relação com algo que diga respeito ao próprio sujeito (Freud, 1924/1996). A alucinação
dados de realidade, estamos nos referindo a percepções próprias que o sujeito tem e são
terá as percepções que o remete ao fragmento de realidade que foi rejeitado, mas não
terá a interpretação do delírio, que parece fazer a costura dessas percepções com o
objetivo de criar a nova realidade delirante. Por outro lado, nos casos em que não
maior dificuldade de realizar o seu papel de reconstrução e restabelecimento, por não ter
um ponto de partida e um fio condutor que o relacione com a vida do sujeito. Sabemos
que nem sempre os dois sintomas aparecem concomitantemente nos quadros clínicos de
não apresente nenhuma forma de alucinação, mesmo que não seja proeminente.
A fala de Carla deixa bem claro para nós uma percepção de que a realidade na
psicose parecer ser “fabricada”, ou melhor, construída. Isso se passa tanto em relação à
151
aqueles rapazes franceses, aquelas meninas francesas. Na Itália, tudo
francês, Italiano. No Canadá tudo diferente. Nos Estados Unidos,
tudo diferente. Americano come alface com tomate, não é assim na
realidade? Desenhado?
[...]
Carla: Então, eu acho que eu só fico me sentindo que eu sou uma
espécie de resp., resp... de observar nas outras pessoas. Mas é claro
que eu não sou um... Uma pessoa de outro planeta, [risos] Um
andróide, mas eu fico sentida.
imagem de si, ao qual tenta fazer uma crítica, mas nos revela que esta realidade do
[risos] Um andróide”. Ou seja, a fala de Carla nos mostra a sua dificuldade de organizar
Outra colocação sua nos chama a atenção por nos fazer retomar a idéia principal
Este trecho nos remete à idéia de que o delírio é a forma encontrada pelo sujeito
para restaurar o seu próprio mundo, onde um novo cenário possa ser construído e torne
152
possível o reaparecimento dos objetos e indivíduos para serem novamente investidos
pela via fantasiosa. O delírio deixa de ser entendido como signo da doença e passa a ser
encarado como o caminho para a cura e seu contorno (De Waelhens, 1990). Juntamente
com a alucinação, sintomas por excelência da psicose, o delírio sugere uma dificuldade,
Carla parece refletir sobre a sua relação com a realidade. Afirma que ver a
novela na realidade é melhor que reparar as coisas como elas são. Ou seja, é melhor
viver nessa realidade construída, possibilitada pela fuga para a psicose, a viver na
realidade como esta se mostra. Para ela, a realidade é definida por meio de sua descrição
como sem cor. É nítida a sua preferência pela realidade construída: “E ver a novela na
Ao final, afirma que não gostaria que existisse diferença entre a realidade
demonstrada pela novela e o que realmente existe, talvez esteja falando da diferença
como a saída encontrada por seu psiquismo para habitar o corpo próprio e estar no
Outras questões importantes podem ser discutidas com base no caso João.
153
Ele demonstra uma tentativa desesperada de investimento na realidade por meio
do investimento nos objetos, aqui representados por qualquer pessoa que estivesse perto
dele. O desespero é tão grande que fala em tentar se conectar com qualquer pessoa na
rua. Qualquer forma de vínculo seria capaz de apaziguar esse desespero e angústia
vivenciados por não conseguir manter o mínimo contato com a realidade e as pessoas
que nela habitam. No entanto, este investimento não é realizado a contento, neste
“Aí parece que eu tenho que fazer alguma coisa. Alguém tá me chamando para fazer
alguma coisa e eu não sei o que é isso”. Quando relata que alguém o chama, existe uma
percebido também neste trecho: “Todos os movimentos que eu fazia parecia que alguém
tava tentando me dizer alguma coisa ou tentando me culpar de alguma coisa”. Mesmo
sendo um movimento narcísico e delirante, essa percepção de que tem alguém querendo
falar consigo e até mesmo culpá-lo por alguma coisa, é, também, um investimento
projeção. Quando se afirma que o que é recusado na paranóia é percebido vindo de fora,
Amanda tem como vindo de sua irmã. O que acontece é a projeção do amor que esta
154
sente pela irmã, mas após sofrer deformações, o afeto é percebido de forma invertida,
como ódio, vindo de fora, tendo como desencadeador a sua irmã. Situação semelhante à
Aqui podemos demarcar uma importante idéia defendida por Freud (1911/1996)
de que na paranóia a pessoa que hoje é percebida como perseguidora, antes era alvo de
amor por parte da pessoa perseguida. Em Schreber, o doutor Flechsig, médico que
cuidou dele no momento de suas crises, foi quem assumiu depois o papel de
perseguidor.
