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JOSÉ CARLOS CASTELO BRANCO FILHO

O SENTIDO DO SINTOMA NA PSICOSE:


UMA LEITURA PSICANALÍTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Psicologia da
Universidade Católica de Brasília, como requisito
parcial para a obtenção do Título de Mestre em
Psicologia.

Orientadora: Drª Deise Matos do Amparo


Co-orientador: Dr. Roberto Menezes de Oliveira.

Brasília
2007
B816s Branco Filho, José Carlos Castelo.
O sentido do sintoma na psicose: uma leitura psicanalítica / José Carlos
Castelo Branco Filho. - 2007.
17Tr. ;

Disseliação (mestrado) - Universidade Católica de Brasília, 2007.


Orientação: Deise Matos do Amparo
Co-orientação: Roberto Menezes de Oliveira

I. Psicanálise. 2. Psicose - sintomas. I. Amparo, Deise Matos do, oriento


.11. Oliveira, Robelio Menezes de, co-orient. 111. Título.

CDU 616.895

Ficha elaborada pela Coordenação de Processamento do Acervo do SIBI - UCB.


Aos sujeitos da pesquisa e
todos que sofrem de algum
acometimento psíquico grave.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que não mediram esforços para a concretização deste mestrado e pela força
que me deram a cada dificuldade que aparecia durante o percurso trilhado.

Aos meus irmãos Ana Fabíola, Karla Cristina e Carlos Henrique, por acreditarem na
realização deste sonho e por me ampararem sempre.

A professora Deise Matos do Amparo, por abraçar a proposta desta dissertação e pelas
orientações realizadas nesses dois anos.

Ao professor Roberto Menezes de Oliveira pelas leituras realizadas.

Aos professores do programa de Mestrado da Universidade Católica de Brasília, pela


dedicação dispensada às matérias ministradas durante o curso.

Aos professores Sandra Francesca C. de Almeida e Ileno Izídio da Costa, pela participação
no exame de qualificação e pelos importantes direcionamentos sugeridos.

A professora Tania Inessa Martins de Resende, que me apresentou o mundo da


psicopatologia de forma tão humana e apaixonante. Pela orientação do trabalho
monográfico na graduação, germe deste, e no estágio em Saúde Mental, no Instituto de
Saúde Mental do Distrito Federal, responsável pelo direcionamento profissional assumido.

Aos psiquiatras do Hospital de Base do Distrito Federal, que ajudaram no recrutamento dos
sujeitos da pesquisa.

A Amanda, Carla, João e Luciana, que abriram as portas de suas vidas – sem reservas – e
com grande disponibilidade me contaram suas histórias nas entrevistas clínicas.

Ao amigo Roni Ivan, pela companhia e pela ajuda em vários momentos, principalmente
nas viagens a São Paulo e Rio de Janeiro para realização de pesquisa bibliográfica.

Aos amigos Fabrício Santos e Marco Antônio pelas leituras e revisões de texto e a amiga
Andréia Trigueiro pelo auxílio e presteza na tradução do resumo.

A amiga Simone Delgado pelas ilustrações para a defesa.

Aos colegas do Núcleo de Psicologia do Hospital de Base pelo apoio e incentivo durante
esses dois anos.

Aos amigos que estiveram perto e me apoiaram e os que souberam entender a distância
durante este tempo.

A todos que contribuíram de alguma forma com a realização deste grande sonho. Vocês
estão no meu coração. Obrigado!
“A formação delirante, que presumimos ser o
produto patológico, é, na realidade, uma
tentativa de restabelecimento, um processo de
reconstrução” (Freud, 1911, p. 78).
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar, a partir de uma leitura psicanalítica, a
relação da produção de sintomas, com a tentativa de organização psíquica de sujeitos com
diagnóstico de psicose. Contrariando a idéia psiquiátrica de que o delírio é um juízo
patologicamente falseado e a alucinação uma alteração da percepção, toma-se como base a
proposição freudiana de que o delírio é uma tentativa de reconstrução e restabelecimento e
a alucinação pode ser compreendida como retorno do que foi abolido no real, implicando
uma satisfação alucinatória de desejo. Além disso, nos casos em que a alucinação e o
delírio são apresentados concomitantemente, a alucinação tem a função de prover a
construção de uma nova realidade de percepções, a fim de fundamentar e sustentar o
processo delirante. Para analisar essas produções sintomáticas, em particular o delírio e a
alucinação, colocou-se em questão a dimensão corporal, a problemática do narcisismo e a
relação com a realidade. Este estudo configurou-se como uma pesquisa clínico-qualitativa
de quatro sujeitos com diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia e transtorno delirante.
Utilizou-se como instrumento entrevistas clínicas. Com a finalidade de qualificar e
sistematizar as falas colhidas nas entrevistas, realizou-se a análise de conteúdo e
hermenêutica das falas dos indivíduos, buscando uma interpretação psicanalítica.
Observou-se que na psicose o sintoma também tem o objetivo de amenizar ou eliminar o
que causa desequilíbrio e, dessa forma, o delírio e a alucinação são fenômenos importantes
no processo de reconstrução da realidade, restabelecimento do vínculo com os objetos –
pessoas e coisas – anteriormente investidos e remodelamento de sua imagem corporal e do
eu. Além disso, percebe-se que o delírio traz a tona questões relacionadas com a história de
vida do sujeito e trata-se de uma tentativa de encontrar um lugar para si no mundo onde
possa voltar a existir. Assim, fica evidente a importância de devolver a fala ao sujeito
psicótico e ouvi-lo no que lhe é mais pessoal. Em síntese, este trabalho pretendeu refletir
sobre a redução desses fenômenos a produtos apenas patológicos e buscou lhes atribuir a
devida importância para o entendimento do sujeito psicótico e do processo que se
desenrola na psicose. Nesse sentido, qualificar a fala desses sujeitos é fundamental na
atuação do profissional que se relaciona com eles como interlocutor deste processo.

Palavras-chave: Delírio, Alucinação, Corpo, Narcisismo, Realidade.


ABSTRACT

The present work has as objective to investigate, starting from a reading psychoanalytic the
relationship of the production of symptoms, with the attempt of psychic organization of
subject with psychosis diagnosis. Thwarting the psychiatric idea that the delirium is a
judgment distorted pathological and the hallucination an alteration of the perception, it is
taken as base the Freudian’s proposition that the delirium is a reconstruction attempt and
re-establishment and the hallucination can be understood as return than it was abolished in
the Real, implying a hallucinatory satisfaction of desire. Besides, in the cases in that the
hallucination and the delirium are presented concomitant, the hallucination has the function
of providing the construction of a new reality of perceptions, in order to base and to sustain
the delirious process. To analyze those symptomatic productions, in particular the delirium
and the hallucination were placed in subject the corporal dimension, the problem of the
narcissism and the relationship with the reality. This study was configured as a clinical-
qualitative research of four subjects with psychiatric diagnosis of schizophrenia and
delirious upset. It was used as instrument clinical interviews. With the purpose of to
qualify and to systematize the speeches picked in the interviews, he/she took place the
content analysis and hermeneutic of the individuals' speeches, looking for an interpretation
psychoanalytic. It was observed that in the psychosis the symptom also has the objective of
to liven up or to eliminate what it causes unbalance and, of that form, the delirium and the
hallucination they are important phenomena in the process of reconstruction of the reality,
re-establishment of the entail with the objects - people and things - previously invested and
remaking of its corporal image and of the me. Besides, it is noticed that the delirium brings
the subjects related with the history of life of the subject and it is an attempt of finding a
place for itself in the world where exists again. Thus, it is evident the importance of to
return the speech to the psychotic subject and to hear it in what it is it more personal. In
synthesis, this work just intended to contemplate about the reduction of those phenomena
to products pathological and it looked for them to attribute the due importance for the
psychotic subject's understanding and of the process that is uncoiled in the psychosis. In
that sense, to qualify the speech of those subjects is fundamental in the professional's
performance that links with them as speaker of this process.

Keywords: Delirium, Hallucination, Body, Narcissism, Reality.


SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ............................................................................................. 04
RESUMO .................................................................................................................. 06
ABSTRACT .............................................................................................................. 07

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 09

CAPÍTULO 1
PSICOSE E SINTOMA NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA ...................... 24

1.1 – Psicose: mecanismo de defesa, relação com a realidade e narcisismo ...... 24


1.2 – Esquizofrenia e paranóia: formação de sintoma e pontos de fixação ...... 41
1.3 – A estrutura do delírio de Schreber .............................................................. 59
1.4 – Psicose e sintoma: uma questão a ser explorada ........................................ 71

CAPÍTULO 2
NATUREZA DO PROBLEMA E MÉTODO ....................................................... 76

2.1. Participantes .................................................................................................... 77


2.2. Instrumento ..................................................................................................... 79
2.3. Procedimento para coleta de dados ............................................................... 79
2.4. Procedimento para análise dos dados ........................................................... 80
2.5. Aspectos éticos ................................................................................................. 82

CAPÍTULO 3
O SENTIDO DO SINTOMA NA PSICOSE: A RELAÇÃO COM O CORPO,
O NARCISISMO E A REALIDADE ..................................................................... 84

3.1. Apresentação dos casos clínicos ..................................................................... 85


3.2. A questão do corpo .......................................................................................... 107
3.3. A problemática do narcisismo ....................................................................... 130
3.4. A relação com a realidade .............................................................................. 144

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 171

ANEXO 1 .................................................................................................................. 177


INTRODUÇÃO

Propor um trabalho sobre a função do sintoma na psicose não é um caminho

fácil. Para trabalhar com este tema, é necessário que se desprenda de uma “força de

gravidade” psíquica que remete o sujeito a uma imagem padronizada de racionalidade

(Bodei, 2003). Tal procedimento se torna indispensável, uma vez que, ao se deparar

com a fala do psicótico, que, embora pareça absurda e distorcida, pode-se fazer

vislumbrar um mundo não totalmente incompatível com o mundo partilhado pela

maioria das pessoas.

Para que seja possível entrar nesse universo delirante e alucinatório, deve-se

deixar de ver tais experiências como algo homogêneo espacial ou temporalmente. Além

disso, é necessário realizar um salto de um mundo vital a um outro mundo, onde todos

possuem uma nebulosa possibilidade de habitar. Por exemplo, delírio e razão não são

pólos opostos; dessa forma, não se deve pensar que o delírio represente a completa

irracionalidade ou a falta de sentido, ou seja, considerando-se as variáveis individuais, é

possível demonstrar certa lógica no fenômeno delirante (Bodei, 2003).

É esse salto, tratado por Bodei (2003), de um mundo ao “outro mundo”, que este

trabalho pretende fazer. Visitar este universo do sujeito psicótico para tentar

compreendê-lo um pouco mais.

Ao se tentar definir o fenômeno delirante e alucinatório, esbarra-se em sérios

problemas e nenhuma literatura apresenta uma definição que satisfaça a todos os

aspectos.

9
A palavra delírio é derivada da metáfora camponesa de exceder a lira (leira), ou

seja, de de-lirar; de estar no canteiro entre dois sulcos (Bodei, 2003). No entanto, a

definição de delírio não pode se resumir a “loucura evidente”, “juízos falsos” ou

“convicções estranhas“, uma vez que o patológico no delírio não é propriamente o

conteúdo, mas, sim, a posição que ele toma na vivência do indivíduo, a sua referência

ao eu. Dessa forma, o que constitui a doença não são os objetos da imaginação e da

percepção, mas, sua significação na vida do sujeito. Tal posicionamento já era

explicitado nas definições antigas do delírio: “referência doentia do eu, perda da

referência sem motivo, crença errônea doentia referida ao eu, consciência anormal da

significação” (Schulte & Tölle, 1972, p. 158).

Em sentido oposto, a perspectiva psiquiátrica defende que as idéias delirantes ou

o delírio são juízos patologicamente falseados. Assim, para a psiquiatria, ao tentar

entender melhor o fenômeno do delírio, é preciso levar em consideração três

características essenciais: i) o indivíduo delirante apresenta uma convicção irrefutável,

não sendo possível se colocar em dúvida a veracidade do seu delírio; ii) o delírio é

irremovível, não cabendo qualquer forma de modificação pela experiência objetiva e iii)

o conteúdo do delírio é de caráter impossível (Jaspers, 2000).

Alguns autores, entre eles Dalgalarrondo (2000), acrescentam, nessa perspectiva,

a idéia de que o delírio também é uma produção associal; ou seja, ele precisa ser a

convicção de uma só pessoa, não podendo ser “repartido” com outros indivíduos. Para

estes autores, ao delirar, o indivíduo deixa o seu universo social e passa a produzir e

utilizar símbolos individuais, contrariando o seu grupo social.

Nesta mesma lógica, o delírio também é entendido como uma idéia ou crença

falsa ─ inabalável ─ que se apresenta fora do contexto educacional, cultural e social do

10
sujeito, e é mantida com extraordinária convicção e certeza subjetiva. Apesar disso, do

ponto de vista fenomenológico, o delírio é indistinguível de uma crença verdadeira

(Sims, 2001).

Em um sentido semelhante, Scharfetter (1997) o define como uma convicção

particular e privativa, determinante da vida sobre si e sobre o mundo. Em contrapartida,

para ele, assim como para outros autores, no delírio, o patológico não é o conteúdo,

mas, sim, a relação alienada com os outros e com o mundo. Para este autor, a realidade

delirante é a realidade de cada ser humano isolado. E conjuntamente consigo, do seu

mundo, separando-o da comunidade.

Entretanto, contrariando a posição psiquiátrica que restringe o delírio a juízo

falso e produção associal, Freud (1911/1996) já defendia, e será a idéia defendida neste

trabalho, que a formação delirante, produto presumidamente patológico, é, na realidade,

uma tentativa de restabelecimento do vínculo com os objetos e pessoas anteriormente

investidos e um processo de reconstrução, ou seja, de construção de uma nova realidade

no sentido de reparar a perda da realidade que foi repudiada.

Dessa forma, tem-se que o delírio é a maneira encontrada para reparar o dano

causado e restaurar as relações do sujeito com a realidade. Neste ponto, Freud contrapõe

enfaticamente a idéia defendida por Dalgalarrondo de que o delírio é uma produção

associal e que o indivíduo delirante contraria o seu grupo social ao passar a produzir

símbolos individuais. Para Freud, este mecanismo, contrariamente, é exercido no

sentido de restabelecer os laços com a realidade, mesmo que com uma realidade

produzida por ele, e, assim, com os sujeitos e a esfera social.

11
Por outro lado, a alucinação é definida na psiquiatria como uma percepção de

um objeto sem que este esteja presente, ou seja, sem o estímulo sensorial concernente

(Dalgalarrondo, 2000).

Assim como acontece com o delírio, a psiquiatria trata a alucinação como signo

de doença por designá-la como uma alteração da representação, ou melhor, uma falsa

percepção. De certa forma, esta visão da psiquiatria acerca do fenômeno alucinatório

não é plenamente compartilhada pela psicanálise. Para esta segunda abordagem, a

alucinação é entendida como um remendo sobreposto à fenda que se abre em

decorrência do conflito entre o eu e o mundo externo (Freud, 1924[1923]/1996). Esse

remendo realizado pela alucinação diz respeito à substituição do fragmento de realidade

que foi abolido. Além disso, ela é o retorno do que foi rejeitado e trata-se também da

realização do desejo almejado pelo isso1: germe do conflito que deu origem à psicose

por meio de uma conciliação entre as partes envolvidas.

Assim, visto que se coloca como formação de compromisso, a alucinação traz

consigo algo da ordem do desejo, e, ao mesmo tempo, da ordem da defesa (Alonso,

2006). “O sintoma é figuração da fantasia inconsciente sexual, e surge como

conseqüência do recalque e do seu fracasso” (p. 156).

Freud (1900/1996) aponta a alucinação como o primeiro mecanismo psíquico

que o ser humano faz uso na tentativa de eliminar o desprazer causado por uma

necessidade interna. Explica este fato retomando a vida de uma criança na mais tenra

idade, que ao sentir fome chora ou emite outros comportamentos sugestivos dessa

necessidade, mas a situação não se altera, pois é necessária a satisfação do estímulo

interno de alguma maneira. No entanto, após um período em que a satisfação ocorre, a


1
Optou-se pela utilização da nomenclatura isso, eu e supereu por ser a tradução correta dos termos
utilizados por Freud, além de estar mais próximo da proposta do trabalho no momento em que passarmos
a tratar das questões referentes ao eu do sujeito.

12
percepção específica relacionada com esta satisfação, no caso do bebê a nutrição,

associa-se com um traço de memória da excitação produzida pela necessidade. Da

próxima vez que a necessidade aparecer, o próprio psiquismo começará a representar ao

retomar a percepção associada à satisfação no sentido de restabelecer a situação da

satisfação original.

É justamente o reaparecimento da percepção que Freud define como a satisfação

do desejo. Segundo ele, “o caminho mais curto para essa realização é a via que conduz

diretamente da excitação produzida pelo desejo para uma completa catexia da

percepção” (Freud, 1900/1996, p. 595). O investimento dessa percepção é a forma

encontrada para a realização do desejo, mesmo que o objeto causador da satisfação não

esteja presente. Caminho este que transforma o desejo em alucinação.

O sonho utiliza-se desse mesmo mecanismo primário para realizar a satisfação

do desejo. Ao ser abandonado por permanecer ineficaz durante a vigília, passa a ser

utilizado durante o sono. “O sonho é um ressurgimento da vida anímica infantil já

suplantada” (Freud, 1900/1996, p. 596). De forma semelhante, este método volta a ser

utilizado na psicose durante a vigília. Aqui encontramos a explicação para a outra

característica da alucinação: que além de ser a satisfação do desejo, é também o retorno

do que foi recusado, que volta no real, em decorrência do afrouxamento característico

da censura na psicose. Essa regressão alucinatória passa então a dirigir o curso do

aparelho psíquico do sujeito. O retorno do que foi abolido delega à alucinação um

caráter aflitivo, por ter relação com o que foi rejeitado. No caso da psicose essa

angústia, como resultado do processo regressivo de satisfação, é menor, por ser

percebido vindo de fora.

13
Juntamente com essas possibilidades para este fenômeno, nos casos em que o

sujeito apresenta o delírio e a alucinação concomitantes, essa segunda é o meio pelo

qual se iniciará toda a construção delirante, já que o delírio necessita de percepções que

estejam de acordo com a nova realidade que será construída para “justificar”, ou

melhor, para sustentar e fundamentar a construção dessa nova realidade. Para que o

delírio consiga realizar o seu objetivo de remodelamento da relação do eu com a

realidade, o ponto de partida é justamente a alucinação, por trazer consigo algo que tem

relação, de alguma forma, com o próprio sujeito. A alucinação realiza o papel de

remendo dos fragmentos de realidade e, assim, do eu com a realidade (Freud,

1924/1996).

Na esquizofrenia, o conteúdo e o afeto da idéia incompatível são totalmente

recusados e mantidos longe do eu por meio do desligamento parcial do mundo externo.

Neste momento, as alucinações fazem a vontade do eu e o apóiam na defesa com

relação à idéia originalmente incompatível. Na paranóia, tanto o afeto quanto o

conteúdo da idéia incompatível são mantidos, porém são projetados para o exterior.

Neste caso, as alucinações, quando presentes, são percebidas de forma hostil ao eu, por

meio da perseguição que é alvo, mesmo assim exercem o papel de apoiar a defesa

inerente à psicose, como na esquizofrenia. Mas nem sempre elas são hostis ao eu, no

caso dos delírios de grandeza, as alucinações de fundo megalomaníaco são percebidas

de forma agradável, não necessitando serem rejeitadas (Freud, 1950[1892-1899]/1996).

Freud (1911/1996) demonstra como acontece todo esse processo de construção

delirante, com a participação da alucinação, por meio do estudo do livro Memória de

um doente dos nervos, que embasou a publicação do Caso Schreber. Neste texto fica

evidente o processo de reconstrução e restabelecimento empreendido pelo psiquismo de

14
Schreber, pela via delirante, no sentido de lidar com a idéia intolerada que um dia lhe

ocorreu em semi-vigília: de que deveria ser realmente muito bom ser mulher e

submeter-se ao ato de cópula. No momento em que passarmos a desenvolver as idéias

de Freud acerca da paranóia, detalharemos melhor as contribuições deste caso ao

desenvolvimento da teoria da paranóia e da psicose.

Como demonstramos, em sua obra Freud defende que a psicose é uma “doença”

da defesa, ou seja, “é a expressão mórbida da tentativa desesperada que o eu faz para se

preservar, para se livrar de uma representação inassimilável que, à maneira de um corpo

estranho, ameaça sua integridade” (Zolty, 2001, p. 36). Percebe-se, portanto, o

movimento de Freud no sentido de restabelecer a função da doença para a reorganização

psíquica do sujeito.

Nesta mesma direção, defende-se que a função do sintoma é fazer desaparecer,

na maioria das vezes, o elemento que está causando a perturbação, o desequilíbrio

(Dahlke & Dethlefsen, 2002). Dessa forma, o que importa não é tanto o comportamento

apresentado, mas a posição do sujeito diante desse sintoma (Cromberg, 2000).

É justamente a posição subjetiva do indivíduo na presença do sintoma que

caracteriza o diagnóstico psicanalítico e não apenas a sua conduta (Cromberg, 2000).

Na perspectiva psicanalítica, o sintoma possui duas funções básicas: sugere uma

dificuldade, ao passo que também é uma tentativa de enfrentá-la (Bell, 2005).

Sobre esse aspecto, temos a seguinte explicação de Scharfetter (1997):

[...] o doente com delírio de perseguição experimenta uma intensa


relação com os outros (ainda que com caráter negativo) e através dela
sai do seu isolamento: ‘é preferível ser perseguido do que estar só’; ou
que o delírio de perseguição ajuda a evitar também uma proximidade
insuportável, e que o doente, no seu delírio de redenção e de cura, se
preocupa altruisticamente pelas outras pessoas, dando ambos lugar a
uma promoção do papel social (p. 245).

15
Esta posição de Scharfetter também corrobora a crítica acerca da idéia defendida

por Dalgalarrondo, que o delírio seria uma produção associal, fazendo com que o

indivíduo se distanciasse de seu grupo social. O delírio de perseguição seria a forma

encontrada para se relacionar com outra pessoa, mesmo que este seja percebido como

seu perseguidor. Da mesma forma, o delírio de redenção e de cura faz com que o sujeito

delirante demonstre a sua “preocupação” com outros indivíduos.

É preciso levar em consideração que o sujeito delirante não consegue realizar

“contato” com algumas pessoas ou situações da maneira que a maioria das pessoas o

fazem. Nestes casos, a forma que encontra para estabelecer esse “contato” é por meio de

seu delírio, como defende Freud, onde o sujeito empreende uma tentativa de

restabelecer o vínculo com pessoas e objetos e um processo de construção de uma nova

realidade que possa ser habitada por ele.

Paralelamente a isso, os aspectos criativos do delírio exercem sua função

comunicativa em uma dialética, onde, por um lado, fica a vontade de comunicar e por

outro, a vontade, ou até a necessidade, de esconder. Essa dialética pode ser justificada

por meio do duplo movimento exercido pelo processo de defesa, onde por um lado

procura diminuir a consciência a respeito dos conteúdos que causam desprazer e, por

outro, pressiona para que esses conteúdos se manifestem (Bodei, 2003). Sobre este

aspecto, pode-se afirmar que “o delírio é uma fala necessária que faz sofrer” (Coriat &

Pisani, 2001, p. 59).

Dessa forma, observa-se no delírio uma particularidade, de certa maneira

obrigatória, uma vez que o sujeito delirante viu um mundo, do qual foi expulso, se

desmoronar ao seu redor: obrigando-o a encontrar um suplente para este mundo. Ou

16
seja, “quando a vida se torna invivível, deve-se inventar uma vida nova” (Bodei, 2003,

p. 11).

Alguns sujeitos ajudam a entender o delírio como apresentado nessa passagem.

Como por exemplo, um deles disse a Storch (1965), citado por Scharfetter (1997, p.

245): “Eu construo o meu próprio mundo, a fim de superar tudo o que é lamentável”.

Outro dizia a Kretschmer (1963) também citado por Scharfetter (1997, p. 245): “Você

pode dizer o que quiser da realidade, eu acho-a horrível”. Nesses fragmentos percebe-se

que, em muitos casos, a realidade que se impõe ao sujeito é tomada como intolerável,

exigindo a construção de uma nova realidade, pela via delirante, onde encontre um

espaço para si.

Com efeito, o sujeito delirante não deseja simplesmente abandonar


uma realidade hostil, negando, com tenacidade, o que contradiz seu
delírio. Para evitar o sofrimento – na expectativa de uma catástrofe
preste a acontecer ou intuída como iminente – reconstrói o mundo em
que viveu até aquele momento, lançando mão dos materiais
disponíveis (Bodei, 2003, p. 45).

Assim, não é difícil perceber que a psicose desdobra e desenvolve uma razão

lógica em que o delírio aparece sob a forma de uma lógica sim, mas de uma outra lógica

particular (Fillizola, 1994, p. 19). O que pode ser traduzido na afirmativa de que as

lógicas que o delírio traz não são dotadas de uma lógica racional cartesiana,

necessitando ser avaliadas a partir de casos individuais. Essa lógica própria e individual

exige uma grande sabedoria por parte do protagonista e do terapeuta (Bodei, 2003).

É possível perceber também que o psicótico não é afetado em sua totalidade,

uma vez que, nos momentos que não está delirando, o sujeito demonstra ter uma relação

sadia com o mundo; e, inversamente, o sujeito normal pode ter um episódio delirante e

nem por isso pode-se nomeá-lo psicótico (Zolty, 2001).

17
Em consonância com estas idéias, o delírio e a alucinação podem ser entendidos

como uma manifestação do inconsciente do indivíduo, que se mostram menos

disfarçados proporcionalmente ao se tratar de uma psicose mais regressiva. Além disso,

esses fenômenos tratam da realização do desejo. O delírio é também, em sua essência,

uma tentativa de restauração do mundo, ou seja, uma possibilidade de reconstrução do

cenário onde os objetos e outros indivíduos possam reaparecer e serem novamente

investidos, isso de forma fantasiosa. “Assim, longe de o delírio ser a marca da doença,

ele já é o caminho para a cura e seu esboço. [...] Entrementes, o homem enfermo

reconquista uma relação com as pessoas e as coisas deste mundo [...]” (De Waelhens,

1990, p. 74). Além de ser uma tentativa de restauração da realidade negada, o delírio é

também a satisfação do inconsciente. Ainda, as alucinações são originadas em traços de

memória, antigas representações e julgamentos que retornam sem que sejam assimiladas

como percepções do sujeito (Freud, 1924/1996). Elas aparecem como algo que veio de

fora e buscam substituir o fragmento de realidade abolido, ao mesmo tempo em que são

as satisfações alucinatórias do desejo.

Nesta mesma direção, com o intuito de responder a respeito da significação da

construção delirante, Herrmann (2004) afirma que a significação para o psicótico

deposita-se no plano da compreensão, mesmo se o que é compreendido não pode ser

articulado, nomeado e implantado pelo indivíduo em um contexto que possa explicar

essa compreensão. “É no próprio delírio do sujeito psicótico que se encontra algo sobre

a sua verdade pessoal” (p. 287).

Seguindo essa afirmação de que o delírio revela a verdade pessoal do sujeito

delirante, defende-se que é necessário entender e respeitar o discurso psicótico, pois

trata-se de um discurso articulado e que fala do sujeito em questão: o próprio psicótico.

18
A produção delirante e a linguagem desse indivíduo trazem informações e conteúdos

importantes sobre ele. Neste sentido, é necessário que o psicótico vivencie a sua

psicose, e ao profissional (analista, psicólogo, psiquiatra, etc.) resta acompanhá-lo e

decifrar essas informações. Ou seja, acompanhar a angústia, o sofrimento, a criatividade

e o discurso peculiar que a situação de sofrimento torna possível e decifrar a

organização psíquica que se formou frente a essa situação (Filizzola, 1994; Katz, 1991).

Diante do que foi exposto, é interessante observar, como já demonstramos, a

diferença na forma de entender os sintomas e os quadros psicopatológicos entre a

psicanálise e a psiquiatria. As classificações sugeridas por Freud tomam como base a

etiologia – conflito psíquico – e não apenas a sintomatologia, como a psiquiatria. Dessa

forma, percebe-se uma diferença essencial entre estas duas perspectivas. A psiquiatria

qualifica os sinais e sintomas como signos de adoecimento mental e indicadores de

disfunções psíquicas. Por outro lado, a psicanálise qualifica o sujeito e o sentido da sua

fala buscando identificar sistemas lógicos subjacentes e dinâmicas psíquicas específicas.

Nesse sentido, busca estabelecer, na psicose, conexões com a questão corporal, o

narcisismo e a relação com a realidade.

Estes três temas são importantes ao se trabalhar com o campo da psicose na

perspectiva psicanalítica e podem ser desvelados a partir dos delírios e alucinações

apresentados pelos sujeitos. A forma com que o sujeito lida com o seu próprio corpo, e

assim o seu eu, bem como o investimento narcísico de que este é alvo são frutos da

relação do sujeito com a realidade, ao mesmo tempo em que determinam como essa

relação será desempenhada. Deparamo-nos com uma via de mão tripla, ao mesmo

tempo em que um influencia e é influenciado pelo outro também será influenciado pelo

terceiro.

19
Diante de todas essas possibilidades de entendimento e interpretação para o

processo delirante e alucinatório, a presente pesquisa pretende restabelecer a voz ao

sujeito psicótico, como propõe a psicanálise, no intuito de alargar os conhecimentos

sobre estes fenômenos ainda nebulosos e compreender como se articulam as questões

referentes ao corpo, a problemática narcísica e a relação com a realidade na psicose.

Assim, por meio de metodologia qualitativa com o uso de extratos clínicos de

entrevistas com indivíduos diagnosticados com esquizofrenia ou transtorno delirante,

pretendeu-se investigar a posição que o sujeito toma diante das alucinações a qual

apresenta e do delírio que procura organizar o cenário psíquico desse sujeito. Com isso

buscamos identificar o que esses sintomas dizem do sujeito em questão articulando com

a análise da relação estabelecida com o corpo, o narcisismo e a realidade.

O estudo objetivará o entendimento do conteúdo e do lugar que o sintoma

psicótico assume na construção simbólica do sujeito, e para isso, propõe enxergar o

delírio da forma que Freud (1911/1996) sugere: como um processo de construção de

uma nova realidade e uma tentativa de restabelecimento do vínculo com pessoas e

coisas anteriormente investidos. Neste sentido, a construção delirante será analisada

seguindo a idéia de que é a saída encontrada pelo sujeito, no sentido de lidar com a

desorganização psíquica vivenciada por ele.

Buscar-se-á, também, refletir a respeito da redução do delírio e da alucinação à

idéia de doença, ou apenas sintoma como acontece na perspectiva psiquiátrica, com o

propósito de abrir as portas para se refletir sobre a intervenção terapêutica em saúde

mental.

Dentre as várias classificações que possuem o delírio e/ou a alucinação como um

dos sintomas, a paranóia, ou transtorno delirante segundo a nomenclatura psiquiátrica,

20
tem o delírio como sintoma predominante. Outra patologia em que a alucinação é um

dos sintomas mais evidente, juntamente com os delírios, em alguns casos, é a

esquizofrenia. Neste sentido, no presente trabalho, a escolha desses quadros clínicos

decorre do fato de o delírio e a alucinação serem manifestações importantes nas duas,

onde na primeira, o delírio é mais sistematizado e “puro” e, na segunda, já existem

outros sintomas e questões que podem influenciar no curso do delírio, além da

esquizofrenia ser considerada a psicose típica. É importante ressaltar que nem todo

quadro de esquizofrenia e paranóia comportam o delírio e a alucinação concomitantes.

Observa-se ainda que apesar da divergência na nomenclatura entre a psiquiatria

e a psicanálise para o quadro da paranóia, esta será a denominação adotada durante o

trabalho, por ser a forma com que a psicanálise, posição teórica adotada, ainda a

denomina. No entanto, é importante salientar que os sujeitos que farão parte da pesquisa

receberam o diagnóstico médico-psiquiátrico de transtorno delirante com base no CID-

10. Quando nos referirmos ao diagnóstico, a nomenclatura pertinente será transtorno

delirante.

No estudo da literatura pertinente e com base nas idéias apresentadas de que o

delírio traz questões da realidade pessoal do sujeito e que se trata de um processo de

restabelecimento e a posição defendida a respeito da alucinação como retorno no real do

que foi abolido e satisfação alucinatória do desejo, percebe-se que algumas questões

ainda permanecem em aberto, como por exemplo: 1) Qual a implicação do sujeito na

produção do sintoma? 2) Qual o trabalho que o sintoma realiza na organização psíquica

do sujeito? 3) Como se dá esse processo de construção e restabelecimento da realidade

realizada pelo sintoma? 4) Qual a relação do sintoma com a tentativa de organizar o

corpo e reinvestir o narcisismo? É em busca de respostas ou indícios para essas questões

21
que propomos uma investigação acerca da construção delirante e o processo

alucinatório com indivíduos acometidos por esquizofrenia e paranóia.

Nesse sentido, o objetivo geral da pesquisa foi investigar a relação do sintoma

psicótico com a organização psíquica do sujeito com diagnóstico de esquizofrenia ou

transtorno delirante. Especificamente pretende-se analisar na fala do psicótico a relação

da produção do delírio e da alucinação com a tentativa de restabelecimento da relação

com a realidade, o reinvestimento no corpo e a busca de reorganização narcísica;

buscar-se-á analisar, também, a função do delírio no restabelecimento da organização

psíquica do sujeito psicótico e, as implicações do sujeito no processo de construção do

processo alucinatório e delirante.

No primeiro capítulo serão apresentados os fundamentos teóricos da perspectiva

psicanalítica no sentido de trazer alguns pontos conceituais dessa abordagem ao

fenômeno psicótico. Para isso, o presente trabalho trará uma revisão de literatura sobre a

psicose, de forma particular da esquizofrenia e da paranóia, bem como do papel do

delírio e da alucinação, quando presentes, em ambas.

O segundo capítulo apresenta o método utilizado para o estudo empreendido. A

metodologia utilizada caracteriza-se como qualitativa, onde se assumiu uma postura

clínico-qualitativa. Foram realizadas entrevistas clínico-psicológicas com quatro

sujeitos ─ sendo dois com diagnóstico de esquizofrenia e dois de transtorno delirante ─

entrevistados na unidade de psiquiatria de um hospital terciário de Brasília. As

entrevistas foram analisadas na perspectiva da análise do conteúdo e da hermenêutica

das falas, de onde foram retirados extratos clínicos para embasarem o capítulo referente

aos resultados e discussões.

22
Já o terceiro capítulo, refere-se aos resultados e discussões dos extratos clínicos

selecionados e divididos nos eixos temáticos que nortearam o estudo. São eles: a

questão do corpo, a problemática do narcisismo, a relação com a realidade e os objetos

na psicose.

Nas considerações finais, apresentamos algumas reflexões e possíveis

conclusões que puderam ser extraídas do presente trabalho, que busca articular a teoria

e a prática salientando a importância que a construção delirante e o processo

alucinatório desempenham no entendimento e tratamento dos sujeitos com um quadro

psicótico.

23
CAPÍTULO I

PSICOSE E SINTOMA NA PERPECTIVA PSICANALÍTICA

1.1 – Psicose: mecanismo de defesa, relação com a realidade e narcisismo

Em toda a obra freudiana é possível verificar a grande dedicação que Freud

demonstrou ao estudo das neuroses. Realizou importantes descobertas com relação às

“doenças mentais” por meio de estudos realizados principalmente com suas pacientes

histéricas. Como por exemplo, a descoberta de que o principal fenômeno psíquico que

está na gênese da histeria é o recalcamento. Este processo seria um mecanismo de

defesa do eu e sua função seria manter inconscientes as representações (pensamentos,

imagens, recordações) que poderiam provocar desprazer se fossem mantidas na

consciência. No entanto, mesmo no inconsciente, esse material recalcado, isto é, que foi

levado para o inconsciente, poderia provocar sintomas por meio de uma formação de

compromisso entre as forças das representações recalcadas e as forças que ocasionaram

o recalcamento (Sterian, 2001).

Nesse sentido, para a perspectiva psicodinâmica, o comportamento anormal teria

sua gênese em conflitos intrapsíquicos e seria resultante da seqüência: o eu se defende

contra um impulso instintual do isso por meio da repressão. No entanto, o material

recalcado trava uma batalha contra essa saída do eu que acaba por criar uma

representação substituta onde, por meio de uma conciliação, se impõe ao eu e conduz ao

sintoma (Freud, 1924[1923]/1996).

24
Percebe-se que Freud dá início a uma nova forma de ver a doença mental e

começa a se interessar por novos dados que até então não eram considerados no campo

da psicopatologia.

No artigo As neuropsicoses de defesa, Freud (1894/1996) se propõe a explicar os

sintomas da histeria e das obsessões e acaba por chegar ao campo das psicoses. Teoriza

que, nas duas primeiras, a defesa contra a representação incompatível ocorreria por

meio de sua separação do afeto, o que faz com que ela fique enfraquecida. Entretanto,

mesmo que enfraquecida e isolada, a representação continua na consciência e acaba por

formar sintomas como soluções de compromisso, conforme explicado acima.

Em contrapartida, a psicose apresenta uma forma de defesa mais poderosa, onde

o eu rejeita a representação incompatível e seu afeto, comportando-se como se esta

nunca tivesse acontecido. No momento em que esta defesa ocorre, o indivíduo fica

submetido por uma “confusão alucinatória”. Em outras palavras, Freud (1894/1996) diz

que o eu afastou-se da representação incompatível por meio da estruturação de uma

psicose.