O delírio de perseguição pode ser entendido por duas vertentes. A primeira faz
com que o sujeito delirante experimente uma aguda relação com os outros, mesmo que
esta seja de cunho negativo. Essa relação o ajuda a sair do isolamento que o narcisismo
exacerbado lhe impõe. O segundo benefício que precisa ser marcado para o delírio de
Hoje, fora da crise, Amanda parece ter certa crítica com relação à sua construção
delirante:
155
Já o caso de Luciana, grande desafio para nós durante todo o trabalho, parece
fazer mais sentido agora que chegamos a tratar das questões referentes ao contato do
sujeito psicótico com a realidade. Ela demonstra que sua relação com a realidade é
parece viver narcisicamente “no seu pescoço”, como podemos observar em sua fala:
Dessa forma, a sua construção delirante procura dar sentido e destino para o seu
corpo vivido como apodrecido e seco. Neste momento, o delírio interpretativo tentará
responder à essa questão corporal. O destino almejado é ser enterrada para ficar em paz,
e para este fim é necessário lhe retirar o pescoço. Sua construção delirante poderia
encontrar uma fuga fantástica para que o seu pescoço fosse retirado, mas não é o que
acontece. Ela necessita da ajuda dos médicos para que a cirurgia se realize e o pescoço
seja retirado:
que necessita fazer a cirurgia para tirar o pescoço, mas, por outro, busca um
156
investimento objetal externo – os médicos. A alucinação auditiva traz uma voz de
comando que afirma que os médicos precisam realizar a cirurgia para ajudá-la. No seu
discurso, comparece pela via da alucinação uma satisfação alucinatória de desejo, o que
nos faz afirmar que Deus e os médicos são, de certa forma, reinvestidos maciçamente
enquanto objetos.
mim. Você faz?”. Este investimento tem como objetivo ajudá-la a resolver o impasse
que se desenrola com a sua vivência corporal. E no final dessa entrevista faz um pedido
Pela via do delírio, Luciana nos deixa claro a sua necessidade de falar com o
cirurgião, dessa forma busca reatar o seu contato com algum objeto e com a realidade,
157
ao mesmo tempo em que não abandona o investimento narcísico, a sua questão
corporal.
Neste trecho, podemos perceber como faz diferença para o sujeito quando ele
percebe que alguém está com ele e partilha do seu conhecimento privado com relação à
construção delirante. Ao dizer “Pelo menos tem um que me entende, né?”, Luciana
quem diz que se sente melhor conversando com alguém que a entende. Alguém que não
está com o sujeito para criticá-la, desqualificar ou tratá-la como um simples objeto que
parece estar estragado e necessita de conserto. Fato este comprovado no início de sua
158
Luciana: Não liga. Nem olha pra mim. Eu queria mudar de médico. O
senhor quer ser meu médico?
Esta passagem demonstra a diferença que faz para o sujeito ser ouvido e
Esta afirmação está em íntima relação com a proposta nuclear deste trabalho que
é devolver a fala ao sujeito psicótico e qualificar a sua narrativa, por ser algo que fala
sobre si. Tal proposta possibilita a circulação dessa construção delirante, sua renovação
reconstrução.