Neste momento, inicia-se um grande caminho percorrido por Freud no sentido

de entender esta outra forma possível do eu defender-se de uma representação

incompatível, que se desenrola de forma peculiar, diferenciando-se do campo da

neurose.

Como perceberemos, a evolução da teoria freudiana das psicoses está

relacionada com a atribuição de diferentes mecanismos para a sua gênese: um conflito

entre o eu e o mundo externo; um mecanismo de defesa do eu específico, como

resultado deste processo se torna inevitável o afastamento de um fragmento de

realidade, ou da realidade por completo; e a conseqüente reparação dessa realidade que

25
foi repudiada, pela via delirante e/ou alucinatória. Soma-se a estas, a problemática do

narcisismo, que se configura de forma particular nas psicoses.

Na psicanálise, a psicose é entendida como um desfecho de um conflito entre o

eu e o mundo externo, onde a serviço do isso, o eu se afasta de um fragmento de

realidade. Percebe-se que na psicose trata-se de uma rebelião por parte do isso contra o

mundo externo, em que fica evidente a sua incapacidade de adaptar-se às exigências da

realidade (Freud, 1924[1923]/1996).

De forma genérica, para haver o conflito é necessário que exista uma pressão

que procura uma descarga e outra que empreenda uma força contrária no sentido de

evitá-la. Assim, a “guerra” acontece entre essas duas instâncias que exercem as pressões

contrárias (Kusnetzoff, 1982). Na verdade, podemos dizer que este conflito acontece

entre o eu e a realidade externa, onde o eu retrai-se, ou nega a realidade, e passa a

obedecer aos impulsos do isso.

Este conflito, bem como o retraimento ou negação da realidade, podem ser

explicados pelo fato de que o mundo externo governa o eu basicamente de duas formas:

por meio de percepções atuais e presentes, que são sempre renováveis, e por outro lado,

por intermédio do armazenamento de lembranças de percepções passadas, que formam

um “mundo interno” exercendo certa posse sobre o eu, ao mesmo tempo em que se

tornam uma parte dele. Dessa forma, o aparecimento da psicose se daria na ocasião em

que uma dessas representações é encarada pelo eu como insuportável. Neste momento,

o eu defende-se dessa representação incompatível rejeitando-a juntamente com o seu

afeto e agindo como se esta jamais lhe tivesse ocorrido (Freud, 1924[1923]/1996).

Este mecanismo pelo qual o eu defende-se da representação incompatível é

utilizado por Freud para demarcar uma diferença significativa entre a neurose e a

26
psicose. Na neurose este processo ocorre por meio do recalcamento e na psicose essa

defesa se dá de forma mais radical, uma vez que rejeita não só o afeto, como acontece

na neurose, mas também a própria representação incompatível. A defesa na psicose

evita que o eu volte a entrar em contato com essa representação insuportável por

intermédio de sua extinção, mas tal feito trará conseqüências marcantes que podem ser

observadas nos sintomas característicos desta estrutura.

No entanto, neste momento conflitual o eu deixa-se derrotar pelo isso, e, por

conseqüência, ser arrancado da realidade. As representações armazenadas ficam ligadas

a um fragmento de realidade, ao passo que ao rejeitar a representação incompatível à

parcela da realidade que estava ligada a ela também é rejeitada. Assim, o eu desliga-se

não só do que antes era incompatível, mas também total ou parcialmente da realidade.

De tal sorte, na psicose, encontramos necessariamente a perda da realidade, em menor

ou maior grau, mas ela ocorrerá. O primeiro passo da psicose é justamente este, afastar

o eu da realidade por causa de sua incapacidade de adaptar-se a ela.

Essa idéia de que o eu deixa-se derrotar pelo isso, recebe um complicador ao

delegarmos a devida atenção para a participação do supereu como uma outra instância

psíquica que participa deste processo, uma vez que este reúne influências originárias do

isso e do mundo externo e “constitui, até certo ponto, um modelo ideal daquilo a que se

visa o esforço total do eu: uma reconciliação entre os seus diversos relacionamentos

dependentes”. (Freud, 1924[1923]/1996, p. 169). O supereu é a instância que funciona

como um representante do mundo exterior, e assim da realidade e do isso. Além disso, o

eu origina-se a partir do próprio isso por meio de uma série de diferenciações ligadas a

identificações sucessivas.

27
Neste momento em que o eu nega a realidade, ele passa a obedecer aos impulsos

do isso, para quem só existe as leis do princípio do prazer (Quiles, 1995) e que contêm

os representantes psíquicos das pulsões. Estes representantes, por um lado, têm sua

origem em questões inatas e hereditárias, e, por outro, questões recalcadas e adquiridas

(Laplanche & Pontalis, 2001). É importante salientar que este afastamento do eu da

realidade e a adoção de um funcionamento pautado pelo princípio de prazer serão

condições necessárias para o aparecimento da alucinação, juntamente com a regressão.

Outra forma de explicar este processo de negação da realidade é justamente

entendê-lo como uma impossibilidade de incorporação simbólica de um fato ou

acontecimento (Sterian, 2001). Este fato que não pode ser simbolizado está no campo da

castração. Segundo Freud (1918 [1914]/1996), na rejeição encontra-se algo onde não é

possível identificar o registro da castração, onde o traumático não pode ser registrado.

Penot (1992) sugere que:

a rejeição da realidade, em suas diversas modalidades clínicas, parece


ter suas raízes na herança de uma dificuldade em dar sentido, que se
conjugaria ao passado anterior, em ‘anterioridade’ a toda história
individual. De sorte que o real não seria apreensível por cada um, e
não poderia representar alguma coisa, senão através das primeiras
figuras parentais, e do ‘discurso’ do qual estas são o suporte originário
(p. 9).

Este discurso é adquirido por meio da herança de certos caracteres físicos e

psíquicos de suas figuras parentais e o modo como cada um o recebe deve comprovar

sua maior ou menor aptidão para dar sentido ao que se apresentará a ele como atual. Em

outras palavras, pode-se dizer que as figuras parentais e o discurso, entendido como a

soma da cultura, religião, regras e conceitos, por elas transmitido e sustentado,

interferem na forma em que o sujeito dará sentido às coisas em sua vida (Penot, 1992).

28
Retornando à idéia de que a negação da realidade estaria relacionada com a não

incorporação simbólica de um fato ou acontecimento (Sterian, 2001), para Lacan (1955-

1956/2002), ao falar em psicose, o termo mais adequado para este mecanismo de recusa

da realidade é foraclusão, que consiste na “rejeição de um significante primordial em

trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível” (p. 174). Ou seja, é

um processo de exclusão de um primeiro corpo de significante relacionado com a

castração, onde, segundo o autor, o sujeito nada sabe a respeito, por isso ocorreria essa

rejeição primordial do significante fundamental para fora de seu universo simbólico.

A foraclusão, que para Lacan seria o mecanismo de defesa do eu específico da

psicose ─ que ocorre de forma especial na esquizofrenia ─ consiste na rejeição da

representação e seu afeto do psiquismo do sujeito, que se comporta como se ela nunca

tivesse acontecido. Essa é uma das importantes diferenças dos mecanismos de

foraclusão e recalque. Outra diferença está no fato de que na foraclusão, os

significantes foracluídos não retornam “do interior”, mas no seio do real (Laplanche &

Pontalis, 2001). Este retorno no real, ou pelo real, acontece na forma de alucinação,

como já apontamos.

Na idéia de foraclusão, ou seja, de abolição simbólica, defendida por Lacan, a

função paterna exerce um papel de sustentáculo. Para ele, função paterna não é o

mesmo que o pai propriamente dito. A função paterna será exercida por alguém que seja

reconhecido pela mãe com autoridade, como aquele que promove a lei, ou seja, é uma

entidade simbólica. Deste conceito de função paterna, Lacan constrói a idéia de

significante do Nome-do-pai – ou da Autoridade. Tem-se por significante a imagem

acústica de uma palavra, ou seja, um símbolo, e por significado o conceito propriamente

dito, que se relaciona com este significante e o sucede (Lacan, 1955-1956/2002).

29
Esta idéia de significante do Nome-do-pai relaciona-se com a idéia do complexo

de Édipo, com principal objetivo de desvelar a proibição do incesto, onde o pai precisa

interditar a mãe. Na teoria lacaniana, esta função será exercida pelo pai enquanto

significante, ou seja, enquanto aquele que representa essa proibição (Coelho, 2003).

Entretanto, existem duas possibilidades nesse momento, que este significante se

inscreva ou não. “Há, portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou

Verwerfung” (Mendonça, 1996, p. 61). Ou seja, primordialmente o significante Nome-

do-pai é inscrito, marcado, na cadeia simbólica de significantes do sujeito, mas pode

acontecer que este seja rejeitado e não possa inscrever-se, reaparecendo no real. Quando

acontece esta rejeição em relação a esse significante que inscreve a lei relacionada com

a castração e a interdição do incesto, tem-se o ponto central que determinará o

estabelecimento da psicose. Como vimos, o mais correto na teoria lacaniana é dizer que

este significante foi foracluído, não realizando a sua marca no campo simbólico do

psiquismo do sujeito.

Seria justamente esta marca realizada pelo significante do Nome-do-pai que

fundaria e organizaria o campo simbólico. A entrada no simbólico só é possível com a

operação de deslocamentos onde um “assujeito”, um objeto inicial, torna-se sujeito.

Este processo necessita da Bejahung, ou seja, da afirmação primordial. Em outras

palavras, supõe-se que o sujeito precise “dizer sim” à castração para que aconteça a sua

entrada no campo simbólico e possa ser identificado como sujeito (Coelho, 2003). Por

outro lado, para que qualquer coisa possa ser percebida e passe a existir para o sujeito, é

necessário que haja a Bejahung primitiva, a afirmação do que é, ou seja, o modo de

simbolização primário. No entanto, esta Bejahung pode não se realizar, ocorrendo o que

conhecemos como foraclusão do Nome-do-pai.

30
Dessa forma, a ausência da função paterna ou, caso prefira, ausência do

significante Nome-do-pai, será o eixo central para caracterizar a psicose na teoria

lacaniana (Mendonça, 1996, p. 61). Mas este significante além de ser o mecanismo que

distingue a psicose, também será a sua origem. O que caracteriza a psicose para Lacan é

a regressão tópica: esta não compartilha a idéia freudiana de regressão a um momento

determinado do desenvolvimento, como veremos, mas uma forma diferente do

funcionamento imaginário, sem o poder e a proteção do significante Nome-do-pai.

Nesse ponto é necessário lembrar que não se trata do pai enquanto pessoa,

enquanto um ser material, e sim um significante, como o operador de uma metáfora que

necessita ser sustentado por uma fala, neste caso a fala da mãe. Para Lacan (1957-

1958/1999), é a mãe quem irá indicar, por meio de sua fala, o significante Nome-do-pai.

Este, por sua vez, pode estar presente ou ausente, porquanto é a fala da mãe que o

sustentará como lei e não a sua presença ou ausência física.

Lacan traça seus conceitos ancorados nessa idéia de um significante, em termos

de uma função simbólica, visto que, para ele, o próprio inconsciente é organizado na

forma de uma linguagem. Assim, a função simbólica será o princípio pelo qual o

inconsciente será organizado (Mendonça, 1996). Para ele, qualquer coisa que se

relacione com o humano deve ser submetida às leis da fala. “A simbolização, a lei,

desempenha um papel primordial no pensamento lacaniano” (p. 14). Diferentemente de

Freud que entende a psicose por meio de uma economia da libido, Lacan o fará por uma

economia do discurso.

Neste sentido, na teoria lacaniana trabalha-se com a noção de que no discurso

delirante existe uma organização particular, onde certas palavras recebem um destaque

31
especial, uma densidade que se manifesta algumas vezes na própria forma do

significante, dando a elas um caráter neológico (Mendonça, 1996).

Ainda, esta falha na inscrição significante pode ser observada por meio das

frases interrompidas, maneirismos na disposição da escrita, reiteração de letras, palavras

e símbolos, além dos neologismos, como apontado. “Na psicose, palavra e coisa se

confundem; as palavras ganham substância, textura, tornam-se coisas que afetam,

invadem o corpo” (Lacet, 2004, p. 248).

Adotar a palavra no lugar da coisa nos aponta o caminho de que o sujeito perdeu

a função de símbolo, o sentido. Perdeu também o limite onde deveria ter ocorrido a

marca da significação fálica, que separa corpo e linguagem; ruído e voz; palavra e coisa.

“Na psicose, essa fronteira não se estabelece, vozes e palavras invadem o corpo” (Lacet,

2004, p. 249).

Voltaremos a falar sobre esta questão do psicótico com a linguagem um pouco

mais adiante, quando passarmos a tratar mais especificamente de cada uma das

psicoses: paranóia e esquizofrenia.

Concomitante a isto, a afirmação de que no psicótico existe uma falha na

simbolização sustenta também a idéia que na psicose “o inconsciente está a céu aberto”.

Faltando a simbolização primitiva que fundará e organizará o inconsciente, este fica

como se estivesse sem um contorno, sem uma delimitação, sem uma lei que possa

orientá-lo e organizá-lo.

Com relação à proposição “o que é recusado na ordem simbólica ressurge no

real” (Lacan, 1955-1956/2002, p. 22), pode-se dizer que algo que não pôde ser

simbolizado ou foi recusado pelo indivíduo, ao ressurgir no real, pode vir em forma de

alucinação. Na psicose, a idéia de real, além de estar relacionada com a noção de

32
“realidade” fenomênica, que não é possível de ser representada, também se relaciona

com as representações que foram excluídas do registro simbólico, ou seja, que foram

rejeitadas (Herrmann, 2004). É precisamente o tema da castração que não foi

simbolizado.

Este registro do simbólico “condiz com um sistema de representações calcado na

linguagem, por meio de signos e significações possíveis que determinam o sujeito do

inconsciente e a faculdade de simbolização” (Herrmann, 2004, p. 281). Por último, o

registro do imaginário é utilizado no sentido de “definir um lugar ao eu, com os seus

fenômenos de ilusão, captação e engodo” (p. 281).

A proposição “reaparecer no real” também torna possível tocarmos em uma

questão importante para a psicose – a projeção. Na psicose, entende-se por projeção “o

mecanismo que faz voltar de fora o que está preso na Verwerfung, ou seja, o que foi

posto fora da simbolização geral que estrutura o sujeito” (Lacan, 1955-1956/2002, p.

58).

Esta questão da não incorporação simbólica presente na psicose nos remete à

idéia de que o humano se realiza apenas no simbólico, uma vez que a libido seria

apreendida apenas na esfera das representações, o que acaba por determinar uma

“despersonalização” presente na maioria das psicoses (Katz, 1991).

Lacan (1955-1956/2002) nos explica esta impossibilidade de simbolização, pelo

fato de que na psicose falta a inscrição do significante Nome-do-pai, acarretando uma

variação na significação do mundo para o sujeito por meio da quebra no conjunto da

cadeia de significantes, impedindo que um significante reenvie a outro significante e

assim por diante.

33
Esses fatores estariam relacionados ao fato de que na psicose não ocorreria

simbolização de alguns fatos, causando rejeição da realidade e um prejuízo na vivência

do sujeito de estar no mundo e de habitar o próprio corpo (De Waelhens, 1990).

No momento julgamos suficientes as informações prestadas acerca da teoria

lacaniana da psicose. Quando necessário, retomaremos as idéias desta teoria, bem como

lançaremos mão de outros conceitos ainda não abordados aqui, se necessário, no sentido

de nos ajudar no entendimento do fenômeno psicótico.

Retornando à teoria freudiana da psicose, um segundo momento do distúrbio

entre o eu e o mundo externo, que se relaciona com o aparecimento da psicose, é

dedicado a reparar a perda da realidade que foi repudiada, não por meio de sua

restituição, mas pela elaboração de uma nova, que não traz mais as mesmas questões

que ocasionaram a rejeição da antiga. Na psicose, esta fase é entendida por Freud como

um processo de cura, onde o eu busca conciliar-se com o isso.

Neste segundo momento, é o delírio que realiza esta função de constituição de

uma nova realidade que não seja insuportável para o sujeito e que passará a substituir a

realidade que foi negada. Esta nova realidade, ou melhor, o novo mundo que se

formará, será construído de acordo com os impulsos do isso (Freud, 1924/1996). “[...] O

delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma

fenda apareceu na relação do eu com o mundo externo” (Freud, 1924[1923]/1996, p.

169). Nesse sentido, percebe-se que o delírio é a forma encontrada pelo psiquismo do

sujeito para reparar o dano causado e restaurar as relações desse sujeito com a realidade.

Ou seja, o delírio é a possibilidade que o sujeito encontra para simbolizar.

Essa transformação da realidade é realizada sobre os precipitados psíquicos, ou

seja, os traços de memória, as idéias e os julgamentos; decorrentes da realidade e por

34
meio dos quais a realidade foi representada na mente. Deste ponto, pode-se presumir

que o delírio, ao constituir a nova realidade que o sujeito habitará, traz à tona questões

de sua vida que estavam esquecidas ou guardadas em seu psiquismo. Nesse sentido, a

psicose também tem a tarefa de conseguir para si, por meio da alucinação, percepções

de um tipo que corresponda a essa nova realidade (Freud, 1924/1996). Quando presente,

essa é uma das funções desempenhadas pela alucinação, além de ser o retorno no real

do que foi abolido e a satisfação do desejo por meio da conciliação entre o eu e o isso.

Nos casos em que está presente apenas a alucinação, é esta quem realiza a

“construção” da nova realidade por meio das percepções que traz para o sujeito, mas na

forma de uma colcha de retalhos sem as costuras, função exercida pelo delírio.

No entanto, as alucinações e os delírios são percebidos pelo sujeito de forma

bastante aflitiva e provocam uma grande ansiedade por serem sinal de que o

procedimento de reconstrução e remodelamento acontece na contramão de forças

opostas rigidamente a este processo (Freud, 1924/1996).

Nesta mesma direção, Freud (1924/1996) termina o seu artigo sobre a perda da

realidade na neurose e na psicose dizendo que o novo e imaginário mundo externo

construído pela psicose, tenta substituir a realidade e visa proporcionar ao fragmento

rejeitado um substituto com uma significação secreta e figurada, por meio da

interpretação que o delírio pode realizar das percepções que a alucinação impõe ao

sujeito, nos quadros em que comportam os dois fenômenos. É importante lembrar que

nos casos em que o delírio está presente, o prognóstico é mais favorável, justamente por

este fato. Situação que empreende o reinvestimento objetal e na realidade de forma mais

efetiva.

35
Mas fica uma indagação, que Freud (1914a/1996) também se fez: o que acontece

à libido no momento em que o eu nega a realidade e a desinveste libidinalmente? Com o

propósito de responder a essa questão, Freud lança mão de um conceito que passará a

ser fundamental para o entendimento da psicose.

Para chegar a este conceito seguiu o caminho deixado pela megalomania

apresentada por estes sujeitos. Para ele, a megalomania tem sua origem a custo da libido

objetal afastada dos objetos, no momento em que o eu nega a realidade. O movimento

se daria então por um desligamento da libido dos objetos, e coisas deixando o mundo

externo para trás e dirigindo-se para o próprio eu. Neste momento, origina-se uma

atitude que Freud (1914a/1996) chamou de narcisismo. Como resultado deste processo

ocorreria a perda da realidade, como já tratamos.

O percurso seria o seguinte: sob a determinação do isso, o psicótico desinveste a

realidade e investe em si mesmo, e, assim, de certa forma, recalca a realidade – ou

melhor, a representação que o sujeito tem da realidade. “A defesa consiste então em

desinvestir esse real, restituindo ao eu as cargas libidinais ligadas a ele. Esse primeiro

movimento é seguido por uma segunda providência: a que procura reencontrar e

reinvestir o real, mas de modo delirante ou alucinatório” (De Waelhens, 1990, p. 82).

Assim, o sintoma psicótico seria o retorno do resultado desse conflito sem que antes

pudesse ter sido elaborado (Sterian, 2001).

Este processo de restituir ao eu as cargas libidinais retiradas do real, como foi

dito, será um importante mecanismo na gênese da psicose para a teoria freudiana,

inclusive pelo fato de que este desinvestimento objetal conduz a uma catexia do eu e por

este motivo acontece a perda da realidade, característica essencial desta patologia.

36
O narcisismo consiste no processo em que um indivíduo toma o seu próprio

corpo da mesma forma que o trataria de um objeto sexual. Em outras palavras, o que

acontece na psicose é o afastamento da libido do mundo externo e o conseqüente

redirecionamento dessa energia para o próprio eu do sujeito (Freud, 1914a/1996).

No entanto, essa forma de narcisismo apresentado na psicose seria um

narcisismo secundário, uma vez que esse fenômeno estaria presente no curso regular do

desenvolvimento sexual humano, denominado, neste momento, como narcisismo

primário. Ou seja, no início existiria uma catexia libidinal original do eu e

posteriormente, parte desta energia, seria conduzida a outros objetos, mas que

basicamente persistiria e relacionar-se-ia com as catexias objetais (Freud, 1914a/1996).

O narcisismo é um estádio no desenvolvimento libidinal localizado entre o auto-

erotismo e a libido objetal. Ele diferencia-se do auto-erotismo porque seus impulsos

libidinais não se encontram dispersos, mas sim reunidos em um único objeto, o próprio

eu do sujeito.

Um ponto de grande relevância no curso do desenvolvimento normal diz

respeito a essa necessidade de ultrapassar os limites do narcisismo, conduzindo a libido

a outros objetos. O completo desenvolvimento do eu incide num afastamento do

narcisismo primário e dá margem a uma forte tentativa de recuperação desse estado.

“Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do

eu imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal” (Freud,

1914a/1996, p. 106).

Percebe-se, então, que o narcisismo é uma fase essencial no curso do

desenvolvimento libidinal para a formação do eu, inclusive o seu afastamento, que

possibilita o investimento da libido em outros objetos que não o próprio eu.

37
Nesta direção, o eu pode ser concebido como um grande reservatório da libido,

de onde ela parte para ser enviada para os objetos, mas está sempre pronta e disponível

a fim de receber a libido que volta deles (Mendonça, 1996).

Mas este desligamento da libido dos objetos e coisas não caracteriza por si o

fator patogênico da psicose. Freud (1914a/1996) já ressaltava esse comportamento de

não interesse pelo mundo externo e o conseqüente represamento dessa libido no eu

como algo natural em qualquer processo de adoecimento, dor ou mal-estar, na medida

em que essas coisas externas não fazem parte do seu sofrimento. Assim, “o homem

enfermo retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio ego [eu], e as põe para

fora novamente quando se recupera” (p. 89, observação nossa). Ele também ressalta

que, nesse momento, a libido e o interesse do eu partilham do mesmo destino e são,

mais uma vez, indistinguíveis entre si. Além disso, refere essa alteração na distribuição

da libido às modificações sofridas pelo eu durante qualquer processo de enfermidade.

O que caracterizará o efeito patogênico é o enérgico processo que força a

retirada da libido dos objetos e que não permite que esta retorne a eles. Ou seja, o efeito

patogênico se instala na quebra da mobilidade da libido, causando o seu represamento

no eu, como demonstramos acima. Mas em vários casos, um segundo momento é

empreendido possibilitando o reinvestimento nos objetos e na realidade.

Por outro lado, na psicose, este processo de tentativa de reinvestir a libido nos

objetos será realizado por meio do delírio; de forma especial na paranóia que apresenta

o delírio de forma mais específica e sistematizada. Juntamente com este reinvestimento

objetal, o delírio é uma tentativa de reinvestimento também na realidade; não na

realidade antiga, mas sim em uma nova e irrefutável realidade que foi criada a expensas

do isso. Por este motivo, Freud aponta o delírio como o remendo que tampará a falha,

38
atribuindo-lhe um estatuto de cura e de recuperação. “O delírio é, assim, a luta da libido

por encontrar seu caminho de volta” (Mendonça, 1996, p. 35).

De Waelhens (1990) também chama a atenção para essa idéia de que, na psicose,

o narcisismo deve ser entendido secundariamente, uma vez que tem origem no

narcisismo primário que foi ofuscado por várias influências. Em outras palavras:

[...] a psicose, ao menos de certo modo, pode ser descrita não tanto
como um acidente, mas como o restabelecimento intensivo ou mesmo
exclusivo de um regime que deixou por completo de vigorar. Existem,
pois, pulsões do eu voltadas para ele mesmo, que dele se desviam em
algum momento, mas não inteiramente, e que podem retornar (p. 77).

Essa idéia acerca do narcisismo é amparada e sustentada por uma antítese entre a

libido do eu e a libido objetal, ou seja, a libido conduzida por um lado ao próprio eu e

por outro aos objetos. Assim, quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia.

Dessa forma, a megalomania que pode ser encontrada nas psicoses é acarretada

justamente em conseqüência desse alto desinvestimento libidinal dos objetos,

depositando essa libido no eu (Freud, 1914a/1996). Nesse sentido, o narcisismo pode

ser entendido como um acúmulo da libido no eu que acaba limitando, ou privando, o

contato do psicótico com o mundo (Coriat & Pisani, 2001).

O retorno dessa libido para o eu estará relacionado com a regressão que esta

sofrerá para os estádios primitivos do desenvolvimento psicossexual. Este é mais um

ponto importante para o entendimento do quadro psicótico que diz respeito a um ponto

disposicional, um ponto de fixação que opera como disposição a uma enfermidade em

outro momento da vida. No momento em que a libido se desliga dos objetos e retorna

para o eu, é canalizada para estes pontos de fixação por meio do mecanismo conhecido

como regressão (Freud, 1911/1996).

39
Por fixação entende-se o processo em que determinada parcela da pulsão passa a

não acompanhar os outros durante o caminho considerado normal, previsto no curso do

desenvolvimento. Em decorrência deste fato, este componente pulsional é deixado para

trás e fica em um estágio infantil.

É importante salientar que, para a psicanálise, as fixações são tidas como as

bases necessárias para o desencadeamento das enfermidades que podem ser

manifestadas pelo sujeito, predizendo, dessa forma, o resultado que se pode esperar da

repressão, ou da rejeição, no caso da psicose; ou seja, que tipo de enfermidade o sujeito

apresentará. Os possíveis pontos de fixação correspondem aos estágios no

desenvolvimento da libido (Freud, 1911/1996).

Na psicose, a regressão acontece de forma profunda, voltando aos estágios mais

primitivos do desenvolvimento, no momento em que o eu ainda não estava diferenciado

do não-eu – a realidade externa – e as relações com os objetos libidinais também não

haviam sido estabelecidas ainda de forma favorável. Essa dificuldade do sujeito

psicótico de manter relações afetivas com as pessoas soma-se à fraqueza do eu, e está

relacionada com a incapacidade de lidar com a realidade externa, uma vez que os

“outros” representam sempre uma “ponte” com esta realidade. No entanto, na psicose

essa ponte está rompida. Em outros momentos, as relações com as pessoas, quando

ocorrem, podem ficar impregnadas com a ambivalência de sentimentos opostos, como

amor e ódio (Quiles, 1995).

De forma clássica, diz-se que “o indivíduo regrediu ao narcisismo primitivo do

bebê” (p. 8). De maneira geral, as fixações psicóticas se estabelecem nas etapas orais,

onde a relação com a realidade externa e as relações de objeto, com as pessoas, ainda

40
não havia se estabelecido. “Não havia diferenciação eu/não-eu e a linguagem não

existia” (Quiles, 1995, p. 9).

Na paranóia, a regressão acontece até o narcisismo, fase do desenvolvimento

psicossexual intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal e no caso da

esquizofrenia a regressão é ainda mais atrás, até o auto-erotismo.

Esse processo de regressão que consiste no desligamento da libido das pessoas e

coisas que eram amadas e o conseqüente retorno desta para o ponto de fixação é igual

em todas as psicoses, diferenciando-se apenas o ponto de fixação. Em contrapartida, o

processo de restabelecimento, ou conforme denomina Freud, o mecanismo de defesa,

que desfaz o trabalho da regressão e permite que a libido seja investida novamente para

os objetos que havia deixado, é diferente em cada uma das psicoses. No caso da

esquizofrenia, esse processo é realizado, na maioria das vezes, por intermédio da

alucinação e, na paranóia, é a projeção, pela via delirante, que assume essa função

(Sterian, 2001). Tais processos serão melhores explorados à frente, quando o alvo

passará a ser algumas especificidades de cada uma das duas patologias que

analisaremos: a esquizofrenia e a paranóia.

1.2 – Esquizofrenia e paranóia: formação de sintoma e pontos de fixação

Os estudos de Freud com relação à psicose não foram tão fecundos quanto os

relacionados à neurose. No campo das psicoses, o seu trabalho desenvolveu-se mais no

que concerne à paranóia e só depois com as descobertas no caso Schreber avançou na

compreensão da esquizofrenia. Para ele, esses dois funcionamentos apresentavam o

desligamento da libido seguido por sua regressão para o próprio eu do sujeito. No

41
entanto, possuíam um ponto disposicional diferente e faziam uso de mecanismos

específicos para a formação de sintomas.

Freud (1914a/1996) destaca o afastamento do mundo externo e a decorrente

megalomania como características centrais da esquizofrenia. Defende que esses sujeitos

retiram a libido das pessoas e coisas do mundo externo sem que passem a investir em

outras na fantasia. Por outro lado, quando realmente conseguem substituí-las, este

processo faz parte de uma tentativa de recuperação que busca conduzir a libido

novamente aos objetos.

A megalomania indica o caminho que a libido faz quando esta não consegue ser

substituída ou reconduzida aos objetos. Ela surge como resultado desse investimento da

libido, que antes estava dirigida aos objetos, de volta para o eu. Este movimento de

reinvestimento no eu tem o nome de narcisismo, como vimos. Dessa forma, o

desinteresse pelo mundo externo gera, também, um interesse pelo corpo próprio.

Se prestarmos a devida atenção, percebemos que estas duas características

relacionam-se e possuem como questão central a libido do eu. Seguindo esta observação

Freud conclui que a esquizofrenia coloca-se na dependência da libido do eu, dando a

idéia de um represamento dessa energia que caracteriza os fenômenos encontrados nesta

patologia.

O papel da megalomania seria então proporcionar uma elaboração interna dessa

libido que voltou ao eu. Quando este papel não é exercido da forma esperada o

represamento libidinal torna-se patogênico e dá início ao processo de recuperação no

sentido de reinvestimento dessa energia pela via alucinatória, em alguns casos com a

ajuda da via delirante (Freud, 1914a/1996).

42
Para Freud todas as formas patológicas seriam o resultado do processo psíquico

da defesa inconsciente, no sentido de se proteger contra uma representação percebida

como intolerável pelo inconsciente e que se apresenta com árdua oposição ao eu. Na

esquizofrenia, “a defesa enérgica e eficaz consiste na recusa do eu da representação

intolerável, conjuntamente com seu afeto, na qual ele se conduz como se a

representação não houvesse jamais chagado a ele” (Cromberg, 2000, p. 49).

Ainda com relação a este assunto, um dos pontos que fica evidente na obra de

Freud (1911/1996) diz respeito ao afastamento que a libido sofre do mundo externo, o

que faz pensar que a rejeição da idéia intolerada exercida neste quadro aconteça por

meio deste desligamento da libido dos objetos externos. Como conseqüência, tem-se um

desligamento parcial ou total da realidade, tanto da realidade psíquica quanto a

realidade externa, fazendo com que o sujeito se afaste da representação intolerada.

Conforme já explicado, a psicose é resultado de conflito entre as exigências dos

impulsos do isso e a proibição por parte do princípio de realidade que está arraigado no

eu. Como resultado destes conflitos o eu acaba sendo alvo de uma fenda, uma vez que

as duas reações contrárias do conflito persistem como ponto central de uma divisão do

eu. Esta divisão está no cerne de todo processo de defesa, já que o eu deixa-se vencer

pelos instintos do isso, mas continua preso à realidade.

Em outro momento Freud (1940[1938]/1996) afirma que

O problema das psicoses seria simples e claro se o desligamento do eu


em relação à realidade pudesse ser levado a cabo completamente. Mas
isso parece só acontecer raramente ou, talvez, nunca. Mesmo num
estado tão afastado da realidade do mundo externo [...] aprende-se
com os pacientes, após seu restabelecimento, que, na ocasião, em
algum canto da mente (como o dizem) havia uma pessoa normal
escondida, a qual, como um espectador desligado, olhava o tumulto da
doença passar por ele. [...] Podemos provavelmente tomar como
verdadeiro, de modo geral, que o que ocorre em todos esses casos é
uma divisão psíquica. Duas atitudes psíquicas formam-se, em vez de

43
uma só – uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra
que, sob a influência dos instintos, desliga o ego da realidade. As duas
coexistem lado a lado. O resultado depende da sua força relativa. Se a
segunda é ou se torna a mais forte, a pré-condição necessária para uma
psicose acha-se presente. Se a relação é invertida, há então uma cura
aparente do distúrbio delirante (p. 215).

Na psicose estariam presentes essas duas atitudes e não apenas uma. Essa

presença parece refletir a bipartição do eu que é acompanhada pela imagem do corpo

próprio como dividido (Dias, 2001).

Por outro lado, nas patologias de cunho paranóide a rejeição acontece

geralmente de forma parcial, tendo como alvo, algumas vezes, um só objeto. Como

exemplo disso, podemos citar os delírios de ciúmes e erotomaníacos.

Neste momento, as alucinações, juntamente com o delírio, em alguns casos,

travam uma luta contra esta rejeição, que é seguida pela conseqüente regressão às

fixações que aconteceram durante a vida do sujeito, no sentido de restabelecer a ligação

da libido aos objetos.

É preciso demarcar que ao se falar de esquizofrenia, a tentativa de

restabelecimento faz uso majoritariamente de um mecanismo alucinatório e não

delirante como na paranóia, que faz uso da projeção para este fim.

Paralelamente a isso, a variação nos pontos de fixação disposicionais entre a

esquizofrenia e a paranóia é um importante diferencial entre estes dois quadros,

definindo inclusive a forma que eles assumem e o curso que seguirão, como afirmamos

acima, diferenciando-se no mecanismo empregado para o reinvestimento libidinal.

No caso da esquizofrenia, a regressão ao auto-erotismo infantil acaba por

determinar a forma com que o sujeito com diagnóstico de esquizofrenia se relacionará

com o próprio corpo, uma vez que nesta fase do desenvolvimento, ao qual o sujeito

retorna, ele ainda está sob uma prematuridade biológica, onde não possui integridade

44
física. Nesta fase, “sua percepção do próprio corpo é construída por sensações

desintegradas, geradas por estímulos dos diferentes órgãos ou partes do organismo, que

ele não percebe como um todo” (Sterian, 2001, p. 79). O eu ainda não está formado,

sendo percebido como algo fragmentado. O surgimento de um eu integrado se dá

apenas no momento em que se avança do auto-erotismo ao amor objetal, passando pelo

narcisismo. Assim, a regressão ao auto-erotismo, na esquizofrenia, presentifica esta

forma de perceber e lidar com o próprio corpo como algo fragmentado, não estruturado.

Essa ausência de organização da imagem do corpo produz na clínica do sujeito

esquizofrênico, sintomas característicos de hipocondria delirante e de estranheza

corporal.

Esta é a imagem que a psicose refletirá do corpo próprio: algo que perdeu a

unidade e, portanto, a função. A esse respeito, De Waelhens (1990/1996) diz que o

esquizofrênico sempre se refere a uma imagem do corpo próprio como despedaçado.

Segundo este autor, em muitos casos esse despedaçamento se manifesta com bastante

clareza por meio do discurso do sujeito e dos delírios interpretativos relativos ao corpo.

Além dessa questão corporal, estes sujeitos também possuem outras

características inerentes ao quadro esquizofrênico, que mesmo não sendo encontradas

em todos os casos, são uma fonte importante para a realização da identificação mais

precisa do possível diagnóstico. São elas: o pensamento, a linguagem, o afeto e a

relação com a realidade.

Para a psicanálise, o distúrbio do conteúdo do pensamento está relacionado com

a noção de limite que o supereu vem colocar ao sujeito, principalmente relacionando-se

aos delírios e às alucinações persecutórias. Nessas manifestações, seria o próprio

supereu do indivíduo que exerce essa atividade de vigiá-lo e controlá-lo com base nas

45
normas internalizadas do próprio sujeito, dos seus pais, da sociedade ou da cultura em

que está inserido (Sterian, 2001).

Os indivíduos que possuem esses sintomas queixam-se de que os seus

pensamentos são conhecidos por outras pessoas e suas ações, da mesma forma, são

vigiadas e supervisionadas. Essas queixas são legítimas uma vez que essa instância – o

supereu – que exerce um poder de vigilância, descobre e repreende todas as intenções

do indivíduo, existe em todas as pessoas (Freud, 1914a/1996).

Os delírios de estar sendo vigiado apresentam esse poder numa forma


regressiva, revelando assim sua gênese e a razão por que o paciente
fica revoltado contra ele, pois o que induziu o indivíduo a formar um
ideal de ego, em nome do qual sua consciência atua como vigia,
surgiu da influência crítica de seus pais (transmitida a ele por
intermédio da voz), aos quais vieram juntar-se, à medida que o tempo
passou, aqueles que o educaram e lhe ensinaram, a inumerável e
indefinível corte de todas as outras pessoas de seu ambiente - seus
semelhantes - e a opinião pública (p. 102).

Esses delírios de serem vigiados são marcantes nas patologias de cunho

paranóide. As informações acerca dessa vigilância chegam por meio de vozes que

caracteristicamente falam em terceira pessoa.

No que se refere aos distúrbios da linguagem, a grande quantidade de alterações

que a fala do esquizofrênico sofre merece uma atenção especial. A construção de frases

do esquizofrênico demonstra uma desorganização característica, que faz com que os

outros indivíduos não consigam compreendê-la. As palavras sofreriam processos

semelhantes aos pensamentos e imagens no sonho: deslocamento e condensação, que

acabam por transferir a libido de algumas representações a outras, no intuito de não

parecerem compreensíveis pelo inconsciente (Freud, 1915/1996).

A este respeito, Martins (1996) afirma que a linguagem psicótica torna possível

entrarmos em contato com a radicalidade narcísica da linguagem de cada sujeito. No

46
caso do sujeito esquizofrênico, podemos encontrar a produção de um idioma para seu

uso pessoal e a presença de palavras que se relacionam ao corpo. Esta segunda

característica é chamada por Freud (1915/1996) de linguagem de órgãos. “Estas duas

características são expressões de uma tese mais geral, aquela que diz que o sintoma

psicótico implica em tomar as palavras como as coisas” (Martins, 1996, p. 3, grifo do

autor). E complementa:

Uma primeira vertente diz que a linguagem é narcísica, é desobediente


das regras compartilhadas pelo grupo. [...] Suas línguas e linguagens
serão sempre as melhores para eles mesmo que ninguém venha a
compartilhar esse ideal. Neste hora as palavras se tornam a verdade.
Elas constroem a realidade afetiva. Tornam-se coisas. A outra vertente
qualifica algo também narcísico por excelência: o corpo próprio,
vemos na psicose a construção de palavras e até de línguas completas
a partir da experiência do corpo próprio sentido, imaginado e
simbolizado (p. 3–4).

Soma-se a estas características uma terceira, o automatismo mental;

compreendido como uma perturbação entre o enunciado e a enunciação. Este fenômeno

pode ser percebido como imposições de pensamento vindo do exterior.

Com relação à questão da simbolização, Freud (1915/1996) defende que o

sujeito só consegue pensar ou falar de alguma coisa, quando esta pode ser simbolizada

por ele, ou seja, quando esta coisa pode ser representada por uma palavra na consciência

do indivíduo. Dessa forma, a palavra passa a simbolizar a coisa.

No entanto, no caso do psicótico, de forma especial o esquizofrênico, o seu

pensamento se contenta em ser um jogo dele dirigido a ele mesmo. Essa é uma das

características mais evidentes na linguagem esquizofrênica, onde tudo possui referência

imediata e direta ao corpo e as sensações que se originam dele (Caropreso & Simanke,

2006).

Esses autores nos ajudam a entender como esse processo se desenrola:

47
Na esquizofrenia, quando as palavras passam a se referir diretamente ao
corporal, elas estão, na verdade, resgatando o sentido originário das
palavras. E isso ocorre justamente devido à retirada do investimento das
representações de coisa. Na ausência do elo intermediário entre as
palavras e as sensações corporais – isto é, das representações de coisa –
o vínculo entre as palavras e o corporal torna-se direto. As palavras
passam a denotar diretamente as sensações corporais e, desta forma, o
sentido originário das palavras volta a transparecer (Caropreso &
Simanke, 2006, p. 117).

Para Benze (citado por De Waelhens, 1990), esse distúrbio da linguagem diz

respeito a uma desordem do estágio atual do pensamento. Nesta mesma direção, pode-

se afirmar que, ao se falar de um esquizofrênico, nada que acontece hoje pode ser

garantia que ocorrerá amanhã.

Nesses sujeitos, o que ocorre é a dificuldade de simbolização, fazendo com que

as palavras não se remetam ao símbolo de alguma coisa, passando a ser as próprias

coisas. Dessa forma, o prejuízo está no campo da simbolização, se não impossibilidade,

da ligação das representações de coisa de alguns objetos da realidade do sujeito a

palavras. Essa dificuldade parece estar relacionada com o “desligamento de certos

pedaços da realidade da cadeia associativa” que provoca efrações no tecido psíquico

(Sterian, 2001).

A respeito do distúrbio afetivo presente na esquizofrenia, Freud (1917[1916-

1917]b/1996) demonstra que por intermédio da autocensura, o sujeito desinveste o

objeto e investe a libido no próprio eu – identificação narcísica – que passa a ser alvo do

ódio antes dirigido ao objeto que foi desinvestido. O eu da pessoa passa a ser tratado da

mesma forma que acontecia com o objeto que foi desinvestido e passa a ser alvo de

todos os atos de agressão e expressões de ódio, que antes eram dirigidos àquele. De

forma especial, Freud também diz que um ponto particular na vida emocional do

48
psicótico é a capacidade que ele tem de dirigir sentimentos contrários à mesma pessoa,

por exemplo, amor e ódio, como já explicitado.

Por fim, como conseqüência deste desinvestimento da libido dos objetos e o

posterior investimento no próprio eu, e para evitar uma ruptura deste mesmo eu devido

ao conflito com o mundo externo a que o psicótico está submetido, o sujeito se desliga

do mundo externo pelo mecanismo de rejeição da realidade (Freud, 1924/1996).

Concomitante a esse processo de rejeição da realidade, os distúrbios da

sensopercepção são explicados com o fato de que, na psicose, a transformação da

realidade é realizada por meio dos restos de realidade existentes, ou seja, de lembranças,

idéias e julgamentos que vinham da realidade, e por intermédio dos quais a realidade era

representada na mente do sujeito. Vale lembrar que o psicótico também precisa obter

percepções que correspondam à realidade que está sendo criada. Essas percepções são

conseguidas, de forma radical, pelas alucinações. No entanto, é necessário ressaltar que

a rejeição da realidade nunca acontece de forma total, uma vez que a realidade tem

representações no psiquismo do sujeito em estado esquizofrênico. Na verdade, o

desligamento de certas representações cria fendas que as alucinações vêm remendar, ou

melhor, têm o objetivo de substituir o pedaço da realidade que foi rejeitado. As

características das alucinações indicam a sua origem e apontam para o fragmento de

realidade rejeitado, e que veio substituir (Freud, 1924[1923]/1996).

Como demonstramos, a alucinação é a primeira alternativa que o psiquismo de

um sujeito lança mão, com o intuito de acabar com o desprazer que uma necessidade

não suprida possa gerar. Ocorre que, “os contornos dessa peça de ‘quebra-cabeça’, que é

a alucinação, nos mostra onde ela se ‘encaixa’, mesmo que o pedaço de imagem nela

49
impresso não corresponda à continuidade da imagem que as outras peças formam”

(Sterian, 2001, p. 113).

Juntamente com a alucinação, em certos casos, o delírio tem a função de reparar

a perda ou rejeição da realidade por meio da elaboração de uma nova realidade diferente

da que foi repudiada e que não seja insuportável para o sujeito. Na esquizofrenia, o

delírio tem a função de reparar o dano que a rejeição da realidade causou e restabelecer

as relações do indivíduo com ela. O papel do delírio seria justamente o de reconstruir a

realidade de forma que os pedaços do “quebra-cabeça” que a alucinação traz, possam se

juntar e formar essa nova realidade.

No entanto, nem toda esquizofrenia comporta a agitação alucinatória ou mesmo

o delírio. Nesse sentido, para esses, o prognóstico é mais complicado uma vez que a

retração narcísica não é combatida, não existe nem um ensaio de reinvestimento objetal,

e o “recalcamento”, ou melhor, a rejeição toma conta do psiquismo do sujeito (De

Waelhens, 1990).

No que se refere à paranóia, Freud (1896/1996), em seu artigo Observações

adicionais sobre as neuropsicoses de defesa passa a considerar esse quadro também

como uma psicose de defesa, que tem sua origem no momento em que rejeita uma

lembrança aflitiva e seu sintoma seria causado por meio deste mesmo conteúdo. Nesse

momento ele ainda não tinha clareza sobre o mecanismo específico da paranóia e dizia

que a lembrança aflitiva sofria “recalcamento”, no entanto já tinha idéia de que o

“recalcamento” no caso da paranóia não seria análogo ao da neurose. No caso da

paranóia, este mecanismo de rejeição da representação que é percebida como intolerável

chama-se projeção, como veremos.

50
Neste artigo, Freud também começa a levantar algumas diferenças entre a

paranóia e a esquizofrenia. Por exemplo, afirmou que nesses sujeitos não ocorria a

diminuição da inteligência, como nos sujeitos com diagnóstico de esquizofrenia. Além

disso, afirmou que a diferença em relação às neuroses diz respeito aos pensamentos que

são ouvidos interiormente pelo sujeito ou alucinados por ele. Por fim, conclui que as

vozes que o sujeito ouve são os seus próprios pensamentos “ditos em voz alta”.

A sua grande descoberta neste texto foi o mecanismo conhecido como projeção.

Para ele, a auto-acusação seria “recalcada” por meio da projeção, ou seja, pela

deformação do sintoma defensivo de desconfiança nas outras pessoas. “Dessa maneira,

o sujeito deixa de reconhecer a auto-acusação e, como que para compensar isso, fica

privado de proteção contra as auto-acusações que retornam em suas representações

delirantes” (Freud, 1896/1996, p. 182).

Fica evidente que esta defesa não é totalmente bem sucedida, uma vez que as

acusações retornam do exterior por meio de outras pessoas. Neste momento acontece

uma segunda defesa quando o sujeito escuta essa recriminação e passa a rejeitá-la como

uma mentira a seu respeito.

Alguns anos depois, Freud (1911/1996) apresentou o seu estudo sobre um relato

autobiográfico de um caso de paranóia. Trata-se do conhecido e importante caso

Schreber. Este artigo foi de grande importância para o desenvolvimento do

conhecimento acerca da paranóia no campo psicanalítico. No terceiro capítulo, Freud

apresenta as suas observações sobre o mecanismo da paranóia, os quais passaremos a

acompanhar a partir daqui.

Um dos trabalhos desenvolvidos por Freud neste texto é o de propor algumas

diferenças entre a paranóia e a esquizofrenia. Uma importante diferença diz respeito ao

51
fato de que na esquizofrenia a idéia intolerada e o seu afeto são rejeitados e excluídos

do eu; já na paranóia, após passar por um processo de deformação – deslocamento e

condensação – a percepção que foi rejeitada e projetada para fora ingressa novamente à

consciência do sujeito, mas agora esta é percebida como vinda do exterior. Por

exemplo, a deformação que ocorre no delírio de perseguição diz respeito à alteração do

afeto. O que internamente era notado como amor, ao vir do exterior é percebido como

ódio. Na verdade, com relação ao mecanismo da paranóia, o mais correto é dizer que

“aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (p. 78).

Este termo que Freud utiliza para falar da rejeição de uma idéia intolerável –

projeção – traz consigo o sentido de “defender-se de”, além de “rejeitar” ou “recusar”.

No caso da paranóia, fica evidente que o que acontece é uma defesa. “Mas

historicamente o conceito de defesa permanecerá num sentido mais amplo, enquanto o

de rejeição ou recusa designará tanto um mecanismo ou operação pré-defensiva, como

um modo de defesa específico da psicose” (Cromberg, 2000, p. 44).

No momento em que a projeção ocorre, o eu se desprende também de um

fragmento de realidade que está inseparavelmente ligado à representação que foi

rejeitada, assim, é possível verificar a rejeição da realidade, característica fundamental

da psicose, na paranóia.

Em oposição ao que acontece na esquizofrenia, o sujeito com paranóia não

apresenta um total desinteresse pelo mundo externo. “O paranóico percebe o mundo

externo e leva em consideração quaisquer alterações que nele possam acontecer, e o

efeito que aquele lhe causa estimula-o a inventar teorias explanatórias [...]” (Freud,

1911/1996, p. 82). Dessa forma, a alteração na relação do sujeito com o mundo explica-

se pela perda de seu interesse libidinal.

52
Por meio do delírio é possível que se compreenda a idéia que está sendo

rejeitada e projetada pelo indivíduo, bem como acessar a organização psíquica que está

por traz desse mecanismo, uma vez que, segundo as idéias defendidas por Freud, a idéia

intolerada é projetada, mesmo que de forma deformada, para o mundo exterior por meio

dos delírios do sujeito.

Destaca-se ainda outra possibilidade do efeito que a projeção pode exercer na

vida do sujeito: a percepção de que o próprio eu do sujeito tem a possibilidade de

desmoronar completamente é projetada para fora, onde não é mais o seu mundo ou o

seu eu que poderá desmoronar, e sim o mundo externo que vai acabar (Freud,

1911/1996).

Assim, “o fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo

subjetivo chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele” (p. 77). O delírio de

fim de mundo coincide com o ponto alto da megalomania, momento este que o

investimento libidinal passa a se dirigir exclusivamente ao eu de tal sorte que o mundo

externo deixa de existir. Mas esta situação será combatida pelo reinvestimento libidinal

pela via delirante, empreendendo a reconstrução do mundo do sujeito de forma que

possa novamente habitá-lo (Coelho, 2003).

O próximo passo então é a reconstrução deste mundo que desmoronou de forma

que o sujeito possa pelo menos voltar a viver nele. Esta construção é realizada por meio

de seus delírios. Cabe aqui lembrar a idéia de Freud (1911/1996) defendida desde o

início deste trabalho: “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico,

é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (p.

78).

53
Em confluência com esta idéia, enfatiza-se uma característica interessante do

pensamento do sujeito paranóico, onde todos à sua volta têm uma relação direta com

ele: o que faz com que o sujeito nunca esteja só no mundo. Essa característica deve ser

levada em conta ao se tentar compreender a gênese dessa patologia (Bell, 2005).

Ainda com relação à gênese da paranóia, há que se observar a importante

conclusão de Freud (1911/1996), compartilhada por Jung e Ferenczi, sobre essa

patologia ser uma reação de defesa, que se utiliza da projeção, e assim, do delírio,

contra o desejo homossexual latente.

Esta patologia, conforme já explicitado, seria o resultado de uma fixação

narcísica e da batalha contra essa fixação. Esta posição pode ser explicada por meio da

idéia de que todo ser humano, nos primeiros anos de vida, faz uma escolha homossexual

de natureza narcísica, ou seja, auto-erótica, onde o sujeito toma a si mesmo como objeto

de desejo e, que, posteriormente a essa escolha, seria seguida por outra, onde o objeto

deixa de ser o próprio sujeito e passa a ser um outro de sexo oposto: escolha

heterossexual. As tendências homossexuais são, então, redirecionadas para o

investimento social. O sujeito que sofre de paranóia não passaria do primeiro para o

segundo passo, ficando numa defesa narcísica exacerbada (Freud, 1911/1996).

Nesse sentido, o centro do conflito nos casos de paranóia, de forma especial em

pessoas do sexo masculino, está relacionado à fantasia de desejo homossexual de amar

um homem, em que o delírio seria a forma encontrada para se defender dessa idéia de

que “Eu (um homem) o amo (a um homem)”. Dessa forma, todo o trabalho do delírio,

em suas diversas formas, é contrariar a idéia que a frase traz, uma vez que os

sentimentos do sujeito paranóico precisam ser transformados em percepções externas

(Freud, 1911/1996).

54
A gênese do delírio persecutório estaria relacionada com a transformação do

verbo da sentença, que ficaria: “não o amo, eu o odeio”. A projeção faz com que ela se

apresente na forma de “ele me persegue” e por isso “eu o odeio”. Dessa forma, fica

evidente de que o perseguidor é alguém que já foi amado.

Nos delírios persecutórios, diz Freud, a pessoa à qual é atribuída tão


grande poder e influência, para qual convergem todos os elos de
conspiração, é sempre aquela mesma que teve igual importância para a
vida sentimental do doente antes da enfermidade. A importância
sentimental é projetada para o exterior e fica transformada no seu
contrário. Assim, a pessoa odiada e temida no presente por sua
perseguição é sempre uma pessoa amada e respeitada antes pelo
doente. A perseguição que o delírio institui serve para justificar a
mutação dos sentimentos do sujeito (Cromberg, 2000, p. 66).

Ao ser trocado o objeto da sentença onde “não é a ele que amo, é a ela”, dá-se

origem ao delírio eretomaníaco, quando, por projeção, transforma-se em “eu noto que

ela me ama”.

Quando o sujeito da frase é mudado “não sou eu que o amo, é ela que o ama”

têm-se a origem do delírio de ciúmes. Neste caso, não é necessário que a projeção

exerça o seu papel: ao se mudar o sujeito que ama, a ação de amar já aparece como algo

exterior ao eu. No caso do delírio de ciúmes em mulheres o mecanismo é

completamente análogo ao apresentado acima, onde “não sou eu quem ama as mulheres

– ele as ama”.

O delírio de grandeza ou megalomania tem origem no momento em que a

preposição inteira é rejeitada: “Não amo ninguém, só amo a mim mesmo”. Nessa forma

de defesa, o eu ficaria altamente investido libidinalmente.

Após toda essa explicação, Freud (1911/1996) aponta a projeção como uma

característica importante na formação sintomática da paranóia, por meio da qual o

sujeito constrói o mundo de forma tolerável a fim de que possa habitá-lo (Cromberg,

55
2000). Esta construção acontece por meio da formação delirante que se instala no

sujeito.

Com o delírio o sujeito reconstrói o seu mundo de forma que possa voltar a viver

nele. Além disso, a relação com as pessoas e as coisas do mundo é retomada, muitas

vezes de forma intensa, embora de maneira contrária à configuração afetuosa que

anteriormente recebia (Freud, 1911/1996). Esta segunda relaciona-se com outra

justificativa plausível para a construção delirante, validar a perseguição de que o sujeito

é vítima. Por isso, “em todos os casos a idéia delirante é sustentada com a mesma

energia com que outra idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do eu. Assim, essas

pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas. É esse o segredo” (Freud,

1950[1895]/1996, p. 257).

É importante observar que a projeção é o mecanismo pelo qual o sintoma é

formado, ao mesmo tempo em que faz parte do processo de construção de uma saída

para o sujeito em relação à idéia intolerada, onde também realiza o trabalho de levar a

libido de volta para as pessoas que anteriormente havia abandonado. Ao se desvincular

dos objetos, como dissemos, a libido retorna para o próprio eu do sujeito, que funciona

como um reservatório da energia libidinal, conforme a megalomania nos sugere por

meio do engrandecimento que seu eu demonstra. Este reinvestimento no eu relaciona-se

com a regressão ao estádio do narcisismo presente na paranóia, onde o próprio eu é

tomado como objeto de satisfação. Entretanto, a projeção faz com que o indivíduo deixe

de ser o próprio e único objeto e passe a reinvestir a libido novamente a outros objetos,

sejam eles pessoas ou coisas.

Em seu texto intitulado de Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa,

como dissemos, Freud (1896/1996) aponta que as alucinações visuais que alguns

56
paranóicos apresentam são fruto de fragmentos de conteúdos da época infantil que

foram reprimidos, que acabam por ocasionar sintomas com o retorno desse material. Por

outro lado, defende que as vozes que estes sujeitos ouvem possuem sua gênese na

repressão de pensamentos que são reprovados por apresentarem certa semelhança com

outros que ocasionaram um trauma na infância. Neste caso, as vozes, como sintoma,

também seriam fruto do retorno do reprimido, ao passo que também são uma

conseqüência de uma transação entre a resistência do eu e a força por parte do retorno

do material que está reprimido.

Em seguimento com essas idéias, diz que as alucinações auditivas podem ser

atribuídas ao retorno das reprovações reprimidas, após passarem pelos mecanismos de

condensação e deslocamento. Além disso, ressalta que a paranóia não conta com

sintomas de defesa secundária, no entanto possui uma terceira fonte de formação de

sintomas. As idéias apresentadas pelo delírio, que passarão à consciência, sofrem um

trabalho mental do eu no sentido de torná-las aceitáveis e sem nenhuma objeção.

De forma resumida, observa-se que o retorno do afeto é realizado na forma de

alucinações de vozes, ao passo que o conteúdo parece retornar por meio de alucinações

visuais ou sensitivas (Cromberg, 2000).

Da mesma forma, dissemos na parte dedicada à esquizofrenia, que sujeitos com

sintomas paranóides referem com freqüência que estão sendo vigiados e que seus

pensamentos são conhecidos por outras pessoas. Na paranóia isso não é diferente. Cabe

aqui retomarmos a explicação de Freud (1914a/1996) para este fenômeno.

Segundo ele, no curso do desenvolvimento humano, o sujeito internaliza as

idéias culturais e éticas e passa a reconhecer como um padrão para si, inclusive

sujeitando-se às exigências que elas lhe fazem. Pode-se dizer que o sujeito cria um ideal

57
em si mesmo – eu ideal – pelo qual passa a medir o seu eu real. Este eu ideal será o alvo

do sujeito por toda a sua vida, que vai procurar mantê-lo às expensas da censura de

terceiros e de seu próprio julgamento crítico. Assim, os delírios de ser vigiado

relacionam-se com a idéia de que seria em nome da satisfação deste eu ideal que a

própria consciência do sujeito agiria como vigia.

Sobre isso, Freud (1914a/1996) afirma o seguinte: “As queixas feitas pelos

paranóicos também revelam que, no fundo, a autocrítica da consciência coincide com a

auto-observação na qual ela se baseia” (p. 103). Mais tarde este mecanismo de auto-

vigilância foi delegado ao supereu, que tem a função de zelar pela satisfação narcisista

no eu ideal comparando o eu atual com o ideal. Mas o sujeito não pode perceber que

esta vigilância acontece internamente, por isso a consciência do sujeito se confronta

com ele como uma influência hostil vinda de fora.

Para resolver este impasse da impossibilidade do sujeito de perceber a auto-

acusação como vinda de dentro, a máxima deste processo é a projeção onde a auto-

reprovação é percebida como vinda de fora, de um terceiro, e não de si mesmo. Por

outro lado, também é uma possibilidade de investimento em outro objeto mesmo que

este seja percebido de forma negativa.

Como já dissemos, grande parte da construção que Freud (1911/1996) fez acerca

da paranóia foi realizada em seu estudo que ficou conhecido como Caso Schreber.

Neste texto Freud (1911/1996) também realiza uma análise da estrutura do delírio ao

tentar estabelecer pontos que reflitam a lógica de sua produção. Por esta razão,

passaremos agora a apresentar algumas conclusões importantes de Freud sobre este

caso.

58
1.3 – A estrutura do delírio de Schreber

Freud (1911/1996) diz ter feito, como sugere o título de seu texto, algumas notas

a respeito do livro Memórias de um Doente dos Nervos, publicado por Schreber em

1903. Os dois nunca tiveram nenhum contato pessoal, nem nunca se viram, mas para

Freud é legítimo o seu trabalho baseado na publicação da história clínica escrita e

publicada pelo próprio “paciente que sofria de paranóia”, uma vez que:

[...] os paranóicos não podem ser compelidos a superar suas


resistências internas e desde que, de qualquer modo, só dizem o que
resolvem dizer, decorre disso ser a paranóia um distúrbio em que um
relatório escrito ou uma história clínica impressa podem tomar o lugar
de um conhecimento pessoal do paciente (Freud, 1911/1996, p. 21).

Em seu livro, Schreber relata ter sofrido duas vezes de distúrbios dos nervos que,

segundo ele, foram resultado de excessiva tensão mental. No entanto, não relata o

suficiente sobre sua história de vida anterior. Sua primeira doença começou em 1884,

no outono, por ocasião de sua apresentação como candidato à eleição para juiz de um

tribunal inferior e no final de 1885 já se encontrava totalmente restabelecido.

Era casado e levava uma vida de grande felicidade e honrarias exteriores, mas

com frustração por não ter filhos.

Entre as datas de junho de 1893, quando foi informado de sua indicação para

Senatspräsident, e 1o. de outubro do mesmo ano, quando assumiu o cargo, Schreber

teve alguns sonhos que, apenas mais tarde, atribuiu a devida importância. Em seu texto,

Freud (1911/1996) acrescenta uma nota de rodapé dizendo que os sonhos de Schreber

aconteceram antes que ele “pudesse ter sido afetado pelo excesso de trabalho acarretado

pelo novo posto, ao qual atribui a enfermidade” (p. 24).

Sonhou duas ou três vezes que o antigo distúrbio nervoso retornara e


isto o tornou tão infeliz no sonho, quanto a descoberta de ser apenas

59
um sonho fê-lo feliz ao despertar. Além disso, certa vez, nas primeiras
horas da manhã, enquanto se achava entre o sono e a vigília, ocorreu-
lhe a idéia de que, ‘afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser
mulher e submeter-se ao ato da cópula’ (Freud, 1911/1996, p. 24).

Nesse momento, Schreber não “suporta” essa idéia, rejeitando-a com grande

indignação e atribui a ela uma influência externa. Para ele, aquela idéia só poderia ter

vindo do exterior. Percebe-se aqui uma pequena possibilidade do emprego da projeção

para livrar-se da idéia incompatível. Dessa forma, dá-se início à sua segunda “doença”,

no fim de outubro de 1893, quando foi tomado por um acesso de insônia torturante,

fazendo com que retornasse à clínica de Flechsig. Após a sua internação, sua condição

teve uma grande piora com certa rapidez, como se pode constatar no relatório redigido

pelo diretor do asilo Sonnenstein em 1899:

[...] No início de seu internamento ali, expressava mais idéias


hipocondríacas, queixava-se de ter um amolecimento do cérebro, de
que morreria cedo etc. Mas idéias de perseguição já surgiram no
quadro clínico, baseadas em ilusões sensórias que, contudo, só
pareciam aparecer esporadicamente, no início, enquanto, ao mesmo
tempo, um alto grau de hiperestesia era observável – grande
sensibilidade à luz e ao barulho. Mais tarde, as ilusões visuais e
auditivas tornaram-se muito mais freqüentes e, junto com distúrbios
cenestésicos, dominavam a totalidade de seu sentimento e
pensamento. Acreditava estar morto e em decomposição, que sofria de
peste; asseverava que seu corpo estava sendo manejado de maneira
mais revoltante, e, como ele próprio declara até hoje, passou pelos
piores horrores que alguém possa imaginar, e tudo em nome de um
intuito sagrado. O paciente estava tão preocupado com estas
experiências patológicas, que era inacessível a qualquer outra
impressão e sentava-se perfeitamente rígido e imóvel durante horas
(estupor alucinatório). Por outro lado, elas o torturavam a tal ponto,
que ele ansiava pela morte. Fez repetidas tentativas de afogar-se
durante o banho e pediu que lhe fosse dado o “cianureto que lhe
estava destinado”. Suas idéias delirantes assumiram gradativamente
caráter místico e religioso; achava-se em comunicação direta com
Deus, era joguete de demônios, via “aparições miraculosas”, ouvia
“música sagrada”, e, no final, chegou mesmo a acreditar que estava
vivendo em outro mundo (Schreber, 1903, p. 380 citado por Freud,
1911/1996, p. 24-25).

60
Freud acrescenta que Schreber pensava estar sendo perseguido e prejudicado por

algumas pessoas, de forma especial pelo seu médico anterior, Flechsig, a quem chamava

de “assassino da alma” e gritava repetindo várias vezes: “Pequeno Flechsig!” (Schreber,

1903, p. 383, citado por Freud, 1911/1996, p.25) dando notória ênfase à primeira

palavra. Como Freud diz, neste caso quem antes era alvo de grandes sentimentos

positivos agora é percebido como perseguidor.

Foi levado para Leipzig, passou um tempo no asilo particular do Dr. Pierson, em

Lindenhof e depois, em junho de 1894, foi encaminhado para o Asilo Sonnenstein, onde

permaneceu até que o distúrbio assumiu o aspecto final. Com o passar dos anos, o

quadro clínico se alterou, como se constata nas palavras do diretor do asilo Dr. Weber:

Não preciso me aprofundar nos pormenores do curso da doença.


Devo, contudo, chamar a atenção para a maneira pela qual, à medida
que o tempo passava, a psicose inicial comparativamente aguda, que
havia envolvido diretamente toda a vida mental do paciente e merecia
o nome de “insanidade alucinatória”, desenvolveu-se cada vez mais
claramente (quase poder-se-ia dizer cristalizou-se) até o quadro clínico
paranóico que temos hoje diante de nós. (Schreber, 1903, p. 385,
citado por Freud, 1911/1996, p. 25).

Nestas palavras do Dr. Weber, percebe-se que a “doença” de Schreber teve uma

evolução, conforme já explicitado, em que a construção delirante aparece em uma

tentativa empreendida pelo psiquismo do sujeito de reorganização do mesmo, como fica

claro nas palavras de Freud (1911/1996):

Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma engenhosa


estrutura delirante, na qual temos toda razão de estar interessados, ao
passo que, por outro, sua personalidade fora reconstruída e agora se
mostrava, exceto por alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer as
exigências da vida cotidiana (p. 25).

61
Assim como Freud, também interessa-nos a estrutura delirante que se formou

para que fosse resolvido o conflito que o sonho lhe trouxe. Neste sentido, a partir de

agora, será dada especial atenção a esse fenômeno.

A construção delirante relatada por Schreber tem como objetivo sustentar que a

idéia que lhe veio enquanto acordava, de que seria muito bom ser uma mulher

submetendo-se à cópula, só seria possível ter vindo do exterior e de forma impositiva,

não cabendo contestação; dessa forma, algo deveria justificar a sua transformação de

homem em mulher. Nesse sentido, como resume a decisão judicial que lhe restituiu os

direitos civis, ele “acreditava que tinha a missão de redimir o mundo e restituir-lhe o

estado perdido de beatitude. Isso, entretanto, só poderia realizar se primeiro se

transformasse de homem em mulher” (Schreber, 1903, p. 475 citado por Freud,

1911/1996, p. 27).

Agora não era mais um desejo dele se transformar em mulher e submeter-se à

cópula, era algo que fugia de sua vontade: era uma ordem vinda de Deus que lhe

incumbiu de restituir o mundo o seu estado de beatitude. Dessa forma, o fato mais

essencial da missão redentora de Schreber é ela ter que vir precedida por sua

emasculação, ou seja, sua transformação em mulher (Freud, 1911/1996).

Em conformidade com esse processo de emasculação, fica evidente, no caso de

Schreber, uma defesa contra o desejo homossexual, uma vez que ele mesmo relata que:

[...] poucas pessoas [...] podem ter sido criadas segundo os estritos
princípios morais em que fui, e poucas pessoas, durante toda a sua
vida, podem ter exercido (especialmente em assuntos sexuais) uma
autocoibição que se conformasse tão estritamente a esses princípios,
como posso dizer de mim mesmo que exerci (Schreber, 1903, p. 285
citado por Freud, 1911/1996, p. 41).

62
Freud (1911/1996) complementa dizendo que ao ler as palavras de Schreber,

este parece compartilhar do preconceito em torno da homossexualidade vigente na

época e ainda hoje, falando de “distúrbio nervoso” e “lapsos eróticos”, como se as duas

coisas fossem inseparáveis.

Para não pairar dúvidas sobre a sua missão e que era mesmo o responsável pela

“salvação” do mundo, ele próprio estava convencido ser a única pessoa na Terra cujos

milagres divinos eram capazes de se realizarem. Tais milagres experimentados eram

confirmados por vozes com que ele conversava. No início de sua moléstia, o

acometimento terrível de muitos de seus órgãos, segundo acreditava, levaria qualquer

pessoa à morte; no entanto, ele “viveu por longo tempo sem estômago, sem intestinos,

quase sem pulmões, com o esôfago rasgado, sem bexiga e com as costelas despedaçadas

(...)” (Freud, 1911/1996, p. 27). Mas o que havia sido destruído sempre era restaurado

pelos milagres divinos.

Quando estes fenômenos cessaram, sua “feminilidade” tornou-se proeminente,

fazendo com que ele tivesse a sensação de que seu corpo recebera uma grande

quantidade de “nervos femininos” e que, a partir deles, por meio de uma fecundação

direta de Deus, seria dada origem a uma nova raça de homens e estes reconquistariam

um estado de beatitude. O relatório médico faz presumir que a mola mestra desse

complexo delirante se constitui da ambição de Schreber em desempenhar o papel de

redentor e que sua transformação em mulher merece ser vista apenas como um meio

para alcançar tal fim. Em contrapartida, a idéia de emasculação, que Schreber encarava

como injúria e difamação, constitui o delírio primário, e só secundariamente o mesmo

se relacionou com o papel de Redentor. Além disso, em um primeiro momento, ele

acreditava que a sua transformação deveria ser efetuada para fins de abusos sexuais e

63
não para a salvação da raça humana. Dessa forma, o delírio sexual de perseguição foi

transformado em delírio religioso de grandeza e o papel de perseguidor primeiramente

atribuído ao Dr. Flechsig foi canalizado para o próprio Deus (Freud, 1911/1996).

Esta transformação no objetivo a que se destinava a sua transformação de

homem em mulher nos faz pensar que a primeira construção, de que o destino seria

abuso sexual, ainda se mostrava como intolerada, o que exigiu o seu remodelamento

para fins de salvar a raça humana.

Em uma passagem que Freud (1911/1996) traz em seu texto, Schreber parece ter

a consciência que toda essa construção foi empreendida no sentido de solucionar o

conflito que se travava: “Demonstrei mais tarde que a emasculação para propósito

inteiramente diferente – um propósito em harmonia com a Ordem das Coisas – acha-se

dentro dos limites da possibilidade, e, na verdade, que muito provavelmente pode

proporcionar a solução do conflito” (p. 30).

As “vozes” que ele ouvia tratavam de sua emasculação sempre como algo da

ordem de “orgias” sexuais, e davam respaldo a elas para escarnecerem dele chamando-o

de “senhorita Schreber”, ou diziam que o Senatspräsident teria sido essa pessoa que se

deixa ser submetido à cópula. Literalmente seria: “Então isso declara ter sido um

Senatspräsident, essa pessoa que se deixa ser f...a!” (Freud, 1911/1996, p. 30). Ou,

ainda: “Não se sente envergonhado, na frente de sua mulher?” (Freud, 1911/1996, p.

30).

Então, o papel do delírio, ao vincular a fantasia de emasculação com a idéia de

ser ele o Redentor, é no sentido de preparar o caminho para que ele se reconciliasse com

a primeira idéia, conforme se percebe no texto a seguir:

64
Agora, contudo, dei-me claramente conta de que a Ordem das Coisas
exigia imperativamente a minha emasculação, gostasse ou não disso
pessoalmente, e que nenhum caminho razoável se abre para mim
exceto reconciliar-me com o pensamento de ser transformado em
mulher. A outra conseqüência de minha emasculação, naturalmente,
só poderia ser a minha fecundação por raios divinos, a fim de que uma
nova raça de homens pudesse ser criada (Schreber, 1903, p. 177 citado
por Freud, 1911/1996, p. 31).

Nesse sentido, fica difícil não concordar que a idéia de sua transformação em

mulher foi a causa mais primitiva de todo o processo delirante empreendido pelo

psiquismo de Schreber; bem como que a sua “loucura” exigiu mais que um pouco de fé,

exigiu um método. Dessa forma, o psiquismo de Schreber constrói toda uma teoria que

dará sustentação a sua atividade delirante; misturando, espantosamente, o banal e o

brilhante (Freud, 1911/1996). Além de servir como sustentação para a atividade

delirante, pode-se pensar que suas teorias também trazem a possibilidade de satisfazer o

seu desejo de ser pai, agora não apenas de pessoas comuns, mas de uma nova raça de

homens.

Outro ponto importante é que Schreber, dias antes do início de sua “doença”,

teve dúvidas sobre assuntos religiosos, questionando até a existência de Deus, como ele

mesmo diz:

Que se tratava simplesmente de uma questão de ilusões parece-me ser,


em meu caso, pela própria natureza das coisas, psicologicamente
inconcebível. Por ilusões de manter comunicação com Deus ou com
almas que já não mais se encontram aqui só podem surgir exatamente
nas mentes de pessoas que, antes de cair em estado de excitação
nervosa patológica, já tinham crença firme em Deus e na imortalidade
da alma. De qualquer modo, porém, esse não era o meu caso [...]
(Schreber, 1903, p. 79 citado por Freud, 1911/1996, p. 34).

Ao ler o relato do Deus de Schreber, o leitor percebe que no Redentor de hoje é

possível identificar características daquele que ontem duvidava; por exemplo, ele relata

que Deus estaria acostumado a se comunicar apenas com os mortos e que, nesse

65
sentido, não compreendia os homens vivos. “Descobriremos, na verdade, que este

‘relacionamento estreito’ é a rocha sobre a qual o paciente funda suas esperanças de

uma reconciliação final com Deus e de seus sofrimentos recebam um fim” (p. 39–40);

mesmo que essa relação venha acompanhada de uma desconfiança da existência de

Deus, é a única esperança de Schreber (Freud, 1911/1996).

No já citado relatório do Dr. Weber de 1899, algumas de suas observações

demonstram que, excetuando as suas idéias delirantes, Schreber não tinha outro

comprometimento em sua vida, ponto que ressaltamos como uma das diferenças entre a

paranóia e a esquizofrenia. Nesse sentido, com a grande mudança vivenciada por

Schreber em seu estado, o mesmo considerou ser capaz de viver independentemente,

pleiteando a sua alta do asilo. O Dr. Weber redigiu relatórios contrários a tal

procedimento, mas no ano de 1900 sentiu-se compelido a dar a seguinte descrição do

caráter e conduta de Schreber:

Visto que, durante os últimos nove meses, Herr Präsident Schreber fez
suas refeições diariamente em minha mesa familiar, tive as mais
amplas oportunidades de conversar com ele sobre todos os tópicos
imagináveis. Qualquer que fosse o assunto em debate (exceto,
naturalmente, suas idéias delirantes), concernente a acontecimentos no
campo da administração e do direito, da política, da arte, da literatura
e da vida social – em resumo, qualquer que fosse o tópico, o Dr.
Schreber mostrava interesse vivaz, mente bem informada, boa
memória e julgamento sólido; ademais, era impossível não endossar
sua concepção ética. [...] Nem uma só vez, durante essas conversas
inocentes à mesa de jantar, introduziu ele assuntos que mais
apropriadamente seriam levantados numa consulta médica (Schreber,
1903, p. 397–398 citado por Freud, 1911/1996, p. 26).