Por fim, gostaríamos de pontuar que na última entrevista realizada com ela, a sua
relação com a realidade parecia estar mais estreita, como podemos verificar neste
trecho:
Luciana: [...] Eu queria que eles me liberasse pra mim ir embora pra
casa, para mim cuidar do meu filho. Meu filho que tá lá jogado.
Entr.: O filho da senhora tem quantos anos?
Luciana: Tem dez anos. Eu tenho que ensinar ele a fazer dever de
casa, levar ele no colégio. Limpar a casa, varrer, fazer comida pra
ele. E não tem ninguém pra fazer, entendeu?
Luciana começa a demonstrar preocupação com o filho de dez anos que está em
casa sozinho, isto é, não há ninguém para cuidar dele. Afirma que precisa voltar para
casa a fim de poder cuidar do filho e, em outro momento, diz que o neto também precisa
159
de seus cuidados. Movimento interpretado por nós como um investimento objetal no
realidade produzida pela via delirante. No sentido de não ocorrer risco de qualquer
compatíveis a ela.
A construção delirante tem como objetivo tentar produzir uma resposta para o
que se apresentou como inassimilável para o sujeito (Leite, 2006). Torna-se importante,
retorno de sua energia libidinal para si próprio e o represamento desta energia no eu.
relações objetais abandonadas e reconstruir a realidade de forma que possa ser habitada:
“o delírio é como uma peça posta no lugar de uma rasgadura que se produziu na relação
restituir a libido à pessoas e a coisas na fantasia, pela via delirante. Para ele, este
processo, quando existe, parece ser secundário. Com isso, o autor deixa claro que nem
160
É interessante lembrarmos que o delírio diz respeito à luta que a libido realiza
(Mendonça, 1996).
é colocado no lugar da fenda que se abriu entre o eu e o mundo externo, como resultado
do que foi rejeitado e da satisfação alucinatória do desejo almejado pelo isso (Freud,
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegar ao final deste trabalho é uma grande vitória! Trabalhar com o delírio e a
alucinação, enquanto sintomas psicóticos, foi uma tarefa desafiadora. Acessar o mundo
de um sujeito que tenha um quadro psicótico e solicitar-lhe que fale de sua vida, suas
experiências, sofrimentos, angústia e produção é uma tarefa bastante cara a nós e aos
que abrem as portas de suas vidas para nos possibilitar entrar e conhecer o seu mais
Este processo nos demanda um amplo investimento por gerar uma grande
sem reservas. A eles, o maior custo está em dividir com o outro suas questões mais
íntimas e que muitas vezes são descaracterizadas ou não compreendidas pelas pessoas
dignidade da pessoa que se dispôs a estar conosco durante algumas horas falando sobre
si e o que lhe acomete, bem como os seus processos de remodelamento e a busca por
alucinação. Para esta ciência, estes se apresentam enquanto juízos falsos e alterações da
162
restabelecimento da relação com os objetos e pessoas anteriormente investidos. Já a
alucinação tem como objetivo prover o sujeito de percepções de acordo com a nova
realidade, além de ser o retorno no real do que foi abolido, e, assim, a satisfação
psicótico.
por meio do sintoma – delírio e alucinação – como se articulam três eixos temáticos
posição que o sujeito ocupa perante o sintoma apresentado, o que nos fala o sintoma e
163
No decorrer da construção teórica empreendida, os três eixos foram clareados e
articulados entre si. No próprio conceito freudiano para a psicose, percebe-se o quanto
Realizamos, ainda, uma retomada do Caso Schreber, proposto por Freud, com o
intuito de vislumbrar o que o leitor poderia esperar para o momento em que passamos a
discutir os eixos por meio das falas dos quatro sujeitos participantes do estudo.
compreendida pela leitura flutuante e pelo agrupamento em eixos temáticos com base
Ressaltamos que o corpo para a teoria psicanalítica é o corpo enquanto objeto para o
de forma totalizada.
desmoronamento corporal.