Com a devida atenção a esta última descrição do Dr. Weber, percebe-se que, na

verdade, Schreber não negou a realidade por completo, foi necessário sim, que se

construísse todo o aparato delirante com relação ao sonho que o mesmo teve; em

66
contrapartida, como relata o doutor no relatório, ele continuava tendo interesse pelo

mundo da política, da ciência, da arte, entre outras.

Ao final do seu texto, Freud (1911/1996), convida o leitor a retomar o sonho que

Schreber teve antes de mudar-se para Dresden, a fim de que perceba, agora, que a sua

construção delirante, onde ocorre a sua transformação em mulher, nada mais seria que a

realização do conteúdo desse sonho. No início relutou contra a idéia do sonho e contra a

sua realização na enfermidade. “Encarou sua transformação em mulher como uma

catástrofe porque era ameaçado com intenções hostis” (p. 43). Mas chegou um

momento que se reconciliou com a idéia de sua transformação e a colocou em

consonância com os propósitos do próprio Deus: “Desde então, e com plena consciência

do que fiz, inscrevi em minha bandeira o cultivo da feminilidade” (Schreber, 1903, p.

177–178 citado por Freud, 1911/1996, p. 43).

Com relação à construção delirante, faz-se necessário retomar duas importantes

idéias já demonstradas. A primeira é a idéia defendida por Freud (1911/1996) de que o

delírio deve ser entendido como uma construção, como uma tentativa e

restabelecimento e não apenas o produto patológico. A segunda diz respeito à

concepção de Filizzola (1994) ao afirmar que o delírio possui sim uma lógica, mesmo

que particular ao sujeito delirante. Nesse sentido, essa produção pode se apresentar aos

outros como um discurso articulado; um discurso que fala do sujeito em questão.

Não se trata aqui de fazer apologia às patologias, anular o sofrimento e a

angústia dos humanos que se presentificam, por exemplo, nas experiências de

alucinação e delírio. Todavia, é possível pensarmos na patologia como a forma que o

sujeito encontrou para estar no mundo, resgatando a história de sua subjetividade.

67
Ao retornar ao relatório do Dr. Weber de 1899, que demonstra o não

comprometimento de Schreber, com exceção dos delírios, percebe-se que a sua

construção delirante foi a forma que o psiquismo dele encontrou para “suportar” as

idéias que o seu sonho trazia. Negar a realidade comum a todos os seres humanos e criar

uma nova para habitá-la foi a forma encontrada para se proteger.

Assim, parece que, no momento, independentemente de certos


sintomas psicomotores óbvios, que não podem deixar de impressionar
como patológicos mesmo o observador superficial, Herr
Senatspräsident Dr. Schreber não apresenta sinais de confusão ou de
inibição psíquica, nem sua inteligência se acha notadamente
prejudicada. Sua mente é calma, a memória excelente, tem à
disposição estoque considerável de conhecimentos (não somente sobre
questões jurídicas, mas em muitos outros campos) e é capaz de
reproduzi-los numa seqüência vinculada de pensamento. Interessa-se
em acompanhar os acontecimentos do mundo da política, da ciência,
da arte etc. e ocupa-se constantemente com tais assuntos... e um
observador desinformado sobre sua condição geral dificilmente
notaria algo de peculiar nesses procedimentos. [...] (Schreber, 1903, p.
385–386 citado por Freud, 1911/1996, p. 25–26).

Pode-se afirmar que a sua construção delirante foi uma forma de se estruturar no

mundo, negando apenas o que lhe era insuportável, que lhe causava sofrimento; o que

está em direta relação com a idéia de restabelecimento e construção que o delírio teria

para Freud.

Neste mesmo sentido, Coriat e Pisani (2001) propõem lembrar o fio condutor

que Schreber também tentou seguir, com o intuito de atingir os seguintes objetivos: 1)

encontrar um sentido para a experiência de desmoronamento que, no início, deixou-o

aniquilado; 2) ajudar no descobrimento de um vínculo com o outro, mesmo onde

aparentemente havia desaparecido e 3) restabelecer uma forma de temporalidade, onde a

extratemporalidade o deixou como que morto. Assim, “para restituir um sentido a essas

68
experiências desconhecidas e restabelecer uma temporalidade, instaurou-se então um

sistema delirante que levou a uma forma de conciliação” (p. 54).

Esse procedimento proposto por Coriat e Pisani (2001) nos remete à idéia

freudiana de restabelecer a função da doença, uma vez que, assim como o inconsciente

obedece a uma lógica rigorosa, as manifestações clínicas também obedecem a uma

necessidade própria. Dessa forma, é possível se encontrar uma coerência específica no

delírio de Schreber.

Com relação à questão de Freud ter se baseado nos escritos do próprio Schreber

para realizar o estudo de seu caso, alegando que na paranóia o conhecimento pessoal do

sujeito pode ser substituído por um relato escrito ou por história clínica, Lacan

(1957/1988) diz que apenas o próprio sujeito é capaz de testemunhar a sua relação

muito específica ao conjunto do sistema da linguagem em suas diferentes ordens, uma

vez que, salvo alguns momentos em que o texto de Schreber sofreu censura, é possível

identificar a grande quantidade de detalhes com que relata cada um dos acontecimentos,

e, dessa forma, corrobora com a legitimidade da utilização de relato do próprio sujeito

acerca de seu processo psicótico em estudos como o realizado por Freud.

Katz (1991) também questiona o estudo do texto de Schreber empreendido por

Freud dizendo que no caso da psicose, ao se tentar apreender a linguagem do sujeito, o

timbre, o tom, o andamento, as falhas, as alterações, os vazios, os lapsos e a cadência da

narrativa demonstram muito sobre a organização discursiva do mesmo. Além disso,

levanta a questão de que neste caso não existe transferência de Schreber para Freud,

ponto fundamental para uma escuta adequada, no campo psicanalítico. No entanto, para

abrandar a sua posição, um pouco mais adiante concluiu que esses fatos apresentados

por ele não impedem a investigação psicanalítica especificamente teórica, ou seja,

69
defende que o analista pode aprender sobre a dinâmica e a organização psíquica sem ter

o próprio caso diante de si.

Contribuindo com a reflexão dessa problemática, Lima Filho (2005) acredita

que, sob quaisquer circunstâncias, há sempre algo que não pode ser apreendido nos

processos da fala ou da escrita. Nesse sentido, na psicose, observa-se um agravamento

desse fenômeno, uma vez que as tentativas de produção textual retratam um tempo de

constituição da linguagem anterior à apropriação da função simbólica da palavra, onde a

palavra designa a coisa. “As psicoses, têm essa particularidade de ‘coisificar’ os signos:

de deslizar da ordem do ‘dizer’ para a ordem do ‘fazer’” (Kristeva, 1994, p. 195, citado

por Lima Filho, 2005, p. 3).

Lima Filho (2005) completa dizendo que:

O trabalho da construção da escrita nas psicoses segue um caminho


diferente, na medida em que nos psicóticos observa-se uma falha na
função Simbólica. Nestes, encontra-se comprometida a capacidade de
diferenciar a realidade interna, subjetiva, da realidade externa. Os
signos emergem como tentativa de se fazer uma amarragem possível.
[...] O texto emerge a partir de uma vivência estrangeira, ou melhor,
sucumbido numa vivência na qual não é possível delimitar e
relativisar as noções de tempo e espaço e estranha aos demais sujeitos
que organiza o saber da cultura. O delírio é uma boa representação de
enodamento possível, embora sem muito sucesso, uma vez que
dificulta e às vezes impossibilita o trânsito na cultura. O estrangeiro-
psicótico no trabalho de sua escritura nos mostra uma forma particular
de inscrever-se como sujeito na medida que tece uma produção guiada
pelo Real (p. 7-8).

Em seu texto, Freud (1911/1996) evidencia que Schreber, contrariando essas

proposições de Lima Filho (2005) e Katz (1991), foi capaz de realizar uma boa

produção textual com relação à sua vida e patologia. Nessa mesma direção, Coriat e

Pisani (2001) indicam que “as memórias de um doente dos nervos são um texto

70
absolutamente extraordinário, pois a loucura é descrita nele não pela vertente do

observador, mas de dentro, pelo lado do delirante” (p. 45).

Essas observações acerca do restabelecimento da função da doença e a

possibilidade de se apreender a dinâmica e a organização psíquica do sujeito por meio

de sua produção escrita e da fala, estão de acordo com o propósito deste trabalho:

analisar a função do delírio e da alucinação na organização psíquica do sujeito e

investigar de que forma as diferenças entre os quadros de esquizofrenia e paranóia

influenciam no curso destes dois fenômenos psicopatológicos.

1.4 – Psicose e sintoma: uma questão a ser explorada

O aparelho psíquico faz uso de diferentes formas para se defender do que deve

ser negado, escondido ou rechaçado. A esse respeito, Neto (2006) defende que Freud

utiliza em toda a sua obra a idéia binária de negação/afirmação para dar conta dessas

diferentes formas de lidar com algumas representações.

Diferentes conceitos foram utilizados por Freud para falar a respeito de negações

ou defesas com relação ao que se impõe de “dentro” (Neto, 2006): “podemos citar

Verdrängung (recalque), Verleugnung (recusa), Verneinung (denegação), Verwerfung

(rejeição), Ablehnen (afastar, declinar), Aufheben (suprimir, abolir), retração de

Besetzung (investimento), retração de Bedeutung (significação), entre outros” (p. 154).

De todos esses conceitos apresentados, alguns são considerados como básicos para a

teoria freudiana por determinarem a forma como o sujeito se apresenta enquanto

estrutura clínica. No caso da neurose pensa-se em recalque (Verdrängung), na perversão

(Verleugnung) e na psicose (Verwerfung).

71
A neurose é entendida por Freud (1924[1923]) como o resultado de um conflito

entre o eu e o isso, onde o eu recusa-se a aceitar os impulsos do isso por meio do

mecanismo da repressão, que acaba por ocasionar o recalque. No entanto, este material

reprimido tenta mudar o seu destino e cria para si uma representação substitutiva, que

conhecemos como sintoma.

Dessa forma, na neurose, percebe-se que o sintoma tem um caráter conciliador

entre o eu e a representação reprimida. Mas esta conciliação não é decisiva. No

momento em que o eu percebe a sua unidade ameaçada e prejudicada pelo sintoma, que

é interpretado como um intruso, ele continua a lutar contra essa representação

substitutiva da mesma forma que fez com o impulso instintual originário. E todo esse

processo dá origem ao quadro neurótico.

Por outro lado, no caso da psicose, essa defesa é mais bem sucedida, como

apresentamos no início deste capítulo. Podemos dizer que na psicose realmente existe

uma defesa por parte do eu em relação à representação incompatível.

Freud (1930[1929]/1996) apresentou a fuga para a psicose como uma

alternativa entre as várias possibilidades de defesa que o homem encontra na tentativa

de minimizar o sofrimento proveniente das imposições da vida em civilização. Cada

sujeito terá uma forma de lidar com as questões da civilização, bem como a saída

encontrada por cada um de “quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo

externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta

força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos” (p.

91). É nesta última possibilidade que se enquadram os sujeitos psicóticos. Nesse

sentido, a negação da realidade e o conseqüente remodelamento da mesma, bem como o

uso desse processo como mecanismo de defesa devem ser apreendidos em seu sentido

72
global, buscando entender o que dessa realidade está sendo negada e não apenas

tentando eliminar essa negação, pois, dessa forma, estaríamos apenas arrancando desse

sujeito a sua defesa.

Na direção de Freud, Lacan (1955-1956/2002) apresenta a foraclusão como o

mecanismo específico da psicose, que consiste na exclusão de um primeiro corpo de

significantes relacionado com a castração, que ele denominou de significante do Nome-

do-pai. Neste mecanismo ocorre a rejeição da representação e do seu afeto do psiquismo

do sujeito, que se comporta como se nunca lhe tivesse ocorrido.

Como conseqüência desse procedimento de recusa da realidade em Freud ou da

foraclusão do Nome-do-pai em Lacan, vários processos são iniciados nesses sujeitos,

que se apresentarão por meio da sintomatologia característica da psicose, compreendida

pelo delírio e alucinação. Por meio desses sintomas, é possível perceber como se

articulam processos importantes implicados no quadro psicótico destacando-se as

questões que envolvem o corpo, a problemática do narcisismo e a relação com a

realidade.

Por outro lado, é no encontro fortuito do sujeito com um elemento simbólico que

o remeta ao significante Nome-do-pai, momento em que o sujeito não encontra um

correlato no campo imaginário, que a psicose entra em cena como uma possibilidade do

sujeito responder essa solicitação tanto do ponto de vista imaginário quanto simbólico,

por meio da construção delirante que se deflagra (Masagão, 2004).

O saber psicótico não está organizado ao redor de um significante,


mas se encontra organizado em uma espécie de exigência de
totalidade. Já que não pode contar com o saber suposto do pai, o
psicótico é obrigado a sustentar, sozinho, uma significação que
permite um ordenamento da sua relação com o mundo externo, os
objetos e seu corpo (p. 270).

73
Essa significação que tem como objetivo o ordenamento da vida do sujeito

psicótico nas instâncias do corpo, da realidade, e com participação do narcisismo é

empreendida por meio da fantasia, com a construção delirante que passa a exercer um

papel metafórico possibilitando que o sujeito volte a se representar enquanto tal.

Na psicose, diferentemente da neurose, os sintomas, que podem ser

compreendidos como os delírios e as alucinações apresentadas pelos sujeitos psicóticos,

não são entendidos como mais uma ameaça ao sujeito e, sim, entram em cena para dar

conta da desorganização que a doença de fundo traz. Mais uma vez ressaltamos que,

com essa forma de entendimento acerca do sintoma, a psicanálise restabelece a função

da doença para a organização psíquica do sujeito.

A alucinação e o delírio construirão uma nova realidade que tem o objetivo de

tentar aplacar a desorganização que a doença de fundo produz juntamente com os

processos de regressão.

Vale ressaltar ainda que o mais importante é a posição do sujeito perante o

sintoma, que o próprio sintoma por si só. É precisamente a posição subjetiva do sujeito

perante o sintoma que deve ser investigada. Dessa maneira, interessa-nos a posição do

sujeito diante do seu delírio e das alucinações que apresenta. Ou seja, o que esses

sintomas vêm nos falar com a fala do psicótico? Como eles podem ser compreendidos à

luz da interpretação psicanalítica sobre a psicose?

Tentar responder essas perguntas é justamente o objetivo deste trabalho, o que

será realizado no capítulo referente aos resultados e discussões com a análise de três

eixos fundamentais que se articulam na teoria psicanalítica da psicose – corpo,

narcisismo e a relação com a realidade – e se inter-relacionam no campo da produção

que os sujeitos psicóticos apresentam. Para tanto, neste capítulo faremos uso de algumas

74
vinhetas retiradas do contexto de entrevistas clínicas com sujeitos portadores de quadros

de paranóia ou esquizofrenia no sentido de exemplificar e fundamentar as idéias

apresentadas nesta parte teórica.

75
CAPÍTULO 2

NATUREZA DO PROBLEMA E MÉTODO

O presente trabalho tem como objetivo discutir o sentido do sintoma para o

sujeito psicótico. Entendemos aqui a palavra sentido enquanto o lugar e a função que tal

vivência assume na vida psíquica do sujeito. Com este intuito, escolhemos três eixos

temáticos que se relacionam com a produção do sintoma – corpo, narcisismo e realidade

– tendo como base a construção delirante e o processo alucinatório que se instala no

quadro psicótico.

Este estudo caracterizou-se como uma pesquisa qualitativa. A utilização dessa

metodologia se justifica, uma vez que o sentido e as significações dos fenômenos estão

no cerne dessa forma de pesquisa e permite compreender os significados que estes têm

para o sujeito em questão. Essa metodologia valoriza as angústias e as ansiedades de

cunho existencial e se mostra apropriada em estudos em que o fenômeno tem uma

estrutura complexa, por tratar de questões reservadas onde o processo de verbalização

torna-se emocionalmente árduo (Turato, 2003).

As principais características da pesquisa qualitativa, segundo Godoy (1995, p.

62) citado por Neves (1996, p. 1) são: “i) o ambiente natural como fonte direta de dados

e o pesquisador como instrumento fundamental; ii) o caráter descritivo; iii) o

significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do investigador

e iv) o enfoque é indutivo”. Essas características colaboram com a principal

preocupação dessa metodologia que é a ocupação do cientista qualitativista com o

processo e não com o produto de sua intervenção. Ele se preocupa em saber como os

76
fenômenos ocorrem naturalmente e com as relações estabelecidas entre tais fenômenos

(Turato, 2003).

Martinelli (1999) salienta que na pesquisa qualitativa é necessário que se

reconheça a singularidade do sujeito, onde conhecê-lo significa permitir que ele se

manifeste por meio do seu discurso e da sua ação, característica que se coloca em

perfeita consonância com os objetivos da presente pesquisa. Além disso, o importante é

conhecer o modo de vida do sujeito, ou seja, o modo como ele constrói e desenvolve

sua experiência de vida. Dessa forma, o pesquisador vai à procura dos significados que

certa vivência tem para um determinado sujeito.

Neste estudo qualitativo vale ressaltar que não será realizado estudo de casos

sistematizados, mas, sim, utilizados extratos clínicos retirados das entrevistas realizadas

com indivíduos psicóticos, buscando, com isso, dar voz a este indivíduo e estruturar

uma construção paradigmática do que encontraríamos no quadro psicótico.

2.1. Participantes

Participaram do estudo quatro sujeitos diagnosticados pela equipe médica

psiquiátrica com base na CID-10 (Organização Mundial de Saúde [OMS], 1997), dois

com diagnóstico de esquizofrenia e dois de transtorno delirante, segundo a

nomenclatura psiquiátrica.

Até o DSM-III, a nomenclatura paranóia também era utilizada pela psiquiatria,

passando para transtorno delirante a partir do DSM-IV, no intuito de diminuir a

ambigüidade que o termo “paranóide” causava. Além disso, a psiquiatria defende que

essa mudança na nomenclatura também serviu para ressaltar que essa patologia inclui

outros delírios além do paranóide e de ciúme (Cromberg, 2000).

77
Dessa forma, no campo médico-psiquiátrico, o transtorno delirante passou a ser

a classificação atual e a mais adequada para um grupo de transtornos cujo principal

sintoma é o delírio sistematizado. No entanto, neste trabalho, será utilizada a

nomenclatura paranóia, uma vez que a posição teórica adotada é a psicanálise que ainda

a denomina assim. Delimitamos essa diferença na nomenclatura apenas pelo motivo que

os sujeitos que participarão da pesquisa serão recrutados por meio do diagnóstico

médico-psiquiátrico e, portanto, com a denominação de transtorno delirante. Ao nos

referirmos ao diagnóstico, a nomenclatura pertinente será a da psiquiatria. Nos demais

desenvolvimentos dessa dissertação o termo referido será paranóia, conforme utilizado

pela psicanálise.

Os indivíduos foram selecionados entre as pessoas atendidas em um hospital

terciário da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, que é uma das duas opções para

atendimento psiquiátrico no DF, excluindo-se os CAPs de referência para Saúde Mental

nesta região. Esses provêm das mais variadas Regiões Administrativas do DF.

Para participarem, os sujeitos precisaram apresentar os diagnósticos acima

especificados e aceitarem fazer parte da pesquisa, assinando o termo de consentimento

livre e esclarecido (Anexo 1).

Dentre os sujeitos que foram acompanhados por nós durante a pesquisa, dois tem

o diagnóstico de esquizofrenia, sendo um do sexo masculino, João com 37 anos, e outro

do sexo feminino, Carla com 22 anos. Com diagnóstico de transtorno delirante foram

entrevistadas duas mulheres: Amanda, 40 anos, e Luciana, 41.

É importante salientar que estes nomes são fictícios e sem nenhuma relação com

os indivíduos da pesquisa.

78
2.2. Instrumento

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista clínico-

psicológica por se tratar de um instrumento apropriado na metodologia clínico-

qualitativa. Este instrumento torna capaz a obtenção de dados tanto objetivos quanto

subjetivos.

O uso das entrevistas clínicas justifica-se, uma vez que na pesquisa qualitativa a

realidade do sujeito deve ser apreendida por meio dos significados que o próprio sujeito

lhe impõe (Martinelli, 1999).

Essa modalidade de entrevista leva em consideração conceitos psicanalíticos

básicos como o estabelecimento do setting, a preferência pela associação livre das idéias

e a valorização da transferência e contratransferência (Turato, 2003).

Outro ponto plausível é que essa modalidade também propicia uma maior

flexibilidade na obtenção das informações, além de proporcionar a oportunidade de

observar o sujeito e a situação total a que ele responde (Jahoda, Selltiz, Deutsch, &

Cook, 1972).

Assim como na entrevista semidirigida, na entrevista clínica o entrevistador

também pode dar alguma direção a certos momentos, ocasionando um ganho no

processo de coleta das informações concernentes ao caso.

2.3. Procedimento para Coleta de Dados

Foram realizadas quatro entrevistas clínicas com cada participante, uma

entrevista de anamnese destinada ao estabelecimento do rapport e levantamento da

história de vida e da doença dos sujeitos; e as três outras destinadas ao levantamento das

79
questões relevantes ao estudo da sintomatologia na perspectiva pretendida de se estudar

como os sujeitos lidam com o corpo, narcisismo e realidade.

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Após a primeira

transcrição, foi realizada uma revisão de todas as entrevistas para que qualquer

divergência com o que o sujeito verdadeiramente disse fosse evitada.

É importante ressaltar que Carla e Luciana foram entrevistadas durante a crise e

que João e Amanda, não estavam em crise, encontravam-se em tratamento

medicamentoso com Neuroléptico de Ação Prolongada – NAP, por apresentarem

resistência à utilização de medicamento por via oral interrompendo o tratamento e

apresentando repetidos momentos de crise.

2.4. Procedimento para análise dos dados

As entrevistas transcritas foram organizadas seguindo a perspectiva da análise

do conteúdo do discurso e da hermenêutica do texto, onde ocorreu uma interpretação

das informações contidas nas mesmas, utilizando-se do arcabouço teórico psicanalítico.

Após a transcrição de todo material em forma de texto, foram selecionados os

trechos que dizem respeito a cada um dos eixos selecionados, a fim de serem utilizados

para a construção da discussão dos mesmos, com a teoria pertinente.

A análise de conteúdo consiste em um conjunto de técnicas para a análise das

comunicações por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição das

mensagens, no qual poderá fazer inferências de conhecimentos relativos ao sujeito e ao

seu meio, que posteriormente poderão passar pela etapa de interpretação. Dessa forma,

o que se pretende com a análise de conteúdo é o estabelecimento de uma relação das

estruturas da linguagem do sujeito com sua estrutura psicológica (Bardin, 1988/2004).

80
Para efeito dessa pesquisa utilizou-se apenas a primeira etapa da analise de conteúdo, ou

seja: a) a leitura flutuante da entrevista; b) o agrupamento das falas em eixos temáticos

formulados a partir do referencial teórico apresentado.

Franco (2005) diz que a mensagem expressa um sentido e um significado, no

entanto, este sentido não pode ser considerado como um ato isolado, tendo em vista que

“os diferentes modos pelo qual o sujeito se inscreve no texto correspondem a diferentes

representações que tem de si mesmo como sujeito e do controle que tem dos processos

discursivos textuais com que está lidando quando fala ou escreve” (Varlotta, 2002,

citado por Franco, 2005, p. 13).

Nessa perspectiva, a análise de conteúdo tem como objetivo compreender o

sentido e o significado da comunicação e, além disso, lançar um olhar a uma outra

significação, uma outra mensagem que está por trás ou ao lado da que se mostra. De

forma resumida, busca-se a explicitação e a sistematização do conteúdo desse discurso.

O fim é a descoberta de outras realidades por meio das mensagens que o indivíduo

emite (Bardin, 1988/2004).

Franco (2005) chama a atenção para o fato de que essas descobertas precisam ter

uma relevância teórica. Além de descrever, é necessário relacionar as informações com

outros atributos, as características do emissor, ou, no mínimo, relacionar um dado com

outro.

Em confluência com a análise de conteúdo, foi realizada a hermenêutica das

falas com o objetivo de contribuir com a interpretação do sentido que estas possuem

para o sujeito em questão, uma vez que as expressões humanas são dotadas de um

elemento significativo e deve ser interpretado dentro de seu próprio arcabouço de

valores e significados (Bleicher, 1992).

81
A interpretação hermenêutica nos possibilitou chegar mais próximo ao sentido

que o próprio sujeito atribui para a sua vivência a respeito do fenômeno psicótico.

A análise qualitativa interpretativa dos dados agrupados foi realizada a partir do

enfoque psicanalítico que procura na fala do indivíduo, no comportamento, nos atos

falhos e nas resistências, investigar a diversidade dos processos mentais do inconsciente

e suas significações (Zimerman, 2001).

Alguns autores (De Waelhens, 1990; Sterian, 2001) defendem a idéia de que

para se chegar a uma real compreensão de um fenômeno psicopatológico, é necessário

que sejam feitos estudos com base nos discursos e nos comportamentos do sujeito e no

sentido e estrutura das modificações que ocorreram na relação consigo mesmo, com

outros indivíduos e com o mundo. Além de observar os sintomas, a psicanálise também

busca compreender a origem da patologia em questão por intermédio da teoria da

constituição psíquica e das particularidades da história de vida de cada sujeito. Com o

uso dessa metodologia qualitativa esperou-se aperfeiçoar a compreensão dos fenômenos

estudados nessa pesquisa.

2.5. Aspectos éticos

A presente pesquisa teve seu projeto submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa

com seres humanos da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – CEP-

SES/DF e foi aprovada por estar dentro dos preceitos éticos e de acordo com a

resolução nº 196/96 CNS/MS e complementares, que dispõem sobre as diretrizes e

normas regulamentadoras em pesquisa envolvendo seres humanos.

Além das questões legais que permeiam a pesquisa com seres humanos, nós

adotamos uma postura de respeito e entendimento com relação aos sujeitos que

82
participaram das entrevistas clínicas inclusive com relação a assuntos que por ventura

não quiseram que fosse utilizado, bem como as datas e horários das entrevistas foram

escolhidos por eles. Ainda, todos tiveram a escolha de continuar o acompanhamento

psicológico após a conclusão das entrevistas propostas para o estudo, agora com caráter

psicoterapêutico.

83
CAPÍTULO III

O SENTIDO DO SINTOMA NA PSICOSE:

A RELAÇÃO COM O CORPO, O NARCISISMO E A REALIDADE

Neste capítulo, discutiremos o sentido do sintoma na psicose nos apropriando de

alguns aspectos apontados na teoria psicanalítica da psicose. O objetivo é tentar

compreender, a partir da fala do sujeito e da escuta do sintoma que os sujeitos psicóticos

apresentam, algumas especificidades de sua organização subjetiva e da estruturação de

seu quadro psicopatológico. Com este intuito, organizamos alguns eixos de análise que

estão implicados na teoria psicanalítica da psicose e se articulam com a produção do

sintoma, quais sejam: o corpo, o narcisismo e a relação com a realidade.

Para tanto, retomaremos algumas questões teóricas fazendo o devido

aprofundamento quando necessário. Além disso, a fim de demonstrar como cada um

desses eixos se apresenta na vida e na construção delirante e alucinatória do sujeito,

traremos extratos clínicos retirados das entrevistas realizadas com os quatro

participantes.

É importante salientar que as questões referentes ao corpo, ao narcisismo e a

realidade na psicose são totalmente relacionadas entre si e que a divisão adotada por nós

é meramente no sentido de organizar as observações concernentes a cada um desses

aspectos, no entanto, em alguns momentos as “fronteiras” que os delimitam no presente

trabalho deverão ser atravessadas até o ponto que possibilite o entendimento do eixo

específico que esteja sendo desenvolvido.

84
3.1. Apresentação dos casos clínicos

Os participantes da pesquisa com os quais foram realizadas as entrevistas

estavam em acompanhamento na unidade de internação ou ambulatorial da psiquiatria

de um hospital terciário do Distrito Federal.

Como dissemos, daremos nomes fictícios a cada um dos indivíduos: João, Carla,

Amanda e Luciana. Com o objetivo de possibilitar o conhecimento de aspectos da vida

dos quatro participantes faremos um breve relato, resgatando alguns fragmentos da sua

história clínica e do seu discurso.

João, 37 anos, entrevistado fora da crise

João nasceu no Nordeste e veio para Brasília com 16 anos. Apenas três anos

depois, sua mãe e seus nove irmãos vieram morar com ele. O entrevistado define sua

infância e juventude como muito sofrida. Seus pais se separaram quando estava com 12

anos e após essa separação, relata só ter visto o pai duas vezes. A segunda vez coincide

com o período da primeira crise, quando estava com 26 anos. João afirma ter sentido

falta da presença do pai e do carinho familiar.

Estudou até a 8ª série e atualmente mora com a mãe, três irmãos e um sobrinho,

em uma casa que diz ter construído sozinho. Relata que parou de estudar porque

trabalhava das quatro da manhã às nove da noite e culpa o excesso de trabalho como o

responsável pelo desencadeamento de sua crise:

João: Eu tive uma crise, é... de loucura no meu trabalho, no meu


trabalho. Trabalhei sete anos e eu não tinha hora para entrar e para
sair. Eu era tipo um robô. Aquilo foi me consumindo, consumindo, até
que um momento a mente não suportou e “pum”, fiquei agindo como
uma pessoa desequilibrada.

Afirma que “[...] entrava no carguinho mais baixo, questão de pouco tempo já

estava lá galgando o cargo lá em cima. Aí no último emprego que trabalhei, o último

85
emprego fichado foi o de gerente. Entrei de caixa. Completou um ano eu fui

promovido”. Diz que logo após essa promoção que começou a sua batalha: “trabalhava

que nem um maluco”. Não tirava hora de almoço, folga ou férias. Nesse período estava

com 26 anos e teve a primeira crise necessitando ser internado. João fala sobre o início

das crises de uma forma muito concreta, segundo seu relato, “o mal espera uma brecha

para poder entrar” e o acúmulo de trabalho fez com que “meus nervos estourassem,

permitindo que o mal entrasse e eu começasse a ver coisas que não existiam”.

Teve três internações, sendo a última em dezembro de 2006. Na primeira

internação recebeu o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Desde a primeira crise se

sente perseguido, ouve vozes, vê vultos e apresenta dificuldade para dormir. Quando

está em crise, tudo a sua volta parece ter vida e querer falar com ele.

Outra informação importante diz respeito à sua percepção de que cada crise tem

sido pior do que a anterior: “Cada vez que tive uma recaída tem sido pior do que a

outra”. Refere-se, ainda, a uma perda de memória, que contribui com a idéia de

“degeneração” ou deterioração presente no quadro esquizofrênico:

João: [...] Antes eu tinha uma memória 100%. Agora parece que
estou meio retardado assim, meio retardatário. Não consigo... Se eu
pegar o número do telefone do senhor agora, daqui a dez minutos eu
esqueci o número. Não sei mais qual é.

Em outro momento fala também de sua percepção com relação ao tratamento

psiquiátrico:

Entr.: E o tratamento que você está fazendo na psiquiatria, você acha


que tem melhorado? Como você está se sentindo?
João: Em parte tem me ajudado um pouco, mas não está como eu
quero que esteja. Entendeu? Eu queria que cada vez que eu voltasse,
tivesse um avanço, né? Fosse reduzindo a dosagem dos remédios...
Fosse tornando mais fraco, né? Mas cada vez que eu volto o negócio
está pior. Estava tomando só um remédio e um comprimido. Depois

86
comecei a tomar quatro. Tô tomando quatro agora. Não está
resolvendo.

Esta sua fala também deixa claro a percepção de que o seu quadro tem piorado

com o tempo e que a medicação já não faz o mesmo efeito, necessitando o aumento da

dosagem e da quantidade de medicamentos como tentativa de estabilização do quadro.

Além de relacionar o aparecimento da patologia com o excesso de trabalho,

outro fator, segundo ele, tem relação com o desencadeamento da esquizofrenia. No seu

discurso ele deixa claro que um aborto realizado por uma namorada sua, pode ter

relação com o seu adoecimento mental:

Entr.: Nas outras entrevistas você comentou sobre que tinha ajudado
uma ex-namorada a fazer um aborto, não foi? Como isso aconteceu?
João: É... Foi a minha primeira namorada. Tinha vinte anos. Tava
namorando. Estava até bem, né? A gente gostava muito um do outro.
Só que ela colocou na cabeça que tinha que casar. E na época não
tinha moradia, não tinha casa. Porque eu pagava aluguel. E não
estava seguro com relação a emprego. Aí eu falei assim: “não, só vou
casar quando tiver a minha casa e um bom emprego para poder
sustentar a gente”. Ela foi e falou... Ficou chateada com esse
contratempo. Aí ela engravidou. Quando estava com um mês e quinze
dias ela veio falar que estava grávida, eu falei “não, não quero filho
agora não. Pode abortar. Quero não. Pode abortar”. Depois até me
arrependi de ter falado para abortar, queria que nascesse. Aí fui falar
pra ela deixar... Já tinha feito o aborto. Aí foi tarde. Abortou inclusive
na minha casa. Esse dia eu tava com um cízio inflamado, né? Queixo
inchado... Não sabia se chorava de dor física ou se dor... Pela dor
dela estar sofrendo pela... Por aquele aborto. Ela chegava a gritar de
dor quando estava fazendo o aborto. Aí depois que fez o aborto a
minha mãe descobriu e minha mãe ficou muito chateada com a gente.
Brigou com a gente. Isso aí eu é... me sinto culpado, por parte. [...]

Além dessa relação direta que ele estabelece do início das crises com o trabalho

e o aborto, também nos chama a atenção a dificuldade que ele apresenta em diferenciar

a sua “dor física” da de ver o sofrimento da sua namorada no momento do aborto. A

dificuldade parece estar em conseguir “sair de si” para estar com o outro, com a dor do

outro, que também deveria fazer parte da sua dor, por se tratar da interrupção da

87
gestação de seu filho. Esse fato sugere um alto investimento narcísico, que se relaciona

com a auto-referência que João apresenta: “[...] tudo a minha volta tinha vida e falava

comigo [...]”.

O seu relato nos permite pensar que existe algum tipo de interferência entre o

espírito da criança que foi abortada com a sua saúde: “É espiritual. É um mal espiritual.

Vem lá do mundo dos espíritos, sei lá”. A criança que iria nascer estaria se vingando de

alguma forma no seu problema de saúde:

João: Esse meu problema talvez. Essa perturbação mental tá ligada a


isso. Acho que deve estar ligado a isso.
Entr.: Você consegue pensar o que pode estar ligado?
João: É os... Não sei se isso existe, né? Aí... Reencarnação, essas
coisas assim... Mas ou menos por aí... Acho que essa pessoa... Esse
que ia nascer que eu interferi, deve estar se vingando de alguma
forma de mim nos meus problemas. Eu acho assim.
Entr.: E o que você acha que ele pode estar fazendo?
João: Interferindo na minha saúde... Aí junto com mais algumas
coisas que eu ando fazendo. Aí está pesando.
Entr.: Você falou em outras coisas que você anda fazendo, que outras
coisas são essas?
João: Não sei. Alguma coisa errada que eu fiz. Eu não tenho assim
em mente exatamente o que. Mas eu... Alguma coisa feia eu fiz. Não
pensei em ter filho agora.
Entr.: Mas então você relaciona essas suas crises de hoje a essa sua
ação lá do passado.
João: [silêncio] Às vezes eu penso que se eu tivesse deixado essa
criança vir ao mundo, talvez fosse diferente. Me questiono com isso.
Eu preciso pagar de certa forma porque tirei esta vida. Não deixei
essa vida vir.

De certa forma, as experiências de vida de João parecem tomar um sentido

muito particular que refletem a relação com a realidade na psicose. Como

demonstraremos mais a frente, ele relata sofrer influências de forças negativas ou

demônio que são percebidas como vozes que o controlam dizendo tudo que ele deve

fazer:

88
Entr.: E você pode me dizer o que essas vozes lhe falavam?
João: Falavam para mim sair correndo, “age como louco, você é
louco, você é doido, você não é uma pessoa normal, vai fazendo tudo
o que eu te mandar”. Aí eu ia fazendo tudo, fazia assim, era coisa
desconexa, ela dizia “pode ir fazendo, pode ir fazendo”. [...] “Agora
você não é nada, nós que mandamos. Deixa quieto. Vai fazendo. Nós
vamos mandando e você vai fazendo”.

Essas vozes de comando percebidas por meio da alucinação auditiva fazem parte

de seu delírio de influência. Segundo o entrevistado, ele faz o que as vozes mandam,

uma vez que elas ordenavam que ele fizesse o que elas estavam mandando. Para João,

as forças negativas que o influenciam estão na atmosfera, mas não sabe explicar como

isso acontece e diz: “Só sei que eu ouço e que vou fazendo”.

As vozes, inclusive, o impediram de comparecer à terceira entrevista. A

justificativa apresentada referiu-se ao fato de que não queria sair de casa, mas depois

afirma que foram as vozes que disseram que ele não iria para a entrevista:

Entr.: Na semana passada a gente havia marcado para se encontrar e


acabou não sendo possível, aconteceu alguma coisa?
João: Não. Só fiquei... Não queria sair de casa. Na hora de vir pra cá
me deu um branco. Não queria sair. Falando: “hoje não tô afim de ir
pra lugar nenhum. Não quero ver ninguém. Não quero ver nada.
Quero ficar só”. Aí não vim.
Entr.: Mas aconteceu alguma coisa que te fez tomar essa decisão de
não querer ver ninguém? Ou o que te fez tomar essa decisão?
João: Eu só... [silêncio] Só as vozes: “não vamos pra lá hoje não.
Vamos ficar aqui”.

Levando em consideração a influência que as vozes exercem em sua vida, João

define o momento em que está em crise como “caos”:

João: As pessoas dizem “Não João você é forte. Você tem que se
controlar, tem que se acalmar. Senão, você ficando do jeito que está
você atrapalha você e quem está à sua volta”. Realmente quem está a
minha volta fica mais nervoso que eu, quando vê o caos.

89
Essa definição do momento da crise como “caos” relaciona-se com a experiência

de aniquilamento e desmoronamento que os sujeitos com esquizofrenia apresentam.

Caos é um momento em que está tudo fora do lugar, em desordem. Essa temática será

explorada no momento em que formos tratar da questão corporal na psicose, que

compreende uma percepção de despedaçamento corporal e desmoronamento do mundo

interno.

João complementa essa percepção de caos no momento da crise ao dizer que é

um período de muita perturbação e loucura, onde fala sem saber o que falou e vai

fazendo o que as vozes mandam, sem saber que está fazendo. E percebe que vai “entrar”

em crise com a agitação que começa a apresentar no início: “No começo fico inquieto,

correndo de um lado pro outro. Começo a fazer uma coisa e paro. Deixo tudo ali. Tudo

se embaralha”.

Após duas semanas da conclusão das entrevistas, João teve uma crise e ficou

internado no Hospital São Vicente de Paulo – HSVP por três semanas. Quando obteve

alta, retornou para o tratamento ambulatorial no HBDF. No primeiro contato que

tivemos logo após a sua alta, João nos relatou que na ocasião da internação estava

nervoso, falando coisas desconexas e em outros idiomas. Tinha a impressão que as

pessoas estavam falando com ele. Relatou ainda a sua tentativa de se “segurar” para não

entrar em crise: “Eu percebo que vou ter a crise, mas não consigo chegar para ninguém

e pedir ajuda. Eu fico neutro”.

Carla, 22 anos, entrevistada na crise

Carla é a filha mais velha de uma prole de três, mas é a única mulher. Possui

dois irmãos que não apresentam problemas psiquiátricos. Sua mãe teve depressão

durante a sua gestação e o pai foi alcoolista por um período. As primeiras crises

90
iniciaram-se por volta dos 16 anos, culminando com um diagnóstico de esquizofrenia e

acompanhamento em hospital aos 20 anos.

De forma geral, teve uma infância definida como normal. No entanto, com 12

anos de idade, começou a apresentar um declínio em seu rendimento escolar. No ano

seguinte, começou a demonstrar medo com relação à morte e alucinação visual, dizia

ver caveiras em seus livros. Com 16 anos, este medo da morte se intensificou, ao

apresentar episódios de choro, e com freqüência gritava dizendo que iria morrer. Sobre

esse aspecto ainda relata:

Carla: [...] Aí às vezes eu fico pensando assim que desastre, essas


coisas são terríveis. A gente não precisa viver. Eu não gostaria de
viver assim, sabe? Morrendo... Vendo as pessoas morrendo. Esse
sentimento que a gente sente. Tanta gente aí...

Esta dificuldade pode estar relacionada com a vivência de fim de mundo

presente na psicose, como discutiremos mais á frente na relação do sujeito com a

realidade e com os objetos.

Carla também afirma que nesta época se achava estranha nas fotografias que via:

Entr.: Quando você era mais nova Carla, com doze e treze anos, o
que você fazia?
Carla: Eu costumo do mesmo jeito, aqui. Aqui aconteceu umas
coisinhas. Meu irmão começou a estudar, ai começaram a bater
fotografia minha, né? Aí eu fiquei olhando o meu rosto, eu fiquei
achando estranho.
Entr.: Como é que você percebia o seu rosto?
Carla: É assim tipo, não digo barata não sabe? Não é animal barata.
Tipo essas coisas. É um rosto assim... [silêncio] muito preto. Tem os
cílios muito preto. Eu acho que sou assim. Eu tenho os cílios muito
preto.

91
Trataremos dessas experiências de estranhamento corporal e despersonalização,

remetendo à maneira como o esquizofrênico vivencia o corpo em uma tentativa de

reinvesti-lo.

Com 19 anos apresentou uma nova crise quando passou a falar “coisas

estranhas”, sentia que era controlada por forças externas e ouvia vozes. Neste momento,

teve sua primeira internação e começou a fazer uso de medicação neuroléptica. Mas foi

com 20 anos que apresentou uma crise mais intensa com discurso desconexo,

inquietação, choro imotivado e agressividade. Dizia querer matar o pai e ter relação

sexual com a mãe. Falava também que iria morrer para salvar a mãe.

Carla fez vários tratamentos psiquiátricos e psicoterápicos nos anos seguintes, o

que promoveu a redução da produção psicótica, mas continuou apresentando uma perda

cognitiva e relacional. Não retornou à escola, não teve namorado e seus vínculos sociais

permaneceram comprometidos, como demonstra aqui:

Entr.: Você sente dificuldade de conversar com outras pessoas?


Carla: Sinto.
[...]
Entr.: Você está estudando Carla?
Carla: Não.
Entr.: Tem quanto tempo que você deixou de ir à escola?
Carla: O maior tempão.
Entr.: Por quê? O que houve?
Carla: Porque eu descobri que eu chegando no colégio, tem as outras
meninas. Aí elas querem estudar também... Aí fica só eu na sala
olhando lá. Aí as outras querem estudar, ficam olhando pra mim. Aí
depois some tudo, depois acabou tudo, entendeu? Aí o colégio fechou.
Todo mundo foi embora. Acabou tudo.
[...]
Entr.: Você tem vontade de ter um namorado?
Carla: Não, porque eu sempre penso que o mundo acabou.

Esses trechos de suas entrevistas deixam claro a sua dificuldade de

relacionamento com outras pessoas, o que dificulta também a sua integração e

freqüência na vida escolar. Essa dificuldade de relacionamento é agravada pela

92
freqüente percepção de fim de mundo, onde tudo acaba e todo mundo vai embora. Neste

momento em que tudo acaba e as pessoas vão embora não restam objetos nos quais

possa investir, percepção que logo é interpretada da seguinte forma: “[...] parece que só

existe eu na face da Terra, né?”.

Além disso, no início de sua crise também dizia: “achava que a minha mãe tinha

virado um diabo”. Hoje diz que sua família é a mais moderna que existe:

Carla: É o seguinte, eu moro aqui em Brasília, né? E eu... teve um


tempo que eu não sabia o que eu queria. Ser moderna, não sei o quê,
não sei quê... E quando eu menos esperei a minha mãe disse que... A
minha família já é a mais moderna que existe.
Entr.: Moderna como?
Carla: De televisão. Que aparece na televisão.

Essa temática será explorada quando formos tratar do narcisismo secundário e da

megalomania na psicose, que é bastante presente na fala dela.

Carla demonstra em vários momentos que a sua questão gira em torno da beleza

e da idealização corporal, como percebemos nessa passagem:

Carla: [...] Só que eu estou querendo criar problema onde não tem.
Que não tem nada a ver, né? Japonês, o lugar que nasceu. Não tem
nada a ver.
Entr.: Que tipo de problema você acha que está querendo criar?
Carla: Quero criar problema quanto à beleza, não sei o quê, não sei o
quê. Pra quê criar...?
Entr.: Quanto à beleza?
Carla: É.
Entr.: Mas de quem isso? Sua?
Carla: É. Minha beleza. Pra quê criar alguma coisa contra a minha
beleza? Isso é judiação.

Ademais, refere-se, ao seu corpo como diferente ao das outras pessoas:

Entr.: Você sempre achou diferente o seu corpo com relação ao de


outras pessoas?
Carla: É. Eu sempre acho que é diferente.
Entr.: Como é que o seu corpo...?

93
Carla: O jeito deu pensar, algo tipo de vida, sabe? Geralmente as
pessoas são tão diferentes da gente lá de casa que elas andam com
tatuagem no corpo, sei lá. Os genes da pessoa nasceu diferente. É de
outra família sabe. Aí poxa, meu pai não ia colocar uma tatuagem no
corpo dele, não ia ficar legal. Fico imaginando, ele vai pra praia e tal
lá no Piauí na praia, mas é totalmente diferente [risos]. É totalmente
diferente.

É possível notar que Carla enxerga a sua família diferente de qualquer outra,

inclusive delegando essa diferença à questão genética. Sua família é totalmente

diferente das outras. É importante salientar que a diferença de sua família parte da

percepção de sua diferença corporal.

Essa diferença corporal é traduzida mais a frente em desejo de possuir o corpo

perfeito:

Entr.: Você não queria envelhecer?


Carla: Não. Queria tudo assim... Na idade certa.
Entr.: Você não queria ter cabelo no corpo, não queria ter peito
grande?
Carla: Não. Eu queria ter o corpo perfeito.

Em certo momento chega a fazer uma afirmação interessante sobre a percepção

que tem de sua vida: “[...] Aí a minha vida se torna um cinema na vida real”.

Demonstra aqui a mistura entre sua vida e a fantasia que a construção delirante traz para

dar conta de suas questões corporais e narcísicas, temas que ficam evidentes em suas

entrevistas e serão discutidos a seguir.

No momento em que as entrevistas foram realizadas Carla estava em

acompanhamento psiquiátrico, mas não fazia uso de medicação neuroléptica.

Amanda, 40 anos, entrevistada fora da crise

Amanda nasceu em Mato Grosso do Sul e está em Brasília há oito anos,

momento que coincide com o início de suas crises. Afirma ter saído de casa cedo com a

94
irmã para “batalhar” e se sustentar. Relata brevemente como é sua percepção da falta

que sente dos pais:

Amanda: [...] Porque eu sai muito cedo de casa. É... Pro mundo, eu e
minha irmã. Sempre junto, batalhando junto. [...] Porque é difícil
demais a gente não ter uma família, não ter uma casa, não ter um lar.
É difícil, sabe? Ficar nas casas dos outros trabalhando. A gente é o
primeiro que acorda, o último que deita, né? [...] É difícil não ter um
pai, uma mãe, né? Ainda mais na hora que a gente precisa. Na hora
da doença, na hora da tristeza, na hora da alegria. A gente
compartilhar com eles, né? Eu... A minha vida foi muito difícil, né?

Casou-se pela primeira vez com vinte e um anos, mas em outro momento define

esse casamento apenas como um relacionamento. Teve a sua primeira filha durante este

relacionamento. Casou-se novamente e com este marido teve mais duas filhas. Segundo

seu relato, este segundo marido estuprou a sua filha mais velha e ela só teve

conhecimento quando veio morar em Brasília. Amanda refere que a sua primeira crise

foi aos 35 anos, após ter descoberto que seu ex-marido havia estuprado sua filha,

inclusive diz que esse fato pode ter contribuído para o desencadeamento dessa crise:

Entr.:Você veio pra Brasília e chegando aqui que ela te contou?


Amanda: É.
Entr.:E pouco tempo depois você teve a primeira crise?
Amanda: A primeira crise.
Entr.:Você acha que pode ter alguma relação com isso. Com a
questão com a sua filha?
Amanda: Eu acho que sim, né?
Entr.:Você acha?
Amanda: Porque me abalou demais, né? Ela não contava pra mim.
Eu saia muito. Eu trabalhava. E a minha cunhada pedia pra mim
cuidar. Porque eu acho que ela já estava sabendo de alguma coisa e
não me contava, né? Eu tava desconfiada de alguma coisa. Ela não
falava pra mim. Confiava nele, né?

Essa desconfiança, da possível influência que a descoberta do estupro no

desencadeamento de sua crise, pode ser ratificada pelo seu comportamento de raiva e

desconfiança com relação às pessoas do sexo masculino que apresentou durante a

95
internação, e em seu relato sobre a diferença entre homem e mulher, em uma das

entrevistas:

Amanda: [...] Porque homem a gente não troca a amizade da gente...


Não vale a pena trocar a amizade da gente por homem nenhum.
Porque homem ele cai ali ele é homem, a mulher cai e não levanta
mais. Esse ditado eu tenho comigo mesma. Depois que eu passei a
conhecer a vida, eu tenho esse dizer comigo mesmo. [...] Ele levanta,
ele passa a mão no rosto ele é homem. Agora a mulher depois de ficar
na sarjeta não é melhor não. [...]
Entr.: O que você quer dizer com esse ditado, você pode me explicar?
Amanda: Ué... Por causa que o homem ele... Ele é sem vergonha. Ele
arruma várias mulheres. Ele pode arrumar várias mulheres, não sei
se ele tem família, se ele não tem. E a mulher é sempre sincera, conta
a verdade. [...] Eu tive um relacionamento faz tempo, sabe? E ele
mentia demais pra mim. Eu não confio. Eu não confio em ninguém.
Eu durmo com um olho aberto e outro fechado. Agora eu tô assim.
Não consigo me apegar com ninguém. [silêncio] Porque eu sofri
demais, sabe? Com minha filha. O que aconteceu com a minha filha,
principalmente, né? Que é um exemplo. Pra mim isso é um exemplo
deu confiar na pessoa e a pessoa não ter confiança.

Paralelamente a isso, quando perguntada novamente sobre o distúrbio que refere

ter tido em outra entrevista, a primeira coisa que lembra e relata é sobre o estupro de sua

filha:

Entr.: Quando você fala que teve um distúrbio, o que foi que
aconteceu?
Amanda: Porque eu descobri que meu marido aproveitou sexualmente
da minha filha, né? Aí eu não acreditava. [...] Aí eu fui trabalhar
numa casa, eu comecei a falar coisa com coisa, que a moça tinha
filho com o cara e foi assim, sabe? O distúrbio foi totalmente
perturbador mesmo sabe. [...] Aí a minha irmã... [...] Aí eu tava
falando que ela tava... Que ela era garota de programa, sabe? [...]
Falava coisa com coisa que não tinha nada a ver comigo.

Com relação às suas crises, Amanda afirma que já teve três crises e que a

primeira foi a mais forte, momento em que diz que não entendia nada. Desde então,

possui o diagnóstico de transtorno delirante. Até hoje não consegue entender o que

aconteceu consigo nesta primeira crise:

96
Amanda: Da primeira vez foi... A primeira vez foi mais forte, né? Não
sabia entender nada, né? E até hoje não sei entender nada, né? Fico
sem entender as coisas que aconteceram comigo. Não posso nem ter
explicação. Deixo pra lá. Não quero mais me lembrar. O que passou,
passou.

Durante essa primeira internação, Amanda ficou bastante agitada e não

conseguia saber qual era a data do dia. Perguntava para as pessoas que estavam na

psiquiatria do HBDF, mas não acreditava na resposta. Define a primeira crise como um

“distúrbio mental, um distúrbio que a cabeça fala coisa com coisa”. Na verdade, o

sentido dado por ela é de que a “cabeça não falava coisa com coisa”. Outro

acontecimento interessante refere-se ao dizer que sua irmã havia roubado sua

identidade: “Minha irmã estava roubando minha identidade.”

O início das suas crises pauta-se em questões relacionadas à temática da

identidade. Seja o roubo de sua identidade por parte de sua irmã, não reconhecendo

algumas pessoas ou a filiação de crianças, e por fim, a verdadeira identidade de sua

irmã, achando que ela era garota de programa. Dizia que pessoas tinham filho com

outras, que na verdade não tinham nenhuma forma de relacionamento.

Relata que certa vez estava em casa e uma tia sua chegou com algumas crianças,

que diz não saber quem eram:

Amanda: Aí esse distúrbio começou desde a casa da minha irmã. Que


eu via a Senhora, aí falava que eu queria trabalhar para mim ajudar
ela. Que ela tinha bastante filho, né? Aí eu queria trabalhar para
ajudar ela. Como aquela senhora estava morando só com aquelas
criança. Aí eu estranhei ela, né? Com bastante criança que chegou de
repente na minha cabeça, que eu sem conhecer. Aí ela pegou e chegou
de repente eu tive uma crise de ver aquelas crianças deu saber de
quem era.
Entr.: E essa senhora quem era?
Amanda: É a tia Ivana.
Entr.: A sua tia?

97
Amanda: Nós chama ela de tia. Tia emprestada. Agora ela me
explicou tudo. Contou tudo como que é a vida dela, como é a família
dela. [...]

Em outros momentos, ela afirma que na época da crise achava que as crianças

eram filhos de sua tia e que queria trabalhar para ajudá-la a cuidar deles. Em conversa

com sua irmã, a mesma afirma que este episódio não aconteceu na realidade. Afirmativa

que é confirmada com uma fala sua sustentando que as crianças chegaram “de repente

na minha cabeça”.

Além de relatar essa experiências alucinatórias ao ver a tia chegando em sua

casa com as crianças, afirma também, que via pessoas estranhas na casa dessa mesma

tia:

Amanda: Aí fui na casa de uma tia nossa emprestada, sabe? Aí lá eu


fiquei um dia lá e comecei a falar assim que ela tinha... Tinha gente
diferente na casa, ai eles viram que eu tava meio perturbada e me
internaram de novo, a segunda vez. Aí foi que eu tive todas essas
crises, né?
Entr.: Quando você fala que tinha pessoas estranhas na casa da sua
tia, como é que era? Me conta isso.
Amanda: Eram pessoas que não tinham nada a ver comigo. Eu queria
usar roupa das pessoas que não me pertencia.
Entr.: E ai você via essas pessoas na casa.
Amanda: Via.
Entr.: E quem eram essas pessoas?
Amanda: Umas pessoas estranhas que eu não conheço. Que eu não
pretendo nem reconheço. São tão estranhas que eu nem reconheço.

Durante a crise, ouvia vozes que lhe “falavam coisas perturbadoras” e lhe

mandavam brigar com sua irmã, cunhadas e sogro. Sentia ciúmes de um rapaz que

gostava de uma moça que morava na casa de fundo da casa de sua irmã, e dizia que os

dois tinham um filho. Afirma também que se sentia perseguida: “Eu achava que as

pessoas estavam querendo me pegar”. Além disso, menciona também a forma como

percebia as pessoas com as quais convive no período das crises:

98
Entr.: Amanda, o que mais acontecia durante suas crises?
Amanda: Acontecia assim... Que tudo pra mim era meu inimigo. Tudo
pra mim era meu inimigo.
Entr.: Todas as pessoas eram seus inimigos.
Amanda: Eram meus inimigos. A minha irmã principalmente. Eu não
se dava bem com a minha irmã de jeito nenhum. Cheguei a odiar.
Entr.: E o que essas pessoas tinham que você pensava que eram suas
inimigas?
Amanda: Às vezes tinha raiva de mim. A maior parte parecia que
tinham inveja, sabe? Eu sentia assim.

Esse é mais um ponto que deve ser ressaltado nas entrevistas com Amanda: a

relação que ela possui com sua irmã. Na crise tem um relacionamento hostil e até diz

que percebia as pessoas, principalmente sua irmã, como suas inimigas. Chega inclusive

a dizer que toda a sua perturbação mental, como define as crises, tem sempre relação

com a casa de sua irmã: “É tudo levado à casa da minha irmã, sabe?”. Em

contrapartida, hoje é perceptível como essa relação mudou:

Amanda: A gente brinca muito porque a gente é muito unida. Desde a


infância a gente é muito unida. Onde eu tô ela tá. Onde ela tá eu tô. É
assim. Nós saímos de casa muito cedo.

Parece até descrever uma simbiose entre as duas, uma impossibilidade de

separação. Mas por outro lado, fica evidente a sua tentativa em estabelecer uma

separação da imagem da irmã, demarcando as doenças que ela possui: “a minha irmã

tem lúpus e ela é muito doente, sabe? Ela tem... De vez em quando ela dava crises

nela”. Chega a dizer que é mais forte que sua irmã:

Amanda: [...] E minha irmã é muito fraquinha também. Ela não


agüenta pra sair, por isso que eu poupo muito ela, né?
Entr.: Você se sente mais forte que a sua irmã?
Amanda: Sinto mais forte. Com tudo os problemas que eu tenho...
Com a injeção que me baqueia também, mas eu me sinto mais forte do
que ela.

99
Hoje parece ter uma vida socialmente viável, com um trabalho e a convivência

pacífica com a irmã: “tô me entendendo com a minha irmã, também”. Esse bom

relacionamento acontece igualmente com outras pessoas, inclusive com as que teve

problemas durante a crise. Parece ainda estar compensada com a diminuição da

construção delirante.

Luciana, 41 anos, entrevistada na crise

Luciana é natural de Brasília, mora atualmente em Santa Maria e trabalha como

vigia de carro com o esposo, no estacionamento do Conic. Casou-se com 18 anos e teve

cinco filhos, quatro homens e uma mulher. Um de seus filhos, quando estava com nove

anos, sofreu um acidente e veio a falecer. Isso aconteceu há seis anos.

No momento da primeira entrevista Luciana já estava internada há 7 dias. Seu

esposo afirma que a primeira crise aconteceu aproximadamente há um ano e meio, após

ter levado um choque na máquina de lavar roupas. Relatou que após esse episódio

começou a ficar perturbada, não se alimentava direito e começou a dizer que queriam

matá-la. Esteve internada no Hospital São Vicente de Paula e fugiu há

aproximadamente duas semanas. A mãe e as três irmãs de Luciana possuem problema

mental.

No momento de sua internação recebeu o diagnóstico de transtorno delirante e

até o momento do término das entrevistas o diagnóstico foi mantido.

À primeira vista, do ponto de vista psicanalítico, pode-se questionar esse

diagnóstico realizado pela psiquiatria em função do quadro clínico revelar implicações

eminentemente corporais e bem próximas ao que encontramos na esquizofrenia. No

entanto, segundo o CID-10 (Organização Mundial de Saúde [OMS], 1997), o transtorno

delirante caracteriza-se pela ocorrência de uma idéia delirante única ou pelo conjunto de

100
idéias delirantes afins, que persistem na vida do sujeito. O conteúdo dos delírios é

variável, mas geralmente são do tipo eretomaníaco, grandioso, ciumento, persecutório e

somático. Pode apresentar também mais de um tipo ou ser inespecífico, quando não se

enquadrar em nenhum dos casos apresentados.

O diagnóstico de transtorno delirante não exclui a presença de alucinações

auditivas, desde que de forma aleatória e breve, principalmente em pessoas com a idade

mais avançada (Organização Mundial de Saúde [OMS], 1997), como é o caso de

Luciana, que apresentou a primeira crise por volta dos 40 anos.

Encontramos no quadro de Luciana a presença de alucinação auditiva, delírio de

perseguição e somático. Estes sintomas que embasam o diagnóstico psiquiátrico de

transtorno delirante, pois sua alucinação auditiva – voz de Deus – está claramente

relacionada com a sua construção delirante, pois Deus apenas diz que ela precisa fazer a

cirurgia para tirar o pescoço e ser enterrada em paz. Os delírios de perseguição –

bastante insipiente neste caso – e somático estão entre os possíveis para este quadro. Por

fim, mesmo com baixa instrução escolar não se percebe, em Luciana, um rebaixamento

cognitivo, tão pouco um comprometimento em seu comportamento ou linguagem.

O delírio somático comporta uma crença em um defeito corporal, emissão de

odores ou a percepção de que determinada parte do corpo não funciona. Essas são as

características corporais evidentes em seu relato. Além disso, o transtorno delirante tem

início mais tardio e a esquizofrenia tem início, precocemente, com comprometimentos

na vida do sujeito desde cedo (Kaplan, Sadock & Grebb, 1997/2003).

Dentre os acontecimentos que Luciana afirma ter influência no

desencadeamento de sua situação atual está a morte do seu filho:

Entr.: Antes de seu filho morrer?

101
Luciana: Antes do meu filho morrer eu era normal, depois que ele
morreu que eu fiquei assim.
Entr.: Então foi depois que o seu filho morreu que a senhora ficou
assim?
Luciana: Foi.
Entr.: A senhora acha que tem alguma relação com a morte do seu
filho?
Luciana: Eu acho que foi depressão.
Entr.: Depressão?
Luciana: É. A depressão muito grande.
Entr.: Então a senhora acha que isso contribuiu?
Luciana: Foi. Contribuiu pra poder eu ficar assim.

Diz ser necessário realizar a cirurgia do pescoço e justifica: “É pra ver se eu

melhorava de vida”. Segundo ela, precisava realizar a cirurgia para ser enterrada logo

porque as pessoas acham que ela não tem direito ao enterro:

Entr.: Tem que tirar o seu pescoço Luciana?


Luciana: Isso. Pra poder enterrar, porque eu não tenho direito a
enterro como as outras pessoas que morrem.
Entr.: A senhora não tenho direito a ter enterro?
Luciana: É.
Entr.: Por que a senhora não tem direito?
Luciana: Por que eu tô seca demais. Não me consideram como uma
pessoa comum. Me consideram uma coisa seca por que eu não tenho
corpo humano direito. Eu já tive, né? Mas agora eu não tenho corpo
humano mais.
Entr.: E o que fez a senhora não ter mais corpo humano?
Luciana: Foi o choque que eu levei.
Entr.: O choque?
Luciana: E a operação que eu fiz na barriga também.
Entr.: Que operação foi essa?
Luciana: Foi cesariana.

Neste trecho, ela explica ainda que não tem direito ao enterro por não ter corpo

humano e relata a sua percepção de estar seca. Diz estar assim pelo fato de ter levado

um choque e por ter sido submetida à uma cesariana, em uma de suas gravidez, onde diz

que o médico tirou o seu útero:

Luciana: O choque que eu levei, depressão que eu tive. Filho. Eu tive


quatro, cinco barrigada. Tive uma barrigada bem grande. Aí teve

102
que... Fui puxada a ferro. Colocaram aquele ferro e puxaram meu
útero pra fora. Ficou só os ossinhos fraco.

Juntamente com a morte de seu filho, Luciana delega uma importante

participação ao choque e à cesariana para estar com o corpo seco. Ajudando a percepção

de estar seca e não ter mais corpo humano, assegura a perda de todo o seu sangue como

outra conseqüência da cirurgia que retirou seu útero: “não tenho nem sangue mais”.

No entanto, em outra entrevista, diz não saber como foi que seu corpo começou

a apodrecer e ficar com os ossos fracos, narrando um início súbito para essa vivência

corporal, e assim para o processo psicótico:

Luciana: Não lembro bem não. Porque foi bem assim... Eu tava
dormindo, quando eu acordei tava assim.

Afirma ainda que após ter ficado assim, ouve a voz de Deus ordenando-a para

ela pedir ajuda aos médicos para tirarem o seu pescoço, pois Ele quer que ela tenha

direito ao enterro. Dessa forma, Deus parece ser o único que entende a sua situação e

que fazer busca algo por ela.

A sua diferença das outras pessoas não fica apenas na aparência corporal, mas

passa pelo direito em ser enterrada: “Porque todo mundo tem direito e eu não tenho [...]

porque eu sequei demais. Eu sequei que meus ossos ficaram secos demais”.

Após realizarem o seu desejo, e o de Deus, de retirar o seu pescoço, o que lhe

ajudará a não ver mais o claro e ficar penando na Terra, Luciana faz alusão não mais

realizar comportamentos que os seres humanos realizam, e diz qual deve ser o destino

de seu corpo:

Luciana: [...] E queima o resto mortal. Ou pode por eu no saco de


lixo e queimar o resto mortal.

103
Entr.: Por que a senhora fala que pode jogar no saco de lixo e
queimar?
Luciana: Porque eu perdi o meu direito de ter um caixão.

Fica evidente o desespero de Luciana em “conviver”, ou melhor, em ser

prisioneira desse corpo que segundo ela está seco e apodrecendo. Da mesma forma,

desesperada, tenta se ver livre dele, e em último caso, se não for possível enterrá-lo,

pode ser colocado em um saco de lixo e queimá-lo. Valida essa busca desesperada por

um destino para seu corpo da seguinte forma: “Pra poder descansar o meu corpo como

os mortos descansam. E eu tô só o esqueleto humano”. Quando questionada como é ter

um corpo que está com os ossos fracos e a carne podre, demonstra a sua terrível

vivência:

Luciana: É muito horrível. A gente não pode... Igual agora mesmo...


Eu penso que eu posso. Penso que sou forte e não sou. É muito
horrível... essa sensação. Eu não consigo nem ficar sentada direito
porque os ossos gruda.

Apresentamos aqui outro aspecto de sua vivência corporal delirante: o

apodrecimento do corpo em decorrência da comida no qual é obrigada a comer: e que

acaba apodrecendo dentro dela, ocasionando o seu apodrecimento: “Tá toda podre,

estragada a minha carne”. Este fato é explicado pela falta do ânus, parte do corpo que

não possui mais, uma vez que é feito de carne e ela não possui mais carne, só esqueleto

humano, como relata a seguir:

Entr.: E como é que vai apodrecendo o seu corpo?


Luciana: Se eu comer... Porque eu não tenho ânus mais pra fazer
cocô. Hoje eu consegui fazer uma vez... duas, né? E agora eu não
consigo mais fazer.
Entr.: A senhora não defeca?
Luciana: Não.
Entr.: O que acontece que a senhora não defeca?
Luciana: Porque ele não abre mais, o meu ânus.

104
Ela chega a dizer que já morreu: “É, já morri. Só o cérebro que funciona”.

Quando questionada por que o cérebro ainda funciona, responde: “Porque eu ainda falo

ainda. Fico conversando ainda”.

A forma que Luciana encontrou para lidar com este corpo, que é vivenciado

apenas como esqueleto humano, que apodrece cada dia mais e acaba por ser percebido

como morto, sem vida, foi por meio da explicação de que é fruto do provérbio da carne

seca e dos ossos fracos:

Luciana: Eu acho que sou provérbio da carne pouca.


Entr.: A senhora é o que?
Luciana: Provérbio da carne pouca.
Entr.: Provérbio da carne pouca?
Luciana: É. Porque meu corpo era mais carne, né? Não era osso. Aí
eu fui secando, secando, tomando remédio. Internação, quiseram dar
soro, aí eu fico assim. Por isso.
Entr.: O que é ser provérbio da carne pouca?
Luciana: É muito ruim. Eu tenho os ossos fracos. É muito ruim
mesmo.
Entr.: Então a senhora se sente o provérbio da carne pouca e dos
ossos fracos?
Luciana: Isso.
Entr.: E o que diz nesse provérbio?
Luciana: Provérbio que sofre muito.
Entr.: Sofre muito?
Luciana: É que sofre muito mesmo.
Entr.: O que a senhora está querendo me dizer, é que a senhora é
fruto de um provérbio, é isso?
Luciana: Isso.
Entr.: E esse provérbio está escrito em algum lugar?
Luciana: Na Bíblia Sagrada.
Entr.: Na Bíblia? Então na Bíblia...
Luciana: Que já se tornou seca. Uma galha seca.
Entr.: Então a senhora é o provérbio da carne seca e dos ossos
fracos, que depois vira uma galha seca?
Luciana: É.
Entr.: É isso?
Luciana: Que eu virei, né? Fiquei seca.
Entr.: E isso está escrito na Bíblia?
Luciana: Escrito na bíblia. Na Bíblia tá escrito.
Entr.: Então a senhora é fruto de um provérbio da Bíblia, é isso? E foi
Deus que quis a senhora assim?

105
Luciana: Foi eu... Foi o que aconteceu comigo. Foi eu. Eu era forte e
depois foi só murchando e fiquei desse jeito.

Essa tentativa de construção delirante tem o objetivo de dar conta dessa horrível

vivência do corpo que murcha, apodrece e precisa ser aniquilado e enterrado, ou jogado

no saco do lixo para queimar.

Por outro lado, diz que quando era crente, Deus disse a ela que isso aconteceria:

“Quando eu era crente ele (Deus) falou que eu ia sofrer muito, que eu ia ficar desse

jeito” e justifica: “Porque ele disse que ia ser difícil achar uma pessoa para coisar o

pescoço meu”.

Durante a internação, a sua grande busca é por alguém que consiga levá-la para

falar com um cirurgião no intuito dele retirar o seu pescoço: “Quero tirar esse pescoço

aqui, pra ver se eu descanso”. E pede desesperadamente para que alguém lhe ajude:

Luciana: Em nome de Jesus eu peço. Jesus foi crucificado na cruz e


eu fui crucificada no meu corpo. Tem até as marcas da cruz olha.
[estende as duas mãos, mostrando que possui as chagas como as de
Cristo]
Entr.: A senhora está me dizendo que Jesus foi crucificado na cruz e a
senhora foi crucificada no corpo da senhora?
Luciana: Isso.
Entr.: E aí nas mãos da senhora tem até as marcas que a senhora
estava me mostrando?
Luciana: Da cruz. É.

Após o relato de alguns elementos clínicos dos casos e de fragmentos de

discurso dos sujeitos, passaremos a discutir alguns eixos apresentados pela teoria

psicanalítica, que podem ser relacionados à produção de sintomas na psicose.

Trataremos cada um dos eixos como uma tentativa de buscar outro entendimento do

processo psicótico e do sentido da produção do sintoma nos casos de João, Carla,

Amanda e Luciana.

106
Tentando desenvolver uma seqüência lógica para facilitar o entendimento e a

influência de um eixo no outro, a ordem que apresentaremos será a seguinte: a questão

corporal, a problemática do narcisismo e a relação com a realidade na psicose.

3.2. A questão do corpo

“Jesus foi crucificado na cruz e eu fui


crucificada no meu corpo” (Luciana).

Para iniciar, será necessário identificar as idéias psicanalíticas em relação ao

corpo para só depois refletirmos como essas idéias se articulam na clínica específica da

psicose, quando recorreremos a outros autores para discutirmos questões relevantes à

temática corporal dos sujeitos psicóticos.

O corpo que a psicanálise se refere é o corpo enquanto objeto para o psiquismo,

que se empresta para a representação inconsciente, é altamente investido numa relação

de significação e se apresenta edificado em seus fantasmas e em sua história (Mandet,

1993, citado por Lazzarini & Viana, 2006). Dessa forma, na obra freudiana, o conceito

de corpo traz consigo três dimensões essenciais: Körper, Leib e Soma (Assoun, 1995,

citado por Lazzarini & Viana, 2006). Como Körper tem-se o “corpo real, objeto

material e visível que ocupa um espaço e pode ser designado por uma certa coesão

anatômica” (p. 242), como Leib tem-se o “corpo capturado na sua própria substância

viva, [...] princípio de vida e de individuação” (p. 242) e por fim, como Soma tem-se o

corpo enquanto “corpo somático” (p. 242). Essas três dimensões estarão presentes em

toda a construção freudiana sobre a temática corporal. No entanto, é importante

salientar que o verdadeiro corpo para a psicanálise é o corpo enquanto objeto da pulsão.

A idéia de corpo que a psicanálise constrói excede o campo somático e se constitui

107
enquanto um todo em funcionamento ligado com a história do sujeito (Lazzarini &

Viana, 2006).

O corpo para a psicanálise obedece às leis do inconsciente, determinando uma

mudança na forma de tratá-lo que transpõe da lógica da anatomia para a lógica da

representação (Birman, 1991). Equivale dizer que o corpo que a psicanálise se propõe a

trabalhar é atravessado pela linguagem (Fernandes, 2003).

Dessa forma, o corpo de uma pessoa constitui-se por uma superfície que é capaz

de dar origem a sensações tanto internas quanto externas. Estabelecendo a relação entre

corpo e eu, Freud (1923/1996) chega à conclusão de que o eu é, em sua essência e

acima de tudo, um eu corporal e não uma entidade de superfície. O eu tem sua origem

nas sensações corporais, de forma especial das quais se originam da superfície do corpo.

Assim, ele pode ser compreendido como uma projeção mental da superfície do corpo, o

que nos faz pensar que as noções de corpo e eu estão intimamente relacionadas, e nos

permite entender o eu como fundamentalmente corporal, mas não devemos reduzir o eu

como análogo ao corpo, e, sim, que a subjetividade emerge segundo uma lógica

corporal da projeção (Lazzarini & Viana, 2006).

Ao se referir à questão da organização do corpo, Freud (1905/1996)

complementa, a primeira das suas formulações, dizendo que a criança, no início, toma o

seu próprio corpo de forma auto-erótica, onde a satisfação não pode ser adquirida por

meio de outras pessoas, mas, sim, no próprio corpo do indivíduo; o que acaba por

inaugurar o corpo como objeto da pulsão, em detrimento de um objeto externo. Neste

momento, a satisfação estaria distribuída por várias partes do corpo da criança, o que

Freud chamou de “zona erógena”. Essa fase do desenvolvimento infantil é caracterizada

108
pela existência de uma série de “pulsões parciais”, calcadas em partes do corpo

libidinizadas.

Em um segundo momento, o sujeito para de adotar o próprio corpo como objeto

de satisfação e passa a escolher outro objeto externo para a realização desta satisfação.

O auto-erotismo é abandonado e a função de objeto, que era ocupada pelo próprio corpo

do sujeito será substituída por um objeto externo. Mas antes, presenciaremos a

unificação dos diversos componentes do corpo, que eram marcados como pontos de

satisfação das pulsões parciais, e que denota a existência de um corpo partido,

parcializado, e sua substituição por um único objeto, representado pela unicidade do

corpo próprio (Freud, 1917[1916-1917]a/1996). Mas esta substituição do próprio corpo

como fonte de satisfação para outro objeto externo é um processo que “[...] só pode ser

realizado se o objeto, de novo, for um corpo total, semelhante ao do próprio sujeito. E

não pode ser efetuado, a menos que algumas pulsões auto-eróticas sejam abandonadas

como inservíveis” (p. 333).