164
Em alguns trechos, percebemos que na esquizofrenia, o eu do sujeito é deposto
de sua função unificante, onde uma parte do corpo é tomada no lugar do corpo todo.
indivíduo.
esquizofrenia este envelope narcísico não se desenvolve de forma satisfatória; fato este
que trará importantes conseqüências para a sua vivência corporal. Além da questão da
desempenhada pelo Eu-pele, que neste caso é frágil e fluido. O que para a psicanálise
freudiana é explicado por meio da rejeição à castração, fazendo com que a separação do
forma ampla na vida do sujeito. Esta falha pode ser observada nas interrupções dos
Momentos em que as palavras não podem simbolizar as coisas, mas assumem o lugar e
o estatuto delas.
quadro clínico e entre quadros diferentes. Carla, que também possui diagnóstico de
165
se apresenta como uma idealização desta. Movimento que parece investir no
exceção do caso e Luciana, mas que está relacionado com o delírio somático que
delírio interpretativo – tem o objetivo de encontrar uma saída para esta vivência por
que consiste no reinvestimento da libido que estava dirigida aos objetos de volta para o
eu.
mantém uma relação íntima consigo. Este ponto relaciona-se com a fragilidade com que
que retornou ao eu. Mas esta elaboração pode não acontecer da melhor forma, fazendo
com que toda a libido fique represada e o mundo seja percebido como em ruínas, sem
investimento e com o menor interesse por parte do sujeito. Aqui o delírio empreenderá a
166
Paralelamente a isso, a auto-referência tem como objetivo a tentativa da
coerente.
meio do corpo próprio, seja como forma de idealização da imagem corporal ou por meio
psicose.
A relação do sujeito com a realidade foi o terceiro eixo analisado neste trabalho.
também exclui o fragmento de realidade que estava ligado a ele. A este processo
construir uma nova que não traga consigo as mesmas questões da que foi repudiada.
Com esse objetivo e com o intuito de não se questionar a nova realidade construída pela
via delirante, as alucinações, quando presentes, trazem percepções que mantenham certa
relação com o sujeito, a partir das quais o delírio será modelado. Ao mesmo tempo em
que se constrói essa nova realidade a fim de que possa habitá-la, o delírio juntamente
167
O delírio se mostra como uma possibilidade de restauração do mundo onde
objetos e pessoas possam ser novamente investidos. Ponto crucial para o entendimento
psicanalítico deste fenômeno não como signo de doença como faz a psiquiatria, mas
como processo de reconstrução e remodelamento que acaba por ser entendido como um
processo de cura.
totalmente abalada, fazendo com que esses indivíduos apresentem o contato preservado
Na paranóia, o delírio tem como objetivo a construção de uma saída para a idéia
projeção, possibilitando a concepção de que a idéia rejeitada veio de fora, mas não sem
que pode ser comparado à cura, além de ser a realização do desejo, ou melhor, os
168
Ao mesmo tempo em que as alucinações e o delírio deflagram a organização
delírio é uma possibilidade de articular a história do sujeito, tornar possível que ele
psicótico a fala. Por mais que em alguns momentos nos deparamos com situações fora
do compartilhado pela maioria das pessoas, o delírio traz a história do sujeito, fala sobre
aberto e merecem uma investigação posterior, entre elas podemos citar a relação
Por outro lado, pensando em outras abordagens para o fenômeno psicótico, outra
várias teorias que buscam entender como um sujeito passa a denunciar a patologia
familiar. Para essa abordagem, em suas mais variadas teorias, a linguagem e/ou a
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comunicação na família são percebidas de fundamental importância no surgimento de
fenômeno complexo não pode ser resumido e estudado apenas por uma de suas facetas,
apenas do início de vários outros que poderão surgir a fim de alargar o conhecimento e
170
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ANEXO 1
____________________________________________________
Assinatura do Voluntário
____________________________________________________
Representante Legal
__________________________________________________
Assinatura do Pesquisador
José Carlos Castelo Branco Filho
CRP 01/10169
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