A passagem do eu corporal para o eu enquanto expressão que denota o

aparecimento do sujeito enquanto tal, ocorrerá como conseqüência do estágio conhecido

como narcisismo, neste momento, conhecido como narcisismo primário. A evolução da

dispersão para a unidade, que torna possível a emersão do eu e do corpo, decorre da

passagem do auto-erotismo para o narcisismo. Essa passagem do corpo fragmentado e

disperso para uma imagem totalizada de si próprio fará com que a relação do sujeito

com os seus objetos seja outra, uma vez que o corpo deixa de ser encarado como o

único objeto existente. O corpo do sujeito não mais corresponderá à imagem

despedaçada do corpo auto-erótico das fases pré-genitais, mas, sim, a imagem do corpo

unificado do narcisismo (Dias, 2001). Aqui se fala de um narcisismo primário, onde o

109
seu objetivo é a obtenção da imagem totalizada do eu como objeto da pulsão, como o

próprio eu do sujeito.

Neste sentido, Lazzarini & Viana (2006) apontam que a concepção de

narcisismo freudiano diz respeito a uma fase em que o corpo próprio emerge de forma

totalizada, interessando essencialmente à temática do corpo. É no narcisismo que o

corpo recebe o significado de si, por meio de sua erotização. Para Birman (1999),

a resultante dessa operação é a construção do eu e do corpo unificado


que são as duas faces da mesma realidade, pois para o sujeito a
experiência de ter e ser eu implica para ele habitar um corpo
unificado. A condição de unificado remete à noção de ser um, uno, eu,
matéria, corpo que se inscreva no espaço e no mundo (p. 35).

No entanto, como dissemos no capítulo anterior em relação às psicoses, Freud

(1905/1996) traz a possibilidade de ocorrer fixações nas mais diversas etapas do

desenvolvimento psicossexual do indivíduo. No caso da esquizofrenia, esta fixação

ocorre justamente no auto-erotismo, momento em que também acontece o completo

abandono objetal. Esta fixação no auto-erotismo vai determinar, de certa maneira, a

forma como o sujeito com diagnóstico de esquizofrenia vai lidar com o próprio corpo,

uma vez que há uma regressão a esse corpo parcializado e fragmentado.

A esse respeito, podemos observar a fala do João com o diagnóstico de

esquizofrenia, que evidencia o esvaziamento de si neste momento de regressão: “Tudo o

que eu vou fazendo é como se fosse um boneco, um inflado, fico aí, fico a mercê deles”.

Neste fragmento, é possível observarmos que para além do sintoma de

despersonalização e desrealização como o corpo próprio é apreendido pelo sujeito no

momento da crise como algo inflado, sem conteúdo, que não tem vida e pode ser

facilmente conduzido pelos outros. Nota-se um profundo esvaziamento do sujeito. O

110
delírio de influência, percebido pelo final de sua frase “fico a mercê deles” será

retomado mais à frente, quando passaremos a tratar mais especificamente deste ponto.

Outra fala de João nos ajuda a apreender essa percepção na via do

desmoronamento corporal presente na psicose: “Alguma coisa está se desmontando,

alguma coisa...”. O seu corpo é percebido como se desmontando, mas o sujeito não

consegue identificar que se trata dele, apenas diz que alguma coisa está se desmontando.

Fazendo menção à outra passagem de sua entrevista clínica, percebe-se, de

forma especial, essa vivência do corpo próprio como despedaçado. No momento em que

diz ouvir vozes que falam com ele, relata seu comportamento:

João: Aí eu levanto, fico andando na sala, fico andando na casa, vou


na cozinha, vou nos quartos, vou no quarto do meu irmão, vou no
banheiro e nada. Aí eu vou fazer xixi. Quando sinto o xixi que olho
pro vaso e vejo aquele xixi descendo, parece que sou eu que estou
descendo lá dentro. Aí fico agoniadinho.

Neste momento, percebe-se que o eu do sujeito é destituído de sua função

unificante, onde uma parte do corpo representada pela urina passa a ser tomada como

todo o corpo que vai embora pelo vaso sanitário: “[...] olho pro vaso e vejo aquele xixi

descendo, parece que sou eu que estou descendo lá dentro”. Seu invólucro corpóreo

parece não delimitar e sustentar o seu eu, que se percebe escorrendo pelo vaso sanitário.

Além disso, uma parte é tomada no lugar do todo. A urina e os fluidos corporais

são percebidos como o eu do sujeito que desce pelo vaso. Esse fato é explicado por

meio da regressão ao auto-erotismo trazendo a posição de “prazer de órgãos”, momento

em que uma parte do corpo é tomada como o corpo inteiro (Menezes, 1996).

Na psicose, de forma especial na esquizofrenia, o sujeito parece sempre fazer

menção a uma imagem do corpo próprio como algo despedaçado, sem unidade. Isso

111
acontece tanto de forma inconsciente, como conscientemente em certos momentos

(Menezes, 1996).

A continuação dessa parte da entrevista nos esclarece bem sobre essa percepção

do sujeito, ser ele mesmo que está descendo pelo vaso sanitário, que ocorre no momento

das crises:

Entr.: Você disse que quando vai ao banheiro urinar, às vezes você
olha para aquela urina que está no vaso e se percebe indo ali. Como
que é isso? Como isso acontece?
João: É só na minha mente. Eu faço xixi, e quando estou lá fazendo o
xixi, parece que tem alguma coisa ali que tá querendo me sugar lá pra
dentro [...].
Entr.: E essa situação de se ver indo no xixi acontece com
freqüência?
João: Só quando eu tô assim perturbado, quando eu tô... Não é
freqüente não. É só quando eu tô perturbado, eu tô agoniado... Com
as vozes falando, falando, falando, aí eu vou, aí na hora que eu vou
fazer xixi, isso acontece...
Entr.: Então é nos momentos de crise que isso acontece?
João: É, isso acontece. Quando eu to tranqüilo não tem nada. Vou lá
no banheiro faço xixi normal dou descarga, não vejo nada, não ouço
nada. Só na hora que estou agoniado, perturbado, que sinto parecer
que vou descer na descarga ou alguém está descendo lá, não sei.

A esse respeito, Metzger (2006) diz que na psicose a questão crucial está na

fragmentação a que o eu do sujeito está submetido. Completando essa idéia, na

psicanálise o estudo da constituição do eu e do narcisismo são o centro da discussão a

respeito da organização psicótica. São as falhas ocorridas nesses dois processos que

darão início aos mecanismos patogênicos porque serão uma barreira para a constituição

do eu como “imagem de si” e a transposição do auto-erotismo para o amor objetal

(Menezes, 1996).

A fim de alargar o entendimento com relação a essa fragmentação, vamos

recorrer às idéias de Anzieu (1989), que formula a noção do Eu-pele como um

“envelope narcísico” e tem como objetivo garantir um bem-estar de base ao aparelho

112
psíquico. Ou seja, trata-se da própria representação que a criança teria de si mesma no

início do desenvolvimento, como um eu que possui conteúdos psíquicos por meio de

sua experiência da superfície corporal. De forma bem semelhante ao que propõe Freud

(1923/1996), para Anzieu (1989) o envelope psíquico teria sua origem ancorada no

envelope corporal. Além disso, “a constituição do Eu-pele é uma das condições da

dupla passagem do narcisismo primário ao secundário e do masoquismo primário ao

masoquismo secundário” (p. 46). Como dissemos logo acima, na psicose, de forma

especial a esquizofrenia, o sujeito apresenta uma fixação no auto-erotismo, estágio

anterior ao narcisismo. O que nos faz pensar que neste caso o Eu-pele não se formou a

contento, deixando o sujeito sem esse “envelope” corporal e psíquico bem definido.

Este fato de não possuir as demarcações corporais e psíquicas bem definidas acabará

por contribuir para que este sujeito também seja alvo de influências externas que lhe

invadem e tomam conta dele.

Este Eu-pele “frágil” vai demonstrar a fragilidade da integração do eu do sujeito,

que é possível de observação por meio da insuficiente barreira entre o dentro e o fora

apresentada por João. A fragilidade também ajudará a determinar o alto grau de

influência externa que lhe invade: “É espiritual, é um mal espiritual, vem lá do mundo

dos espíritos, sei lá. Não sei como é isso. Sei que é o demônio que está aí solto, está só

esperando a gente abrir uma brecha que ele vai entrar e ‘pum’, vai pegar a gente de

cheio”. Essa fala nos remete à possibilidade de uma abertura, uma brecha no corpo, e

dessa forma no eu do sujeito, que deixa algo de fora poder entrar e dominar o interior,

como ele bem relata em duas passagens: “Fico ao léu” e “É tipo uma coisa que toca em

mim e fico sem controle”.

113
Em certo momento João parece ter consciência dessa influência pela qual sofre

devido às forças negativas que ele diz que estão na atmosfera e o controlam, ao relatar,

percebe sofrer uma “influência do mal que está aí solto, que eu acho que existe e fica o

demônio aí solto esperando só uma brecha para entrar”. Mais uma vez observa-se o

aparecimento da temática da brecha que permite a entrada de algo que irá controlá-lo.

Em outra passagem, diz que as vozes deixam claro que são elas que comandam: “Agora

você não é nada. Nós que mandamos. Deixa quieto. Vai fazendo. Nós vamos mandando

e você vai fazendo”. Neste trecho, as vozes citadas por que João e que remetem às

forças negativas, deixam claro o controle que exercem em sua vida, dizendo que são

elas que o comandam, e que a ele só resta realizar o que elas ordenam. João, no entanto,

se deixa guiar pelo comando das vozes, atendendo-as e demonstrando que elas

realmente exercem influência em sua vida, como relata abaixo:

Entr.: E você acaba fazendo o que as vozes lhe pedem?


João: Acabo fazendo o que as vozes estão mandando.
Entr.: E o que acontece depois que a voz lhe manda fazer alguma
coisa e você faz?
João: O que acontece?
Entr.: Sim, como você se sente?
João: Eu me sinto fraco, muito fraco. Muito sem controle.

Podemos lembrar aqui, a teoria sobre o aparelho de influenciar do

esquizofrênico, formado por caixas, manivelas, alavancas, rodas, botões, fios e baterias.

Dentre as principais formas de intervenção do aparelho, está a apresentação de imagens

ao sujeito, a produção ou furto de pensamentos e sentimentos, produção de ações

motoras, sensações e outros fenômenos somáticos. No entanto, o seu principal objetivo

é perseguir e manipular o sujeito, a expensas de inimigos (Tausk, Katz & Birman,

1990).

114
Segundo os autores, a maioria dos sujeitos psicóticos “acusam esses fatores sem

atribuí-los à ação de um aparelho” (p. 41-42). Nestes casos, as alterações são atribuídas

à influências psíquicas estranhas, sugestão ou força telepática com origem nos inimigos.

A manifestação por meio de um aparelho só acontece tardiamente, após avançar por

várias etapas que vão apenas da sensação de estranheza até a completa percepção do

aparelho de influenciar nas alterações vivenciadas.

Retornando à influência que as vozes exercem na vida de João, ele as identifica

como uma perseguição: “Aí começava aquelas perseguições de vozes me dizendo, ‘não,

volta, volta’”. O que pode ser entendido como uma forma de perceber a influência das

vozes. As vozes deixam de ser aquilo que apenas o controla, e passam a ser percebidas

também como algo que persegue.

Essa questão sobre a influência a que os sujeitos psicóticos estão submetidos,

nos remetem à temática da dificuldade de diferenciação entre o eu e o não-eu presente

na psicose. É no processo de constituição do eu que ocorre o delineamento do sujeito e

tem origem os limites entre eu/outro, dentro/fora (Metzger, 2006). Cabe aqui retomar a

noção de Eu-pele para tratarmos das três funções básicas que lhe competem: delimitar o

dentro e o separar do fora, ao mesmo tempo em que também deve ser o local de

comunicação com os outros e, por fim, ser o continente que armazena as boas

experiências (Anzieu, 1989).

Como já dissemos, na psicose, o sujeito desenvolve esse envelope corporal e

psíquico, denominado por Anzieu de Eu-pele, de forma não satisfatória, o que prejudica

a execução de suas funções básicas. A delimitação dentro/fora e a diferenciação

eu/outro não acontecem a contento. Podemos verificar essa dificuldade na diferenciação

eu/outro na fala de João, ao relatar o que as vozes lhe falam: “Eu não sei o que mais o

115
que elas falam. Só sei que elas ficam buzinando no meu ouvido ‘vamos’, ‘vamos sair’,

‘vamos andar’, ‘vamos caminhar’, ‘vamos correr’”. As vozes não lhe mandam

simplesmente fazer algo, elas dizem para que ele o faça juntamente com elas. Parece

existir certo grau de fusão entre as vozes e o entrevistado. Essa não separação eu/outro,

também, contribuirá para que o sujeito seja alvo de influências vindas desse “outro”.

Essa dificuldade de diferenciação de João com as vozes fica mais explícita em

outro momento quando questionado sobre o que mais as vozes lhe mandam fazer:

Entr.: Você já me falou que às vezes elas te mandam andar, correr, o


que mais elas te mandam fazer?
João: Comer. “Vamos comer”, “vamos comer”. Quando estou em
casa, se tiver alguma coisa pra beliscar, tô lá beliscando, comendo, ai
eu esqueço que tenho que almoçar e tal, sempre mastigando...
Entr.: Mas isso é uma vontade sua ou são as vozes que te mandam
fazer?
João: Acho que é vontade minha, não sei se também das vozes. Não
sei se as pessoas não gostam, se geralmente é isso.

Ele não consegue diferenciar as suas vontades às das vozes. Parece estar tudo em

um emaranhado que dificulta a separação do que é propriamente seu e o que

corresponde ao seu desejo e o que vem de fora ou é do outro. As vozes se configuram

então como o retorno do rejeitado, foracluído, e toca o real do corpo (Lacan, 1955-

1956/2002).

Se seguirmos com as construções freudianas sobre o processo psicótico,

podemos observar que o adoecimento ocorre em junção da rejeição da castração, onde o

sujeito defende-se da inscrição desse registro por meio da fuga para a psicose. A

rejeição da castração impossibilitará a ruptura da fusão do sujeito com o outro, aqui

entendido como a mãe. Ou seja, o pai não cumpre o seu papel de exercer o corte entre a

mãe e a criança, possibilitando a diferenciação eu/outro (Freud, 1894/1996;

1918[1914]/1996).

116
Para Lacan (1955-1956/2002), a psicose seria decorrente do que ele chama de

foraclusão do Nome-do-pai, que consiste na exclusão desse significante primordial do

campo simbólico do sujeito. O objetivo deste significante seria desvelar a proibição do

incesto interditando a mãe, processo que também teria como conseqüência a aparição do

outro enquanto diferenciado do eu. Surge então o sujeito enquanto individualizado e

possuidor de uma identidade (Menezes, 1996).

Além dessa não diferenciação eu/outro, decorrente da falta do significante

Nome-do-pai, também podemos falar que o eu e o corpo ficam “colados” na psicose, se

confundindo entre si. Não ocorre a interdição corporal, ato necessário para a formação

do eu. Como conseqüência, o sujeito apresenta uma dificuldade em diferenciar o pensar

e o sentir. Impossibilitado de investir no campo simbólico, João acaba por investir em

seu corpo próprio. Vejamos como isso acontece por meio de uma fala do entrevistado,

ao relatar sobre as vozes que voltaram a falar com ele:

Entr.: Você consegue identificar alguma coisa que aconteceu da


última vez que nós nos vimos pra cá que tenham contribuído para que
as vozes voltassem a falar com você?
João: Ontem mesmo a noite fui para igreja 7h30 da noite, fui para
igreja participei do culto. Quando cheguei em casa, eu tomei... Eu
lanchei, e fui me deitar. Comecei a ficar confuso “meu Deus será que
estou com algum pecado?”. “Que é isso?”. Ouço vozes de alguém, de
alguém chegando, ou alguém saindo. Parece que eu tenho que estar
ali presente para ver o que está acontecendo. Quero tomar as dores
da pessoa, quero resolver o problema dela através de mim.

O que nos chama atenção é o fato de dizer que precisa resolver o problema da

pessoa por meio dele, por meio de seu corpo. Ele não está se referindo de forma

metafórica, mas de forma concreta, na concretude do corpo próprio.

Podemos demarcar, ainda, outra implicação para essa não inscrição simbólica do

significante Nome-do-pai, que consiste em um furo no campo simbólico. Uma vez que é

117
justamente a marca que o significante Nome-do-pai exerce no psiquismo do sujeito que

permite a origem e organização do campo simbólico, essa não inscrição acarretará a

ausência da simbolização primária, o que determinará uma falha na simbolização de

forma ampla na vida do indivíduo (Lacan 1955-1956/2002). Podemos perceber esse

efeito por meio das falas interrompidas e dos brancos de João:

João: Não consigo falar. Não encontro palavras para encaixar no que
você está querendo que eu responda.
Entr.: Mas quando eu lhe falo isso, o que vem a sua cabeça?
João: Dá um branco. Dá um branco.
Entr.: Você consegue me dizer como acontece esse branco?
João: Branco, como acontece? Não sei te falar.
Entr.: A única coisa que consegue dizer é que parece que as palavras
somem da sua cabeça?
João: É.
[...]
João: Tudo que eu aprendi, hoje eu esqueci. Tá apagado. Parece que
eu vou ter que começar tudo de novo, do zero.
Entr.: Você pode me explicar como é isso de ter desaprendido o que
havia aprendido?
João: Eu não sei, só sei que, por exemplo, quando eu estou com uma
pessoa, discutindo um problema, discutindo uma idéia, eu fico sem
palavra, não sei o que falar, não sei o que dizer.
Entr.: Mas o que acontece? Você não consegue encontrar as
palavras?
João: É, fica perdido. Fico perdido. Fico sem saber colocar pra falar.

Na verdade, a questão está na sua dificuldade de simbolização, onde apresenta

problemas em relacionar as palavras para que elas passem a caracterizar a coisa;

objetivo central da simbolização. Na psicose, existe uma quebra na cadeia de

significantes, o que impede que um significante se remeta a outro e assim por diante.

Em decorrência da foraclusão desse significante primordial, falta ao sujeito

psicótico “um ponto de amarração central (a referência fálica) em torno do qual se

organizam todas as significações” (Masagão, 2004, p. 270). Todas as outras

significações ficarão comprometidas ao faltar a significação primordial do Nome-do-

pai.

118
É a falta do Nome-do-pai nesse lugar que, pelo furo que abre no
significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de
onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja
alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na
metáfora delirante (Lacan, 1966/1998, p. 584).

Também nos chama a atenção a sua explicação para estes episódios de que

refere “dar branco”:

Entr.: Você já me disse como é quando você fala que deu branco, mas
você poderia tentar me explicar mais uma vez como isso acontece?
João: Fico sem idéia. Perdido no tempo. Dá um branco. Aí eu não sei
mais não. Fico perdido. Não consigo ver mais nada. Percebo como se
eu tivesse nem vida. Fico apagado.

A experiência de dar branco é um momento de aniquilamento em que fica sem

vida, fica apagado. Como referimos no capítulo teórico, Katz (1991) defende que o

humano só se realiza no simbólico, o que corrobora com a proposição de que essa

dificuldade em simbolizar na psicose, contribua para essa vivência de

despersonalização, relatada por João. Além disso, esses brancos podem ser entendidos,

em alguns momentos, como uma forma de defesa contra qualquer significante que possa

se remeter ao significante Nome-do-pai foracluído. Parece ser uma forma de se proteger

de um determinado assunto que poderia ser intolerável. Dessa idéia, podemos resgatar

outra defendida por Lacan (1955-1956/2002) de que “o que é recusado na ordem

simbólica ressurge no real”. O que não pode ser simbolizado ao ressurgir no real, o faz

em forma de alucinação.

Mas qualquer sujeito psicótico apresentaria essas características com relação à

questão corporal? A resposta mais aceitável é não. No início deste tópico, apresentamos

a idéia de Lazzarini & Viana (2006) de que o corpo na abordagem psicanalítica está

intimamente relacionado com a história do sujeito. Nesta mesma direção, Goidanich

119
(2003) defende que a vertente lacaniana também considera a história particular de cada

sujeito na “elaboração” de sua vivência corporal. “O modo como os psicóticos

constituem seu corpo e se relacionam com ele, pode ser um exemplo das grandes

variações que se pode encontrar dentro de um mesmo quadro estrutural amplo” (p. 66).

As diferenças podem ser encontradas entre os quadros da paranóia e da esquizofrenia,

como também entre sujeitos do mesmo quadro e até no próprio sujeito quando está em

crise aguda ou não.

As entrevistas com Carla demonstram bem essa diferença de vivência do corpo

próprio dentro do mesmo quadro. Mesmo sendo diagnosticada como esquizofrênica, sua

fala nos deixa a impressão de que sua vivência corporal não se assemelha com a de

João. Vejamos:

Carla: Já cresci. Já criou peito, tudo. Só que é o seguinte, eu... Eu


idealizei eu, a minha pessoa, ser idealizando com as outras pessoas
um tempo atrás. Por exemplo, eu via aquela menina assim com aquele
corpo assim redondo, não tem o quadril?
Entr.: Com cintura, com quadril...
Carla: Com cintura, com bunda arrebitada e tudo. Então eu via muito
aquelas pessoas assim, né? Aquelas meninas assim. Acho que eu já
imaginei. Aí eu ficava valorizando, olhando pra elas assim, poxa elas
são tão... Ela é tão bonita eu acho que no futuro eu vou querer ser que
nem ela. Assim bem bonita ter um corpo bem bonito. Aí aconteceu que
eu acho que eu nunca morei no Rio de Janeiro e eu sei que o pessoal
de lá usa tatuagem, não é assim? Tem cabelo bem bonito, bem
tratado, vai pro mar. Tem umas roupas bem moderna e bonita, não é
mais ou menos assim? [...] Que todo mundo usa o corpo e tal. [...] Só
que eu não vou colocar tatuagem no meu corpo, porque meu corpo é
diferente dessas pessoas que põe tatuagem, prega tatuagem no corpo,
são super bonitas e eu vendo elas vivas, né? Eu não vou gostar
porque eu sei que eu queria ser que nem elas, mas eu não sou igual a
elas, eu sei disso.

Percebe-se que a sua questão corporal passa pelo investimento narcísico no

corpo, e que sua preocupação primeira é com a beleza corporal. Relata que idealizou o

seu corpo como o de outra menina: “Ela é tão bonita eu acho que no futuro eu vou

120
querer ser que nem ela”. Parece tentar realizar um superinvestimento do corpo próprio,

o que faz com que não apresente o despedaçamento corporal característico da psicose.

Essa questão corporal altamente narcísica pode ser presenciada em outras

passagens como estas:

Carla: Minha beleza é uma beleza selvagem, por que eu acho que
meu pai tem uma beleza selvagem, um rosto selvagem de ser lá do
Piauí.
[...]
Entr.: Você sempre achou diferente o seu corpo com relação ao de
outras pessoas?
Carla: É. Eu sempre acho que é diferente

No entanto, mesmo que não apresente a falta de unidade corporal característica

da psicose, marcada pelo esfacelamento corporal, em um dado momento, apresenta um

estranhamento com a sua imagem capturada por uma fotografia:

Entr.: Quando você era mais nova C. com doze e treze anos o que
você fazia?
Carla: Eu costumo do mesmo jeito, aqui. Aqui aconteceu umas
coisinhas. Meu irmão começou a estudar, ai começaram a bater
fotografia minha, né? Aí eu fiquei olhando o meu rosto, eu fiquei
achando estranho.

Esse estranhamento do corpo “refletido” na fotografia que Carla apresenta, faz

com que lancemos mão de uma importante idéia de Lacan (1966/1998), que diz respeito

ao estádio do espelho. Segundo o autor, é este estádio que possibilita a origem

imaginária da função do eu e a sua conexão com a imagem do corpo. Este é o momento

em que o bebê reconhece a imagem refletida no espelho como sua. O autor explica

ainda que:

[...] o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se


da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito,
apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se
sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de

121
sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura
enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua
estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (Lacan,
1966/1998, p.100).

Em outras palavras, o que Lacan quer dizer é que a ascensão da imagem do eu

ocorre por meio da afinidade com a imagem corporal pela qual o indivíduo antecipa, de

forma fantástica, a sua maturação motora (Lima, 2005). Para ele, o eu constitui-se a

partir da imagem do outro. Nessa perspectiva, o corpo é entendido sob o ponto de vista

do imaginário, onde se leva em consideração a imagem do corpo próprio a partir do

outro como indispensável para a gênese subjetiva e a imagem que o sujeito assume

(Cukiert & Priszkulnik, 2002). Percebe-se em Lacan, assim como em Freud, uma

estreita relação entre o corpo e a constituição do eu.

Segundo Lacan (1966/1998) o estádio do espelho deve ser compreendido como

uma identificação em seu sentido pleno, ou seja, a transformação que o sujeito está

submetido ao assumir que a imagem refletida no espelho é sua. A sua função seria

estabelecer uma relação entre o organismo e a sua realidade.

O estranhamento relatado por Carla com relação a uma parte do seu corpo, mais

precisamente o seu rosto, parece ter alguma ligação com a dificuldade de organização

da imagem de si. O estranhamento com sua imagem na foto presentifica essa não

identificação primária, idéia essa que pode ser confirmada pelo alto grau de idealização

que ela apresenta com relação ao seu corpo. O que também pode ser confirmado pela

afirmação da importância que o espelho tem na aquisição da noção do corpo próprio

(Cukiert & Priszkulnik, 2002). Ainda, o estágio do espelho

é a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem


passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como
outro que não ele mesmo – dimensão essencial do humano, que
estrutura toda a sua vida de fantasia (Lacan, 1975/1986, p. 96).

122
Esta definição de Lacan se torna muito interessante, na medida em que é essa

imagem especular permite que a criança estabeleça a relação de seu corpo com o seu eu,

e a realidade que a contorna (Cukiert & Priszkulnik, 2002). Mas para tanto, são

necessárias duas etapas importantes: “o reconhecimento da imagem e a possibilidade de

reportar essa imagem a si mesmo” (Ferrari & Alcântara, 2004, p. 9). Para se chegar a

essa segunda etapa, é necessário que ocorra uma descentração de si para que seja

possível reconhecer aquela imagem como sua: imagem esta que é exterior a si. Como

se percebe, no caso de Carla, parece que a “falha” está na segunda etapa, que retorna no

momento em que se estranha com a imagem reportada pela fotografia. Ela não é capaz

de sair um pouco do centro para reconhecer a fotografia como uma imagem sua. Freud

(1914a/1996) caracteriza esse estranhamento como conseqüência do desencontro entre a

imagem do corpo e a forma com que o eu do sujeito é percebido durante o processo

psicótico.

Segundo Menezes (1996), o episódio de estranhamento pode ser caracterizado

da seguinte maneira:

A estranheza encontra-se associada à discordância, é uma experiência


angustiante, caótica, onde o mundo interior está perturbado e há uma
série de modificações em relação ao corpo próprio que muitas vezes
são projetadas no mundo externo. Essa experiência terrificante é
vivenciada no corpo ou ao nível do pensamento como uma verdadeira
experiência de fragmentação e despersonalização com transformação e
metamorfose corporal (p. 9).

Paralelamente a este episódio em que o seu corpo lhe parece estranho, relata

outro que nos remete à questão da falha na simbolização presente na psicose, como

apresentado acima. Momento este em que parece estar “fora de si”, despersonalizada,

demonstrada pela palavra aérea que utiliza:

123
Carla: [...] Aí a cabeça fica toda aérea.
Entr.: Aérea, você fica assim?
Carla: É fico toda aérea. Aérea sem saber o que fazer mais da minha
vida. Sempre naquela vidinha.

Outra passagem também traz para a discussão a questão da falha na

simbolização, no que diz respeito à concretude esquizofrênica, onde as palavras

assumem o estatuto de coisa (Lacet, 2004), ao tentar definir como seria a dor de cabeça

que sente:

Carla: Assim. Não tem a agonia? As agonias de Jesus no horto das


oliveiras? Então, agonia é uma dor assim muito forte. Assim, muito
tipo... O limão é azedo, então a dor é muito assim forte também ás
vezes. Horrível, né? Aí eu tenho medo de ficar pulando, ficar fazendo
besteira, quando eu sinto essas coisas.

Em sua explicação do que seria a sua dor de cabeça, relaciona com a agonia de

Jesus no horto das oliveiras e precisa utilizar-se de algo concreto como o azedo do

limão, para explicar o que vem a ser essa agonia. Este fato também se relaciona com a

falta do significante Nome-do-pai ocasionado pela dificuldade de simbolizar, momento

em que o sujeito toma a palavra com o estatuto de coisa.

Percebemos de forma evidente na fala de Carla o que Freud (1915/1996)

chamou de linguagem de órgãos, onde as palavras se relacionam com o corpo próprio

do sujeito. O corpo é colocado no centro de suas narrações e de sua existência. Tudo

possui imediata e direta referência ao corpo e às sensações provindas dele (Caropreso &

Simanke).

Por fim, no caso da Luciana, mesmo que seu diagnóstico seja de transtorno

delirante, seu corpo é percebido de forma terrível como seco, sem ossos e apodrecendo:

Entr.: Dona Luciana, o que está acontecendo com a senhora, que a


senhora precisou vir para o hospital?

124
Luciana: Eu tô... Eu sequei demais, minhas carnes secaram, meus
ossos está tudo estralando. E eu precisava coisar esse pescoço meu.
Entr.: E o que tem ai no pescoço?
Luciana: Que tá quebrado. Esse pescoço tá quebrado.
Entr.: Está quebrado?
Luciana: Tá.
Entr.: O que tem nele que a senhora disse que está quebrado?
Luciana: O osso que eu não tenho mais. Não tenho osso. Só tenho
vertebrado aqui nas minhas costas, olha. [Levanta a blusa e mostra
algumas vértebras em sua coluna lombar que estão salientes] Olha.
Não tenho osso mais, duro.
Entr.: A senhora está falando pra mim que a senhora não tem mais a
coluna?
Luciana: É. Não tenho mais coluna e nem quadril, sabe? Eu tinha
muito quadril, né? E agora eu não tenho mais, tá só sumindo.
Entr.: E o que aconteceu com a coluna e o quadril da senhora?
Luciana: Primeiro eu levei choque. Depois eu... Através dessa vez
estou com os ossos tudo apodrecendo.
Entr.: A senhora sente que está apodrecendo?
Luciana: É.
Entr.: E como é que vai apodrecendo?
Luciana: Se eu comer, porque eu não tenho ânus mais pra fazer cocô.
Hoje eu consegui fazer uma vez... duas, né? E agora eu não consigo
mais fazer.

Com base em seu relato, identificamos a presença da percepção do corpo próprio

como apodrecendo, secando, sem ossos e com o pescoço quebrado. Neste caso,

percebe-se que a questão corporal relaciona-se com um grande esvaziamento de si.

Essa afirmação é corroborada pela idéia de que a experiência corporal não é de

ordem inata. O acesso ao corpo acontece mediante uma série de ações que são mediadas

pelo simbólico (Lazzarini & Viana, 2006). Assim, “a apreensão do corpo pelo sujeito

exige, contudo, que uma nova operação tenha lugar. Esta operação, pela qual o corpo é

subjetivado, é da ordem do imaginário, à medida que depende do investimento de uma

imagem – a imagem do corpo” (Elia, 1995, p. 152-153).

Como vimos em seu relato clínico, Luciana diz, de forma delirante, ser fruto do

provérbio da carne seca e dos ossos fracos e hoje está como uma galha seca. Além

125
disso, relata que ouve a voz de Deus que lhe diz para retirar o pescoço a fim de poder

ser enterrada e descansar em paz.

Em certo momento chega a relatar que não tem corpo:

Luciana: [...] Não me consideram como uma pessoa comum. Me


consideram uma coisa seca por que eu não tenho corpo humano
direito. Eu já tive, né? Mas agora eu não tenho corpo humano mais.

Relata também a agonia que sente ao ver as pessoas deitarem, porque eles têm

um corpo para isso e ela não:

Luciana: [...] Eu deito na cama e fico agoniada. Porque eu vejo as


pessoas encostam o corpo e tem corpo pra encostar. E eu não tenho
mais, né? Tenho esqueleto. Só esqueleto humano.

Dessa maneira, percebe-se que a questão corporal, no caso de Luciana, está

relacionada com a imagem do corpo próprio que acontece de forma falha e se remete a

um corpo apodrecido, seco e sem ossos. O corpo é percebido como algo estranho,

desconhecido, gerando uma apreensão, como corpo próprio, impossível de se realizar

(Lazzarini & Viana, 2006), como percebemos neste trecho:

Entr.: Tem algum sentido a senhora ser assim?


Luciana: Não, porque eu já nasci assim.

Relata que já nasceu como está hoje, o que percebemos como uma forma de

falar de sua despersonalização de forma “originária”. Ou seja, a subjetivação de seu

corpo próprio por meio do investimento na imagem corporal não aconteceu em Luciana

de forma favorável a ponto de não tornar possível que ela tenha uma imagem corporal

satisfatória, mas, sim, uma imagem que vacila entre um corpo existente e não existente.

126
Ainda sobre este assunto, é importante ressaltar que em alguns casos, o sujeito

psicótico parece ignorar seu corpo de forma radical, atuando como se este não lhe

dissesse respeito ou o tomam como uma carcaça da qual podem prescindir (Goidanich,

2003). A fala de Luciana sobre o seu corpo nos sugere que no seu caso acontece

justamente essa atitude de ignorar o corpo, como fica claro ao afirmar que não possui

corpo humano.

Mesmo com a presença de toda essa vivência corporal terrificante, não podemos

dizer que a sua experiência se assemelhe com a de um caso de esquizofrenia. Todo o

seu reinvestimento tem como objetivo a organização corporal, onde pela via delirante

constrói uma tentativa de explicação para esta vivência. O delírio é a tentativa de

sistematização de uma saída para este corpo que apodrece e se encontra com partes

quebradas, diferentemente do que encontramos no caso de João. No caso dele, ao se ver

indo para o vaso sanitário com o xixi não procura explicar ou sistematizar uma saída

possível para tal fato. Tudo se resume à agonia da experiência de se ver indo em uma

parte do seu corpo que recebe a significação do corpo inteiro.

Luciana apresenta um corpo seco, sem ossos e apodrecido, mas a sua vivência,

por mais próxima que seja, não se iguala ao despedaçamento corporal e a fragmentação

do eu presente na esquizofrenia.

No caso da paranóia, a fixação ocorre um pouco mais à frente do auto-erotismo

da esquizofrenia, acontecendo no estágio do narcisismo, momento em que está

acontecendo a organização corporal. Esta diferença faz com que o sujeito acometido por

esse transtorno tenha uma vivência do corpo próprio mais satisfatória que no caso da

esquizofrenia.

127
No caso de Amanda, a questão corporal se relaciona com a construção delirante,

particularmente o delírio de roubo de identidade como demonstramos no caso Schreber.

Para ela, sua irmã roubava sua identidade e demonstra que também realizava certa

confusão com relação à identidade das pessoas. Vejamos alguns extratos de suas

entrevistas:

Entr.: O que te fez procurar o hospital?


Amanda: Eu tive um distúrbio mental, um distúrbio que a cabeça fala
coisa com coisa. As pessoas estavam... Minha irmã estava roubando
minha identidade.
[...]
Amanda: Aí esse distúrbio começou desde a casa da minha irmã. Que
eu via a senhora, aí falava que eu queria trabalhar para mim ajudar
ela. Que ela tinha bastante filho, né? Aí eu queria trabalhar para
ajudar ela. Como aquela senhora estava morando só com aquelas
criança. Aí eu estranhei ela, né? Com bastante criança que chegou de
repente na minha cabeça, que eu sem conhecer. Aí ela pegou e chegou
de repente, eu tive uma crise de ver aquelas crianças deu saber de
quem era.
Entr.: E essa senhora quem era?
Amanda: É a tia Isabel.
[...]
Entr.: Amanda, você disse que tem medo de falar novamente as coisas
que falou quando estava em crise. Você lembra o que eram essas
coisas que você falava?
Amanda: É das coisas que eu falava. Da identidade. Da tia Isabel.
Da... Da... Da dona Abadia que eu falava as coisas pra ela pesada,
né? Que eu brigava muito com ela. Aí eu tenho medo, né?
Entr.: Eu tenho interesse de saber que coisas são essas, você pode me
falar?
Amanda: É das identidades. Da troca das identidades.
Entr.: Fala um pouco mais sobre essa questão da troca das
identidades.
Amanda: Eu falava que a minha irmã pegou minha identidade pra...
pra... Pra me trair, entendeu?
Entr.: Você acha que ela queria te trair com o quê?
Amanda: Meus documentos.
[...]
Amanda: A creche é lá em casa, né? Aí a gente cuida das crianças
todinha. Dá banho, dá comida. Agora eu sei quem é mãe, porque a
dona tia Isabel eu não sabia quem era mãe, sabe? Quem era mãe e
quem era o pai.

128
Uma análise dessas falas de Amanda nos faz levantar a hipótese de que a sua

construção delirante diz respeito à questão da sua identidade, enquanto pessoa, e de

outras pessoas, como das crianças que diz ter visto chegar com a tia em sua casa. Não é

possível verificar a vivência do corpo próprio como despedaçado. No entanto, chama a

atenção o fato de que sua construção delirante se relacione com a questão da identidade,

aqui interpretada por nós como algo que representa e personifica a pessoa nomeada no

mesmo, principalmente no que diz respeito ao seu roubo por parte da irmã que tem

lúpus, doença de cunho psicossomático e que se relaciona com a questão de pele do

sujeito que a possui.

De forma conclusiva, percebe-se que parece ser justamente esse jogo de

sincronicidade da relação entre dentro e fora, entre eu e outro, que pode ser percebido e

simbolizado nas estruturações neuróticas, que, nas psicoses, sofre uma cisão. Parece ser,

enfim, o rompimento no desenrolar simultâneo do processo de alienação e separação;

processo este que é fundamental para viabilizar toda constituição subjetiva e,

conseqüentemente, a estruturação corporal, que está em jogo nas psicoses (Goidanich,

2003).

Percebe-se então que o sintoma psicótico demonstra a forma com que os sujeitos

lidam com o corpo próprio e com o seu eu e por meio do reinvestimento auto-erótico ou

narcísico tenta aplacar a percepção de seu corpo como despedaçado ou esvaziado. Na

esquizofrenia, o trabalho empreendido parece ser o de tentar dar um contorno ao corpo

próprio e ao seu eu, no sentido de aplacar a percepção de desmoronamento e

estranhamento. Ao mesmo tempo, a imagem totalizada de si juntamente com a pretensa

unificação corporal possibilita diminuir as influências a que estão submetidos. Nos

casos de paranóia investigados, a construção delirante foi empreendida com o objetivo

129
de possibilitar outra forma de lidar com o corpo próprio e a constituição de sua

identidade, de seu eu.

3.3. A problemática do narcisismo

“Tudo a minha volta tinha vida e tava


falando comigo” (João).

Na abordagem psicanalítica pode-se considerar a existência de dois momentos

narcísicos, um primário e outro secundário. O narcisismo primário é entendido como

uma fase normal no desenvolvimento sexual humano que estaria relacionado com o

instinto de autopreservação, quando a libido está direcionada para o próprio corpo. Este

narcisismo tem como função a unificação corporal, o que torna possível o surgimento

do eu, com o aparecimento da imagem totalizada de si. Um segundo momento será

marcado pelo abandono do auto-erotismo para a escolha objetal, período em que o

sujeito começa a diferenciar o que é o eu e o não-eu, ou seja, o objeto que pode ser

investido libidinalmente e que não faz parte do seu próprio corpo. Isso é possível,

devido à posterior transmissão de parte da catexia libidinal do eu aos objetos externos.

No entanto, esta catexia persiste e está intimamente ligada com as catexias objetais

(Freud, 1914a/1996).

É justamente essa catexia original do eu que torna possível o surgimento do

narcisismo secundário que tem seu lugar marcado na psicose; momento em que o

sujeito retira a libido dos objetos, pessoas e coisas do mundo externo, e a dirige de volta

para o próprio eu. Essa atitude por parte do sujeito pode ser observada por meio de duas

características fundamentais que os sujeitos psicóticos apresentam de forma peculiar: a

megalomania, entendida como o engrandecimento do próprio eu do sujeito, e o

130
conseqüente desinteresse das pessoas e coisas do mundo externo (1914a/1996) com

reinvestimento no corpo próprio.

Em vários momentos da entrevista com João percebemos este movimento que

tudo a sua volta é percebido com uma significação particular e está intimamente

relacionado com ele: “[...] tudo a minha volta tinha vida e tava falando comigo”. Há um

engrandecimento do seu eu na medida em que tudo a sua volta se remete à sua pessoa.

A esse respeito podemos citar a idéia defendida por Martins (2003), para quem a

alucinação realiza um investimento apenas na lembrança de um objeto externo. Ou seja,

em certos tipos de vivência alucinatória, não há investimento em objetos da realidade

exterior para depois reinvestir no eu, mas, sim, o investimento direto no próprio eu.

Momento em que as coisas do mundo são percebidas como tendo íntima relação

consigo. O eu do sujeito passa a ser percebido no lugar de objeto que recebe o

investimento vindo por parte das coisas do mundo. No entanto, no caso de João ele se

refere a objetos da realidade que possuem relação consigo, como a televisão, por

exemplo. Neste caso, realiza uma tentativa de investimento objetal, mesmo que esta seja

pela via narcísica, já que a televisão é percebida com vida e tentando falar com ele. Ou

seja, há um ensaio de investimento nos objetos a partir do momento em que são

percebidos de forma auto-referente ao eu do sujeito. Os objetos são percebidos por parte

do sujeito, mas ainda de forma incipiente e auto-referente.

Em outra entrevista, quando narrava uma de suas internações no Hospital São

Vicente de Paulo (HSVP), hospital psiquiátrico que antigamente era conhecido como

HPAP, João deixa claro essa percepção auto-referente:

João: Quando eu estava internado no HPAP [HSVP], quando era de


manhã cedo eu tinha tomado café e tô lá fora no sol. De repente
aquele movimento na rua, que tem uma área... Uma ala dá de frente
para a rua pública, o passeio público. E tava se mexendo para

131
observar aquilo lá. Fiquei ali observando, observando, todo
movimento que passava ali eu ia observando na minha mente. Aí
tudo... Parece que tava tudo parecendo que queria me pegar.

Nessa fala, é possível verificarmos que esses sujeitos possuem certa tendência

em experimentar fatos cotidianos fortuitos, objetivamente sem maiores implicações,

como referentes à sua pessoa. Todo o movimento externo ao hospital era percebido

como se fosse em relação a ele, relação esta recheada de angústia, pois na verdade tudo

que ali estava queria pegá-lo.

A auto-referência também está a serviço da tentativa de reintegrar os fragmentos

de realidade como um conjunto coerente, recusando qualquer indício de arbitrariedade

ao encontrar um sentido auto-referente em tudo que lhe cerca, não se preocupando se

este é compartilhado por outros sujeitos. Com esse mecanismo, o sujeito psicótico, de

forma especial com diagnóstico de paranóia, realiza uma aguda “apreensão

endopsíquica” do funcionamento da mente (Santi, 2004).

Essa tendência também pode ser pautada na fragilidade com que o eu do sujeito

psicótico está constituído, onde tudo a sua volta parece lhe invadir. A diferenciação

eu/não-eu que se estabelece de forma falha não consegue barrar essa invasão exterior,

onde o não-eu passa a fazer parte do eu, sendo invadido por ele e não se torna possível

separá-los ou diferenciá-los, como neste trecho:

João: [...] Eu tô em casa normal sentado normal de repente “pum”


começa as coisas se mexendo. Parece que tudo vai vir junto comigo,
objeto, corrente, qualquer coisa assim, um sinal ai eu fico
agoniadinho começo a correr dentro de casa [...].

No caso da psicose esquizofrênica, este processo está relacionado com a

regressão ao auto-erotismo, momento em que a diferenciação eu/não-eu ainda não

132
aconteceu (Quiles, 1995). Como apontado anteriormente, esta regressão presentifica a

forma de funcionamento existente neste estádio.

Em alguns momentos, até quando aposta em uma tentativa de investimento

objetal, mesmo que de forma delirante, este investimento logo retorna para si, em uma

posição narcísica, como já apontamos:

João: Deixa eu ver aqui o que eu posso dizer pra você entender... Não
sei. É uma coisa ruim. Tô deitado, aí parece que alguém chama, eu
levanto, eu abro os olhos, não vejo nada, só ouço, não vejo nada. Aí
parece que... Aí a TV está ligada na sala, parece que a TV está
querendo conversar comigo, eu fico sem saber o que fazer, fico muito
angustiado, nervoso.

O narcisismo secundário na psicose corresponde ao narcisismo do eu, que tem

origem no retorno dos investimentos dos objetos para o próprio eu, adotado como

objeto (Laender, 2005). Como apontamos, na auto-referência percebe-se não só um

investimento do próprio sujeito em si, mas, também, os objetos são percebidos como

exercendo certo investimento no sujeito. João nota a televisão ligada ─ querendo

conversar com ele ─ investindo em uma relação objeto-sujeito. Além disso, é uma

tentativa de investimento na realidade, ou seja, é uma possibilidade de se vincular com

algum objeto na realidade. Retomaremos a essa temática mais a frente.

A respeito da relação sujeito-objeto, percebe-se na psicose uma ocupação do eu

ao dirigir a libido diretamente a ele e como conseqüência observa-se uma transformação

na relação entre o objeto e o sujeito: o sujeito passa a ser assimilado pelo objeto, uma

vez que aquele é tomado no papel de um objeto libidinal (Hanna, 1997).

João também deixa pistas de um componente megalomaníaco quando traz o

relato de sua trajetória nos seus empregos: “Entrava no carguinho mais baixo, questão

de pouco tempo já estava lá galgando o cargo lá encima”. Deixa transparecer o

133
engrandecimento do seu eu, que em pouco tempo conseguia sair do cargo mais baixo

para o mais alto, como no caso que diz ter entrado para trabalhar de caixa e um ano

depois era gerente da padaria.

A megalomania tem a sua origem no momento em que os objetos do mundo

externo deixam de ser investidos e a libido é redirecionada para o próprio eu do sujeito.

Dessa forma, o seu papel seria o de proceder a uma elaboração interna para a libido que

retornou para o eu. Quando esta função não é exercida de forma efetiva, deflagra-se o

processo patogênico compreendido pelo represamento libidinal no eu. Neste momento,

é necessário operar o reinvestimento, seja por via alucinatória ou delirante (Freud,

1914a/1996).

Voltando nosso olhar para Carla, percebemos alguns aspectos bem próximos dos

observados com João, mas que são experimentados de forma diversa. Seu investimento

narcísico parece ser vivido no corpo próprio:

Carla: [...] Só que eu não vou colocar tatuagem no meu corpo,


porque meu corpo é diferente dessas pessoas que põe tatuagem, prega
tatuagem no corpo. [...]

Todo o seu movimento narcísico procura um engrandecimento corporal.

Processo que está à serviço da idealização corporal, questão bastante presente em seus

relatos e que se relaciona com o eu.

Em confluência a esta idéia, não deixa de apresentar características que nos

remeta a um narcisismo secundário, em busca do engrandecimento de seu eu:

Carla: [...] Só que eu fico às vezes com medo... medo de ser elogiada.
Entr.: Por quê?
Carla: Porque eu fico com medo. Uma coisa assim dentro de mim,
porque eu não tô na pele da pessoa pra sentir o que ela sente.
Entr.: O que poderia vir além do elogio?

134
Carla: Ah, só coisa boa. Só tinha que me elogiar. A pessoa jamais
poderia me chamar de outra coisa. Isso não poderia acontecer,
senão... senão... não é verdade? Isso não poderia acontecer. Esses
tempos todos que estou vivendo, todos esses tempos que estou
vivendo, não seria normal eu captar isso. Ouvir isso ou acontecer
isso, não ia ser uma coisa normal.
Entr.: Você já ouviu outras coisas?
Carla: Eu acho que não merecia, sabe?
Entr.: Você já ouviu outras coisas?
Carla: Não. Nunca ninguém fez nada comigo. Nunca... Nunca
ninguém me xingou de feia, de chata, disso, daquilo. Nunca fizeram
nada comigo. Minha mãe nunca fez isso comigo. Meus irmãos nunca
vão... Nunca fizeram, sabe? Nunca. [...]

Neste trecho, Carla fala do medo de ser elogiada, mas logo depois diz que as

pessoas só podem mesmo é elogiá-la. Jamais poderia ser diferente. Chega a dizer que

não seria normal se ela captasse algo diferente dos elogios. Coloca-se exclusivamente

como receptora de elogios, percepção corroborada por sua afirmativa de que nunca

fizeram algo diferente, além de elogiá-la. Nunca foi alvo de xingamentos ou qualquer

outra coisa negativa por parte de outras pessoas.

A megalomania apresentada por Carla nos remete à idéia de que neste fenômeno

é o outro que parece ter iniciativa, como neste caso. São os outros que querem e lhe

elogiam. Independente da forma de delírio – perseguição, erotomania, ciúme – a

iniciativa parte sempre do outro. “É o outro que fez dele o centro de seu universo

(megalomania)” (Borges, 2002).

Essa idéia pode ser percebida também em outras falas suas que deixam claro a

megalomania: “a face da Terra toda me conhece”. No momento em que a percepção de

que todas as pessoas da face da Terra possam conhecê-la, percebe-se o alto grau de

investimento narcísico e de engrandecimento do seu eu.

Outra fala sua deixa mais evidente ainda como este fenômeno se processa em

sua constituição psíquica:

135
Carla: Eu não tenho nada a reclamar dos artistas. Não tenho nada a
reclamar. Só que tem uma coisa, eu não consigo viver sozinha, você
sabe, né? Por isso é que existem os artistas, pra ficar mostrando na
televisão, pra ficar me agradando, fazendo comida pra mim. Minha
mãe faz comida, a minha mãe arruma minha cama. Meu pai me dá
tudo que eu quero. Meus irmãos me dão tudo. Só que eu... Só que a
vida não é pra sempre aqui.

Além de denunciar uma posição megalomaníaca, a sua relação com os artistas é

de “dependência”, uma vez que não consegue viver sozinha e os artistas existem por

este motivo. Colocamos a palavra dependência entre aspas por saber que de forma

alguma ela se sente “dependente” dos artistas, mas, sim, uma dependência velada de sua

companhia. Na verdade, deixa claro que os artistas existem apenas para um fim:

agradar-lhe! Da mesma forma sua mãe, seu pai e seus irmãos. É o outro que existe com

este fim e procura executá-lo a todo custo, afinal de contas eles existem apenas com tal

objetivo.

Por outro lado, a megalomania também coincide com o delírio de fim de mundo,

onde o investimento no próprio eu do sujeito faz com que o mundo deixe de ser

investido e passe a não existir mais para ele. No entanto, a construção delirante terá o

papel de combater essa situação a partir da construção de um mundo próprio onde ele

possa habitá-lo.

Retornando ao caso de Carla, mais a frente ela fala sobre a sua idealização

corporal: “Eu queria ter o corpo perfeito”. Completa descrevendo como seria o corpo

perfeito:

Entr.: Como é um corpo perfeito?


Carla: Ah, queria ter sem barriga. Não queria ter o peito grande. Não
é que eu tenha o peitão grandão, né? Ficar tipo assim essas mulheres
assim gordonas do peitão. Eu não queria mesmo. Mas eu não posso
fazer nada com essas pessoas, que elas nasceram assim, elas... A
natureza delas é assim, o corpo delas é assim. Deus quis que elas

136
fossem assim, entendeu? Por isso mesmo. Deus quis que as pessoas
fossem assim. Eu não posso fazer... Não posso querer mudar. Deus
quis que o meu pai nascesse com aquele corpo, com a minha mãe com
aquele corpo, eu com esse corpo.

O que nos chama atenção é a forma com que muda a descrição de como seria o

corpo perfeito para ela. Carla possa falar de forma pejorativa sobre o corpo de outras

pessoas, e diz que não pode fazer nada por essas pessoas, foi Deus quem quis que as

pessoas fossem como são, e encontra uma saída narcísica para lidar com essa questão da

perfeição corporal:

Carla: Se eu estou revoltada, por que motivo que eu queria ficar


revoltada? Só por que... Só por causa disso? Por causa de ficar...
Minha mãe ficou grávida. Não tem esse negócio de ficar grávida? A
criança nascer. O que eu queria mais? A felicidade da minha mãe sou
eu. A felicidade dela sou eu. Dos meus irmãos sou eu. Então eu ia
destruir tudo, ia acabar tudo, não ia ter... não ia ter, não ia ter nada,
não ia viver feliz, não ia acontecer nada.

Ser a felicidade dos pais e dos irmãos torna menos penoso estar no mundo e ter

que habitar esse corpo, que não é o corpo perfeito que gostaria, mas também não é

como o de algumas pessoas, interpretado por ela como piores que o seu. A sua

existência toma sentido quando passa a ser a felicidade de seus familiares, inclusive, se

ela não existisse, eles não poderiam viver felizes, não ia ter nada, não aconteceria nada.

Ela se coloca no centro da existência de sua família, ou melhor, como dissemos, a

família a coloca em seu centro, e, mais ainda, no centro da existência de cada um de

seus familiares. Movimento narcísico que procura lhe sustentar no mundo.

Carla afirma que deveria agradecer a Deus por ter todo esse sentimento por parte

de seus pais:

Carla: Ainda mais que a minha mãe gosta demais de mim. Meu pai,
sabe? Meus irmãos. Então fico pensando assim, que eu tenho que

137
agradecer a Deus tudo que eu tenho, sabe? Todas as pessoas que
gostam de mim. Todo mundo me agrada... adora... Gosta de me
ajudar. De me agradar. E às vezes eu não faço nada. Eu não reclamo
de nada.

E mais uma vez se coloca como receptora de boas atitudes por parte de todas as

pessoas que lhe rodeiam.

O quadro apresentado por Carla faz com que nos remetemos à afirmação de

Garcia-Roza (1995/2004) ao retomar a idéia freudiana de haver dois tipos de escolhas

de objeto: o tipo anaclítico e o narcísico. Interessamos-nos no momento pelo tipo

narcísico, no qual, segundo o autor, “ama-se: [...] a. O que se é (isto é, a si mesmo); b. O

que se foi; c. O que se queria ser; d. Alguém que foi parte de seu próprio eu” (p. 47).

Carla demonstra um misto de quase todas essas possibilidades. Demonstra um amor

pelo que se é, pelo seu próprio eu, bem como o que pretendia ser. Por outro lado, parece

demonstrar esse amor também pela sua mãe, aquela que um dia foi parte de seu próprio

eu, e outras pessoas de sua família.

No caso de Amanda, o retorno ao narcisismo, ponto de fixação na paranóia, é

percebido por meio de um delírio de ciúmes, do roubo de identidade e de perseguição

que realiza uma transformação na imagem da irmã: “Aí eu tava falando que ela tava...

Que ela era garota de programa, sabe?”. A desqualificação da irmã parece gerar um

engrandecimento do seu próprio eu perante a imagem da irmã; imagem que sempre foi

percebida de forma idealizada. Uma passagem em sua primeira entrevista nos ajuda a

pensar e sustentar o que colocamos logo acima:

Amanda: Cheguei até a ter inveja da minha irmã. Ter ciúmes dela.
Agora não. Agora que eu já tô... Já fiz tratamento, né? Eu estou mais
com perdão. Estou mais compreensiva. Eu não era compreensiva com
ninguém.

138
A inveja traz o sentimento de querer ter ou ser algo que a pessoa é ou tem e que

esta não seja ou tenha. Essa situação faz com que o sujeito esteja em uma posição

privilegiada em detrimento do outro, que, neste caso, pode ser interpretado como uma

possibilidade de engrandecimento do eu de Amanda, em detrimento da diminuição do

eu de sua irmã.

Além disso, todas as vezes que fala de sua doença, faz questão de relatar

também os problemas de saúde da sua irmã e a troca de posição com ela, onde é ela que

ajuda e acompanha os tratamentos da irmã, e não ao contrário como realmente acontece:

Amanda: Eu tive uma crise lá. A última crise que eu tive eu tive tava
no meu serviço. [...] Minha irmã entrou em depressão também. Ela
tem problema de depressão. Toma remédio. Ela tem lúpus também.
Ela tem vários tipos de doença. Aí eu acompanho ela... a doença dela
todinha...

Em outra entrevista deixa isso ainda mais evidente:

Amanda: E minha irmã é muito fraquinha também. Ela não agüenta


pra sair, por isso que eu poupo muito ela, né? [...] Com tudo os
problemas que eu tenho... Com a injeção que me baqueia também,
mas eu me sinto mais forte do que ela.
[...]
Ela sente muito cansaço, muita fraqueza. Os problemas que ela tem,
né? Ela é muito fraca. Eu já sou mais forte do que ela.

Amanda se qualifica como mais forte que a irmã, mesmo com todos os seus

problemas de saúde, o que para nós não deixa de ser um investimento narcísico, mesmo

que este aconteça por meio da desqualificação da irmã e, por comparação, acaba

gerando um engrandecimento de si. Parece ser a forma encontrada por ela para se

sustentar no mundo, de habitar o mundo. Movimento que se relaciona com a

megalomania que se configura de forma especial no quadro paranóico, por meio de seu

engrandecimento em detrimento da depreciação da imagem da irmã.

139
Podemos pensar ainda no fechamento narcísico do paranóico e o seu delírio de

perseguição, que no caso de Amanda é delegado à sua irmã e vizinhos, como uma

reação ao ambiente intrusivo, associado de forma especial à figura de um pai sádico

equiparado a idéia de uma mãe má. Este pai não exerce a função paterna, que tem como

objetivo inscrever a lei, representada pela castração. Assim, a presença do outro humano

é percebida de forma persecutória e excessiva. Falta-lhe um elemento terceiro

suavizante que possa se colocar entre o eu e o outro, a fim de romper a fusão do sujeito

com o objeto (Santi, 2004). No caso de Amanda, a vivência dessa intrusão por parte da

irmã é percebida pela perseguição dela e dos vizinhos e pelo roubo de sua identidade,

como apontado quando nos referimos à sua vivência corporal.

A delegação do roubo da identidade por parte de sua irmã nos chama a atenção,

uma vez que esta tem lúpus; doença de cunho psicossomático e que se relaciona com a

questão de pele do sujeito que a possui.

O nosso interesse por este fato é devido, também, à correspondência realizada

entre doenças psicossomáticas e a falha na filiação simbólica, entendida enquanto

metáfora paterna, que se caracteriza como fundamental no entendimento dessa forma de

adoecimento (Lima, 2004). Sendo o lúpus uma doença psicossomática que está

relacionada com a pele e com a questão da falta metafórica do Nome-do-pai, assim

como a psicose, nos faz pensar que Amanda luta em sua construção delirante contra a

possibilidade de sua irmã tentar lhe roubar a identidade, o seu eu, no sentido de

“resolver” a sua demanda com a doença que lhe acomete. Além de pensarmos na

possibilidade de um roubo corporal, podemos pensar ainda em um roubo psíquico, o

roubo do seu próprio eu. Neste sentido, essa construção delirante é empreendida no

sentido de preservar a sua integridade narcísica.

140
Essa nossa observação se faz pertinente uma vez que uma das características do

lúpus é a de se apresentar como uma doença auto-imune, onde a pessoa portadora

parece desenvolver uma “alergia” a ela mesma, já que seu corpo se torna o seu próprio e

maior inimigo. Esse processo auto-imune acontece porque as células de defesa do

sujeito passam a estranhar as suas outras células e atacá-las, como se essas fossem

doenças que precisam ser eliminadas (Lima, 2004).

Neste tipo de acometimento, “o corpo parece restar como o único território

possível para testar a existência do sujeito, veículo privilegiado na construção de sua

identidade” (Pinheiro et al., 2006, p. 201). O corpo é tomado pelo sujeito como palco de

um sofrimento corporal por meio do qual espera receber atenção e reconhecimento do

outro para si, que também pode ser entendida como uma atitude narcísica.

Mas no caso em que estamos analisando, nos interessa pensar que na verdade é

Amanda que necessita da correspondência com a irmã no sentido de lhe empreender um

investimento narcísico em detrimento da diminuição de sua imagem. Parece-nos uma

questão relacionada com a projeção, onde o que é empreendido por Amanda é

percebido como vindo de fora, por parte de sua irmã. O desejo de Amanda é

transformado na perseguição de sua irmã dirigida a ela, como demonstramos.

Outro ponto levantado é a necessidade que portadores de lúpus possuem de, em

um determinado momento, cuidarem de outra pessoa que necessitam de cuidados

corporais (Pinheiro et al., 2006, p. 201). Esta afirmativa nos ajuda a sustentar a

aglutinação sugerida por nós a Amanda e sua irmã, onde uma parece necessitar da outra

para existir e habitar o mundo. Ao investir nessa relação, na verdade cada uma das duas

está investindo em si próprias.

141
Por último, no caso de Luciana o investimento narcísico é feito por meio do

reinvestimento no corpo próprio:

Luciana: Porque tem que fazer a operação do pescoço. Tem que tirar
esse pescoço logo. Pra poder eu descansar em paz. Minha... minha...
O resto mortal meu descansar em paz. [Levanta da cadeira em que
está sentada e começa a andar] Olha, quando eu ando, eu ando bem
leve, bem leve, bem leve. Penso que tudo se acabou.
Entr.: A senhora se acha leve?
Luciana: Muito leve. Igual a galha mesmo.
Entr.: Um galho?
Luciana: É. Fiquei leve como uma galha.
Entr.: Ficou leve como o quê?
Luciana: Leve como uma galhinha seca.

Ao mesmo tempo em que demonstra o investimento em uma parte do seu corpo

que toma o lugar do corpo como um todo, refere perceber também que tudo se acabou.

Fala de sua vivência de fim de mundo, onde nada mais existe, ponto em que a

megalomania tomou sua posição mais elevada. É interessante pensarmos que o fim de

tudo é uma projeção do fim de sua existência. Esta afirmação faz sentido se

continuarmos acompanhando o seu relato. A sua próxima afirmação é que se percebe

leve como uma galha seca. Por definição, a idéia de galha, ou galho, é uma parte de uma

planta que foi arrancada e não recebe mais nutrientes e água, substâncias essenciais para

a continuação de sua vida. No caso de Luciana, a percepção é de ser uma galha seca,

como algo que já secou e, portanto, está sem vida. O que nos faz pensar que a sua

percepção de fim de mundo esteja em consonância com a sua “retirada” do mundo,

assim como acontece com uma galha ao ser retirada de uma árvore.

É importante demarcar que o delírio de fim de mundo na paranóia não deve ser

explicado da mesma maneira que na esquizofrenia. No primeiro casos o fim do mundo é

entendido por meio da projeção do fim de seu mundo subjetivo, de sua calamidade

interna (Freud, 1911/1996). No caso de Luciana não presenciamos um total

142
desligamento do mundo externo, uma vez que ela necessita da ajuda dos médicos para

lhe tirarem o pescoço. Ponto este que mantém o seu contato, mesmo que frágil, com a

realidade objetiva.

Em poucos trechos de sua entrevista é possível encontrarmos indícios que nos

levam a pensar em uma possibilidade de investimento narcísico, como no fragmento

abaixo:

Entr.: A senhora pode me explicar o que faz a senhora precisar ser


enterrada?
Luciana: Por causa de... Por causa dos meus ossos tá fraco e minha
carne. E eu não queria ficar no meio dos mortal, dos normal.

Luciana afirma não querer ficar perto dos mortais e dos normais, atitude que

parece se excluir desse grupo de pessoas, de onde conclui que ela se percebe como

diferente deles. Mesmo que possa ser interpretado como uma possibilidade de

investimento narcísico, este acontece de forma bastante incipiente.

Por outro lado, é importante demarcar que o seu investimento narcísico é

exercido por meio de seu corpo próprio, uma vez que este toma um lugar privilegiado

em sua existência. Inclusive, como demonstraremos adiante, a sua construção delirante

tem o objetivo de encontrar uma saída para essa vivência corporal como apodrecida.

Mesmo que a libido não encontre um destino totalmente favorável em Luciana

por causa de sua vivência corporal, suas falas totalmente direcionadas à questão

corporal fazem com que percebamos que a libido está altamente direcionada para o seu

corpo e, como conseqüência, ao seu eu. Investimento este que procura aplacar essa

terrível vivência corporal, dando-lhe um aspecto mais aceitável.

O investimento narcísico no corpo próprio, de forma particular no pescoço, por

parte de Luciana, faz com que o seu pescoço tome o lugar de um órgão privilegiado em

143
toda a sua constituição psíquica. Inclusive é o pescoço que lhe faz ver e falar, questões

que denotam estar falando de viver. Sua vida gira em torno desse pescoço altamente

investido, e que toma o lugar central em sua vida e vivência corporal.

Percebemos assim, que o narcisismo é um estágio necessário para a constituição

da subjetividade do sujeito, é a condição necessária para a formação e o aparecimento

do eu e chega a se confundir com ele (Garcia-Roza, 1995/2004).

Dessa forma, por meio dos delírios de referência e das alucinações auditivas,

percebemos como a problemática do narcisismo se configura no campo das psicoses.

Essa saída narcísica é uma tentativa de se organizar e dar conta da percepção do corpo

próprio, como fragmentado na psicose. O investimento libidinal no próprio eu parece

tentar encobrir, ou até organizar, a sua vivência corporal e de seu eu. Observa-se, assim,

na psicose, com os seus principais sintomas compreendidos pelo delírio e pela

alucinação, o papel de defesa delegado por Freud a essa forma particular de estruturação

psíquica.

3.4. A relação com a realidade

“Aí a minha vida se torna um cinema na


vida real” (Carla)

A relação do sujeito com a realidade é mais uma importante questão a ser

discutida ao se tratar do campo da psicose, além de se relacionar de forma estreita com

os sintomas apresentados: delírio e alucinação.

Retomando o conceito básico de psicose, percebe-se que a relação com a

realidade tem importante participação em todo o processo que se empreende nesse

quadro. Quando Freud (1924[1923]/1996) afirma que a psicose é um conflito, ou um

144
distúrbio, nas relações entre o eu e o mundo externo, percebe-se que a realidade está

totalmente implicada nessa demanda.

Vale lembrar aqui a idéia defendida por Freud (1924[1923]/1996) de que o

mundo externo governa o eu de duas formas. A primeira é por meio de percepções

atuais e presentes, percepções estas que são sempre renováveis. Já a segunda acontece

mediante o armazenamento de lembranças de percepções anteriores, as quais modelam

um “mundo interno”, exercendo um domínio sobre o eu e ao mesmo tempo é parte

constituinte dele.

Tendo como base essa explicação freudiana, percebemos que ao falar de

realidade, na verdade ele quer tratar da realidade externa que é renovável, mas, também,

de uma realidade psíquica constituída por representações registradas e guardadas. Mas

no caso da psicose, a realidade que traz a necessidade de ser excluída é a realidade

psíquica, e portanto simbólica (Fernandes, 2002).

No final do artigo sobre Neurose e Psicose, começam a aparecer alusões a um

processo semelhante ao recalque – mecanismo específico da neurose – que na psicose

realizaria o desligamento do eu com a realidade. Freud (1924[1923]/1996) também

sugere que este mecanismo deve relacionar-se com a retirada da catexia enviada pelo eu

às pessoas e coisas do mundo.

No mesmo ano em que publicou este artigo, Freud (1924/1996) publica outro

para tratar especificamente da questão sobre A perda da realidade na neurose e na

psicose. Sua primeira contribuição é delimitar que na psicose o eu deixa-se vencer pelo

isso e se afasta de um fragmento de realidade. Por outro lado, observa ainda que na

neurose, essa perda da realidade seria evitada e na psicose a perda estaria

145
imperativamente presente. Na neurose aconteceria um afrouxamento dessa relação e, na

psicose, uma rejeição ou recusa da realidade.

Nas entrevistas realizadas com os quatro sujeitos que participaram deste estudo,

podemos elencar várias falas para demonstrar indícios da ocorrência dessa recusa da

realidade:

Carla: Eu acho que sou muito ambiciosa. Eu acho que eu devo estar
muito ambiciosa. Que parece que só existe eu na face da Terra, né?
Aí fica assim.
Entr.: Parece que só existe você na face da terra?
Carla: É. Só eu. Aí não dá certo não. Porque fica distante das outras
pessoas. Aí as outras pessoas morrem.
Entr.: Você sente dificuldade de conversar com outras pessoas?
Carla: Sinto. Aí as outras pessoas morrem, sabe? Aí acaba o mundo.
Aí todo mundo morre. Aí eu vou morrer também. Aí não vai dar certo,
sabe? Fica uma coisa assim tipo um cinema. Uma coisa assim, que só
tem que viver daquele jeito. Aí não dá certo. Aí eu penso ai não vai
dar certo não.

Carla demonstra a recusa da realidade e deixa transparecer uma importante

conseqüência deste fato: a não percepção de pessoas e coisas às quais possa investir.

Percebe que está sozinha na face da Terra. No inicio refere-se a um distanciamento das

pessoas e depois fala da morte das mesmas e, por fim, afirma que o mundo acaba e as

coisas passam a ser como em um cinema. Essa sua descrição deixa clara as duas fases

da psicose: a recusa da realidade e depois a reparação dessa realidade por meio da

construção de uma nova, percebida por ela por comparação a um cinema. Ater-nos-

emos por enquanto à recusa da realidade.

Podemos citar também a narração de João com relação ao seu sentimento no

momento em que está tendo a alucinação auditiva, demonstrando uma certa crítica em

relação ao que passou:

146
João: [...] Porque na hora que você está ali ouvindo parece que não
está acontecendo nada, mas depois que tudo passa você fala ”meu
Deus, será que fui eu mesmo que fiz isso? Como aconteceu isso?
Como pude me deixar levar?”, você tenta procurar ajuda de toda
maneira, mas parece que ninguém me ouve. Todo mundo está contra
mim.
[silêncio]
Entr.: Você disse que parece que ninguém te ouve, isso parece quando
você está...
João: Quando estou tendo alucinações... Quero pedir socorro e não
consigo botar pra fora, “socorro, me ajuda. Por favor, me ajuda”.
Fico paradão, diante do meu problema e fico sem ter condição de
pedir ajuda. Fico como se tivesse usado uma droga.

Percebe-se, nessa fala, um abandono objetal juntamente com a recusa da

realidade. João não consegue pedir ajuda a ninguém. O investimento nas outras pessoas

tem o seu fluxo quebrado e é percebido como um movimento delirante em que todos

estão contra ele. Neste momento, também, não percebe a realidade externa e diz que

fica como se tivesse usado droga, experiência que as pessoas dizem parecer estar fora de

si e se assemelha a uma viagem.

Em outra ocasião, refere-se novamente ao momento das crises, percebendo-se

sozinho no mundo:

Entr.: Em relação às suas crises, como tem se sentido?


João: Parece que estou sozinho no mundo. Tenho a impressão que
ninguém mais olha para mim.

O desligamento objetal das pessoas e objetos do mundo é percebido por João

como um sentimento de estar sozinho no mundo. Ademais, o não investimento por sua

parte é interpretado como não investimento dos outros com relação a ele, uma vez que a

recusa da realidade e o desinvestimento objetal não podem deixar pistas para qualquer

questionamento por parte do sujeito.

A percepção com relação à crise por parte de Amanda é bem próxima dessa

relatada por João, como podemos verificar retomando uma fala sua:

147
Amanda: [...] Eu tive um distúrbio mental, um distúrbio que a cabeça
fala coisa com coisa. As pessoas estavam... Minha irmã estava
roubando minha identidade.

E quando indagada sobre o que mais acontecia durante as crises, relata como era

a sua relação com as outras pessoas:

Amanda: Acontecia assim... Que tudo pra mim era meu inimigo. Tudo
pra mim era meu inimigo.
Entr.:Todas as pessoas eram seus inimigos.
Amanda: Eram meus inimigos. A minha irmã principalmente. Eu não
se dava bem com a minha irmã de jeito nenhum. Cheguei a odiar.

É importante demarcar que na paranóia o sujeito não apresenta uma completa

recusa da realidade, mas sim, de fragmentos dessa realidade que é rejeitado, e por

projeção comparece novamente o intolerável. O que é recusado é percebido como vindo

de fora, não sem antes passar por certa transformação.

O amor que sente pelas pessoas será percebido como ódio vindo delas (Freud

1896/1996; Freud 1911/1996). No caso de Amanda, a irmã é odiada e se transforma

pelo delírio em perseguidora.

A este respeito, é importante ressaltar que o impulso amoroso dirigido ao objeto

sofre duas inversões para atingir o objetivo de defesa. A primeira é o sentimento de

amor para o ódio e o segundo é com relação à origem e ao alvo, que passa a ser dirigido

do objeto para o sujeito. Como resultado, o sujeito com paranóia apresenta a fantasia de

estar sendo perseguido pelo objeto (Santi, 2004).

No delírio de perseguição existe uma busca pelo investimento em um objeto

exterior, por meio da identificação com ele. O que demanda uma negação do afeto

dispensado à pessoa e, num segundo momento, a projeção desse resultado para o mundo

externo, faz com que este seja percebido como vindo de fora. O processo de

148
identificação com outro objeto que não o próprio eu, nos deixa o rastro de que o

investimento objetal já encontrou um caminho mais favorável que ficar represado. No

entanto, existe uma regressão à etapa de satisfação alucinatória de desejo onde a

realidade vivida passa a ser substituída pela fantasia expressa durante o delírio que se

empreende com a projeção realizada (Martins, 2003).

A projeção tem duas vias importantes: manter a representação conflituosa

afastada e preservar o estado narcísico que o sujeito se encontra após a regressão ao

estádio do narcisismo. Mas agora com certa elaboração, pois o investimento vem por

parte de um terceiro, um objeto que não deixa de ser percebido e, dessa forma, investido

pelo sujeito paranóico.

Por outro lado, Luciana com toda a sua forma peculiar de organização fala de

sua recusa da realidade da seguinte maneira:

Entr.: Ontem a senhora me disse alguma coisa relacionada com Deus,


o que foi?
Luciana: Eu penso que o sonho dele é me enterrar. Porque eu vou pro
hospital pra eu vagar. Eu fico desesperada.
Entr.: Então a senhora não está viva, a senhora esta só vagando aqui
no mundo?
Luciana: Só vagando.

Ela não se percebe habitando o mundo, diz estar apenas vagando nele. No

entanto, não apresenta uma total ruptura com a realidade, pois faz uso de suas

percepções para justificar a sua construção delirante relacionada com a questão

corporal, observemos:

Luciana: Pois é, eu estou estralando já.


Entr.: E o que acontece quando estrala?
Luciana: Se eu apertar dobra, olha. Porque está mole.
[dobra as partes do corpo nas articulações e mostra que ela consegue
dobrar os ossos]
Entr.: Já está mole?

149
Luciana: Já. Já. [silêncio] Toda mole.
[...]
Luciana: Oh, Oh... Está estralando os ossos, oh. [Mexe os braços e
escuta estalos vindos da omoplata e da clavícula]

As percepções da realidade objetiva do seu corpo são utilizadas para embasar e

justificar tudo o que diz respeito à sua vivência corporal. Assim, a realidade das partes

do corpo dobra-se nas articulações e o barulho emitido por outras partes contribuem

com a construção delirante de que os ossos estão podre e estralando. Outra percepção

corporal que utiliza é a sua aparência física. Por estar bastante magra, diz que está seca.

No entanto, além da aparência, precisamos demarcar que sua questão é subjetiva, mas a

objetividade torna tudo inquestionável.

A recusa da realidade que presenciamos nessas falas é explicada por Freud

(1914a/1996) por meio da existência de uma antítese entre a libido do eu e a libido

objetal. Para ele, quando uma é mais aplicada a outra, em contrapartida, é mais

esvaziada. Assim, com o retorno da libido ao eu, no narcisismo, ou às zonas erógenas,

no retorno ao auto-erotismo, ela deixa de ser empregada no mundo externo,

ocasionando certa ruptura com este e a perda do contato com a realidade.

Relaciona-se com este fato a vivência do fim do mundo na psicose, de forma

especial na paranóia, pois além de ser entendida pela via da projeção do seu

desmoronamento interno, possibilita-nos outra interpretação ancorada na idéia da

existência dessa antítese entre a libido objetal e a libido do eu. No momento em que a

libido retorna para o eu e deixa de ser investida no mundo, faz com que este se torne

irrelevante para o sujeito (Freud, 1911/1996).

Mas além da recusa da realidade, outra etapa pode ser distinguida como segundo

momento do processo psicótico: a tentativa de restabelecimento do vínculo com os

objetos e pessoas que antes eram investidas e a reparação da perda da realidade que foi

150
recusada. Agora não por meio da restituição da que foi rejeitada, mas com a criação de

uma nova, sem as contradições trazidas pela antiga (Freud, 1924/1996).

Para que a nova realidade possa ser construída e não seja questionada, a

construção delirante utiliza as percepções trazidas pela alucinação para manter certa

relação com algo que diga respeito ao próprio sujeito (Freud, 1924/1996). A alucinação

trará “dados de realidade” que embasarão toda a construção delirante. Ao falar em

dados de realidade, estamos nos referindo a percepções próprias que o sujeito tem e são

percebidas como pertencentes à realidade, neste caso, à sua realidade psíquica.

Nos casos em que não comportam as alucinações e o delírio, a construção dessa

nova realidade acontece de forma diversa. Ao apresentar apenas alucinações, o sujeito

terá as percepções que o remete ao fragmento de realidade que foi rejeitado, mas não

terá a interpretação do delírio, que parece fazer a costura dessas percepções com o

objetivo de criar a nova realidade delirante. Por outro lado, nos casos em que não

apresentam as alucinações, situação mais difícil de acontecer, a construção delirante tem

maior dificuldade de realizar o seu papel de reconstrução e restabelecimento, por não ter

um ponto de partida e um fio condutor que o relacione com a vida do sujeito. Sabemos

que nem sempre os dois sintomas aparecem concomitantemente nos quadros clínicos de

paranóia e esquizofrenia. No entanto, raramente, encontramos casos em que o sujeito

não apresente nenhuma forma de alucinação, mesmo que não seja proeminente.

A fala de Carla deixa bem claro para nós uma percepção de que a realidade na

psicose parecer ser “fabricada”, ou melhor, construída. Isso se passa tanto em relação à

realidade externa quanto em relação à realidade do corpo:

Carla: Então estou imaginado aqui se eu viajasse, por exemplo, pro


Japão. Eu ia chegar lá eu ia ser a mesma pessoa. Eu ia ver aquelas
coisas bonitas, aquela arquitetura toda desenhada, com outras
pessoas diferentes. Se eu fosse pra França eu ia ver aquelas meninas,

151
aqueles rapazes franceses, aquelas meninas francesas. Na Itália, tudo
francês, Italiano. No Canadá tudo diferente. Nos Estados Unidos,
tudo diferente. Americano come alface com tomate, não é assim na
realidade? Desenhado?
[...]
Carla: Então, eu acho que eu só fico me sentindo que eu sou uma
espécie de resp., resp... de observar nas outras pessoas. Mas é claro
que eu não sou um... Uma pessoa de outro planeta, [risos] Um
andróide, mas eu fico sentida.

A digressão apresentada no discurso de Carla mostra o deslizamento e a

ausência de enraizamento na realidade externa bem como a desvitalização com relação

ao mundo externo. Há por outro lado, em relação ao corpo, um estranhamento da

imagem de si, ao qual tenta fazer uma crítica, mas nos revela que esta realidade do

corpo é também transformada: “outras pessoas” e “uma pessoa de outro planeta.

[risos] Um andróide”. Ou seja, a fala de Carla nos mostra a sua dificuldade de organizar

o mundo externo e ao mesmo tempo a imagem de si.

Outra colocação sua nos chama a atenção por nos fazer retomar a idéia principal

deste trabalho com relação ao delírio, como um processo de reconstrução e

remodelamento (Freud, 1911/1996), vejamos:

Carla: Só que eu fico, assim, pensando assim, com... pensando assim,


que um... que lá no Rio de Janeiro só tem aquele mar e fizeram a
novela. E ver a novela na realidade, aquelas coisas mais bem feita, é
muito melhor do que ver só aquela praia branca com tudo destruído.
Parece tudo velho. Eu fico sentida com isso, sabe? Sentida, que se
tiver favela eu fico mais sentida ainda. Eu acho que... que eu penso
assim, se eu pensasse assim. Ah, lá é muito bonito, tem gente só
bonita, mas não é verdade. Não tem só aquelas pessoas lindas, de
cabelos amarelos, pegadas de sol, pretas. Não é só isso. Tem o outro
lado também, né? Tem as outras pessoas que são tudo pobres. Pobres
com cara de pobre. Aí eu fico pensando assim, porque que existe isso?
Essa diferença eu não queria que existisse isso, sabe?

Este trecho nos remete à idéia de que o delírio é a forma encontrada pelo sujeito

para restaurar o seu próprio mundo, onde um novo cenário possa ser construído e torne

152
possível o reaparecimento dos objetos e indivíduos para serem novamente investidos

pela via fantasiosa. O delírio deixa de ser entendido como signo da doença e passa a ser

encarado como o caminho para a cura e seu contorno (De Waelhens, 1990). Juntamente

com a alucinação, sintomas por excelência da psicose, o delírio sugere uma dificuldade,

mas também a tentativa de encará-la (Bell, 2005).

Carla parece refletir sobre a sua relação com a realidade. Afirma que ver a

novela na realidade é melhor que reparar as coisas como elas são. Ou seja, é melhor

viver nessa realidade construída, possibilitada pela fuga para a psicose, a viver na

realidade como esta se mostra. Para ela, a realidade é definida por meio de sua descrição

da praia como branca e destruída. Além de desorganizada, a realidade é vivenciada

como sem cor. É nítida a sua preferência pela realidade construída: “E ver a novela na

realidade [...] é muito melhor [...]”.

Ao final, afirma que não gostaria que existisse diferença entre a realidade

demonstrada pela novela e o que realmente existe, talvez esteja falando da diferença

entre a realidade objetiva e a subjetiva, a realidade partilhada por todos e a construída

como a saída encontrada por seu psiquismo para habitar o corpo próprio e estar no

mundo tal como nos diz De Waelhens (1990).

Outras questões importantes podem ser discutidas com base no caso João.

Percebamos sua tentativa de reinvestimento ao relatar o que as vozes lhe falavam:

Entr.: E o que mais essas vozes falavam?


João: Pra sair correndo, para falar com qualquer pessoa na rua,
tentar conectar com qualquer pessoa na rua, falar qualquer coisa, e
eu falava na minha mente. Eu ficava parado falando na minha mente,
ouvindo tudo aquilo só na minha mente. Ficava desorientadinho, sem
condições de nada.

153
Ele demonstra uma tentativa desesperada de investimento na realidade por meio

do investimento nos objetos, aqui representados por qualquer pessoa que estivesse perto

dele. O desespero é tão grande que fala em tentar se conectar com qualquer pessoa na

rua. Qualquer forma de vínculo seria capaz de apaziguar esse desespero e angústia

vivenciados por não conseguir manter o mínimo contato com a realidade e as pessoas

que nela habitam. No entanto, este investimento não é realizado a contento, neste

momento, e deixa claro o auto-investimento narcísico: “eu falava na minha mente”.

Em outro momento parece ser um pouco melhor sucedido nesse investimento:

“Aí parece que eu tenho que fazer alguma coisa. Alguém tá me chamando para fazer

alguma coisa e eu não sei o que é isso”. Quando relata que alguém o chama, existe uma

possibilidade de relação sujeito-sujeito acontecendo. O seu desespero pode ser

percebido também neste trecho: “Todos os movimentos que eu fazia parecia que alguém

tava tentando me dizer alguma coisa ou tentando me culpar de alguma coisa”. Mesmo

sendo um movimento narcísico e delirante, essa percepção de que tem alguém querendo

falar consigo e até mesmo culpá-lo por alguma coisa, é, também, um investimento

objetal e uma tentativa de investimento na realidade, atravessada pelo delírio.

No caso da paranóia, esse reinvestimento objetal também é realizado pelo

mesmo mecanismo que exerce a recusa do fragmento de realidade rejeitado – a

projeção. Quando se afirma que o que é recusado na paranóia é percebido vindo de fora,

traz a possibilidade de reconhecimento da existência de um vínculo com a realidade

exterior. Concomitante a isso, a projeção também restabelece a relação do sujeito com

os objetos e pessoas que anteriormente havia abandonado por conta do narcisismo

(Freud, 1911/1996). Por exemplo, podemos citar o sentimento de perseguição que

Amanda tem como vindo de sua irmã. O que acontece é a projeção do amor que esta

154
sente pela irmã, mas após sofrer deformações, o afeto é percebido de forma invertida,

como ódio, vindo de fora, tendo como desencadeador a sua irmã. Situação semelhante à

relatada quando tratamos do Caso Schreber no capítulo teórico.

Aqui podemos demarcar uma importante idéia defendida por Freud (1911/1996)

de que na paranóia a pessoa que hoje é percebida como perseguidora, antes era alvo de

amor por parte da pessoa perseguida. Em Schreber, o doutor Flechsig, médico que

cuidou dele no momento de suas crises, foi quem assumiu depois o papel de

perseguidor.

O delírio de perseguição pode ser entendido por duas vertentes. A primeira faz

com que o sujeito delirante experimente uma aguda relação com os outros, mesmo que

esta seja de cunho negativo. Essa relação o ajuda a sair do isolamento que o narcisismo

exacerbado lhe impõe. O segundo benefício que precisa ser marcado para o delírio de

perseguição, já que também permite que uma aproximação intolerável, ou muito

próxima, seja evitada (Scharfetter, 1997).

Hoje, fora da crise, Amanda parece ter certa crítica com relação à sua construção

delirante:

Amanda: [...] Era só da... Criação da minha cabeça, né? Eu criava


aquilo tudinho. Aquele problema todinho.
Entr.: Você fala que era criação da sua cabeça, como que você
consegue chegar a essa idéia de que era uma criação da sua cabeça?
Amanda: Eu chego assim ao ponto que não era criação da minha
cabeça, mas era só intenção minha. Não era verdade, sabe? Não era
verdade. Era tudo que eu criei sabe na minha cabeça.
Entr.: Mas no momento que você percebia as pessoas te perseguindo,
você não conseguia pensar que era coisa da sua cabeça?
Amanda: Não.
Entr.: Você achava mesmo que estavam te perseguindo?
Amanda: É.
Entr.: E o que você fazia nesses momentos?
Amanda: Eu agredia.

155
Já o caso de Luciana, grande desafio para nós durante todo o trabalho, parece

fazer mais sentido agora que chegamos a tratar das questões referentes ao contato do

sujeito psicótico com a realidade. Ela demonstra que sua relação com a realidade é

invadida pela experiência delirante corporal. O corpo é tomado exclusivamente como

objeto de investimento anulando outras possibilidades de vínculo objetal. Luciana

parece viver narcisicamente “no seu pescoço”, como podemos observar em sua fala:

Luciana: [...] Eu preciso fazer cirurgia do pescoço.


Entr.: E essa cirurgia do pescoço serve pra que?
Luciana: Pra tirar ele.
Entr.: Pra tirar?
Luciana: É. E todo o resto enterrar.

Dessa forma, a sua construção delirante procura dar sentido e destino para o seu

corpo vivido como apodrecido e seco. Neste momento, o delírio interpretativo tentará

responder à essa questão corporal. O destino almejado é ser enterrada para ficar em paz,

e para este fim é necessário lhe retirar o pescoço. Sua construção delirante poderia

encontrar uma fuga fantástica para que o seu pescoço fosse retirado, mas não é o que

acontece. Ela necessita da ajuda dos médicos para que a cirurgia se realize e o pescoço

seja retirado:

Entr.: E o que mais que a voz de Deus te fala?


Luciana: Fala que os médico tem que fazer isso pra me ajudar. Me
levar imediatamente pra cirurgia. Pra tirar o pescoço com serrinha.
Entr.: Serrinha?
Luciana: É. Tirar mesmo. E o resto mortal queimar e enterrar.

Percebemos um investimento objetal em Deus e nos médicos, já que é a voz

Dele que diz que os médicos precisam ajudá-la a tirar o pescoço.

Por um lado, Luciana demonstra um investimento no corpo próprio quando diz

que necessita fazer a cirurgia para tirar o pescoço, mas, por outro, busca um

156
investimento objetal externo – os médicos. A alucinação auditiva traz uma voz de

comando que afirma que os médicos precisam realizar a cirurgia para ajudá-la. No seu

discurso, comparece pela via da alucinação uma satisfação alucinatória de desejo, o que

nos faz afirmar que Deus e os médicos são, de certa forma, reinvestidos maciçamente

enquanto objetos.

A demonstração desse investimento maciço ocorre também em relação ao

entrevistador, demonstrando a natureza da transferência na psicose.

Já na primeira entrevista, ela empreende um investimento maciço no

entrevistador: “[...] Eu queria ir embora. Ou ir embora ou vocês fazer a cirurgia em

mim. Você faz?”. Este investimento tem como objetivo ajudá-la a resolver o impasse

que se desenrola com a sua vivência corporal. E no final dessa entrevista faz um pedido

desesperado de ajuda ao entrevistador:

Luciana: [...] Você vai me ajudar?


Entr.: Como eu disse pra senhora, eu não faço cirurgia.
Luciana: Tem que falar com o cirurgião. Falar com o cirurgião. O
senhor tem que falar com o cirurgião. O senhor pode me levar lá pra
falar com ele? Aí eu converso com ele. O senhor me leva lá?
Entr.: Agora não dá, está bom?
Luciana: Que dia que pode?
Entr.: Vamos ver se falamos com ele outro dia, está bom?
Luciana: Eu queria falar com ele pessoalmente. Eu mesma conversar
com ele. Com o cirurgião.
Entr.: Pode ser qualquer cirurgião?
Luciana: Qualquer um. Me ajudando coisar esse pescoço está bom.
Entr.: Não precisa ser um cirurgião especial não?
Luciana: Não precisa não. Pode ser um estagiário mesmo.
Entr.: Qualquer um vai dar conta?
Luciana: Vai dar conta. Que tá facinho.
Entr.: Está fácil de tirar?
Luciana: Tá.

Pela via do delírio, Luciana nos deixa claro a sua necessidade de falar com o

cirurgião, dessa forma busca reatar o seu contato com algum objeto e com a realidade,

157
ao mesmo tempo em que não abandona o investimento narcísico, a sua questão

corporal.

Já na segunda entrevista, Luciana diz se sentir melhor em conversar com o

entrevistador, pois ele a entende:

Luciana: [...] Me sinto inútil.


Entr.: Se sente inútil?
Luciana: É.
Entr.: Por que a senhora se sente inútil?
Luciana: Por causa do jeito que eu sou. Eu dou muito trabalho pras
pessoas. Eu fico desesperada e ninguém me entende. Pensa que estou
doida, mas eu não estou doida. Eu tô falando a verdade.
[silêncio]
Entr.: A senhora acha que as pessoas não gostariam de entender a
senhora?
Luciana: Não me entende. Você me entende, não entende?
Entr.: Entendo.
Luciana: Pois é. Pelo menos tem um que me entende, né?
Entr.: A senhora se sente melhor sabendo disso?
Luciana: Eu me sinto melhor conversando com uma pessoa que me
entende.

Neste trecho, podemos perceber como faz diferença para o sujeito quando ele

percebe que alguém está com ele e partilha do seu conhecimento privado com relação à

construção delirante. Ao dizer “Pelo menos tem um que me entende, né?”, Luciana

parece reencontrar a possibilidade de investimento na realidade e nos objetos. E é ela

quem diz que se sente melhor conversando com alguém que a entende. Alguém que não

está com o sujeito para criticá-la, desqualificar ou tratá-la como um simples objeto que

parece estar estragado e necessita de conserto. Fato este comprovado no início de sua

próxima entrevista quando relata querer trocar de médico:

Luciana: [...] O senhor pode me dar alta?


Entr.: Não sou eu que dou alta dona Luciana. Tem que ser com o
médico da senhora, está bom?
Luciana: Mas parece que o médico não liga pra mim.
Entr.: Não liga?

158
Luciana: Não liga. Nem olha pra mim. Eu queria mudar de médico. O
senhor quer ser meu médico?

Esta passagem demonstra a diferença que faz para o sujeito ser ouvido e

compreendido. Sobre este assunto, Hanna (1997) afirma o seguinte:

O não reconhecimento do delírio singular comporta um risco para o


sucesso da finalidade do mesmo, transformando-o num sistema
fechado e sem circulação. Em outras palavras, o delírio é uma
tentativa de cura, mas o mesmo contém uma precariedade intrínseca,
pelo fato de que o saber que nele se produz, em muitos casos, não
encontra um destinatário que permita uma renovação e uma abertura
(p. 92).

Esta afirmação está em íntima relação com a proposta nuclear deste trabalho que

é devolver a fala ao sujeito psicótico e qualificar a sua narrativa, por ser algo que fala

sobre si. Tal proposta possibilita a circulação dessa construção delirante, sua renovação

e abertura a fim de que seja empreendido com o objetivo de remodelamento e

reconstrução.

Por fim, gostaríamos de pontuar que na última entrevista realizada com ela, a sua

relação com a realidade parecia estar mais estreita, como podemos verificar neste

trecho:

Luciana: [...] Eu queria que eles me liberasse pra mim ir embora pra
casa, para mim cuidar do meu filho. Meu filho que tá lá jogado.
Entr.: O filho da senhora tem quantos anos?
Luciana: Tem dez anos. Eu tenho que ensinar ele a fazer dever de
casa, levar ele no colégio. Limpar a casa, varrer, fazer comida pra
ele. E não tem ninguém pra fazer, entendeu?

Luciana começa a demonstrar preocupação com o filho de dez anos que está em

casa sozinho, isto é, não há ninguém para cuidar dele. Afirma que precisa voltar para

casa a fim de poder cuidar do filho e, em outro momento, diz que o neto também precisa

159
de seus cuidados. Movimento interpretado por nós como um investimento objetal no

filho e no neto, objetos do mundo real que são percebidos e investidos.

Demonstramos neste item como acontece a quebra da relação do sujeito com a

realidade e o posterior movimento de buscar essa relação por meio do investimento na

realidade produzida pela via delirante. No sentido de não ocorrer risco de qualquer

objeção a essa nova realidade, a alucinação, quando presente, traz representações

compatíveis a ela.

A construção delirante tem como objetivo tentar produzir uma resposta para o

que se apresentou como inassimilável para o sujeito (Leite, 2006). Torna-se importante,

então, distinguir a psicose do delírio.

A psicose por conceito é a guerra que se trava entre o eu e o mundo externo, e

tem como resultado o rompimento do contato do sujeito com a realidade, causando o

retorno de sua energia libidinal para si próprio e o represamento desta energia no eu.

Mas este auto-investimento é também uma tentativa de organização do cenário que a

doença de fundo produz.

O delírio é a tentativa de reconstrução após a catástrofe que resultou da guerra

empreendida. Daí a idéia de cura delegada ao delírio. Ele procura restabelecer as

relações objetais abandonadas e reconstruir a realidade de forma que possa ser habitada:

“o delírio é como uma peça posta no lugar de uma rasgadura que se produziu na relação

do eu com o mundo” (Leite, 2006, p. 162). É o que Freud (1914b/1996) chama de

restituir a libido à pessoas e a coisas na fantasia, pela via delirante. Para ele, este

processo, quando existe, parece ser secundário. Com isso, o autor deixa claro que nem

todos os quadros psicóticos comportam a construção delirante.

160
É interessante lembrarmos que o delírio diz respeito à luta que a libido realiza

para encontrar o seu caminho de volta; as pessoas e coisas anteriormente investidas

(Mendonça, 1996).

De forma bastante semelhante, a alucinação é entendida como um remendo que

é colocado no lugar da fenda que se abriu entre o eu e o mundo externo, como resultado

do conflito entre eles (Freud, 1924[1923]/1996). Ao mesmo tempo, trata-se do retorno

do que foi rejeitado e da satisfação alucinatória do desejo almejado pelo isso (Freud,

1900/1996), desejo este que ocasionou a guerra entre o eu e o mundo externo.

É justamente esse segundo momento empreendido no processo psicótico, a

tentativa de reencontrar e reinvestir o real de forma alucinatória ou delirante, que Freud

(1911/1996) qualifica como remodelamento e reconstrução, o que lhes atribui um

estatuto de tentativa de cura e recuperação.

161
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegar ao final deste trabalho é uma grande vitória! Trabalhar com o delírio e a

alucinação, enquanto sintomas psicóticos, foi uma tarefa desafiadora. Acessar o mundo

de um sujeito que tenha um quadro psicótico e solicitar-lhe que fale de sua vida, suas

experiências, sofrimentos, angústia e produção é uma tarefa bastante cara a nós e aos

que abrem as portas de suas vidas para nos possibilitar entrar e conhecer o seu mais

íntimo processo de construção empreendido.

Este processo nos demanda um amplo investimento por gerar uma grande

angústia em presenciar o sofrimento e a agonia daqueles que se colocam à nossa frente

sem reservas. A eles, o maior custo está em dividir com o outro suas questões mais

íntimas e que muitas vezes são descaracterizadas ou não compreendidas pelas pessoas

com as quais se relacionam. Desvelar o processo de defesa que é empreendido no

quadro psicótico não nos parece algo fácil a esses sujeitos.

Pensando nisso, desde o início, pautamos nosso trabalho no respeito e na

dignidade da pessoa que se dispôs a estar conosco durante algumas horas falando sobre

si e o que lhe acomete, bem como os seus processos de remodelamento e a busca por

poder estar no mundo e habitar o próprio corpo.

A psiquiatria tem uma posição bem marcada com relação ao delírio e a

alucinação. Para esta ciência, estes se apresentam enquanto juízos falsos e alterações da

percepção, respectivamente. O que marca esses fenômenos como signos de doença.

Contrariamente a essa posição, a psicanálise defende que o delírio é uma tentativa de

construção de uma nova realidade no lugar daquela que foi rechaçada e do

162
restabelecimento da relação com os objetos e pessoas anteriormente investidos. Já a

alucinação tem como objetivo prover o sujeito de percepções de acordo com a nova

realidade, além de ser o retorno no real do que foi abolido, e, assim, a satisfação

alucinatória do desejo. Percebe-se um movimento em restabelecer a função da doença

como uma possibilidade de empreender uma reorganização psíquica para o sujeito

psicótico.

Neste sentido, com o objetivo de demonstrar como ocorre este processo,

propusemos, no presente trabalho, restabelecer a voz ao sujeito a fim de entendermos,

por meio do sintoma – delírio e alucinação – como se articulam três eixos temáticos

importantes para o entendimento e manejo do sujeito com quadro de esquizofrenia ou

paranóia. Os eixos analisados foram: a questão do corpo, a problemática do narcisismo

e a relação com a realidade.

Dessa forma, conseguimos evidenciar o conteúdo e o lugar que o sintoma

assume na constituição simbólica empreendida pelo sujeito com o objetivo de

restabelecimento nos quadros psicóticos. Ou seja, nos dedicamos a caracterizar a

posição que o sujeito ocupa perante o sintoma apresentado, o que nos fala o sintoma e

como compreendê-lo à luz da interpretação psicanalítica da psicose. Nesse sentido,

percebe-se que o sintoma, no caso da psicose, também tem a função de amenizar ou

eliminar o elemento que causa o desequilíbrio ou a perturbação.

O percurso teórico apresentado nos ajudou a compreender o fenômeno estudado

e pensar em cada um dos eixos propostos. A abordagem psicanalítica foi a perspectiva

escolhida para tal fim, destacando-se as contribuições de Freud e Lacan, e, em certos

momentos, recorrendo a outros autores contemporâneos.

163
No decorrer da construção teórica empreendida, os três eixos foram clareados e

articulados entre si. No próprio conceito freudiano para a psicose, percebe-se o quanto

estes eixos estão relacionados e implicados: é um desfecho de um conflito entre o eu e o

mundo externo, onde o eu se afasta de um fragmento de realidade.

Realizamos, ainda, uma retomada do Caso Schreber, proposto por Freud, com o

intuito de vislumbrar o que o leitor poderia esperar para o momento em que passamos a

discutir os eixos por meio das falas dos quatro sujeitos participantes do estudo.

Para tanto, utilizamos a metodologia qualitativa por meio de entrevistas clínico-

psicológicas. As entrevistas passaram pela primeira etapa da análise de conteúdo

compreendida pela leitura flutuante e pelo agrupamento em eixos temáticos com base

no referencial teórico psicanalítico.

O primeiro eixo analisado foi relacionado à questão do corpo na psicose.

Ressaltamos que o corpo para a teoria psicanalítica é o corpo enquanto objeto para o

psiquismo, em confluência à idéia de que o eu é por excelência um eu corporal. A

passagem do eu corporal para o eu enquanto sujeito ocorre por meio do narcisismo

primário. Momento em que a imagem do corpo próprio tem a possibilidade de emergir

de forma totalizada.

No entanto, por meio da fixação apresentada na psicose que acontece no auto-

erotismo ou no narcisismo, respectivamente na esquizofrenia e na paranóia, os sujeitos

apresentam uma imagem corporal correlata à estes momentos do desenvolvimento.

Na esquizofrenia percebe-se a vivência da imagem corporal parcializada e

fragmentada. O esvaziamento e o estranhamento de si, também, são presentes nestes

sujeitos. Apreende-se ainda, de forma especial em alguns sujeitos, a percepção de

desmoronamento corporal.

164
Em alguns trechos, percebemos que na esquizofrenia, o eu do sujeito é deposto

de sua função unificante, onde uma parte do corpo é tomada no lugar do corpo todo.

Parte e todo se confundem e assumem o mesmo lugar na constituição psíquica do

indivíduo.

Recorrendo à idéia de Eu-pele proposta por Anzieu, percebemos que na

esquizofrenia este envelope narcísico não se desenvolve de forma satisfatória; fato este

que trará importantes conseqüências para a sua vivência corporal. Além da questão da

parcialidade, fragmentação, esvaziamento e estranhamento, a falta do desenvolvimento

do envelope narcísico possibilitará que o sujeito seja alvo de influências externas.

A temática das influências a que eles estão subordinados também se relaciona

com a dificuldade da diferenciação entre o eu e o não-eu, ou o outro, função

desempenhada pelo Eu-pele, que neste caso é frágil e fluido. O que para a psicanálise

freudiana é explicado por meio da rejeição à castração, fazendo com que a separação do

sujeito com o outro não aconteça. No caso de Lacan, a foraclusão do Nome-do-pai é a

responsável por este desencadeamento.

Outra implicação para essa foraclusão é a dificuldade de simbolização como

decorrência da falta da simbolização primária, determinando a falha da simbolização de

forma ampla na vida do sujeito. Esta falha pode ser observada nas interrupções dos

pensamentos, das falas e na concretude de pensamento apresentados em alguns casos.

Momentos em que as palavras não podem simbolizar as coisas, mas assumem o lugar e

o estatuto delas.

Demonstramos, ainda, as diferenças na questão corporal dentro do mesmo

quadro clínico e entre quadros diferentes. Carla, que também possui diagnóstico de

esquizofrenia apresenta um grande investimento narcísico em sua imagem corporal que

165
se apresenta como uma idealização desta. Movimento que parece investir no

engrandecimento de seu corpo próprio não apresentando o despedaçamento corporal,

característica peculiar da esquizofrenia. No entanto, não deixa de apresentar o

estranhamento da imagem de si.

Na paranóia não presenciamos a questão corporal como proeminente, com

exceção do caso e Luciana, mas que está relacionado com o delírio somático que

apresenta. O seu corpo é percebido de forma estranha ou desconhecida, provocando

uma compreensão do corpo próprio impossível de se realizar. A construção delirante –

delírio interpretativo – tem o objetivo de encontrar uma saída para esta vivência por

meio de seu reinvestimento e organização corporal.

Esta idéia de reinvestimento e organização corporal nos remetem ao segundo

eixo: a problemática do narcisismo, mais especificamente sobre o narcisismo secundário

que consiste no reinvestimento da libido que estava dirigida aos objetos de volta para o

eu.

Na psicose, tudo em volta do sujeito recebe uma significação particular e

mantém uma relação íntima consigo. Este ponto relaciona-se com a fragilidade com que

o eu é constituído, onde tudo perece ameaça-lo de invasão. Até certas tentativas de

investimento no outro, logo se voltam a um investimento em si.

O auto-investimento também gera um grande engrandecimento do eu

presenciado na megalomania, a qual procura exercer uma elaboração interna da libido

que retornou ao eu. Mas esta elaboração pode não acontecer da melhor forma, fazendo

com que toda a libido fique represada e o mundo seja percebido como em ruínas, sem

investimento e com o menor interesse por parte do sujeito. Aqui o delírio empreenderá a

construção de um novo mundo capaz se ser habitado sem reservas.

166
Paralelamente a isso, a auto-referência tem como objetivo a tentativa da

reintegração dos fragmentos de realidade como um aglomerado mais ou menos

coerente.

Em determinados casos é possível notar que o investimento narcísico ocorre por

meio do corpo próprio, seja como forma de idealização da imagem corporal ou por meio

do lugar privilegiado que ele toma na existência do indivíduo.

Por fim, é importante salientar que a problemática do narcisismo recebe um

lugar privilegiado no campo da psicose por empreender uma tentativa de reorganização

da imagem do corpo próprio como despedaçado. O reinvestimento no próprio eu é a

saída encontrada no sentido de tentar encobrir ou organizar a vivência corporal na

psicose.

A relação do sujeito com a realidade foi o terceiro eixo analisado neste trabalho.

A realidade rechaçada na psicose é a realidade psíquica, constituída pelas percepções

armazenadas na forma de um mundo interno. Ao se rechaçar uma percepção, o sujeito

também exclui o fragmento de realidade que estava ligado a ele. A este processo

chamamos de recusa da realidade.

Um segundo momento consiste em tentar reparar a perda dessa realidade ao se

construir uma nova que não traga consigo as mesmas questões da que foi repudiada.

Com esse objetivo e com o intuito de não se questionar a nova realidade construída pela

via delirante, as alucinações, quando presentes, trazem percepções que mantenham certa

relação com o sujeito, a partir das quais o delírio será modelado. Ao mesmo tempo em

que se constrói essa nova realidade a fim de que possa habitá-la, o delírio juntamente

com a alucinação também exerce uma tentativa de investimento objetal.

167
O delírio se mostra como uma possibilidade de restauração do mundo onde

objetos e pessoas possam ser novamente investidos. Ponto crucial para o entendimento

psicanalítico deste fenômeno não como signo de doença como faz a psiquiatria, mas

como processo de reconstrução e remodelamento que acaba por ser entendido como um

processo de cura.

Na paranóia, a construção delirante é empreendida pelo mesmo fenômeno que

gera a recusa da realidade, denominado projeção. Mecanismo que ainda possibilita o

estabelecimento de um novo contato com os objetos desinvestidos.

A relação da a realidade nos sujeitos com diagnóstico de paranóia não é

totalmente abalada, fazendo com que esses indivíduos apresentem o contato preservado

com alguns fragmentos de realidade e objetos de seu mundo.

Como percebemos, a alucinação tem o papel de fornecer um “pano de fundo”

para a realização da construção delirante, em alguns casos. Isso de forma mais

específica com relação à esquizofrenia, patologia em que as alucinações estão mais

presentes. E quando o quadro psicopatológico comporta a construção delirante, o delírio

exerce a interpretação das representações que as alucinações trazem.

Na paranóia, o delírio tem como objetivo a construção de uma saída para a idéia

incompatível que se apresenta de forma imperativa ao psiquismo do sujeito, por meio da

projeção, possibilitando a concepção de que a idéia rejeitada veio de fora, mas não sem

antes passar pelas devidas “deformações” do processo projetivo.

É nesse sentido que podemos entender o delírio e a alucinação enquanto

fenômenos implicados no processo de reconstrução e remodelamento, procedimento

que pode ser comparado à cura, além de ser a realização do desejo, ou melhor, os

impulsos desejosos do isso, germe desencadeador de todo o processo psicótico.

168
Ao mesmo tempo em que as alucinações e o delírio deflagram a organização

corporal característica da psicose, podemos dizer que a construção do delírio é a forma

de encontrar um lugar para si no mundo, momento em que o sujeito passa a existir. O

delírio é uma possibilidade de articular a história do sujeito, tornar possível que ele

habite o mundo e de certa forma se relacione com os outros.

Em confluência com esta idéia, retomamos a importância de devolver ao sujeito

psicótico a fala. Por mais que em alguns momentos nos deparamos com situações fora

do compartilhado pela maioria das pessoas, o delírio traz a história do sujeito, fala sobre

o sujeito em questão. No entendimento e manejo da psicose, é de extrema importância

para o sujeito ser entendido e ouvido. Ao profissional, a maior relevância é a de estar

em forma efetiva com o sujeito, com o que lhe é mais pessoal.

Outro grande valor para a escuta destes fenômenos é um importante

direcionamento para se efetivar o diagnóstico diferencial e um manejo adequado. Além

de se apresentarem como um material que trás informações e conteúdos importantes

sobre o sujeito em questão.

Ao finalizar este trabalho percebemos que algumas questões permanecem em

aberto e merecem uma investigação posterior, entre elas podemos citar a relação

transferencial no trabalho com sujeitos psicóticos, o trabalho que a construção delirante

assume no tratamento e o manejo clínico de intervenção possível para tal situação.

Por outro lado, pensando em outras abordagens para o fenômeno psicótico, outra

importante investigação diz respeito à participação e interferência da família nesse

processo como pincelamos no capítulo teórico, e sugere a terapia familiar ao apresentar

várias teorias que buscam entender como um sujeito passa a denunciar a patologia

familiar. Para essa abordagem, em suas mais variadas teorias, a linguagem e/ou a

169
comunicação na família são percebidas de fundamental importância no surgimento de

quadros esquizofrênicos em um membro da família.

Em síntese, este campo de estudo ainda precisa ser explorado em várias

vertentes e com a participação de múltiplas abordagens e teorias concernentes. Um

fenômeno complexo não pode ser resumido e estudado apenas por uma de suas facetas,

correndo o risco de resumi-lo ou enviesá-lo. Sabemos que o nosso trabalho trata-se

apenas do início de vários outros que poderão surgir a fim de alargar o conhecimento e

abordagem do processo psicótico, e que ainda causa estranhamento e medo em tantas

pessoas em nossa sociedade, inclusive em profissionais da área “psi” e de áreas afins.

170
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176
ANEXO 1

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa de Mestrado da Universidade
Católica de Brasília sobre O SENTIDO DO SINTOMA NA PSICOSE: UMA LEITURA
PSICANALÍTICA. Leia cuidadosamente o que se segue e quaisquer dúvidas serão respondidas
prontamente. Este estudo será conduzido por um Psicólogo, que é aluno regular no curso de
Mestrado em Psicologia da UCB e contará com a colaboração de professores orientadores desta
mesma Universidade.
A sua participação é voluntária, e será documentada através do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, para
o caso de analfabetos. Não participarão desse estudo pessoas sem participação voluntária,
menores de idade e indivíduos que não atendam os critérios técnicos estipulados pelo
pesquisador.
O intuito desta pesquisa é conhecer melhor o seu perfil psicológico, observando a sua
história de vida, bem como a história de seus antepassados, e outras informações que serão
colhidas no contexto da entrevista clínica.
Você será entrevistado em cinco encontros com duração de uma hora. Caso seja
necessário, poderá ser solicitada a participação de outros encontros para a finalização das
entrevistas pretendidas. As entrevistas serão gravadas, para posteriormente, se realizar um
estudo do material. Após o estudo, a gravação será destruída.
Se você tiver interesse poderá receber informações sobre as entrevistas realizadas a
qualquer momento. Para contato com o pesquisador o número de telefone é (61) 3325-4669
(Núcleo de Psicologia do Hospital de Base – NUPSI).
Se você concordar em participar do estudo, seu nome e identidade serão mantidos em
sigilo. Somente o pesquisador, terá acesso a suas informações para verificar dados do estudo.
As perguntas ou os problemas referentes ao estudo poderão ser questionados ao
pesquisador. Para perguntas sobre seus direitos como participante no estudo, o Comitê de Ética
em Pesquisa com Seres Humanos da Secretaria de Saúde poderá ser consultado no telefone
(3325-4955).
Sua participação no estudo é voluntária. Você pode escolher não fazer parte dele, ou
desistir a qualquer momento. Você poderá ser solicitado a sair do estudo se não cumprir os
procedimentos previstos ou atender as exigências estipuladas. Você receberá uma via assinada
deste termo de consentimento.
Declaro que li e entendi o formulário de consentimento, sendo minhas dúvidas
esclarecidas e que sou voluntário a tomar parte neste estudo.

Brasília, ____ de ______________ de 2007.

____________________________________________________
Assinatura do Voluntário

____________________________________________________
Representante Legal

__________________________________________________
Assinatura do Pesquisador
José Carlos Castelo Branco Filho
CRP 01/10169

177

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